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Capítulo VII. Tempo, autonomia, sociedade civil e esfera pública: uma introdução ao debate a propósito dos ´novos´ movimientos sociais na educação Titulo Leher, Roberto - Autor/a Autor(es) La Ciudadania Negada. Políticas de Exclusión en la Educación y el Trabajo En: Buenos Aires Lugar CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Editorial/Editor 2000 Fecha Colección movimientos sociales; Educacion; Temas Capítulo de Libro Tipo de documento http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/gt/20101010022921/8leher.pdf URL Reconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genérica http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es Licencia Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSO http://biblioteca.clacso.edu.ar Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) Latin American Council of Social Sciences (CLACSO) www.clacso.edu.ar

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  • Captulo VII. Tempo, autonomia, sociedade civil e esfera pblica: uma introduo aodebate a propsito dos novos movimientos sociais na educao

    Titulo

    Leher, Roberto - Autor/a Autor(es)La Ciudadania Negada. Polticas de Exclusin en la Educacin y el Trabajo En:Buenos Aires LugarCLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Editorial/Editor2000 Fecha

    Coleccinmovimientos sociales; Educacion; TemasCaptulo de Libro Tipo de documentohttp://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/gt/20101010022921/8leher.pdf URLReconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genricahttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es

    Licencia

    Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSOhttp://biblioteca.clacso.edu.ar

    Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO)Conselho Latino-americano de Cincias Sociais (CLACSO)

    Latin American Council of Social Sciences (CLACSO)www.clacso.edu.ar

  • Captulo VII

    Tempo, autonomia, sociedade civil e esfera pblica:uma introduo ao debate a propsito dos novos

    movimientos sociais na educao

    c Roberto Leher*

    Introduo

    O fim dos regimes militares no Cone Sul criou uma onda de otimismo emrelao democratizao da sociedade, em especial, por meio doaprofundamento do carter pblico do Estado, aps o longo inverno de violnciainstitucional. Mas a chamada transio no caminhou inexoravelmente para ademocracia, como, alis, a anlise da correlao de foras j indicava na poca.No Brasil, as eleies indiretas e a constituinte congressual foram derrotas quesinalizaram que a transio lenta, gradual e segura contava com forte apoio dasclasses dirigentes. No entanto, tambm as multides que clamaram por Diretas,J! e a reorganizao dos movimentos sociais em favor de uma ConstituinteSoberana deixaram suas marcas. Apesar da constituinte de 1988 no ter sidolivre e soberana como reivindicaram os setores democrticos da sociedadebrasileira, condies polticas e conjunturais excepcionais garantiramsignificativas conquistas no Captulo III da Constituio Federal de 1988: DaEducao, da Cultura e do Desporto.

    Com a consolidao do neoliberalismo, paulatinamente, os movimentossociais populares foram sendo subrepticiamente deslocados para a margem dosespaos decisrios. Os centros decisrios tornaram-se mais exclusivos, novos

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    * Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo (USP). Professor Adjunto da Faculdade de Educao daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Presidente da ANDES Sindicato Nacional.

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    sujeitos passaram a ser chamados a opinar sobre aspectos secundrios daspolticas educacionais e, na maior parte das vezes, a contribuir para oencaminhamento de polticas j definidas, como ocorre atualmente no ConselhoNacional de Educao, pensado originalmente como rgo de Estado ehodiernamente ressignificado como rgo de governo.

    Este trabalho tem o objetivo de discutir alguns pressupostos que esto nabase da designao novos movimentos sociais, tidos como caractersticos doperodo atual de globalizao. Neste perodo, dito de desaparecimento dotrabalho, antigas formas de organizao social estariam vivendo o seu ocaso,como os sindicatos e os partidos com orientao marxista, por exemplo, enquantonovas esferas estariam se afirmando no lugar da antiga sociedade de classes,cindida pelas relaes de produo. No cerne da vida social da nova era, estariaemergindo uma sociedade civil renovada, lugar de autonomia e de participao,por meio de interaes dialgicas capazes de configurar uma esfera pblica.

    Numa primeira etapa, o estudo discute o pressuposto que se constitui no pilardas proposies das ideologias atualmente dominantes: o tempo. A seguir, debateo contexto de surgimento de um novo conceito de sociedade civil, desvinculadodo mundo do trabalho, na Amrica Latina. Na sequncia, so examinadosconceitos e noes como autonomia e descentralizao e, tambm, os conceitoshabermasianos de mundo da vida, sistema e esfera pblica. Na ltima parte, oestudo defende a necessidade da ampliao do conceito de classe trabalhadora,por meio da expresso classe-que-vive-do-trabalho e faz algumas pontuaessobre a resistncia dos movimentos sociais s reformas educacionais neoliberais.

    Tempo e Periodizao: Notas para uma Crtica Fundamental

    um trusmo afirmar que a designao dos movimentos sociais expressauma determinada datao. A simples meno de movimentos como o fabianismo,o jacobinismo, o luddismo, o menchevismo, o bolchevismo, o leninismo, omaosmo e o fascismo, por exemplo, evoca uma certa noo de tempo. Masquando examinamos mais de perto, a suposta preciso temporal tende a noresistir. Isto se deve complexidade e polissemia dos termos indicativos dotempo (situao claramente evidenciada em expresses como campesinato, lutade classes e democracia), face a mudanas histricas e estruturais nas categorias,nem sempre sistematizadas por novos termos e conceitos e, principalmente, doconceito de periodizao, sempre relacionado s distintas posies polticas dossujeitos, dos leitores e intrpretes.

    Os autores marxistas aceitam, em geral, que os modos de produo soindicadores fortes de tempo, pois registram descontinuidades entre os mesmos.Mas esta interpretao no consensual. Longos debates e fortes controvrsias,

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  • ainda hoje, ocorrem a respeito da relao capitalismo e feudalismo. Algunsautores, adeptos da tese da articulao dos modos de produo, vem feudalismoem certas formas de organizao do trabalho na frica e na Amrica Latina. Oproblema da periodizao torna-se ainda mais complexo quando a caracterizaodo tempo objeto de lutas polticas. No lugar de rupturas e descontinuidadesentre os modos de produo, os liberais vem o tempo como um continuumquesomente se altera de forma adjetiva: o capitalismo expressa relaes perenes,somente as suas qualidades so modificadas, de modo concorrencial, regulado,intelectual, globalizado etc.

    Esta seo parte da premissa de que o debate atual a respeito da periodizaoest inscrito em controvrsias de natureza poltica. O propsito sistematizar osconceitos necessrios crtica da (falsa) periodizao reivindicada pelo capital,como a globalizao e a revoluo cientfico-tecnolgica que lhes sosubjacentes. Mais do que uma anlise interna destas noes, o objetivo retomaro debate a respeito da periodizao como pensada por Marx e alguns de seusprincipais interlocutores. nfase especial dada crtica ao pretensoevolucionismo de Marx que faria de sua periodizao uma filosofia da histria(conexo linear entre feudalismo, capitalismo e comunismo). A questo aquidesenvolvida tem sido objeto de srias controvrsias tanto entre os marxistasquanto entre estes e os no marxistas. Como pode ser visto adiante, o debatepossui importantes implicaes tericas (epistemolgicas) e poltico-estratgicas.

