54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

35
A Cidade pelo Avesso Desafios do urbanismo contemporâneo VIANA &MOSLEY Editora Rachel Coutinho Marques da Silva Organizadora Arquitetura e Cidade

Transcript of 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Page 1: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

A Cidade pelo AvessoDesafios do urbanismo contemporâneo

VIANA & MOSLEYEditora

Rachel Coutinho Marques da SilvaOrganizadora

Arq

uite

tura

e C

idad

e

Page 2: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

A Cidade pelo AvessoDesafios do Urbanismo Contemporâneo

Page 3: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Rachel Coutinho Marques da Silvaorganizadora

A Cidade pelo AvessoDesafios do Urbanismo Contemporâneo

Page 4: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Aos meus filhos Eduardo e Gabriel,

por um mundo melhor.

Agradecimentos

Este livro é o resultado de múltiplas colaborações. Muitas pessoas direta e indiretamente

contribuíram para a elaboração e finalização deste livro. Sem poder nomear a todos, agra-

deço aos amigos, colegas e alunos pela paciência, apoio e troca intelectual. O apoio da

Coordenação do PROURB/FAU/UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, em especial de nossa coordenadora Denise

Pinheiro Machado foi crucial. Este livro não existiria sem o seu incentivo e suporte. A

FAPERJ e o CNPq deram o apoio financeiro necessário e fundamental para a materializa-

ção desta publicação. Agradeço à Editora Viana & Mosley pela confiança no projeto e à

Elisabeth Simões pela cuidadosa revisão. Finalmente, os autores dos artigos deste livro

merecem um especial agradecimento pelo engajamento intelectual e valiosa contribuição.

Page 5: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Projeto EditorialDenise B. Pinheiro MachadoPROURB - Programa de Pós-graduação em Urbanismo FAU/UFRJ

Coordenação EditorialMarta Mosley - Editora Viana & Mosley

DiagramaçãoHybris Design

CapaIsabella Perrotta

Foto da capaRachel Coutinho Marques da Silva

Revisão de textoElisabeth Simões

Prourb – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo

Avenida Pedro Calmon, 550Edifício da FAU/Reitoria, Sala 521Cidade Universitária - Rio de Janeiro CEP: 21941-901Tel.: 55(21) 2598-1990 - Fax: 55(21) [email protected]

Av. Ataulfo de Paiva, 1.079/ sala 704

Leblon - Rio de Janeiro, CEP: 22440-031

Tel./Fax: (21) 2540-8571

Diretor Comercial: Richard Mosley

Tel.: (21) 3204-9285

[email protected]

www.vmeditora.com.br

VIANA & MOSLEYEditora

Sumário

Urbanismo, urbanidade e as novas configurações sócio-espaciais | 9Rachel Coutinho Marques da Silva

Parte I Urbanismo Contemporâneo e uma Nova Urbanidade | 21A urbanidade na cidade contemporânea entre fronteiras e trincheiras | 23Rachel Coutinho Marques da Silva

O urbanismo em estado fluido | 41Rosane Azevedo de Araújo

Um tempo-lugar para o cultivo dos corpos e do espírito | 59Cristovão Fernandes Duarte

Parte II Urbanismo e Novas Espacialidades | 69Ideologia moderna, planejamento e imagem de cidade na produção do espaço de Brasília | 71Lucia Cony Faria Cidade

Cidade aeroporto ou aeroporto-cidade? | 93Alexandre Brandão e Teresa Faria

Transformações na paisagem urbana: favelização de conjuntos habitacionais | 113Luciana da Silva Andrade e Gerônimo Emílio de Almeida Leitão

Parte III Projetos Urbanos e Áreas Centrais | 133Cidade e renovação urbana: breve histórico da experiência italiana | 135Elio Trusiani

Projeto urbano no Rio de Janeiro e as propostas para a área central nos anos 1990 | 145Henrique Barandier

Reabilitação patrimonial e moradia coletiva na área central de Rosario | 169Laura Varni

Parte IV Paisagem e Meio Ambiente | 181Natureza e cultura: do idealismo constituído ao despertar de novas visões | 183Ivete Farah

Notas sobre o paisagismo moderno no Brasil | 201Fabiana Izaga

A opção bioclimática no projeto urbano | 227Oscar Corbella e Virginia Maria Nogueira de Vasconcellos

Reflexões sobre as dimensões humanas da conservação | 243Marcelo Motta

Sobre os Autores | 274

Page 6: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Ao longo da estrada fui percebendo que os meus amigos

tinham umas idéias meio loucas de o que era uma cidade, umas

idéias exageradas, cada ilusão, negócio de louco.

LUIZ ENRIQUEZ, SÉRGIO BARDOTTI E CHICO BUARQUE,A Cidade Ideal, 1977

Como se pode então construir um utopismo mais sólido que

integre processo social e forma espacial? É possível formular uma

nova modalidade mais dialética de utopismo, e até mesmo, cons-

truir uma dialética utópica?

DAVID HARVEY,Espaços de Esperança. 2000

Nunca

9

Urbanismo, urbanidade e as novasconfigurações sócio-espaciais

Rachel Coutinho Marques da Silva

Page 7: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

cas sociais aconteciam, mesmo numa sociedade ainda com estratificação social bem defini-

da. O artigo examina a passagem da condição de homem público para a condição de homem

indivíduo na cidade contemporânea e, brevemente, tece considerações sobre o que significa

o termo urbanidade nos dias de hoje, quando as grandes cidades, mas especialmente o Rio

de Janeiro, apresenta profundas divisões sócio-espaciais, constituindo fronteiras a serem

superadas e trincheiras a serem demolidas. Trabalha juntamente com o conceito de urbanida-

de a noção de fronteiras urbanas, formando separações visíveis e invisíveis que fragmentam

o espaço urbano e esvaziam o espaço público. Examina a condição de isolamento e de indi-

vidualismo cada vez maior presente na cidade contemporânea e propõe uma possível reinte-

gração dos tecidos urbanos divididos a partir da transformação das fronteiras-faixa (faixas de

fronteira) em fronteiras vivas.

Rosane Araújo examina a condição do efêmero e passageiro na cidade contemporânea e

suas repercussões na arquitetura e urbanismo no artigo seguinte: O URBANISMO EM ESTADO

FLUIDO. A autora coloca em discussão o próprio conceito de cidade. Esta não mais se reduz

aos ideais modernistas e os urbanistas buscam, e alguns mesmo anunciam, um novo urbanis-

mo, mais adequado às exigências contemporâneas. Evidentemente, este novo urbanismo

requer um repensar do conceito de urbanidade, pois, como Araújo coloca, estar na cidade sig-

nifica estar em qualquer lugar. O espaço virtual subverte as tradicionais definições de público

e privado e de local e global, além de atenuar um dos traços urbanos mais marcantes da

sociedade industrial que era a separação casa-trabalho. Da mesma forma, como bem frisa a

autora, a cidade tradicional tem suas origens e é fortemente marcada pelo sedentarismo, pelo

assentamento das populações nômades no território e pela forte materialidade das constru-

ções. A cidade contemporânea apresenta tendências de volta ao nomadismo, físico e virtual,

e passa a ser marcada pela estética do leve, do portátil e do efêmero. A ciência se volta para

a nanotecnologia e para a clonagem. Assim, a autora enfatiza a necessidade de se estudar as

definições de espaço, as conseqüências destas transformações no espaço e nas pessoas que

habitam a cidade.

Argumenta que devemos retomar a antiga noção de cosmopolita, pois as trocas sociais

e materiais se darão mediante a interface gerada pela disponibilidade mental, social, pessoal

e dos equipamentos disponíveis. A autora diz que o Urbanismo se tornaria o “Orbanismo” do

século XXI, e o mundo seria tratado como um só, sem referência fronteiras ou limitações.

11

Urbanismo, urbanidade e as novas configurações

Nunca cidade esteve tanto em evidência quanto nos dias de hoje. Falar de cidade é falar

de vida urbana e dos desafios que representa a vida cotidiana, sobretudo nas grandes metró-

poles. Ao urbanista, que tem a cidade como seu objeto de estudo e de intervenção, cabe ten-

tar entendê-la para poder propor soluções que possibilitem por um lado, amenizar as dificul-

dades da vida urbana e, por outro, estimular os potenciais criativos dos indivíduos e a convi-

vência sadia entre os grupos sociais. A perplexidade diante da atual realidade urbana, princi-

palmente nas grandes metrópoles, faz com que velhos conceitos sejam postos em cheque ou

pelo menos relativizados. Noções como segurança, controle e estabilidade, solidariedade e

cidadania, centralidade, vazios urbanos, esfera pública e privada, bem como a própria estéti-

ca urbana devem ser reexaminadas. As tradicionais noções estão pelo avesso e o bom senso

pode ser tão efêmero quanto as relações sociais.

Este livro reúne uma série de artigos, que procuram refletir sobre os desafios da cidade

contemporânea, em quatro grandes eixos de questões fundamentais para o urbanismo na

atualidade: a) urbanidade contemporânea; b) novas espacialidades; c) áreas centrais; e,

d) paisagem e meio ambiente. Estas questões fazem parte da agenda do urbanismo contem-

porâneo e a elas se agregam sempre os aspectos sociais, econômicos e culturais.

O eixo urbanidade tem como centro o homem enquanto ser urbano e destaca a relação

dialética entre o sujeito e objeto e as inversões de papéis que a contemporaneidade coloca.

O homem, enquanto ser social e sujeito, faz, vive, transforma e se reproduz na cidade. A cida-

de, enquanto objeto, é feita e refeita, consumida e transformada. Na contemporaneidade

observamos cada vez mais uma mudança nesta relação e o homem vem assistindo, cada vez

mais passivamente, a cidade dominá-lo e consumi-lo, fazendo com que a vida urbana seja

meramente uma busca pela sobrevivência – do tipo salve-se quem puder – deixando pouco

espaço para a expressão da individualidade criativa e feliz. Somos nós que moldamos a cida-

de ou é a cidade que nos molda?

O primeiro artigo: A URBANIDADE NA CIDADE CONTEMPORÂNEA ENTRE FRONTEIRAS E TRIN-

CHEIRAS, de minha autoria, procura examinar as mudanças na condição do viver urbano e do

próprio conceito de cidade a partir da modernidade, quando a relação entre as esferas públi-

cas e privadas guardava um significado definido entre a condição de vida íntima e vida públi-

ca, na qual o espaço urbano privilegiava a condição de vida pública. Com o rompimento dos

muros a cidade ganha uma condição de cidade aberta, e era nos espaços públicos que as tro-

10

A Cidade pelo Avesso

Page 8: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

O terceiro artigo que encerra este primeiro bloco, de autoria de Cristóvão Duarte intitu-

lado UM TEMPO-LUGAR PARA O CULTIVO DOS CORPOS E DO ESPÍRITO traz ao debate um outro aspec-

to importante da urbanidade contemporânea que é a dimensão do tempo livre e de sua apro-

priação para a fruição do lazer. O autor reivindica uma estratégia de resistência à opressão

da sociedade de consumo e, examina a relação entre espaço-tempo e corpo-espírito na cida-

de contemporânea.

Neste texto, Duarte se propõe discutir o conceito de lazer de maneira ampliada, como

sendo o ato de cultivar o corpo e o espírito. Neste sentido, enfatiza a importância de pensar

o ato de cultivar o corpo e o espírito não como uma atividade isolada das demais atividades

urbanas, mas como primordial para a integração de todas estas. O autor aponta o fracasso

do ideário da sociedade industrial que apontava para um aumento do tempo livre, o que per-

mitiria a passagem da sociedade do trabalho para a sociedade do lazer. Esta seria alcançada

em última análise não somente pelos ganhos de produtividade do modo de produção capita-

lista, que permitiria aos indivíduos ter mais tempo livre, mas também pela reorganização do

espaço urbano, ancorado nos princípios modernistas. Sua intenção é mostrar como o tempo

livre vem se tornando cada vez menor e como a relação tempo-espaço na sociedade de con-

sumo reduz o tempo a mais uma mercadoria a ser consumida. Nos termos colocados por

Duarte, a urbanidade, que se pauta nas relações de trocas sociais e na maximização das

potencialidades criativas dos indivíduos, fica comprometida.

A segunda parte do livro é dedicada às mudanças nas espacialidades presentes na cida-

de contemporânea. Os três artigos que compõe este bloco irão mostrar de forma complemen-

tar como as políticas urbanas podem produzir espaços desiguais e como novas espacialida-

des decorrem do processo desigual de produção do espaço. A antiga noção de centralidade

muda seu rebatimento físico e não mais corresponde à tradicional área central. Equipamentos

de serviço e infra-estruturas urbanas como shopping-centers e aeroportos assumem novas

funções e faz com que repensemos as definições de espaços livres públicos, lazer e recreação.

Conceitos como mobilidade e conectividade dos fluxos constituem-se chaves para o entendi-

mento da cidade contemporânea. A mobilidade, como vários autores já apontaram (Ascher,

Castells, Graham e Marvin entre outros) , é crucial para a economia global. No entanto, nunca

em outro período da história as pessoas se moveram tanto sem sair do lugar e sem saber

quando conseguirão chegar a algum.

12

A Cidade pelo Avesso

O artigo de Lucia Cony Cidade: IDEOLOGIA MODERNA, PLANEJAMENTO E IMAGEM DE CIDADE NA

PRODUÇÃO DO ESPAÇO DE BRASÍLIA busca o entendimento da produção do espaço de Brasília

através de uma análise da ideologia do urbanismo de cunho modernista. Cidade examina a

construção da espacialidade de Brasília e seu corolário social e mostra que a segregação

sócio-espacial presente no Distrito Federal afeta a imagem de cidade ideal e reforça situações

típicas de um capitalismo periférico. A criação da nova capital do país foi pensada para ser o

símbolo dos ideais desenvolvimentistas do país que se ensaiava moderno, que deveria rom-

per com as tradições arcaicas de seu passado e voltar-se para o futuro em busca da socieda-

de ideal. Se, por um lado, a ênfase no projeto de organização do espaço urbano baseado em

princípios racionais de urbanismo propiciou a produção de um espaço ordenado, por outro

lado, a forma de ocupação apresentou-se muito mais como um reflexo das desigualdades pre-

sentes no modelo de desenvolvimento nacional e nas práticas sociais mais comuns na socie-

dade brasileira. A autora utiliza quatro eixos teóricos e históricos para o entendimento do pro-

cesso de produção do espaço em questão. A partir destes eixos a autora examina o caso do

planejamento, criação, expansão e gestão do Distrito Federal, que se insere na ideologia

desenvolvimentista dos anos 50, que alguns autores se referem como modernização conser-

vadora. Neste contexto, o espaço, enquanto expressão das desigualdades sociais e das rela-

ções de poder, há que ser ordenado e dominado; o urbanismo torna-se então um elemento

estratégico para os governos.

O estudo de Brasília fornece uma boa análise dos limites do planejamento racionalista e

serve como um contexto histórico para o artigo que se segue, de Alexandre Brandão e Teresa

Faria, sobre o papel dos aeroportos na estruturação urbana da cidade contemporânea, desa-

fiando os antigos paradigmas de centralidade. Mostram o surgimento de um novo conceito –

o de aeroporto-cidade – como uma nova forma de produção do espaço urbano. Os aeropor-

tos representam o elo de ligação do local com o global através de duas funções principais, a

de conectividade dos fluxos e materialização das trocas e de polarizador de capitais logísti-

cos. Neste sentido, os autores analisam a relação entre os aeroportos e as cidades onde se

inserem, mostrando como estes grandes equipamentos urbanos que são infra-estruturas fun-

damentais nas cidades alteram os espaços urbanos e se tornam eles próprios cidades dentro

de cidades. Apontam, outrossim, o surgimento de outro conceito importante – a Aerotrópolis,

que significa tornar o aeroporto uma grande centralidade e ao mesmo tempo transformá-lo

13

Urbanismo, urbanidade e as novas configurações

Page 9: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

to, o controle do espaço pelo poder público. Os autores afirmam que este conflito ideológico

permanece até hoje nas políticas públicas habitacionais, onde se alterna a ausência de orde-

namento e regulação e práticas autoritárias de provisão de moradia. Desta forma, a troca

entre saber popular e técnico apresenta-se como uma terceira via.

A terceira parte do livro é dedicada ao estudo do papel das chamadas áreas centrais das

cidades, que assim eram denominadas por conta de seu papel de centralidade principal. As

antigas áreas centrais representam hoje um desafio para os urbanistas, pois carregam consi-

go uma forte representação simbólica da memória urbana e ainda mantém uma infra-estru-

tura instalada subutilizada. As metrópoles urbanas, por sua vez, estabelecem novas centrali-

dades. O próprio termo centralidade merece uma revisão, pois a estruturação das cidades con-

temporâneas vem mostrando uma dispersão funcional e formal de tal monta, que é cada vez

mais difícil a identificação de qualquer centralidade em seus tecidos. Os artigos selecionados

abordam casos de projetos urbanos em três cidades: Roma, Rio de Janeiro e Rosário. O caso

de Rosário é um bom exemplo dos conceitos abordados por Trusani em seu artigo e confirma

que é possível requalificar a cidade histórica através de intervenções que integrem patrimô-

nio, moradia e recuperação urbana.

O artigo de Elio Trusani: CIDADE E RENOVAÇÃO URBANA: BREVE HISTÓRICO DA EXPERIÊNCIA

ITALIANA faz uma breve incursão sobre a evolução do conceito de centro histórico, mostrando

como a evolução do conceito traz consigo modificações metodológicas com profundas impli-

cações nas políticas urbanas de renovação e requalificação de áreas centrais. Como estudo

de caso, o autor analisa a experiência da cidade de Roma. Trusani chama a atenção para a

importância de se trazer a dimensão projetual para os programas de requalificação de cida-

des históricas, entendendo que uma nova projetualidade deve ser concebida. Esta deve enten-

der que a cidade é um sistema de relações espaciais em constante transformação, que as

dimensões ecológicas e funcionais são fundamentais e que a cidade deve ser restituída a sua

história.

