A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do...

13
A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE RESGATE HISTÓRICO DAS MULHERES DO QUILOMBO SÍTIO ARRUDA, NO ESTADO DO CEARÁ MÁRCIA LEYLA DE FREITAS MACÊDO FELIPE 1 JOSÉ WILLAME FELIPE ALVES 2 Introdução A mulher negra, desde a sua chegada ao Brasil, na condição de escrava, deu início a uma luta com o objetivo de sobreviver e ter uma vida digna. As mulheres negras sofrem de tripla discriminação: sexual, social e racial. Portanto, tudo o que se coloca como problemático para a população negra atinge especialmente as mulheres(VALENTE, 1994, p. 56). Silva afirma que: (...) inúmeras pesquisas realizadas nos últimos anos mostram que a mulher negra apresenta menor nível de escolaridade, trabalha mais, porém com salário menor, e ainda são poucas as que conseguem romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial e ascender socialmente (2003, p. 1). No final do século passado, a maioria das mulheres negras desenvolvia suas atividades profissionais como domésticas, o que acontece ainda hoje, demonstrando que a expansão do mercado de trabalho para essas mulheres não acompanhou o ritmo das demais. Corroborando com esse pensamento, Santos afirma que “ser mulher e negra no Brasil significa está inserida num ciclo de marginalização e de discriminação social” (2009, p. 1) A discriminação racial na vida das mulheres negras é constante; apesar disso, constata-se uma luta permanente para superar as dificuldades decorrentes dessa problemática. Com o objetivo de investigar o papel das mulheres negras na organização dos quilombos cearenses, este artigo aborda a importância da memória, enquanto instrumento de resgate histórico. O procedimento se dá pelo uso de fontes orais, como principal metodologia 1 UNISINOS, Doutoranda em História. 2 UNISINOS, Doutorando em História.

Transcript of A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do...

Page 1: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE RESGATE

HISTÓRICO DAS MULHERES DO QUILOMBO SÍTIO ARRUDA, NO ESTADO DO

CEARÁ

MÁRCIA LEYLA DE FREITAS MACÊDO FELIPE1

JOSÉ WILLAME FELIPE ALVES2

Introdução

A mulher negra, desde a sua chegada ao Brasil, na condição de escrava, deu início a

uma luta com o objetivo de sobreviver e ter uma vida digna. “As mulheres negras sofrem de

tripla discriminação: sexual, social e racial. Portanto, tudo o que se coloca como problemático

para a população negra atinge especialmente as mulheres” (VALENTE, 1994, p. 56).

Silva afirma que:

(...) inúmeras pesquisas realizadas nos últimos anos mostram que a mulher negra

apresenta menor nível de escolaridade, trabalha mais, porém com salário menor, e

ainda são poucas as que conseguem romper as barreiras do preconceito e da

discriminação racial e ascender socialmente (2003, p. 1).

No final do século passado, a maioria das mulheres negras desenvolvia suas atividades

profissionais como domésticas, o que acontece ainda hoje, demonstrando que a expansão do

mercado de trabalho para essas mulheres não acompanhou o ritmo das demais.

Corroborando com esse pensamento, Santos afirma que “ser mulher e negra no Brasil

significa está inserida num ciclo de marginalização e de discriminação social” (2009, p. 1) A

discriminação racial na vida das mulheres negras é constante; apesar disso, constata-se uma

luta permanente para superar as dificuldades decorrentes dessa problemática.

Com o objetivo de investigar o papel das mulheres negras na organização dos

quilombos cearenses, este artigo aborda a importância da memória, enquanto instrumento de

resgate histórico. O procedimento se dá pelo uso de fontes orais, como principal metodologia

1 UNISINOS, Doutoranda em História. 2 UNISINOS, Doutorando em História.

Page 2: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

2

empregada para analisar as fundamentações teóricas apresentadas ao longo da história e do

constatado in loco.