    A periodizao ao mesmo tempo condio para tornar pensvel a histria ela parte da reconstruo do objeto e objeto de embates polticos, pois o modode pensar e registrar o tempo tem desdobramentos prticos. De fato, diferentecompreender o capitalismo como um modo de produo resultante da evoluonatural das sociedades pretritas, sem rupturas com as mesmas (liberalismo), oucomo um modo de produo histrico, determinado, construdo a partir dadestruio/ subordinao do modo de produo anterior (Marx). Sendo histrico,este pode ser transformado; sendo um produto natural, a prpria idia detransformao fica deslocada, seno desprovida de sentido. Do mesmo modo, absolutamente diferente dizer que as transformaes cientfico-tecnolgicasatuais engendram um novo modo de produo ps-capitalista, ou dizer que elasreconfiguram o capitalismo em um perodo de crise estrutural, entre outrosmotivos porque o desenvolvimento das foras produtivas no nenhum motor dahistria. De igual maneira, uma coisa afirmar que o desenvolvimento das forasprodutivas cria por si s as condies para a negao do capitalismo; outra, bemdistinta, trabalhar a contradio foras produtivas/ relaes de produo pararomper com os limites da ordem burguesa.

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    Situando o problema

    Para ultrapassar o cinturo protetor das ideologias atualmente dominantes, preciso criticar a noo de tempo implcita na dita Era do mercadoou daglobalizao. De fato, o tempo tem aqui um papel crucial, pois a ideologia daglobalizao desloca o objeto concreto de anlise o modo de produocapitalista em seu movimento contraditrio para o passado, em favor de umnovo perodo, a globalizao. Este novo perodo, conforme o pensamentodominante, fez eclodir novos movimentos sociais para os quais o trabalho socialperdeu a sua centralidade, em favor de novas identidades, valores e problemas.

    A tentativa de opor um perodo a outro recorrente nas formulaes quebuscam legitimar as bases do sistema capitalista em momentos de crise. Weberops o mundo antigo patrimonial ao sistema da modernidade, objetivo,legalista e burocrtico, que configura o tempo racional ou moderno; Rostowops as sociedades tradicionais s sociedades (ps-t a k e - o f f) industriais;atualmente, o Consenso de Washington ope o w e l f a re state e odesenvolvimentismo globalizao de feio neoliberal. Com efeito, taismarcadores de tempo indicam a existncia de crises estruturais profundas nocapitalismo, como a do final do sculo XIX vivida por Weber; a crise de 1930,que levou a economia neoclssica ortodoxa ao descrdito, criando as condiestanto para o surgimento da macroeconomia keynesiana, quanto da subdisciplinaeconomia do desenvolvimento (Albert O. Hirschman, entre outros), e a criseestrutural que se agudiza desde a dcada de 1970, fazendo ressurgir a economianeoclssica, agora em uma feio neoliberal (a ideologia que est no mago daglobalizao). Novas formas de datao decorrem tambm de momentos de lutapelo domnio econmico, poltico-ideolgico e militar (como a guerra-fria,queest na base da ideologia do desenvolvimento como teorizada por Rostow). Todasestas tentativas de periodizao tm como denominador comum uma concepoidealizada de tempo (tradicional/ moderno; patrimonial/ moderno etc.), que apagadiferenas marcantes e, sobretudo, desconsidera o modo como as contradies docapitalismo vm operando. O movimento, captado por Lnin, expresso na Lei doDesenvolvimento Desigual do Capitalismo e, mais recentemente, por SamirAmin (1996), na tese da polarizao centro/periferias, so solenementeignorados: ontem em benefcio do imperialismo e do desenvolvimentismo;atualmente em proveito da ideologia da globalizao, para faz-la funcionarcomo marcador temporal.

    Aps exposio miditica sem precedentes, como negar a validade da crenade que a globalizao marque um novo perodo da histria do capitalismo,advindo de uma nova revoluo tecnolgica que vem transtornando o tempo quecaracteriza o capitalismo? O encaminhamento desta pergunta-orientadora exigeque o estudo defina o que constitui a essncia do tempo no capitalismo e, aomesmo tempo, especifique a natureza de seu movimento contraditrio. Nestes

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  • Ibid: p. 74).No entanto, nada disso tem sentido se a lei do valorfor desconsiderada, pois estano comanda apenas a vida econmica, mas submete todas as outras dimensesda vida social lei implacvel da acumulao do capital (Ibid: p. 75). Estaperspectiva, como pode ser visto adiante, est em desacordo com a de Habermas,quando este estabelece que as implicaes negativas da razo instrumentalcolonizam (e, portanto, so externas ) o mundo da vida.

    Deste modo, ainda com Amin (1996), se o capitalismo um sistema mundial porque a economia mundial que o subentende , em sua globalidade, regidapelo sistema de produo capitalista. A economia mundial porque a diviso dotrabalho sobre cuja base so organizadas as produes essenciais uma divisomundial do trabalho. A originalidade de Amin consiste em propor e demonstrar atese de que o desenvolvimento desigual do capitalismo que, em sua formamoderna, surge no sculo XIX, com a diviso entre os pases industrializados eos no engajados na industrializao resulta da polarizao dodesenvolvimento capitalista mundial. De um lado, os pases do ncleo integramos seus mercados tridimensionalmente(mercadorias, capital e trabalho), de outrolado, os pases perifricos integram bidimensionalmenteos seus mercados(mercadorias e capital). O mercado de trabalho dividido por uma muralha queope os pases centrais aos perifricos. este movimento desigual que fratura aeconomia mundial e que a ideologia da globalizao quer encobrir.

    Tempo-mercadoria: uma revoluo terica de Mar xAo discutir os conceitos centrais de Marx, como mais-valia, o estudo

    pretende sustentar a tese de que as mudanas que pretensamente estariam na baseda globalizao no alteram os fundamentos do MPC e do seu devir histrico.

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    Ainda que Marx no tenha se indagado diretamente a respeito da questo oque o tempo?, ou melhor, mesmo no tendo situado a questo nestes termos,incontestavelmente Marx revolucionou o conhecimento cientfico do tempo. Nostermos de Hanson (1997: p. 46), o tempo uma questo fundamental, talvez aquesto fundamental dos trabalhos de economia poltica do Marx da maturidade.Rejeitando a concepo de tempo abstrato, linear e dissociado dosacontecimentos concretos, fez sobressair o seu carter poltico, econmico ecultural, descobertas que culminaram com o seminal conceito de sobrevalor(mais-valia).

    Marx demonstrou que toda transformao social implica uma mudanafundamental na intuio do tempo. No capitalismo, por exemplo, amercantilizao do tempo o tornou dotado de qualidades bem estranhas:varivel, linearizado, segmentarizado, mensurvel e, principalmente,manipulvelmediante uma contabilidade fantstica (Alliez, 1999: p. 33). Marxdescobriu que o tempo a realidade quantitativa do trabalho, base do processo deextrao da mais-valia (o trabalhador concebido como tempo de trabalhopersonificado, determinao quantitativa do trabalho), metamorfoseada comofetiche na mercadoria. Rompendo com os preceitos da economia clssica deSmith e Ricardo, Marx examinou a teoria do valor trabalho em uma perspectivainteiramente nova. Com efeito, em sua formulao, o trabalho a nica fontecapaz de produzir valor, por meio do sobrevalor, isto , pelo excedente de valorproduzido pelo assalariado durante seu tempo de trabalho global, uma vez que eletenha reproduzido o valor de sua fora de trabalho (salrio). O sobrevalor umarealidade prpria do capitalismo, designando, por metonmia, a exploraocapitalista, conforme nota J-P. Lefebvre (1985).

