1 Amostragem/Reconstrução Amostragem impulsiva Reconstrução.
6-A reconstrução do passado: processos de escrita...
-
Upload
associacao-brasileira-de-hispanistas -
Category
Documents
-
view
216 -
download
0
description
Transcript of 6-A reconstrução do passado: processos de escrita...
108
A reconstrução do passado: processos de escri-ta em Infância de Graciliano Ramos e Cuader-
nos de Infancia de Norah Lange
TatianeSilvaSantos1
Resumo: Esteartigopropõeumareflexãoacercadosrecursosutilizadosparaarecu-peraçãodememóriasemCuadernos de Infancia (1937) deNorahLangeeInfância (1945)deGracilianoRamos.Aanálisesobreaconfiguraçãodasnarrativasnesteslivrosapontaasestratégiasutilizadasporcadaautorapartirdaexposiçãodosfrag-mentosdasrecordaçõeseopercursoescolhidoporelesparaestabelecerasrelaçõesdeconexãoentreaslembranças;queseapresentaminstáveisedependemdoolhardequemasevoca.Observaremosasreflexõesdosautoresaolongodoprocessodeescritaetambémaslacunasquenosfalamdadificuldadederelacionarourecuperardeterminadosacontecimentosdopassado.
Palavras-chave:autobiografia;infância;memórias;GracilianoRamos;NorahLange.
Abstract:ThisarticleaimsareflectionabouttheresourcesusedtorecovermemoriesinCuadernos de Infancia(1937)writtenbyNorahLangeandInfância(1945)writ-tenbyGracilianoRamos.Theanalysisaboutnarrativeconfigurationinthesebooksindicatesstrategiesusedbyeachauthorontheexposureofmemoriesfragmentsandtheroutechosenbythemtoestablishbondsbetweenmemorieswhichpresentthemselvesunstableanddependonthelookofthosewhoevokesthem.Wewillanalyzetheauthors’reflectionsthroughtheirwritingprocessandalsothegapsthatspeakaboutthedifficultyofconnectingorrecoveringcertainpastevents.
Keywords:autobiography;childhood;memories;GracilianoRamos;NorahLange.
1 ProfessoraMestra,UniversidadedoEstadodeMatoGrosso.E-mail:[email protected].
109
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
Entre múltiplos reflexos – as imagens da criança em Cuadernos de Infancia de Norah Lange
Cadapalavraéumaborboletamortaespetadanapágina:Porissoapalavraescritaésempretriste...
MárioQuintana
Sabemos,pelosestudosrecentesacercadaescritaautobiográfica,queasconcepçõessobreestetemajásofreramdiversasmudanças.Semprenosdistan-ciandodanoçãodeconfissãoinicialmenteassociadaaogênero,partimoshojedapremissadequeumrelatomemorialísticorealizaumaautofiguração,queconformeafirmaSylviaMolloy(1996),consistenojogoentreaautobiografiaeamentedoautobiógrafoparaconseguirumaimagempúblicaprópria,coincidentecomaquelaqueoindivíduotemdesi.Atualmente,estamoscientesdasveredasquepodemserescolhidasparaestarepresentaçãoeinclusiveaprópriapalavrautilizadaparadefinirestetipodeescritaapresentaalgumasramificações:alémdaautobiografia,reconhecemosatualmenteasobrasdeautoficção,ospoemasautobiográficos,memórias,entreoutrasqueaindanãotiveramtempoounãopuderamsernomea-das,justamenteporqueéquaseimpossívelapreenderaheterogeneidadedestetipodeescritaemumvocábulo.Assubdivisõesassinaladasmostramamultiplicidadedepossibilidadesparaarepresentaçãodoeuatravésdaescrita.Sendoassim,otextoautobiográficomodestamenteexpõeumafacedodado,umaperspectivareferenteàprimeirapessoaqueexpõesuahistória.Notranscursodeconstruçãodestafigura,oquesecala,oquesesilencia,oque,comoleitoresintuímosqueficouguardadonamemóriadoautorinstigaanossaimaginaçãoepropiciaaestamemoraçãosetornaraindamaisinteressante.Claroquenãopelasimplescuriosidadedadesc-obertadeumsegredo(emboramuitasvezeselesestimulemanossacriatividade),masprincipalmenteparatentarmoscompreenderquaisosmotivosquelevaramoautoraescolherdeterminadaformanarrativaparaacomposiçãodesuaimagempormeiodaliteraturaeosmotivosdoprivilégioadeterminadoseventos.
Emboratenhamocorridomudançascomrelaçãoaosmodosdaescritaauto-biográfica,comoorompimentoda“confiançainabalávelnalínguacomoveículoderepresentação”(GALLEeOLMOS2009:10),esteprocessofoilento,sendoconstruídopaulatinamentepormeiodastransformaçõesnosmodosdetentarcompreenderosentidodeumaautobiografia,geralmentehabitantedeumsinuosoterrenosituadoentreaveracidadeeaficção.Cuadernos de infancia (1937) encontra-senolimiardestepercursoeporsuaexcentricidade– facilidadeemdizernasentrelinhas–evidenciaumanovaformadefiguração.Oprópriotítulodaobranosreportaaumtextotranquiloemelancólico,entretanto,aslinhasdestescadernosdesestruturamasbasestradicionaisdeanálisedogêneroerecordamopassadoapartirdeumolharsingular,captadordainquietaçãoadvindadossentimentosquepermeiamoperíodorecordado.Nesterelato,amemorialistaconcentraasuanarrativaemumespaço
110
fortementedelimitado–suacasa–pararecuperarosdetalhesdeseusprimeirosanos.Aobjetividadedoscapítulos,logradapelodirecionamentodofoconarrativonoepisódioevocadoecomomínimodeinterferênciasdaadulta,acentuaoefeitodecadaeventoapresentado,poisanarradoraseisentadeelementoscanônicosdaliteraturamemorialística,comoadescriçãodesuagenealogiaeresquíciosdecaráterconfessional,parainovar,trazendoumaescritaincisiva;oquenãoestáexpressonotextoporexplicaçõesdaadultaeconexõesentreoscapítulosaparecenoeloentreoolhardanarradoraeodacriançarepresentada.
