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  • Coleo Esprito Crtico

    Conselho editorial: Alfredo Bosi

    Antonio Candido Augusto Massi

    Davi Arrigucci Jr. Flora Sssekind

    Gilda de Mello e Souza Roberto Schwarz

    NOTAS DE LITERATURA I

    Organizao da edio alem Rolf Tiedemann

    Traduo e apresentao Jorge de Almeida

    In Livraria rm Duas Cidades

    editora34

    Theodor W. Adorno

  • Livraria Duas Cidades Ltda. Rua Bento Freitas, 158 Centro CEP 01220-000 So Paulo - SP Brasil Tcl/Fax (11) 3331-5134 www.duascidades.com.br [email protected]

    Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

    Copyright Duas Cidades/Editora 34, 2003 Noten zur Literatur Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1974 Organizao da edio alem: Rolf Tiedemann

    A publicao desta obra contou com o apoio do Goethe-Institut Inter Nationes, Bonn, Alemanha.

    A fotocpia de qualquer folha deste livro ilegal e configura urna apropriao indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica: Bracher Malta Produo Grfica

    Reviso: Alberto Martins, Cide Piquet

    1' Edio - 2003

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

    Adorno, Theodor W., 1903-1969 A24I n Notas de literatura I / Theodor W. Adorno;

    traduo e apresentao de Jorge M. B. de Almeida. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.

    176 p. (Coleo Esprito Crtico)

    ISBN 85-7326-285-1) Traduo de: Noten zur Literatur I

    1. Teoria literria. 2. Ensaio alemo.

    I. Almeida, Jorge M. B. de. II. Ttulo. III. Srie.

    CDD - 801

  • ndice

    Nota do tradutor ......................................................... 7

    Notas de literatura I

    O ensaio corno forma ............................................................... 15 Sobre a ingenuidade pica .................................................. 47 Posio do narrador no romance contemporneo ............ 55 Palestra sobre lrica e sociedade ........................................ 65 Em memria de Eichendorff.............................................. 91. A ferida Heine ..................................................................... 127 Revendo o Surrealismo ...................................................... 135 Sinais de pontuao ............................................................ 141. O artista como representante ............................................ 151

    Nota do organizador da edio alem........................... 165 Sobre o autor ........................................................................ 167

  • Nota do tradutor

    Quem se prope a traduzir os ensaios de Theodor Adorno tem de enfrentar o desafio de transpor para outra lngua um texto que, para os prprios leitores alemes, muitas vezes soa quase co-mo lngua estrangeira. Esse estranhamento, como Adorno res-salta em seus ensaios sobre Heine e Eichendorff, uma qualida-de dos escritores que efetivamente refletem sobre a linguagem, na medida em que se recusam a tom-la como algo simplesmente dado, mas sim reconhecem em cada conceito, em cada estrutura gramatical, as diversas possibilidades e camadas de sentido ali sedimentadas pela histria.

    Por isso, o chamado "estilo atonal" do alemo de Adorno no uma simples idiossincrasia, mas uma tentativa de solucio-nar o antigo impasse histrico da dialtica, desde que Hegel a definiu, em uma clebre conversa com Goethe, como o "espri-to de contradio organizado". A extrema preocupao com o modo de organizar a dinmica do pensamento o que torna o texto de Adorno ao mesmo tempo fluente e escarpado. Nada mais coerente com o esprito do ensaio, que o autor destas No-tas de literatura assume como a forma especfica da crtica dia-ltica: "O `como' da expresso deve salvar a preciso sacrificada pela renncia delimitao do objeto, sem todavia abandonar a coisa ao arbtrio de significados conceituais decretados de ma-

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  • Notas de literatura I Nota do tradutor

    neira definitiva". Esta traduo pretendeu, na medida do poss-vel, preservar tal contradio interna ao texto, levando a srio a pretenso adorniana de no separar forma e contedo. Nesse sen-tido, foi necessrio buscar equivalentes, na boa tradio ensas-tica brasileira, para o conjunto de inverses, estruturas retorci-das, pargrafos extensos e jogos semnticos que caracteriza o texto de Adorno.

    Traduzir essa fluncia quase musical das Notas de literatu-ra (uma ambigidade presente no prprio ttulo, urna vez que Noten tambm se refere a partitura, notas musicais), sem entre-tanto descuidar da preciso conceituai, implica uma srie de es-colhas, como por exemplo a de no inundar o texto com notas explicativas, o que iria contra o prprio esprito da exposio dialtica proposta por Adorno, em que a mera informao nun-ca se apresenta como algo isolado do fluxo do pensamento. Ao proceder "metodicamente sem mtodo", o ensaio dialtico se sustenta, a cada pargrafo, pela tensa consonncia entre constru-o e expresso. Por isso, os constantes jogos de palavras devem encontrar, quando possvel, equivalentes em portugus, para que a vivacidade do sentido no se perca, principalmente nos diversos momentos em que a ironia adorniana desmente a imagem carrancuda atribuda ao autor.

    Dois dos ensaios deste primeiro volume de Notas de litera-tura j contavam com excelentes tradues em portugus, reali-zadas na dcada de 1970 por Modesto Carone (Posio do narra-dor no romance contemporneo) e Rubens Rodrigues Torres Fi-lho (Lrica e sociedade). Como tive a sorte e a honra de ter sido formado pela tradio de traduo literria e filosfica que eles representam, me foi permitido incorporar diversas boas solues encontradas por esses dois grandes escritores. Portanto, agradeo mais uma vez a generosidade de meus dois ex-professores, e a compreenso quanto a minha necessidade de traduzir nova-

    mente esses textos, trinta anos depois, em busca de uma dico prpria e da unidade do conjunto da obra. Agradeo tambm ao professor Roberto Schwarz, que contribuiu decisivamente para a traduo de passagens difceis do texto, aliando seu brilhan-tismo de intrprete criatividade com que encontra equivalen-tes em nossa lngua. Devo agradecer ainda a meus colegas do Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada da Universidade de So Paulo, que contriburam com valiosas su-gestes e crticas, prova de que o ideal do trabalho coletivo ain-da sobrevive, resistindo aos que querem inserir definitivamente a universidade na lgica competitiva do mercado. Por fim, um agradecimento especial a Regina Arajo e Alberto Martins, que acompanharam com enorme pacincia, cada um a seu modo, os tropeos e agruras do cotidiano dessa traduo.

    Jorge de Almeida

  • NOTAS DE LITERATURA I

  • Adorno em sua mesa de trabalho no Instituto de Pesquisa Social,

    em Frankfurt (fotografia do Theodor W. Adorno-Archiv).

    dedicado n furta Burger

  • O ensaio como forma

    Destinado a ver o iluminado, no a luz.

    Goethe, Pandora

    Que o ensaio, na Alemanha, esteja difamado como um pro-duto bastardo; que sua forma carea de uma tradio convincen-te; que suas demandas enfticas s tenham sido satisfeitas de modo intermitente, tudo isso j foi dito e repreendido o bastante. "A forma do ensaio ainda no conseguiu deixar para trs o ca-minho que leva autonomia, um caminho que sua irm, a lite-ratura, j percorreu h muito tempo, desenvolvendo-se a partir de uma primitiva e indiferenciada unidade com a cincia, a moral e a arte."1 Mas nem o mal-estar provocado por essa situao, nem o desconforto com a mentalidade que, reagindo contra isso, pre-tende resguardar a arte como uma reserva de irracionalidade, identificando conhecimento com cincia organizada e excluin-do como impuro tudo o que no se submeta a essa anttese, nada disso tem conseguido alterar o preconceito com o qual o ensaio costumeiramente tratado na Alemanha. Ainda hoje, elogiar al-gum como crivain o suficiente para excluir do mbito aca-dmico aquele que est sendo elogiado. Apesar de toda a inteli-gncia acumulada que Simmel e o jovem Lukcs, Kassner e Ben-

    1 Georg von Lukcs, Die Serie und die Formen [A alma e as formas], Berlim, Egon Fleischel, 1911, p. 29.

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  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    jamin confiaram ao ensaio, especulao sobre objetos especfi-cos j culturalmente pr-formados,2 a corporao acadmica s tolera como filosofia o que se veste com a dignidade do univer-sal, do permanente, e hoje em dia, se possvel, com a dignidade do "originrio"; s se preocupa com alguma obra particular do esprito na medida em que esta possa ser utilizada para exem-plificar categorias universais, ou pelo menos tornar o particular transparente em relao a elas. A tenacidade com que esse esque-ma sobrevive seria to enigmtica quanto sua carga afetiva, no fosse ele alimentado por motivos mais fortes do que a penosa lembrana da falta de cultivo de uma cultura que, historicamente, mal conhece o homme de lettres. Na Alemanha, o ensaio provo-ca resistncia porque evoca aquela liberdade de esprito que, aps o fracasso de um Iluminismo cada vez mais morno desde a era leibniziana, at hoje no conseguiu se desenvolver adequadamen-te, nem mesmo sob as condies de uma liberdade formal, es-tando sempre disposta a proclamar como sua verdadeira deman-da a subordinao a uma instncia qualquer. O ensaio, porm, no admite que seu mbito de competncia lhe seja prescrito. Em vez de alcanar algo cientificamente ou criar artisticamente al-guma coisa, seus esforos ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criana, no tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros j fizeram. O ensaio reflete o que amado e odiado, em vez de conceber o esprito como uma criao a

    2 Cf. Lukcs, op. cit., p. 23: "O ensaio sempre fala de algo j formado ou, na melhor das hipteses, de algo que j tenha existido; parte de sua essncia que ele no destaque coisas novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as coisas que em algum momento j foram vivas. E como ele apenas as ordena novamente, sem dar forma a algo novo a partir do que no tem forma, encontra-se vinculado s coisas, tem de sempre dizer a `verdade' sobre

    elas, encontrar expresso para sua essncia". partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe

    so essenciais. Ele no comea com Ado e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim. no onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre os despropsitos. Seus conceitos no so construdos a partir de um princpio primeiro, nem convergem para um fim ltimo. Suas interpretaes no so filologicamente rgidas e ponderadas, so por princpio superinterpretaes, segundo o veredicto j automatizado daquele intelecto vigilante que se pe a servio da estupidez como co-de-guarda contra o esprito. Por receio de qualquer negatividade, rotula-se como perda de tempo o esforo do sujeito para penetrar a suposta objetividade que se esconde atrs da fachada. Tudo muito mais simples, dizem. Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, estigmatizado como algum que desorienta a inteligncia para um devaneio impotente e implica onde no h nada para explicar. Ser um homem com os ps no cho ou com a cabea nas nuvens, eis a alternativa. No entanto, basta deixar-se intimidar uma nica vez pelo tabu de ir alm do que est simplesmente dito em determinada passagem para sucumbir falsa pretenso que homens e coisas nutrem em relao a si mesmos. Compreender, ento, passa a ser apenas o processo de destrinchar a obra em busca daquilo que o autor teria desejado dizer em dado momento, ou pelo menos reconhecer os impulsos psicolgicos individuais que esto indicados no fenmeno. Mas como quase impossvel determinar o que algum pode ter pensado ou sentido aqui e ali, nada de essencial se ganharia com tais consideraes. Os impulsos dos autores se extinguem no contedo objetivo que capturam. No entanto, a