    No fortuito que o conceito de sobrevalor tenha sido construdo nas obrastardias de Marx. O conceito de sobrevalor uma criao original de Marx,aparecendo em sua forma sistematizada nos Grundrisse(1857). De fato, osobrevalor no pode ser definido individualmente, nem calculado em tempo realcomo a corvia feudal (Ibid: p. 1114). O sobretrabalho tornado invisvel nocapitalismo, s podendo ser definido ao nvel abstrato do conjuntodo trabalhosocial. Alm disso, Marx no o caracterizou como um conceito geral, dividindo-o em duas dimenses no mutuamente exclusivas: o sobrevalor absoluto e osobrevalor relativo (dimenses que no podem ser concebidas como realidadesdistintas). O sobrevalor absoluto obtido pelo prolongamento da durao globalda jornada de trabalho do operrio. Aqui, a durao do trabalho necessrio (ovalor de sua fora de trabalho expressa em seu salrio) permanece igual. Estesobrevalor absoluto possui um limite varivel segundo os pases, as pocashistricas e a configurao da luta de classes, encontrando um outro limite naresistncia fsica do trabalhador (Ibid: p. 1115). O sobrevalor relativo obtido pormeio da reduo da durao do trabalho necessrio, mediante o efeito de vriosfatores combinados, correspondentes a diferentes perodos sucessivos do

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  • desenvolvimento histrico da produo capitalista: cooperao, diviso dotrabalho, mquinas, sistema de mquinas, aplicao da cincia ao processo detrabalho etc.

    Com o conceito de mais valia, Marx coloca um ponto final na crena, cara economia clssica, de que o valor provm da circulao. O sobrevalor a chavepara a resoluo do mistrio do valor.A esta palavra vazia da economia clssica(valor), Marx confere um contedo real e validade conceitual, por meio daassociao do par sobretrabalho - sobrevalor.

    Samir Amin (1996: p. 69) observa que o MPC representa uma rupturaqualitativa com os sistemas que o tm precedido, no sentido preciso de que nocapitalismo a lei do valor no comanda somente a vida econmica (sistema,conforme Habermas), mas antes todo o sistema social do mundo modernocapitalista (no excluindo o mundo da vida, como quer Habermas), quer dizer,comanda as relaes novas e especficas entre a base econmica do sistema e asua superestrutura ideolgica.

    Marx (1985) observa que apenas no MPC o capital se desenvolve no sentidoda compresso espao-temporal. Assim, se por um lado, o capital tende aconquistar todo planeta como seu mercado; tende, por outro lado, a destruir oespao por meio do tempo, isto , a reduzir ao mnimo o tempo necessrio paramover-se de um lugar para outro (Ibid: p. 391). A expanso do mercado e aanulao do espao pelo tempo, prossegue Marx, ilustra a tendncia do capital universalidade, diferenciando-o de todas as formas de produo anteriores.Parece claro que a compresso espao-temporal , portanto, uma tendncia geraldo prprio modo de produo e no um sinal de que este tenha sido suplantadopor outra modalidade de capitalismo (intelectual, ps-industrial, globalizado etc).

    Visto alguns elementos da teoria do valor que buscaram corroborar a crticas periodizaes operadas pelas ideologias dominantes para justificar osurgimento de novas eras, em que as contradies que tensionavam o perodoanterior estariam fadadas ao desaparecimento -, cabe indagar: em que consistiriauma ruptura no continuumdo tempo capitalista? Em que condies esta rupturapode ser operada? A concepo de Marx teleolgica e evolucionista, comoquerem os seus crticos?

    Tempo e revoluo

    Somente uma leitura desprovida de rigor pode ignorar que Marx critica ovoluntarismo e o idealismo dos anarquistas revolucionrios e dos economicistasque pretendem ultrapassar o tempo burgus sem, contudo, revolucionar a baseeconmica que lhe corresponde (Hanson, 1997: p. IX). Em seus escritos, possvel encontrar duas grandes orientaes quanto relao Revoluo-Tempo

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    que partem de uma mesma considerao geral: a de que somente a aorevolucionria coletiva do proletariado comunismo pode reunificar ahumanidade no tempo criativo.

    i) No Prefcio de 1859, Marx, primeira vista, parece conferir menor graude independncia aos sujeitos revolucionrios, acentuando o peso dasrestries materiais que limitam a ao poltica. Nenhuma formao socialpode ser destruda antes que todas as foras produtivas para a qual ela suficiente tenham sido desenvolvidas. Marx argumenta que toda tentativa derevoluo durante perodos de expanso do capitalismo esto fadadas aofracasso. A Revoluo somente possvel quando determinadas condiesobjetivas so alcanadas (contradio entre foras produtivas e relaes deproduo), no dependendo da vontade imediata dos homens. Estaconcepo de Revoluo acentua as condies objetivas demandando, naavaliao de Hanson (op.cit.), um tempo mais dilatado para a sua realizao.

    ii) Em outros escritos polticos, como no Manifesto, Marx parece estarconvencido de que o proletariado est maduro o bastante para romper coma sociedade de classes e para acelerar as contradies das leis histricas. OManifestoadmite a possibilidade da luta proletria de sua poca ser capaz defazer explodir o tempo burgus, conjecturando que o proletariado alemopoderia fazer da revoluo burguesa da Alemanha o preldio de umaconseqente revoluo proletria. Aqui a nfase de Marx no tanto no lentodesenvolvimento dos fatores produtivos materiais, mas sobretudo no grau decivilizao e disposio da conscincia operria para o processorevolucionrio. Em suma: Marx parece convencido de que a aorevolucionria pode acelerar o passo da histria.

    Estas aparentes contradies entre as obras de Marx no configuramestratgias revolucionrias antinmicas. O Prefcio e o Manifesto so textosdistintos, elaborados para fins distintos: o primeiro de anlise, o segundo deorganizao da luta poltica, mais permevel aos aspectos conjunturais. Marx no nem um economicista espera das condies objetivas, nem tampouco umvoluntarista inconseqente. O que estas antinomias indicam so questescomplexas de estratgia revolucionria, na qual a ao do proletariado deslizasobre o fio da navalha: ora a conjuntura acentua o peso das condies objetivasque limitam a ao; ora a conjuntura pode ser transformada para obter rpidosavanos. Lnin defrontou-se praticamente com este problema, solucionando-oteoricamente com a noo de Partido (sntese entre teoria e prtica e entre tempode curta durao e de longa durao). Tambm possvel encontrar aqui oprenncio de um problema que Gramsci mais tarde iria tomar como central: anecessidade de passar da guerra de movimento para a guerra de posio(Buci-Glucksmann, 1980).

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  • Considerando a influncia do pensamento da II Internacional na formaodos partidos de esquerda do Ocidente, importante reforar um aspecto que Marxapresenta de modo inequvoco: o tempo-mercadoria somente deixar de serSenhor dos homens quando o capitalismo for abolido. Esta tese temsurpreendente atualidade. Afinal, tericos do fim do trabalho os herdeirosdas bandeiras da II Internacional como Gorz, Bell, Lojkine, Offe e outrosadmitem, diferentemente de Marx, que possvel instaurar o tempo livre nosmoldes do reino da liberdade, nos limites do capitalismo. Marx, ao contrrio,compreende que o rompimento com o capitalismo condio necessria para aunificao dos reinos da necessidade e da liberdade. Isto no quer dizer, de modoalgum, que somente com a revoluo outras formas de apropriao e construodo tempo livre venham a ser possveis. Em diversas passagens, Marx mencionaa importncia de plantar hoje as sementes da liberdade do futuro - uma prticaque, a rigor, um exerccio de negao do capitalismo.