Incisivaemtodosospequenoscapítulosquereconstroemacontecimentossignificativos,NorahLangeentregaaoleitoraessênciadeseupassadosempedirpermissãoouentoarjustificativas.ObservamosestedespojamentodesdeoiníciodolivroquecomeçacomadescriçãodeumaviagemdafamíliaàMendoza,quandoameninatemcincoanos–lugarondevivematéamortedopai,quandovoltamaBuenosAires.Aobraevidencia fatosmarcanteseaomesmotempodispensaopiniõesdaadulta,mantendoasuaatençãonaperspectivainfantil,discorrendoacercadoseventossignificativosedemonstrandoapossibilidadedestespoderemserrecuperadosmesmodepoisdeumlongotempo.Logonoiníciodotexto,oleitorécolocadoapardestaformadeapresentaçãopelopactoestabelecidonasprimeiraslinhasdestasmemórias:
Entrecortado y dichoso, apenas detenido en una noche, el primer viaje que hicimos desde Buenos Aires a Mendoza, surge en mi memoria como si recuperase un paisaje a través de una ventanilla empañada. Apoyados en un miedo, mis cinco años alcanzaron a retener la tarde en que llegamos a Monte Comán, para pasar una noche y proseguir, a la mañana siguiente, hacia nuestro destino.(LANGE1957:9)
Incisivatambémnocontratoinicialestabelecidoapartirdaprimeirapalavradotexto,aautorarevelaaformacomoestádispostooprimeirocapítulo–entre-cortado– esemmaioresrodeiosouexplanaçõescontextualizadoras,entregaaoleitoraprimeirarecordaçãodainfância.Aadulta/memorialistarealizacomdestrezaasuafunção:enquantocontasuahistória,soltaamãodacriançaeadeixaseguirlivremente,mostrandoseusmedos,sustos,alegriasereflexõessobreomundo,atodifícildedesapegoàscertezasadvindasdamaturidade.Ecomoumacriançacorrendosemlimites,osepisódiosatravessamincontáveisrecordações,passandopormomentostranquilos,desofrimentos,dedúvidas,ansiedadeàsimplescontem-plaçãodocarinhodospais,irmãsebabás.Esteafastamentoentreosdoisinstantes–dopassadoedaescrita–éobservadoporPaulRicoeuremA memória, a história, o esquecimento (2007),quando retomaas consideraçõesdeBergsonacercadaimportânciadadesconexãodopassadocomaaçãopresente:
111
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
Àmemóriaquerepete,opõe-seamemóriaqueimagina:“Paraevocaropassadoemformadeimagens,éprecisopoderabstrair-sedaaçãopresente,éprecisoatribuirvaloraoinútil,éprecisoquerersonhar.Talvezohomemsejaoúnicosercapazdeumesforçodessetipo”.(op.cit., 228)(RICOEUR2007:44)
Nasmemóriassobreoperíododainfância,paraacriançatransitarlivrementeénecessáriooalheamentodoadultoàocasiãodaescrita,àsuacondiçãoatual,tarefacomplexaparaoautobiógrafo,porqueelenecessitaadmitiradiversidadedeeusexistentesesepará-lospararealizarsuarepresentação.NorahLangerealizaestadesconexão;evidentementeelanãoocorretotalmente,emalgumaslinhasavozdaadultasussurraaoleitor.Contudo,amemorialistanãoultrapassafronteirasesecolocaladoaladocomacriança,permaneceesquivaparaconseguirelencarsuasmemóriasposicionandoameninaemprimeiroplano.EstaatitudeporpartedoautoréevidenciadatambémporJoséMouraGonçalvesFilhoemO olhar(1988),naalusãoàsafirmaçõesdeEcléaBosi:
(...) ‘relembrarexigeumespíritodesperto,acapacidadedenãoconfundiravidaatualcomaquepassou,dereconheceras lembrançaseopô-lasàs imagensdeagora’:‘nãoháevocaçãosemumainteligênciadopresente’:aturadaeapuradareflexãopodeprecedereacompanharaevocação: ‘umalembrançaédiamantebrutoqueprecisaserlapidadopeloespírito’.(FILHO1988:97).