  • pletora de significados encapsulada em cada fenmeno espiritual exige de seu receptor, para se desvelar, justamente aquela espontaneidade da fantasia subjetiva que

  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    condenada em nome da disciplina objetiva. Nada se deixa extrair pela interpretao que j no tenha sido, ao mesmo tempo, in-troduzido pela interpretao. Os critrios desse procedimento so a compatibilidade com o texto e com a prpria interpretao, e tambm a sua capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do objeto. Com esses critrios, o ensaio se aproxima de uma autonomia esttica que pode ser facilmente acusada de ter sido apenas tomada de emprstimo arte, embora o ensaio se diferencie da arte tanto por seu meio especfico, os conceitos, quanto por sua pretenso verdade desprovida de aparncia esttica. isso o que Lukcs no percebeu quando, na carta a Leo Popper que serve de introduo ao livro A alma e as formas, definiu o ensaio como uma forma artstica. No entanto, a mxima positivista segundo a qual os escritos sobre arte no devem jamais almejar um modo de apresentao artstico, ou seja, uma autonomia da forma, no melhor que a concepo de Lukcs. Tambm aqui, como em todos os outros momentos, a tendncia geral positivista, que contrape rigidamente ao sujeito qualquer objeto possvel como sendo um objeto de pesquisa, no vai alm da mera separao entre forma e contedo: como seria possvel, afinal, falar do esttico de modo no esttico, sem qualquer proximidade com o objeto, e no sucumbir vulgaridade intelectual nem se desviar do prprio assunto? Na prtica positivista, o contedo, uma vez fixado conforme o modelo da sentena protocolar, deveria ser indiferente sua forma de exposio, que por sua vez seria convencional e alheia s exigncias do assunto. Para o instinto do purismo cientfico, qualquer impulso expressivo presente na exposio ameaa uma objetividade que supostamente afloraria aps a eliminao do sujeito, colocando tam-

    3 Cf. Lukcs, op. cit., p. 5 ss. bm em risco a prpria integridade do objeto, que seria tanto mais slida quanto menos

    contasse com o apoio da forma, ainda que esta tenha como norma justamente apresentar o objeto de modo puro e sem adendos. Na alergia contra as formas, con-sideradas como atributos meramente acidentais, o esprito cientfico acadmico aproxima-se do obtuso esprito dogmtico. A palavra lanada irresponsavelmente pretende em vo provar sua responsabilidade no assunto, e a reflexo sobre as coisas do esprito torna-se privilgio dos desprovidos de esprito.

    Todos esses frutos do rancor no so meras inverdades. Se o ensaio se recusa a deduzir previamente as configuraes culturais a partir de algo que lhes subjacente, acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais que promovem as celebridades, o sucesso e o prestgio de produtos adaptados ao mercado. As biografias romanceadas e todo tipo de publicao comercial edificante a elas relacionado no so uma mera degenerao, mas a tentao permanente de uma forma cuja suspeita contra a falsa profundidade corre sempre o risco de se reverter em superficialidade erudita. Essa tendncia j se delineia em Sainte-Beuve, de quem certamente deriva o gnero moderno do ensaio, e segue em produtos como as Silhuetas de Herbert Eulenberg, o prottipo alemo de uma enxurrada de subliteratura cultural, at filmes sobre Rembrandt, Toulouse-Lautrec e as Sagradas Escrituras, promovendo a neutralizao das criaes espirituais em bens de consumo, um processo que, na recente histria do esprito, apodera-se sem resistncia de tudo aquilo que, nos pases do bloco oriental, ainda chamado, sem qualquer pudor, de "a herana". Esse processo talvez se manifeste de modo mais evidente em Stefan Zweig, que conseguiu em sua juventude escrever alguns ensaios bastante originais, mas que acabou regredindo, em seu livro sobre Balzac, ao estudo

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  • psicolgico da personalidade criativa. Esse gnero de literatura no critica os

  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    abstratos "conceitos fundamentais", as datas sem sentido e os clichs inveterados, mas sim pressupe implicitamente isso tu-do, como cmplice. Mistura-se o rebotalho da psicologia inter-pretativa com categorias banais derivadas da viso de mundo do filisteu da cultura, tais como "a personalidade" e "o irracional". Ensaios desse tipo acabam se confundindo com o estilo de fo-lhetim que os inimigos da forma ensastica costumam confun-dir com o ensaio. Livre da disciplina da servido acadmica, a prpria liberdade espiritual perde a liberdade, acatando a neces-sidade socialmente pr-formada da clientela. A irresponsabili-dade, em si mesma um momento de qualquer verdade no exau-rida na responsabilidade de perpetuar o status quo, torna-se res-ponsvel pelas necessidades da conscincia estabelecida; ensaios ruins no so menos conformistas do que dissertaes ruins. A responsabilidade, contudo, respeita no apenas autoridades e grmios, mas tambm a prpria coisa.

    A forma, no entanto, tem sua parcela de culpa no fato de o ensaio ruim falar de pessoas, em vez de desvendar o objeto em questo. A separao entre cincia e arte irreversvel. S a in-genuidade do fabricante de literatura no toma conhecimento disso, pois este se considera nada menos que um gnio da admi-nistrao, por sucatear as boas obras de arte e transform-las em obras ruins. Com a objetivao do mundo, resultado da progres-siva desmitologizao, a cincia e a arte se separaram; imposs-vel restabelecer com um golpe de mgica uma conscincia para a qual intuio e conceito, imagem e signo, constituam uma unidade. A restaurao dessa conscincia, se que ela alguma vez existiu, significaria uma recada no caos. Essa conscincia s poderia ser concebida como consumao do processo de mediao, como utopia, tal como desde Kant os filsofos idealistas buscaram imaginar, sob o nome de "intuio intelectual", algo que tem falhado aos freqentes apelos do conhecimento efetivo. Onde a filosofia, mediante emprstimos da literatura, imagina-se capaz de abolir o pensamento objetivante e sua

    histria, enunciada pela terminologia habitual como a anttese entre sujeito e objeto, e espera at mesmo que o prprio Ser ganhe voz em uma poesia que junta Parmnides e Max Jungnickel, ela acaba se aproximando da desgastada conversa fiada sobre cultura. Com malcia rstica travestida de sabedoria ancestral, essa filosofia recusa-se a honrar as obrigaes do pensamento conceitual, que entretanto ela subscreveu assim que utilizou conceitos em suas frases e juzos, enquanto o seu elemento esttico no passa de urna aguada reminiscncia de segunda mo de Hlderlin ou do Expressionismo, e talvez do Jugendstil, pois nenhum pensamento pode se entregar linguagem to ilimitada e cegamente quanto a idia de uma fala ancestral faz supor. Dessa violncia que imagem e conceito praticam um ao outro nasce o jargo da autenticidade, no qual as palavras vibram de comoo, enquanto se calam sobre o que as comoveu. A ambiciosa transcendncia da linguagem para alm do sentido acaba desembocando em um vazio de sentido, que fa-cilmente pode ser capturado pelo mesmo positivismo diante do qual essa linguagem se julga superior. Ela cai nas mos do posi-tivismo justamente pelo vazio de sentido que tanto critica, pois acaba jogando com as mesmas cartas. Sob o jugo de tais desen-volvimentos, essa linguagem, onde ainda ousa mover-se no m-bito das cincias, aproxima-se do artesanato, enquanto o pesqui-sador conserva, em negativo, sua fidelidade esttica, sobretudo quando, em vez de degradar a linguagem mera parfrase de seus nmeros, rebela-se contra a linguagem em geral, utilizando tabelas que confessam sem rodeios a reificao de sua conscincia, encontrando assim uma espcie de forma para essa reificao, sem precisar recorrer a um apologtico emprstimo da arte. verdade que a arte sempre esteve imbricada na tendncia dominante do Iluminismo, incorporando em sua tcnica, des-

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  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    de a Antiguidade, as descobertas cientficas. Mas a quantidade reverte em qualidade. Se a tcnica torna-se um absoluto na obra de arte; se a construo torna-se total, erradicando a expresso, que seu motivo e seu oposto; se a arte pretende tornar-se ime-diatamente cincia, adequando-se aos parmetros cientficos, ento ela sanciona a manipulao pr-artstica da matria, to carente de sentido quanto o Seyn [Ser] dos seminrios filosfi-cos. Assim, a arte acaba se irmanando com a reificao, contra a qual o protesto, mesmo que mudo e reificado, sempre foi e ain-da hoje a funo do que no tem funo: a prpria arte.

    Mas, embora arte e cincia tenham se separado na histria, no se deve hipostasiar o seu antagonismo. A averso a essa mis-tura anacrnica no absolve uma cultura organizada em ramos e setores. Ainda que sejam necessrios, esses setores acabam re-conhecendo institucionalmente a renncia verdade do todo. Os ideais de pureza e asseio, compartilhados tanto pelos empreen-dimentos de uma filosofia veraz, aferida por valores eternos, quanto por uma cincia slida, inteiramente organizada e sem lacunas, e tambm por uma arte intuitiva, desprovida de concei-tos, trazem as marcas de uma ordem repressiva. Passa-se a exigir do esprito um certificado de competncia administrativa, para que ele no transgrida a cultura oficial ao ultrapassar as frontei-ras culturalmente demarcadas. Pressupe-se assim que todo co-nhecimento possa, potencialmente, ser convertido em cincia. As teorias do conhecimento que estabeleciam uma distino entre conscincia pr-cientfica e cientfica sempre conceberam essa di-ferena como sendo unicamente de grau. Que se tenha perma-necido, contudo, na mera afirmao da possibilidade de uma converso, sem que jamais a conscincia viva tenha sido trans-formada seriamente em conscincia cientfica, remete ao carter precrio da prpria transio, a uma diferena qualitativa. A mais simples reflexo sobre a vida da conscincia poderia indicar o quanto alguns conhecimentos, que no se confundem com im-presses arbitrrias, dificilmente podem ser capturados pela rede

    da cincia. A obra de Marcel Proust, to permeada de elemen-tos cientficos positivistas quanto a de Bergson, uma tentativa nica de expressar conhecimentos necessrios e conclusivos so-bre os homens e as relaes sociais, conhecimentos que no po-deriam sem mais nem menos ser acolhidos pela cincia, embora sua pretenso objetividade no seja diminuda nem reduzida a uma vaga plausibilidade. O parmetro da objetividade desses conhecimentos no a verificao de teses j comprovadas por sucessivos testes, mas a experincia humana individual, que se mantm coesa na esperana e na desiluso. Essa experincia con-fere relevo s observaes proustianas, confirmando-as ou refu-tando-as pela rememorao. Mas a sua unidade, fechada indivi-dualmente em si mesma, na qual entretanto se manifesta o todo, no poderia ser retalhada e reorganizada, por exemplo, sob as di-versas personalidades e aparatos da psicologia ou da sociologia. Sob a presso do esprito cientfico e de seus postulados, onipre-sente at mesmo no artista, ainda que de modo latente, Proust se serviu de uma tcnica que copiava o modelo das cincias, para realizar uma espcie de reordenao experimental, com o obje-tivo de salvar ou restabelecer aquilo que, nos dias do individua-lismo burgus, quando a conscincia individual ainda confiava em si mesma e no se intimidava diante da censura rigidamente classificatria, era valorizado como os conhecimentos de um ho-mem experiente, conforme o tipo do extinto homme de lettres, que Proust invocou novamente como a mais alta forma do dile-tante. No passaria pela cabea de ningum, entretanto, dispen-sar como irrelevante, arbitrrio e irracional o que um homem ex-periente tem a dizer, s porque so as experincias de um indi-vduo e porque no se deixam facilmente generalizar pela cin-cia. Mas aquela parte de seus achados que escorrega por entre as