    Para suprimir - no comunismo- a distino entre tempo de trabalho etempo livre, o tempo direto de trabalho no pode ser configurado como emanttese abstrata do tempo livre, tal como aparece na economia burguesa. Paraisto, o controle do tempo de trabalho tem que ser realizado pelos produtores. Deacordo com Marx, este controle social no pode ser reduzido gesto tcnica dotrabalho, pois assim subsistiria a diviso entre poltica e trabalho. Neste sentido,o controle do tempo uma atividade poltica (como demonstra Lnin ao discutiro taylorismo), capaz de garantir aos produtores a apropriao do sobretrabalhosocial, assegurando, deste modo, a caracterstica comunista da transiosocialista.

    No comunismo, o trabalho tomado como expresso da liberdade capaz desuprimir a distino entre trabalho livre e sobretrabalho. No entanto, se aoposiodas duas funes desaparece, sua diferenasubsiste; o desenvolvimentodo tempo disponvel e da fruio cultural, fsica e intelectual que lhe prpria fazcrescer as necessidades econmicas, ampliando o reino da necessidade, notaMarx, na Crtica ao Programa de Gotha.

    Assim, o tempo no deixa de ter importncia no comunismo. Atransformao cultural da noo de tempo exige a superao de entraves, comoos apontados por Lnin na Nova Poltica Econmica. Aqui a liberao do tempopara que os proletrios pudessem participar da construo da Revoluo exigiu oincremento da produtividade nas fbricas, em moldes tayloristas, precisamentepara negar as reminiscncias do MPC (Linhart, 1976).

    Marx tambm estava consciente de que, sob o comunismo, uma novaestrutura do tempo teria de ser construda, no decorrendo inevitavelmente daRevoluo, antevendo, na Crtica ao Programa de Gotha(1971), dois estgios docomunismo:

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    i) de cada um de acordo com suas capacidades, para cada um de acordo comseu trabalho. Esta frmula requer um clculo do nmero de horas dotrabalho social necessrio desempenhado por cada trabalhador. Este perodocaracteriza uma sociedade comunista no desenvolvida sobre bases prprias:uma sociedade que, por conseqncia, em todos aspectos, econmico,moral, intelectual, apresenta ainda os estigmas da antiga sociedade que aengendrou (Ibid: p. 19).

    ii) de cada um de acordo com as suas capacidades, a cada um de acordo comas suas necessidades. Este perodo corresponde a uma fase superior dasociedade comunista, na qual todas as restries temporais do MPC sodestrudas, tornando anacrnico o trabalho como uma atividade externa aotrabalhador.

    A considerao do tempo como problema permite uma outra leitura daCrtica ao Programa de Gotha. Nesta obra Marx prope, de modo genial, que otempo no linear e a sua ruptura no uma manifestao metafsica como, alis,lembra Althusser (1968), em sua crtica ao coup dessence. Em linhas gerais,Marx assinala que a revoluo no instaura de um dia para o outro uma novasociedade. Ao contrrio, como atesta a considerao da anlise concreta dascondies decorrentes da negao do capitalismo, o comunismo um processoque, no estando dado, depende, conforme Marx, de lutas concretas.

    Assim, a revoluo suprime a propriedade privada dos meios de produo,mas no instaura, por si s (como querem os economicistas), novas relaes detrabalho. Da a frmula: de cada um de acordo com as suas habilidades, paracada um de acordo com o seu trabalho (e no as segundo as necessidades).Prevalecem ainda resqucios do direito burgus (e, portanto, a pressuposio dadesigualdade), persistindo a necessidade do Estado, cujo fim uma construo docomunismo. Esta questo apresentada de modo meridiano na Crtica aoPrograma de Gotha:

    Na fase superior da sociedade comunista, quando tenha desaparecido asubordinao escravizadora dos indivduos diviso do trabalho e, com ela, ocontraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, quando o trabalho noseja apenas meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com odesenvolvimento dos indivduos em todos os aspectos, cresam tambm as forasprodutivas e fluam com todo seu caudal os mananciais da riqueza produtiva, sento poder se ultrapassar o estreito horizonte do direito burgus, e a sociedadepoder escrever em sua bandeira: De cada qual, segundo sua capacidade; a cadaqual, segundo suas necessidades(Ibid: p. 21).

    A luta revolucionria contra o capitalismo no implica, mecanicamente, umanova estrutura do tempo, como querem fazer crer os autores que acusam Marx deevolucionismo e teleologia. Marx est ciente de que o futuro no pode ser

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  • idealizado ingenuamente como fizeram os socialistas utpicos, combatendoveementemente tais formulaes fantasiosas. A sua penetrante anlise docapitalismo tem como propsito a descoberta das determinaes fundamentaisdeste modo de produo, com o preciso fito de neg-las. Ele tem cincia dasdificuldades de romper com elas e, por isso, busca identificar a contradioprincipal do MPC, o que faz no Prefcio: as foras produtivas desenvolvem-se eentram em contradio com as relaes de produo existentes, sobrevindo umapoca de revoluo social. No entanto, nada assegura, a priori, que o tempodeixar de ser Senhor dos homens. Por isso, Marx prev um perodo em que orompimento com a ordem anterior impe limites ao reino da liberdade.Somente com o aprofundamento da revoluo, a separao entre trabalho e cio,caracterstica do modo de produo capitalista, pode vir a no ter mais sentido.

    Resumindo: o rompimento com o tempo burgus no a realizao denenhuma razo universal, ao contrrio, um processo poltico-social, a serconstrudo historicamente. Marx no adepto de nenhuma filosofia da histriaque aponte a inexorabilidade do comunismo, nem tampouco se dedicou adesenhar em tons rseos a sociedade futura.

    Globalizao: uma Periodizao para o Capital

    Existem estudos bem fundamentados emprica e conceitualmente quecorroboram a crtica globalizao, como os de P. Hirst & G. Thompsom (1999),Limoeiro Cardoso (1999) e S. Amin (1996), entre outros, que questionam o usodesta noo como um marcador temporal.Alm de no significar uma mudanana estrutura do tempo capitalista (teoria do valor), o seu uso silencia o debate arespeito da natureza da crise econmica que teria feito emergir a nova revoluotecnolgica e a prpria globalizao.

    Trata-se de uma crise conjuntural ou estrutural? Qual a sua raiz axial? ComDumnil e Lvy (1996), R. Brenner (1999) e R. Antunes (1999), este estudoprope que se trata de uma crise estruturalque tem como raiz a reduo da taxade lucro no setor manufatureiro, deslocando o capital para o setor financeiro. no bojo desta crise que o capital, almejando a recuperao da taxa de lucro,promove uma forterestruturao produtiva. A considerao de que a crise dofordismo-taylorismo uma manifestao fenomnicade uma crise maior, decarter estrutural, tem grande importncia terico-prtica, coloca uma p-de-calna tese economicista que vincula a restruturao produtiva a uma supostaTerceira Revoluo Industrial.