Henrique Barandier apresenta uma reflexão sobre a prática de projetos urbanos na cida-

de do Rio de Janeiro no artigo: PROJETO URBANO NO RIO DE JANEIRO E AS PROPOSTAS PARA A ÁREA

CENTRAL NOS ANOS 1990. O autor mostra como a noção de projeto urbano vai se tornando um

instrumento para solucionar questões da cidade contemporânea, tais como a requalificação

do espaço público, a reabilitação de conjuntos arquitetônicos e a recuperação de antigas cen-

15

Urbanismo, urbanidade e as novas configurações

em um nó de transporte multimodal regional, criando as condições para o aparecimento de

usos e atividades complementares à atividade do aeroporto, e, portanto, o aparecimento de

novos espaços no entorno. Brandão&Faria afirmam, que as aerotrópolis representam a mate-

rialização da globalização na forma de cidades. As aerotrópolis, se planejadas, poderão repre-

sentar a possibilidade de recuperação do traçado e da inter-relação dos elementos morfoló-

gicos, formando um conjunto integrado e de crescimento urbano controlado. Se mal planeja-

das, poderão resultar em desastres urbanísticos, com a degradação sócio-ambiental do entor-

no. Os autores traçam um histórico da evolução do planejamento aeroportuário para situar a

relação entre o aeroporto e a cidade, e apontam algum dos aspectos que hoje desafiam o

equilibro desta relação, como localização, acessibilidade, intermodalidade, ruído, ocupações

formais e informais. Chamam a atenção, contudo, para um dos grandes entraves na potencia-

lização desta infra-estrutura em benefício da cidade, que é a fraca integração entre as políti-

cas de planejamento setorial e urbana e indicam que o desafio atual é conjugar o planeja-

mento dos aeroportos com as demandas de crescimento do transporte aéreo, concebendo

uma nova forma de planejamento integrado que considere as novas funções dos aeroportos

nos arranjos produtivos da sociedade pós-industrial.

O terceiro artigo deste bloco, TRANSFORMAÇÕES NA PAISAGEM URBANA: FAVELIZAÇÃO DE

CONJUNTOS HABITACIONAIS, de Luciana Andrade e Gerônimo Leitão analisa um outro importan-

te aspecto da cidade contemporânea, que é o da moradia para as classes de menor renda e

as espacialidades produzidas pelos modelos dos grandes conjuntos habitacionais herdados

do modernismo. O trabalho apresenta quatro exemplos do Rio de Janeiro complementando

com a análise das recentes experiências de requalificação nos conjuntos habitacionais de

Berlim. Mostram como ainda é problemática a herança deste modelo habitacional até os dias

de hoje. Sua intenção é oferecer proposições de intervenções arquitetônicas e urbanísticas

que contribuam para integrar as dimensões de gestão participativa e conhecimento técnico

como forma de melhorar as condições efetivas de moradia da população de menor renda. Os

autores observam que, no caso do Rio, as alterações empreendidas pela população residente

nas edificações acabam por produzir uma espacialidade muito semelhante àquela das fave-

las. Estas situações terminam por gerar posições políticas e ideológicas antagônicas entre

aqueles que defendem a interferência no projeto original das edificações como sendo uma

afirmação legítima da sabedoria popular e aqueles que defendem o saber técnico, e portan-

14

A Cidade pelo Avesso

Page 10: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

algum revisionismo. Hoje, além da consciência ecológica surge o conceito de ética ambiental,

que propõe uma nova forma de conceber o projeto da paisagem, integrando o conceito de

urbanismo ao de natureza. Tanto Farah quanto Izaga concordam que é preciso superar a anti-

ga dicotomia que separa a natureza da cidade e partir para novas categorias que sejam inte-

gradoras. Motta, tal como as duas autoras, faz uma revisão do processo de construção social

do conceito de natureza, e também propõe novas categorias que, além de superarem a dico-

tomia natureza e cidade, considerem a integração homem e natureza.

O artigo de Ivete Farah, intitulado NATUREZA E CULTURA: DO IDEALISMO CONSTITUÍDO AO DES-

PERTAR DE NOVAS VISÕES, aborda a evolução da relação entre natureza e cultura – a qual a

autora atribui a atual crise ambiental – e como o paisagismo expressa as visões desta rela-

ção . O trabalho está dividido em quatro partes. Na primeira seção Farah analisa como esta

relação se dá no século XVII, quando a natureza era vista como um objeto a ser controlado

e dominado. Neste momento a visão dos franceses predomina nos primeiros exemplares de

inserção de elementos naturais nas cidades, como na introdução dos jardins e nas avenidas

arborizadas. Na segunda seção, a autora analisa a visão romântica de natureza que se impõe

a partir do distanciamento cada vez maior entre campo e cidade que ocorre a partir do final

do século XVIII. A natureza passa a ser vista como paisagem e não mais como fonte de pro-

dução e cultura. Os jardins ingleses do século XVIII são um exemplo desta nova visão utópi-

ca de natureza. Apesar de se manter no imaginário urbano, a autora argumenta que o movi-

mento romântico no paisagismo, com seu desenho aparentemente orgânico de emulação de

uma natureza ao natural, contribuiu para a visão da cidade como antítese da natureza. Em

seguida, Farah examina como a natureza continua sendo apropriada de maneira idealizada

e utópica nas cidades ideais do século XX e como os principais modelos, apesar de suas dife-

renças estilísticas e ideológicas, contribuíram para a dissociação ainda maior entre natureza

e cidade. Por último, a autora aborda a visão contemporânea de natureza que tenta integrar

a visão antagônica entre natureza e cidade, principalmente por conta da nova conscientiza-

ção ecológica. Surge então neste momento a noção de paisagem como parte de um siste-

ma ecológico e com esta novas metodologias de intervenção. A autora conclui que as

mudanças que vêm ocorrendo nas visões sócio-culturais sobre natureza permitem avançar

para novos paradigmas, onde a cidade seja encarada como parte da natureza e projetada a

partir desta premissa.

17

Urbanismo, urbanidade e as novas configurações

tralidades. Através de uma análise detalhada dos projetos urbanos propostos para a requali-

ficação da área central do Rio de Janeiro, conclui que o instrumento em si não apresentou

grande eficácia, a não ser enquanto estratégia de marketing urbano, pois grande parte nunca

foi implantada. No entanto, cumprem o papel de incentivar o debate sobre a cidade, especial-

mente sobre o futuro da área central. Neste sentido, o autor questiona a formulação destes

grandes projetos que não levam em conta a grave situação de moradia e exclusão social pre-

sente no Rio de Janeiro.

O último artigo deste bloco apresenta o caso da cidade de Rosário na Argentina.

REABILITAÇÃO PATRIMONIAL E MORADIA COLETIVA NA ÁREA CENTRAL DE ROSÁRIO, de Laura Varni,

encerra a discussão sobre as áreas centrais, apresentando um caso bem sucedido de reabili-

tação onde o foco se deu na provisão de moradias coletivas. Trata-se de um programa de ges-

tão implementado pelo Servicio Público de la Vivienda, que propôs tratar a questão da mora-

dia para as classes de menos renda através de propostas que articulavam a reutilização dos

imóveis históricos subutilizados com novos usos e atividades, adaptando a tipologia arquite-

tônica a estas novas funções. Após um inventário minucioso do patrimônio ocioso existente

na área central da cidade de Rosário foi articulada a reabilitação destas propriedades para

fins de moradia, utilizando-se de instrumentos urbanísticos apropriados. O caso apresentado

é interessante na medida em que se propõe a articular os vários grupos de interesses sociais

da área central, tentando alcançar uma nova forma de gestão através de parcerias público-

privadas. Assim como Trusani, Varni tece considerações sobre aspectos que precisam ser apro-

fundados para que os projetos de renovação de áreas centrais sejam bem sucedidos, tais

como a revisão dos marcos legais edilícios e urbanísticos, estratégias de negociação com pro-

prietários de imóveis ociosos, a promoção da diversidade na oferta habitacional e novos

modos de gestão e de parcerias.

Finalmente, a última parte deste livro se dedica a outro grande desafio do urbanismo con-

temporâneo que é como lidar com a paisagem e com o meio ambiente. Os quatro artigos que

compõem este eixo vão se complementando na análise do que eram as visões de natureza no

passado, como esta visão se transforma e é apropriada pela cultura moderna e termina por

instaurar um novo paradigma de natureza com rebatimentos nas noções de meio ambiente e

de paisagismo. O aparecimento da noção de meio ambiente e dos estudos sobre a paisagem

numa perspectiva cultural vem mudando o foco dos estudos sobre o paisagismo e forçando

16

A Cidade pelo Avesso

Page 11: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

flitos presentes na gestão de unidades de conservação. Para tal, toma como estudo de caso

a criação do Parque Natural Municipal de Grumari em 2003, área de imenso valor paisagísti-

co, que possui os mais importantes remanescentes de vegetação de restinga no município, e

habitada por uma população de 27 famílias de caiçaras e agricultores. Neste sentido, o autor

afirma que a paisagem é uma construção social e humana, e sua conservação é resultante da

relação homem-natureza. A criação de uma unidade de conservação é em si uma ação polí-

tica e ideológica. Trata-se portanto, na sua visão, de superar a concepção tradicional de que

uma unidade de conservação deve ser vista apenas por seus aspectos ambientais e paisagís-

ticos, e passar a considerar as culturas dos que vivem nestas unidades e foram, em última aná-

lise, os responsáveis por sua conservação. Conforme argumenta, a visão da natureza enquan-

to objeto e do homem enquanto sujeito, “parece ignorar que a palavra sujeito comporta mais

de um significado: ser sujeito quase sempre é ser ativo, ser dono do seu destino”. Neste sen-

tido, é importante ressaltar que esta visão embute os conflitos relacionados com a questão

da propriedade da natureza, que tem a ver com a questão do poder individual, coletivo e ins-

titucional sobre o espaço.

As diferentes contribuições deste livro nos remetem às questões do urbanismo relativas à

urbanidade e às novas configurações sócio-espaciais. O reverso da cidade, antigamente, seria o

campo. Na visão lefebvriana o campo não mais existe. Existe somente o urbano. Então, qual

seria o avesso da cidade? Quais os pressupostos da não-cidade, do não-lugar? O lado avesso

de um tecido é o lado que mostra as costuras, as imperfeições, os alinhavos. Aquilo que no fim

das contas mantém a roupa na sua integridade, mas que não convém mostrar por razões esté-

ticas. Quando o avesso vira a própria roupa temos que pensar se não escondemos por tanto

tempo aquilo que não queríamos mostrar por razões estéticas, porém repressoras, se não tenta-

mos varrer para debaixo do tapete as condições sub-humanas a que são submetidas a maioria

da população, para que a minoria dominante possa usufruir de paisagem e de história.

A urbanidade é definida tradicionalmente com a qualidade de urbano, como civilidade,

cortesia e afabilidade, três expressões que hoje em dia menos traduzem a vida nas cidades.

Pode o urbanismo devolver estas qualidades à cidade e reviver o conceito de urbanidade, ou

estamos fadados à incivilidade, à má-educação e à maldade?

Deixo aos leitores a conclusão, esperando com um certo otimismo que uma nova utopia,

um “utopismo dialético” (David Harvey. ESPAÇOS DA ESPERANÇA, 2004), possa guiar os arquitetos e

cidadãos em busca de uma cidade melhor.

19

Urbanismo, urbanidade e as novas configurações

Segue o artigo de Fabiana Izaga: NOTAS SOBRE O PAISAGISMO MODERNO NO BRASIL, no qual

a autora faz uma revisão do conceito de paisagem moderna, tal como colocado pelos moder-

nistas, enfocando a relação, muitas vezes discrepante e ambígua, entre a teoria da paisagem

e o projeto paisagístico. Izaga revê o pensamento de autores, que de alguma forma abordam

o tema da relação entre arquitetura moderna e paisagem. Desta forma, a autora propõe supe-

rar as análises que partem de dicotomias como natureza-cultura, tradição e modernidade,

figura e fundo, para uma nova categoria analítica, neste caso, arquitetura e paisagem. O texto

de Izaga inicia-se com uma breve análise das visões de paisagem moderna no século XX, des-

tacando três conceitos principais: a) um advindo da tradição grega; b) um de inspiração japo-

nesa e c) um advindo da tradição do jardim paradisíaco, para se concentrar na análise da rela-

ção entre arquitetura e paisagem na obra de Le Corbusier, que se insere na tradição grega.

Em seguida analisa a evolução do conceito de pitoresco, noção que precisa ser resgatada,

pois conquanto carregada de ambigüidade, revela a dicotomia vivida em fins do século XVIII

e durante o século XIX, quando a sociedade industrial oprimida pelas condições urbanas tenta

resgatar uma natureza intocada e reproduzi-la nas cidades. Na terceira seção, a autora exa-

mina o conceito de paisagem a partir das noções de experiência e cena, e a partir do traba-

lho de alguns autores, tais como, Cosgrove e Córner. A paisagem moderna brasileira é trata-

da na seção seguinte bem como seus elementos projetuais, sua relação com a cultura moder-

nista e com o projeto paisagístico. Izaga conclui que os diversos estudos sobre o modernismo

no Brasil tratam a paisagem no âmbito do projeto modernista através de dicotomias que res-

tringem uma passagem para novos conceitos. A paisagem precisa ser analisada segundo suas

relações entre objeto e contexto e vice-versa.

No terceiro texto deste bloco, Oscar Corbella e Virginia Vasconcellos mostram em seu arti-

go: A OPÇÃO BIOCLIMÁTICA NO PROJETO URBANO a importância de se considerar questões relati-

vas ao clima nos projetos urbanos. Chamam a atenção de que, apesar da consideração de

fatores climáticos nos projetos arquitetônicos e urbanísticos remontarem à Antiguidade, ainda

hoje são poucos os projetos que levam o bioclimatismo em consideração.

Fechando o livro temos o artigo de Marcelo Motta: REFLEXÕES SOBRE AS DIMENSÕES

HUMANAS DA CONSERVAÇÃO, no qual o autor traz ao centro da cena o homem, mostrando como

a questão ambiental muitas vezes é colocada de forma inapropriada ao não considerar as tra-

dições culturais de populações nativas e sua permanência quando da criação de unidades de

conservação ambiental. A intenção do autor é estimular uma discussão teórica sobre os con-

18

A Cidade pelo Avesso

Page 12: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Parte I

Urbanismo Contemporâneoe uma Nova Urbanidade

Page 13: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Provisoriamente não cantaremos o amor,

Que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,

Não cantaremos o ódio porque esse não existe,

Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

O medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

O medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

Cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

Cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte,

Depois morreremos de medo

E sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Congresso Internacional do Medo, 1940

23

A urbanidade na cidade contemporânea entre fronteiras e trincheiras

Rachel Coutinho Marques da Silva

Page 14: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

O conceito de fronteiras urbanas

O conceito de fronteira é muitas vezes confundido com o conceito de limite.1 O termo

fronteira é mais abrangente e se refere a uma região ou faixa, e o termo limite está ligado a

uma concepção precisa, linear e perfeitamente definida no território. No passado, o conceito

de fronteira era designado para definir a demarcação de limites que separava os povos e pos-

teriormente as nações. Hoje, um novo conceito emerge: o conceito de fronteiras vivas.2 São

nas faixas de fronteira que se dão os melhores intercâmbios das nações modernas, e o con-

ceito de fronteiras vivas superou o conceito de fronteiras obstáculos. Assim, nos casos de fron-

teiras entre países as fronteiras vivas se baseiam no pressuposto da integração e interação,

seja por meio de trocas ou pelo multiculturalismo. No entanto, algumas áreas de fronteira

ainda possuem conotações de barreiras e trabalha-se neste caso com a idéia de superação de

obstáculos. O termo fronteira comporta outras acepções, como fronteiras-zonas, que são

caracterizadas por extensas áreas inabitadas, como florestas e montanhas. São espaços a

serem conquistados, espaços de penetração e avanço da civilização. Outro conceito é o de

fronteiras faixas, quando a fronteira é protegida por muros ou muralhas, que demarcam e

separam contundentemente espaços, seja por razões políticas ou defensivas.

O conceito de fronteiras vivas é recente, e estas podem ser permeáveis, de tensão ou acu-

mulação.3 Nas fronteiras vivas, dependendo do tipo de interação, cria-se um novo espaço e

uma nova cultura. Mas se a interação for assimétrica e desigual ocorrerão disputas, discórdias

e rivalidades. Nas fronteiras vivas, onde existe uma forte concentração demográfica e uma

estrutura social complexa, existe uma integração informal que pode sobreviver às políticas de

fechamento e de corte.

Hoje o conceito de fronteiras tem sido questionado, especialmente com a introdução das

novas tecnologias de informação onde a própria Internet se constitui numa fronteira virtual de

conquista e, paradoxalmente, contribui para a diluição das fronteiras tradicionais. Um aspecto

importante no campo das relações internacionais, relativo à noção de fronteiras, é a teoria da

interdependência.4 Para os teóricos da interdependência, a cooperação seria a melhor forma

das nações alcançarem seus interesses, estabelecendo novas estruturas de relações.

Assim, creio ser pertinente utilizar o conceito de fronteira viva para a reflexão que se

segue sobre as fronteiras que se estabelecem no espaço urbano entre áreas informais e for-

25

A urbanidade na cidade contemporâneaA Cidade pelo Avesso

24

Introdução

Falar de urbanidade hoje é falar basicamente de cidadania; e falar de fronteiras é falar

da dinâmica social e política das nossas cidades que, ao longo da sua história, sofrem muta-

ções e novas colorações, mas que serão sempre parte integrante da história das cidades e

do urbanismo.