  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    malhas do saber cientfico escapa com certeza prpria cincia. Enquanto cincia do esprito, a cincia deixa de cumprir aquilo que promete ao esprito: iluminar suas obras desde dentro. O jovem escritor que queira aprender na universidade o que seja urna obra de arte, urna forma da linguagem, a qualidade estti-ca, e mesmo a tcnica esttica, ter apenas, na maioria dos ca-sos, algumas indicaes esparsas sobre o assunto, ou ento rece-ber informaes tornadas j prontas da filosofia em circulao naquele momento, que sero aplicadas de modo mais ou menos arbitrrio ao teor das obras em questo. Caso ele se volte para a esttica filosfica, ser entulhado com proposies to abstratas que nada dizem sobre as obras que ele deseja compreender, nem se identificam, na verdade, com o contedo que, bem ou mal, ele est buscando. Mas a diviso de trabalho do kosmos noetiks em arte e cincia no a nica responsvel por tudo isso; nem as suas linhas de demarcao podem ser postas de lado pela boa vontade e por um planejamento superior. Pelo contrrio, o es-prito, irrevogavelmente modelado segundo os padres da domi-nao da natureza e da produo material, entrega-se recorda-o daquele estgio superado, mas que ainda traz a promessa de um estgio futuro, a transcendncia das relaes de produo enrijecidas. Assim, o procedimento especializado se paralisa jus-tamente diante de seus objetos especficos.

    Em relao ao procedimento cientfico e sua fundamenta-o filosfica enquanto mtodo, o ensaio, de acordo com sua idia, tira todas as conseqncias da crtica ao sistema. Mesmo as doutrinas empiristas, que atribuem experincia aberta e no antecipvel a primazia sobre a rgida ordem conceitual, perma-necem sistemticas na medida em que definem condies para o conhecimento, concebidas de um modo mais ou menos cons-tante, e desenvolvem essas condies em um contexto o mais ho-mogneo possvel. Desde Bacon ele prprio um ensasta o empirismo, no menos que o racionalismo, tem sido um "m-todo". Nos processos do pensamento, a dvida quanto ao

    direito incondicional do mtodo foi levantada quase to-somente pelo ensaio. Este leva em conta a conscincia da no-identidade, mesmo sem express-la; radical no no-radicalismo, ao se abster de qualquer reduo a um princpio e ao acentuar, em seu carter fragmentrio, o parcial diante do total. "O grande Sieurde Mon-taigne talvez tenha sentido algo semelhante quando deu a seus escritos o admiravelmente belo e adequado ttulo de Essais. Pois a modstia simples dessa palavra uma altiva cortesia. O ensasta abandona suas prprias e orgulhosas esperanas, que tantas vezes o fizeram crer estar prximo de algo definitivo: afinal, ele nada tem a oferecer alm de explicaes de poemas dos outros ou, na melhor das hipteses, de suas prprias idias. Mas ele se conforma ironicamente a essa pequenez, eterna pequenez da mais profunda obra do pensamento diante da vida, e ainda a sublinha com sua irnica modstia."4 O ensaio no segue as regras do jogo da cincia e da teoria organizadas, segundo as quais, como diz a formulao de Spinoza, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das idias. Como a ordem dos conceitos, urna ordem sem lacunas, no equivale ao que existe, o ensaio no almeja uma construo fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Plato, segundo a qual o mutvel e o efmero no seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustia cometida contra o transitrio, pela qual este novamente condenado no conceito. O ensaio recua, assustado, diante da violncia do dogma, que atribui dignidade ontolgica ao resultado da abstrao, ao conceito invarivel no tempo, por oposio ao individual nele subsumido. A falcia de

    4 Lukcs, op. cit., p. 21.

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  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    que a ordo idearum seria a ordo rerum fundada na insinuao de que algo mediado seja no mediado. Assim como difcil pensar o meramente factual sem o conceito, porque pens-lo sig-nifica sempre j conceb-lo, tampouco possvel pensar o mais puro dos conceitos sem alguma referncia facticidade. Mesmo as criaes da fantasia, supostamente liberadas do espao e do tempo, remetem existncia individual, ainda que por deriva-o. por isso que o ensaio no se deixa intimidar pelo depra-vado pensamento profundo, que contrape verdade e histria como opostos irreconciliveis. Se a verdade tem, de fato, um ncleo temporal, ento o contedo histrico torna-se, em sua plenitude, um momento integral dessa verdade; o a posteriori torna-se concretamente um a priori, e no apenas genericamente, como Fichte e seus seguidores o exigiam. A relao com a experincia e o ensaio confere experincia tanta substncia quanto a teoria tradicional s meras categorias uma relao com toda a histria; a experincia meramente individual, que a conscincia toma como ponto de partida por sua proximidade, ela mesma j mediada pela experincia mais abrangente da humanidade histrica; um mero auto-engano da sociedade e da ideologia individualistas conceber a experincia da humanidade histrica como sendo mediada, enquanto o imediato, por sua vez, seria a experincia prpria a cada um. O ensaio desafia, por isso, a noo de que o historicamente produzido deve ser menosprezado como objeto da teoria. A distino entre uma filosofia primeira e uma mera filosofia da cultura, que pressuporia aquela e se desenvolveria a partir de seus fundamentos, uma tentativa de racionalizar teoricamente o tabu sobre o ensaio, mas essa distino no sustentvel. Um procedimento do esprito que honra como cnone a separao entre o temporal e o intemporal perde toda a sua autoridade. Nveis mais elevados de abstrao no outorgam ao pensamento uma maior solenidade nem um

    teor metafsico; pelo contrrio, o pensamento torna-se voltil com o avano da abstrao, e o ensaio se prope precisamente a reparar uma parte dessa perda. A objeo corrente contra ele, de que seria fragmentrio e contingente, postula por si mesma a to-talidade como algo dado, e com isso a identidade entre sujeito e objeto, agindo como se o todo estivesse a seu dispor. O ensaio, porm, no quer procurar o eterno no transitrio, nem destil-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitrio. A sua fraqueza testemunha a prpria no-identidade, que ele deve expressar; tes-temunha o excesso de inteno sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueada pela diviso do mundo entre o eterno e o tran-sitrio. No ensaio enftico, o pensamento se desembaraa da idia tradicional de verdade.

    Desse modo, o ensaio suspende ao mesmo tempo o conceito tradicional de mtodo. O pensamento profundo por se aprofundar em seu objeto, e no pela profundidade com que capaz de reduzi-lo a uma outra coisa. O ensaio lida com esse critrio de maneira polmica, manejando assuntos que, segundo as regras do jogo, seriam considerados dedutveis, mas sem buscar a sua deduo definitiva. Ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha. No insiste caprichosamente em alcanar algo para alm das mediaes e estas so mediaes histricas, nas quais est sedimentada a sociedade como um todo , mas busca o teor de verdade como algo histrico por si mesmo. No pergunta por nenhum dado primordial, para transtorno da sociedade socializada [vergesellschafteten Gesellschaft], que justamente por no tolerar o que no traz a sua marca, tolera menos ainda o que lembra a sua prpria onipresena, citando necessariamente como seu complemento ideolgico aquela natureza que sua prpria prxis eliminou por completo. O ensaio denuncia silenciosamente a iluso de que o pensamento possa escapar do mbito da thesis, a cultu-

  • Notas de literatura I O ensaio como forma

    ra, para o mbito da physis, a natureza. Fascinado pelo olhar fixo daquilo que confessadamente derivado, as configuraes do esprito, o ensaio honra a natureza ao confirmar que ela no existe mais para os homens. O seu alexandrinismo uma resposta iluso de que, por sua mera existncia, lilases e rouxinis, onde a tessitura universal ainda permite sua sobrevivncia, podem nos convencer de que a vida ainda vive. O ensaio abandona o cortejo real em direo s origens, que conduz apenas ao mais derivado, ao Ser, ideologia que duplica o que de qualquer modo j existe, sem que, no entanto, desaparea completamente a idia de imediatidade, postulada pelo prprio sentido da mediao. Para o ensaio, todos os graus do mediado so imediatos, at que ele comece sua reflexo.

    Assim corno o ensaio renega os dados primordiais, tambm se recusa a definir os seus conceitos. A filosofia foi capaz de uma crtica completa da definio, sob os mais diferentes aspectos: em Kant, em Hegel, em Nietzsche. Mas a cincia jamais se apropriou dessa crtica. Enquanto o movimento que surge com Kant, vol-tado contra os resduos escolsticos no pensamento moderno, substitui as definies verbais pela concepo dos conceitos a partir do processo em que so gerados, as cincias particulares ainda insistem, para preservar a imperturbvel segurana de suas operaes, na obrigao pr-crtica de definir os conceitos. Nesse ponto, os neopositivistas, que consideram o mtodo cientfico um sinnimo de filosofia, acabam concordando com a escolstica. O ensaio, em contrapartida, incorpora o impulso antisistemtico em seu prprio modo de proceder, introduzindo sem cerimnias e "imediatamente" os conceitos, tal como eles se apresentam. Estes s se tornam mais precisos por meio das relaes que engendram entre si. Pois mera superstio da cincia propedutica pensar os conceitos como intrinsecamente indeterminados, como algo que precisa de definio para ser determi nado. A cincia necessita da concepo do conceito como uma tabula rasa para consolidar a sua pretenso de

    autoridade, para mostrar-se como o nico poder capaz de sentar-se mesa. Na verdade, todos os conceitos j esto implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significaes e, por ser ele prprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar o relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflexo tal como j se encontram inconscientemente denominados na linguagem. Na fenomenologia, isso pressentido pelo procedimento da anlise de significados, s que este transforma em fetiche a relao dos conceitos com a linguagem. O ensaio to ctico diante desse procedimento quanto diante da definio. Sem apologia, ele leva em conta a objeo de que no possvel saber com certeza os sentidos que cada um encontrar sob os conceitos. Pois o ensaio percebe claramente que a exigncia de definies estritas serve h muito tempo para eliminar, mediante manipulaes que fixam os significados conceituais, aquele aspecto irritante e perigoso das coisas, que vive nos conceitos. Mas o ensaio no pode, contudo, nem dispensar os conceitos universais mesmo a linguagem que no fetichiza o conceito incapaz de dispens-los , nem proceder com eles de maneira arbitrria. A exposio , por isso, mais importante para o ensaio do que para os procedimentos que, separando o mtodo do objeto, so indiferentes exposio de seus contedos objetivados. O "como" da expresso deve salvar a preciso sacrificada pela renncia delimitao do objeto, sem todavia abandonar a coisa ao arbtrio de significados conceituais decretados de maneira definitiva. Nisso, Benjamin foi o mestre insupervel. Essa preciso no pode, entretanto, permanecer ato-mstica. O ensaio exige, ainda mais que o procedimento defini-dor, a interao recproca de seus conceitos no processo da ex-perincia intelectual. Nessa experincia, os conceitos no formam