A pesquisa desenvolve-se no Quilombo Sítio Arruda, localizado no município de

Araripe, no Estado do Ceará, comunidade tradicional, negra e rural, formada por

remanescentes de escravos, descendentes de três famílias negras: Nascimento, Caetano de

Souza e Pereira da Silva, cujo território foi autorizado pelo Instituto Nacional de Colonização

e Reforma Agrária (INCRA). As mulheres dessa comunidade são ouvidas e seus depoimentos

servem de base para a elaboração desse trabalho.

Também, são utilizados depoimentos, antes colhidos pelo Antropólogo José da Guia

Marques, do INCRA, responsável pela elaboração do Relatório Antropológico de

Reconhecimento e Delimitação do Território, pleiteado pelos Quilombolas.

Fonte Oral e Memória

De acordo com estudos históricos, os laços culturais, que se encontram envolvidos

principalmente nas memórias dos homens e das mulheres, são o que sustentam a vida em

comunidade.

Delgado (2006, p. 135) define a “memória como uma construção sobre o passado,

atualizada e renovada no tempo presente”. Para Halbwachs (1990, p. 75-76) “a memória é

percebida como reconstrução do passado com a ajuda de fatos presentes cujas narrativas dos

outros confirmam essa construção”.

A contribuição de Halbwachs torna-se necessária quando o autor refere-se à memória

como construções dos grupos sociais. São esses grupos que determinam o que pode ser

lembrado e os lugares onde essa memória é preservada, pois a memória coletiva se baseia nas

lembranças que cada pessoa traz enquanto participante de um grupo. Sobre essas lembranças

Halbwachs explica que

Permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate

de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós

vimos. É porque em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros

Page 3: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

3

homens estejam lá (...) porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de

pessoas que não se confundem (HALBWACHS, 1990, p. 26).

Cléia Bosi interpretando as palavras de Bergson reforça que a “lembrança é um

movimento que vem à tona, aflorando o passado e que combina com o processo corporal e

processo da consciência” (BOSI, 1994, p.47).

Pode-se destacar a importância da história oral, no que se refere ao resgate da

memória, baseando-se no trecho que segue:

(...) a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória

nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de

pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como

também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a

memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON,

1992, p. 17)

. A história tradicional normalmente vem privilegiando o relato dos grandes sujeitos e

acontecimentos, ou seja, é a história dos heróis; já a história oral busca dar voz aos pequenos

eventos do cotidiano, que fazem parte de nossas vidas, dá ouvidos aos silenciados, mostrando

o quanto também são sujeitos da história. Assim, uma das características dessa metodologia

está no fato de que ela pode apresentar uma riqueza de detalhes que, muitas vezes, não são

encontrados nos documentos.

Corroborando com esse pensamento Freitas afirma:

(...) entendo que a história oral não é uma outra história, ou uma nova história. Em

meu entender a história oral deve ser vista como uma metodologia de pesquisa, o

que significa pensar nela como articuladora de conteúdo teórico e prático.

Contudo, trabalhar com o relato oral não significa desvalorizar as fontes escritas

ou colocá-las em segundo plano, mas entender que uma complementa a outra.

(FREITAS 2002, p. 2).

Le Goff (1996) posiciona-se afirmando que a memória é o objeto principal no trabalho

com as fontes orais, pois o estudo vem por intermédio da memória das testemunhas. Segundo

Halbwachs (1990), a memória pode dividir-se em duas possibilidades: a memória individual e

a memória coletiva. Ambas relacionam-se e interferem-se entre si.

Page 4: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

4

a memória individual seria aquela que toda pessoa possui, que faz referência ao que

ela viveu ao longo de sua vida, ou seja, faz referência às lembranças individuais. Já

a memória coletiva, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com

elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram

algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto

que não é mais uma consciência pessoal. (HALBWACHS,1990, p.53)

Para Bosi (1987, p. 23), “a memória individual é também social, familiar e grupal; por

meio das falas, resgata-se um tempo, uma cidade, desejos e esperanças”.

