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PLANEJAMENTO TERRITORIAL: SUAS IMPLICAÇÕES PARA A PROMOÇÃO DA SAÚDE E DA JUSTIÇA AMBIENTAL Rafaela Rodrigues Pereira * RESUMO Há longa data o planejamento territorial urbano é foco de ações do poder público. O Estatuto das Cidades, que regulamenta os artigos da constituição federal que tratam da política urbana, tem sido considerado, por alguns estudiosos, um dos maiores avanços legais em termos de gestão e planejamento urbano no Brasil. Em sua seção I, O Estatuto das Cidades coloca como um dos instrumentos do planejamento territorial urbano, ao nível municipal, o plano diretor. Este, por sua vez, em termos legais, vem a ser uma ferramenta voltada para a gestão exclusiva de áreas urbanas, apesar de seu raio de atuação, em alguns municípios, abarcar áreas urbanas e não-urbanas – áreas rurais. Nesse ponto, reside o questionamento: Como esta ferramenta de gestão incorpora as demandas e conflitos ambientais inerentes a territórios tão particulares, não urbanos, mas intrinsecamente inseridos na configuração da rede urbana e que vêm sofrendo múltiplas e distintas pressões do meio, da lógica urbana? Assim sendo, no presente artigo, procurar-se-á trabalhar o tema acima, partindo de uma discussão mais ampla acerca de injustiça ambiental e desigualdades socioespaciais, focando, gradativamente, na questão das desigualdades espaciais intramunicipais, em municípios onde se verifica a existência de conflitos ambientais oriundos da interface rural-urbano. Neste contexto, o plano diretor é um instrumento de gestão que apresenta potencialidade para mediar o mencionado conflito. PALAVRAS CHAVE: Plano diretor, justiça ambiental, promoção da saúde, saúde ambiental e conflito rural-urbano. ABSTRACT The longstanding territorial urban planning is the focus of shares of public power. The Status of Cities, which regulates the articles of the constitution which deal with the federal urban policy, has been considered by some scholars, one of the biggest advances in terms of legal management and urban planning in Brazil. In its section I, The Status of cities poses as one of the instruments of territorial urban planning at the municipal level, the plan director. This, in turn, in legal terms, is to be a tool dedicated to the exclusive management of urban areas, in spite of its radius of action, in some municipalities, cover urban and non-urban - rural areas. At this point, is the question: Since this management tool incorporates the demands and environmental conflicts inherent in such private areas, not urban, but intrinsically inserted in the network configuration urban and who see suffering multiple and different pressures of the media, of the urban logic? Therefore, in this article, for it will work up to the subject, from a broader discussion about environmental injustice and inequality socio-spatial, focusing, gradually, on the issue of spatial inequalities within municipality in municipalities where verifies the existence of environmental conflicts from the rural-urban interface. In this context, the master plan is a management tool that has the potential to mediate the conflict mentioned. KEYWORDS: Master plan, environmental justice, health promotion, environmental health and rural-urban conflict. * MSc em Saúde Pública e Meio Ambiente pela FIOCRUZ/ ENSP. E-mail: [email protected]. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp. 19 - 27, 2009

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  • PLANEJAMENTO TERRITORIAL: SUAS IMPLICAES PARA APROMOO DA SADE E DA JUSTIA AMBIENTAL

    Rafaela Rodrigues Pereira *

    RESUMOH longa data o planejamento territorial urbano foco de aes do poder pblico. O Estatuto dasCidades, que regulamenta os artigos da constituio federal que tratam da poltica urbana, tem sidoconsiderado, por alguns estudiosos, um dos maiores avanos legais em termos de gesto e planejamentourbano no Brasil. Em sua seo I, O Estatuto das Cidades coloca como um dos instrumentos doplanejamento territorial urbano, ao nvel municipal, o plano diretor. Este, por sua vez, em termoslegais, vem a ser uma ferramenta voltada para a gesto exclusiva de reas urbanas, apesar de seuraio de atuao, em alguns municpios, abarcar reas urbanas e no-urbanas reas rurais. Nesseponto, reside o questionamento: Como esta ferramenta de gesto incorpora as demandas e conflitosambientais inerentes a territrios to particulares, no urbanos, mas intrinsecamente inseridos naconfigurao da rede urbana e que vm sofrendo mltiplas e distintas presses do meio, da lgicaurbana? Assim sendo, no presente artigo, procurar-se- trabalhar o tema acima, partindo de umadiscusso mais ampla acerca de injustia ambiental e desigualdades socioespaciais, focando,gradativamente, na questo das desigualdades espaciais intramunicipais, em municpios onde se verificaa existncia de conflitos ambientais oriundos da interface rural-urbano. Neste contexto, o plano diretor um instrumento de gesto que apresenta potencialidade para mediar o mencionado conflito.