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  • Notas de literatura I

    um continuum de operaes, o pensamento no avana em um sentido nico; em vez disso, os vrios momentos se entrelaam como num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a fe-cundidade dos pensamentos. O pensador, na verdade, nem se-quer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experincia intelectual, sem desemaranh-la. Embora o pensamento tradi-cional tambm se alimente dos impulsos dessa experincia, ele acaba eliminando, em virtude de sua forma, a memria desse pro-cesso. O ensaio, contudo, elege essa experincia como modelo, sem entretanto, como forma refletida, simplesmente imit-la; ele a submete mediao atravs de sua prpria organizao conceitual; o ensaio procede, por assim dizer, metodicamente sem mtodo.

    O modo como o ensaio se apropria dos conceitos seria, an-tes, comparvel ao comportamento de algum que, em terra es-trangeira, obrigado a falar a lngua do pas, em vez de ficar bal-buciando a partir das regras que se aprendem na escola. Essa pes-soa vai ler sem dicionrio. Quando tiver visto trinta vezes a mes-ma palavra, em contextos sempre diferentes, estar mais segura de seu sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados, geralmente estreita demais para dar conta das alteraes de sentido em cada contexto e vaga demais em relao s nuances inalterveis que o contexto funda em cada caso. verdade que esse modo de aprendizado permanece exposto ao erro, e o mesmo ocorre com o ensaio enquanto forma; o preo de sua afinidade com a experincia intelectual mais aberta aquela falta de segurana que a norma do pensamento estabelecido teme como a prpria morte. O ensaio no apenas negligencia a certeza indubitvel, como tambm renuncia ao ideal dessa certeza. Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para alm de si mesmo, e no pela obsesso em buscar seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados. O que ilumina

    O ensaio como forma

    seus conceitos um terminus ad quem, que permanece oculto ao prprio ensaio, e no um evidente terminus a guo. Assim, o pr-prio mtodo do ensaio expressa sua inteno utpica. Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a carregar os outros, cada conceito deve ser articulado por suas configuraes com os demais. No ensaio, elementos discretamente separados entre si so reunidos em um todo legvel; ele no constri nenhum an-daime ou estrutura. Mas, enquanto configurao, os elementos se cristalizam por seu movimento. Essa configurao um campo de foras, assim como cada formao do esprito, sob o olhar do ensaio, deve se transformar em um campo de foras.

    O ensaio desafia gentilmente os ideais da clara et distincta perceptio e da certeza livre de dvida. Ele deveria ser interpreta-do, em seu conjunto, como um protesto contra as quatro regras estabelecidas pelo Discours de la mthode de Descartes, no incio da moderna cincia ocidental e de sua teoria. A segunda dessas regras, a diviso do objeto em "tantas parcelas quantas possveis e quantas necessrias fossem para melhor resolver suas dificuldades",5 esboa a anlise de elementos, sob cujo signo a teoria tradicional equipara os esquemas conceituais de organizao estrutura do Ser. Mas os artefatos, que constituem o objeto do ensaio, resistem anlise de elementos e somente podem ser construdos a partir de sua idia especfica; no foi por acaso que Kant, sob esse aspecto, tratou de modo anlogo as obras de arte e os organismos, embora ao mesmo tempo os tenha diferenciado, sem nenhuma concesso ao obscurantismo romntico. A totalidade no deve ser hipostasiada como algo primordial, mas

    5 Ren Descartes, Discurso do mtodo. [Traduo brasileira de Bento Prado Jr. in Os Pensadores, So Paulo, Abril Cultural, 1983.]

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  • Notas de literatura I

    tampouco se deve hipostasiar os produtos da anlise, os elemen-tos. Diante de ambos, o ensaio se orienta pela idia de urna ao recproca, que a rigor no tolera nem a questo dos elementos nem a dos elementares. Os momentos no devem ser desenvol-vidos puramente a partir do todo, nem o todo a partir dos mo-mentos. O todo mnada, e entretanto no o ; seus momen-tos, enquanto momentos de natureza conceitual, apontam para alm do objeto especfico no qual se renem. Mas o ensaio no os acompanha at onde eles poderiam se legitimar para alm do objeto especfico: se o fizesse, cairia na m infinitude. Pelo con-trrio, ele se aproxima tanto do hic et nunc do objeto, que este dissociado nos momentos que o fazem vivo, em vez de ser me-ramente um objeto.

    A terceira regra cartesiana, "conduzir por ordem meus pen-samentos, comeando pelos objetos mais simples e mais fceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, at o conhecimento dos mais compostos", contradiz brutalmente a forma ensastica, na medida em que esta parte do mais comple-xo, no do mais simples e j previamente familiar. A forma do ensaio preserva o comportamento de algum que comea a es-tudar filosofia e j possui, de algum modo, uma idia do que o espera. Ele raramente iniciar seus estudos com a leitura dos au-tores mais simples, cujo common sense costuma patinar na super-fcie dos problemas onde deveria se deter; em vez disso, ir pre-ferir o confronto com autores supostamente mais difceis, que projetam retrospectivamente sua luz sobre o simples, iluminan-do-o como uma "posio do pensamento em relao objetivi-dade". A ingenuidade do estudante que no se contenta seno com o difcil e o formidvel mais sbia do que o pedantismo maduro, cujo dedo em riste adverte o pensamento de que seria melhor entender o mais simples antes de ousar enfrentar o mais complexo, a nica coisa que o atrai. Essa postergao do conhe-

    O ensaio como forma

    cimento serve apenas para impedi-lo. Contrapondo-se ao con-vem da inteligibilidade, da representao da verdade como um conjunto de efeitos, o ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a complexidade que lhe prpria, tornan-do-se um corretivo daquele primitivismo obtuso, que sempre acompanha a ratio corrente. Se a cincia, falseando segundo seu costume, reduz a modelos simplificadores as dificuldades e com-plexidades de urna realidade antagnica e monadologicamente cindida, diferenciando posteriormente esses modelos por meio de um pretenso material, ento o ensaio abala a iluso desse mun-do simples, lgico at em seus fundamentos, uma iluso que se presta comodamente defesa do status quo. O carter diferen-ciado do ensaio no nenhum acrscimo, mas sim o seu meio. O'pensamento estabelecido gosta de atribuir a diferenciao mera psicologia do sujeito cognoscente, acreditando com isso ex-tinguir suas obrigaes para com ela. As retumbantes denncias cientficas contra o excesso de sutileza no se dirigem, na verda-de, ao mtodo presunoso e indigno de confiana, mas ao car-ter desconcertante da coisa, que este deixa transparecer.

    A quarta regra cartesiana, "fazer em toda parte enumeraes to completas e revises to gerais" que se esteja certo de "nada omitir", o princpio sistemtico propriamente dito, reaparece sem nenhuma alterao na polmica de Kant contra o pensamento "rapsdico" de Aristteles. Essa regra corresponde acusao de que o ensaio, segundo um linguajar de mestre-escola, no seria "exaustivo", ao passo que todo objeto, e certamente o objeto espiritual, comporta em si mesmo aspectos infinitamente diversos, cabendo a deciso sobre os critrios de escolha apenas inteno do sujeito do conhecimento. A "reviso geral" s seria possvel se fosse estabelecido de antemo que o objeto a ser examinado capaz de se entregar sem reservas ao exame dos conceitos, sem deixar nenhum resto que no possa ser antecipado a

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  • Notas de literatura I

    partir desses conceitos. A regra da enumerao completa das par-tes individuais pretende, porm, como conseqncia dessa pri-meira hiptese, que o objeto possa ser exposto em uma cadeia contnua de dedues: urna suposio prpria filosofia da iden-tidade. Na forma de instrues para a prtica intelectual, essa regra cartesiana, assim como a exigncia de definies, sobrevi-veu ao teorema racionalista no qual se baseava; pois tambm a cincia aberta empiria requer revises abrangentes e continui-dade de exposio. Com isso, o que em Descartes era conscin-cia intelectual, que vigiava a necessidade de conhecimento, trans-forma-se na arbitrariedade de um ")Trame of reference"; na arbi-trariedade de urna axiomtica que precisa ser estabelecida desde o incio para satisfazer a necessidade metodolgica e garantir a plausibilidade do todo, sem que ela mesma possa demonstrar sua validade ou evidncia. Na verso alem, isso corresponderia ao carter arbitrrio de um "projeto" [Entwurf], que simplesmente escamoteia as suas condies subjetivas com o pathos de se diri-gir ao prprio Ser. A exigncia de continuidade na conduo do pensamento tende a prejulgar a coerncia do objeto, sua harmo-nia prpria. A exposio continuada estaria em contradio com o carter antagnico da coisa, enquanto no determinasse a con-tinuidade como sendo, ao mesmo tempo, uma descontinuidade. No ensaio como forma, o que se anuncia de modo inconsciente e distante da teoria a necessidade de anular, mesmo no procedimento concreto do esprito, as pretenses de completude e de continuidade, j teoricamente superadas. Ao se rebelar esteticamente contra o mtodo mesquinho, cuja nica preocupao no deixar escapar nada, o ensaio obedece a um motivo da crtica epistemolgica. A concepo romntica do fragmento como uma composio no consumada, mas sim levada atravs da auto-reflexo at o infinito, defende esse motivo antiidealista no prprio seio do idealismo. O ensaio tambm no deve, em seu