Comoassinalaocrítico,paraasituaçãodopassadoserrepresentadaclara-mente,esteprocessodependerádacapacidadedoautordeseenxergarnosdoisinstantespararealizaralapidação desuaslembranças,retirandodeseuentornorecordaçõesdeoutrasocasiões.Quandoanalisamosasmemóriasdeinfânciaper-cebemosqueumajustificativaouintroduçãoantesdealgumrelatopoderealizaramesclaentreasopiniõesatuaisdoautoreasponderaçõesdainfância.Algunsautoreslançamnoprópriorelatoautobiográficoadiscussãosobreadificuldadeouoestranhamentoresultantedestaseparação,comofazVictoriaOcampo:
A mí me hubiera aliviado hablar en tercera persona de mí misma, no sólo por las ventajas que ofrece (especialmente si uno habla de sí mismo en esa tercera-primera-persona que son tan a menudo las novelas y cuentos), sino porque me siento, por momentos, tan lejos de cierto mí misma como lo puedo estar del pelo que me han cortado y barren en la peluquería, o de la uña que me limo y vuela al aire hecha polvo. Yo no soy “aquello”, lo perecedero que formó parte de mí y que nada tiene que ver conmigo. Soy lo otro. Pero ¿qué?(OCAMPO1979:6)
AautobiógrafadeEl archipiélago comparaaescritacomaencenaçãodealgoexternoàsuavida,comoocabelocortadonocabeleireiro,partejádesligadadeseucorpo.OescritorAmósOz,nabuscapelareconstruçãodopassadoemDe amor e
112
trevas(2001),tambémexpõesobreadificuldadeencontradaparaacomposiçãodahistóriapessoal,principalmentepeladistânciatemporal,motivodoafastamentoentreoautoresuasprimeirasexperiências.Emumpontodanarrativa,ondecontaasuarelaçãocomumadasprofessoras,faladostiposdediscussõesquefaziamsobreoscontoselendasqueliameparauminstantepararefletir:“Ouquemsabetalvezelanãotivesseditotudoisso,poiseunãomesentavaaseuladocomlápisecadernonamãoanotandotudooqueelamedizia.Emaisdecinquentaanossepassaram”(OZ2005:337).Continuandoasuareflexãosobreareconstituiçãodefatostãoantigos,omemorialistasepergunta:
Masoqueeladisseexatamente?Agora,emmeuescritório,emArad,numdiadeverãonofimdomêsdejunhode2001,tentoreconstruir,ouantesadivinhar,convocaraquelaslembranças,quasecriarapartirdonada:comoospaleontólogosnosmuseusdehistórianatural,quesãocapazesdereconstituirumdinossaurocompletocombaseemdoisoutrêsossos.(OZ2005:337-38)
NorahLangeexpõeosossosaoinvésdetentarreconstruirasligaçõesqueosunemparaformarodinossauro.Aautoraterminaanarrativadeumcapítulocomamesmanaturalidadedoprincípio,semmuitastergiversações.Paraconseguirmanteradistânciaentreosdoismomentos:passadoepresente,representandoossentimentosdacriança,amemorialistaconseguiráemseutextodiminuirasinterfer-ênciasdaadultaatravésdealgunsrecursos;umdelesseráapartirdaconfirmaçãodoacordoestabelecidonoiníciodolivro–oscapítulosseguirãoanarrativaapartirdeentradasrepentinas,muitasvezesexpondoosmeandrosdeumacenamarcante:
Georgina se hallaba enferma. A cada instante era necesario que la madre entrase, casi a tientas, en la penumbra de su dormitorio, para cambiarle los pañuelos fríos que le cubrían la frente, mientras nosotras, en el cuarto contiguo, procurábamos hacer el menor ruido posible.(LANGE1957:57)
Aqui,adificuldadeencontradaparaoenfrentamentodas reminiscênciasdainfânciaécontornadapelopactoinicial:asnarrativasserãodesenvolvidasdemodoparecidoacomosurgemnamentedanarradora,envoltasaestanuvemdeincertezas:podemosinferirquetalvezelanãoserecordasseoporquêdaenfermi-dadedairmã,masosdetalhescircundantesdoeventorecuperamumacenaemquesomenteoessencialsurgenovamente.Nomodoelegidoparacomeçarocapítulo:“Georgina se hallaba enferma”,NorahLangemostraa impossibilidadedeumaescritatotalizadoraquandoomaterialdisponívelsetratadememórias.
Noiníciodealgunsdos“pequenoscapítulos”aprofusãodavozinfantilédestacadapelomododeapresentarumnovoacontecimento:“- Oíste? Incorporada en mi cama, procuré alcanzar el rostro de Susana a través de la penumbra, porque sospeché que no quería confesar su miedo”(LANGE1957:101).Estassãoasprimeiras
113
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
palavrasdocapítulo,ondeanarradoralançaprimeiramenteapalavradacriança.Amemorialistasituaoleitornocernedasituaçãorelembrada,abstendo-se,comojámencionamos,dostrâmitesreferentesàsexplicaçõespreparatóriasparaocomeçodenovocapítulo.Noexemploacima,depreende-sedapalavrasussurradanomeiodanoiteaexpressãodosmedosdacriança,nãoénecessáriaadescriçãopormenori-zadadosdetalhesanterioresàpergunta–aformacomoestádispostanosremeteaostemoressentidos,atodaapreensãocausadapelodesconhecidodanoite.Avoztemerosamurmuraetransbordaanarrativacomainquietaçãoinfantil:-¿Oíste?,apartirdestapalavraedomodocomoestáexposta,sãodelineadososcontornosdosfantasmas,osmedosadvindosdepensamentosdiantedeummundoaindadesconhecido,principalmenteduranteanoite,ondeaausênciadeluzpermiteaformaçãodeinúmerasfantasiasgeradaspelosfragmentosexistentes,comoobservaJoséLezamaLimanoensaio“Confluencias”:“De lejos, la veía como atravesada por incesantes puntos de luz. Subdividida, fragmentada, acribillada por las voces y por las luces”(LEZAMALIMA1988:415).Anoiteéobservadaapartirdestaaurademistério,ocomeçodocapítulo,aoinvésdedesorientaroleitor,ocolocadiantedealgumasquestõesdainfância:buscadeapoio,preocupação,temores,susto,etc.,fazendo-oadentrarnouniversorepresentadocomoconhecimentodeinúmeroselementossignificantesdoperíodo.Aspalavrasditaspelacriançaecoamduranteaspáginasdestescadernos,produzindoumapontecomrelaçãoaotempoaoconectá-lacomopresentedaescrita,aotrazerparamaispróximodoleitoroentendimentodacriança,aorepresentarumtimbrequedesconcertaeassimproblematiza.