De acordo com Nora (1993):

a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a

história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não

se acomoda a detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças vagas,

telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as

transferências, cenas, censuras ou projeções (1993, p. 9).

É importante destacar que, trabalhar com história oral é, acima de tudo, não querer

uma história totalizante, nem tão pouco provar uma verdade absoluta, pois, apesar de sempre

atual, a memória não apresenta exatidão, pode não ter um dado preciso, mas possui dados que,

às vezes, um documento escrito não possui.

Segundo Alessandro Portelli (1998):

as fontes orais revelam as intenções dos feitos, suas crenças, mentalidades,

imaginário e pensamentos referentes às experiências vividas. Ela se impõe como

primordial para compreensão e estudo do tempo presente, pois só através dela

podemos conhecer os sonhos, anseios, crenças e lembranças do passado de pessoas

anônimas, simples, sem nenhum status político ou econômico, mas que viveram os

acontecimentos de sua época (p. 57).

Corroborando com esse pensamento, Burke (2000) descreve a memória como uma

reconstrução do passado, uma vez que lembrá-lo e escrever sobre ele não são atividades

ingênuas e inocentes como se julgava até pouco tempo.

Nesse ponto, lembramos a afirmação de Portelli (2001) de que a história oral se inicia

na oralidade do narrador, mas segue em direção ao texto escrito do historiador, que por meio

desse, deve-se perpetuar impressões, vivências, lembranças de indivíduos que se dispõem a

compartilhar sua memória com a coletividade.

Page 5: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

5

Reforçando esse pensamento, Alberti (2004, p. 22) afirma que “a experiência histórica

do entrevistado torna o passado mais concreto”. Daí a importância da responsabilidade e do

rigor de quem colhe, interpreta e divulga entrevistas.

Outro aspecto que é importante destacar, é que a fonte oral pode ser confrontada com

outros tipos de documentação e analisada não apenas como uma complementação do

documento escrito nos estudos históricos, uma vez que ambos os documentos produzem

informações sobre as transformações das sociedades humanas.

Fonte Oral e a História das Mulheres

Em relação à história oral e a das mulheres, de acordo com Salvatici (2005:29), “desde

os seus primórdios, têm mostrado significativas semelhanças em seus propósitos e objetivos.

Ambas foram produzidas, no que se refere à sua disseminação mais ampla, pelos movimentos

sociais e políticos desenvolvidos a partir dos anos 1960”.

Ao mesmo tempo em que os historiadores orais buscavam inserir as vozes silenciadas,

ou seja, tinham como principal objetivo devolver ao povo sua própria história, contada por

seus próprios autores, as feministas desejaram demonstrar o papel desempenhado por

mulheres, por meio de uma reconstrução do passado.

Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a partir de

mudanças sociais significativas que abalaram a legitimidade da dominação masculina, as

mulheres, que sempre tiveram sua identidade construída pelos homens e a partir deles,

salientando a inferioridade feminina, puderam construir sua identidade por si e a partir de si,

com múltiplas possibilidades.

De acordo com Albano (2007), neste momento do feminismo, muitos estudos

começam a ser realizados nas áreas de sociologia, antropologia, educação, dentre outras,

apontando as desigualdades femininas em todas as áreas, inclusive na jurídica. Assim, são

criadas revistas, organizados eventos e promovidos estudos com temas relativos às condições

da mulher na sociedade, analisando e denunciando a situação de inferioridade, submissão e

opressão a que as mulheres estavam reduzidas.

Page 6: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

6

Nesse sentido, faz-se necessário recordar que a Organização das Nações Unidas –

ONU – declarou os anos de 1976 a 1985 como a Década da Mulher. A instituição dessa

Década foi de inestimável importância na luta feminina por reconhecimento.