O sentido de urbanidade é particular de alguns períodos da história, alternando visões

positivas e negativas em relação ao habitar as cidades, ou o que seria ser urbano. Viver na

cidade logo após o período medieval significava a libertação do jugo feudal, e a cidade repre-

sentava novas fronteiras e novos horizontes. No início da modernidade a noção de urbanida-

de evolui e está intimamente ligada à noção de homem público, noção esta que vai se diluin-

do durante o século XX, e os indivíduos que viviam nas áreas urbanas começam a apresentar

características de individualidade e atitudes blasés. E hoje, na contemporaneidade, o que

muda na noção de urbanidade? É uma noção ainda válida, ou as características da indiferen-

ça, alienação, egoísmo e hedonismo predominarão ao contrário das qualidades de civilidade,

cortesia e afabilidade que definiam a própria urbanidade? Estaremos tão dominados pelo

medo e obcecados por segurança, que são poucas as chances de superação e de volta a valo-

res comunitários essenciais? Estaremos fadados ao controle invisível, à repressão do direito

de ir e vir, direito este que foi a base da sociedade urbana moderna?

Este artigo visa refletir sobre o conceito de urbanidade na cidade contemporânea, tendo

em conta que a violência urbana faz parte do cotidiano de muitas cidades estimulando uma

tendência ao isolamento e uma série de práticas sociais que vem alterando o modo de vida

urbano. A reflexão é naturalmente baseada na minha própria vivência e observação dos pro-

cessos em curso na cidade do Rio de Janeiro, mas toma como referência o recente debate

sobre violência urbana expresso em vários artigos e livros.

Este trabalho está organizado em três seções. Começo por discutir o conceito de frontei-

ra urbana. Em seguida apresento um breve histórico da noção de urbanidade através da his-

tória do urbanismo e na visão de alguns autores. Finalmente segue a seção sobre as possibi-

lidades de integração das fronteiras urbanas.

Page 15: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Quando as cidades ressurgem no final da Idade Média e o comércio retoma suas rotas,

a cidade foi o foco de uma grande revolução social, econômica e política. A cidade era vista

não somente como o lugar da libertação da sociedade feudal dualista, mas também como o

lugar da liberdade de expressão, livre da censura religiosa. É em seu seio que surge uma nova

classe social — a burguesia, que vai abalar os alicerces do modo de produção feudal e vai

dar início, junto com o ressurgimento da moeda e de um novo modelo econômico mercanti-

lista, à transição para um novo modo de produção, o capitalista. Surgem novas práticas cul-

turais a partir de uma revolução tecnológica: novos inventos, novas tecnologias e uma nova

percepção do cosmos.

O iluminismo e a modernidade surgem embalados pela cidade, que é peça fundamental

nesta nova engrenagem. Desta forma, para os renascentistas isto significava a cidade liberta

das muralhas, a cidade livre da servidão, a cidade de um novo pensamento, a cidade que

engendraria uma nova sociedade e um novo homem.

Stadtluft macht frei (O ar da cidade liberta) era um ditado alemão que Max Weber usou

para ilustrar a importância da cidade na formação da nação alemã e na diluição das frontei-

ras existentes.9 Nos contos infantis, até o século XIX, a cidade ainda era vista como um lugar

da liberdade. Em os MÚSICOS DE BREMEN, dos Irmãos Grimm (1812-1814), por exemplo, os ani-

mais saltimbancos idealizam a cidade como um lugar onde poderiam sobreviver sem dificul-

dades. O surgimento das cidades viabilizou a autonomia da arte em relação à Igreja, e o

renascimento artístico se dá exatamente nas cidades mercantis, especialmente em Florença.

Argan, tal como Mumford, coloca a arte como uma atividade tipicamente urbana e constitu-

tiva da cidade.10

Ser moderno significava estar na cidade e ser urbano. O campo era o lugar da opressão,

da escuridão e do atraso. A cidade era o lugar da libertação, do claro e do avanço. A frontei-

ra a ser conquistada era o campo.

O conceito de fronteira naquela época, eram os novos territórios incivilizados a serem

conquistados e trazidos para o seio da civilização ocidental e para o modo de produção capi-

talista. Por conta disto, se fizeram guerras religiosas e ideológicas, Cruzadas, Colonialismo,

guerras com o Oriente, com os povos nativos. As fronteiras vivas de antigamente eram sub-

metidas à visão de mundo dos ocidentais e dos povos europeus. Era preciso subjugar o atra-

so e práticas consideradas arcaicas e inserir estas geografias nos limites do mundo ocidental.

27

A urbanidade na cidade contemporânea

mais, nas zonas de conflito social e criminal. Ao examinarmos as fronteiras que se constituem

no espaço urbano percebemos a interdependência entre estas áreas, e a cooperação seria a

melhor forma de superação dos conflitos.

Com este propósito lanço uma questão, quase premissa, que me proponho a trabalhar

ao longo deste texto: Podem as atuais zonas de fronteira entre a cidade formal e informal

adquirir as características de fronteiras vivas? Estamos nos enquartelando intramuros e refor-

çando as fronteiras faixas? Qual o papel do urbanismo no resgate da urbanidade?

A urbanidade ao longo da recente história urbana

Primeiramente, uma breve conceituação do termo urbanidade. Ventós atribui a três auto-

res a preocupação com o comportamento urbano: Alberti, Castiglione e Erasmus. Estes auto-

res falam de um novo caráter que deve estar relacionado com o cotidiano urbano. É um perío-

do de transição entre o cavaleiro cristão e o conceito de honra e a construção da identidade

burguesa e o conceito de urbanidade. Castiglione fala dos atributos de austeridade e espon-

taneidade que deveriam governar as relações entre cidadãos.5 Ventós distingue o termo cor-

tesia que vem de corte do termo urbanidade que vem de urbs. Segundo o autor, cortesia é

uma atitude convencional governada por regras e até estereotipada, mas com aparência de

espontânea. Urbanidade, nas palavras do autor, é uma espécie de anomia amigável, que per-

mite às pessoas se relacionarem entre si sem ter que trocar experiências ou confidências.

Neste sentido, a urbanidade permite que os indivíduos possam entrar no jogo das aparências

e papéis urbanos que constituem a cidade.6 A urbanidade se estabelece e funciona em um

mundo de representações. Vejamos agora como, ao longo da história, a própria noção de

fronteiras e urbanidade vai se desenvolvendo.

Temos que reconhecer que as cidades muradas e fechadas são tão antigas quanto os

assentamentos humanos. No entanto, com o desenvolvimento dos estados-nações o aparato

de segurança pública passou a exercer um controle suficiente para que as muralhas não mais

fossem necessárias.7 Ao mesmo tempo, a sensação de insegurança e medo nas cidades não

é produto da era contemporânea. Como coloca Giddens, ansiedades e inseguranças afetaram

outros períodos da história. Porém, seu conteúdo e forma são bastante diferentes.8

26

A Cidade pelo Avesso

Page 16: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

ocorre, e o campo passa a ser visto como o lugar da natureza, onde as relações sociais são

puras, onde se pode atingir o belo e o bem. Um mestre dos contos sobrenaturais e de terror,

Edgar Allan Poe, por exemplo, ambienta um de seus famosos contos, O ASSASSINATO DA RUA

MORGUE (1841), na cidade ícone do século XIX, Paris. Eça de Queiroz relata a dualidade

campo cidade em A CIDADE E AS SERRAS, clássico da literatura portuguesa do século XIX. A

CIDADE E AS SERRAS é basicamente uma crítica ao estilo de vida urbano. Seu personagem

Jacinto de Tormes, dândi residente em Paris, é um homem tipicamente urbano ligado nos

avanços da tecnologia. O outro personagem, Zé Fernandes, é um ferrenho crítico das grandes

cidades e do progresso, e as considera maléficas à moral e aos valores humanos.

É nesta época que a cidade se torna o foco das críticas sociais e de outras disciplinas.

Freud inaugura a psicanálise em seu consultório em Viena, e examina os males urbanos. Em

O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1929), Freud passa a pensar a relação indivíduo e sociedade. A

idéia central é que a vida social pressupõe repressão e o desenvolvimento do indivíduo e da

civilização só seriam possíveis através da repressão das pulsões humanas. A vida em comuni-

dade só é possível se os instintos do homem forem reprimidos. Em 1903, o sociólogo Georg

Simmel15 escreve um texto importante intitulado A METRÓPOLE E A VIDA MENTAL, onde exami-

na os efeitos da vida urbana na vida psíquica de seus habitantes.16 Simmel era um crítico da

vida urbana moderna, a qual considerava incompatível com uma boa cultura urbana. A espe-

cialização funcional do século XIX fez com que cada indivíduo fosse incomparável em relação

ao outro individuo, e esta especialização, por sua vez, levou a constituição de um tipo de indi-

viduo metropolitano que minava a cultura comunitária. Simmel considerava que a vida no

campo promovia um estilo de vida benéfico ao desenvolvimento de uma cultura comunitária.

Interessante notar, que o sentimento antiurbano floresce nos Estados Unidos e vai engen-

drar uma série de políticas públicas destinadas a estimular as pequenas cidades e os subúr-

bios. Assim, do outro lado do Atlântico, uma outra escola de sociologia vai florescer e estimu-

lar os debates sobre urbanismo e urbanidade. A escola de Chicago incluía jornalistas, soció-

logos e reformistas sociais, e praticamente reinventa a sociologia moderna. Seu laboratório de

análises era a própria cidade de Chicago, plena de problemas urbanos e processos sociais

conflituosos. Chicago, ao final do século XIX e durante toda a primeira metade do século XX,

apresentava um recorte sócio-espacial de guetos e conflitos sócio-raciais. As fronteiras entre

bairros negros e brancos eram marcadas por conflitos e tensões.

29

A urbanidade na cidade contemporânea

Tanto Braudel como Wallerstein11 localizam o início da globalização no Renascimento,

quando surge o conceito de economias-mundo. Outros pensadores marxistas, como Rosa

Luxemburgo12, trabalham de outra forma o mesmo conceito. As fronteiras seriam inexoravel-

mente conquistadas pelo avanço do capitalismo e todo o mundo se tornaria capitalista, num

processo de homogeneização cultural e social. Sabemos, hoje, que o processo não se dá

linearmente, e que no bojo da desigualdade social e econômica que mantém vivo o sistema

capitalista, criaram-se focos de resistência e subculturas, modos de vida e, principalmente,

visões de mundo diferenciadas, e muitas vezes antagônicas.

Com a Revolução Industrial surgem as novas tecnologias de comunicação, os novos

meios de transporte, e com tudo isto a cidade se expande e a população urbana cresce

assustadoramente. A migração do campo para a cidade nos países do hemisfério sul não é

acompanhada necessariamente por uma industrialização urbana, e assistimos a uma expan-

são urbana desordenada, sem que o aparato estatal e a economia urbana possam dar conta

deste lumpen. O exército reserva de mão de obra, conceito fundamental para se entender o

pensamento marxista, fica eternamente na reserva, e se transforma na massa de trabalho

informal. Na minha opinião, isto é fundamental para entendermos o porquê do capitalismo

não ter tido o mesmo desenvolvimento nos países do sul como o que teve na Europa e nos

Estados Unidos. Este ponto é tão simples, mas tão crucial para entendermos muitos dos pro-

blemas que assistimos hoje nas nossas cidades latino-americanas: ou seja, nos Estados

Unidos houve escassez de mão de obra, por razões históricas, e a guerra civil americana

redundou em vitória do Norte sobre o Sul. A imigração de europeus para os Estados Unidos

foi fundamental para que a revolução industrial florescesse e, dentro do modelo norte ame-

ricano, a fronteira foi fundamental para a expansão capitalista: fronteira de terras, fronteiras

de ouro, fronteiras vivas.13

No entanto, é exatamente com a Revolução Industrial que a cidade começa a se degra-

dar devido às condições de vida da classe trabalhadora, à presença das indústrias. Neste

momento, o livro de Engels sobre a condição das classes trabalhadoras, cujo foco é a cidade

de Manchester na Inglaterra, apresenta uma cidade da opressão, onde a fruição urbana era

privilégio da elite industrial e da aristocracia.14

Na literatura do século XIX é comum encontrarmos relatos onde a cidade é representa-

da como o lugar do pecado, da devassidão, do mal. Neste momento uma inversão de valores

28

A Cidade pelo Avesso

Page 17: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

nidade se resolve através de uma série de relações efêmeras e segmentadas, que sãosuperpostas sobre a base territorial com um centro definido, porém com uma periferiaindefinida, e uma divisão do trabalho que transcende a localidade imediata, e tem umescopo global. (…) Assim, quanto maior for a população em estado de interação, tantomenor será o grau de comunicação entre elas. (…) A direção das mudanças em anda-mento no urbanismo transformarão para melhor ou para pior não somente a cidade,mas o mundo.18

Um sociólogo contemporâneo, Zygmunt Bauman, segue em linhas semelhantes à de

Wirth, trazendo o debate para a cidade contemporânea e mostrando o paradoxo da busca por

segurança no mundo atual e a noção de comunidade. Num capítulo do livro COMUNIDADE,

Bauman examina o gueto urbano e analisa o significado do lugar. Tudo pode ser feito nos

lugares longínquos dos outros sem sair do próprio lugar. Porém, diz ele, “pouco se pode fazer

para prevenir em relação ao nosso próprio lugar, por mais vigilantes e cuidadosos que seja-

mos em guardá-lo”.19 Analisando o fracasso do Estado e da sociedade em proteger o indi-

víduo, comenta o autor:

Entre as totalidades imaginárias a que as pessoas acreditavam pertencer (…) um vazioboceja no lugar outrora ocupado pela ´sociedade´. Este termo já representou o Estado,armado com meios de coerção e também com meios poderosos para corrigir pelomenos as injustiças sociais mais ultrajantes. Esse Estado está sumindo da nossa vista.Esperar que o Estado (…) fará algo palpável para mitigar a insegurança da existêncianão é muito mais realista que esperar o fim da seca por meio de uma dança da chuva.(…) A segurança como todos os outros aspectos da vida humana num mundo inexo-ravelmente individualizado e privatizado, é uma tarefa que toca a todo indivíduo. A´defesa do lugar´, vista como condição necessária a toda segurança, deve ser umaquestão do bairro, um ´assunto comunitário´. Onde o Estado fracassou, poderá a comu-nidade – a comunidade local, uma comunidade corporificada num território habitadopor seus membros e ninguém mais (ninguém que não faça parte) – fornecer aquele“estar seguro” que o mundo mais extenso claramente conspira pra destruir?20

Bauman argumenta que os ricos podem comprar a segurança do seu lugar. Aqueles que

acreditam que não existe nada a fazer se cercam de alarmes e cercas. O que eles procuram é

equivalente ao abrigo nuclear pessoal. A este abrigo chamam de comunidade. A comunidade

que procuram é um ambiente seguro sem ladrões e à prova de intrusos. Comunidade hoje em

dia quer dizer construir barreiras, limites, controlar os intrusos. Quer dizer isolamento, separa-

ção, muros protetores e portões vigiados.

31

A urbanidade na cidade contemporânea

Em 1938, Louis Wirth escreve um ensaio polêmico no qual descreve as características da

vida urbana. Em URBANISM AS A WAY OF LIFE, (O modo de vida urbano), o autor argumenta que

três características chaves das cidades (tamanho de sua população, heterogeneidade social e

densidade populacional) determinaram o desenvolvimento de um estilo de vida peculiar que,

por sua vez, determinou uma personalidade tipicamente urbana. Assim, Wirth afirma que os

habitantes das cidades (os urbanos) são em geral mais tolerantes socialmente do que os habi-

tantes do campo, mas ao mesmo tempo são mais impessoais e menos amigáveis. Os urbanos

possuem um ar blasé, um distanciamento dos problemas alheios. Ele diz que os urbanos apre-

sentam um certo caráter esquizóide.

A superficialidade, o anonimato, e o caráter transitório das relações sociais urbanas escla-rece também a sofisticação e a racionalidade dos moradores urbanos. 17

Assim, os encontros acontecem baseados no princípio da utilidade, ou seja, cada intera-

ção social é vista como um meio de atingir um fim específico. Dessa forma, ao mesmo tempo

em que se ganha um grau de emancipação e liberdade em relação ao controle exercido nos

grupos comunitários, perde-se a expressão espontânea, os valores morais e o senso de per-

tencimento que pautavam a vida em comunidade. Isto é o que Durkheim chamará de estado

de anomia, ou vazio social característico de várias formas de desorganização social na socie-

dade tecnológica. As palavras de Wirth foram proféticas. Vale a pena a longa citação:

É basicamente através das atividades dos grupos voluntários, sejam seus interesseseconômicos, políticos, educacionais, religiosos, recreacionais, ou culturais que os URBA-NOS expressam e desenvolvem sua personalidade, adquirem status, e são capazes delevar as atividades que constituem sua vida profissional. Pode-se facilmente inferir con-tudo, que este quadro organizacional que mantém estas funções altamente diferencia-das não assegura a consistência e a integridade das personalidades, cujos interessesele assinala. Desorganização pessoal, colapso mental, suicídio, delinqüência, crime,corrupção e desordem deverão prevalecer nos espaços urbanos, mais do que nascomunidades rurais. (…) O controle social na cidade será feito pelos grupos sociaisorganizados. Deduz-se que as massas de pessoas na cidade estarão sujeitas à manipu-lação através de símbolos e estereótipos administrados por indivíduos escondidos atrásdos bastidores. O auto-governo nestas circunstâncias é reduzido a uma mera figura delinguagem, ou na melhor das hipóteses, sujeita ao equilíbrio instável dos grupos depressão. Em face do desaparecimento da unidade territorial como base da solidarieda-de social, criam-se unidades de interesse. Neste meio tempo, a cidade enquanto comu-

30

A Cidade pelo Avesso

Page 18: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Fronteiras urbanas, exclusão ou integração

Muitos autores24 vêm tratando a cidade contemporânea como o local do conflito e da

insegurança e mostrando como certas atividades se beneficiam desta imagem. Esta imagem

de insegurança e medo vai sendo construída e reproduzida pela mídia e apropriada pelo ima-

ginário coletivo. Não que a violência urbana e a insegurança nas cidades não seja real. A

mídia e as atividades que vendem segurança interagem com a realidade para criar um qua-

dro ainda mais perverso que vai minando a urbanidade e a convivência pública.25

Esta imagem de cidade cárcere com aparatos de segurança espalhados nas edificações,

com câmeras a controlar nossa vida e liberdade, com suas fronteiras invisíveis a nos impedir

de exercer o direito de ir e vir mina os espaços de sociabilidade e a própria vida urbana.