    PALAVRAS CHAVE:Plano diretor, justia ambiental, promoo da sade, sade ambiental e conflito rural-urbano.

    ABSTRACTThe longstanding territorial urban planning is the focus of shares of public power. The Status of Cities,which regulates the articles of the constitution which deal with the federal urban policy, has beenconsidered by some scholars, one of the biggest advances in terms of legal management and urbanplanning in Brazil. In its section I, The Status of cities poses as one of the instruments of territorialurban planning at the municipal level, the plan director. This, in turn, in legal terms, is to be a tooldedicated to the exclusive management of urban areas, in spite of its radius of action, in somemunicipalities, cover urban and non-urban - rural areas. At this point, is the question: Since thismanagement tool incorporates the demands and environmental conflicts inherent in such private areas,not urban, but intrinsically inserted in the network configuration urban and who see suffering multipleand different pressures of the media, of the urban logic? Therefore, in this article, for it will work up tothe subject, from a broader discussion about environmental injustice and inequality socio-spatial,focusing, gradually, on the issue of spatial inequalities within municipality in municipalities whereverifies the existence of environmental conflicts from the rural-urban interface. In this context, themaster plan is a management tool that has the potential to mediate the conflict mentioned.KEYWORDS:Master plan, environmental justice, health promotion, environmental health and rural-urban conflict.

    * MSc em Sade Pblica e Meio Ambiente pela FIOCRUZ/ ENSP. E-mail: [email protected].

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    Introduo

    Como consequncia de um processohistrico de sucesso de modelos socio-econmicos pautados, em boa parte, pelasupresso da maioria, verifica-se, hoje, aexistncia de uma desigualdade espacialsistmica no territrio nacional. Nessa conjuntura,as populaes mais vulnerveis, do ponto de vistapolt ico-f inanceiro, arcam com os custossocioambientais oriundos de um modelo dedesenvolvimento que prima pela mximaproduo em um curto perodo de tempo e abaixos custos financeiros, ignorando, em casosno raros, as inevitveis consequncias - deordem negativa - geradas.

    Estas desigualdades espaciais podem serrecortadas em diferentes escalas de anlise,sejam elas ao nvel inter-regional, interestadualou mesmo inter e intramunicipal. No casoespecfico desta ltima, como caso emblemtico,pode-se apontar a existncias das zonas desacrifcio urbano, como o caso das favelas.

    A realidade acima delineada tem sidoclassificada por estudiosos, como um quadro deinjustia ambiental, cuja consequncia , entreoutras, um risco manuteno da sade humanae do ambiente, ou seja, manuteno da sadeambiental.

    Nesse contexto, o que se verifica odelineamento de conflitos socioambientais, emque diferentes interesses confrontam-se na buscapelo direito e, por vezes, exclusividade, de usode determinados espaos, configurando, dessaforma, disputas por territrios.

    No obstante, h longa data, oplanejamento e a gesto territorial tm sido focosde ateno do poder pblico. J na constituiode 1988, esses iderios se fazem presente, emseu Ttulo VII, Capitulo II Da poltica Urbana onde j h meno ao Plano Diretor. Maisrecentemente, em 2001, com a regulamentaodos artigos 182 e 183 da Constituio de 1988,de maneira mais clara e del ineada, oplanejamento territorial, passa a ser tomado comocaminho / alternativa de enfrentamento dessesconflitos. Desta forma, tanto os planos diretores

    municipais, como as agendas 21 locais,apresentam potencial, atravs da participao daspopulaes mais vulnerveis, para promoo dasade e da justia ambiental.

    Assim sendo, no presente artigo, procurar-se- trabalhar o tema acima, partindo de umadiscusso mais ampla acerca de injust iaambiental e desigualdades socioespaciais,focando, gradativamente, na questo dasdesigualdades espaciais intramunicipais, emmunicpios onde se verifica a existncia deconflitos ambientais oriundos da interface rural-urbano. Finalmente, pautando-se por esse foco,apontar-se- como o planejamento territorial temsido, ou pode vir a ser, uma ferramenta depromoo de justia ambiental e sade.