    O ensaio como forma

    modo de exposio, agir como se tivesse deduzido o objeto, no deixando nada para ser dito. inerente forma do ensaio sua prpria relativizao: ele precisa se estruturar como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. O ensaio pensa em frag-mentos, uma vez que a prpria realidade fragmentada; ele en-contra sua unidade ao busc-la atravs dessas fraturas, e no ao aplainar a realidade fraturada. A harmonia unssona da ordem lgica dissimula a essncia antagnica daquilo sobre o que se impe. A descontinuidade essencial ao ensaio; seu assunto sempre um conflito em suspenso. Enquanto concilia os concei-tos uns com os outros, conforme as funes que ocupam no pa-ralelogramo de foras dos assuntos em questo, o ensaio recua diante do conceito superior, ao qual o conjunto deveria se subor-dinar; seu mtodo sabe que impossvel resolver o problema para o qual este conceito superior simula ser a resposta, mas apesar disso tambm busca uma soluo. Como a maior parte das terminologias que sobrevivem historicamente, a palavra "tentativa" [ Versuch] , na qual o ideal utpico de acertar na mosca se mescla conscincia da prpria falibilidade e transitoriedade, tambm diz algo sobre a forma, e essa informao deve ser levada a srio justamente quando no conseqncia de uma inteno programtica, mas sim uma caracterstica da inteno tateante. O ensaio deve permitir que a totalidade resplandea em um trao parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presena dessa totalidade tenha de ser afirmada. Ele corrige o aspecto contingente e isolado de suas intuies na medida em que estas se multiplicam, confirmam e delimitam, em seu prprio percurso ou no mosaico de suas relaes com outros ensaios, mas no na abstrao que deduz suas peculiaridades. "Assim se diferencia, portanto, um ensaio de um tratado. Escreve ensaisticamente quem compe experimentando; quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete reflexo; quem o ataca

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  • de diversos lados e rene no olhar de seu esprito aquilo que v, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as condies geradas pelo ato de escrever."6 O mal-estar suscitado por esse procedimento, a sensao de que ele poderia prosseguir a bel-prazer indefinidamente, tem sua verdade e sua inverdade. Sua verdade porque o ensaio, de fato, no chega a uma concluso, e essa sua incapacidade reaparece como pardia de seu prprio a priori; a ele imputada a culpa que na verdade cabe s formas que apagam qualquer vestgio de arbitrariedade. Mas esse seu mal-estar no verdadeiro, porque a constelao do ensaio no to arbitrria quanto pensa aquele subjetivismo filosfico que desloca para a ordem conceitual a coero prpria coisa. O que determina o ensaio a unidade de seu objeto, junto com a unidade de teoria e experincia que o objeto acolhe. O carter aberto do ensaio no vago como o do nimo e do sentimento, pois delimitado por seu contedo. Ele resiste idia de "obra-prima", que por sua vez reflete as idias de criao e totalidade. A sua forma acompanha o pensamento crtico de que o homem no nenhum criador, de que nada humano pode ser criao. Sempre referido a algo j criado, o ensaio jamais se apresenta como tal, nem aspira a uma amplitude cuja totalidade fosse comparvel da criao. Sua totalidade, a unidade de uma forma construda a partir de si mesma, a totalidade do que no total, uma totalidade que, tambm como forma, no afirma a tese da identidade entre pensamento e coisa, que rejeita como contedo. Libertando-se da compulso identidade, o ensio presenteado, de vez em quando, com o que escapa ao pensamento oficial: o momento do indelvel, da cor prpria que no pode

    6 Max Bense, ber den Essay und seine Prosa" [Sobre o ensaio e sua pro-sai, Merkvr, I (1947), p. 418. ser apagada. Em Simmel, certos termos

    estrangeiros cachet, attitude revelam essa inteno, mesmo que ela no tenha sido tratada teoricamente.

    O ensaio , ao mesmo tempo, mais aberto e mais fechado do que agradaria ao pensamento tradicional. Mais aberto na me-dida em que, por sua disposio, ele nega qualquer sistemtica, satisfazendo a si mesmo quanto mais rigorosamente sustenta essa negao; os resduos sistemticos nos ensaios, como por exem-plo a infiltrao, nos estudos literrios, de filosofemas j acaba-dos e de uso disseminado, que deveriam conferir respeitabilida-de aos textos, valem to pouco quanto as ti ivialidades psicol-gicas. Mas o ensaio tambm mais fechado, porque trabalha enfaticamente na forma da exposio. A conscincia da no-iden-tidade entre o modo de exposio e a coisa impe exposio um esforo sem limites. Apenas nisso o ensaio semelhante arte; no resto, ele necessariamente se aproxima da teoria, em ra-zo dos conceitos que nele aparecem, trazendo de fora no s seus significados, mas tambm seus referenciais tericos. Mas certa-mente o ensaio cauteloso ao se relacionar com a teoria, tanto quanto com o conceito. Ele no pode ser deduzido apoditica-mente da teoria a falha cardeal de todos os ltimos trabalhos ensasticos de Lukcs nem ser uma prestao de snteses fu-turas. Quanto mais a experincia espiritual busca se consolidar como teoria, agindo como se tivesse em mos a pedra filosofal, tanto mais ela corre o risco do desastre. Apesar disso, a expe-rincia espiritual, em virtude de seu prprio sentido, ainda se es-fora para alcanar uma tal objetivao. Essa antinomia se reflete no ensaio. Assim como ele absorve conceitos e experincias externos, tambm absorve teorias. S que a sua relao com elas no uma relao de "ponto de vista". Se no ensaio essa ausncia de ponto de vista deixa de ser ingnua e dependente da proeminncia dos objetos; se o ensaio, em vez disso, aproveita-se do

    Notas de literatura I

    O ensaio como forma

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  • Notas de literatura I

    relacionamento com seus objetos como um antdoto contra a maldio de todo princpio, ento ele efetiva, quase como par-dia, a polmica que o pensamento, de outro modo impotente, trava contra a filosofia do mero "ponto de vista". O ensaio de-vora as teorias que lhe so prximas; sua tendncia sempre a de liquidar a opinio, incluindo aquela que ele toma como ponto de partida. O ensaio continua sendo o que foi desde o incio, a forma crtica par excellence; mais precisamente, enquanto crti-ca imanente de configuraes espirituais e confrontao daqui-lo que elas so com o seu conceito, o ensaio crtica da ideolo-gia. "O ensaio a forma da categoria crtica de nosso esprito. Pois quem critica precisa necessariamente experimentar, precisa criar condies sob as quais um objeto pode tornar-se novamente visvel, de um modo diferente do que pensado por um autor; e sobretudo preciso pr prova e experimentar os pontos fracos do objeto; exatamente este o sentido das sutis variaes experimentadas pelo objeto nas mos de seu crtico."7 Quando o ensaio acusado de falta de ponto de vista e de relativismo, porque no reconhece nenhum ponto de vista externo a si mesmo, o que est em jogo justamente aquela concepo de verdade como algo "pronto e acabado", corno uma hierarquia de conceitos, concepo destruda por Hegel, que no gostava de pontos de vista: aqui o ensaio toca o seu extremo, a filosofia do saber absoluto. Ele gostaria de poder curar o pensamento de sua arbitrariedade, ao incorpor-la de modo reflexionante ao, prprio procedimento, em vez de mascar-la como imediatidade.

    certo que essa filosofia permaneceu atrelada incoern-cia de criticar o abstrato conceito supremo, o mero "resultado", em nome do processo em si mesmo descontnuo, e ao mesmo

    7 Bense, op. cit., p. 420. O ensaio como forma

    tempo continuar falando, segundo o costume idealista, em "m-todo dialtico". Por isso, o ensaio mais dialtico do que a dia-ltica, quando esta discorre sobre si mesma. Ele toma a lgica hegeliana ao p da letra: a verdade da totalidade no pode ser jogada de modo imediato contra os juzos individuais, nem a verdade pode ser limitada ao juzo individual; a pretenso da sin-gularidade verdade deve, antes, ser tomada literalmente, at que sua inverdade torne-se evidente. O aspecto no completamente resolvido de cada detalhe ensastico, seu carter audacioso e an-tecipatrio, acaba atraindo outros detalhes como sua negao; a inverdade, na qual o ensaio conscientemente se deixa enredar, o elemento de sua verdade. Sem dvida, o inverdadeiro tambm reside em sua mera forma, na medida em que o ensaio se refere a entidades culturalmente pr-formadas, portanto derivadas, como se estas fossem entidades em si. No entanto, quanto mais energicamente o ensaio suspende o conceito de algo primordial, recusando-se a desfiar a cultura a partir da natureza, tanto mais radicalmente ele reconhece a essncia natural da prpria cultura. Nela se perpetua, at hoje, a cega conexo natural, o mito; e o ensaio reflete justamente sobre isso: a relao entre natureza e cultura o seu verdadeiro tema. No por acaso, em vez de "reduzi-los", o ensaio mergulha nos fenmenos culturais como numa segunda natureza, numa segunda imediatidade, para suspender dialeticamente, com sua tenacidade, essa iluso. Como a filosofia da origem, ele tambm no se deixa enganar acerca da distino entre a cultura e o que est por trs dela. Mas a cultura no , para o ensaio, um epifenmeno que se sobrepe ao Ser e deve, portanto, ser destrudo; o que subjaz cultura em si mesmo thesei, algo construdo: a falsa sociedade. Por isso, para o ensaio, a origem vale to pouco quanto a superestrutura. O ensaio deve sua liberdade na escolha dos objetos, sua soberania diante de todas as "prioridades" do fato concreto ou da teoria,

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  • ao modo como percebe todos os objetos como estando igualmen-te prximos do centro: prximos ao princpio que a todos en-feitia. O ensaio no glorifica a preocupao com o primordial como se esta fosse mais primordial do que a preocupao com o mediado, pois a prpria primordialidade , para ele, objeto de reflexo, algo negativo. Isso corresponde a uma situao em que essa primordialidade, enquanto ponto de vista do esprito em meio ao mundo socializado, converteu-se em mentira. Uma mentira que abrange desde a converso de conceitos histricos de lnguas histricas em "palavras primordiais" [Urworten], at o ensino acadmico de creative writing, o primitivismo artesanal produzido em escala industrial, a flauta doce e o finger painting, nos quais a necessidade pedaggica se faz passar por virtude metafsica. O pensamento no poupado pela rebelio baudelairiana da poesia contra a natureza enquanto reserva social. Tambm os parasos do pensamento ainda so apenas parasos artificiais, por onde passeia o ensaio. Pois, nas palavras de Hegel, no h nada entre o cu e a terra que no seja mediado, o pensamento s permanece fiel idia de imediatidade atravs do mediado, tornando-se presa da mediao assim que aborda imediatamen-te o imediato. Astuciosamente, o ensaio apega-se aos textos como se estes simplesmente existissem e tivessem autoridade. Assim, sem o engodo do primordial, o ensaio garante um cho para os seus ps, por mais duvidoso que este seja, algo comparvel an-tiga exegese teolgica das Escrituras. A tendncia, porm, oposta, uma tendncia crtica: ao confrontar os textos com o seu prprio conceito enftico, com a verdade visada por cada um, mesmo quando no a tinham em vista, o ensaio pretende abalar a pretenso da cultura, levando-a a meditar sobre sua prpria in-verdade, essa aparncia ideolgica na qual a cultura se manifes-ta como natureza decada. Sob o olhar do ensaio, a segunda na-tureza toma conscincia de si mesma como primeira natureza.