A segregação, a fragmentação espacial urbana e a exclusão sócio-espacial são temas que

vem sendo exaustivamente tratados nas três últimas décadas pelos estudiosos de cidades.26

Para fins deste artigo basta dizer que a segregação sócio-espacial delimita áreas na cidade

que se constituem em fronteiras invisíveis. As áreas de transição entre a favela e a cidade for-

mal, por exemplo, podem ser consideradas fronteiras urbanas vivas. São nestas áreas que se

estabelecem as trocas e a fraca integração entre estas áreas.

A violência urbana contribui, sem dúvida, para a intensificação da exclusão sócio-espa-

cial e da perda de dinamismo do espaço público e da vida urbana. Alguns autores identificam

o quadro de insegurança pública no Brasil no fracasso das políticas públicas que lidam com

o informal e o formal.27 O Estado ao conviver com a informalidade estabelece políticas de

recuperação urbana que incentivam a vigilância e a repressão dos direitos fundamentais.

Desta forma, projetos urbanos que não levem em consideração políticas efetivas de seguran-

ça pública estariam fadados ao fracasso.

Com o aumento da criminalidade nas grandes cidades observamos uma nova tendência

na configuração dos espaços urbanos: os condomínios fechados. Estes são frações de bairros

onde o acesso é controlado por seguranças e bloqueios físicos, e podem ser residenciais ou

complexos comerciais. A literatura que trata do tema dos condomínios fechados e da exclu-

são sócio-espacial reconhece que o tema é complexo, visto que estes são percebidos não

somente como refúgios seguros, mas também conferem status aos seus moradores.28

Landman e Schonteich comparam o desenvolvimento dos condomínios fechados na África do

33

A urbanidade na cidade contemporânea

Estas são as fronteiras da cidade contemporânea. Filmes recentes como L.A. CRASH

(2004), mostram bem o distanciamento dos indivíduos numa cidade povoada pelo ressenti-

mento e pelo medo. No início do filme o personagem Graham diz:

É a sensação do contato. Numa cidade real você anda, não é? Você esbarra naspessoas, as pessoas tropeçam em você. Em L.A., ninguém toca em você. Estamossempre por trás de metal e vidro. Acho que sentimos tanta falta deste contato queprovocamos acidentes só para poder sentir alguma coisa.21

Tanto Mike Davis em A CIDADE DE QUARTZO, quanto Sharon Zukin, que descreve os atuais

projetos urbanos para os espaços públicos em Los Angeles, apontam para os cuidados com

segurança e a força policial destacada para proteger estes lugares.22 Os bairros vão se tor-

nando condomínios fechados com todo o aparato tecnológico de segurança, uma equipara-

ção das áreas públicas a enclaves defensáveis com acesso seletivo; a separação em lugar da

negociação da vida em comum e a criminalização da vida residual. Estas são na visão de

Bauman as principais dimensões da atual evolução da vida urbana. E é neste contexto que se

forma a nova concepção de comunidade. Nas palavras do autor:

Segundo essa noção, comunidade significa mesmice, e a mesmice significa aausência do OUTRO, especialmente um outro que teima em ser diferente, e preci-samente por isso capaz de causar surpresas desagradáveis e prejuízos. (…) Dadaa intensidade do medo, se não existissem estranhos, eles teriam que ser inventa-dos. (…) Um gueto combina o confinamento espacial com o fechamento social;(…) Tanto o confinamento quanto o fechamento teriam pouca substância se nãofossem complementados por um terceiro elemento: a homogeneidade dos de den-tro, em contraste com a heterogeneidade dos de fora.23

Aos guetos voluntários correspondem os guetos forçados, territórios onde os excluídos e

segregados do espaço formal da cidade vivem. Nestes territórios incrustados no tecido formal

da cidade, as barreiras não são tão visíveis, porém os códigos são entendidos por todos na

cidade. Estas são as ameaças mantidas sob a égide da discriminação e do medo.

32

A Cidade pelo Avesso

Page 19: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

No caso do Rio de Janeiro, a expressão cidade partida33 vem designando a cidade divi-

dida entre áreas informais e formais, e alimentando o imaginário coletivo do Rio como uma

cidade violenta. Este crescente sentimento e percepção da cidade como violenta contribui

para a fragmentação espacial e exclusão social, e para o sentimento difuso de medo e inse-

gurança. Márcia P. Leite argumenta que “a representação do Rio como uma ´cidade partida´

terminou, contudo, por reforçar os nexos simbólicos que territorializavam a pobreza e a mar-

ginalidade nas favelas cariocas.”34 Os inúmeros episódios de confrontos violentos, chacinas,

arrastões que vem acontecendo na cidade, e intensificados nos anos 1990, contribuem para

o isolamento e enclausuramento dos cidadãos nos seus condomínios ou guetos. Cria-se tam-

bém uma falsa oposição entre morro e asfalto, entre favelados e classe média, entre bandi-

dos e policiais, que contribui para a percepção no plano simbólico de caos urbano.35 A per-

versidade está não somente nos violentos atos criminosos, mas também no círculo vicioso que

se cria, onde a mídia e a indústria da segurança privada se beneficiam e contribuem para a

perpetuação deste estado de coisas, desviando o foco real do problema.

O que a autora aponta, e com a qual concordo inteiramente, é que esta representação de

medo e insegurança contribui para a intolerância e o individualismo, minando as bases da

urbanidade, em especial, da urbanidade carioca. Esta sempre foi pautada pela solidariedade,

cordialidade e alegria. No imaginário coletivo o Rio de Janeiro era sinônimo de um espírito

democrático e integrador de diferentes raças e classes sociais nos seus espaços urbanos, como

na praia e nas manifestações culturais e esportivas como o samba e o futebol, e mesmo nos

chamados pés-sujos, botecos onde diferentes segmentos se reuniam para uma cervejinha.

Neste sentido, a sensação de insegurança e medo aumenta as fronteiras entre as zonas ricas

e pobres, entre as áreas formais e informais. E de forma cruel contribui para a diminuição dos

direitos civis dos habitantes das favelas e assentamentos irregulares, visto que nestes territó-

rios dominados pelo tráfico de drogas, cidadania e segurança pública são incompatíveis na

ótica conservadora. As operações de repressão ao tráfico de drogas são quase sempre cerca-

das de prisões e mortes indiscriminadas, onde a polícia entra em confronto armado com os

bandidos e quem “leva a pior” são os moradores destas áreas. Estas operações vem sendo con-

duzidas sistematicamente desde o início da década de 1990 e ao invés de produzirem a dimi-

nuição das taxas de criminalidade, contribuíram para o seu aumento. Contribuíram também

para o aparecimento e fortalecimento de aparatos de segurança privada e ilegal nas áreas

35

A urbanidade na cidade contemporânea

Sul e no Brasil (São Paulo) e identificam a expansão desta modalidade de espaço urbano

como uma reação à criminalidade.29 No caso do Brasil, os autores identificam que a maior

parte dos condomínios fechados encontra-se nas grandes cidades onde a taxa de criminali-

dade é mais alta. Além do fenômeno dos condomínios fechados existe também o progressi-

vo fechamento dos prédios residenciais com grades e aparatos de segurança. Como resulta-

do destes fenômenos, observa-se um aumento no nível de polarização, fragmentação espa-

cial e diminuição da solidariedade. Os condomínios fechados também contribuem para a pri-

vatização do espaço público e para a reserva de certas amenidades para uso exclusivo de gru-

pos sociais homogêneos. Com isto, os moradores destas áreas exclusivas deixam de usar o

espaço público, que é abandonado e entregue a moradores de rua e mendigos. Os autores

concluem que a falta de políticas adequadas de segurança pública vêm fomentando o cresci-

mento desordenado dos condomínios fechados, que por sua vez, exacerbam padrões existen-

tes de segregação espacial e exclusão social. Este fenômeno dificulta a consolidação da

democracia no país que ainda se recupera do período ditatorial militar.30

Outros autores, ao contrário de Landman e Schonteich, consideram que o fenômeno

não se restringe apenas aos condomínios das classes de alta renda, e que o termo condo-

mínios fechados tem sido injustamente atacado. No caso dos Estados Unidos, observa-se

que este tipo de moradia está se tornando popular entre as classes de renda baixa, princi-

palmente entre inquilinos.31 No caso brasileiro, podemos observar que apesar de não

podermos usar a terminologia de condomínios fechados para as áreas informais, especial-

mente as favelas, estas constituem-se em guetos cujo acesso é restrito e controlado pelas

barreiras invisíveis (hoje cada vez mais visíveis, nos fuzis e metralhadoras dos “olheiros” nas

lajes das habitações).

Graham e Marvin identificam na distribuição desigual das infra-estruturas a raiz da frag-

mentação sócio-espacial na cidade contemporânea e cunham a expressão urbanismo esgar-

çado. Alguns processos contribuem para o esgarçamento do tecido urbano: os complexos

empresariais dotados da mais moderna tecnologia de informação, a distribuição desigual de

água, os enclaves turísticos, os aparatos de segurança nos aeroportos das cidades, os corre-

dores exclusivos de informações na Internet, a privatização dos espaços residenciais e comer-

ciais, as passarelas entre edifícios em substituição à rua tradicional, as vias expressas de trans-

porte, o uso cada vez maior do helicóptero pelas elites, e a oferta de infra-estruturas a baixo

custo para os consumidores de alta renda.32

34

A Cidade pelo Avesso

Page 20: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

expandir suas capacidades criativas, seus horizontes pessoais em busca da felicidade. No iní-

cio da modernidade, o indivíduo urbano era um homem público, cujo declínio, no início do

século XX, representa uma mudança no conceito de urbanidade. Não que a cidade não tenha

sido palco de conflitos e tensões ao longo do período moderno, mas a noção de urbanidade

era justamente o amálgama da sociedade civil e do controle social.

Finalmente procuro analisar se podemos na contemporaneidade, com o quadro de segre-

gação e exclusão sócio-espacial, encontrar na dimensão do urbanismo possibilidades de

superação do isolamento e individualismo e um resgate da urbanidade perdida.

A cidade é o lugar das diferenças sociais e culturais e as áreas de transição entre as áreas

pobres e ricas devem ser apropriadas pelas vários grupos sociais de forma aberta, múltipla e

flexível. As faixas de fronteira — territórios perigosos — precisam ser repensadas dentro das

políticas urbanas para que sejam transformadas em fronteiras vivas, zonas de interação social,

de convivência e aprendizado mútuo. Não falo aqui de uma utopia, pois a realidade nos mos-

tra que estas faixas representam um perigo real na medida em que as áreas informais estão

dominadas pelos traficantes de drogas ou por milícias, ambos fortemente armados. Assim, é

preciso uma política de segurança pública e de desarmamento que transforme estes territó-

rios em ambientes seguros. E políticas públicas que garantam a distribuição equilibrada de

recursos para as áreas periféricas e excluídas.

Mas alimentar o discurso da insegurança e do medo só contribui para esvaziar os espa-

ços públicos e para a proliferação de grades, muros e comunidades fechadas, isolando os gru-

pos sociais homogêneos e impedindo as possibilidades de trocas sociais, base da sociedade

urbana moderna.

A urbanidade não significa integração total, pois os preconceitos e as diferenças sociais

sempre existiram e existirão. Mas significa aceitação do outro, e como defini acima, uma ano-

mia amigável, que permite que cidadãos diferentes convivam sem ter que trocar experiências

ou confidências. Este é um mundo das aparências onde os diferentes assumem papéis públi-

cos e convivem com cordialidade.

No entanto, a urbanidade depende do resgate de certos valores básicos da civilização, a

tolerância e o direito pleno à cidade por todos seus habitantes.

Agradeço a Alexandre Brandão pelas críticas e sugestões neste artigo.

37

A urbanidade na cidade contemporânea

faveladas, as milícias, que em nome de proteção controlam serviços básicos, como distribuição

de gás e acesso à televisão a cabo, criando um outro poder paralelo. Estas milícias são forma-

das por policiais reformados e expressam a tênue linha que separa o poder legal do ilegal.

O fenômeno da violência policial não é novo na cidade do Rio de Janeiro. Holloway mos-

tra como a polícia não foi criada para servir ao cidadão, mas à elite e às classes aristocráti-

cas, desde o século XIX.36 O autor argumenta que a sociedade civil sempre apoiou as bru-

tais ações de repressão policial.

A violência policial e seus métodos repressivos, ao invés de contribuir para a diminuição da

violência urbana, desencadeiam processos de resistência e de exclusão social. Outros autores

chamam a atenção para a importância de políticas urbanas inclusivas, (moradia digna, infra-

estrutura básica, política de transportes urbanos) para a diminuição da violência urbana.37

Assim, a transformação das fronteiras faixas em fronteiras vivas depende de uma políti-

ca urbana que reconheça as possibilidades destes espaços de interação social e cultural. Além

disso, é preciso também uma reversão do discurso preconceituoso e a recuperação das noções

de cidadania e urbanidade, através de ações de solidariedade. Esta tendência em curso na

cidade do Rio de Janeiro se apóia em iniciativas da sociedade civil com ênfase na participa-

ção social, ações culturais e projetos de resgate da cidadania. Deve passar também por um

resgate do espaço público.

Considerações Finais

Este artigo procura mostrar as limitações e as possibilidades de uma nova urbanidade na

cidade contemporânea, trabalhando o conceito de fronteiras a partir da constatação de que

os espaços urbanos estão cada vez mais fragmentados e isolados, e a cidade entrincheirada

pelo medo e a insegurança. Neste sentido, procurei primeiramente trabalhar o conceito de

fronteiras vivas, que são espaços que fomentam a interação social e o surgimento de uma

nova cultura a partir das subculturas divididas pelas barreiras e trincheiras.

Em seguida, analisei o conceito de urbanidade e seu desenvolvimento ao longo da his-

tória urbana, mostrando que a partir do Renascimento a cidade representava uma nova fron-

teira a ser conquistada, e os urbanos eram atraídos para este novo espaço para conquistar e

36

A Cidade pelo Avesso

Page 21: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Notas

1 Wilson R. M. Krukowski. “Fronteiras e Limites”, in http://www.info.lncc.br/wrmkkk/artigo.html,acesso em 19 de setembro de 2006.

2 O conceito de fronteiras vivas vem sendo tratado por diversos autores. Normalmente o foco énas áreas de fronteiras entre países. No entanto, o conceito pode ser transposto para as áreas urba-nas, e é neste sentido que faço esta revisão. Dentre os autores pesquisados cito, Karla Maria Muller,“Práticas Comunicacionais em Espaços de Fronteira: os casos Brasil-Argentina e Brasil-Uruguai”, inhttp:/qredebonja.cbj.g12.br/ielusc/necom/rastros/rastros03/rastros0307.html, acesso em 19 de setem-bro de 2006; Marcos Faerman. “O ocaso das fronteiras” in http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=28&bread-crumb=1&Artigo_ID=72&IDCategoria=346&reftype=1, acesso em 19 de setembro de 2006; Beatrizde Majo C. “Fronteiras Vivas”, in Revista Eletrônica Venezuela Analítica, n. 17, Julio 1997,http://www.analitica.com/archivo/vam1997.07/semana/semnac03.htm, acesso em 15 de setembro de 2006.

3 Iturriza, cf Karla Maria Muller, op.cit.4 T. Vigevani e, J. P Veiga. “Mercosul e os interesses políticos e sociais”. In São Paulo em

Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.5, n.3, jul.-set. 1991, p. 155 Xavier Rubert de Ventós. “Urbanisation against urbanity?” In “Urbanitats” n. 7, Barcelona:

Centre of Contemporary Culture of Barcelona, 1998.6 Ibid., p. 2.7 Norbert Elias. The Civilizing Process: Sociogenetic and Psychogenetic Investigation. Oxford:

Blackwell, 2000.8 Anthony Giddens. Modernidade e Identidade (trad. Plinio Dentzel). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

20029 Ver também Norbert Elias. La Societé du Cour. Paris:Flammarion, 1985.10 Lewis Mumford. A Cidade na História. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1965, pp. 318; Giulio C.

Argan. A História da Arte como História da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 43.11 Fernand Braudel. Civilization and Capitalism, 15th-18th century, 3 vols. New York: Harper &

Row, 1979; Immanuel Wallerstein. The Modern-World System I: capitalist agriculture and the origins ofthe European World-Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1974.

12 A tese da fase imperialista do capitalismo e a importância da organização da InternacionalSocialista para a libertação dos trabalhadores permeia toda a obra de Rosa Luxemburgo. Ver especial-mente, Rosa Luxemburg. Rebuilding the International. In Die Internationale no. 1, 1915; TheAccumulation of Capital.(orig. 1913) Luxemburg Internet Archive, Marxists Internet Archive (marxists.org)2003, http://www.marxists.org/archive/luxemburg/index.htm, acesso em 14 de agosto de 2006.