    Desigualdade Socioespacial eInjustia Ambiental

    O modelo de desenvolvimento poltico-economico brasileiro, ao longo de sua formaohistrica, tem se caracterizado pela produo demecanismos estruturais de desigualdade eexcluso social, materializados pela distribuio,desigual e injusta, das riquezas e riscos por elegerados, na qual as classes mais abastadasrespondem pelos frutos e as mais vulnerveispelos riscos.

    Assim, com o intenso processo deindustrializao e urbanizao em curso nasltimas dcadas, o que se verifica a produode espaos marginalizados, no apenas dosbenefcios materiais e financeiros advindos daconcepo produtiva vigente, mas tambm daspolticas e aes do poder pblico que gerenciamos usos conferidos ao territrio nacional. O poderpblico, portanto, engendra em suas aesmecanismos de manuteno e perpetuao dedesigualdades, por vezes, necessrias aofuncionamento do prprio sistema.

    Esses fatores correlacionados apontampara o delineamento de um quadro que podeser classificado como de injustia ambientalque, de acordo com Leroy (2007), pode serdefinida como

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    (...) o mecanismo pelo qual sociedadesdesiguais, do ponto de vista econmico e social,destinam a maior carga dos danos ambientaisdo desenvolvimento s populaes de baixarenda, aos grupos raciais discriminados, aospovos tnicos tradicionais, aos bairrosoperrios, s populaes marginalizadas evulnerveis. (Leroy, 2007; p.2).

    No obstante, vale ressaltar que ainjustia ambiental no se restringe apenas distribuio espacial desigual dos riscos e doacesso aos recursos do meio, mas tambm, impossibilidade de exerccio de outras prticassociais, no ligadas lgica produtiva ou tcnicavigente, mas aos modos de fazer socioculturaisinerentes apropriao simblica do territrio porparte de cada grupo social. (Acselrad, 1999).

    Fica claro, portanto, que os grupos sociaismais vulnerveis tm sua existncia e reproduocomprometida tanto materialmente, quantosubjetivamente, apontando para o fato de queuma resposta a essa realidade no pode mais serestringir a fatores meramente tcnicos eracionais. Sob essa tica, Porto (2001) explicaque

    (...) nenhuma poltica que pretenda equacionaros graves problemas de saneamento, sade eambiente do pas poder ser efetiva sem queocorram processos sociais de transformaoque acabem com a produo estruturalendmica de misria, de desigualdadesregionais e de excluso social. (pg. 02).

    A desigualdade espacial no sematerializa, apenas, pela ausncia ou presenade servios bsicos de infraestrutura, como redecoletora de esgoto e de abastecimento de gua,servio de recolhimento de lixo, acesso a serviosde sade, asfaltamento de ruas etc., mas,principalmente, na lgica que rege a escolha doslugares que contaro ou no com esses servios,nos interesses que ditam para quais lugares serodestinados os resduos de uma produo, o lixode uma cidade, a construo de uma fbrica, odesmatamento / destruio de um ecossistemaetc. Ainda na busca por um aprofundamento daquesto, faz-se relevante perguntar, tambm,

    quais os quesitos que levam determinados lugaresa serem convertido em reas de preservaoambiental, pois, em um momento onde o mundose questiona sobre a preservao do meioambiente, muitos grupos tradicionais soexpropriados de seus territrios para que umaviso de meio ambiente romantizada possa serpreservada.

    Nesse processo, conflitos ambientais sedelineiam, caracterizando-se tanto por umadisputa material quanto simblica do territrio.Henri Acselrad (2004), a respeito dessefenmeno, ir definir tais conflitos como sendo

    (...) aqueles envolvendo grupos sociais commodos diferenciados de apropriao doterritrio, tendo origem quando pelo menos umdos grupos tem a continuidade das formassociais de apropriao do meio quedesenvolvem ameaada por impactosindesejveis transmitidos pelo solo, gua, arou sistemas vivos decorrentes do exercciodas prticas de outros grupos. (...) Esse conflitotem por arena unidades territoriaiscompartilhadas por um conjunto de atividadescujo acordo simblico rompido em funoda denuncia dos efeitos indesejveis daatividade de um dos agentes sobre ascondies materiais do exerccio das prticasde outros agentes. (Acselrad, 2004; p. 27).