    Outro aspecto crucial a considerao de que a crise estrutural no semanifesta igualmente nos pases centrais e perifricos. Seguramente, arediscusso do desenvolvimento desigual do capitalismo um dos maioresdesafios terico-prticos dos movimentos sociais e das cincias econmicas e

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    sociais dos pases perifricos um programa de pesquisa em que os Grupos deTrabalho da CLACSO poderiam ser valiosos. De fato, a anlise da restruturaoprodutiva no pode tomar como referncia apenas os casos da Europa e dos EUA.Nos pases perifricos, a situao outra, dado o precrio Estado Social. AtlioBorn, Ricardo Antunes e Vicentinho, nas conferncias de abertura desteSeminrio, captaram corretamente a situao em um plano geral, inclusive combase em indicadores do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento edo Banco Mundial, forados a reconhecer em virtude da preocupao com ascondies de governabilidade os terrveis custos do ajuste estrutural neoliberalnos pases perifricos. Nas periferias, a excluso social assume dimenso muitomais dramtica, mantendo a maior parte dos seres humanos em uma situaoliminar. O brutal desassalariamento (somente no perodo FHC foram extintos 3,3milhes de empregos, conforme Mattoso, 1999)e a informalidade imposta maior parte da fora de trabalho na Amrica Latina, como reconhecido pelaOrganizao Internacional do Trabalho, so medidas no apenas toleradas mas,antes, polticas deliberadas.

    Ademais, o uso da noo de globalizaocorrobora o revigoramento dasideologias salvdicas. Com efeito, como Fernando Henrique Cardoso vemreiterando em diversas ocasies, existem dois grupos de naes, aquelas queesto encaminhando os ajustes necessrios para fazer parte da globalizao eaquelas que esto resistentes ao processo: s primeiras associa noes comoprogresso, bem estar e prosperidade, s segundas, associa pobreza, atraso earcasmo (Cardoso, 1996).

    Sociedade Civil: Transio Democrtica, Neoliberalismo e osNovos Movimentos Sociais

    Os chamados novos movimentos sociais vicejam em um terreno que, se no indito, ao menos foi fortemente ressignificado: a sociedade civil. Para tornarpensvel a extraordinria repercusso do redescobrimentoda noo de Sociedadecivil na Amrica Latina, preciso negar a sua condio de pressuposto eproblematiz-la.

    Preliminarmente, imperioso ressaltar que se trata de um termo polissmicoe polmico. Para compreender o seu contedo, mais do que buscar a ontognesedesta noo, preciso captar o seu sentido operatrio, concreto, nos embatessociais. Em outros termos, conforme Gramsci (1980), a sociedade civil deve serconcebida como o momento ativo e positivo do desenvolvimento histrico o que,segundo a leitura de Buci-Glucksmann (1980: p. 99), confere uma dupladimenso ao conceito, a saber: por um lado, ele diz respeito s sociedadescapitalistas, ou seja s condies de vida materiais, ao sistema privado dep ro d u o. Por outro lado, implica os aparelhos ideolgico-culturais da

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  • hegemonia, o aspecto educador do Estado. Finalmente, no pode haversociedade civil sem a determinao daquilo que constitui o seu fundamento: asrelaes de produo.

    No caso da Amrica Latina, pelo menos desde o final dos anos 1980, preciso considerar a hiptese de que o uso desta noo - no perodo caracterizadocomo de transio democrtica e, tambm, nos embates em favor doneoliberalismo - produziu significados que deixaram marcas em seu contedo. Ocontedo concreto deste termo est, portanto, impregnado das marcas deixadaspor sua aplicao prtica no campo poltico. A identificao destes sentidos, nocampo poltico, particularmente fecunda no exame das correlaes de foras.

    Na anlise da correlao de foras, crucial examinar as formulaeselaboradas e socializadas, tanto pelos grupos subalternos, quanto pelos gruposdominantes. Neste ltimo caso, visto neste item em maior detalhe, oencaminhamento da investigao requer a leitura de estudos de instituies e deintelectuais que, de alguma forma, esto organizando o campo hegemnico doneoliberalismo, por meio de escritos polticos veiculados pela imprensaespecializada no mundo dos negcios, de documentos dos org a n i s m o sinternacionais dirigidos ao pblico e de estudos das cincias sociais latino-americanas voltados para a reforma do Estado, a governabilidade, e as polticassociais das duas ltimas dcadas. Embora no seja possvel empreender tal estudocom a mincia necessria, dados os limites de escopo deste ensaio, aconsiderao dos documentos do Banco Mundial e de parte da literaturaespcializada, no perodo em tela (Leher, 1998), sugere que a revalorizao e aaplicao da expresso sociedade civil, resulta evidentemente comimportantes excees de um movimento consistente de coalizo, formal ouinformal, entre determinados crticos do Estado autoritrio, dirigentes degovernos militares e os neoliberais, irmanados na tese de uma nova eraem queos antagonismos centrados nas contradies capital e trabalho no tm maislugar.

    Transio e conciliao

    O hipertrofiamento da noo de sociedade civil e a sua ressignificao comouma noo desvinculada da esfera econmico-social fazem parte da mesmalgica que desune democracia e condies scioeconmicas. Um importanteeconomista que conhece de perto a realidade da regio, Albert O. Hirschman,disse, a respeito da transio, que a democracia deve ser concebida no emtermos das condies scio-econmicas, mas nas atitudes polticas com respeito democracia. Norberto Lechner, afirmou, por sua vez, a passagem da revoluo democracia, uma avaliao compartilhada pelo dirigente do PCI, E. Berlinguerque proclamou, a respeito da Amrica Latina, aps o Golpe de Pinochet:

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    Roberto Leher

  • A Cidadania Negada

    esqueamos o socialismo, contentemo-nos com a democracia (autores citados porAnderson, 1988: pp. 44 e 65).

    A transio conservadora no apenas manteve intocado o modelo econmicoconstrudo no perodo ditadorial, como legitimou o propsito poltico dosregimes militares: o desmantelamento da oposio socialista. Adotando comoreferncia o caso especfico do Brasil, vale lembrar, rapidamente, as motivaesdos militares com o golpe de Estado. Desde meados da dcada de 1950, ocrescimento da organizao popular, por meio de sindicatos (criao daConfederao Geral dos Trabalhadores e das Ligas Camponesas), foroumudanas na indiferenciao ideolgica do populismo, tornando-o cada vez maissensvel s teses da esquerda (inflexo do populismo em direo ao socialismo,nos termos de Anderson, 1988). Para reverter este quadro, agravado pelo sucessoda Revoluo Cubana e pela crise econmica, os militares, com apoio da potnciahegemnica, promoveram o golpe de Estado. Neste sentido, o ciclo de golpesmilitares na regio tem de ser visto como um movimento de contra-revoluespreventivas, efetivadas para extirpar a esquerda que no se resignava aocapitalismo, em suma, para apagar o socialismo da agenda poltica da regio.Entretanto, desde o incio, os militares afirmaram que o objetivo do golpe eracriar as condies para que a democracia pudesse ser restabelecida (defesa, emsintonia com os EUA, do mundo livre). Evidentemente, a violncia inauditaempregada pelos regimes militares revela que tratava-se de uma redefinio dademocracia, de modo que ficasse assegurado que os contestadores da ordemburguesa no mais exerceriam influncia na vida poltica do pas.