13 Para uma revisão do conceito de fronteiras e seu papel no desenvolvimento econômico e regio-nal ver Carvalho, Rachel Coutinho Marques da Silva. “New Towns and Regional Development in theNorthwestern Frontier of the State of São Paulo, 1890-1950”. Ph.D. dissertation, Ithaca, N.Y.: Cornell

University, 1988, pp. 14-21; um livro que muito influenciou o pensamento da sociologia norte-america-na no começo deste século, foi o livro de Frederick Turner, The Frontier in American History . Professorde História de Harvard, ele escreve este ensaio em 1920, e examina o papel da conquista dos territó-rios além das montanhas Apalachians, na formação de uma nova cultura e nova economia norte-ame-ricana.

14 Friedrich Engels. The Condition of the Working Class in England (transl. W. O. Henderson e W.H. Chaloner), Stanford: Stanford University Press, 1968.

15 Georg Simmel, The Metropolis and Mental Life, adapted by D. Weinstein from Kurt Wolff (trans.)The Sociology of Georg Simmel. New York: Free Press, 1950, pp. 409-424.

16 Tanto Simmel como Max Weber foram autores importantes da escola sociológica alemã.17 Louis Wirth. “Urbanism as a way of life”, in American Journal of Sociology vol. 44 n.1 (July

1938), p. 12.18 Ibid., pp. 23-2419 Zygmunt Bauman. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (trad. Plínio Dentzien).

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 100.20 Ibid., p. 102.21 L.A. Crash, 2004, diretor Paul Haggis, produtor Don Cheadle; “It’s the sense of touch. In any

real city, you walk, you know? You brush past people, people bump into you. In L.A., nobody touchesyou. We’re always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much, that we crash intoeach other, just so we can feel something.” (minha tradução)

22 cf. Bauman, op. cit., p. 103. Ambos apontam para a institucionalização dos temores urbanos ese referem à política do medo cotidiano.

23 Ibid., p.105.24 Mike Davis. Cidade de Quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Página Aberta,

1993; Zygmunt Bauman. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2003.

25 Michel Misse diz que a violência é um sujeito difuso, exatamente pelo que chama de interaçãoperversa entre a mídia e as situações de violência; ver Michel Misse. “A violência como sujeito difuso”in Jandira Feghali; Candido Mendes; Julita Lemgruber (orgs.). Reflexões sobre a Violência Urbana:(in)Segurança e (des)Esperanças. Rio de Janeiro, Mauad X, 2006, pp.19-32.

26 Ver entre outros autores: Teresa Caldeira. “Fortified Enclaves: The New Urban Segregation”,Public Culture 8: 1996, pp. 303–28; M. Coy and M. Pohler. “Gated Communities in Latin AmericanMegacities: Case Studies in Brazil and Argentina”, Planning and Design 29, 2002, pp. 355–70; MikeDavis. City of Quartz: Excavating the Future of Los Angeles. New York: Verso, 1995; S. Graham. “TheSpectre of the Splintering Metropolis”, Cities, vol.18, n. 6, 2001, pp. 365–8; David Harvey. TheCondition of Postmodernity: An Enquiry into the Origins of Cultural Change. Oxford: Blackwell, 1989;Peter Marcuse. “The Enclave, the Citadel, and the Ghetto: What Has Changed in the Post-Fordist US

38 39

A urbanidade na cidade contemporâneaA Cidade pelo Avesso

Page 22: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

City?” Urban Affairs Review, vol. 33, n.3 1997, pp. 228–64; Edward Soja. Postmetropolis: CriticalStudies of Cities and Regions. Malden, Massachusetts: Blackwell, 2000; Michael Sorkin (ed.). Variationson a Theme Park: The New American City and the End of Public Space. New York: Hill and Wang, 1992;Sharon Zukin. “The Postmodern Debate over Urban Form”, in Theory, Culture, and Society, vol 5, 1988,pp. 431–46; Gregory R. Weiher. The Fractured Metropolis: political fragmentation and metropolitansegregation New York: SUNY Press, 1991; Sako Musterd, W. J. M. Ostendorf. Urban Segregation and theWelfare State: Inequality and Exclusion in Western Cities, London: Routledge, 1998

27 Marinella M. Araújo e Gustavo A. P. de Castro. “Efetividade das Políticas de DesenvolvimentoUrbano: a necessidade de políticas complementares de segurança pública” in Anais do XV EncontroPreparatório do CONPEDI, Recife, PE: CONPEDI, 2006.

28 Teresa P. R. Caldeira. City of Walls: Crime, Segregation, and Citizenship in Sao Paulo. Berkeley:University of California Press, 2000.

29 Karina Landman & Martin Schonteich. “Urban Fortresses: gated communities as a reaction tocrime” in African Security Review vol. 11 n. 4, 2002, pp. 71-85.

30 Ibid., p. 83.31 Thomas W. Sanchez, Robert E. Lang e Dawn M. Dhavale. “Security versus Status? A first look at

the Census’s Gated Community Data” in Journal of Planning Education and Research vol 24, 2005,pp.281-91.

32 Stephen Marvin and Simon Marvin. Splintering Urbanism: networked infrastructures, techono-logical mobilities and the urban condition. London: Routledge, 2001, pp. 1-6.

33 Expressão usada por Zuenir Ventura em seu livro A Cidade Partida; Zuenir Ventura. A CidadePartida. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

34 Márcia P. Leite. “Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania noRio de Janeiro” in Revista Brasileira de Ciências Sociais vol 15 n. 44, outubro 2000, pp. 73-90.

35 Ibid., pp. 75-77.36 Thomas Holloway. Policing Rio de Janeiro: repression and resistance in a 19th-century city.

Stanford, Ca: Stanford University Press, 1993.37 Ermínia Maricato. Metrópole na Periferia do Capitalismo: Ilegalidade, Desigualdade e Violência.

São Paulo: Hucitec, 1996, p. 40; Raquel Rolnik, “Exclusão Territorial e Violência: o caso de São Paulo”in Câmara do Deputados, Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior. IV Conferência das Cidades:A Cidade Cidadã: as diversas formas de superação da violência. Brasília: Câmara dos Deputados, Centrode Documentação e Informação, 2002.

Antes mesmo de falar da arquitetura, pensemos em construir uma

visão do mundo, do tempo, da imediatez, da ubiqüidade, da instan-

taneidade.... Há que dar dinamismo à arquitetura, fluidos e não

sólidos. Há que entender que o sólido, como estado, se acabou

como a massa, agora estamos na era da dinâmica dos fluidos (...)

PAUL VIRILIO

Conversación com Paul Virilio, 2001

(...) uma tentativa de oferecer ‘fluidez’ como a principal metáforapara o estágio presente da era moderna.

ZYGMUNT BAUMAN

Modernidade Líquida

Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante.

RAUL SEIXAS

Metamorfose Ambulante, 1988

41

Urbanismo em estado fluidoRosane Azevedo de Araujo

A Cidade pelo Avesso

40

Page 23: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

de de planejamento local para lidar com a fluidez espacial sem precedentes que temos hoje

para levar a cabo atividades diárias em qualquer lugar e a qualquer hora”.4 Esta fluidez, em

contraponto ao princípio vitruviano de permanência, indica a necessidade de haver enorme

maleabilidade dos planejadores do espaço, para considerar a inclusão de novas articulações

que possam estabelecer como dado, a mobilidade universal que está se instalando. Com as

facilidades geradas pela técnica, os deslocamentos se multiplicam e se prolongam, represen-

tando uma forma relativa de autonomia dos cidadãos em relação a suas ações no espaço

urbano. Isto permite que organizem sua existência segundo temporalidades e espacialidades

mais pessoais. De modo comparativo, podemos dizer que, assim como na revolução agrícola

do neolítico foram estabelecidas novas relações entre pessoas e lugares de produção e na

revolução industrial, entre pessoas e máquinas, no mundo digital global estabeleceremos

“relações entre pessoas e informação”. Isto, certamente, “possibilitará novas construções

sociais e modelos urbanos”.5

Para um entendimento amplo desta questão, que leve em conta as diferentes contribui-

ções das novas conceituações de cidade e sua arqui-tectonia, consideramos indispensável um

deslocamento radical para conceitos de base mais próximos de uma topologia do que de uma

geometria euclidiana. O espaço topológico suspende a rígida lógica dualista e idealista do

espaço euclidiano, pois estuda concretamente os aspectos qualitativos das formas espaciais

ou de suas leis de conexão, atento à posição mútua das formas, à ordem de suas partes, sua

correlação e composição. Essa nova mentalidade, em matemática e alhures, abriu, no século

XX, um rico campo de investigação, aplicação e analogias, ao disponibilizar raciocínios cada

vez mais abstratos (no sentido de amplos, refinados e inclusivos) de unilateralidade, inclusão

e transformação.6 Ora, esses são raciocínios iniciais para o entendimento da transformação

dos usos e funções tão evidentes na cidade contemporânea, pois possibilitam a permeabili-

dade entre noções e conceitos, já considerados antagônicos ou diferentes e que, atualmente,

estão relativizados em decorrência do uso das tecnologias, da inclusão da velocidade como

fator determinante da distância, da hipermobilidade de bens, pessoas e informações, da ubi-

qüidade gerada pela comunicação à distância em tempo real ou não.7

43

Urbanismo em estado fluido

A Dinâmica dos Fluidos

Fluido é a característica das substâncias líquidas e gasosas que toma a forma do recipien-

te em que está colocado. O termo está associado a toda idéia de inconstância, leveza, mobi-

lidade, não fixação. É fato que mudança e transformação são características fundamentais da

época contemporânea, logo uma ‘arquitetura materialmente líquida’ está preocupada em dar

configuração não à estabilidade, e sim à fluidez movente da realidade. Sua atenção volta-se

prioritariamente para as

formas fluidas, cambiantes, capazes de in-corporar, de fazer fisicamente corpo, nãocom o estável, mas com o mutável, não buscando uma definição fixa e permanen-te do espaço, mas dando forma física ao tempo, a uma experiência de durabilida-de na mudança que é completamente distinta do desafio do tempo que caracteri-zou o modo clássico de operação.1

Uma arquitetura líquida representa um sistema que não se reduz a uma configuração, mas

em que “espaço e tempo estão simultaneamente presentes como categorias abertas, múltiplas,

não redutíveis, organizadoras desta abertura e multiplicidade”.2 Assim, o urbano se constitui

hoje mediante a multiplicidade da experiência dos espaços e dos tempos, fundando-se na con-

tinuidade e na comunicação entre as coisas. Espaços fixos dilatam-se pela co-habitação de

múltiplas funcionalidades; tempos cronometráveis transformam-se em fluxos de informação,

com seus ritmos diferenciados e compartilhados. Daí a exigência de categorias de análise inclu-

sivas, que contemplem a mutação, a continuidade e a diversidade em seu dinamismo.

Entendemos as formas fluidas e cambiantes no Urbanismo no sentido do espaço que –

sendo suporte material de práticas sociais – pode se transformar continuamente através da

flexibilidade de sua utilização, da simultaneidade de seus usos e significados, da justaposição

de informações. Esta maleabilidade de transformação, efemeridade e transitoriedade é que

confere o caráter fluido, movente, indiferenciante do espaço urbano contemporâneo.

É nesse sentido, que utilizamos no título deste artigo a mesma referência feita por Solà-

Morales para a arquitetura contemporânea. Esta analogia se deve à constatação que os mes-

mos princípios norteadores do texto modelo, onde encontramos por definição que “uma

arquitetura líquida (...) será aquela que substitua a firmeza pela fluidez e a primazia do espa-

ço pela primazia do tempo”3, se aplicam ao Urbanismo. Aliás, já se reconhece a “necessida-

42

A Cidade pelo Avesso

Page 24: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Se considerarmos, como outro dado para o entendimento da questão, a utilização plena

do espaço virtual que é ao mesmo tempo público e privado, local e global, atópico e de outra

geometria, podemos dizer que a cidade – como o local de troca, de comunicação, de intera-

ção, de moradia, de trabalho – está potencialmente em qualquer lugar. Os espaços e suas fun-

cionalidades estão disseminados por toda parte. Estar em casa pode significar estar no traba-

lho; estar na empresa pode significar estar na faculdade; estar na rua ou em viagem pode sig-

nificar estar em conferência. Esta subversão do uso do espaço e esta multiplicação das pos-

sibilidades de conexão já vêm constituindo uma nova realidade. Isto, sem entrarmos no méri-

to do já banalizado conceito de cidade virtual, que já foi tema de revista14 e livro15, e que

designa tanto a Netrópolis – a maior metrópole do mundo: a rede que une computadores de

todo o globo –, quanto as cidades com base na World Wide Web, que funcionam como fer-

ramenta política para diferentes objetivos urbanos: marketing urbano global, incentivo ao

turismo e negócios, comunicação entre cidadãos e governo local, comércio, etc.16

Mas o que está efetivamente em questão é o próprio conceito de cidade. Tradicionalmente,

a cidade se estabeleceu pela vitória do sedentarismo, pela fixação no solo, pela codificação

de sua materialidade mediante, por exemplo, tipologias arquitetônicas, e toda a gama de nor-

mas, regras, legislações que nortearam este tipo de aglomerado, o que gerou certos modelos

de arquitetura e urbanismo considerados compatíveis com aquela realidade.17 Atualmente, a

época é do nomadismo, da fluidez, da mudança contínua, da estética do leve, do portátil e,

principalmente, da possibilidade de se tomar elementos externos como extensões do próprio

corpo, de modo que o deslocamento é simultaneamente de pessoas e lugares. Este entendi-

mento aponta para uma nova percepção do que seja arquitetura, urbanismo e cidade, e exige

que se repense o estatuto de quem habita a cidade e sua relação com o espaço urbano.

45

Urbanismo em estado fluido

O Processo de Fluidificação

Dos três conceitos clássicos definidores da arquitetura – utilidade, firmeza e formosura –,

tradicionalmente, a firmeza é aquele que mais claramente expressa as características mate-

riais desse campo de produção e estudo.8 Trata-se da consistência física, da estabilidade e

permanência que desafiam o tempo e constroem espaços concretos e palpáveis.

As leis que regem esse espaço tangível e sua tectonia estão em conformidade com a

força gravitacional e com a lógica euclidiana plana e tridimensional. Por muito tempo, esta-

bilidade e permanência foram noções chaves especificadoras do campo da arquitetura, assi-

nalando sua “condição material, fisicamente consistente, construtivamente sólida e delimita-

dora do espaço”9, que fez da arquitetura, durante vinte e cinco séculos, “um saber e uma téc-

nica ligados à permanência”.10

Hoje, contudo, utilizamos diariamente um espaço não euclidiano, como, por exemplo, o

espaço de diversas práticas compartilhadas por cidadãos, que passam a estar também no

espaço eletrônico. O mesmo ato tecnológico que modaliza proximidades espaciais e estabe-

lece novos vínculos menos tangíveis, também subverte o regime da temporalidade, fazendo

desaparecer a uniformidade e homogeneidade que se supunha haver entre o deslocamento

físico e o tempo do relógio. O grau de acessibilidade tecnológica dilui a sucessão temporal,

desfazendo a relação de proporção entre o espaço percorrido e a cronometria do antes e

depois. Deste modo, com o entendimento do conceito de tempo intemporal11 e do conceito

de tempo local12, poderíamos pensar que o tempo é casuístico, só podendo ser definido caso

a caso, segundo um exame minucioso do grau de acessibilidade tecnológica de que a pessoa

em questão disponha para realizar suas atividades.

Objetivamente, a cidade já não se reduz à grande utopia modernista. Os ideais dos pen-

samentos tayloristas e fordistas aplicados à cidade, resultando numa economia de escala, pro-

gramas de longo prazo, projetos de interesse comum e coletivo, repetição das funções urba-

nas, zoneamentos rígidos e massificação das soluções, entre outros, já foram devidamente cri-

ticados. Ascher13 empenhou-se, inclusive, em contrapor a cada uma dessas concepções, o

que seria mais de acordo com a nossa época, anunciando um neo-urbanismo com caracterís-

ticas reflexivas, de performance, com flexibilidade, multifuncional, com soluções de equipa-

mentos e serviços individualizados e uma economia da variedade.

44

A Cidade pelo Avesso

Page 25: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Um objeto topológico como a cinta de Moebius obedece a outro princípio lógico, no qual

a unilateralidade vem substituir a bilateralidade, dissolvendo a oposição euclidiana entre as

faces. Como isso acontece? Podemos construir concretamente uma cinta de Moebius toman-

do uma faixa que, ao invés de ser fechada como em um cilindro euclidiano, sofre uma torção

de 180 graus. Obtemos um objeto que tem apenas uma superfície ou face, que percorremos

de modo contínuo. Se, sobre essa superfície unilátera, nós marcarmos arbitrariamente um

ponto acompanhando seu percurso, observaremos que, antes de concluí-lo voltando ao ponto

de partida, ele vira pelo avesso. O raciocínio que nos interessa é: temos uma superfície unilá-

tera que comporta a inscrição de posições que passam de uma para outra, em continuidade,

de tal modo que as opositividades desaparecem.

A proposta do urbanismo em estado fluido considera, em analogia com a cinta de

Moebius, a equivocação dos usos e funções, tão evidente, na cidade contemporânea.

Portanto, pode incluir a flexibilidade ou mudança na prática do dia-a-dia. Há multifuncionali-

dade, polimorfismo, passagem e reversibilidade nas formas urbanas.