    Se a verdade do ensaio move-se atravs de sua inverdade, ento ela deve ser buscada no na mera contraposio a seu ele-mento insincero e proscrito, mas nesse prprio elemento, nessa instabilidade, na falta daquela solidez que a cincia transfere, co-mo requisito, das relaes de propriedade para o esprito. Aqueles que acreditam ser necessrio defender o esprito contra a falta de solidez so seus inimigos: o prprio esprito, uma vez emanci-pado, instvel. Quando o esprito deseja mais do que a mera repetio e organizao administrativas daquilo que j existe, ele acaba abrindo seu flanco; a verdade, fora desse jogo, seria ape-nas tautologia. O ensaio, portanto, tambm historicamente aparentado com a retrica, que a mentalidade cientfica, desde Descartes e Bacon, queria extirpar, at ela acabar se degradan-do, com toda coerncia, em uma cincia sui generis da era cien-tfica: a das comunicaes. Talvez a retrica tenha sido sempre o pensamento adaptado linguagem comunicativa. Esse pensamento tinha como objetivo a satisfao imediata, ainda que sucednea, dos ouvintes. Justamente na autonomia da exposio, que o distingue da comunicao cientfica, o ensaio conserva vestgios daquele elemento comunicativo dispensado pela cincia. No ensaio, as satisfaes que a retrica quer proporcionar ao ouvinte so sublimadas na idia de uma felicidade da liberdade face ao objeto, liberdade que d ao objeto a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente na ordem das idias. A conscincia cientfica, dirigida contra toda representao antropomrfica, sempre foi comprometida com o princpio de realidade e, como este, inimiga de qualquer felicidade. Embora a felicidade tenha de ser o objetivo de toda dominao da natureza, ela ao mesmo tempo se apresenta como uma regresso mera natureza. Isso evidente mesmo nas filosofias mais elevadas, at em Kant e Hegel. Apesar de terem o seu pathos na idia absoluta de razo, essas filosofias ao mesmo tempo

    Notas de literatura I

    O ensaio como forma

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  • Notas de literatura I

    denigrem a razo como algo insolente e desrespeitoso, to logo ela pe em questo o que est em vigor. Contra essa tendncia, o ensaio salva um momento da sofstica. A hostilidade do pen-samento crtico oficial em relao felicidade perceptvel so-bretudo na dialtica transcendental de Kant, que gostaria de eter-nizar as fronteiras traadas entre o entendimento e a especula-o, para impedir, segundo a metfora caracterstica, "o divagar por mundos inteligveis". Enquanto a razo, na sua autocrtica kantiana, pretende manter os dois ps no cho, devendo funda-mentar a si mesma, ela tende, por seu mais ntimo princpio, a se fechar hermeticamente contra qualquer coisa nova, comba-tendo toda e qualquer curiosidade, que corresponde justamen-te ao princpio de prazer do pensamento, tambm condenado pela ontologia existencial. Aquilo que Kant reconhece, em ter-mos de contedo, como a finalidade da razo, a constituio da humanidade, a utopia, impedido pela forma, por sua teoria do conhecimento, que no permite razo ultrapassar o mbito da experincia, reduzido, no mecanismo do mero material e das categorias invariantes, ao que j existia desde sempre. O objeto do ensaio , porm, o novo como novidade, que no pode ser traduzido de volta ao antigo das formas estabelecidas. Ao refletir o objeto sem violent-lo, o ensaio se queixa, silenciosamente, de que a verdade traiu a felicidade e, com ela, tambm a si mesma; esse lamento que provoca a ira contra o ensaio. O carter persuasivo da comunicao, no ensaio, alienado de seu objetivo original, de modo anlogo mudana de funo de determinados procedimentos na msica autnoma, convertendo-se em pura determinao da exposio como tal, elemento coercitivo de sua construo, que, sem copiar a coisa, gostaria de reconstru-la a partir de seus membra disjecta conceituais. Mas as escandalosas transies da retrica, nas quais a associao livre, a ambigidade das palavras e a omisso da sntese lgica facili-

    O ensaio como forma

    tavam o trabalho do ouvinte, debilitando-o para depois submet-lo vontade do orador, acabam se mesclando, no ensaio, ao teor de verdade. Suas transies repudiam as dedues conclusivas em favor de conexes transversais entre os elementos, conexes que no tm espao na lgica discursiva. O ensaio no utiliza equvocos por negligncia, ou por desconhecer o veto cientificista que recai sobre eles, mas para recuperar aquilo que a crtica do equvoco, a mera distino de significados, raramente alcanou: para reconhecer que, quando uma palavra abrange diversos sentidos, a diversidade no inteiramente diversa; muito pelo contrrio, a unidade da palavra chamaria a ateno para uma unidade, ainda que oculta, presente na prpria coisa, uma unidade que, entretanto, no deve ser confundida com afinidades lingsticas, como costumam fazer as atuais filosofias reacionrias. Tambm aqui o ensaio se aproxima da lgica musical, na arte rigorosa mas sem conceitos da transio, para conferir linguagem falada algo que ela perdeu sob o domnio da lgica discursiva, uma lgica que, entretanto, no pode simplesmente ser posta de lado, mas sim deve ser superada em astcia no interior de suas prprias formas, por fora da insistncia da expresso subjetiva. Pois o ensaio no se encontra em uma simples oposio ao procedimento discursivo. Ele no desprovido de lgica; obedece a critrios lgicos na medida em que o conjunto de suas frases tem de ser composto coerentemente. No deve haver espao para meras contradies, a no ser que estas estejam fundamentadas em contradies do prprio objeto em questo. S que o ensaio desenvolve os pensamentos de um modo diferente da lgica discursiva. No os deriva de um princpio, nem os infere de uma seqncia coerente de observaes singulares. O ensaio coordena os elementos, em vez de subordin-los; e s a quintessncia de seu teor, no o seu modo de exposio, comensurvel por critrios lgicos. Em comparao com as formas em que um contedo j pronto co-

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  • municado de modo indiferente, o ensaio mais dinmico do que o pensamento tradicional, por causa da tenso entre a exposio e o exposto. Mas, ao mesmo tempo, ele tambm mais esttico, por ser uma construo baseada na justaposio de elementos. somente nisso que reside a sua afinidade com a imagem, embora esse carter esttico seja, ele mesmo, fruto de relaes de tenso at certo ponto imobilizadas. A serena flexibilidade do raciocnio do ensasta obriga-o a uma intensidade maior que a do pensamento discursivo, porque o ensaio no procede cega e automaticamente como este, mas sim precisa a todo instante refletir sobre si mesmo. certo que essa reflexo no abrange apenas a sua relao com o pensamento estabelecido, mas igualmente tambm sua relao com a retrica e a comunicao. Seno, aquilo que se pretende supracientfico torna-se mera vaidade pr-cientfica.

    A atualidade do ensaio a do anacrnico. A hora lhe mais desfavorvel do que nunca. Ele se v esmagado entre uma cin-cia organizada, na qual todos se arrogam o direito de controlar a tudo e a todos, e onde o que no talhado segundo o padro do consenso excludo ao ser elogiado hipocritamente como "intuitivo" ou "estimulante"; e, por outro lado, uma filosofia que se acomoda ao resto vazio e abstrato, ainda no completamente tomado pelo empreendimento cientfico, e que justamente por isso visto pela cincia como objeto de uma ocupao de segunda ordem. O ensaio tem a ver, todavia, com os pontos cegos de seus objetos. Ele quer desencavar, com os conceitos, aquilo que no cabe em conceitos, ou aquilo que, atravs das contradies em que os conceitos se enredam, acaba revelando que a rede de ob-jetividade desses conceitos meramente um arranjo subjetivo. Ele quer polarizar o opaco, liberar as foras a latentes. Ele se es-fora em chegar concreo do teor determinado no espao e no tempo; quer construir uma conjuno de conceitos anloga ao modo como estes se acham conjugados no prprio objeto. Ele

    escapa ditadura dos atributos que, desde a definio do Ban-quete de Plato, foram prescritos s idias como "existindo eter-namente, no se modificando ou desaparecendo, nem se alteran-do ou restringindo"; "um ser por si e para si mesmo eternamen-te uniforme"; e entretanto o ensaio permanece sendo "idia", na medida em que no capitula diante do peso do existente, nem se curva diante do que apenas . Ele no mede esse peso, porm, segundo o parmetro de algo eterno, e sim por um entusistico fragmento tardio de Nietzsche: "Supondo que digamos sim a um nico instante, com isso estamos dizendo sim no s a ns mes-mos, mas a toda existncia. Pois no h nada apenas para si, nem em ns e nem nas coisas: e se apenas por uma nica vez nossa alma tiver vibrado e ressoado de felicidade, como uma corda, ento todas as eternidades foram necessrias para suscitar esse evento e nesse nico instante de nosso `sim' toda eternidade ter sido aprovada, redimida, justificada e afirmada".8 S que o ensaio ainda desconfia dessa justificao e afirmao. Para essa felicidade, sagrada para Nietzsche, o ensaio no conhece nenhum outro nome seno o negativo. Mesmo as mais altas manifesta-es do esprito, que expressam essa felicidade, tambm so cul-padas de impor obstculos a ela, na medida em que continuam sendo apenas esprito. por isso que a lei formal mais profunda do ensaio a heresia. Apenas a infrao ortodoxia do pensa-mento torna visvel, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisvel.

    Fricdrich Nietzsche, Werke, vol. 10, Leipzig, 1906, p. 206. Der Wille zaFr Macht [A vontade de potncia] II, 1.032.

    Notas de literatura I

    O ensaio como forma

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  • Sobre a ingenuidade pica

    "Tal como a vista da terra distante agradvel aos nufra-gos, / quando, em mar alto, o navio de boa feitura Posido / faz soobrar, sob o impulso dos ventos e de ondas furiosas; / [...] / e ledos pisam a praia, enfim tendo da Morte escapado; / do mes-mo modo a Penlope a vista do esposo era cara / sem que pu-desse dos cndidos braos, enfim, desprend-lo."1 Se a Odissia fosse medida por estes versos, pela parbola da felicidade do ca-sal enfim reunido, tomada no meramente como uma metfora inserida na obra, mas como o teor da narrativa, posto a nu nos momentos finais do texto, ento ela no seria nada mais do que a tentativa de dar ouvidos ao ritmo insistente do mar ferindo a costa rochosa, a descrio paciente do modo como a gua sub-merge os recifes para depois recuar marulhando, enquanto a terra firme brilha em sua mais profunda cor. Esse murmrio o som

    1 Homero, Odissia, XXIII, 234 ss. Traduo de Carlos Alberto Nunes. A traduo citada por Adorno a de Vofi: "Und wie erfreulich das Land hersch-wimmenden Mdnnern erscheinet, / Welchen Poseidons Macht das riistige Schiff in der Meerflut/ Schmetterte, durch die Gewalt des Orkans undgeschwollener Brandung; / [...J Freudig anjetzt ersteigen sie Land, dem Verderben entronnen, / So war ihr auch efreulich der Anblick ihres Gemahls, / Und fest hielt um deu Flals sie die Lilienarme geschhengen

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  • Notas de literatura 1

    do discurso pico, no qual o slido e inequvoco encontra-se com o fluido e ambguo, apenas para novamente se despedir. A mar amorfa do mito a mesmice, o telos da narrativa porm o diferente, e a identidade impiedosamente rgida que fixa o objeto pico serve justamente para alcanar sua prpria diferenciao, sua no-identidade com o meramente idntico, com a monoto-nia no-articulada. As epopias desejam relatar algo digno de ser relatado, algo que no se equipara a todo o resto, algo inconfun-dvel e que merece ser transmitido em seu prprio nome.