O objetivo traçado para essa década era obter plena participação das mulheres na

vida social, econômica e política. Os governos são convocados para promover a

igualdade de homens e mulheres perante a lei, igualdade de acesso à educação, à

formação profissional e ao emprego, além de igualdade de condições no emprego,

inclusive salário e assistência social.3

Na segunda metade do século XIX, no Brasil, as vozes femininas, embora tímidas,

ecoaram reivindicando direito à educação, apontando sua central importância para o

desenvolvimento do país e, sobretudo, para a emancipação das mulheres. A imprensa

feminista, que estava surgindo na época, com vários jornais dirigidos às mulheres, enfatizava

a relevância da educação para as mulheres.

Contribuindo com essa temática, disse Michelle Perrot (2007),

(...) no séc. XVIII ainda se discutia se as mulheres eram seres humanos como os

homens ou se estavam mais próximas dos animais irracionais. Elas tiveram que

esperar até o final do séc. XIX para ver reconhecido o seu direito à educação. (...)

No séc. XX descobriu-se que as mulheres têm uma história (...). Também ficou

claro, finalmente, que a história das mulheres podia ser escrita (PERROT, 2007, p.

11).

Nas décadas de 1920 e 1930, do século XX, o Brasil passou por uma série de

transformações que permitiram que as ideias feministas germinassem. Assim, surgiram

diversas associações, clubes e outras entidades, que passaram a discutir assuntos atinentes às

mulheres. Nos anos trinta e quarenta, o país testemunhou o surgimento de legislação protetora

do trabalho feminino.

Como se pode perceber, para as mulheres entrarem para a história, tiveram que

construir seu espaço com árduas lutas no campo acadêmico, profissional, político

desconstruindo as tradicionais formas da escrita histórica que priorizavam em suas narrativas

sujeitos masculinos.

3 DÉCADA da Mulher. Disponível em:<http://www.redemulher.org.br/mundo.html> Acesso em

30/04/2015.

Page 7: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

7

Gluck, em relação à história oral das mulheres, afirmou que:

(...) é um encontro feminista, mesmo se a entrevistada não for ela própria uma

feminista. É a criação de um novo tipo de material sobre mulheres; é a validação de

experiências femininas; é a descoberta de nossas próprias raízes e o

desenvolvimento de uma continuidade que nos tem sido negada nos relatos

tradicionais. (GLUCK, 2002, p. 5)

Nesta perspectiva, a história oral, vem trazer uma nova valorização das experiências

femininas mediante uma nova forma de abordar a história, revisando modelos de significação.

Segundo Scott:

(...) reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir

contra definições de história e seus agentes já estabelecidos como ”verdadeiros”,

ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que aconteceu ou teve importância

no passado (1992, p. 77)

A autora acima afirma que a história das mulheres deve ser escrita de uma forma

diferente da tradicional, perpassando por uma lógica de investigação distinta do que acontecia

costumeiramente, ou seja, faz-se necessário reescrever a história sob uma perspectiva

feminina, utilizar-se de novas interpretações, permitir que as mulheres atuem como sujeitos da

história, com suas vidas reconstruídas em toda a diversidade e complexidade.

Comunidade Sítio Arruda

Existem diversos assuntos que se fazem presentes no cotidiano das pessoas e uma

variedade de agentes neles envolvidos, e isso faz ampliar as perspectivas de estudo a elas

dedicadas, ao mesmo tempo em que levam o historiador a uma melhor ponderação de como

escolher as pessoas a serem analisadas.

A descoberta de um horizonte mais amplo da memória nos permite situar-nos numa

relação social dinâmica, pois ela é considerada uma realidade onde se mesclam o individual e

o coletivo e nos possibilita a uma compreensão diferenciada daquela transmitida pela

documentação tradicional. Quando se opta por ter como foco as pessoas de uma comunidade

para registrar os fatos da história local, os depoimentos possuem um significado maior, pois é

Page 8: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

8

por meio destes que nos remetemos a uma memória coletiva, apresentando uma paisagem

onde indivíduos e espaços sociais se complementam, apesar das lacunas que muitas vezes

ficam nos depoimentos prestados.

