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O GRAU ZERO DA ESCRITURA∗

Seguido de

Novos ensaios críticos

Por

Roland BarthesTradução: João Batista do Lago

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EXISTE UMA ESCRITURA POÉTICA?

Na época clássica, a prosa e a poesia são magnitudes, sua diferença é mensurável; não

se encontram nem mais nem menos distantes que dois signos distintos, são contíguos, ou

seja, encontram-se ao longo do tempo ocupando lugar de proximidade, de vizinhança de

adjacência. Contudo, apesar dessa contigüidade, a prosa e a poesia apresentam diferenças

de quantidade. Infere-se que a Prosa é um discurso mínimo, veículo mais econômico do

pensamento, e se, ao mesmo tempo infiro que a, b, c são atributos particulares da

linguagem, inúteis, porém decorativos como o metro, a rima, assim como o ritual das

imagens, toda a superfície das palavras concretizará numa dupla equação de Monsieur

Jourdain:

Poesia = prosa + a + b + c

Prosa = poesia – a – b – c

Conclui-se, a partir de então, que a Poesia é [e será] sempre diferente da Prosa.

Entretanto, é preciso notar que a diferença não é de essência, mas de quantidade. Isto não

atenta contra a unidade da linguagem, que é um dogma clássico. Há uma quantificação

diferenciada dos modos ou formas de falar segundo as especificidades: aqui prosa e

eloqüência, ali poesia e preciosismo, todo um ritual mundano das expressões, porém

sempre uma linguagem única refletindo as eternas categorias do espírito. A poesia clássica

era sentida como uma variação ornamental da prosa, o fruto de uma arte (quer dizer: de

uma técnica), nunca como uma linguagem diferente ou como o produto de uma

sensibilidade particular. Toda poesia não é, então, mais que equação decorativa, alusiva ou

saturada de uma prosa virtual que se gera em essência e em potência em qualquer modo de

expressar-se. “Poética”, na época clássica, não designa nenhuma extencialidade, nenhuma

densidade particular do sentimento, nenhuma coerência, nenhum universo separado, mas

somente a inflexão de uma técnica verbal, isto é, a de expressar-se segundo regras mais

belas, portanto esteticamente mais elaboradas que a conversação natural, quer dizer, a

projeção exteriorizada de um pensamento interno que surge organizado de dentro do

Espírito, uma palavra socializada pela evidência mesma de sua convenção.

Sabemos que pouco ou quase nada – ou nada mesmo! – sobreviveu dessa estrutura

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na poesia moderna, p. e., não na poesia de Baudelaire, mas na poesia de Rimbaud, a não

ser que se queira retomar, segundo um modo tradicional modificado, os imperativos

formais da poesia clássica: quando os poetas instituem um espírito para a palavra como se

fora uma Natureza rígida, que reúne a um só tempo a função e a estrutura da linguagem. A

Poesia não mais é uma Prosa ornamentada ou amputada de suas liberdades. É uma

qualidade irredutível e sem heranças. Não mais é um atribuo. É substância e, por

conseguinte, pode muito bem renunciar aos signos, pois carrega consigo sua natureza, não

necessitando “gritar” além de sua identidade: as linguagens poéticas e prosaicas estão

suficientemente separadas para poderem prescindir dos signos de suas alteridades, ou

seja, de se representarem como fato de ser um outro ou qualidade de uma coisa ser outra.

Assim sendo, as pretendidas relações entre o pensamento e a linguagem se invertem;

na arte clássica, um pensamento já formado engendra uma palavra que o “expressa” e o

“traduz”. O pensamento clássico não contém duração [tempo], a poesia clássica somente

possui a duração necessária para a sua disposição técnica. Contrariamente, na poética

moderna, as palavras processam um encadeamento formal, donde emana pouco a pouco

uma densidade intelectual ou sentimental impossível de existir sem elas [as palavras];

assim é a palavra o tempo [duração] “grávida” de uma gestação mais espiritual, durante a

qual o “pensamento” é preparado, instalado pouco a pouco na fortuidade ou, melhor

dizendo, na causalidade das palavras – sem rumo, nem ordem.