    Uma vez instaurada no territrio, a novaestrutura de poder, inerente a uma lgica deproduo prpria, marginaliza os agentes sociaisno l igados a ela, tanto da nova lgicaprodutiva, como dos processos de tomada dedeciso. Desse modo, para alm de umaexcluso da apreenso material do meio, essesagentes, por no terem voz para se fazeremouvir no espao pb lico, respondem,empiricamente, pelas cargas residuais dessanova lgica produtiva e pelos riscos gerados.Ou seja, os menos favorecidos acabam ficandomais expostos s consequncias, de ordemnegativa, de uma tcnica que no foi, e nemmesmo , legtima para eles no plano simblico.Uma tcnica que foi pensada em outros espaose simplesmente plotada em uma realidade aqual, em sua gnese, no pertencia,

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    configurando, o que os estudiosos do temadenominam de zonas de sacrifcio, locais deforte r isco ambienta l e onde a (.. .)desregulao ambiental favorece os interesseseconmicos predatrios (...). (Acselrad, 2004a;p. 14).

    Nesse sentido, o territrio tanto palcocomo objeto de anseio desta disputa material esimblica. Portanto, em ltima instncia, o quese tem uma disputa por territrio, uma disputape lo espao enquanto instrumento demanuteno do exerccio de poder. O territrio, fundamentalmente, um espao definido edelineado por, e a partir de, relaes de poder.E este poder (...) corresponde habilidadehumana de no apenas agir, mas de agir emunssono, em comum acordo. O poder jamais propriedade de um indivduo; pertence ele a umgrupo e existe apenas enquanto o grupo semantiver unido. (Arendt, 1985:24 Apud Castro,1995. p. 80).

    O territrio, portanto, no um espaoconcreto em si, mais sim o espao fsicoapropriado por um grupo social que, a partir desua interao com os atributos daquele meio,desenvolvem uma identidade sociocultural, demodo que este grupo no pode ser maiscompreendido sem seu territrio.

    Nesse sent ido, a const i tuio doterritrio tanto feita de relaes de poder,quanto de relaes de identidade, que implicaa nomeao de elementos smbolos,representaes deste espao signos, cdigode conduta etc. sejam eles oficiais ou no,posi t ivos ou negat ivos, revelando-se umterritrio lugar.

    A fragmentao do espao, de maneiradesigual e injusta, gerando um dgrad deespaos pobres, desprovidos de toda umaurbanidade, a reas ricas, servidas de todos osequipamentos e infraestrutura urbana, promoveno s uma excluso social como uma exclusoterritorial, alimentando e mantendo um quadrode injustia ambiental.

    Desigualdade Espacial intramunicipal:A Interface Rural-Urbano.

    Como mencionado no tpico anterior, asdesigualdades socioespaciais esto intimamentel igadas lg ica que gere a organizaoterritorial. Esta, nas ltimas dcadas, por meiodas aes do poder pblico, centrou-se nagesto terr itor ial urbana. Entretanto, oacelerado e desordenado cresc imentopopulacional urbano, associado ao modelo deurbanizao brasi leira, levou cr iao deespaos centrais ricos e espaos perifricospobres e pauprr imos, alm de inmerasdesapropriaes territoriais.

    A nfase em uma lgica urbano-industrial tem exercido diferentes presses emterritrios particulares, no-urbanos, mas queesto intimamente relacionados rede urbana,sendo fixos e de seus fluxos. Enquanto pressespresentes nessa dinmica, pode-se apontar,entre outras, o ecoturismo, o acelerado processode formao de microncleos urbanos e dereas de proteo ambiental.

    Cabe esclarecer que a relao campo-cidade aqui abordada no faz meno a umacontradio clssica, histrica, baseada nadiviso do trabalho e na diferenciao bipolarde classes. Tratar-se- aqui de uma relaoreafeioada, centrada em uma nova hierarquiaespacial, de centro e periferia, estabelecida pornovas centralidades.