As noções de sociedade em rede e de sociedade hipertexto são exemplos disso. A cida-

de contemporânea pode ser considerada o espaço topológico, eletronicamente construído,

que se reconfigura à medida que a tecnologia introduz, assimila e modifica formas e funções

(novas e antigas), num alcance virtualmente infinito. Os nós que compõem a rede que a cida-

de é têm seu desempenho aferido em conformidade com sua capacidade maior ou menor

de absorver informação relevante, processando-a de modo eficiente. Uma vez redundantes

e sem uso, podem ser deletados ou absorvidos em novos nós. O importante é o poder de

performance da rede, que tende a se reconfigurar em função da dinâmica de seus nós cons-

tituintes, que só existem e funcionam como seus componentes. Logo, “a rede é a unidade,

não o nó”.18

2) Se houve uma época em que podíamos apontar o natural ou natureza em oposição

ao artificial ou social/cultural, esta época acabou. Não bastasse nossa experiência e enten-

dimento da indiscernibilidade destes conceitos, em vários campos do conhecimento os auto-

res há muito tempo apagaram esta linha divisória. Na obra MODERNIZAÇÃO REFLEXIVA, Ulrich

Beck, Anthony Giddens e Scott Lash, em uníssono, afirmam que o que é natural está tão intri-

cadamente confundido com o que é social que os seres humanos não sabem mais o que é

natureza e que “nada mais pode ser afirmado como tal”.19 Segundo Manuel Castells,esta-

47

Urbanismo em estado fluido

Considerações complementares ao urbanismo em estado fluido

O Urbanismo se constitui a partir de diversos campos do pensamento que são aplicados

à consideração da cidade. Ora, considerar a cidade é entender o conceito de cidade como uma

ferramenta conceitual historicamente construída, cujas sucessivas elaborações sofrem o

impacto das transformações que a própria história impõe aos agentes sociais de um determi-

nado espaço-tempo, que, em resposta, se vêem impelidos a produzir conceitualmente uma

reflexão consentânea com os problemas de sua época.

Posto isto, julgamos relevante pontuar alguns entendimentos que nos auxiliam a fazer a

passagem de um estado sólido do urbano, como, por exemplo, o da cidade da utopia moder-

nista, estabelecida segundo normas rígidas que mapeavam e separavam suas funções a prio-

ri, ao estado fluido, que se delineia nos dias atuais.

1) Atravessamos uma era em que as definições, delimitações, antagonismos, oposições e

distinções estão fluidas, maleáveis, sujeitas à permeabilidade de diferentes entendimentos, de

modo que a resultante passa, muitas vezes, a considerar como definição de um conceito aqui-

lo que ele nega e afirma, não mais como se fosse uma contradição, mas como alternância de

possibilidades e como dado. Para um maior esclarecimento, podemos utilizar a metáfora da

cinta de Moebius que permite construir raciocínios lógicos compatíveis com esta exigência.

Quando comparamos este objeto matemático e suas propriedades com aqueles construídos

pela lógica da geometria euclidiana ficam evidentes, por analogia, as características de muta-

ção, mobilidade e fluxo, típicas da cidade contemporânea.

Uma cinta ou banda de Moebius é um objeto matemático concebido a partir de ferra-

mentas conceituais da topologia. Suas características escapam às determinações do espaço

geométrico euclidiano. Neste último, estamos rigidamente situados em regime de bilaterali-

dade e oposição (externo X interno; sentido direito X sentido esquerdo), não havendo comu-

nicação ou passagem entre pontos situáveis nas faces opostas de uma superfície assim cons-

truída. Manipulando concretamente um cilindro, por exemplo, vemos que se trata de uma

superfície bilátera, em que não há continuidade ou passagem entre as duas faces (interna X

externa), salvo se, por exemplo, agredíssemos essa superfície mediante um furo, o que ime-

diatamente desfiguraria o objeto matemático.

46

A Cidade pelo Avesso

Page 26: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

partículas subatômicas, da evolução da vida em nosso planeta às suas manifestações parti-

culares, sistemicamente organizadas, em grau maior e menor de complexidade, sejam colô-

nias de bactérias, colméias ou bandos organizados de primatas. O artifício industrial, por sua

vez, corresponde ao plano criativo e transformador do fazer humano, que cria sociedade, arte-

fato, conhecimento e tecnologia como informação que se acopla, lê e transcreve as informa-

ções constituintes dos artifícios espontâneos. Nesse sentido, o pensamento artificialista de

Magno encontraria a intuição de Castells acerca da íntima relação entre tecnologia e cons-

ciência, pois ambos entenderiam a capacidade tecnológica da mente humana como o opera-

dor das passagens, transcrições e metamorfoses entre os artifícios, desfazendo a suposta fron-

teira entre eles.

3) Gilles Deleuze e Félix Guattari, comentando a experiência de escreverem juntos o

livro O ANTI-ÉDIPO, avançam questões que ganharão consistência teórica e prática no concei-

to de rizoma:

Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muitagente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante.Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossosnomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos.Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimen-tar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer osol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar. Nãochegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não temqualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cadaum reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados. 24

A idéia de rizoma, proposta por esses autores no livro MIL PLATÔS, nos permite apreender

a realidade contemporânea como múltipla e descentrada, arranjo aberto e infinito de frag-

mentos autônomos interligáveis em rede e sem ponto fixo de convergência. É o que indica a

metáfora do rizoma: oriundo da botânica, onde significa o caule subterrâneo que cresce e se

ramifica em direção horizontal25, o rizoma, como ferramenta cognitiva, é útil para pensarmos

o espaço urbano como malha complexa de relações sociais, políticas, cognitivas, tecnológicas

em estado fluido. Seu ritmo é o da multiplicidade e conectividade. Sua dinâmica é a da reti-

culação. Seu sentido está dado pelos movimentos de desterritorialização e pelos processos de

reterritorialização, em devir constante, denotando o caráter nômade e plástico do rizoma.

49

Urbanismo em estado fluido

mos num estágio em que, após termos suplantado a natureza a ponto de nos obrigar a pre-

servá-la artificialmente como uma forma cultural, a cultura passa a referir-se sobretudo à

própria cultura.20 Neste sentido, vivemos num mundo predominantemente social e estamos

no início de uma nova era, cuja “tecnologia central, a tecnologia da comunicação, está rela-

cionada ao coração da especificidade da espécie humana: consciência, comunicação com

significação”.21

Se, apesar das evidências insistimos em lembrar o já sabido, é porque temos a impressão

de que o conhecimento intelectual e a realidade empírica teimam em não se influenciar

mutuamente e, algumas vezes, o conhecimento quando aplicado e exemplificado causa estra-

nheza. Transpondo esta consideração de modo particular para nosso tema, interessa a refle-

xão de que a Cidade– obra dos homens –, e a Natureza– dado espontâneo –, estão dentro de

um mesmo e inseparável conceito. Este raciocínio nos leva a suspender não apenas a oposição

entre natureza e cultura, como também entre humano e tecnologia, pessoa e cidade, etc. É o

que afirma o ensaísta John Gray, a respeito de nossa condição contemporânea:

As cidades são tão artificiais quanto colméias. A Internet é tão natural quanto umateia de aranha. Como escreveram Margulis e Sagan, nós próprios somos artifíciostecnológicos inventados por antigas comunidades de bactérias como forma desobrevivência genética: ‘Somos uma parte numa intrincada rede que vem desde atomada original da Terra pelas bactérias. Nossos poderes e inteligência não per-tencem especificamente a nós, mas a toda a vida’. Pensar nossos corpos comonaturais e nossas tecnologias como artificiais confere importância excessiva ao aci-dente de nossas origens.22

A idéia de artifício espontâneo e artifício industrial, proposta pelo teórico e psicanalista

MD Magno, é outro testemunho do abandono da oposição entre o que é natural e artificial,

em prol de uma visão topológica e homogeneízante dos fatos do mundo como artifício.23

Interessa aqui destacar o aspecto articulatório que constitui qualquer artefato do mundo, seja

ele recortado como um dado físico, biológico, cultural ou tecnológico. Lidamos com formações

que são articulações, isto é, sistemas de informação (universo, vida, sociedade, ecossistemas,

etc.) que se expressam com linguagem própria, mas que podem ser transcritas uma na outra,

desde que tenhamos as ferramentas cognitivas adequadas. Dadas as contingências do apa-

recimento da matéria e da vida, podemos considerar o artifício espontâneo como sendo as

formações que encontramos dadas, que constituem o universo à nossa volta, das galáxias às

48

A Cidade pelo Avesso

Page 27: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

substrato, sub-jectum, fundamento, nos orientou por séculos, mediante a qual construímos a

auto-imagem de ocuparmos posição central de base, espécie de cabine de comando central

de nossos atos e pensamentos.27

Ora, não é apenas com Deleuze&Guattari que aprendemos a desmontar antigas referên-

cias, tornando-nos aptos a entender e interagir com o mundo contemporâneo. Com Pierre

Lévy, somos confrontados com o fato de que “o sujeito pensante também se encontra frag-

mentado em sua base, dissolvido do interior”28, disperso em uma “ecologia cognitiva”, que

o engloba, fazendo valer a pluralidade e multiplicidade no lugar de forças unificadoras:

Quem pensa? Não há mais sujeito ou substância pensante, nem ‘material’, nem ‘-espiritual’. O pensamento se dá numa rede na qual neurônios, módulos cognitivos,humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita, livros e computado-res se interconectam, transformam e traduzem as representações.29

À subversão do pretenso eu – que se aninha na ilusão de centralidade e comando – rea-

lizada pelos conceitos de rizoma e ecologia cognitiva, vem se juntar o conceito de Pessoa, for-

jado pela Nova Psicanálise.30 Mas, em uma inversão original, a Nova Psicanálise equipara

Pessoa a Eu. Estaríamos de volta à velha noção freudiana de Ego, que mal se disfarça sob a

roupagem nova do sujeito? Não. Parte-se do princípio de que Eu = Pessoa é processo resul-

tante aqui e agora, de modo ad hoc, da infinidade de configurações que desenham a rede

sintomática que uma Pessoa é. Nesse sentido, como afirma Magno, Pessoa “é mero carrefour,

mera confluência de uma quantidade enorme de coisas, inclusive da corporeidade que ali

está, com seus cacoetes e particularidades biológicas”31, rede em aberto que perdemos de

vista quando a limitamos a um escopo que individualiza ou subjetiviza. A suposta subjetivi-

dade ou individualidade é tão somente efeito de existir “fechamentos que eliminam qualquer

possibilidade agoraqui de comunicação. Chamamos isso de subjetividade, ao invés de chamar

de particularidade de um conjunto fechado de formações”.32

Portanto, estamos denominando Pessoa a rede em expansão, sem centro ou lugar defi-

nidos, apenas com a possibilidade de discernimento de situações focalizadas, como, por

exemplo, a corporeidade, a língua ou o conhecimento arquivado por alguém (como memória,

escrita impressa ou arquivo digital). Basta sair do foco de qualquer situação que ampliamos

a franja de uma Pessoa, isto é, a tomamos em perspectiva plena, sem separação, com dispo-

nibilidade para mobilidade, conectividade e comunicação. Então, “onde termina uma rede?

Ninguém sabe”, havendo “várias, senão infinitas, amplitudes do Eu, ou da Pessoa”. 33

51

Urbanismo em estado fluido

Não se trata mais de pensar em termos de subordinação hierárquica, cujo modelo é a árvore

e o processo de arborescência, com sua base fixa dando origem a múltiplos ramos. Neste uni-

verso, a organização e dinâmica das práticas e saberes, como uma raiz que cresce e se desen-

volve verticalmente, são pontos e nós individuais de uma estrutura, que se relacionam numa

razão de reciprocidade necessária, binariedade e opositividade. O longe é longe, o perto é

perto, o fora não é reversível com o dentro, público e privado são claramente discerníveis e

mutuamente excludentes. Em regime rizomático, ao contrário, qualquer ponto pode ligar-se a

qualquer outro, sem ordem ou valor prévios, sem coordenação centralizada e fixa, num mapa

aberto, “conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de rece-

ber modificações constantemente”.26

O estado fluido do espaço urbano ainda daria abrigo ao sujeito e ao indivíduo, habitan-

tes da cidade planejada, previamente normatizada e cartesianamente setorializada consoan-

te funções específicas e não reversíveis entre si? Provavelmente já não conseguimos mais nos

imaginar na pele do cidadão ocupando posições estanques na família, no lazer, no trabalho,

no turismo das estações do ano, dependente exclusivo da comunicação cabeada, do guia

rodoviário ou do jornal impresso. Contudo, esse mundo, outrora, forneceu significação a

milhões de pessoas no planeta, quando nos colocávamos como sujeitos autônomos e coor-

denadores centrais de nossas ações, acompanhando, da mesma maneira, os acontecimentos

do mundo, na política, na economia ou nas artes. Conceituados como indivíduos, carregáva-

mos a auto-imagem de sermos um ponto indiviso, unidade mínima e irredutível sustentada

na figuração corporal, de que a imagem especular nos assegura de modo tão aparentemen-

te inquestionável a individualidade. Átomos do tecido social, numericamente distintos e valo-

rizados um a um, no âmago dessa existência provavelmente nos sentimos um dia intocados

e protegidos dos avanços da esfera pública, ao mesmo tempo prontos a celebrar as conquis-

tas sociais como vitória do indivíduo.

Nada muito diferente se passa quando nos concebemos sujeitos, na boa e velha tradição

ocidental. Dos antigos aos modernos, construímos a idéia de subjetividade a partir da idéia

de subsistência de si e de uma consciência unificadora disso, que afirma sua identidade no

tempo, suporte essencialmente imutável provido de características tão somente acidentais e

cambiáveis – percepções, gostos ou afetos. Garantida por ato divino ou não, fato é que a

noção de sujeito como substância apta a existir por si, suporte de atribuição de qualidades,

50

A Cidade pelo Avesso

Page 28: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

significa, portanto, desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complica-da quanto possível. Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira. 37

Em analogia a essa definição, podemos afirmar que Eu é rede que se comporta como

hipertexto, sem fronteira entre capacidade auditiva/visual e manipulação de documentos

sonoros/escritos, envolvendo corpo, palavras, imagens, traços de memória, afetos, sensações,

mas também determinado pela rede social, política, cultural, estética, etc., que constitui Eu.

Como o próprio Lévy reconhece, “o hipertexto é talvez uma metáfora válida para todas as

esferas da realidade em que significações estejam em jogo”.38

Estamos tratando do conceito de Eu múltiplo, Eu na definição de Pessoa, que não se con-

funde com sujeito nem indivíduo. Pessoa que, aproveitando o que disseram Deleuze e

Guattari, sempre é vários. Pessoa sempre sujeita a muitas influências, de lugares, coisas, gen-

tes, sensações, línguas, lembranças, equipamentos, sons. Pessoa cuja existência inclui as miría-

des de fios de marionetes que a sustentam; cuja árvore genealógica remonta à base carbo-

no; cujo corpo tem extensões tão complexas que é impossível delimitá-lo, quando considera-

mos as implicações planetárias da ecologia e seu reflexo global; mas também corpo que res-

sente, com pesar, a morte de um ente querido, como se lhe arrancassem uma parte de si, pois

Pessoa incorpora (faz corpo) tudo aquilo a que se vincula e a que é vinculada.

A fluidez e permeabilidade entre conceitos e o apagamento de fronteiras entre natural e

artificial, corpo e tecnologia, requerem modos inclusivos de pensar a realidade urbana con-

temporânea. Donde, a aplicação do conceito de Pessoa no sentido de dar nova inteligibilida-

de à cidade, à medida que este conceito indica que Pessoa está impregnada de tudo que lhe

possa fazer interface, tudo que nela se vincule e, portanto, a constitua. Podemos, dentro desta

perspectiva indiferenciante, afirmar que a Cidade Sou Eu.39

53

Urbanismo em estado fluido

Na topologia da rede o rizoma, a ecologia cognitiva e a Pessoa se encontram, na medi-

da de sua afinidade com a sociedade em rede, informacional, videótica e videófila, no stop,

globalizada, controlada, digital, instantânea, e-tópica e distópica, em que vivemos.

Pensemos, por exemplo, na rede profissional que constitui os personagens e fragmentos de

personagens que vestimos no cotidiano. No escritório, na visita a clientes, nos relatórios que

precisamos apresentar, nas conferências para as quais se é escalado na última hora, nas ati-

vidades em equipe, na sala de aula, no balcão... a todo momento somos requisitados a inte-

grar novas informações e a nos desfazer de anteriores, de modo a dar fluxo e velocidade às

ações e tarefas de que estamos incumbidos. O teórico da comunicação Marshall McLuhan já

apontava na década de 1960 o aspecto do “tudoagora” do mundo na “era da eletricidade”.

Com a idéia de “Aldeia Global”, insistia no fato de que os homens encontram-se doravante

entrelaçados uns aos outros pelo sistema de circuitos elétricos, que fazem as informações

“despencarem sobre nós, instantânea e continuamente”, de tal modo que “a comunicação

instantânea garante que todos os fatores ambientais e de experiência coexistem num esta-

do de ativa interação”.34 Em outras palavras, a era da eletricidade fez com que reconhecês-

semos o grau de interação funcionando entre nossos artefatos culturalmente construídos e

os apetrechos naturais de que somos constituídos espontaneamente. Por isso, McLuhan

pôde falar da tecnologia eletrônica como extensão de nosso sistema nervoso central,

ampliando globalmente os efeitos dessa extensão, como algo afetando todo o complexo psí-

quico e social do planeta.35

Com novos suportes de gravação, transmissão e processamento de informação, o mundo

desse início de século XXI está ampliando em notável velocidade as intuições de McLuhan.