Esta “árvore” verbática, donde cairá o fruto maduro de uma significação, supõe, por

certo, um tempo poético que já não é o de uma “fabricação”, mas o [tempo] de uma

aventura possível, o encontro de um signo e de uma intenção. A Poesia moderna se opõe a

arte clássica por uma diferença que capta toda a estrutura da linguagem e que não deixa

entre essas duas poesias outro ponto comum que não seja o de uma mesma intenção

sociologia.

A economia da linguagem clássica (Prosa e Poesia) é relativa [relacional], ou seja, as

palavras são as mais abstratas possíveis em proveito das relacionalidades. Nenhuma

palavra contém em si toda a massa suficientemente capaz de traduzir todo conteúdo ou

profundidade [de si mesma], posto que ela [a palavra] é apenas o signo de uma coisa e,

muito mais que isso, o caminho de um vínculo. Longe de se submergir numa realidade

interna consubstancial, isto é, “que es de la misma sustancia, naturaleza indivisible y

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esencia que outro”, ao seu pensamento, se extiende, apenas proferida, em direção

[movimento] a outras palavras, formando uma cadeia superficial de intenções.

Analogamente, se pousarmos o olhar sobre a linguagem matemática acabar-se-á por

compreender - possivelmente! – a natureza relacional entre a prosa e a poesia clássicas:

sabe-se que na escritura matemática não somente cada quantidade prevê um signo, mas

também que as relações que ligam essas quantidades estão transcritas também por meio

de uma marca operacional de igualdade [=] ou de diferença [≠]; pode-se dizer que todo o

movimento da obra matemática provém de uma leitura explícita desses relacionamentos.

Do mesmo modo, a linguagem clássica está dotada desse mesmo movimento, contudo, sem

o mesmo rigor: suas “palavras”, neutralizadas, ausentadas pela apelação severa duma

tradição que absorve sua serenidade ou fertilidade não sofrem com o acidente sonoro ou

semântico que concentraria num ponto o sabor da linguagem e deteria o movimento

intelectual em proveito de uma mal distribuída voluptuosidade. A obra clássica é uma

sucessão de elementos de igual densidade, submetida a uma mesma pressão emotiva na

qual se liberta toda tendência em direção a uma significação individual e inventiva. O

léxico poético é um léxico de uso, não de invenção: as imagens são particulares

corporativamente, não isoladamente, geralmente interpretam os atos e usos da vida social,

não o movimento criativo. A função do poeta clássico não é a de encontrar palavras novas,

com mais conteúdo e profundidade ou mais deslumbrantes, mas a de inscrevê-las de

acordo com um plano ou modo convenientemente rígido, protocolar, como se fora um

código sagrado, lhas dando maior grau de bondade ou excelência dentro dum

perfeccionismo simétrico de concisão e de relação, ou seja, levar o pensamento ao limite

exato de um metro. Os “concetti” clássicos são “concetti” de relações, não de palavras; é

uma arte da expressão, não da criação; aqui as palavras não reproduzem, como veremos

adiante – por uma espécie de altura violenta e inesperada – a profundidade e a

singularidade de uma experiência; são tratadas em sua superfície, segundo as exigências de

uma economia elegante e decorativa. Fica-se fascinado ante a formulação que as reúne,

não ante seu poder ou sua beleza próprios.

Sem dúvida, a palavra clássica não alcança a perfeição funcional do sistema

matemático: as relações não estão manifestadas por signos especiais, mas somente por

acidentes de forma ou disposição. A retração das palavras, assim como sua alienação

realiza a natureza funcional do discurso clássico; utilizadas num limitado número de

relações sempre semelhantes, as palavras clássicas se encaminham na direção de um corpo

algébrico: a figura retórica, o clisé, são os instrumentos virtuais de uma relação; perderam

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sua massa em prol dum estádio mais solidário do discurso; operam no modo de valências

químicas, delineando superficialmente a figura de um corpus verbal prenhe de conexões

simétricas, de estrelas com os nós e enlaces às novas estrelas surgentes, sem ter jamais o

descanso duma grande admiração, de novas intenções de significações. As parcelas do

discurso clássico apenas entregam seu sentido, se transformam em veículos ou anúncios,

levando sempre mais longe um sentido que não quer se depositar no fundo de uma

palavra, mas expandir-se num modo de um gesto total de compreendidade, de

intelectualidade, ou seja, de comunicabilidade.