    Os espaos rurais, dentro dessa novalgica, que agregam um patrimnio ambientalpaisagstico, o verde, so convert idos emespaos-mercadoria e, na lgica do turismo/ecoturismo, passam a ser fator de gerao delucro. Estabelece-se, assim, novas relaesentre as reas e novos contedos para asrelaes sociais, tanto dentro dos territrios,como deste com o mundo externo.

    De maneira exemplificativa, tem-se ocaso do Municpio de Nova Friburgo RJ que,dos oitos distritos que compe seu territrio,seis so rurais, ou seja, possuem maior parteda populao em rea rural, em detrimento daurbana.

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    No caso particular deste municpio, o quese presenc ia um gradual processo deurbanizao de alguns de seus distritos rurais,advindo da emergncia de uma funcionalidadeturstica conferida a eles.

    O stimo distrito deste municpio, o deSo Pedro da Serra, pode ser tomado comoexemplo desta conjuntura. Ele apresenta,acompanhando uma tradio da regio SerranaFluminense, significativo uso agrcola do solo.Entretanto, o manejo agrcola empregado bastante imprprio, materializando-se em altastaxas de eroso, tendo, ainda, grandeproblemtica com relao pequena produo:os pequenos agricultores familiares tentam seadaptar ao modelo da agricultura moderna, masse deparam com o problema da falta de recursospara investir na produo, carncia de auxiliotcnico por parte dos rgos responsveis,dificuldade de acesso a crdito e a prevalnciade uma topografia acidentada e de vrzeasestreitas e mal drenadas.

    Diante de tal conjuntura, a atividadeagrcola vem decaindo lucrativamente ao longodos anos, em funo, principalmente, da perdada base f sica de produo.Concomitantemente, h a constatao daveemncia de um processo de recriao doespao agrrio, onde se verifica uma valorizaodas diferenas, das singularidades, que passaa caracteriz-lo como um espao multifuncionale pluriativista: uma paisagem rural subordinadaa uma lgica capitalista de consumo.

    No obstante, diante de um quadro decarncia de polticas pblicas voltadas para osinteresses da pequena agricultura familiar e deuma va lor izao vert iginosa das terraspromovidas pela especulao turstica, o quese tem um gradual abandono da atividadeagrcola em favor da venda de propriedades eda busca por empregos no setor turstico, ematividades que exigem baixa qualificao, abaixas remuneraes e sem vnculosempregatcios, configurando, portanto, umasituao de desapropriao territorial, visto queh um rompimento identitrio do agricultor, da

    unidade familiar de produo, com o espaofsico socialmente construdo.

    Simultaneamente, todo esse processo,como j mencionado, d-se diante de umquadro de carncia de polticas pblicas voltadastanto para os interesses da pequena agriculturafamiliar, como da prpria atividade turstica, demodo que esta, sem contar com o apoio tcnico-f inance iro dos rgos competentes, vemcrescendo desordenadamente.

    Nessa conjuntura, enquanto o turismocresce vertiginosamente, os investimentos eminfraestrutura no o acompanharam com amesma velocidade: no h tratamento deesgoto no distrito, as ruas de So Pedro da Serraso as mesmas de 25 anos atrs, que no forammodernizadas bem como novas ruas tambmno foram abertas, e no h um controle legalque trate de reger a atividade turstica (reamnima dos loteamentos, cota de altura dasconstrues...).

    A ausncia de ass istncia tcnicaapropriada na atividade agrcola contribui paraa realimentao e manuteno de um ciclovicioso ligado ao emprego de agrotxicos que,sabidamente, so substncias deletrias tantopara a sade humana como para a sade domeio. Seu emprego indiscr iminado, semorientao, ou pior, contando com a orientaode representantes de laboratrios, como comum ocorrer, associados a outras prticas,como irrigao sem controle, no adoo derotao de culturas, de pousio etc., corroboracom a necessidade de implementao de dosescada vez maiores de insumos agroqumicos,com vistas a compensar o desequilbrio dosistema.

    Consecutivamente, a prevalncia de umaconcepo preservacionista, ligada questoambiental, e a venda da paisagem verde pelaat ividade tur st ica vem contr ibuindosobremaneira para o gradual abandono daprtica do pousio, visto que para o empregodeste faz-se necessrio, posteriormente aoperodo de descanso, a limpeza do terreno comfogo, ponto neural no choque entre turismo e

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    agricultura. A ausncia dessa prtica intensificaainda mais o emprego de agrotxicos.

