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Processo Penal Prof. Danilo Pereira Apostila 4. Princípios do Direito Processual Penal: natureza jurídica; interpretação conforme e sistemática; cláusulas pétreas; fundamento; funções; princípios constitucionais, infraconstitucionais e internacionais. Natureza jurídica Muito se discute acerca da natureza jurídica dos princípios. Seriam diretrizes ou verdadeiras normas jurídicas? Registre-se que, de fato, os princípios constituem uma orientação, um norte, uma diretriz para aquele que exerce a função jurisdicional, ou seja, aplica o direito. Outrossim, é função dos princípios, ao mesmo tempo, uma limitação ao arbítrio do legislador. Os princípios, até por definição, constituem a raiz de onde deriva a validez intrínseca do conteúdo das normas jurídicas. Quando o legislador se presta a normatizar a realidade social, o faz, sempre, consciente ou inconscientemente, a partir de algum princípio. Portanto, os princípios são as idéias básicas que servem de fundamento ao direito positivo. Logo, não são normas propriamente ditas, mas são vigas mestras, orientam tanto o legislador na confecção de leis (há uma presunção de constitucionalidade de todas as leis e atos normativos editados pelo poder público), quanto ao juiz, quando da prolação da sentença. Por outro lado muitos sustentam que os Princípios são normas e seria ultrapassado afirmar que princípio é fonte subsidiária do direito. Ao conferir normatividade aos princípios, estes perdem o caráter supletivo, passando a impor uma aplicação obrigatória. Aliás, dizem, seria até um erro utilizar o princípio como fonte subsidiária e não como fonte primária e imediata de direito, até porque a própria expressão “princípio” significa começo, início, ou seja, deve ser verificado desde logo, e não como complemento. Logo, completam o raciocínio da seguinte forma: “os princípios não são meros acessórios interpretativos. São enunciados que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos na lei, aplicam-se 1

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Apostila 4. Princípios do Direito Processual Penal: natureza jurídica; interpretação conforme e sistemática; cláusulas pétreas; fundamento; funções; princípios constitucionais, infraconstitucionais e internacionais.

Natureza jurídica

Muito se discute acerca da natureza jurídica dos princípios. Seriam diretrizes ou

verdadeiras normas jurídicas? Registre-se que, de fato, os princípios constituem

uma orientação, um norte, uma diretriz para aquele que exerce a função

jurisdicional, ou seja, aplica o direito. Outrossim, é função dos princípios, ao

mesmo tempo, uma limitação ao arbítrio do legislador. Os princípios, até por

definição, constituem a raiz de onde deriva a validez intrínseca do conteúdo das

normas jurídicas. Quando o legislador se presta a normatizar a realidade social,

o faz, sempre, consciente ou inconscientemente, a partir de algum princípio.

Portanto, os princípios são as idéias básicas que servem de fundamento ao

direito positivo. Logo, não são normas propriamente ditas, mas são vigas

mestras, orientam tanto o legislador na confecção de leis (há uma presunção de

constitucionalidade de todas as leis e atos normativos editados pelo poder

público), quanto ao juiz, quando da prolação da sentença. Por outro lado muitos

sustentam que os Princípios são normas e seria ultrapassado afirmar que

princípio é fonte subsidiária do direito. Ao conferir normatividade aos princípios,

estes perdem o caráter supletivo, passando a impor uma aplicação obrigatória.

Aliás, dizem, seria até um erro utilizar o princípio como fonte subsidiária e não

como fonte primária e imediata de direito, até porque a própria expressão

“princípio” significa começo, início, ou seja, deve ser verificado desde logo, e

não como complemento. Logo, completam o raciocínio da seguinte forma: “os

princípios não são meros acessórios interpretativos. São enunciados que

consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos

na lei, aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos” (BONAVIDES,

Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7a ed. Malheiros, 1998).

Interpretação conforme e sistemática

Segundo Alexandre de Moraes, a interpretação das leis deve ser conforme a

Constituição Federal, ou seja, a lei deve estar em conformidade com a CF, não

o contrário. Ademais disso, um princípio não vive isolado no mundo jurídico,

deve ser sempre analisado de acordo com todo o sistema constitucional. Quer

isto dizer que nossa Constituição Federal não pode ser lida em tiras, mas de

forma sistemática, de acordo com o “todo”. A maioria dos princípios encontra

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expressa previsão legal. Todavia, outros são obtidos a partir de uma análise

sistemática do ordenamento jurídico, surgindo da variação e junção de outros

princípios. Estes, apesar de tácitos (ou seja, não expressos no texto legal),

possuem vigência e aplicabilidade, tais quais os princípios que se encontram

escritos. Verificamos que a maioria dos princípios encontra previsão no artigo 5°

da Constituição Federal, sendo, portanto, cláusulas pétreas (aquelas

petrificadas, ou seja, proibidas de serem elteradas) do ordenamento jurídico

brasileiro conforme previsão expressa do art. 60, § 4º, inciso IV CF. Porém,

todos têm sobre si irradiada a luz dos Princípios Fundamentais previstos no

Título I da nossa Constituição Federal, que deriva (ou deveria derivar) todo

sistema de proteção dos direitos bem como de produção legislativa:

TÍTULO IDos Princípios Fundamentais

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;II - garantir o desenvolvimento nacional;III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:I - independência nacional;II - prevalência dos direitos humanos;III - autodeterminação dos povos;IV - não-intervenção;V - igualdade entre os Estados;VI - defesa da paz;VII - solução pacífica dos conflitos;VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;X - concessão de asilo político.Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

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Cláusulas pétreas

São tão importantes as liberdades públicas constitucionais, como restrições ao

poder estatal, que a Constituição as protege com uma cláusula de

irrevogabilidade (cláusulas pétreas). Ainda que se pretenda alterar, suprimir ou

reduzir o espectro dos direitos individuais, o Estado não poderá fazê-lo, nem

mesmo por emenda ou por reforma constitucional. Somente o Poder

Constituinte originário está autorizado, pela dicção do art. 60, §4º, inciso IV, da

Constituição Federal, a tocar nos direitos e garantias individuais da pessoa

humana. E, ainda que reunida uma Assembléia Nacional Constituinte, seria

inconcebível, do ponto de vista moral e do desenvolvimento da democracia,

suprimir tais garantias ou reduzi-las, pois um imperativo ético se apresenta no

sentido de sua manutenção em qualquer situação e em permanência, como uma

espécie de jus cogens, uma imposição da própria natureza das coisas e da

condição humana, por serem preceitos reconhecidos e reconhecíveis sem

necessidade de prévia demonstração, premissas sociais evidentes e

universalmente verdadeiras. Entre essas liberdades públicas, petrificadas como

as inscritas nas tábuas da lei mosaica (Moisés), encontramos garantias

processuais para o imputado, garantias estas tão importantes que são também

reproduzidas em cartas universais de direitos e em tratados internacionais,

como o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto de Nova Iorque sobre Direitos

Civis e Políticos, ambos integrados ao ordenamento jurídico brasileiro com força

de leis ordinárias e, portanto, normas vigentes.

Fundamento

Fundamento significa aquilo que legitima a existência de alguma coisa. Os

Fundamentos são as bases sobre as quais a República Federativa do Brasil se

assenta (art. 1º CF). Faltando qualquer um deles, a República Federativa não se

caracterizará como Estado democrático de Direito.

Funções dos princípios

1. fundamentadora: todas as leis encontram o seu fundamento de validade nos

princípios.

2. interpretativa, supletiva ou integradora: cumprem o papel de suprir

eventual lacuna do sistema (função supletiva ou integradora). No momento da

decisão o juiz pode valer-se da interpretação, da aplicação analógica bem como

do suplemento da norma por princípios ou mesmo a integração de um princípio

a um determinado caso concreto.