Surge daí a distorção intentada por Hugo, de submeter o alexandrino, o mais

relacional de todos os metros, numa contenda futura com toda a poesia moderna, posto

que se trata de reduzir a nada uma intenção de relações para substituí-la por uma explosão

de palavras. Com efeito, a poesia moderna, já que é necessário opô-la à poesia clássica,

assim como a toda à prosa, destrói a natureza espontaneamente funcional da linguagem e

só deixa subsistir os fundamentos lexicais. Conserva das relações pura e tão-somente o

movimento, a sua música, não a sua verdade. A Palavra vive aquém ou por debaixo duma

linha de relações enterradas sob os pés duma figura de adornamento vazio, a gramática é

desprovida de sua finalidade, se faz prosódia, já não é mais que inflexão que perdura para

manifestar “relaciones vaciadas”. As relações não estão suprimidas totalmente, são

“sujeitos” aleijados, paródias de relações desnecessárias, pois a densidade da Palavra deve

elevar-se fora de um “corpo” vazio, como um ruído e um signo sem fundo, como um “furor

e um mistério”.

Na linguagem clássica as relações arrastam a palavra e a levam imediatamente para

um sentido sempre projetado; na poesia moderna as relações são apenas extensões da

palavra. A Palavra é uma “morada” e está implantada como origem na prosódia das

funções, contudo ausentes. Aqui as relações fascinam, a Palavra alimenta e sobressalta

como o súbito desvelamento de uma verdade; dizer que essa verdade é de ordem poética é

somente admitir que a Palavra poética jamais pode ser falsa [ou falseada] porque ela é

total; brilha com infinita liberdade de se presta a irradiar na direção de mil e uma relações

incertas e possíveis. Abolidas as relações fixas, a palavra somente tem um projeto vertical,

é como um bloco, um pilar que se rompe numa totalidade de sentido, de reflexos e de

permanência: é signo erguido. A palavra poética é aqui um ato sem passado imediato, um

ato sem entornos, propondo tão-somente a sombra espessa dos reflexos de todas as classes

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que estão vinculadas com ela. Assim, sob cada Palavra numa poesia moderna ocorre uma

corrente, ou seja, um encadeamento geológico de existencialidade, onde se encontram

todos os componentes dos signos referentes ao seu significado, onde se reúne o conteúdo

total do Substantivo, e no seu conteúdo eletivo como na prosa ou na poesia clássica. A

palavra já não está encaminhada de antemão na intenção geral de um discurso socializado;

o consumidor de poesia, privado do “código” de relações seletivas, desemboca na Palavra,

frontalmente, e a recebe como uma quantidade absoluta acompanhada de todas as suas

possibilidades. A Palavra é aqui enciclopédica; contem em si simultaneamente todas as

acepções [e concepções] entre as que um discurso relacional “hubiera impuesto uma

elección”. Realiza, pois, um estado possível só no dicionário e na poesia, donde o

substantivo pode viver privado de seu artigo[1], levado a uma circunstância de estado zero,

grávido de todas as especificações passadas e futuras. Aqui a palavra tem uma forma

genérica, é uma categoria. Cada palavra poética é, assim, um objeto inesperado, caixa de

Pandora donde surgem todas as categorias de linguagens, produzida e consumida com

extrema curiosidade, uma espécie de gula sagrada. Esta Hambre de la Palabra, comum a

toda poesia moderna, faz da palavra poética uma palavra terrível e inumana. Institui um

discurso saciado de palavras, um discurso “lleno de agujeros e de luces, lleno de ausências

y de signos”.

∗ Esta tradução decorre de [A844] Barthes, Roland [BAR] El grado cero de la escritura: seguido de Nuevos ensayos críticos. – 1ª. Ed – Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2003. pp. 46-57. ISBN: 987-1105-48-7[1] Em francês o substantivo jamais pode ocorrer sem a presença do seu artigo (N. do T. Argentino)