    A atividade turstica, como o interesse emmanter a paisagem verde a ser incorporadaentre os atributos que justifiquem e legitimamsua prtica e existncia, tornou-se a maior fontede denncia das prticas de limpeza de terrenoscom fogo. Essa postura embasada pelaexistncia do decreto n. 750, homologado em1993. O referido decreto dispe sobre o corte, aexplorao e a supresso de vegetao primriaou nos estgios avanado e mdio de regeneraode Mata Atlntica, e d outras providncias. Apartir deste, como presso por uma preservaoambiental, a atividade de agricultura familiar, como emprego do manejo itinerante, praticado porcomunidades tradicionais, passa a ser ameaado.

    Obviamente o decreto possui um papelimportante no processo de tomada de conscinciacoletiva em relao necessidade de recuperaoe conservao da Mata Atlntica. Entretanto,resulta, em casos no raros, em prticascontrrias, em funo, essencialmente, do fatode que sua formulao e implementao ignorouos contextos locais de produo e reproduosocioeconmica, forando os agricultores a alterarsua sistemtica de manejo, que j vinha de umprocesso de estrangulamento provocado pelaimplementao dos preceitos da revoluo verde.

    Em So Pedro da Serra, assim como emoutras localidades onde se verifica a existnciade comunidades tradicionais, a partir destedecreto, o pousio passou a ser feito em menortempo, raramente ultrapassando trs anos, a fimde evitar o impedimento, por parte dos rgosfiscalizadores responsveis, do corte das rvoresposteriormente, em funo do tamanho do peitoj atingido por elas.

    Completa o quadro da presso advinda deuma viso de preservao ambiental, o fato de area onde se encontra o distrito ter sido convertidaem rea de Proteo Ambiental, a APA de Macade Cima, uma Unidade de Uso Sustentvel, noano de 2001, pelo Decreto n. 29.213. Entretanto,o processo de constituio desta no se deu deforma democrtica, de modo que a populaolocal sequer tomou conhecimento do fato no

    perodo, vindo a ser informada somente no anode 2005, quando foi institudo, pelo Decreto n.38.234, seu Conselho Gestor. Alm disso,passados mais de cinco anos de sua instaurao,a APA ainda continua sem Plano Diretor e/ouManejo.

    No obstante, apesar do turismo colocar-se como defensor do verde, do meio ambiente,seu crescimento acelerado e desordenado, semo devido acompanhamento de obras deinfraestrutura, tem levado contaminao dosrecursos hdricos do distrito, em funo do maioraporte de esgoto, visto que no h em So Pedroda Serra rede coletora de esgoto sanitrio.

    A presena de rede coletora de esgotosanitrio insere-se nos padres de saneamentobsico adequado. Sua ausncia est diretamenterelacionada a problemas de sade humana, como,por exemplo, poliomielite, hepatite tipo A,giardase, disenteria amebiana, diarria por vrus,etc. A falta de saneamento, e particularmente aausncia de rede de esgoto, o principal fatorrelacionado morte de menores de cinco anosno Brasil, por diarreia.

    Ao mesmo tempo, a demanda dacrescente atividade turstica por mo de obra,associada a fatores relacionados expressividadedo distrito em funo do turismo, como maiornmero de nibus ao longo do dia, presena deescola de nvel fundamental e mdio, posto desade, centro cultural, cinema etc., tem colocadoo distrito como rea de aporte migratrio, tantopara a populao dos distritos adjacentes, comopara a populao metropolitana que busca ummodelo de vida distinto do grande centro.

    Essa nova tendncia vem,gradativamente, provocando um processo deinchao no distr ito, contr ibuindo para oagravamento das situaes descritas acima, almde, por no ter como abranger a todos quechegam, levar a um pequeno processo defavelizao, que vulnerabiliza ainda mais umaparcela da populao que j se encontra margem desse processo.

    Outro exemplo emblemtico da interfacerural-urbana, que cabe ser mencionado, se refere

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    populao de caiaras da Praia Grande daCajaba Parati / RJ, onde se localiza a ReservaEcolgica de Jutuatinga. Nesta reserva reside hvrias geraes uma comunidade caiara.