A comunidade quilombola Sítio Arruda está localizada entre os municípios de Araripe

e Salitre, na região sul do estado do Ceará, na chapada do Araripe. É constituída de um

povoado com cerca de 46 famílias com uma média de 180 pessoas, que vivem coletivamente

em regime de partilha e estão distribuídas em uma área de 334,34 hectares. O Quilombo está a

uma distância de 17 km da sede do município de Araripe e a 526 km de Fortaleza, capital do

estado do Ceará.

Essa comunidade tem fácil acesso, saindo da sede do município de Araripe pela

Rodovia CE 292, na direção do vizinho município de Campos Sales, ao percorrer 10 km entra

à esquerda em uma estrada carroçável, depois de percorrer 4 km, dobra à direita, desloca-se

mais 3 km e chega à comunidade. Apesar da maior área da comunidade está na zona rural do

município de Salitre os moradores preferem manter suas relações comerciais, sociais,

educacionais e domicílios eleitorais, por acesso e proximidade, com o município de Araripe.

As mulheres desenvolvem papel fundamental, por meio da manutenção da memória

dos seus ancestrais. Por se tratar de uma comunidade, historicamente marginalizada, poucos

escritos retratam sua história. Nesse aspecto, a utilização das fontes orais tornou-se ainda mais

relevante, para fazer o resgate historiográfico da comunidade.

Para entender a origem da comunidade, que vem de três famílias: Nascimento,

Caetano de Souza, e Pereira da Silva, foram ouvidos depoimentos de senhoras, que trazem na

memória as histórias de seus antepassados.

Dona Raimunda Verônica, moradora do Sítio Arruda e neta do patriarca, confirma em

entrevista a sua origem:

[...] o pai da minha mãe eu conheci [...], o Seu Antonio João do Nascimento. [...]

Quando ele morreu eu tinha dez anos. [...] Conversava com ele assim: que ele dizia

que era do Cabrobó. Sofreu muito lá, aí fugiu de lá e saiu aqui no Coqueiro. [...]

Fugiu de lá com idade de 10 anos, aí chegou, criou-se com o finado Otoni Barreto.

Fugiu de lá por causa – não dizia que não tinha famía – mas acho que é porque ele

vivia desprezado, não tinha famía, se tinha, vivia pelas casas dos outros, fazendo

uma coisa, fazendo outra. Aí ele fugiu, porque quem veve nas casas [dos outros]

foge. Aí foi, fugiu, veio se criar mais o finado Otoni. Ele tinha a famía dele [lá no

Cabrobó], mas foi criado pelas mãos dos outros, por aqui, por acolá, né!

Page 9: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

9

Em continuidade às entrevistas, os descendentes mais velhos da família Caetano de

Souza, contam que a mãe de Seu Antonio Caetano de Sousa ao ficar grávida, migrou da

fazenda Cococi, no município de Parambu, para a cidade de Campos Sales, em busca de

melhores condições de vida, onde teve o seu filho. Por não ter condição financeira para criar o

menino, resolveu dar seu filho recém-nascido para o proprietário do Sítio Coqueiro. Dona

Maria Caetano de Sousa, conhecida como Maria Coruja, prima do senhor Antonio, afirma

que:

[…] Josefa, lá e foi escrava também... adepois ela veio embora pra Campos Sales.

Ela disse que sofreu tanto que quando chegou aí ficou quase fraca... quase morre de

fraqueza [...]. Quando ela saiu de lá [do Cococi] e teve o menino [Caetano], disse

que deu [para o Cel. Otoniel Barreto] pra não morrer de fome. [Quando veio de lá,

do Cococi...] já veio grávida do Caetano, aí não tinha condições de criar, não sabia

nem quem era o pai. [...] Já deu pro modi o coitado ficar sendo “escravo” também,

porque quando ele se criou, se criou na chibata, aquele dali sofreu muito mais do

que ela, foi [a escravidão não era mais permitida pela lei], mas ele foi criado como

“escravo”, foi. O véio Otoniel Barreto botava ele pra correr atrás de boi, era de pé,

era de cavalo, de todo modo, tinha hora que eu chegava lá e tinha desgosto [...].