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3. limitativa: na medida em que é vedado em nosso ordenamento jurídico uma

lei ou uma decisão que viole um Princípio, clara é a sua função de limitação,

balizando tanto o legislador na sua ânsia legislativa quanto ao juiz de direito.

Princípios constitucionais, infraconstitucionais e internacionais

De todos os princípios (que configuram as diretrizes gerais do ordenamento

jurídico), gozam de supremacia (incontestável) os constitucionais. Exemplos:

princípio da Legalidade (art. 5º, XXXIX CF), Humanidade (1º, III e 4º II CF),

Ampla Defesa e Contraditório (art. 5º, LV CF), estado de Inocência (art. 5º, LVII

CF), etc. Mas isso não significa que não existam princípios infraconstitucionais

(leia-se: emanados de regras legais abaixo da CF). Os princípios constitucionais

contam com maior valor e eficácia e são vinculantes (para o intérprete, para o

juiz e para o legislador). Também existem princípios que derivam de regras

internacionais. Por exemplo: princípio do duplo grau de jurisdição (direito a

recurso), contemplado na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de

São José da Costa Rica de 22.1.1969, ratificado pelo Brasil aos pelo Dec.

678/92), art. 8º, II, ‘h’. O Direito internacional posto em vigência no Direito

interno é fonte do Direito, devendo ser considerado para a solução de conflitos.

Obs.:

Segundo o art. 5º, § 3º da CF, acrescentado pela EC nº 45/04, os tratados e

convenções internacionais sobre direitos humanos, quando respeitada a forma

de aprovação imposta, serão equivalentes a emendas constitucionais. Segundo

Alexandre de Moraes, a emenda a Constituição Federal, ingressando no

ordenamento jurídico após sua aprovação, passa a ser preceito constitucional,

de mesma hierarquia das normas constitucionais originárias (Direito

constitucional. Atlas. 11ª ed., p. 543).

Princípios em espécie

1. Princípio da humanidade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, pela

Assembléia Geral das Nações Unidas, assinala o princípio da humanidade e da

dignidade já no seu preâmbulo, onde estão as “consideranda” que motivaram o

ato internacional: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a

todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis

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constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)

Considerando que as Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos

fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana (...)”. Os arts.

V e VI dessa Declaração afirmam o princípio da humanidade, estabelecendo que

no plano internacional “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou

castigo cruel, desumano ou degradante" e que "Todo homem tem o direito de

ser em todos os lugares reconhecido como pessoa perante a lei”. Por sua vez, o

Pacto de Nova Iorque, de 1966, declara que “Toda pessoa privada de sua

liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à

pessoa humana”. A privação de liberdade implica, necessariamente, um

processo. Resulta, portanto, clara a obrigação dos órgãos de persecução e

julgamento de respeitar os direitos personalíssimos do acusado no processo e

durante sua tramitação. Já a Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, de 1969, estabelece, em seu art. 11, §1º, que “Toda pessoa humana

tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade” e

no art. 32, §1º, que “Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade

e a humanidade”. Aquele direito e este dever são correlatos e inseparáveis,

sendo endereçados também aos órgãos estatais de Justiça criminal. Derivando

de um dos fundamentos republicanos, constante do art. 1º, inciso III, da

Constituição Federal, que exalta a dignidade da pessoa humana, o princípio da

humanidade extrai-se também do art. 5º, incisos III e XLIX. Ao declarar que

“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”

(art. 5º, III) o constituinte especificou indiretamente duas garantias processuais,

as de que:

1. o processo penal não pode servir como meio para a aplicação da pena de

tortura ou da pena de morte ou para a sujeição de quem quer que seja a

tratamento desumano ou degradante, como sanção final;

2. o processo penal não pode assumir forma desumana, com procedimentos que

exponham o homem a posições ou situações degradantes, torturantes ou a

vexames. Implica, portanto, o direito ao respeito, de que toda pessoa humana é

titular, cabendo ao Estado providenciar: processo acusatório de curta duração;

limitação de causas de prisão anterior à sentença condenatória definitiva;

separação dos presos provisórios dos presos condenados; e tratamento distinto

para as pessoas processadas (não-condenadas).

Por seu turno, o art. 5º, inciso XLIX, da CF garante aos “presos o respeito à

integridade física e moral”, significando que ao homem sujeito do processo

penal só se lhe retira parte da liberdade (a de locomoção extra muros), não lhe

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sendo tolhida a dignidade. Vale dizer: mesmo preso ou condenado o homem

preserva o direito personalíssimo à sua integridade física, moral e psíquica, com

o que se vedam também formas de tortura mental e ameaças à sanidade

intelectual dos imputados. Para a exata compreensão desses dogmas e sua

efetividade no processo penal, vale recordar a lição de BETTIOL, segundo que

“O juiz vive e opera num determinado clima político-constitucional em que a

pessoa humana representa o valor supremo; e é a posição desta que o Juiz é

chamado a escolher entre duas interpretações antitéticas de uma norma legal”.

2. Princípio da legalidade

Este princípio, que tem evidente interesse processual, não se acha colocado

apenas no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, onde se anuncia que

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em

virtude de lei”. A diretriz está também, como conseqüência, no art. 22, inciso I,

da mesma Constituição, que determina competir privativamente à União legislar

sobre direito processual, o que invalida, de pronto, qualquer iniciativa dos

Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios de dispor sobre a

matéria, salvo, para os dois primeiros entes, no tocante a procedimentos (art.

24, inciso XI, CF). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

asseverava já em 1789 que “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão

nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas”,

garantia que confere importância marcante ao Poder Legislativo, órgão de onde

advém as leis stricto sensu. Obviamente, na ausência de lei nenhum indivíduo

submete-se à vontade do Estado. Processualmente, para que ocorra a sujeição

do acusado às regras procedimentais e às restrições próprias do processo penal,

exige-se um plus, que a lei tenha sido produzida pelo ente competente, que,

neste caso, é a União Federal e que se trate de lei formal e lei material. Daí

porque os códigos de processo são veiculados por lei federal, de âmbito

nacional, diferentemente do que ocorria outrora, no regime constitucional de

1891, em que o processo era estadualizado. A unificação ocorreu com o Código

de Processo Penal de 3 de outubro de 1941, nosso código ainda vigente. Na

esfera penal-processual, a diretriz da legalidade encontra embasamento também

no art. 5º, inciso XXXIX, da Carta Federal. Talvez seja essa a mais importante

faceta da idéia de legalidade no campo penal, a que reproduz o brocardo

nullum crimen, nulla pœna sine prævia lege (não há crime, não há pena,

sem prévia lei) que acaba por conduzir à irretroatividade da lei penal gravior

(mais grave) (inciso XL). É certo que quanto ao processo penal vige a regra

tempus regit actum ou princípio do efeito imediato (art. 2º, Código de Processo

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Penal), segundo o qual os atos processuais praticados na forma da lei anterior

são válidos, passando os atos futuros à esfera jurídica da lei processual nova.

Portanto, embora deva-se atender ao critério de legalidade, não se há de falar

em irretroatividade da lei processual penal. Todavia, em alguns casos de normas

mistas, penais e processuais, o instituto processual não poderá ser aplicado de

pronto, para os processos em curso, pois isso significaria também a

retroatividade da norma estritamente penal, o que é proibido pelo ordenamento

quando a norma for desfavorável ao réu. Teríamos então a ultra-atividade da lei

processual anterior.

3. Princípio da igualdade judicial (isonomia)

Segundo o art. 5º, inciso I, da Constituição Federal, todos são iguais perante

a lei, em direitos e obrigações. Assim, ainda que subjetivamente desiguais, os

cidadãos merecem igual tratamento jurídico. Ou seja, essa cláusula geral de

isonomia perante a lei traduz-se também em igualdade processual, equilíbrio

entre as partes. Embora na ação penal pública o Estado se faça representar pelo

Ministério Público, a parte pública não tem maiores poderes que a parte privada

ré, o indivíduo. Ambos estão no mesmo plano de igualdade, com os mesmos

poderes e faculdades e os mesmos deveres processuais, diferentemente do

processo civil em que a Fazenda Pública e o Ministério Público têm prazos mais

dilatados para recorrer e contestar, além de outros privilégios previstos no

Código de Processo Civil. Todavia, no processo penal a isonomia é mais efetiva.