    Esta comunidade, especialmente entre1950 e 1980, vivencia um conflito ambientalmotivado pela chegada de grileiros e de uma forteespeculao imobiliria, impulsionada pelaatividade turstica na rea. No ano de 1990, esseproblema torna-se ainda mais complexo com acriao de uma unidade de conservao denatureza non edificandi. De acordo com aclassificao desta unidade no seria permitidoimplantar qualquer tipo de edificao na rea. Anecessidade de reclassificao gerou um conflito parte. De acordo com Cavalieri (2004), com acriao da reserva a populao no poderia maisplantar ou pescar, sob risco de serem punidospela lei. Ainda, caso se lanassem em atividadeno setor turstico, como alugar barcos para osturistas, vender produtos e afins, ser iamdescaracterizados como caiaras e o processo dereclassificao da unidade ficaria comprometido,visto que no haveria uma comunidade tradicionala ser preservada.

    Mais uma vez uma desterritorializao sedesenha, na qual o caiara, levado a um processobrusco de transformao, passa a vivenciar umanova maneira de compreender sua realidade e,por reflexo, seu territrio e identidade.

    Finalmente, cabe ressaltar que a ausnciade um planejamento territorial que contemple ainterface campo e cidade, procurando seaprofundar nos processos de desigualdadesocioespacial inerentes a essa inter-relao,inf luencia, igualmente, no processo dedesigualdade espacial dos padres de sadehumana e ambiental.

    Planejamento Territoria l comoFerramenta de Promoo de Sade eJustia Ambiental

    Como j mencionado, h longa data oplanejamento territorial urbano foco de aesdo poder pblico. O Estatuto das Cidades, queregulamenta os artigos da constituio federal

    que tratam da polt ica urbana, tem sidoconsiderado por alguns estudiosos um dosmaiores avanos legais em termos de gesto eplanejamento urbano no Brasil.

    Em sua seo I, O Estatuto das Cidadescoloca como um dos instrumentos doplanejamento terr itor ial urbano, ao nvelmunicipal, o plano diretor. Este, por sua vez,em termos legais, vem a ser uma ferramentavoltada para a gesto exclusiva de reasurbanas, apesar de seu raio de atuao, emalguns municpios, abarcar reas urbanas e no-urbanas, reas rurais. Nesse ponto, reside oquest ionamento: Como essa ferramentaincorpora as demandas e conflitos ambientaisinerentes a territrios to particulares, nourbanos, mas intrinsecamente inseridos naconfigurao da rede urbana e que vmsofrendo mltiplas e distintas presses do meio,da lgica urbana?

    O plano diretor, tanto na constituiocomo no Estatuto das Cidades, apontado comoo documento que guarda os preceitos deordenao territorial necessrios ao plenocumprimento da funo social da propriedadeurbana:

    Art. 39. A propriedade urbana cumpre suafuno social quando atende s exignciasfundamentais de ordenao da cidadeexpressas no plano diretor, assegurando oatendimento das necessidades dos cidadosquanto qualidade de vida, justia social eao desenvolvimento das at iv idadeseconmicas, respe itadas as d iretr izesprevistas no art. 2o desta Lei. (Brasil, 2001).

    Tal meta, ainda de acordo com o mesmodocumento, somente pode ser alcanadaatravs do emprego de um carter participativodurante todo seu processo de elaborao,fiscalizao e implementao. Para isso, ospoderes Legislat ivo e Executivo, deveroassegurar a realizao de audincias pblicas edebates, que devero contar com a participaoda populao e de associaes representativasdos vrios segmentos da comunidade, com adivulgao dos documentos e informaes

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    produzidos a partir destes fruns de debates,alm de garant ir o acesso de qualquerinteressado a esses mesmos documentos einformaes.

    atravs do processo participativo edemocrtico que os grupos mais vulnerveispodem ter voz, colocar suas demandas e setornarem atores ativos no processo. Esse umdos principais fatores para o estabelecimentode uma situao de justia ambiental, umasituao na qual

    (...) um conjunto de princpios e prticas queasseguram que nenhum grupo social, seja eletnico, racial, de classe ou gnero, suporteuma parce la desproporc ional dasconseqncias ambientais negativas deoperaes econmicas, decises de polticase de programas federais, estaduais, locais,assim como da ausncia ou omisso de taispolticas. (Porto, 2007.p.167)

    Tal condio, a da adoo de um carterparticipativo, fundamental para a busca deum equilbrio de fora na disputa por territriosem conflitos ambientais, pois atravs dela hum empoderamento dos grupos maisvulnerveis, sejam eles inerentes a espaosurbanos ou rurais, pois estes, ao terem voz eespao para se colocarem, no mais seroalijados dos processos de tomada de deciso.