Percebe-se que as mulheres são grandes detentoras de conhecimento das histórias de

vida do seu povo, por meio da oralidade e práticas culturais mantém os ensinamentos de suas

tradições às novas gerações, não permitindo que caia no esquecimento os seus valores e

crenças historicamente vivenciadas, vindas de gerações anteriores.

A Comunidade Quilombola Sítio Arruda pratica de forma predominante uma tradição

religiosa baseada no catolicismo camponês tradicional que se caracteriza por práticas, rezas e

rituais religiosos que tiveram sua origem na religiosidade medieval portuguesa da época da

colonização. Pratica-se a religião comumente predominando a forma privada ou familiar e, às

vezes, os vizinhos se reúnem para atividades de crenças em suas próprias casas, como

novenas, terços, velórios ou outros rituais. A coordenação dessas atividades fica na

responsabilidade das mulheres.

Um exemplo de crença, praticada principalmente pelas mulheres é dado pela secretária

da Associação Quilombola e professora da Educação Infantil da comunidade, Dona Maria de

Page 10: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

10

Fátima Lourenço Bispo, que afirmou existir na comunidade uma rezadeira com um grande

poder de cura, chegando a restabelecer a saúde até de pessoas com problemas mentais:

[…] tem uma mulher, Dona Francisca Claudina, mulher do Seu Enoque. [Ela é a

curandeira], reza espiritualmente nas pessoas [...]. Até gente de fora vem pra cá,

vem amarrados, loucos... quando chegam aqui, ela reza e o pessoal vai embora

sadio, bom [...] Ela reza espiritualmente e cura. [...] Pessoas que tem deficiência,

que não ta lúcida, chega fora da memória, e ela [faz] volta a pessoa a ficar normal.

[...] Quando é encosto, espírito, essas coisas assim, ela cura.

A própria Dona Francisca Claudina da Conceição (68 anos), em depoimento diz

acreditar que seu dom de cura é de nascença e explica como procede para conseguir curar as

pessoas que lhe procuram com algum problema de saúde ou algum problema espiritual:

Se chegar [uma pessoa com algum problema] e se por acaso for com coisas do

astro, eu acendo uma vela branca, aí tem o guia [...]. Eu sou católica [mas trabalho

com entidades espirituais], se precisar, né [...]. Eu passei foi três meses prostrada.

Ai fui trabalhar numa sessão, num sabe, pra limpar minhas correntes, quando eu

trabalhei mais de ano e limpou minhas correntes, aí eu fiquei rezando. [...]

Reforçando essa crença, Seu Antonio José do Nascimento, relata que “antigamente

havia uma mãe de santo do povoado Facão, conhecida como Dona Amélia, que vinha para a

nossa comunidade de vez em quando realizar rituais de umbanda”. Disse que chegou a bater

‘tambor de Xangô’ nesses rituais. Seu Antonio José afirmou que: “Dona Amélia [...] era do

Facão, aqui perto [...]. O povo ia lá pra ela rezar, muita gente, e ela rezava [...], ela curava”.

Outro ponto importante a ser destacado sobre a comunidade é que, na mesma, não

existe posto de saúde e, diante dessas condições, segundo o antropólogo Marques (2010) a

comunidade busca solucionar parte dos seus problemas de saúde recorrendo à medicina

popular tradicional, baseada na utilização de ervas medicinais, garrafadas, além de outras

práticas populares. Em caso de partos, as gestantes recorrem às parteiras da localidade,

quando as condições do parto permitem.

Uma outra atividade em que as mulheres se destacam é na produção de alimentos. A

principal fonte de renda da comunidade é baseada na agricultura familiar.

Conforme Marques (2010):

As mulheres participam de todas as fases de produção de uma roça, exceto quando

estão grávidas, quando tem crianças pequenas para cuidar ou quando já estão com

Page 11: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

11

idade avançada. As mulheres, portanto, participam da roça na época da limpa, do

plantio e da colheita (p. 92).