A construção da infância por Graciliano Ramos
OlivroInfânciafoientregueemformadefolhetimparaumjornaldeAlagoasepublicadoem1945.Emsuaspáginas,GracilianoRamosretrataoseuolharparaomundoapartirdesuavivênciacomospaiseconsequenteouinconsequenterelaçãocomoslivros.Oprimeirocapítuloesboçagrandepartedoprocessoderecuperaçãodasmemóriascomadescriçãopormenorizadadesuasoscilações,esquecimentos,recortes, remendos,e interferênciasde terceiros. Estaempresaé iniciadapelotítulo:Nuvens, colocadoemevidênciapormuitos críticospor representarumavisãoinstáveldarealidadeatravésdatransitoriedadeeopacidadeevocadaspelotermo.PararelacionarosignificadodaescritaautobiográficaaotítuloescolhidoporGracilianoparanomearaslembrançascomparamosoolharparaopassadocomoatodeobservarocéunublado–emcadainstantequandooespiamos,asnuvensseapresentamdeumamaneiradiferente.Advémdestefatoocostume,emváriasculturas,debrincardedarformasàsimagensbrancasvistasnocéu:umpeixe,umaárvoreouumhomemsetransformamemoutrosseresapartirdomovimento.Damesmaforma,quandonospropomosasistematizaropassado,asequenciá-louti-lizandoaescrita,vemostransitoriamenteasnossasrecordações.Omotivoporele
114
estarrepresentadodeumaououtramaneiratemrelaçãodiretacomoagora,comesteparareregistrar.Sedeixarmospassaralgumtempoasmemóriasaparecerãodemaneiradistinta,assimcomoasnuvenssãoreconfiguradaspeloventoaslem-brançasapresentamomesmomovimentocomandadopelotempo.
Quandoevocados,osfragmentosdasimagensdopassadotentamserecon-struirnopresenteparafiguraraocasiãorememorada.Entretanto,acadamomentoemquebuscamosestaorganizaçãodasmemóriasamontagemserádiferenteecomoafirmaalgumasvezesGracilianoRamos,nemsempreaspartesdenossaslembrançasapresentam-secoerentes.Destaforma,arepresentaçãodeumpassadotãodistante,comoéocasodainfância,teráformasdiferentesdeacordocomaidadedoautobiógrafo,maisespecificamentecomaetapadavidaquandoescreveesuavisãosobreopassado.Aconfiguraçãonarrativaserábemdistintaemcadafase:aosvinte,trinta,quarenta,cinquentaanoseassimpordiante,comoasnuvensapresentam-senaformadesorvete,menino,casaouumaformageométrica.IedaLebensztayn(2010)ressaltaesteaspectomovediçodasnuvens:
NagênesedeInfância,aalteraçãodotítulo“Sombras”para“Nuvens”parececon-jugaroaspectoentrefugidio,imprecisoeperdidodamemória,comoseupotencialderesgatarecriarformas.Nasnuvensadivinham-sefiguras,oesfumaçadoganhacontornos,essaaliçãodosastrônomos.EapoesiadeInfância advémemmuitodeGraciliano,aoevocarsuasmemóriasecomporanarrativa,reconstituiradescobertadomundopelacriança–comsuasperplexidades,pavoresedescobertas-,revelandoaformaçãodasensibilidadeedaconsciênciadoadulto.(LEBENSZTAYN2010: 324)
Acriaçãodeformasirádependerdoinstantededetençãodoolhar,atitudenãomuitofácilquandonosreferimosaoperíododainfância,poisoautorapartirdesuasrecordaçõestraduzaspercepçõesinfantis.Oresgatedoespaçotorna-se,portanto,muitoimportanteparaarepresentaçãodeumaépocaondeossentimentosaindasemesclameseconfundem,porquenestemomentoaindanãopossuemaperspectivadaexperiênciaparaclassificarounomeardeterminadosacontecimentos.
Consideramososelementosdoespaçocomoumaespéciedeinstrumentodeprecisãoparaseenxergarumpoucomelhoropassado.Logonoiníciodeseulivro,enquantodiscorresobreatransitoriedadeouaconsistênciadesuasmemórias,GracilianoRamosfixaas suas recordaçõesemalguns sinais,necessáriosparaaexistênciadestasmemóriasapóstantotempo:“Ossentidosesmorecem,ocorposeimobilizaecurva,todaavidasefixaemalgunspontos–noolhoquebrilhaeseapaga,namãoquesoltaocigarroecontinuaatarefa,nosbeiçosquemurmurampalavrasimperceptíveisedescontentes”(RAMOS2010:22).Omemorialistanãotratasomentedeobjetos,masagamadesentidosincluioconjuntodealgumascondutascotidianasfixas,repetitivasetalvezporissoimportantesporofereceremàcriançaumaimagemacercadomundoaoseuredor,umaprecisãodefinidoraenecessária
115
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
paraaformaçãodasprimeirasimagensnainfância.Alémdosobjetosutilizadosparaaevocaçãodoespaçodainfância,constituemoconjuntodaslembrançasaspartesdoscorpos,aquiolhos, mão, beiços,observadosalgumasvezesseparadamentedocorpo,dotadosdesignificadosparaconstituíremocontextodarepresentaçãofeitapeloadulto,paradelinearavidaeoseupulso,seufioecontinuidade.