Caso seja violado esse princípio, a ação penal torna-se nula.

4. Princípio do juiz e do promotor naturais

Extrai-se do art. 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, o princípio do juiz

natural. “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade

competente”. Prevê ela, então, quais são os órgãos jurisdicionais, federais ou

estaduais, comuns ou especiais, competentes para a apreciação das ações,

inclusive penais (arts. 92 a 126). Dentro da Jurisdição competente, pode o

legislador ordinário estabelecer normas destinadas a regular a distribuição do

poder jurisdicional entre os órgãos que componham cada uma dessas justiças,

mas não lhe é lícito atribuir a uma outra a competência para o processo e

julgamento de infrações penais desrespeitando a prévia demarcação

constitucional que separa as funções das justiças especiais e da justiça comum.

Além disso, não pode a lei criar órgãos jurisdicionais nem dignar magistrados

especiais para o julgamento de pessoas ou fatos determinados. Com isso

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garante-se a existência de um órgão julgador técnico e isento, com competência

estabelecida na própria Constituição e nas leis de organização judiciária de

modo a evitar que se materialize o dogma nulla pœna sine judice. Igualmente

daí se recolhe a idéia do promotor natural, já reconhecida pelo Supremo

Tribunal Federal em interpretação dada a esse cânon e aos arts. 127 e 129 da

CF, que têm em mira assegurar a independência do órgão de acusação pública,

o que também representa uma garantia individual, porquanto se limita a

possibilidade de persecuções criminais pré-determinadas ou a escolha “a dedo”

de promotores para a atuação em certas ações penais.

Também relacionada ao princípio do juiz natural é a diretriz magna que veda a

instalação de juízos e tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, CF). Tratando-

se de limitação ao poder do Estado de organizar as suas cortes e tribunais, a

norma vincula-se às idéias de jurisdição e competência e é nitidamente uma

regra de interesse processual penal. A conseqüência é que será nula qualquer

sentença condenatória (e mesmo absolutória) que advier de um juízo

excepcional ou de um tribunal instituído ex post factum (depois de ocorrido o

fato). Previstas no Código de Processo Penal e nas leis de organização judiciária,

são exceções ao princípio os casos de:

a) desaforamento de processos de competência do tribunal do júri;

b) substituições entre juízes, em razão de férias, falecimento, afastamento

temporário;

c) modificações usuais de competência, pela criação de novas varas ou juízos ou

pela redistribuição de processos.

d) foro privilegiado por prerrogativa de função;

e) regras de justiças especializadas (eleitoral, trabalhista e militar).

“Habeas Corpus. Violação do Princípio do Promotor Natural. Inocorrência. Prévia designação de promotor de justiça com o expresso consentimento do promotor titular, conforme dispõem os artigos 10, inc. IX, alínea ‘f’, e 24 da Lei nº 8.625/93. Ordem denegada. O postulado do Promotor Natural “consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei” (HC 102.147/GO, rel. min. Celso de Mello, DJe nº 22 de 02.02.2011). No caso, a designação prévia e motivada de um promotor para atuar na sessão de julgamento do Tribunal do Júri da Comarca de Santa Izabel do Pará se deu em virtude de justificada solicitação do promotor titular daquela localidade, tudo em estrita observância aos artigos 10, inc. IX, alínea “f”, parte final, e 24, ambos da Lei nº 8.625/93. Ademais, o promotor designado já havia atuado no feito quando do exercício de suas atribuições na Promotoria de Justiça da referida comarca.

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Ordem denegada.” (STF – HC 103038/PA – 2ª Turma – Rel. Min. Joaquim Barbosa – J. 11.10.2011)

“(...) 1. O postulado do juiz natural tem por finalidade resguardar a legitimidade, a imparcialidade e a legalidade da jurisdição. 2. A garantia do devido processo legal somente se realizará plenamente com a certeza de que não haverá juiz de exceção. 3. É ilícita a designação ad personam de magistrado para atuar especificamente em determinado processo. 4. No caso, falta razoabilidade à justificativa apresentada pelo Tribunal de origem – grande acúmulo de serviços daquele que seria o substituto legal na ação – para proceder à designação casuística, especial, de magistrados para julgar o feito. As Portarias 1.623/2009 e 744/2010, do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, são incompatíveis com os regramentos constitucionalmente estabelecidos. 5. Ordem concedida a fim de anular todos os atos praticados pelos magistrados designados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Piauí para atuarem, especificamente, na ação penal em questão. (...).” (STJ – HC 161.877 – 6ª Turma - Rel. Min. Celso Limongi – J. 10.05.2011).

5. Princípio do devido processo legal

Inserido no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, o princípio due

process of law determina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus

bens sem o devido processo legal”. A garantia vale tanto para o processo civil

(‘de seus bens’) quanto para o processo penal (‘da liberdade’) e é uma conquista

do humanismo britânico, repartindo-se em procedural due process e

substantive due process. A França não descurou desse princípio. A

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão asseverava já em 1789

que “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados

pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam,

expedem executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos

(...)”. A Declaração das Nações Unidas, de 1948, repete a regra no seu art.

IX: “Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”. Por arbítrio,

entende-se a inexistência de lei ou o abuso de direito. Está claro que tal

liberdade pública mantém íntima relação com o princípio da legalidade (ora,

trata-se do devido processo legal), reclamando a devida persecução penal,

limitada pela lei processual.

6. Princípio da duração razoável do processo

Princípio constante no inciso LXXVIII, art. 5º CF, onde a todos assegura-se a

razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua

tramitação. O processo deve ser desenvolvido dentro de um tempo razoável e

necessário para atingir sua finalidade evitando dilações indevidas.

7. Princípio da vedação de provas ilícitas

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Verifica-se também facilmente que é do due process of law que se retira a

proibição de admissão de provas ilícitas no processo (art. 5º, LVI, CF).

Descumprida tal garantia, a sanção é de nulidade em conformidade com a teoria

fruit of the poisonous tree (fruto da árvore envenenada), acolhida pelo

Supremo Tribunal Federal. Lembre-se, contudo, que essa vedação não é

absoluta, devendo ser vista em cotejo com o princípio da proporcionalidade, a

fim de que não haja grave prejuízo material ao direito substancial discutido ou

protegido, apenas para se dar atendimento a uma forma procedimental. O

princípio da vedação de provas ilicitamente obtidas foi acolhido no plano

internacional pela Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pelo ONU em 10 de

dezembro de 1984. Integrado ao ordenamento brasileiro pelo Decreto n.

40/91, o tratado tem força de lei ordinária em nosso País. Segundo o art. 15

dessa Convenção “Cada Estado-Parte assegurará que nenhuma declaração que

se demonstre ter sido prestada como resultado de tortura possa ser invocada

como prova em qualquer processo, salvo contra uma pessoa acusada de tortura

como prova de que a declaração foi prestada”. Ou seja, em consonância com a

garantia contra a auto-incriminação, o depoimento de pessoa torturada

(declaração viciada e, portanto, nula) não pode ser utilizado no processo civil ou

penal para servir de prova contra ela. Admite-se apenas a sua utilização

processual para sustentar a acusação, noutro processo, contra o próprio

torturador.

Prova ilegítima: aquela obtida com vedação a norma de direito processual;

Prova ilícita: aquela com violação a norma de direito material.