    O modelo de transio no Brasil foi em linhas gerais muito prximo aoadotado pela ditadura de Franco, na Espanha. O retorno democracia nopoderia sequer arranhar a ordem edificada na ditadura. O PSOE de FelipeGonzles, conforme observou Anderson (1988: p. 62), nem sequer pretende aimplantao de uma repblica (para no falar do socialismo) e exibe a taxa dedesemprego mais elevada de toda Europa ocidental.

    Tambm no Brasil a ditadura transformou os seus antigos adversrios emseus agentes pstumos. Os setores populares e as organizaes de esquerda foramexcludas da engenharia poltica que levou ao fim do regime militar. E, para isso,os conceitos e noes das cincias sociais foram fundamentais.

    possvel afirmar que a resistncia ditadura ops, durante muitos anos, deum lado, as organizaes populares e, de outro, as entidades empresariais e agrande imprensa. Com a abertura lenta, gradual e segura, o termoorganizaes populares foi sendo paulatinamente apagado, inclusive pelascincias sociais, que optaram pelo termo sociedade civil, uma expressohomogeneadora, indicativa de um consenso entre todos aqueles que se opunhamao Estado autoritrio e que apaga a dimenso relaes de produo.Concomitantemente, a ideologia neoliberal, robustecida com Reagan e Thatcher,

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  • difundia o credo antiestatal. Estas duas claves - antiautoritarismo eneoliberalismo - gradualmente se imbricaram, deslocando o termo sociedade civilpara o campo da ideologia dominante.

    O terreno poltico foi redesenhado: o pomo da discrdia no estaria maiscentrado no modelo econmico do governo militar, mas no autoritarismo. Comisso, o campo de conciliao foi redefinido. Mesmo aqueles que sustentaram omodelo econmico dependente e concentrador poderiam se credenciar comointerlocutores da transio, desde que manifestassem apoio redemocratizao, uma converso fcil, posto o esgotamento poltico-econmicodos governos militares e a presso empreendida pela Comisso Trilateral emfavor da abertura(Leher, 1998). Deste modo, poderiam ser evitados os embatesdireita e esquerda, capitalismo e socialismo, j anunciados como dicotomiasmoribundas. Este deslocamento conferiu legitimidade s fraes das classesdominantes que aderiram s ditaduras e que se convenceram de que era hora decolocar um fim aos governos militares (exatamente para que os seus objetivosfossem preservados). Foi assentado nestalegitimidadeque os mencionadosgrupos dominantes assumiram, de fato, a liderana do processo deredemocratizao, deslocando para um lugar secundrio as fraes populares dasociedade civil, como os sindicatos, as entidades camponesas etc. Estesmovimentos populares, apesar de terem sido decisivos para o enfraquecimento eo desgaste das ditaduras, no puderam se consolidar como fora hegemnica. Emlinhas gerais, as lideranas dos partidos da ordem, com o apoio das outrasfraes da sociedade civil, se impuseram como os representantes da vontadepopular. Esta situao prevaleceu na maior parte dos pases da regio.

    Um outro corolrio das proposies do autoritarismo foi a crtica ao Estadocentralizado, autoritrio, burocrtico e ineficiente. Esta crtica, em princpiopassvel de contar com a adeso de todos os que se opunham aos governosmilitares, foi habilmente assumida pela maior parte das fraes dominantes jreferidas, agora sintonizadas com o pensamento neoliberal. A rg u t a m e n t e ,passaram a identificar o Estado com o burocratismo e a ineficincia, ao passo quea sociedade civil, pensada como esfera do livre mercado, foi exaltada como amelhor alternativa ao Estado ineficiente. Democracia e soberania do mercadopassam a se equivaler. As reformas de ajuste estrutural estabelecidas peloConsenso de Washington, por conseguinte, foram operadas em um ambienteideolgico em muito beneficiado pelas chamadas teorias do autoritarismo, entreas quais as de Fernando Henrique Cardoso, em Autoritarismo e democracia(1975).

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    Roberto Leher

  • A Cidadania Negada

    Sociedade civil e neoliberalismo

    No pensamento de Hayek (1998), bem como de dirigentes governamentais ede organismos internacionais como o Banco Mundial, o significado desociedade civil aberta, criadora e ativa construdo em oposio ao Estadoburocratizado e ineficiente, tpico das economias com forte participao estatal(w e l f a re state), aludindo a processos de participao na esfera do livremercado.

    A proposio neoliberal ainda mais restritiva do que a proposta liberal queadvoga a universalizao da cidadania. Como se sabe, a cidadania confere atodos liberdade e igualdade formais. Todos somos iguais diante do Estado. Noneoliberalismo, a igualdade exercida no mercado (o Estado no deve interferir),conforme as habilidadesecompetnciasde cada um.

    Em ambas perspectivas, cidadania liberal e neoliberalismo, no h lugar paraas classes sociais. Os conflitos e lutas de classes so ocultados, pois as relaessociais de produo so abstradas, a exemplo da noo ressignificada desociedade civil. Ainda em comum, em ambas situaes, ocorre uma claradelimitao entre, de uma parte, o Estado e, de outra parte, as relaes sociais deproduo ou, em outras palavras, entre o poltico e o econmico. Este tipo deproposio, como ser visto adiante, tem seguimento com as obras de Habermas,que postula a desvinculao entre sistema e mundo da vida; e na de Giddens,que concebe a democracia como um campo de discurso. A desvinculao entre oeconmico e o poltico pode ser vista como um aspecto do fetichismo dasmercadorias. Como registra Holloway (1994: p. 111), as relaes de produo seexpressam em uma srie de formas discretas que no se apresentam como formasde dominao de classe, mas como um conjunto de fenmenos interconexos:mercadorias, dinheiro, capital, renda, juro, Estado etc. As aparncias fetichizadas,felizmente, no so absolutas. Como Marx demonstra n O Capital, o segredo dasmesmas pode ser deslindado e, deste modo, aes polticas eficazes podem serempreendidas. Com efeito, os mecanismos de submetimento ideolgico, taiscomo a adaptao, inevitabilidade, deferncia e medo no funcionam o tempotodo, como possvel constatar na luta dos Sem-Terra, dos Zapatistas, dosDesempregados nas provncias argentinas etc.

    Movimentos da sociedade civil: novos e tradicionais

    Na ptica dominante, ao longo da dcada de 1990, os novosmovimentos dasociedade civil se caracterizam pela incorporao da crena no fim dacentralidade do trabalho na vida social. Esta perspectiva, compartilhada, em umprimeiro olhar, de forma paradoxal, pelos neoliberais e pelos crticos dasociedade do trabalho, como Claus Offe (1989) e Jrgen Habermas (1997), entreoutros. Uma caracterstica indelvel destes movimentos, em decorrncia da

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  • ressignificao do conceito de sociedade civil, que seu locusencontra-sedesvinculado da dimenso econmico-social. So movimentos que, na concepode um dos principais idelogos da terceira via, Anthony Giddens (1997), estomobilizados para a auto-ajuda e por temas como feminismo e ecologia, questesque, em sntese, contribuem para a reflexibilidade local e global, abrindo espaospara o dilogo pblico a respeito dessas questes.