Essas mulheres, além das atividades citadas, são responsáveis por todos os afazeres

domésticos, preparam os alimentos para as refeições, lavam as roupas dos familiares, mantém

suas casas limpas e organizadas, são responsáveis pela educação dos filhos, estão prontas para

seus esposos e ainda carregam consigo a preocupação de manterem a memória de seu povo e

de sua comunidade.

Conclusão

Pesquisas em que se utiliza a memória como instrumento de resgate da história de vida

de homens e mulheres, suas experiências, suas práticas cotidianas, desenvolvem um

sentimento identitário à formação da cidadania, bem como o fortalecimento da organização

comunitária.

Em relação às mulheres da Comunidade Quilombola Sítio Arruda, a fonte oral foi

utilizada como principal metodologia para o resgate da memória, por se tratar de

remanescentes de escravos, das quais não havia na historiografia escritos a respeito.

Pode-se perceber que essas mulheres estavam mais articuladas no sentido de destacar

lembranças dos seus antepassados, detalhes do cotidiano, mudanças ocorridas ao longo da

trajetória de vida do grupo, suas práticas religiosas e lutas pela sobrevivência. Tiveram um

papel preponderante na preservação da cultura da comunidade, por trazerem consigo a

preocupação de manterem viva a memória de seu povo.

Diante de todo o exposto, teve-se uma constatação inequívoca, de como a memória

coletiva e as fontes orais podem ser fundamentais não apenas como método de pesquisa em

uma produção pontual, mas, para a própria manutenção da história de um povo, para a

conservação de tradições culturais significativas para a identidade da comunidade, em um

legado constante, que atravessa gerações.

Referências

Page 12: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

12

ALBANO, R. M. Os estudos de gênero ao longo da história. Disponível

em:<http:\\www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/eventos/2006.gt16/GT16_2006_11.

PDF> em: Acesso em: 25 de março de 2016

ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio

Vargas, 2004

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. ª Queiroz; Ed. Da

Universidade de São Paulo, 1987.

BURKE, P. História como memória social. In: _____. Variedades de história cultural. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte:

Autêntica, 2006. 135p.

FREITAS, S. M. de. História oral: possibilidades e procedimentos. São Paulo: Humanitas/

FFLCH/USP: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

GLUCK, S.B . O que há de tão especial sobre as mulheres? História oral das mulheres. In:

ARMITAGE, Susan H.; HART, Patricia; WEATHERMON, Karen. (Eds.) História oral das

mulheres: The “Frontiers” Reader. Lincoln : University of Nebraska Press, 2002, p. 5.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996.

MARQUES, J. da G. Relatório Antropológico de reconhecimento e delimitação do

território da comunidade quilombola Sítio Arruda. Fortaleza: INCRA/SR-02/F/F4 CE,

2010.

MONTEIRO, C. S. As Conquistas e os Paradoxos na Trajetória das Mulheres na Luta

por Reconhecimento, 2008. Dissertação de Mestrado, Universidade Regional Integrada do

Alto Uruguai e das Missões.

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo:

PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito,

política, luta e senso comum. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da

história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.

SANTOS, W. C. da S. A mulher negra brasileira. Revista África e Africanidades – Ano 2 -

n. 5 – Maio, 2009. Disponível em:

Page 13: A IMPORTÂNCIA DA FONTE ORAL COMO INSTRUMENTO DE … · mulheres, por meio de uma reconstrução do passado. Monteiro (2008) reforça que em conexão com o Movimento Feminista e a

13

http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/A_mulher_negra_brasileira.pdf, acesso

em: 20 de março de 2016.

SILVA, Maria Nilza da. Mulheres negras: o preço de uma trajetória de sucesso. PUC/SP,

Dissertação Mestrado, 1999.

SCOTT, J. Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica. Educação e Realidade, Porto

Alegre, n. 16, v. 2, 1992.

THOMPSON, P. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

VALENTE, A. L. E. F. Ser Negro No Brasil Hoje. 11 ed. São Paulo: Moderna, 1994