    Mas, porque o narrador encara o mundo do mito como sua matria, esta sua abordagem, hoje tornada impossvel, sempre foi contraditria. O discurso racional e comunicativo do narrador, com sua lgica que subsume e torna semelhante tudo o que relatado, agarra-se ao mito em busca de algo concreto e ainda distinto da ordem niveladora do sistema conceitual esse tipo de mito tem a mesma essncia, entretanto, daquela redundn-cia que desperta, na ratio, para a autoconscincia. O narrador foi desde sempre aquele que resistia fungibilidade universal, mas o que ele tinha para relatar, historicamente e at mesmo hoje, j era sempre algo fungvel. Em toda pica reside, portanto, um elemento anacrnico: tanto no arcasmo homrico da invocao musa, que deveria auxiliar a proclamao do extraordinrio, como nos esforos desesperados de Stifter e do ltimo Goethe para disfarar as relaes burguesas em uma realidade primordial, aberta palavra exata como se fosse um nome. Mas essa contradio, desde que existem as grandes epopias, vem se sedimentando no procedimento do narrador como o elemento caracterstico da poesia pica, que costuma ser sublinhado como sua objetividade [Gegenstndlichkeit]. Diante do estado de conscincia esclarecido, ao qual pertence o discurso narrativo, um estado caracterizado por conceitos gerais, esse elemento objetivo aparece sempre como um elemento de estupidez, uma incompreen-

    Sobre a ingenuidade pica

    so ou ignorncia que empaca no particular, mesmo quando este j est dissolvido no universal. A epopia imita o fascnio do mito, mas para ameniz-lo. Karl Theodor Preuss chamou essa atitude de "estupidez primordial" [Urdummheit], e Gilbert Murray caracterizou justamente assim o primeiro estgio da religio grega,2 a fase que antecede a poca olmpico-homrica. Nessa fixao rgida do relato pico em seu objeto, destinada a romper o poder de intimidao daquilo que a palavra identificadora ousou olhar nos olhos, o narrador passa a controlar, ao mesmo tempo, o gesto do medo. A ingenuidade o preo que deve ser pago, e a viso tradicional contabiliza isso como ganho. O tradicional elogio dessa estupidez da narrao, que emerge apenas na dialtica da forma, acabou transformando a estupidez em uma ideologia restauradora, cujo ltimo resduo est venda na falsa concretude da antropologia filosfica atual.

    Mas a ingenuidade pica no apenas uma mentira, desti-nada a manter a mentalidade geral afastada da intuio cega do particular. Por ser um empreendimento antimitolgico, ela se destaca no esforo iluminista e positivista de aderir fielmente e sem distoro quilo que uma vez aconteceu, exatamente do jeito como aconteceu, quebrando assim o feitio exercido pelo acon-tecido, o mito em seu sentido prprio. Ao apegar-se, em sua li-mitao, ao que aconteceu apenas uma vez, o mito adquire um trao caracterstico que transcende essa limitao. Pois o acon-tecimento singular no simplesmente uma teimosa resistncia contra a abrangente universalidade do pensamento, mas tambm o mais ntimo anseio do pensamento, a forma lgica de uma

    2 Cf. G. Murray, Five stages of Greek religion, Nova York, Columbia Uni- versity Press, 1925, p. 16; cf. U. von Wilamowitz-MBllendorf, Der Glaube der Hellenen, I, p. 9.

  • Notas de literatura I Sobre a ingenuidade pica

    efetividade no mais cerceada pela dominao social e pelo pen-samento classificador que nela se baseia: a reconciliao do con-ceito com seu objeto. Na ingenuidade pica vive a crtica da ra-zo burguesa. Ela se agarra quela possibilidade de experincia que foi destruda pela razo burguesa, pretensamente fundada por essa prpria experincia. O limite exposio de um nico objeto o corretivo da limitao que afeta todo pensamento, na medida em que este, graas a sua operao conceituai, esquece seu objeto singular, recobrindo-o com o conceito, em vez de compreend-lo. Assim como fcil ridicularizar a simplicidade homrica, que era ao mesmo tempo j o contrrio da simplici-dade, ou evoc-la maliciosamente como argumento contra o es-prito analtico, assim tambm seria fcil mostrar o acanhamen-to de Martin Salander, o ltimo romance de Gottfried Keller, reprovando na concepo do livro o sentencioso "como so ruins os homens de hoje", que trai a ignorncia pequeno-burguesa acerca das razes econmicas da crise e dos pressupostos sociais dos "anos de fundao" [Grnderjahre], ignorando assim o es-sencial. Mas apenas essa ingenuidade, novamente, que permi-te a algum narrar os primrdios do capitalismo tardio, uma era repleta de desgraas, apropriando-se desse momento pela anam-nesis, em vez de simplesmente relat-lo e, por meio de um pro-tocolo que se relaciona com o tempo como um mero ndex, re-baix-lo com um ar enganador de atualidade a um nada incapaz de propiciar qualquer memria. Nessa recordao daquilo que no fundo no se deixa mais recordar, Keller expressa em sua des-crio dos dois advogados trapaceiros, irmos gmeos e duplos um do outro, um qu de verdade, justamente a verdade sobre a fungibilidade hostil memria, que s seria alcanada por uma teoria que determinasse de forma transparente, a partir da expe-rincia da sociedade, a perda da experincia. Graas ingenui-dade pica, o discurso narrativo, em cuja atitude diante do pas-

    sado vive sempre um elemento de apologia, que justifica a ocor-

    rncia como algo digno de nota, corrige a si mesmo. A preciso da linguagem descritiva busca compensar a inverdade de todo discurso. O impulso que leva Homero a descrever um escudo como uma paisagem, elaborando uma metfora para a ao at o ponto em que, tornada autnoma, ela rasga a trama da narra-tiva, o mesmo impulso que levou Goethe, Stifter e Keller, os maiores narradores alemes do sculo XIX, a desenhar e pintar em vez de escrever, e os estudos arqueolgicos de Flaubert po-dem muito bem ter sido inspirados por este mesmo impulso. A tentativa de emancipar da razo reflexionante a exposio a tentativa j desesperada da linguagem, quando leva ao extremo sua vontade de determinao, de se curar da manipulao con-ceitual dos objetos, o negativo de sua intencionalidade, deixan-do aflorar a realidade de forma pura, no perturbada pela vio-lncia da ordem classificatria. A estupidez e cegueira do narrador

    no por acaso que a tradio concebe Homero como um cego j expressa a impossibilidade e desesperana dessa ini-ciativa. justamente o elemento objetivo da epopia, contraposto de modo extremo a toda especulao e fantasia, que conduz a narrativa, atravs de sua impossibilidade dada a priori, ao limite da loucura. As ltimas novelas de Stifter testemunham com extrema clareza a passagem da fidelidade ao objeto obsesso manaca, e nenhuma narrativa jamais participou da verdade sem ter encarado o abismo no qual mergulha a linguagem, quando esta pretende se transformar em nome e imagem. A prudncia homrica no uma exceo. Quando no ltimo canto da Odissia, na segunda descida ao mundo dos mortos [nekuia], a alma do pretendente Anfimedonte relata alma de Agamenon a vingana de Odisseu e de seu filho, encontram-se os seguintes versos: "Dos pretendentes a Morte eles ambos, ali, combinaram. / Voltam, depois, para a bela cidade. A saber, Telmaco foi / antes do pai,

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  • Notas de literatura I Sobre a ingenuidade pica

    pois Odisseu se atrasou por vontade".3 Este "a saber"4 [ndmlich] mantm, em virtude da coerncia, a forma lgica da explicao ou da afirmao, enquanto o contedo da frase, uma declarao puramente expositiva, no coerente com a frase anterior. No minsculo contra-senso da partcula de coordenao, o esprito da linguagem narrativa, lgico-intencional, colide com o espri-to da representao sem palavras, da qual se ocupa essa lingua-gem, e assim a prpria forma lgica da coordenao ameaa en-viar os pensamentos que nada coordenam, e que na verdade no so pensamentos propriamente ditos, para o exlio de uma regio onde a sintaxe e a matria se perderam uma da outra. A matria refora sua supremacia ao mentir para a forma sinttica que pre-tende abarc-la. este, porm, o elemento pico, o elemento genuinamente antigo, presente no delrio de Hlderlin. O poe-ma "An die Hoffnung" [ esperana] diz: "Im grnen Tale, dort, wo der frische Qwell / Vom Berge tiiglich rauscht und die liebliche / Zeitlose mir am Herbsttag aufblht, / Dort, in der Stille, du holde, will ich / Dich suchen, oder wenn in der Mitternacht / Das unsichtbare Leben im Haine wallt, / Und ber mir die immerfrohen /Blumen, die blhenden Sternegldnzen"5 [No verde vale, l onde

    i Odissia, XXIV, 135 ss. "Beide, da ber der Freier entsetzlichen Mord sie

    geratschlagt, / Kamen zur prangenden Stadt der Ithaker; iimlich Odysseus / Folgete

    nach; ihm voraus war Telemachos frhergegangen." [Citamos a traduo brasileira de Carlos Alberto Nunes, com modificaes necessrias compreenso do texto de Adorno.]

    4 Schrder traduz: "und wahrlich Odysseus hlieh zurck" [e na verdade Odisseu ficou para trs]. A traduo literal do como uma partcula de reforo, e no de explicao, no muda em nada o carter enigmtico da passagem.