    Assim, os novosmovimentos sociais, em especial as Organizaes NoGovernamentais (ONGs), indicam novas identidades, valores e interessescapazes de articular a subjetividade como a etnia, o gnero, a opo sexual, areligio, a nacionalidade, o meio ambiente, entre outros. Visto a partir do ngulodo pensamento hegemnico, a resposta indagao de Gorz: Adeus aoproletariado? , indubitavelmente, positiva. Este pensamento institui uma fortedicotomia (passado versusfuturo) entre, de uma parte, os movimentos sociaisorganizados relacionados com o trabalho e, de outra parte, os novos movimentoss o c i a i s. Os primeiros adotam categorias e conceitos totalizantes, buscamsolues sistmicas que implicam ruptura com o modo de produo capitalista.Os ltimos, ao contrrio, so pragmticos e poucoideolgicos. Os movimentosrealmentenovos buscam mudanas pontuais, concretas, nas polticas de governo(um processo denominado de focalizao), no aspirando, felizmente, a mudanascapazes de levar a rupturas. Outro aspecto igualmente elogivel, ainda na ticadominante, que estes movimentos muitas vezes se colocam na condio deparceiros do Estado na implementao de determinadas polticas, contribuindo,desta forma, para a despolitizaodas mesmas e, por conseguinte, para odesmantelamento do i n e f i c i e n t eEstado keynesiano. A sociedade, nestaconcepo, apenas um conjunto de grupos de interesse desprovidos de qualqueridentidade capaz de articular uma transformao global; ao contrrio, os valoresunificadores so os mesmos da empresa capitalista: flexibilidade,competitividade etc.

    A ressignificao de sociedade civil tem como desdobramento oestabelecimento de movimentos sociais de outro tipo. Com efeito, em seu sentidomais comum atualmente, esta noo apaga as diferenas de classe, ascontradies, servindo para atenuar as tenses sociais e, por conseguinte, as lutasde classes. No resta dvida de que a nova direita tem sabido articular o potencialanti-Estatal que a resistncia interveno burocrtica do Estado temhistoricamente criado. As campanhas em prol da privatizao da telefonia noBrasil so um exemplo disso.

    Na leitura dos crticos da sociedade do trabalho, a revoluo tecnolgica e aemergncia da globalizao abriram novas perspectivas para os movimentossociais, pois colocaram em relevo outras formas de articulao da subjetividade,como as j mencionadas acima. O fim da centralidade do trabalho e da regulaofordista-keynesiana, formas que hipertrofiaram a interveno estatal, estariam

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    Roberto Leher

  • A Cidadania Negada

    abrindo novas perspectivas para os movimentos sociais. Em vez de maisinterveno do Estado, a meta seria a criao de esferas pblicasno estatais,esferas deautodeterminao e de autogestopara os indivduos e os cidados.Deste modo, o buslis da questo no seria estatal versusprivado, mas entre opblico e o privado. Possivelmente, isto explica o motivo pelo qual a luta contraas privatizaes tenha sido encaminhada pelos movimentos tradicionais, como osdescritos a seguir.

    Aps os primeiros anos do governo militar, aos poucos, o movimentosindical brasileiro ou, mais concretamente, fraes deste movimento, seorganizaram em novas bases, em torno dos eixos autonomia e democracia queviriam a caracterizar o movimento denominado de novo sindicalismo (umanoo imprecisa que oculta diferenas hoje melhor evidenciadas na principalcentral sindical da esquerda brasileira, a Central nica dos Trabalhadores, masque sinalizou uma orientao contra o sindicalismo de Estado).

    Na dcada de 1990, esta Central, apesar da posio propositiva da correntemajoritria, articulao sindical, ops forte resistncia s polticas neoliberais,assumindo a luta contra as reformas administrativa e da previdncia. Esteve naliderana das lutas contra as privatizaes, em especial contra a privatizao daVale do Rio Doce, da telefonia, do setor petroqumico e do sistema bancrioestatal. preciso registrar, entretanto, que as divises no movimento sindical e,em especial, a conduta ambgua da direo majoritria, notadamente no perodoiniciado por Fernando Henrique Cardoso, repercutiram negativamente namobilizao, bastante modesta, incapaz de reverter o quadro.

    Um exemplo da orientao propositiva que desmobilizou a central econtribuiu para o avano das reformas neoliberais foi a deciso, de iniciativa daarticulao sindical, de que a CUTno deveria se posicionar contra as reformasneoliberais apresentadas pelo Governo no Congresso, mas apresentar as suaspropostas para as reformas. Esta deciso levou a CUTa negociar a reforma daprevidncia com o governo, fato amplamente festejado pela mdia, mas que noresultou em nenhum avano para os trabalhadores; ao contrrio, o Governo fez asua reforma independentemente da CUT, reforma esta que prejudicoufortemente os trabalhadores informais (que constituem a maioria dostrabalhadores brasileiros), ampliou o tempo de contribuio, reduziu osbenefcios, enfim, promoveu reforma desastrosa para o trabalho, desmoralizandoa estratgia propositiva. A partir de 1997, a Central voltou, aos poucos, a umaorientao mais independente e crtica, certamente influenciada pelo crescimentode movimentos como a Marcha da Terra, pelas demisses dos metalrgicos doABC (regio da Grande So Paulo, com forte concentrao da indstriaautomobilsitica, hoje a principal base dos dirigentes propositivos) e, maisrecentemente, pela greve nacional dos docentes das universidades federais, amaior greve do primeiro mandato de Cardoso, com vitria parcial dos professores

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  • e pela Marcha dos Cem Mil (Braslia, 1999), uma iniciativa de diversosmovimentos populares que logrou forte impacto na sociedade brasileira.

    No casualmente, a agenda desses movimentos, centrada na defesa dosdireitos sociais, denunciada pela grande imprensa e pelo governo comocorporativista. De fato, pleno emprego, trabalho regulamentado, seguridadesocial e educao, enfim, as medidas inclusivas, so redefinidas como prticasque beneficiam a ineficincia e que tolhem a energia criadora dos indivduos. Empoucas palavras, na Amrica Latina, a agenda sindical seria populista, algodeletrio, pois, semelhana do perodo pr-golpes, o populismo poderia sedesdobrar em polticas anti-neoliberais com amplo apoio popular, como ocorreatualmente na Venezuela, no governo Chaves. Este processo, na tica dominante,pode contribuir para recolocar o socialismo na agenda poltica da regio.

    Como j salientado, com as reformas neoliberais e, em virtude de sua boamentalidade, os centros de poder tm buscado uma aproximao com os novosmovimentos sociais, tanto em nvel internacional (o Banco Mundial inseriu asONGs em sua dinmica mundial de operaes), como em nvel nacional. Sodiversas as iniciativas governamentais neste sentido, somente para ficar restritoao campo educacional: desde a alfabetizao de jovens e adultos (ComunidadeSolidria, no Brasil), passando pela adoo de escolas pblicas pelo terceirosetor, at a formao profissional (aqui os parceiros privilegiados so ossindicatos, ONGs e o terceiro setor). O chamamento participao da sociedadecivil , neste sentido, coerente com a redefinio do papel do Estado. No queconcerne ao Bem Estar Social, o Estado deve ser encolhido em benefcio dasociedade. No mesmo movimento de fragmentao das polticas sociais pblicastemos o fortalecimento das ONGs e do chamado terceiro setor, anunciadocomo uma das alternativas para o desemprego estrutural dos setores produtivos,no importando se a ONG depende de recursos estatais ou de fundaes eentidades que tm como fonte de recursos o fundo pblico, ou se o terceirosetor seja, conforme prope Ricardo Antunes (1999: p. 112), consequncia dacrise estrutural do capital, da sua lgica destrutiva vigente, bem como dosmecanismos utilizados pela reestruturao produtiva do capital visando reduzirtrabalho vivoe ampliar trabalho morto e uma alternativa limitadssima pararepor as perdas de postos de trabalho. Neste sentido, o termo sociedade civilencobre as diferenas radicais entre as organizaes vinculadas aos movimentospopulares e as vinculadas s classes dominantes, em especial por meio dofinanciamento de intelectuais f l e x v e i sa partir de recursos de fundaesinternacionais vinculadas s grandes corporaes (ver texto de Gohn discutidoneste Seminrio).