GustavoSilveiraRibeiroemAbertura entre as nuvens(2012)destacaesteaspectodaobra:“Oprotagonistaenxergaarealidadeaospedaços,nuncavislum-brandoumaimagemdeconjuntodoslugaresepessoasqueocercam.Seuolhar,predominantemente,seconstróipelametonímia”(RIBEIRO2012:54).Apesarderealizardiversoscomentáriossobreaescrita,GracilianoRamos,assimcomoNorahLange,nãotentauniraspartesemumtodocoerente,expondo-assomentecomopedaçosresistentesaotempo.
EstafragmentaçãoencontradanacomposiçãodanarrativadeGracilianoRa-mosocorreporqueaobraéescritaprimeiramenteparaapublicaçãoemformadefolhetim,comorelataCláudioLeitão:“Otomdefolhetimérecicladonaorganizaçãodolivroimpresso”(LEITÃO2010:270).TemoscadacapítulodolivroreorganizadoparaaconstituiçãodolivroInfância.Osmovimentosdepararparaobservareregis-trarsãorealizadosindividualmentenoscapítulos;entretanto,porapresentarlaçosfortesentreasrecordaçõesguardadas,puderamserorganizadosposteriormenteparaacomposiçãodolivro.Osmotivosresponsáveispelaexistênciadeumaououtralembrançaconseguematribuiraunicidadenecessáriaparaaestruturaçãodoscapítulos.MauriceBlanchotemLa escritura del desastre (1990),discorresobrearelaçãodofragmentoeaescrita:
Los fragmentos se escriben como separaciones no cumplidas: lo que tienen de incompleto, de insuficiente, obra de la decepción, es su deriva, el indicio de que, ni unificables, ni conscientes, dejan espaciarse señales con las cuales el pensamiento, al declinar y declinarse, está figurando unos conjuntos furtivos, los cuales, ficticia-mente, abren y cierran la ausencia de conjunto, sin que, fascinada definitivamente, se detenga en ella, siempre relevada por la vigilia que no se interrumpe. Por eso no cabe decir que haya intervalo, ya que los fragmentos, en parte destinados al blanco que los separa, encuentran en esta separación no lo que los termina, sino lo que los prolonga, o los pone en espera de cuanto los prolongará, ya los ha prolongado, haci-éndolos persistir en virtud de su inconclusión, entonces siempre dispuestos a dejarse labrar por la razón infatigable, en vez de seguir siendo el habla caída, apartada, el secreto sin secreto que no puede llenar elaboración alguna.(BLANCHOT1990:55)
SegundoBlanchot,ofragmentoprolonga,colocandoemevidênciaafalta,fazendoonarradorpreenchê-laapartirdosindíciosrestantes.EmInfância, omemo-rialistainiciaasassociaçõesparaareconstruçãodesteespaçoapartirdoprimeiroobjeto,comoumapossibilidadedeencontrocomamemória:“Aprimeiracoisaqueguardeinamemóriafoiumvasodelouçavidrada,cheiodepitombas” (RAMOS
116
2010:9).Eapartirdareferência,osacontecimentossedesenvolvem:aoredordovasodepitombassurgeoespaço,aspessoas,assensaçõeseexperiências.Ovasorecordadopodeserresponsávelporatribuirumcorpoàsmãos,lábioseumsentidoaalgumaspalavrasrepetidas.AindaconformeBlanchot:“La escritura fragmentaria sería el riesgo mismo. No remite a una teoría, no da cabida a una práctica definida por la interrupción. Interrumpida, prosigue”(BLANCHOT1990:56).Éimportantenoinstantedarecordaçãoarecuperaçãodofragmento,umavezqueatravésdasconexõesentreumeoutrorealizadaspelomemorialista,aslembrançastemcon-tinuidade.PaulRicoeuremseulivroA memória, a história, o esquecimento(2010)refere-seaoprocessodesenvolvidonasassociaçõesrealizadaspelamemóriacomoumamarca,evocadaapartirdaassociaçãodeideias:
Lemos,naProposiçãodoLivroIIdaÉtica,“Danaturezaedaorigemdaalma”:“Seocorpohumanotiversidoafetadoumavezpordoisoumaiscorpossimultaneamente,assimqueaAlmaimaginarmaistardeumdosdois,eleofarálembrar-setambémdosoutros”.Ésobosignodaassociaçãodeideiasqueestásituadaessaespéciedecurto-circuitoentrememóriaeimaginação:seessasduasafecçõesestãoligadasporcontiguidade,evocaruma–portanto,imaginar–éevocaraoutra,portanto,lembrar-sedela.(RICOEUR2007: 25)
Comodizocrítico,aimpressãodeixadaporumcorpo,trazoutroselemen-tosparaalembrançaepossibilitaaconstruçãodasituaçãodopassado.Ovasodepitombascausou impressãoaomeninoe foiguardadoatravésdosanosvividospodendo,nomomentodaescrita,oferecermateriaisparaomemorialistaremontaroacontecimento.VirginiaWoolfemMomentos de vida(1982),aoperguntar-seporondecomeçarorelatodeseupassadodiscorresobrealgunselementossobreosquaisamemóriaseapoia:“Había olores y flores, hojas muertas y castañas, gracias a lo cual se distinguían las estaciones, y cada una tenía innumerables asociaciones, y poder para inundar el cerebro en un segundo”(WOOLF1982:42-43).Estasbasesescolhidascomoosaromaseasflores,podemtrazeraslembrançasdopassado,tornando-asmaisvivasquandosãorecordadas.OmemorialistadeInfância tam-bémutilizaestasestratégiassensoriais,mas,reconheceocarátersubjetivodesteprocedimentoquandodeclaraosdadosoferecidosporseusfamiliares:
Achava-menumavastasala,deparedessujas.Comcertezanãoeravasta,comopre-sumi:visiteioutrassemelhantes,bemmesquinhas.Contudopareceu-meenorme.Defrontealargava-seumpátio,enormetambém,enofimdopátiocresciamárvoresenormes,carregadasdepitombas.Alguémmudouaspitombasemlaranjas.Nãogosteidacorreção:laranjas,provavelmentejávistas,nadasignificavam.(RAMOS2010: 10)
117
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
GracilianoRamosescancaranestasuacolocação,osartifíciosparaarecuper-açãodesuaslembranças.Umapessoaemcertaocasiãoserefereàsfrutascomolaranjas,masomemorialistacontinuacomasuaopinião,assumindoaimportânciadasubjetividadeparaaevocaçãodopassado,poisaspitombaspossuíamumpodermaiordesugestãoatravésdaimagem;eramelasasocupantesdesuasrecordaçõesdurantetantosanos,foramaspitombas,nãoaslaranjas,asresponsáveispelaper-duraçãodamemóriaedestaforma,independentementedeserrealmenteumaououtra,osentidoédadopelasignificação,responsávelpelaperduraçãodamemória,semprerelacionadaaoesquecimentoeporissonecessitandorealizaralgunsmala-barismosparacontinuarpermitindoaexistênciadopassado.
SylviaMolloyemVaria imaginación (2003)desenvolveemsuasmemóriasamesmadiscussãoquandoumamigolheenviaanotíciadademoliçãodacasadeseuspais.Quandovoltaaopaíselaverificapessoalmenteepercebeapenasalgumasalteraçõesnaestrutura:
Cuando a mi regreso hablo con Pablo, le digo cómo se te ocurre mandarme decir que demolieron la casa, si sigue en pie. Pablo insiste, pero está totalmente cambiada, le han agregado casi un edificio entero, de dos pisos, enorme, y tampoco está el patio del frente, ni un árbol enorme del que me acuerdo muy bien. Pero el patio y el sauce estaban detrás de la casa, no adelante, le digo, y la casa está apenas ampliada, sigue igual. Porfía que no, que ya no es la misma casa sino otra, y que el árbol estaba al frente. Me doy cuenta de que es inútil insistir lo contrario. Acaso los dos tengamos razón.(MOLLOY2003:12)
GracilianoRamosescolheaspitombasparareconstruiroseupassado,apesardealgunsafirmaremoequívocodestaconstatação.SylviaMolloydesmistificaestedesencontroentreosdadosdandorazãoaosdois,aelaeaoamigo,considerandoqueoselementosespaciaisparaarecuperaçãodamemóriadependemdeestra-tégiasindividuaispararesgataralgoqueotempoaindanãoconseguiudesfazer.Dentrodestaperspectiva,nãopodemosfalaremverdade,masemalgoconstruídoindividualmenteparamanteraslembranças.Porestemotivo,asdivergênciasex-istentes,pelascontínuasreelaboraçõespararecuperaras lacunasdeixadaspeloesquecimento,queestásempreàespreita.Océrebroporsuavez,procuraoutrosrecursosparamanterasmemóriasasalvo:“Certascoisasexistemporderivaçãoeassociação;repetem-se,impõem-se–e,emletradefôrma,tomamconsistência,ganhamraízes” (RAMOS2010:27).LogonoscapítulosiniciaisdeInfância,Gracilianomostraaoleitoradensidadedealgumasrecordaçõesecomoelasforamformadas.Elasnãoencontram-senolivroaoacasomasfizerampartedeumlongoprocesso,umagrandetravessiaatéchegaraopresentedaescrita.ReginaConradosublinhaasaçõesdoautor:
118
Ascaracterísticasestilísticasdoautor-narradordecerta formadeformama re-produçãoexatadosacontecimentosdopassado–valorizando-osoudepreciando-os-,escolhendo,entrelembrançasnumerosas,aquelasquesequernarrar,recom-pondo,pelaimaginação,outrasparcialmenteesquecidas,enfim,recria-sesobrelembranças.(CONRADO1997:68,grifosdoautor)
Asaçõesdeescolher,recomporerecriarsãoexpostasemInfância apartirdasdiversasreflexõesnoiníciodolivroemostramacomplexidadedestetranscur-so,principalmenteexpondosobreadificuldadede recomposiçãodasprimeirasrecordações.SylviaMolloy,aindaemVaria imaginación(2003),apóscontarumahistóriaacercadatrocadecartasentreamantes,colocaemquestãooseventosapresentadosaoleitor:“Yo había podido ser la mujer que encontró las cartas; o la que las escribió. He cambiado detalles, he inventado otros, he añadido un persona-je. La ficción siempre mejora lo presente”(MOLLOY2003:97).Apósrelatartodaahistória,amemorialistaassumeaspossíveiscriações,dadosemprealheioaoleitor.DiversamenteaNorahLange,quedeixaasreflexõessobreaescritaforadesuasmemórias,Gracilianodiscorrereiteradamente,principalmentenoscapítulosiniciais,sobreosobstáculospararecuperarasrecordaçõeseasestratégiasutilizadaspararesolverseuproblema:
Novasoluçãodecontinuidade.Assombrasmeenvolveram,quaseimpenetráveis,cortadasporvagosclarões:osbrincosea caramorenade sinhaLeopoldina,ogibãodeAmarovaqueiro,osdentesalvosdeJoséBaía,umvultodemeninabonita,minhairmãnatural,vozesásperas,berrosdeanimaisligando-seàfalahumana.OmolequeJoséaindanãotinhaserevelado.Meupaieminhamãeconservavam-segrandes,temerosos,incógnitos.(RAMOS2010:14)
Asfigurasaparecemcomofragmentosecomoapoioparaaestruturaçãodasmemóriaseossonsemitidospelosanimaisconfundem-senapercepçãodacriança.Naseleçãodestasrecordaçõesosanimaissãocolocadosnopatamardosmoradoresdacasa.Comoacriançaaindanãotemdomíniodaspalavras,misturaossonsdosbichosaosdeseusparentes;comoaidadeaindanãopermiteclarasdistinções,asrecordaçõesaparecemincrustadasporelementosindistintos,comorevelaomemorialista:
Desseantigoverãoquemealterouavidarestamligeirostraçosapenas.Enemdelespossoafirmarqueefetivamentemerecorde.Ohábitomelevaacriarumambiente,imaginarfatosaqueatribuorealidade.Semdúvidaasárvoressedespojarameenegreceram,oaçudeestancou,asporteirasdos currais seabriram, inúteis. Ésempreassim.Contudoignoroseasplantasmurchasenegrasforamvistasnessaépocaouemsecasposteriores,eguardonamemóriaumaçudecheio,cobertodeavesbrancaseflores.(RAMOS2010: 7)
119
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
Novamente encontramos a exposição da dificuldadede disjunção dasmemórias,elasficamguardadasemummesmolocal,masaoseremevocadasénecessáriosepará-las:deumtempodesecaháreferênciaaumaçudecheio,asimpressõesdoperíodo sãoposicionadaspeloautor como recortesena junçãodosacontecimentospodeminclusivemisturar-sepaisagensdeépocasdiferentes.Algumasvezesadistinçãoentreaspartesnãoépossível,osfragmentossãoapenasexpostosparamostrarasreminiscênciasdopassado.WanderMeloMirandaressaltaarevelaçãodoautorsobresuaestratégianarrativa:
Nofragmento“Verão”,deInfância,torna-seevidentecomo,paraoautor,nãoin-teressaomeroregistrooutransposiçãofotográficadarealidadeexterna(nocaso,apaisagemfísica),masasua(re)construçãoatravésdosmecanismosconjugadosdaimaginaçãoedamemória.(MIRANDA1992:45)
Amesclaentreelementosimagéticosedorestantedaslembrançascompõeaescritadasmemórias.Enquantoserecordaeescrevesobreosmomentosmar-cantesdainfância,outrasreminiscênciasseinseremnasreflexões,comoacontececomaestruturaçãodeumacantiga.Elanãoserevelaporinteirodeimediato;éanunciadapaulatinamente:
Nessalinguagemcapenga,d.Mariamatracavaumlongoromancedequatrovol-umes,lidocomapuro,relido,pulverizado,econtosquemepareciamabsurdos.Deumdelesressurgemvagasexpressões:tributo, papa-rato,maluquicesquevêm,fogem,tornamavoltar.Tentoarredá-las,pensarnoaçude,nosmergulhões,nascantigasdeJoséBaía,masosdisparatesmeperseguem.Lentamenteadquiremsentidoeumahistorietaseesboça:Acorde,seupapa...(RAMOS2010: 17)
Processoimportanteparaareconstruçãodasmemórias,umacontecimentotrazoutrocomoumacadeiadepensamentos.Porissocomparamosaescritadememóriascomumlabirinto,jáqueaspossibilidadesdereconstruçãosãoinfinitas.Arecordaçãodaprofessoraedoscontoslidostrazpalavrasrecorrentes,levandoàrecomposiçãodacantilena.Umtrechodacantigaevocaoutroeassiméiniciadooprocedimentodeorganizaçãodasmemórias.Comonocasodaspitombasemqueumobjetocarregaconsigoumagamadesignificantes,encontramosnosimplesversoguardado“acordeseupapa”amesmafunção:
Papaquê?Julgoaprincípioquesetratadepapa-figo,vejoquemeengano,lembro-medepapa-rato efinalmentedepapa-hóstia.Épapa-hóstia,semdúvida:Acorde,seupapa...Acorde,seuPapa-hóstia,Nosbraçosde...Novapausa.Trêsouquatrosílabasmanhosasdissimulam-seobstinadas.Despontamalgumas,queexperimentoeabandono,imprestáveis.Enquantoprocurodesviarasideias,aimpertinênciaseinsinuanomeuespírito,arrasta-meparaasalaescura,cheiadeabóboras.Subi-
120
tamenteasfugitivasaparecemecomelasoiníciodanarrativa:AcordeseuPapa-hóstia,/NosbraçosdeFolgazona.(RAMOS 2010: 17-18)