8. Princípio da publicidade

Igualmente relevante é o princípio da publicidade, que se dirige a toda a

Administração Pública (art. 37 CF) e também à administração da justiça penal. A

publicidade é uma garantia para o indivíduo e para a sociedade decorrente do

próprio princípio democrático. O princípio da publicidade dos atos processuais,

profundamente ligado à humanização do processo penal, contrapõe-se ao

procedimento secreto, característica do sistema inquisitório. Decorrência da

democracia e do sistema acusatório, o princípio processual da publicidade

encontra guarida no art. 5º, inciso LX, da Constituição Federal, que declara:

“a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa

da intimidade ou o interesse social o exigirem”. A publicidade surge como uma

garantia individual determinando que os processos civis e penais sejam, em

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regra, públicos, para evitar abusos dos órgãos julgadores, limitar formas

opressivas de atuação da justiça criminal e facilitar o controle social sobre o

Judiciário e o Ministério Público. “O processo penal deve ser público, salvo no

que for necessário para preservar os interesses da justiça”, determina o art. 8º,

§ 5º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A regra, tamanha

a sua importância, é reafirmada no art. 93, inciso IX, da Constituição

Federal, conforme o qual “todos os julgamentos do Poder Judiciário serão

públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”. A

publicidade, como garantia, aparece também no art. 5º, XXXIII, da

Constituição Federal, que assegura a todos o direito de “receber dos órgãos

públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou

geral (...)”. Há dois aspectos do princípio da publicidade:

a) a publicidade geral ou plena, como regra para todo e qualquer processo;

b) a publicidade especial, em que se restringe a audiência nos atos processuais

e as informações sobre o processo às partes e procuradores, ou somente a estes.

Como crítica ao princípio, reconhecem benefícios e malefícios. O maior dos

benefícios é a dificultação de abusos, exageros, omissões e leviandades

processuais, pela possibilidade de constante controle das partes, dos advogados,

do Ministério Público, da imprensa e da sociedade. O mais deplorável dos

malefícios (ou talvez o único) é a possibilidade de haver, com a publicidade, a

exploração fantasiosa ou sensacionalista de fatos levados a discussão nos

tribunais, especialmente pela comunicação de massas. Para evitar esses abusos

midiáticos, em certas causas e situações há exceções ao princípio da publicidade

plena, como quando a divulgação da informação ou diligência represente risco à

defesa do interesse social ou do interesse público; à defesa da intimidade,

imagem, honra e da vida privada das partes; e à segurança da sociedade e do

Estado. Exemplos dessas restrições estão no:

a) art. 792 e §1º, do CPP (caso genérico);

b) art. 485 do CPP (votação no júri: sala especial);

c) art. 217 do CPP (retirada do réu);

d) art. 748 do CPP (registro da reabilitação);

e) art. 20 do CPP (sigilo no inquérito policial);

f) art. 202 da Lei das Execuções Penais;

g) art. 3º da Lei Federal n. 9.034/95 (sigilo na investigação de crimes praticados

por organizações criminosas), etc.

9. Princípio da motivação dos atos decisórios

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Não se concebe um julgamento público sem exposição das razões que

fundamentem a decisão. A CF erigiu a publicidade como direito fundamental

(art. 5º, LX), e estabeleceu obrigação de fundamentação de todas as decisões

(art. 93, IX CF). Aliás, se que adiantaria ser público o julgamento, ou seja

deferindo-se a ciência às partes e interessados, se não se dá aos mesmos a razão

de decidir daquela forma. Aliás, é com base na motivação que se estuda e

prepara o recurso visando a reforma da decisão.

10. Princípio do estado de inocência (presunção de inocência)

Previsto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição brasileira, este princípio é

também denominado “da presunção de inocência” ou da “presunção de não-

culpabilidade”. Acolhida também nos tratados internacionais sobre direitos

humanos, esta garantia representou ao tempo de sua introdução nos sistemas

jurídicos um enorme avanço. Ninguém poderia ser considerado culpado senão

após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Já constava da

Declaração Francesa de 1789 no art. 9º: “Todo acusado é considerado

inocente até ser declarado culpado (...)”. A Declaração Universal de 1948

assentou, com mais detalhes, que “Toda pessoa acusada de um ato delituoso

tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido

provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido

asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (art. XI). A presunção

de inocência prevista, de forma positivada, desde 1789, foi repetida também no

art. 8º, §2º, do Pacto de São José da Costa Rica (introduzido no Brasil pelo

Decreto Federal n. 678/92) e no art. 14, §2º, do Pacto Internacional sobre

Direitos Civis e Políticos, de 1966. Com a adesão do Brasil à Convenção

Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), “toda

pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto

não se comprove legalmente sua culpa” (art. 8°, 2, da Convenção). Nesses

termos, haveria uma presunção de inocência do acusado da prática de uma

infração penal até que uma sentença condenatória irrecorrível o declarasse

culpado. Como conseqüência:

1. não é o réu que tem que provar sua inocência, cabendo à acusação a prova

(art. 156 CPP);

2. para proferir sentença condenatória, o juiz deve estar convencido da

responsabilidade do acusado, sendo que, na dúvida, deverá absolvê-lo: in dubio

pro reo.

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

“(...) III – As afirmações de que a ré sabia que o seu namorado fazia tráfico de substância entorpecente e que tinha o livre arbítrio para não acompanhá-lo em viagem na qual seria adquirida a substância ilícita não passam de ilações e conjecturas que (...) impossibilitam o decreto condenatório. IV - À míngua de provas suficientes para embasar a pretensão acusatória, impõe-se a aplicação do princípio in dubio pro reo, que funciona como critério de resolução da incerteza, expressão do princípio da presunção de inocência. V – Ainda que a denunciada soubesse da ação criminosa, não se pode responsabilizá-la, a título de co-autora ou partícipe se tanto a denúncia quanto a sentença condenatória deixam de apontar a forma com a qual teria concorrido para a consumação do crime, limitando-se, apenas, em afirmar que, na condição de namorada do réu confesso, se não sabia, deveria saber que se tratava de um traficante e que, naquele dia, transportava a droga ilícita. V – Apelação provida (...).” (TRF/1.ª Reg. – AP 0044721-13.2006.4.01.9199 – 3ª Turma - Rel. Des. Klaus Kuschel – J. 20.06.2011).

“(...) Conforme apura-se dos autos, em Juízo, não foi reconhecido o apelado pelas vítimas, como também não confessou a prática delitiva. Assim sendo, não restando comprovadas a autoria e materialidade do crime de roubo, deve ser absolvido o acusado, em respeito ao princípio in dubio pro reo, com fulcro no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal. É firme o entendimento jurisprudencial no sentido de que não se admite condenação baseada, exclusivamente, em provas colhidas na fase policial, sob pena de afronta ao princípio do contraditório. Recurso improvido. (...).” (TJES –AP 24060275658 – 2ª Câm. Criminal - Rel. Des. Adalto Dias Tristão – J. 29.06.2011)

11. Garantia contra a auto-incriminação (Nemo tenetur se detegere)

Dispõe o art. 14, §3º, alínea ‘g’, do Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos — Pacto de Nova Iorque que toda pessoa humana tem o

direito de não ser obrigada a depor contra si mesma nem a confessar-se

culpada. É também garantia judicial internacional, no continente americano, por

força do art. 8º, §2º, alínea ‘g’, do Pacto de São José da Costa Rica o direito

que toda pessoa tem de “não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a

declarar-se culpada”. Quer dizer, nenhuma pessoa é obrigada a confessar crime

de que seja acusada ou a prestar informações que possam vir a dar causa a uma

acusação criminal. A Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da

América assegura tal garantia desde o século XVIII. Desde sua adoção

nenhuma pessoa “shall be compelled in any criminal case to be a witness

against himself.” (pode ser obrigada em qualquer processo criminal a ser

testemunha contra si mesmo). Trata-se do “privilege against self incrimination”

(privilégio contra auto-incriminação), que, entre nós, denomina-se garantia

contra a auto-incriminação. Embora a confissão já tenho sido doutrinariamente

como a “rainha das provas”, não se pode, no processo penal, constranger a isso

o acusado. Vale dizer: confissão, só espontânea e/ou voluntária. Qualquer

informação obtida do réu (ou mesmo de testemunha) mediante coação

configurará o crime de tortura, previsto na Lei n. 9.455/97. No sistema 13

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brasileiro, admite-se que o indiciado ou réu minta, que negue relação com o

fato, que cale a verdade, que fantasie, que amolde versões aos seus interesses.