    5 Friedrich Hlderlin, Gesamtausgabe eles Insel-Verlags (edio de Zinker-nagel), Leipzig, s.d., p. 139 Entre Vo13 e Hlderlin h conexes histrico-li-terrias. a fresca fonte / Desce a montanha, murmurando a cada dia, / E a amvel sempre-viva no outono me floresce, / Nessa

    tranqila paz, querida, pretendo / Te buscar, ou quando, meia-noite, / A vida invisvel ressoa na floresta, / E sobre mim as flores sempre felizes, / As estrelas, desabrocham brilhando]. Este "ou", assim como as partculas usadas freqentemente por Trakl, equivalem ao "a saber" homrico. Enquanto a linguagem, para continuar sendo de fato linguagem, ainda pretende nessas expresses ser a sntese judiciosa dos nexos entre as coisas, ela renuncia ao juzo quando usa palavras que dissolvem justamente esse nexo. Na concatenao pica, onde a conduo do pensamento enfim encontra repouso, a linguagem abre mo de seu direito ao juzo, embora ao mesmo tempo continue sendo, inevitavelmente, juzo. O fluxo de pensamento, no qual se configura o sacrifcio do discurso, a fuga da linguagem de sua priso. Se em Homero, como ressalta Thomson, a metfora ganha autonomia diante do contedo e da trama,6 ento nela tambm se expressa a mesma hostilidade em relao ao comprometimento da linguagem no contexto das intenes. A imagem desenvolvida pela linguagem acaba esquecendo seu prprio significado, para incorporar na imagem a prpria linguagem, em vez de tornar a imagem transparente ao sentido lgico do contexto. Nas grandes narrativas, a relao entre imagem e ao invertida. Testemunha disso a tcnica de Goethe nas Afinidades eletivas e nos Anos de peregrinao, onde novelas imagticas e intermitentes refletem a essn-

    6 "Ningum negaria que smiles verdadeiros tm sido usados constantemente desde os primrdios da linguagem humana [...] Mas, alm destes, h outros que, como vimos, formalmente so smiles, mas na realidade so identificaes ou transformaes disfaradas" (J. A. K. Thomson, Studies in the Odyssey, Oxford, 1914, p. 7). As metforas so, portanto, vestgios do processo histrico.

  • Notas de literatura I

    cia do que est sendo apresentado. As interpretaes alegricas de Homero, como a famosa "odissia do esprito" formulada por Schelling,7 seguem o mesmo caminho. No que os poemas pi-cos tenham sido ditados pela inteno alegrica. Mas o poder da tendncia histrica sobre a linguagem e o assunto neles to grande, que, ao longo das relaes entre subjetividade e mito-logia, os homens e as coisas se transformaram, em virtude da ce-gueira com a qual a pica entrega-se exposio, em meros cen-rios, nos quais aquela tendncia histrica torna-se visvel, justa-mente onde o contexto pragmtico e lingstico mostra-se fr-gil. "No so indivduos, mas idias que lutam entre si", diz um fragmento de Nietzsche sobre a "questo homrica".8 A conver-so objetiva da pura exposio, alheia ao significado, em alego-ria objetiva o que se manifesta tanto na desintegrao lgica da linguagem pica quanto no descolamento da metfora em meio ao curso da ao literal. S quando abandona o sentido o discurso pico se assemelha imagem, a uma figura do sentido objetivo, que emerge da negao do sentido subjetivamente racional.

    7 Cf. Schelling, Werke, vol. 2, Leipzig, 1907, p. 302 [`Sistema do idealis-mo transcendental"]. A propsito, Schelling mais tarde recusou expressamente, na Filosofia da arte, a interpretao alegrica de Homero.

    8 Nietzsche, Werke, vol. 9, p. 287. Posio do narrador no romance contemporneo

    A tarefa de resumir em poucos minutos algo sobre a situa-o atual do romance, enquanto forma, obriga a destacar um de seus momentos, ainda que isso seja uma violncia. O momento destacado ser o da posio do narrador. Ela se caracteriza, hoje, por um paradoxo: no se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narrao. O romance foi a forma literria espe-cfica da era burguesa. Em seu incio encontra-se a experincia do mundo desencantado no Dom Quixote, e a capacidade de dominar artisticamente a mera existncia continuou sendo o seu elemento. O realismo era-lhe imanente; at mesmo os roman-ces que, devido ao assunto, eram considerados "fantsticos", tra-tavam de apresentar seu contedo de maneira a provocar a su-gesto do real. No curso de um desenvolvimento que remonta ao sculo XIX, e que hoje se intensificou ao mximo, esse pro-cedimento tornou-se questionvel. Do ponto de vista do nar-rador, isso uma decorrncia do subjetivismo, que no tolera mais nenhuma matria sem transform-la, solapando assim o preceito pico da objetividade [Gegenstndlichkeit]. Quem ain-da hoje mergulhasse no domnio do objeto, como fazia por exem-plo Stifter, e buscasse o efeito gerado pela plenitude e plasticidade daquilo que contemplado e humildemente acolhido, seria for-

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  • Notas de literatura I

    ado ao gesto da imitao artesanal. Tornar-se-ia culpado da mentira de entregar-se ao mundo com um amor que pressupe que esse mundo tem sentido, e acabaria no kitsch intragvel da arte regional. As dificuldades no so menores no que concerne prpria coisa. Assim como a pintura perdeu muitas de suas funes tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indstria cultural, sobretudo para o cinema. O romance precisaria se concentrar naquilo de que no possvel dar conta por meio do relato. S que, em contraste com a pintura, a emancipao do romance em relao ao objeto foi limitada pela linguagem, j que esta ainda o constrange fico do relato: Joyce foi coerente ao vincular a rebelio do romance contra o realismo a uma revolta contra a linguagem discursiva.

    Seria mesquinho rejeitar sua tentativa como uma excntri-ca arbitrariedade individualista. O que se desintegrou foi a iden-tidade da experincia, a vida articulada e em si mesma contnua, que s a postura do narrador permite. Basta perceber o quanto impossvel, para algum que tenha participado da guerra, narrar essa experincia como antes uma pessoa costumava contar suas aventuras. A narrativa que se apresentasse como se o narrador fosse capaz de dominar esse tipo de experincia seria recebida, justamente, com impacincia e ceticismo. Noes como a de "sentar-se e ler um bom livro" so arcaicas. Isso no se deve meramente falta de concentrao dos leitores, mas sim matria comunicada e sua forma. Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso impedido pelo mundo administrado, pela estandardizao e pela mesmice. Antes de qualquer mensagem de contedo ideolgico j ideolgica a prpria pretenso do narrador, como se o curso do mundo ainda fosse essencialmente um processo de individuao, como se o indivduo, com suas emoes e sentimentos, ainda fosse capaz de se apro-

    Posio do narrador no romance contemporneo

    ximar da fatalidade, como se em seu ntimo ainda pudesse alcan-ar algo por si mesmo: a disseminada subliteratura biogrfica um produto da desagregao da prpria forma do romance.

    No est excluda da crise da objetividade literria a esfera da psicologia, na qual justamente aqueles produtos se instalam como se estivessem em casa, embora o resultado seja infeliz. Tam-bm o romance psicolgico teve seus objetos surrupiados diante do prprio nariz: com razo observou-se que, numa poca em que os jornalistas se embriagavam sem parar com os feitos psicolgicos de Dostoivski, a cincia, sobretudo a psicanlise freudiana, h muito tinha deixado para trs aqueles achados do romancista. Alis, esse tipo de louvor repleto de frases feitas acabou no atingindo o que de fato havia em Dostoivski: se por-ventura existe psicologia em suas obras, ela uma psicologia do carter inteligvel, da essncia, e no do ser emprico, dos homens que andam por a. E exatamente nisso Dostoivski avanado. No apenas porque o positivo e o tangvel, incluindo a factici-dade da interioridade, foram confiscados pela informao e pela cincia que o romance foi forado a romper com esses aspectos e a entregar-se representao da essncia e de sua anttese distorcida, mas tambm porque, quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfcie do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essncia como um vu. Se o romance quiser permanecer fiel sua herana realista e dizer como realmente as coisas so, ento ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produo do engodo. A reificao de todas as relaes entre os indivduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienao e a auto-alienao universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance est qualificado como poucas outras formas de arte. Desde sempre, seguramente desde o sculo XVIII, desde o Tom

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  • Notas de literatura I Posio do narrador no romance contemporneo

    fones de Fielding, o romance teve como verdadeiro objeto o con-flito entre os homens vivos e as relaes petrificadas. Nesse pro-cesso, a prpria alienao torna-se um meio esttico para o ro-mance. Pois quanto mais se alienam uns dos outros os homens, os indivduos e as coletividades, tanto mais enigmticos eles se tornam uns para os outros. O impulso caracterstico do roman-ce, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforo de captar a essncia, que por sua vez aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenes sociais. O momento anti-realista do romance moderno, sua dimenso metafsica, amadu-rece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens esto apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendncia esttica reflete-se o desencantamento do mundo.

    Tudo isso dificilmente tem lugar nas elocubraes cons-cientes do romancista, e h razo para supor que, onde essa in-terveno ocorre, como nos romances extremamente ambicio-sos de Hermann Broch, o resultado no dos melhores para o que configurado artisticamente. Muito pelo contrrio, as mo-dificaes histricas da forma acabam se convertendo em sus-cetibilidade idiossincrtica dos autores, e o alcance de sua atua-o como instrumentos capazes de registrar o que reivindica-do ou repelido um componente essencial para a determinao de seu nvel artstico. Em matria de suscetibilidade contra a forma do relato, ningum superou Marcel Proust. Sua obra per-tence tradio do romance realista e psicolgico, na linha da extrema dissoluo subjetivista do romance, uma tradio que leva, sem qualquer continuidade histrica em relao ao autor francs, a obras como Niels Lyhne de Jacobsen e Malte Laurids Brigge de Rilke. Quanto mais firme o apego ao realismo da ex-terioridade, ao gesto do "foi assim", tanto mais cada palavra se torna um mero "como se", aumentando ainda mais a contradi o entre a sua pretenso e o fato de no ter sido assim. Mesmo

    a pretenso imanente que o autor obrigado a sustentar, a de que sabe exatamente como as coisas aconteceram, precisa ser com-provada, e a preciso de Proust, impelida ao quimrico, sua tc-nica microlgica, sob a qual a unidade do ser vivo acaba se esfa-celando em tomos, nada mais do que um esforo da sensibili-dade esttica para produzir essa prova, sem ultrapassar os limites do crculo mgico da forma. Proust no poderia, por exemplo, ter colocado no incio de sua obra o relato de uma coisa irreal, como se ela tivesse realmente existido. Por isso seu ciclo de ro-mances se inicia com a lembrana do modo como urna criana adormece, e todo o primeiro livro no seno um desdobramen-to das dificuldades que o menino enfrenta para adormecer, quan-do sua querida me no lhe d o beijo de boa-noite. O narrador parece fundar um espao interior que lhe poupa o passo em fal-so no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo puxado para esse espao interior atribuiu-se tcnica o nome de monologue intrieur e qualquer coisa que se desenrole no exterior apre-sentada da mesma maneira como, na primeira pgina, Proust descreve o instante do adormecer: como um pedao do mundo interior, um momento do fluxo de conscincia, protegido da re-futao pela ordem espaciotemporal objetiva, que a obra prous-tiana mobiliza-se para suspender. Partindo de pressupostos in-teiramente diferentes, e num esprito totalmente diverso, os ro-mances do Expressionismo alemo por exemplo, o Verbum-