Ao mesmo tempo, o tratamento que alguns conceitos têm recebido, tal como abordamos

anteriormente, traz problematizações novas e desafiadoras para o Urbanismo. É o caso, por

exemplo, da idéia de hipertexto, trabalhada por Pierre Lévy36, quando a articulamos com Eu

= Pessoa. Consideremos, primeiro, que hipertexto é:

um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas,imagens, gráficos ou partes de gráficos, seqüências sonoras, documentos comple-xos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são liga-dos linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria,estende suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto

52

A Cidade pelo Avesso

Page 29: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

de criar trouxe maior ou menor poder de deslocamento, acesso a recursos materiais e conhe-

cimento, que transcendiam os limites de cada localidade delimitada.

O salto qualitativo que acontece na segunda metade do século XX liberou a conectivida-

de dos limites materiais, graças a tecnologias com poder de liquefação suficiente para insta-

lar um regime de comunicação altamente flexível, adaptável e auto-reconfigurável.44 A natu-

reza topológica da comunicação eletrônica é plenamente exibida pela capacidade contempo-

rânea de fluxo contínuo de informação interativa e em várias direções. Constituímos hoje uma

sociedade em rede cuja especificidade é a extensão “da mente e corpo humanos em redes de

interação feitas por tecnologias de comunicação baseadas na microeletrônica e operadas

mediante softwares”45, às quais, acrescentadas as tecnologias da engenharia genética, dis-

ponibilizam um complexo sistema de decodificação e recodificação da matéria viva. Do

mesmo modo, conexões sem fio e dispositivos de acesso portáteis criam “um campo contí-

nuo de presença que pode se estender através de prédios, outdoors, tanto em lugares públi-

cos como em privados”.46 Isto denota também o caráter assincrônico da comunicação, pois

não é necessária a coincidência de tempo ou de espaço para que ela se estabeleça. Um exem-

plo dessa situação é o teletrabalho móvel como modelo de trabalho que está se instalando.

Esse modelo considera o trabalhador como nômade, isto é, que executa seu trabalho através

de contato com seu escritório, via telefone celular, internet, fax, palmtops, em deslocamento,

ao mesmo tempo em que está em viagens, visita a clientes ou em seu percurso corriqueiro,

criando a situação do escritório em movimento.47

Assim, quando pensamos no processo de expansão do corpo e mente humanos median-

te tecnologia, fica mais fácil conceber que a cidade como rede equivale à rede que uma pes-

soa é. Com a explosão de máquinas portáteis, que fornecem comunicação ubíqua sem fio e

capacidade computacional, pessoas, organizações e espaços interagem em qualquer lugar ou

tempo, enquanto simultaneamente dependem de infra-estrutura de suporte que gerencie os

recursos materiais em uma rede de distribuição de informações. Ao mesmo tempo, com a

nanotecnologia e a convergência entre microeletrônica e processos e materiais biológicos,

as fronteiras entre vida humana e vida maquínica ficam borradas, de tal modo queas redes estendem sua interação, do eu interior [ = inner self] ao conjunto da ati-vidade humana, transcendendo barreiras de tempo e espaço.48

Não é o mundo que está se globalizando, somos nós. A tecnologia possibilita acesso físi-

co e deslocamento a distantes regiões, criando uma situação em que estamos contidos na

55

Urbanismo em estado fluido

O “Orbanismo” do Séc. XXI

As referências que sustentam o conceito de cidade estão em questão, sem que seja pos-

sível uma definição a partir da hegemonia de qualquer um de seus elementos constituintes.

A organização da produção, consumo, reprodução, transmissão, experiência e poder, em todas

as esferas em que as atividades humanas estão concernidas, está subvertida pelos códigos

forjados pelas Novas Tecnologias da Informação e Comunicação. Na década de 1960,

McLuhan já anunciava a mudança de paradigma ao dizer que “na era da eletricidade, o

homem volta, psíquica e socialmente, ao estado nômade (...). É um estado global, que igno-

ra e substitui a forma da cidade – que tende a se tornar obsoleta”.40

A localização espacial geográfica (cidades, empresas, governos, moradia) está relativiza-

da pelo espaço de fluxos, que impõe uma lógica que suspende a prioridade da contigüidade

física na dinâmica das trocas. As cidades globais, por exemplo, desempenham papel ativo de

centralidade na economia mundial. Mas não há mais uma relação imediata entre essa

centralidade e entidades geográficas como centro ou bairro financeiro, pois a conectividade

eletrônica permite que a rede de transações circule independente da localização física de

empresas e praças de negócio. Por isso, a cidade como metápole é fundamentalmente um

espaço de mobilidade, onde as hierarquias das trocas são dinâmicas, valendo sua capacida-

de de gerar conhecimento e processar informação, compartilhando-os em redes.41

Um mesmo espaço abriga superposições temporais diferentes, no mesmo instante se pre-

sentificam espaços distintos, as diversas temporalidades da vida urbana não são mais sepa-

radas com nitidez, pois muitas atividades podem se desenvolver ao mesmo tempo, tudo numa

mesma realidade imbricada: eis a cidade contemporânea, espaço híbrido “onde tudo o que

nos rodeia é uma composição de fontes heterogêneas.”42

Sabemos que a noção de rede não se restringe ao mundo do século XXI. As organizações

humanas dependem de e se desenham por redes de troca e comunicação que são capazes de

criar. Para François Ascher, por exemplo, o crescimento das cidades foi correlato histórico do

desenvolvimento dos meios e técnicas de transportes e de estocagem de bens (necessários ao

abastecimento de populações cada vez mais numerosas), de informações necessárias à orga-

nização e divisão dos trabalhos e das trocas, e de pessoas (ocupadas com técnicas de cons-

trução, gestão urbana dos fluxos e proventos, proteção e controle).43 Consideradas as tecno-

logias disponíveis em cada época e lugar, a conectividade que cada grupo humano foi capaz

54

A Cidade pelo Avesso

Page 30: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

esfera global. Quando pensamos globalmente, nos comunicamos e fazemos trocas a partir do

lugar que ocupamos, contemos a esfera global internamente, “contemos a Terra nas nossas

mentes e redes”.49

Ao invés de cidadão ou citadino, nesse contexto é mais apropriado retomar o antigo con-

ceito de cosmopolita, cidadão do mundo.50 As trocas materiais, pessoais, mentais e financei-

ras, o estabelecimento de vínculos sociais, de inserção social, política e econômica se darão

mediante a interface gerada pela disponibilidade mental, social, pessoal e dos equipamentos

disponíveis. Como a cidade é o local destes acontecimentos, podemos dizer que ela estará

onde o cosmopolita estiver. Urbanismo, neste caso, seria o “Orbanismo”51 do século XXI: não

tendo mais como referência fronteiras ou limitações, estaríamos tratando como cidade não

só o mundo, mas também o universo conhecido e por conhecer. Está por ser construída uma

nova humanidade, que representará conseqüentemente uma nova sociedade e uma inédita

concepção de cidade.

Notas

1 Ignasi Solà-Morales. Territorios. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002, p. 126.2 Ibid, p.130.3 Solà-Morales, op. cit., p. 127. Mais adiante explicamos o conceito de ‘arquitetura líquida’.4 Thomas Horan apud, Manuel Castells, A galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negó-

cios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 195.5 William J. Mitchell. E-topía: “vida urbana, Jim, pero no la que nosotros conocemos”. Barcelona:

Editorial Gustavo Gili, 2001, p. 19.6 Como dão testemunho, por exemplo, o trabalho do matemático Auguste Ferdinand Moebius, de

artistas como Escher e Magritte, do psicanalista Jacques Lacan e seu uso da banda de Moebius paraexplicar seu conceito de Sujeito.

7 Entre as diversas noções que têm sido relativizadas, podemos destacar: espaço público e priva-do, dentro e fora, perto e longe, global e local, moradia e trabalho, real e virtual.

8 Solà-Morales, op. cit., p. 125. O autor se refere aos princípios vitruvianos da utilitas (comodida-de/utilidade), firmitas (firmeza) e venustas (formosura).

9 Ibid., p. 126.10 Ibid.11 Segundo Castells o uso das tecnologias propicia a existência de um tempo intemporal sem refe-

rência cronológica. O espaço de fluxos dissolve o tempo, eliminando a seqüência dos eventos tornan-do-os simultâneos. Cria, assim, um tempo não-diferenciado que possibilita um presente eterno.Passado, presente e futuro e as modalidades escrita, oral e audiovisual da comunicação interagemnuma mesma informação multimediada. O tempo é transformado pela simultaneidade e intemporali-

dade. Manuel Castells. A sociedade em rede, op. cit., pp. 457- 492.12 Castells, apoiando-se em um ensaio de Barbara Adam sobre tempo e teoria social, afirma existir

uma tendência para adoção de um conceito contextual do tempo humano: o tempo é local. Ibid., p. 458.13 François Ascher. Les nouvaux principes de l’urbanisme. Paris: L’Aube, 2004.14 La Ville Virtuelle III: espace public/espace privé. Magazine Éléctronique, n. 22, juin 2005. Edição

da revista do Centro de Arte Contemporânea de Montreal. http://www.ciac.ca/magazine.15 Lançado pela Agência Estado quando aconteceu o encontro em Istambul - 1996 da “II

Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, Habitat II”.16 Stephen Graham e Simon Marvin. “Rumo a cidade em tempo real“in Telecommunications and

the city: Electronic Spaces, Urban Spaces

apud http://www.eesc.sc.usp.br/nomads/tics_arq_urb/cidtempo.doc17 Carlos García Vazquez. Ciudad hojaldre: visiones urbanas del siglo XXI. Barcelona: Editorial

Gustavo Gili, 2004, p. 191.18 Manuel Castells (ed.). The network society: a cross-cultural perspective. Massachusetts: Edward

Elgar Publishing Ltd., 2004, p. 3.19 Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash. Modernização reflexiva. São Paulo: Editora UNESP,

1995, p. 8.20 Castells. A sociedade em rede, op. cit., p. 505.21 Castells (ed.). The network society: a cross-cultural perspective, op. cit., p. 6.22 John Gray. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro:

Record, 2005, pp. 32-33.23 MD Magno. Arte&Fato. A Nova Psicanálise: da Arte Total à Clínica Geral. Rio de Janeiro:

Novamente Editora, 2001. Desde os anos 1970, o campo psicanalítico, na linhagem de Freud e Lacan,tem ganhado fôlego no Brasil com sua reformulação trazida pelo trabalho de MD Magno. NovaPsicanálise é a expressão que passa a denominar, a partir de 1986, a resultante desse esforço teórico-clínico, ao mesmo tempo antenado com o design tecnológico e artificialista da contemporaneidade eatento às questões que as elaborações freudianas e lacanianas não estavam à altura de responder.

24 Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 11.25 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.26 Deleuze e Guattarri, op. cit., p. 22.27 Cf. verbetes “indivíduo”,“substância” e “sujeito” in Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. São

Paulo: Martins Fontes, 2003 e José Ferrater Mora. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001.28 Pierre Lévy. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São

Paulo; Editora 34, 2000, p. 135.29 Ibid.30 Este conceito de Pessoa foi desenvolvido de forma original e abrangente por MD Magno, em

seu Falatório de 2004, intitulado Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão, e no Falatório de2005, intitulado Clavis Universalis. Da Cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica, sendo o primeiro iné-dito.

56 57

Urbanismo em estado fluido

Page 31: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

Um dos maiores teóricos da arquitetura do século XX e, certamente, o mais influente de

todos eles, propôs que as cidades modernas fossem concebidas para atender quatro funções

básicas: a habitação, o trabalho, a circulação e o lazer. Trata-se do arquiteto franco-suíço Le

Corbusier (1887-1965) que, além de produtor de teorias e projetos, foi um notável homem de

marketing, divulgando e propagandeando suas idéias pelos quatro cantos do mundo.

Só ao Brasil, Corbusier veio três vezes: a primeira em 1929, quando proferiu uma série

de palestras no Rio e em São Paulo, a segunda em 36, a convite de Lúcio Costa para riscar o

projeto do Ministério da Educação e Saúde1, no Rio de Janeiro, e a terceira, depois da cons-

trução de Brasília, para contemplar não apenas o fruto mais emblemático da adesão dos

arquitetos e urbanistas brasileiros às suas idéias, mas também, e é bom que se diga, a reco-

nhecida e ousada inventividade de seus pupilos desta banda de cá.

Duas razões, em especial, nos fazem lembrar Corbusier neste con(texto). A primeira,

obviamente, refere-se ao tema do lazer, por ele enfatizado como uma das funções primordiais

da cidade moderna. A segunda razão desta lembrança decorre do fato de que, em sua obra,

o autor raramente usa o termo lazer (loisir, no francês), preferindo na maior parte das vezes

escrever com todas as letras: cultiver le corps et l’esprit.2 O interesse com que se reveste este

fato reside na nossa intenção de retomar a tradução literal do enunciado de Corbusier, pois

é, justamente, essa noção ampliada de lazer, como o ato de cultivar o corpo e o espírito, que

59

Um tempo-lugar para o cultivodos corpos e do espíritoCristovão Fernandes Duarte

31 MD Magno. Psicanálise: Arreligião. Rio de Janeiro: Editora Novamente, 2005, p. 97.32 Ibid.33 MD.Magno. Clavis Universalis. Da Cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica. Rio de Janeiro:

Editora Novamente, 2007.34 Marshall McLuhan. O meio são as massa-gens. 2a ed. Rio de Janeiro: Record, 1969, p. 91.35 Marshall McLuhan. Os meios de comunicação como extensão do homem. 10a ed. São Paulo:

Cultrix, 2000.36 Lévy, op. cit., pp. 28-42.37 Ibid. p. 33.38 Ibid. p. 25.39 Rosane Araujo. “La Ville, C’est Moi: l’orbanisme du XXIème siècle”. In GRELET, Gilles (org.).

Théorie-rebellion: um ultimatum. Paris: L’Harmattan, 2005, pp. 104-107. A “Cidade sou eu” é título dapesquisa de doutoramento da autora atualmente em curso no PROURB-UFRJ.

40 McLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem, op. cit. pp. 385-6.41 Para François Ascher, as sociedades ocidentais começam a sair do industrialismo, ingressando

numa economia cognitiva, cujos fundamentos são a produção, apropriação da venda e uso de conhe-cimento, de informação e de procedimentos, num processo que privilegia conhecimento e tecnologia –o que exige capital e pessoal qualificado, venha de onde vier –, relegando a segundo plano a produ-ção material. Cf. François Ascher. Les nouveaux principes de l’urbanisme: la fin des villes n’est pas àl’ordre du jour. Paris: Ed. de l’Aube, 2001.

42 A idéia da cidade como um grande espaço ‘híbrido’ é uma ampliação da noção de ‘espaçoshíbridos’, apresentada por Muntadas, no sentido de que vivemos numa sociedade híbrida cuja hetero-gênese se reflete na arquitetura com os ‘edifícios híbridos’, que combinam funções e usos díspares, aponto de podermos pensá-los como exemplares de uma ‘anti-tipologia’. Cf. Muntadas. “Consideracionessobre espaços híbridos”. in Solà-Morales e Xavier Costa (eds.). Metrópolis. Barcelona: Editorial GustavoGili, 2004, pp. 94-95.

43 Ascher, op. cit. Cf. também Castells, A galáxia da Internet, op. cit., p. 7.44 Castells (ed.), op. cit., p. 5.45 Ibid., p. 7.46 William Mitchell apud Castells (ed.), op. cit., p. 11.47 Castells, A galáxia da Internet, op. cit., p. 192.48 Castells (ed.), op. cit., p. 6.49 Derrick de Kerckhove. A pele da cultura, op. cit., p. 193.50 Ibid.51 Urbe = cidade; Orbe = globo, mundo, universo. O conceito de Orbanismo foi articulado dessa

forma em nossa dissertação de mestrado. Cf. Rosane Araujo. A cidade contemporânea e as novas tec-nologias segundo Paul Virilio, Manuel Castells e François Ascher. Dissertação de mestrado Rio deJaneiro: PROURB-UFRJ, 2001.

58

A Cidade pelo Avesso

Page 32: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

a progressiva homogeneização do espaço urbano e a ampliação dos mecanismos de segre-

gação e controle sobre o espaço.

As propostas concretas então desenvolvidas para a cidade visavam redesenhá-la integral-

mente, de modo a promover sua adequação aos princípios, inclusive estéticos, de estandarti-

zação e mecanização, inerentes ao novo tempo. Assim é que, sob o pretexto de criar “um ins-

trumental de urbanismo para uso da Sociedade Maquinista”5, Corbusier propõe transplantar

a racionalidade industrial para a cidade, concebida, metaforicamente, como uma linha de

montagem para a produção do homem urbano moderno. A circulação funcionando como a

esteira rolante que levaria o homem-produto a percorrer os diversos setores de produção,

basicamente representados pela habitação, o trabalho e o lazer.

Impulsionada pelo advento dos meios de locomoção motorizados, a circulação assume,

então, um papel decisivo entre as demais funções urbanas nas propostas de estruturação da

cidade. A facilidade de movimentação e a aceleração do movimento mecânico impõem-se

como marcos distintivos da cidade moderna, condicionando e submetendo o espaço público.

Os automóveis tomam de assalto as cidades, reduzindo ou, até mesmo, excluindo as demais

possibilidades de uso das ruas. A disputa pelo espaço público fez prevalecer os direitos dos

motoristas, confrontando a fragilidade do corpo humano com a prepotência da máquina,

como extensão protética do corpo dos motoristas.6

O distanciamento crítico de que hoje dispomos, bem como as conseqüências reconheci-

damente negativas da aplicação daquele modelo às nossas cidades, nos facultam atestar os

seus equívocos. Não se trata de atribuir exclusivamente às idéias de Corbusier todos os males

presentes na cidade contemporânea, mas de constatar, para além disso, a própria falência da

utopia da sociedade do trabalho que alicerçava aquelas premissas teóricas, todas baseadas

na crença de que o progresso tecnológico iria se encarregar de, por si só, libertar o homem

do jugo ancestral da miséria e da opressão.