    Concomitantemente, servindo comoinstrumento de promoo de justia ambiental,o plano diretor, enquanto ferramenta de gestoterritorial urbana, tambm se coloca como umimportante instrumento de promoo da sade,tendo capacidade de ag ir nas di ferentesdimenses que atuam sobre a sade humana edo meio. Isso porque

    O conceito de sade implica o entendimentodos processos e condies que propiciam aosseres humanos, em seus vrios nveis deexistncia e organizao (pessoal, familiar ecomunitrio) atingir objetivos, realizaes ouciclos virtuosos de vida embutidos na culturae nos valores das sociedades e seus vriosgrupos sociais. A sade possui, portanto,alm das biomdicas, dimenses ticas,

    sociais e culturais irredutveis, sendo objetode permanente negociao e eventuaisconflitos dentro da sociedade, dependendode como os valores e interesses se relacionamas estruturas de poder e distribuio derecursos existentes. (Porto, 2007. p.82).

    Entendendo desta forma o conceito desade, sua promoo em contextos vulnerveistraduz-se na interao das questes ticas,sociais e cul tura is que inf luenc iam nadistribuio dos riscos, degradao dos sistemasambientais e na fragmentao da dignidadehumana e dos valores da sociedade.

    Dessa forma, uma gesto territorialpautada nos preceitos acima delineados podeatuar diretamente nos determinantes espaciaisda sade, j que, como ressaltadoanteriormente, sade no se restringe meraausncia de doenas, no faz referncia apenasa fatores genticos e biolgicos humanos e aosambientais mais imediatos, mas estintrinsecamente relacionado a determinantessociais, econmicos, polticos e culturais, demaneira mais ampla.

    Um planejamento territorial urbanoassim del ineado, ao promover a sadeambiental, atua diretamente nas questes desade pblica, contribuindo dessa forma paraa construo de municpios saudveis e para amanuteno dos sistemas de suporte a vida.

    Nesse contexto, a elaborao eimplementao do plano diretor pode contribuirpara a criao de espaos de construo depolticas que atendam s necessidades dapopulao atravs, principalmente, de agendasarticuladas que contemplem estratgias depromoo da sade como tema transversal nodelineamento de um desenvolvimento saudvele sustentvel.

    O planejamento territorial deve sertomado como pilar para a estruturao demecanismos que possibilitem a superao doatual panorama de desigualdade socioespacialque influencia diretamente na qualidade de vidae na sade humana e do meio.

  • Planejamento Territorial:Suas implicaes para a promoo da sade e da justia ambiental, pp. 19 - 27 27

    Consideraes Finais

    A superao das desigualdadessocioespaciais um desafio, no s hoje, masdesde longa data, que precisa ser superado.Quanto mais essa questo ignorada e deixadaem segundo plano pelas aes do poder pblico,mais grave torna-se o quadro.

    As desigualdades e injustias ambientaisso engendradas no processo de reproduo doespao, portanto, torna-se imprescindvel asuperao deste processo, que se traduz, nocampo emprico, enquanto prtica social.

    O plano diretor um instrumento degesto, de cunho democrtico, ainda bastante

    novo, mas que apresenta um significativopotencial para reverter processos de exclusoestruturais se conduzido de maneira participativa,ou seja, se promover, no mbito das polticaspblicas, a participao social, permitindo que asdemandas de sade ambiental, das populaesmais vulnerveis, apresentadas por estas, sejamincorporadas.

    Somente desta forma ele efetivamentepode conduzir, no apenas a propriedade urbana,mas a rede urbana, a cumprir sua funo social,de modo que a reivindicao se traduza no pelodireito da moradia saudvel em si, mas pelodireito cidade, com todos a atributos que elapossa oferecer.

    ACSELRAD, H. Justia Ambiental novasarticulaes entre meio ambiente e democracia.In: Acselrad, H. Leroy, J. P. Novas Premissas daSustentabilidade Democrtica. FASE, RJ, 1999.1 4p.

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    Referncias Bibliogrficas

    Trabalho enviado em Junho de 2008

    Trabalho aceito em Outubro de 2009