Omemorialistabuscaos elementos formadoresdoenredoe conseguecompletaracanção,modificadainclusivepeloseuhábitodecorrigiralínguafalada:“Levante,seuPapa-hóstia”para“Levante-se,seuPapa-hóstia”.Eapartirdetodasestasrememoraçõessaem,finalmente,osversosdacanção:
Levante,seuPapa-hóstia,DosbraçosdeFolgazona.Venhaveropapa-ratoComumtributonorabo.Faltameiadúziadelinhas,nãochegoareconstituí-las.Seique,tendo-sequeimadoroupasemóveis,ahistóriafindaassim,furiosamente:Acudacomtodososdiabos.(RAMOS 2010: 19)
Oautorteceanarrativaatéahistóriaserconcluída,aindaincompleta,mastotalmente transparentequantoaoprocessodeconstrução.A composiçãodosversosdacantiga,parcialmenteexistente,ocorrepelabasenoprimeiroversore-cordado,umaparteseuneaoutrasedelineiaatotalidadepossível,poisalgumaspartesnãoestãoaoalcancedamemória.Demodosemelhanteconsideramosoespaçocomoabaseinicial,comopoderdeserconservadopordiversosanos.Eapartirdelesurgeahistórianarrada,avidanarrada,projetadaapartirdoolhardequemrecorda.Àmedidaquecrescem,sedesenvolvendoapartirdalembrança,osversosdacantilenatrazemumahistóriacomplexaparaainfância,porfalardeumpadrequemantinharelaçõescomumafieldaigrejaeaspalavrassãoorganizadasparaesconderarealidade,opecadodopadre.Estarecomposiçãoapartirdosfrag-mentosaindaexistenteséclassificadaporGustavoSilveiraRibeiro:
Assim,oscacosquenãosejuntam,aspalavraseideiasquefaltamparacompreenderomundocomsegurançaconstituem-secomomarcasestilísticasdopontodevistainfantil,fazendocomqueadiferençaentreumaeoutrainstâncianarrativadolivrosetornemaisnítidaeassumaumsignificadocomposicionalclaro.(RIBEIRO2012: 57)
Aexposiçãoda(re)composiçãodacantilenarevelaaoleitoragrandedificul-dadenesteprocessodeconstrução,movimentoquenãosefindaenquantoexistealembrança.
***
GracilianoRamoseNorahLangeescolhemestratégiasdistintasparaare-cuperaçãodopassado: Infância nosmostraasindasevindasdoautor, inclusiveaopiniãodeterceiros,quedeixamdúvidasquantoarealexistênciadealgumaslembranças.Omemorialistadeixaclaroqueasubjetividadedecidesobrealegit-
121
abehache - ano 4 - nº 7 - 2º semestre 2014
imidadedasrecordações,ossentimentosescolhemasmemóriasepreenchemospossíveisvaziosformadospelotempo.NorahLangetambémnosexpõeafragili-dadedasrecordações,maselegecomoestratégiacomposicionalaexposiçãodosfragmentossemasinterferênciasdaadultaeatravésdaslacunasexistentesentrevozeseopiniõesdacriançaquesurgemrepentinamente,assimcomoasatitudescotidianas,nosmostraqueéimpossívelamontagemprecisadestequebra-cabeçaincompletoaquedenominamosmemória.
Referências bibliográficas
BLANCHOT,Maurice.La escritura del desastre. Caracas:MonteAvilaLatinoamericana,1990.
CONRADO,ReginaFátimadeAlmeida.O mandacaru e a flor- A autobiografia Infância e os modos de ser Graciliano.SãoPaulo:EditoraArte&Ciência,1997.
FILHO,JoséMouraGonçalves.“Olharememória”in:NOVAES,Adauto...[etal.].O olhar.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1988.
GALLE,Hemult,Org.eOutros.Em primeira pessoa: abordagens de uma teoria da autobio-grafia.SãoPaulo:AnnaBlume;Fapesp;FFLCH,USP,2009.
KAMENSZAIN,Tamara.El texto silencioso. Tradición y vanguardia en la poesía sudamericana. México,D.F.:UniversidadNacionalAutónomadeMéxico,1983.
LANGE,Norah.Cuadernos de infancia.BuenosAires:EditorialLosadaS.A.,1957.
LEBENSZTAYN,Ieda.Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis.SãoPaulo:Hedra,2010.
LEITÃO,Cláudio.Líquido e incerto – memória e exílio em Graciliano Ramos.RiodeJaneiro:EditoradaUniversidadeFederalFluminense,2003.
LIMA,Lezama.Confluencias. Selección de ensayos. LaHabana:EditorialLetrasCubanas,1988.
MOLLOY,Sylvia.Acto de presencia – La escritura autobiográfica en hispanoamérica. México:FCE,1996.
_____.xc.Rosario:BeatrizViterbo,2003.
OCAMPO,Victoria.Autobiografía I – El archipiélago.BuenosAires:EdicionesRevistaSur,1979.
OZ,Amós.De amor e trevas. SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2005.
RAMOS,Graciliano.Infância. RiodeJaneiro:Record,2010.
RIBEIRO,GustavoSilveira.Abertura entre as nuvens. Uma interpretação de Infância, de Graciliano Ramos.SãoPaulo:Annablume,2012.
RICOEUR,Paul.A memória, a história, o esquecimento.Campinas:EditoradaUnicamp,2007.
WOOLF,Virginia.Momentos de vida. RiodeJaneiro:NovaFronteira,1986.