Segundo Habermas, os conteúdos utópicos da sociedade do trabalho induziam à ilusória

convicção de que “a razão instrumental desencadeada dentro das forças produtivas (...) desen-

volvida na capacidade de organizar e planejar deveria preparar o caminho para vidas dignas do

homem, igualitárias e, ao mesmo tempo, libertárias”.7 Entretanto, “a ambigüidade da moder-

nização capitalista está em que esse aumento de autonomia e de reflexividade teria sobrecar-

regado a capacidade comunicativa do mundo moderno”8, gerando uma “colonização do

mundo da vida pelos imperativos de sistemas econômicos e administrativos autonomizados”.9

61

Um tempo-lugar para o cultivo dos corpos e do espírito

pretendemos adotar e explorar, neste trabalho. E nisso, ao que tudo indica, estamos ampara-

dos pela oportuna reflexão de Marcellino, que vê o lazer “como a cultura compreendida no

seu sentido mais amplo – vivenciada (praticada ou fruída), no tempo disponível”.3

A primeira conseqüência importante que se pode fazer derivar daquela definição consis-

te na impossibilidade de se pensar o ato de cultivar o corpo e o espírito como uma função

urbana restrita ao lazer e isolada das demais, quais sejam, habitar, trabalhar e circular. E aqui

estamos, de certa forma, usando o feitiço contra o feiticeiro.

Poder-se-ia certamente alegar, em defesa do mestre, que a enunciação das quatro fun-

ções cumpre apenas uma função analítico-pedagógica, sem que isso implique em considerá-

las como isoladas ou estanques. Não é isso, entretanto, o que se constata nas suas proposi-

ções urbanísticas, que preconizavam uma clara separação das funções em espaços especial-

mente desenhados para abrigá-las.

Não podemos esquecer que Corbusier, não obstante suas indiscutíveis qualidades como

arquiteto e pensador do espaço urbano, foi um homem açodado pela vertigem dos Tempos

Modernos. Percebe-se em seus escritos uma urgência em anunciar, precocemente, a morte

da cidade tradicional como conseqüência inexorável da ruptura histórica produzida pela Era

da Máquina, que abriria caminho para o surgimento da cidade moderna.

Com a criação dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM (a partir

de 1928) e, em especial, com a publicação, em 1943, da Carta de Atenas (resultante do

CIAM de 1933), da qual Corbusier foi inspirador e signatário, o pensamento urbano moder-

nista difunde-se pelo mundo de forma hegemônica, postulando, entre outras coisas: o des-

prezo pela cidade antiga; a abolição da rua, considerada anacrônica e perigosa; a exigência

para que os imóveis fossem implantados longe dos fluxos de circulação; e a proposição do

zoning funcional, que inspirou, durante décadas, o aparato normativo da grande maioria das

cidades do mundo.

A fragmentação do território em zonas separadas e monofuncionais, aumentando as dis-

tâncias entre a moradia, o trabalho e o lazer, acarreta, como nos mostra Krier, “uma mobili-

zação efetiva e habitual da sociedade inteira para a realização das funções básicas da vida”.4

Entre as principais conseqüências deste processo sobre as práticas sócio-espaciais destacam-

se a eliminação da idéia do bairro como unidade (relativamente) autônoma e individualizada,

60

A Cidade pelo Avesso

Page 33: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

vés do Plano de Metas do governo Kubitschek, fez do sistema rodoviário a sua opção prefe-

rencial, impulsionando o crescimento da indústria automobilística brasileira.

A oferta de transportes públicos não ocorreu, entretanto, na mesma proporção em que

crescia a demanda. A precarização do transporte ferroviário e o desmantelamento das linhas

de bondes existentes nas grandes cidades brasileiras, consagraram o ônibus como modalida-

de principal do transporte púbico de passageiros. Além disso, as concessões para a explora-

ção das linhas de ônibus não se fizeram acompanhar dos indispensáveis investimentos e

mecanismos de controle, por parte do poder público, que assegurassem a boa qualidade do

serviço prestado à população. Desta forma, não obstante a falta de outras opções (ou talvez

por isso mesmo), o sistema de transporte por ônibus transformou-se num serviço de baixa

qualidade, caracterizado pela irregularidade e pelo desconforto, destinado, preferencialmen-

te, ao atendimento das classes trabalhadoras, sem acesso ao transporte particular.13

Em algumas cidades brasileiras o tempo médio desperdiçado nos deslocamentos diários

casa-trabalho-casa, em função da precariedade dos transportes urbanos e com os engarrafa-

mentos de trânsito, chega a ultrapassar 35% da jornada de trabalho. No caso extremo de São

Paulo, dados de 1997 mostram que 20% das viagens realizadas nos transportes públicos con-

somem de 2 a 3 horas/dia, enquanto 17,5% das viagens ultrapassam a marca de 3

horas/dia.14 Claro está que se trata de um tempo roubado ao tempo livre, nunca ao tempo

do trabalho.

O tempo do consumo improdutivo, por sua vez, é o tempo que gasta para comprar tudo

aquilo que a ideologia do consumo, propagandeada pelos meios de comunicação, nos impin-

ge diuturnamente como imprescindível para usufruir uma vida melhor. Multiplicam-se, por

todos os lados, os shopping-centers, como uma das marcas emblemáticas da cidade contem-

porânea. É curioso notar como esses novos templos do consumo reproduzem, internamente,

a mesma sintaxe espacial urbana da cidade tradicional, baseada na articulação das ruas (for-

madas pelo correr das fachadas), das quadras e das praças, funcionando para o usufruto das

pessoas e não dos veículos motorizados. Tratam-se, no entanto, de entidades anti-urbanas

(segregadas e apartadas do corpo-espaço coletivo da cidade), concebidas, construídas e con-

troladas pela iniciativa privada para potencializar o consumo. Dentro dos shoppings não exis-

te a pobreza, a miséria e a escassez, presentes na cidade contemporânea. Estas, juntamente,

com a violência generalizada que é imposta à cidade, foram deixadas trancadas do lado de

63

Um tempo-lugar para o cultivo dos corpos e do espírito

O ideário da sociedade do trabalho implicava, mediante a repartição dos ganhos de pro-

dutividade decorrentes da industrialização, na possibilidade de redução progressiva da jorna-

da de trabalho e no conseqüente aumento do tempo livre; esse cenário apontando, no limi-

te, para o fim mesmo do trabalho e para a realização de uma sociedade do lazer. Leia-se: uma

sociedade dedicada ao cultivo dos corpos e do espírito. Está fora também, diga-se de passa-

gem, uma das apostas para superação do capitalismo, implícita nos escritos de Marx.10

Tamanha era a convicção de Corbusier com relação a esses princípios que chegou a

escrever, profeticamente, que “uma ocupação racional de um território permitiria à sua popu-

lação trabalhar duas vezes menos”.11 Para isso, acreditava o autor, bastaria aplicar às cida-

des o ordenamento dos espaços por ele idealizado.

Não foi bem assim, entretanto, que as coisas se passaram. A aplicação indiscriminada

deste modelo, efetivada principalmente após a Segunda Grande Guerra, foi responsável pela

tecnificação generalizada do ambiente construído, com a produção de um espaço público

vazio e sem vitalidade às expensas da destruição massiva do tecido urbano tradicional.

Além disso, e a partir de então, outras estratégias de dominação do espaço-tempo se

fizeram presentes na cena urbana cotidiana. De acordo com Lefebvre, ao lado do tempo livre

e do tempo do trabalho, assumiu grande relevância o “tempo imposto”. Tal modalidade de

uso compulsório e dirigido do tempo corresponderia a novas e diversas exigências da vida

moderna fora da esfera do trabalho, como transporte, deslocamentos, formalidades, consumo,

entre outras. Ainda segundo o autor, “o tempo imposto [que aumenta mais rápido que o

tempo dos lazeres] se inscreve na cotidianidade e tende a definir o cotidiano pela soma das

imposições (pelo conjunto delas)”.12

Abordaremos a noção de tempo imposto subdividindo-a em duas outras modalidades

aqui designadas de tempo improdutivamente consumido e tempo do consumo improdutivo.

Não se trata de um mero jogo de palavras, mas da tentativa de aproximar o foco sobre os

fenômenos em estudo para melhor compreendê-los.

O tempo improdutivamente consumido é, para efeito desta abordagem, aquele que se

gasta com os deslocamentos diários nas grandes cidades. No caso brasileiro, a tendência de

crescimento das cidades, acompanhada pelo aumento exponencial da frota de automóveis,

concorre para o agravamento deste problema. Trata-se de um processo historicamente indu-

zido. No Brasil, o modelo desenvolvimentista adotado a partir do final da década de 50, atra-

62

A Cidade pelo Avesso

Page 34: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

expropriar os tempos livres constituem, intrinsecamente, parte das estratégias de dominação

em curso.

Das considerações iniciais feitas sobre o espaço passamos a falar do tempo. Não há como

evitar essa interface, sob pena de errar o alvo. Os usos do espaço se desdobram nos usos do

tempo e vice-versa. Ao tempo abstrato corresponde, também, um espaço abstrato.

A racionalidade industrial submete a cidade à lógica do lucro capitalista. Transforma a

cidade-obra, entendida como domínio do valor de uso e da livre fruição, à condição de cida-

de-produto para o consumo, como instrumento do valor de troca.19 O espaço e o tempo pas-

sam a ser condições gerais de produção; devidamente medidos e quantificados, tornam-se

mercadorias valiosas e escassas. A lógica da equivalência abstrata (que se estabelece entre as

mercadorias) busca eliminar as diferenças, dissipando a diversidade sócio-espacial constituti-

va da vida urbana.20 A abstração implica numa violência que lhe é inerente; ela age pela

devastação, pela destruição.21 Este é, como se sabe, o modus operandis do capitalismo: a vio-

lência da abstração do valor de troca, generalizada na forma do dinheiro.

O espaço-tempo abstrato é, conseqüentemente, o espaço unificado, racionalizado e

controlado pela produção capitalista. A expropriação e o controle do espaço e do tempo

(que correspondem a formas veladas de privatização do espaço-tempo) implicam na segre-

gação sócio-espacial, obtida através de um duplo processo de fragmentação e homogenei-

zação do tecido social e urbano. Assim, a instauração do espaço-tempo abstrato equivale à

eliminação das diferenças, isto é, à negação da cidade e da vida urbana, tal como foram his-

toricamente instituídas.

A nova escassez do espaço-tempo produzida (e imposta) pelo poder econômico se afir-

ma, portanto, como uma das chaves para a compreensão da problemática do urbano, focali-

zada aqui através da consideração do lazer e do tempo livre na sociedade contemporânea.

A cidade, tomada de assalto, saqueada, expropriada, negada, não é, entretanto, elimina-

da de uma vez por todas. Ela resiste ao se transformar. O valor de uso do espaço-tempo não

desaparece.22 Os usos do espaço e do tempo, que implicam em apropriação, reaparecem nas

práticas sócio-espaciais cotidianas mediadas pelo corpo, em contradição dialética com o valor

de troca, que implica em propriedade.23

Falar de um tempo-lugar para o cultivo dos corpos e do espírito é, portanto, falar de uma

trincheira de resistência às estratégias de opressão instituídas pelo espaço-tempo abstrato.

65

Um tempo-lugar para o cultivo dos corpos e do espírito

fora. Na cidade em miniatura, recriada artificialmente dentro dos shoppings, tudo deve girar

em torno do consumo, até a simulação da experiência de estar dentro de uma cidade de ver-

dade.15

No consumo desenfreado e perdulário gasta-se, muitas vezes, aquilo que ainda se vai

ganhar com o trabalho de amanhã e depois. Assim, o tempo do consumo improdutivo com-

promete também o tempo livre futuro, já que mais horas de trabalho serão necessárias para

compensar o endividamento gerado pelas prestações postergadas. Sobre esta questão, vale

acompanhar o raciocínio de Kurz, quando diz que “as formas raquíticas de descanso foram

substituídas por um hedonismo enfurecido de idiotas do consumo, um hedonismo que com-

prime o tempo livre da mesma forma que, antes, o horário de trabalho”.16

Como se vê, ao contrário do que profetizaram os ideólogos da sociedade do lazer, nunca

o tempo livre foi tão exíguo como nos dias atuais. Se ainda, ao resíduo de tempo suposta-

mente livre subtrairmos o tempo em que se está cuidando de afazeres inadiáveis e cotidianos

como cuidar daqueles que dependem de nós, pagar as contas ou cumprir outras tantas obri-

gações que extrapolam a esfera do trabalho, descobriremos, estarrecidos, que o pouco tempo

que sobra (quando sobra!) para cultivar o corpo e o espírito se resumirá, na melhor das hipó-

teses, às refeições, ao sono e, eventualmente, ao sexo.

Não capitulemos, entretanto, por antecipação. Nossa constatação de que o tempo livre é

uma ficção, apesar de óbvia, nos permitirá retomar o argumento principal desta exposição,

que consiste justamente na impossibilidade de se pensar o tempo livre como uma entidade

autônoma, desligada dos tempos da vida cotidiana.

A moderna distinção entre o tempo do trabalho e o tempo livre não passa de uma abs-

tração vazia e, portanto ilusória, engendrada pela economia capitalista. Ao reduzir o tempo

a uma mercadoria, a racionalidade dominante instituiu o tempo abstrato, ou seja, o tempo

linear, repetitivo e uniforme da produção capitalista. Trata-se do tempo-mercadoria, definido

por Guy Debord como sendo “uma acumulação infinita de intervalos equivalentes”17, ou

ainda, “a temporalidade do inferno, do eternamente idêntico”, de que nos fala Walter

Benjamin.18

Confrontado com o tempo do trabalho, o tempo livre do trabalhador é representado

como vazio e inútil, passível, portanto, de se tornar um tempo disrruptivo que ameaçaria a

estabilidade e a previsibilidade dos ritmos da produção. Dessa forma, minimizar, controlar e

64

A Cidade pelo Avesso

Page 35: 54753027 a Cidade Pelo Avesso Desafio Do Urbanismo Contemporaneo Rachel Coutinho Marques Da Silva

18 Apud. Sérgio Paulo Rouanet, A razão nômade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993, p. 55.19 Henri Lefebvre. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991, pp. 81-2.20 Milton Santos. A natureza do espaço: espaço e tempo: razão e emoção. São Paulo: Hucitec,

1999, p. 259.21 Henri Lefebvre. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000, p. 333.22 Ana Fani Alessandri Carlos. Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São

Paulo: Contexto, 2001, p. 38.23 Lefebvre, op. cit., 2000, p. 411.24 Ana Clara Torres Ribeiro. “O sujeito corporificado e bioética, caminhos da democracia”25 Henri Lefebvre. La revolucion urbana. Madri: Alianza Editorial, 1972, p. 147.

67

Um tempo-lugar para o cultivo dos corpos e do espírito

E essa forma de resistência coloca o corpo-espírito no centro da cena.24 O corpo, afirman-

do-se simultaneamente como sujeito e objeto, reivindica o direito à diferença e o direito à

apropriação do tempo e do espaço, modalidade superior da liberdade.25

Notas

1 Atualmente denominado Palácio Gustavo Capanema, este prédio, inaugurado em 1945, foi o pri-

meiro arranha-céu assumidamente modernista construído no mundo.2 Le Corbusier. Manière de penser l’urbanisme. Éditions Gonthier: Paris, 1966, pp. 82 e 153.3 Nelson Carvalho Marcellino. Pedagogia da animação. 5ª ed., Campinas: Papirus, 2003, p. 31.4 Leon Krier. Tradition - Modernisme - Modernite, in Archives d’Architecture Moderne, 1987, no.

35/36.5 Le Corbusier. Op. cit., 1966, pp. 59-91.6 Cristovão Fernandes Duarte. Forma e movimento. Rio de Janeiro: PROURB-FAU-UFRJ, 2006.7 Juergen Habermas. A nova intransparência, in Novos Estudos CEBRAP no. 18, set. 87, p.114.8 Sérgio Paulo Rouanet. As razões do iluminismo , São Paulo: Cia da Letras, 1987, p.163.9 Juergen Habermas. Arquitetura moderna e pós-moderna, in Novos Estudos CEBRAP no. 18, set.

87, p.124.10 Karl Marx. Elementos fundamentales para la critica de la economia política (Grundisse) 1857-

58, México, Siglo XXI, 1986.11 Le Corbusier, op. cit., p. 8. Cumpre esclarecer que Corbusier, ao contrário de Marx, trabalhava

com uma perspectiva assumidamente reformista, como fica claro nas palavras finais do livro Towards anew architecture.: “Arquitetura ou revolução. A revolução pode ser evitada”; ver Le Corbusier. Towardsa new architecture. New York: Dover Publications, 1986.

12 Henri Lefebvre. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991, p. 61.13 Eduardo Vasconcellos. Transporte urbano, espaço e equidade: análise das políticas públicas.

São Paulo: Annablume, 2001, pp. 172-4.14 Região Metropolitana de São Paulo – RMSP, 1997. Ver também relatório produzido pela

Associação Nacional de Transporte Público - ANTP: O transporte na cidade do século XXI. ANTP, 12º

Congresso Brasileiro de Transportes e Trânsito. Olinda - PE, 1999.15 Duarte. op. cit.16 Roberto Kurz. A expropriação do tempo. Folha de São Paulo, Caderno MAIS! (Edição 25.477),

Domingo, 03/01/1999.17 Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 103.

66

A Cidade pelo Avesso