Trata-se da regra de ouro nemo tenetur se detegere, insculpida no art. 5º,

inciso LXIII, da Constituição com a seguinte redação: “O preso será

informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (...)”.

e também previsto n o art. 186, § único do CPP. É dizer: ninguém é

obrigado a colaborar com o Estado (Polícia Judiciária e Ministério

Público) para o descobrimento de um crime de que se é acusado ou do

qual se possa vir a ser acusado. Sobre o Estado, no sistema acusatório,

recaem o ônus da prova e a missão de desfazer a presunção de inocência que

vigora em favor do acusado, sem esperar qualquer colaboração de sua parte. De

sorte que, desde 1988, não pode o magistrado considerar o silêncio do réu em

desfavor do processado, diante o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII

CF). Interessante notar, porém, que se o réu não desejar exercer esse direito ao

silêncio ou a ele renunciar, poderá ser “compensado” pelo sistema criminal, por

meio dos institutos da delação premiada e da confissão espontânea. No

primeiro caso, lei especial prevê redução da pena de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois

terços) para o réu delator (co-autor ou partícipe) que “através de confissão

espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa”. É o

que se dá por força do art. 16, parágrafo único, da Lei Federal n. 8.137/90, que

cuida dos crimes contra a ordem tributária, a ordem econômica e as relações de

consumo. O mesmo efeito decorre do art. 6º da Lei n. 9.034/95 — Lei de

Combate ao Crime Organizado, que permite a redução da pena de 1/3 a 2/3,

“quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de

infrações penais e sua autoria”. No segundo caso, confissão simples espontânea,

a auto-declaração de culpabilidade conferirá ao réu o direito de redução da

pena, em grau estabelecido pelo juiz, em virtude do reconhecimento de

circunstância atenuante genérica, prevista no art. 65, inciso III, alínea ‘d’, do

Código Penal: “são circunstâncias que sempre atenuam a pena, ter o agente

confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime”. Como

se vê, nas duas situações, a renúncia ao direito constitucional de manter-se em

silêncio converte-se em benefícios penais, com redução expressiva da resposta

estatal. Tratamento mais favorável ao delinqüente colaborador também está

presente no art. 1º, § 5º, da Lei n. 9.613/98 — Lei de Lavagem de Capitais,

quando o réu, co-autor ou partícipe “colaborar espontaneamente com as

autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações

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penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do

crime”.

Outros dois institutos reducentes de reprovabilidade penal, relacionados com a

regra Nemo tenetur se detegere, estão no art. 14 da Lei n. 9.605/98 — Lei Penal

Ambiental, que prevê a atenuação da pena: a) por comunicação prévia pelo

agente do perigo iminente de degradação ambiental (inciso III); e b) pela

colaboração do réu com os servidores encarregados da vigilância e do controle

ambientais (inciso IV). Perceba-se que, em qualquer das situações acima

analisadas, o réu preserva o seu direito ao silêncio e continua desobrigado de

colaborar com as autoridades. Mas se resolver falar, cooperando, será premiado

com a redução da pena.

“Coercitiva identificação criminal pelo DNA é possível?

A Lei 12.654, de 28.05.2012 – com vacatio legis de 180 dias trata do

assunto. A lei traz, além da possibilidade de identificação criminal por DNA,

no seio da persecução penal, também uma espécie de efeito da condenação.

Assim, acrescenta-se o art. 9.º-A à LEP, prevendo-se o obrigatório

fornecimento de material biológico pelos condenados por crime praticado,

dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por

qualquer dos crimes previstos no art. 1.º da Lei 8.072/1990, para o

estabelecimento do perfil biológico. O desaviso e o açodamento são

tamanhos, que se sujeitarão à providência constritiva, por exemplo, autores

de falsificação de cosméticos, mas ficarão de fora os sujeitos ativos dos

crimes de tráfico de drogas e de tortura, na modalidade em que perpetrada

“apenas” com grave ameaça, dado que não se encontram normativamente

abrangidos. Igualmente, ficou de fora o agente do roubo perpetrado sem

“violência grave”. Ademais, a inconstitucionalidade se agiganta no referido

art. 9.º-A, por um lado, na medida em que se cria o perfil genético para a

elucidação de eventuais delitos futuros, na contramão do Direito Penal do

fato. Por outro, tem-se uma sujeição sine die [sem data marcada] de tal

efeito da condenação, com uma perpetuidade que não se coaduna com o art.

5.º, LXVII, b, da CF. Portanto, entendemos que a nova manifestação

legislativa, cuja proposição nasceu no Senado, tramitando por cerca de um

ano, já ingressa írrita [sem efeito, nula] na ordem jurídica brasileira.

12. Princípio do favor rei (favor libertatis)

No conflito entre jus puniendi do Estado e do jus libertatis do acusado deve a

balança inclinar-se em favor do réu. Em razão deste são atribuídos alguns

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benefícios ao réu, como o in dubio pro reo (na dúvida em favor do réu). Em face

deste favor innocentiæ, a lei processual permite a absolvição do réu por

insuficiência de provas (art. 386, V e VII CPP). Proíbe a reformatio in pejus

(reforma para pior) em detrimento do acusado (art. 617 do CPP) durante o

exame recursal quando o recurso for exclusivo da defesa e favorece a posição

jurídica do réu, facultando-se a interposição de recursos privativos, como a

revisão criminal (art. 621).

13. Princípio do Contraditório

Corolário do princípio da igualdade perante a lei, a isonomia processual obriga

que a parte contrária seja também ouvida, em igualdade de condições (audiatur

et altera pars), e a produzir contra-prova, ou seja, amplamente defender-se. A

ciência bilateral dos atos e termos do processo e a possibilidade de contrariá-los

são os limites impostos pelo contraditório a fim de que se conceda às partes

ocasião e possibilidade de intervirem no processo, apresentando provas,

oferecendo alegações, recorrendo das decisões etc. Correspondem ao

movimento democratizante, humanizador e garantista do processo penal, os

princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inciso LV, CF), segundo os

quais “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em

geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos

a ela inerentes”. Tais princípios se destinam ao processo em geral, tanto o civil

quanto o penal e ainda o processo administrativo, que, no Brasil, é de natureza

não-judicial. Todavia, não são garantias absolutas. Há situações em que o

contraditório (acusação e defesa, prova e contra-prova) não pode ser garantido

desde logo, tendo sua aplicação diferida (contraditório diferido ou prorrogado),

onde o contraditório é postergado para momento posterior. É o que ocorre, por

exemplo, com o procedimento de interceptação de comunicações telefônicas,

regulado pela Lei n. 9.296/96, em que não se pode em nenhuma hipótese

anunciar previamente ao investigado a realização da diligência de escuta

judicialmente autorizada, sob pena de total insucesso da investigação criminal.

Para o Supremo Tribunal Federal, a garantia do contraditório não vigora,

também, nos pedidos de quebra de sigilo bancário, porquanto em tais situações

o anúncio da disclosure poderá levar à mobilização de somas em dinheiro e sua

conversão em ativos móveis, o que dificultaria sobremaneira a reparação do

dano ou o eventual seqüestro dos bens. Em tais situações não é que de fato

inexista contraditório nesses procedimentos. Significa apenas que a

oportunidade de conhecimento da medida apuratória ou das provas colhidas na

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investigação inquisitorial, e o ensejo de contestação a elas e produção de contra-

provas serão dados ao investigado/réu em momento posterior, garantindo-se

assim a ampla defesa. Certo, por outro lado, é que não há incidência do

contraditório no inquérito policial, que é procedimento administrativo pré-

processual, inquisitorial, presidido pela Polícia Judiciária, destinado à formação

da opinio delicti do Ministério Público e a subsidiar a ação responsável do

Estado em juízo, evitando lides penais temerárias. Destarte, o contraditório, que

em lógica implica a existência de “duas proposições tais que uma afirma o que a

outra nega”, tem como corolários ou implicações:

a) a igualdade das partes ou isonomia processual;

b) a bilateralidade da audiência e a ciência bilateral dos atos processuais

(audiatur et altera pars);

c) o direito à ciência prévia e a tempo da acusação, podendo o acusado "dispor

do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa";

d) o direito à ciência precisa e detalhada dessa acusação;

e) direito à compreensão da acusação e do julgamento, ainda que por meio de

tradutor ou intérprete;

f) o direito à ciência dos fundamentos fático-jurídicos da acusação;

g) a oportunidade de contrariar a acusação e de apresentar provas e fazer ouvir

testemunhas;

h) a liberdade processual de especificar suas provas e linha de defesa, escolher

seu defensor e mesmo de fazer-se revel.

Assim, a garantia do contraditório abrange a instrução lato sensu, incluindo

todas as atividades das partes que se destinam a preparar o espírito do juiz, na

prova e fora da prova. Compreende, portanto, as alegações e os arrazoados das

partes. Do princípio do contraditório decorre a igualdade processual, ou seja, a

igualdade de direitos entre as partes acusadora e acusada, que se encontram

num mesmo plano, e a liberdade processual, que consiste na faculdade que tem

o acusado de nomear o advogado que bem entender, de apresentar as provas

que lhe convenham etc.

14. Princípio da ampla defesa

A ampla defesa está intimamente ligada ao contraditório. A manutenção da

liberdade implica a ação defensiva dessa mesma liberdade, ainda que in

potentia. Do mesmo modo, não se pode conceber a vida, sem o direito presente

de mantê-la e de defendê-la contra ameaças ou agressões injustas ou ilegais,

atuais ou iminentes. Assim, também no processo penal, em que estão em jogo a

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liberdade e o patrimônio dos acusados, bem como suas honras. Ao lado da vida,

esses são os bens mais valiosos do homem, que o diferenciam da imensa massa

dos seres. Por isso, nesse campo, quando um desses bens é posto na berlinda, a

defesa deles deve ser amplamente assegurada, “com todos os meios e recursos a

ela inerentes”. A defesa criminal pode ser técnica, quando realizada por meio de

advogado, ou pessoal. Neste caso, o réu assumiria a proteção processual dos

seus próprios interesses em face da acusação contra si apresentada. Embora

prevista em tratados internacionais, a defesa pessoal no processo penal

brasileiro só é conhecida por ocasião do interrogatório. Esta é a única

oportunidade que o acusado tem de falar por si, diretamente ao julgador, sem a

intermediação do seu procurador. Trata-se de importante forma de defesa oral,

que deve ser devidamente considerada pelo juiz por ocasião da sentença, ainda

que outra seja a tese sustentada pela defesa técnica. A exceção quanto à

refutação pessoal somente confirma a regra, que, no Brasil, é a da

imprescindibilidade de defesa técnica, na forma do art. 261 do Código de

Processo Penal. Para assegurá-la às inteiras, é preciso permitir ao réu pelo

menos:

a) o conhecimento claro e prévio da imputação;

b) a faculdade de apresentar contra-alegações;

c) a faculdade de acompanhar a produção da prova;

d) o poder de apresentar contraprova;

e) a possibilidade de interposição de recursos;

f) o direito a juiz independente e imparcial;

g) o direito de excepcionar o juízo por suspeição, incompetência ou

impedimento;

h) o direito a acusador público independente; e

i) o direito a assistência de defesa técnica por advogado de sua escolha.

Quanto a este último aspecto, realçamos a previsão do art. 14, § 3º, alínea

‘d’´, do Pacto de Nova Iorque, que assegura a todo acusado o direito de

“estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio

de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do

direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija,

de ter um defensor designado ex officio gratuitamente, se não tiver meios para

remunerá-lo”. Semelhantemente, no art. 8º, § 2º, alínea ‘d’, do Pacto de São

José da Costa Rica, está a garantia do acusado de “defender-se pessoalmente

ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se

livremente e em particular, com seu defensor”. Quanto a este último aspecto, o

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Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) especifica entre os direitos do advogado o de

“comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem

procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em

estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”

(art. 7º, inciso III). Daí resulta que a incomunicabilidade dos acusados, ainda

que judicialmente decretada na forma do art. 21 do Código de Processo Penal,

não impede o contato direto do advogado com o seu cliente. Esta garantia

profissional do advogado é imprescindível ao asseguramento da ampla defesa do

acusado. O direito profissional é uma das manifestações do direito constitucional

do acusado a uma defesa efetiva e larga. Como se viu parágrafos acima, é

direito positivo, interno e também internacional, a garantia de defesa técnica ou

pessoal no processo criminal, admitindo-se a indicação de defensor dativo para o

réu, ainda que este não deseje, pois não é tolerável nem razoável admitir que

alguém possa ser acusado de um crime sem defender-se.

Destarte, do direito à ampla defesa decorre o dever do Estado de providenciar

ampla defesa para o acusado e de velar pela sua efetividade. Quanto a este, o

acusado, o único direito de defesa que se lhe retira é o de não se defender. Ou

seja, mesmo que o réu silencie em seu interrogatório sempre haverá defesa.

Sem defesa, não há processo penal. Nessa mesma medida, é óbvio que a defesa

deverá ser efetiva, uma vez que defesa técnica irreal, falha, omissa, leniente

equivale a ausência de defesa, sendo causa de nulidade do processo. Demais

disso, por força do art. 133 da Constituição Federal o advogado é essencial à

administração da justiça, principalmente a criminal.

15. Princípio do duplo grau de jurisdição

Este princípio não está expressamente previsto na Constituição Federal. Trata-

se de uma diretriz implícita, que se constrói a partir do art. 5º, inciso LV,

segunda parte, da Constituição, e dos arts. 92, 102, 105 e 108 da mesma Carta.

Ora, se é garantida a ampla defesa, “com os meios e recursos a ela inerentes”,

assegura-se concomitantemente o direito de revisão da decisão por um órgão

colegiado superior. De igual modo, se a Constituição regula a competência

recursal dos tribunais superiores e dos tribunais regionais e a distribui a órgãos

judiciais específicos, dando-lhes poder de julgar “em grau de recurso” as causas

decididas pelas instâncias inferiores, está a Lex Legum implicitamente

garantindo o direito ao acesso ao duplo grau de jurisdição. O direito ao duplo

grau abrange:

a) o direito ao reexame da causa, quanto ao mérito;

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

b) o direito à revisão da pena;

c) o direito à declaração de nulidades (reexame quanto à forma); e

d) impropriamente, o direito de rescindir a condenação trânsita em julgado.

Está também previsto tal princípio no Pacto de São José da Costa Rica e no

Pacto de Nova Iorque. Todavia, nessas duas convenções a menção é expressa,

valendo como lei ordinária no Brasil. Neste caso, como lei processual ordinária.

Genericamente, o art. 9º, §4º, do Pacto de Nova Iorque determina que

“Qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade por prisão ou

encarceramento terá o direito de recorrer a um tribunal para que este decida

sobre a legalidade de seus encarceramento e ordene sua soltura, caso a prisão

tenha sido ilegal”. Mais claro é o art. 15 do mesmo tratado: “Toda pessoa

declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença

condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”.

Neste passo, é oportuno assinalar o art. 5º, §2º, da Constituição Federal, que

estabelece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não

excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. E,

mais recentemente, após a Emenda Constitucional 45/2004, assim dispõe o §

3º: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem

aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três

quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas

constitucionais.” Esse dispositivo de extensão, além de fazer clara a importância

dos princípios para a exegese constitucional, evidencia por igual que as

diretrizes que regem essa hermenêutica não se encontram apenas no art. 5º, do

rol de direitos, nem estão elencadas somente na Constituição; podem estar nas

convenções internacionais de que o Brasil seja parte ou mesmo em outros

pontos da Constituição, como no art. 228, que estatui que "São penalmente

inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação

especial". Embora situado no capítulo VII, do Título VIII, da Constituição, que

trata da ordem social, o art. 228 prevê legítimo direito individual, limitador da

ação do Estado no processo penal. E, portanto, é também cláusula pétrea, em

conformidade com o art. 60, §4º, inciso IV, da Carta Federal.

16. Princípio da verdade real (verdade material ou judicial)

Com o princípio da verdade real se procura estabelecer que o jus puniendi

somente seja exercido contra aquele que praticou a infração penal e nos exatos

limites de sua culpa numa investigação que não encontra limites na forma ou na

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

iniciativa das partes. Busca-se aquilo que mais se aproxima da realidade, livre

de presunções ou ilações. Com ele se excluem os limites artificiais da verdade

formal, aquela que surge dos argumentos e provas produzidas pelas partes, tão

comuns no processo civil. Decorre desse princípio o dever do juiz de dar

seguimento à relação processual quando da inércia da parte e mesmo de

determinar, ex officio , provas necessárias à instrução do processo, a fim de que

possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos fatos objetos da ação

penal. No processo penal brasileiro o princípio da verdade real não vige em toda

a sua inteireza. Não se permite que, após uma absolvição transitada em julgado

seja ela rescindida, mesmo quando surjam provas concludentes contra o agente.

A transação é permitida, por exemplo, nas ações privadas com o perdão do

ofendido. A omissão ou desídia do querelante pode provocar a perempção. Há,

também, inúmeras outras causas de extinção da punibilidade que podem

impedir a descoberta da verdade real.

17. Princípio da oralidade

Pelo princípio da oralidade as declarações perante os juízes e tribunais só

possuem eficácia quando formuladas através da palavra oral, ao contrário do

procedimento escrito. Três outros princípios são decorrentes da oralidade:

1. Concentração: consiste em realizar-se todo o julgamento em uma ou poucas

audiências a curtos intervalos, como ocorre, por exemplo, nos debates entre

advogado e Ministério Público na instrução processual, no julgamento perante o

Tribunal do Júri ou nos Tribunais.

2. Imediatidade (ou imediação): consiste na obrigação do juiz ficar em

contato direto com as partes e as provas, recebendo assim, também de maneira

direta, o material e elementos de convicção em que se baseará o julgamento.

3. Identidade física do juiz: é a vinculação do magistrado aos processos cuja

instrução iniciou à vinculação da decisão final: “O juiz que presidiu a instrução

deverá proferir a sentença (art. 399, § 2º CPP, com redação dada pela Lei

11.719/08).

“1. Com o advento da Lei n. 11.719/2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá sentenciar o feito, ou seja, o juiz que colher a prova fica vinculado ao julgamento da causa. 2. Esta Corte Superior de Justiça tem se orientado no sentido de que deve ser admitida a mitigação do princípio da identidade física do juiz nos casos de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento por qualquer motivo que impeça o juiz que presidiu a instrução de sentenciar o feito, por aplicação analógica da regra contida no art. 132 do Código de Processo Civil. 3. Verificado que foi prolatada sentença penal condenatória por juiz diverso do que presidiu toda a instrução e que não está configurada

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nenhuma das hipóteses previstas no art. 132 do Código de Processo Civil, impõe-se a concessão da ordem para que seja anulada a sentença, determinando que outra seja proferida, dessa vez pelo Juiz titular da Vara ou por seu sucessor, conforme o caso. (...) 7. Ordem concedida para anular o Processo n. 130/10, da 7ª Vara Criminal de São Paulo, desde a sentença, determinando que outra seja proferida pelo Juiz que presidiu a audiência de instrução e julgamento, ressalvada a ocorrência das hipóteses do art. 132 do Código de Processo Civil e com observância da vedação à reformatio in pejus indireta, bem como para conceder a liberdade provisória ao paciente, sem prejuízo da aplicação das medidas introduzidas pela Lei n. 12.403/2011 ou da decretação da prisão preventiva, se sobrevierem fatos novos que justifiquem a adoção dessas medidas.” (STJ – HC 185859/SP – Rel. Min. Sebastião Reis Junior – J. 13.09.2011)

18. Princípio da obrigatoriedade

Com a prática da infração peal surge o direito do Estado exercitar o jus

puniendi, não sendo possível aos órgãos incumbidos da ação penal analisarem a

oportunidade ou conveniência da investigação do processo. Este princípio obriga

que a autoridade policial instaure o Inquérito Policial e o Ministério Público, na

presença de indícios de autoria do crime e prova da materialidade deste crime,

promova a ação penal (arts. 5°, 6° e 24 do CPP). Tal princípio, o mais difundido

nas legislações modernas, contrapõe-se ao princípio da oportunidade, em que o

órgão estatal tem a faculdade de promover ou não a ação penal, uma

discricionariedade da utilidade tendo em vista o interesse público. Funda-se este

na regra mínima non curat praetor, ou seja, o Estado não deve cuidar de coisas

insignificantes, podendo deixar de promover o jus puniendi quando verificar que

do exercício da ação penal podem advir maiores inconvenientes que vantagens.

No país, o princípio da oportunidade está reservado às ações privadas e as

públicas dependentes de representação e requisição do Ministro da Justiça

(ações penais condicionadas). Além disso, nas infrações penais de menor

potencial ofensivo, vige em nosso sistema a Lei dos Juizados Especiais Criminais

(L. 9.099/95) que permite a chamada transação penal (art. 72). Segundo os arts.

74 e 76 da Lei n° 9.099/95, pode o Ministério Público fazer acordo com o autor

do fato, mitigando, também, o princípio da obrigatoriedade.

19. Princípio da oficialidade

Como a repressão ao criminoso é função essencial do Estado, deve ele instituir

órgãos que assumam a persecução penal. É o princípio da oficialidade, de que os

órgãos encarregados de deduzir a pretensão punitiva sejam órgãos oficiais. No

nosso país, em termos constitucionais, a apuração das infrações penais é

efetuada pela Polícia (art. 144 da CF e art. 4° e ss do CPP), e a ação penal

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pública é promovida, privativamente, pelo Ministério Público (art. 129, I, da CF),

seja ele da União ou dos Estados (art. 128, I e II, da CF). Como órgãos oficiais

encarregados da repressão penal, a Polícia e o Ministério Público têm

autoridade, ou seja, podem determinar ou requisitar documentos, diligências ou

quaisquer atos necessários à instrução do inquérito policial ou da ação penal,

ressalvadas as restrições constitucionais. O princípio da oficialidade, porém, não

é absoluto, prevendo-se, como exceção, a ação penal privada, promovida pelo

próprio ofendido ou por quem tenha qualidade para representá-lo, tanto nos

crimes que se apuram exclusivamente mediante queixa (art. 30, do CPP), quanto

na ação privada subsidiária (art. 5°, LIX, da CF, e art. 29 do CPP. Decorem deste

princípio outros dois:

1. Autoritariedade: os atos de persecução penal são presididos por autoridade

pública

2. Oficiosidade: os órgãos incumbidos da persecução penal devem agir de

ofício, por iniciativa própria, sem necessidade de provocação.

20. Princípio da indisponibilidade do processo

Do princípio da obrigatoriedade decorre o da indisponibilidade do processo, que

vigora inclusive na fase do inquérito policial. Uma vez instaurado este, não pode

ser paralisado indefinidamente ou arquivado. A lei processual prevê prazos para

a conclusão do inquérito no artigo 10 do CPP (10 dias se o indiciado estiver

preso e 30 dias quando estiver solto) e proíbe a autoridade mandar arquivar os

autos (art. 17 do CPP). Mesmo quando o membro do Ministério Público requer o

arquivamento de um inquérito policial, a decisão é submetida ao Juiz, como

fiscal do princípio da indisponibilidade, que, discordando das razões invocadas,

deve remeter os autos ao chefe da Instituição (art. 28). Além disso, se proíbe

que o Ministério Público desista da ação penal já instaurada (art. 42 do CPP) ou

do recurso interposto (art. 576 do CPP), e o juiz pode condenar o réu mesmo na

hipótese de pedido de absolvição por parte do Ministério Público (art. 385). O

princípio da indisponibilidade do processo não cabe na ação penal privada pois

esta ação permite a renúncia, desistência, perdão, perempção etc., hipóteses

que extinguem a punibilidade do agente (art. 107 CP). Da mesma forma, e a

ação penal pública dependente de representação (ação penal condicionada a

representação) permite a retratação antes do oferecimento da denúncia (art. 25

do CPP). Finalmente, na suspensão condicional do processo – sursis (L.

9.099/95, art. 89), podem as partes (autor do fato e Promotor) convencionar

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mediante acordo a suspensão do processo mediante algumas condições

impostas, mitigando a indisponibilidade do processo.

21. Princípio da iniciativa das partes

Sendo o direito de ação penal o de invocar a tutela jurisdicional-penal do Estado

é evidente que deve caber à parte ofendida a iniciativa de propô-la, não se

devendo conceder ao juiz a possibilidade de deduzir a pretensão punitiva

perante si próprio (ne procedat judex ex officio). Assim, cabe ao Ministério

Público, representante do Estado-Administração, propor a ação penal pública

(art. 24 do CPP) e ao ofendido ou seu representante legal a ação privada (arts.

29 e 30, do CPP), no que se denomina de princípio da iniciativa das partes. Do

princípio da iniciativa das partes decorre como conseqüência que o juiz, ao

decidir a causa, deve cingir-se aos limites do pedido do autor (MP ou ofendido) e

das exceções deduzidas pela outra parte (réu), não julgando sobre o que não foi

solicitado pelo autor (ne eat judex ultra petita partium). O julgamento ultra

petita viola o princípio citado.

22. Princípio da Imparcialidade:

Na relação jurídico processual o juiz situa-se entre as partes sua atuação deve

ocorrer de forma desinteressada em relação ao conflito entre as partes. Para

assegurar a imparcialidade, a Constituição Federal estabeleceu garantias e

vedações aos magistrados:

1. Garantias: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de salários (art.

95, incisos I, II e III CF);

2. Vedações: exercer outra função ou cargo, salvo uma de magistério; receber

custas ou participações em processo; dedicar-se à atividade político-partidária;

receber auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades de direito público

ou privadas, salvo as exceções da lei; exercer advocacia em juízo ou Tribunal ao

qual se afastou antes de decorridos TRE anos do afastamento do cargo por

aposentadoria ou exoneração (art. 95, § único CF)

23. Princípio do Impulso Oficial

Proposta a ação penal por iniciativa da parte, passa-se a desenvolver o processo,

de um ato processual a outro, segundo a ordem do procedimento, até que a

instância se finde. A fim de se assegurar essa continuidade, essa passagem de

um ato processual a outro, é necessário o que se denomina impulso processual,

ou ativação da causa, que, em nosso direito, é regido pelo princípio do impulso

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oficial ou ex officio. Assim, embora a iniciativa na produção das provas pertença

às partes, incumbe ao juiz, segundo o CPP, “prover a regularidade do processo e

manter a ordem no curso dos respectivos atos”(art. 251), “determinar, de ofício,

diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (art. 156), determinar

exame complementar (art. 168), formular quesitos nas perícias em geral (art.

176), proceder novo interrogatório (art. 196) etc. Com o impulso oficial impede-

se a paralisação do procedimento pela inércia ou omissão das partes,

caminhando-se para a resolução do litígio de forma definitiva, que é o objetivo

do processo, a que obriga o princípio da indeclinabilidade da jurisdição penal.

Evidentemente tal princípio não é absoluto. Pode o processo ser encerrado sem

a solução do conflito quando ocorre, por exemplo, uma causa extintiva da

punibilidade, como a morte do agente.

24. Princípio da ordem consecutiva legal

O processo é um encadeamento lógico e sucessivo de atos e diligências, que tem

como fim permitir ao julgador a declaração da regra de direito aplicável ao caso

concreto, fazendo valer o jus puniendi estatal. Assim, suas características

estruturais mais importantes são:

a) sucessão de atos;

b) sucessão lógica desses atos;

c) sucessão ordenada, na forma da lei; e

d) dependência e concatenação entre os atos sucessivos.

Como conseqüência dessa concatenação, o elemento temporal, na definição de

prazos e ocasiões para a prática dos atos processuais, torna-se importante. Se

descumprida uma regra temporal, dá-se a preclusão, segundo o preceito

Dormientibus non sucurrit jus (o direito não socorre a quem dorme). A

desatenção à forma sucessiva e lógica dos atos processuais pode conduzir

também à nulidade do processo. Assim, a alteração da ordem legal de ouvida de

testemunhas (primeiro as da acusação e depois as da defesa), causando prejuízo

ao acusado, ocasionará a nulidade do processo a partir do instante da violação

da ordem sucessiva ordenada em lei.

25. Princípio da economia processual

Este princípio possibilita a escolha da opção menos onerosa às partes e ao

próprio Estado no desenvolvimento do processo, desde que não represente risco

para direitos individuais do acusado. Se isso puder ocorrer, a economia formal

deve ser evitada. Recente reforma processual (Lei 11.900/09), passou a admitir

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

que o interrogatório do acusado seja feito por videoconferência (art. 185, § 2º

CPP), visando tanto a segurança (juiz, partes, sociedade e do próprio preso),

quando a economia no transporte de presos.

26. Princípio ne bis in idem

Conforme o art. 14, §7º, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos, “Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual

já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em

conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”. Pelo art. 8º,

§4º, do Pacto de São José da Costa Rica “O acusado absolvido por sentença

passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos

fatos”. O preceito está previsto expressamente na Quinta Emenda à

Constituição dos Estados Unidos (Amendment V): “No person shall be held to

answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or

indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or

in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall

any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of

life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against

himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law;

nor shall private property be taken for public use, without just compensation.”

(Ninguém será detido para responder por um crime capital, ou outro crime

infamante, salvo por uma denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto

em casos que surgem na terra ou forças navais, ou na milícia, quando em

serviço em tempo de Guerra ou de perigo público, nem qualquer pessoa pode

ser sujeito pelo mesmo crime ser duas vezes em perigo de vida ou saúde;

nem ser obrigado em qualquer processo criminal a ser testemunha contra si

mesmo, nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido

processo legal, nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso

público sem justa compensação.) Também a Sétima Emenda da Constituição

norte-americana proíbe o dúplice julgamento, salvo aquele realizado de acordo

com o devido processo legal: “In suits at common law, where the value in

controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury shall be

preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in

any Court of the United States, than according to the rules of the

common law". (Nos processos de direito comum, onde o valor da causa exceder

vinte dólares, o direito de julgamento pelo júri será preservado, e nenhum fato

julgado por um júri, deve ser de outra forma re-examinado em qualquer 26

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tribunal dos Estados Unidos, de acordo com as regras do direito comum).

No Brasil, além das disposições convencionais, derivadas de tratados, assegura-

se a soberania dos veredictos no tribunal do júri e a autoridade da coisa julgada

no art. 5º, incisos XXXVIII, “c” e XXXVI, da Constituição Federal.

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