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    Roberto Leher

  • A Cidadania Negada

    Autonomia, Descentralizao e Esfera Pblica

    Esta seo parte do exame da autonomia. Inicialmente, prope que estanoo no estranha ao pensamento liberal e que a sua recente valorizao coerente com o neoliberalismo, pois faz parte do ncleo slido desta formulao.As polticas de descentralizao, conforme o ponto de vista aqui adotado, so umdesdobramento prtico da autonomia. O conceito de esfera pblica, emboraintimante vinculado s duas noes indicadas, ser vista em um item especficodesta seo, em conexo com o conceito de mundo da vida, elaborado porHabermas e propagado pelos adeptos da terceira via.

    A autonomia pode ser facilmente includa entre as palavras-chaves do lxiconeoliberal. A leitura dos documentos de poltica educacional do Banco Mundial,da Unesco e da CEPAL, elaborados na ltima dcada, atesta o fato. Pode parecerinusitado, mas o exame das proposies de von Hayek no famoso Simpsio deAlpbach Alm do Reducionismo, realizado em 1969, nos permite compreenderque existe uma ntima relao entre o liberalismo e os temas da auto-organizaoe da autonomia. Com efeito, neste tipo de formulao, a ordem social espontneae a possibilidade de auto-equilbrio do mercado compem o ncleo slidodopensamento neoliberal. Toda interferncia externa vista como produtora deperturbaes que estariam na origem dos desequilbrios econmicos do presente.A autonomia defendida pelos tericos do neoliberalismo equivalente soberania do indivduo no mercado (Leher, 1999).

    A descentralizao uma medida inscrita na lgica da autonomia. Em umprimeiro momento, responsabilidades da Unio so repassadas para os estados emunicpios, a pretexto de aproximar a gesto da verba da populao usuria(Boito Jr., 1999: p. 82). Usualmente, o Executivo Federal se desobriga total ouparcialmente do custeio dessas polticas. Um exemplo contundente, no Brasil, o estabelecimento do Fundo Nacional de Manuteno e Valorizao doMagistrio (Fundef) praticamente constitudo por verbas municipais eestaduais. O passo seguinte, observado em pases como o Chile, a completatransferncia do servio para a comunidade. O poder de estabelecer aspolticas mais relevantes est, cada vez mais, concentrado no Governo Federal,entretanto, este, por meio da descentralizao, se desresponsabiliza de funesque eram direta ou indiretamente de sua alada, como a educao bsica, hojevista como atribuio quase que exclusiva das unidades federativas (estados) edos municpios - esferas enfraquecidas pela corroso do pacto federativo, emvirtude da concentrao de receitas e do poder normativo na Unio. importantefrisar que a supremacia do poder Federal coetnea com a descaracterizao daConstituio Federal, a base do sistema federativo.

    Em consonncia com esta perspectiva, um conjunto de mudanas na formade atuao do Estado na rea educacional so perceptveis, em linhas gerais estasnovas orientaes so denominadas de descentralizao. Um trao bem delineado

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  • nos anos 1990 a redefinio do prprio espao de atuao dos movimentos,redesenhado em escala reduzida, como, por exemplo os conselhos municipais deeducao, geralmente com maioria governamental e com reduzido poder sobre asgrandes orientaes educacionais e sobre os conflitos redistributivos, e osconselhos de escolas, de mbito ainda mais pontual. Mesmo as grandesorientaes nacionais para o setor (currculos, avaliao etc) so configuradas porconselhos com composio, atribuies e critrios de nomeao estabelecidospelo prprio governo. Com isso, aparentemente novos espaos de participaoestariam sendo consolidados (o que para alguns seria indicativo do fortalecimentoda esfera pblica). O exemplo mais preocupante desta estratgia o ConselhoNacional de Educao, atualmente a principal instncia de sistematizao daspolticas educacionais neoliberais brasileiras.

    Na poltica de descentralizao, o pressuposto a manuteno do centropoltico; apenas o j decidido executado localmente, preferencialmente com aparticipao de determinada sociedade civil. A hegemonia do poder central natomadade decises mantida. Em outras palavras, no sistema descentralizado,est pressuposto um centro de poder que deve estar protegido (Dallari, 1986).Assim, apesar de se desobrigar financeiramente do ensino bsico, em particular

    em virtude da Emenda Constitucional no 14 (e de sua regulamentao na Lei9424/96), a Unio no abre mo do controle poltico-ideolgico da educaonacional, por meio da avaliao (Exames Nacionais do Ensino Bsico, Mdio eSuperior), do currculo (PCN) e da formao do professor (Escolas NormaisSuperiores, Institutos Superiores de Educao). A hipertrofia do Estado Federal oleva a se imiscuir tambm nos assuntos internos das universidades, afrontando aautonomia constitucional destas instituies (uma autonomia distinta dapreconizada pelos neoliberais, mais prxima preconizada pelo iderioiluminista de Humbolt).

    Deste modo, a propalada democratizao do setor pblico por meio doenvolvimento das ONGs e associaes de ajuda mtua, tem criado antes umaaparncia de participao democrtica e logrado, inclusive, cooptar direes demovimentos populares. Na interpretao de Boito Jr. (1999: p. 83): a grandemaioria das ONGs tm desempenhado em toda Amrica Latina o papel deauxiliares na aplicao do neoliberalismo. Essas organizaes mudaram decarter. Na dcada de 1970, foram organizaes que auxiliaram na luta contra asditaduras militares no Cone Sul. Ao longo dos anos 80 () abandonaram afuno de organizar ou subsidiar a luta operria e popular. A brutal expanso deONGs se deu por meio de financiamento por entidades empresariais, polticas ereligiosas dos pases imperialistas. uma espcie de retrocesso filantropia dosculo XIX, que fora superada pelo Estado de bem-estar (Ibid: p. 83-84).

    Outro aspecto a enfatizar a propsito da descentralizao e docorrespondente envolvimento dos novos movimentos sociais a poltica de

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    Roberto Leher

  • A Cidadania Negada

    focalizao. Permanecendo no campo da educao, fcil demonstrar quepolticas neoliberais tm como foco no a universalizao do ensino pblico emtodos os nveis, mas apenas a educao rudimentar, minimalista, definida comouma poltica capaz de aliviar a p o b reza para garantir adequadagovernabilidade. No caso do Brasil, conforme assinala Gohn em texto desteSeminrio, a restruturao tem sido encaminhada por meio de umareengenharia do setor, expressa, mais fortemente, na municipalizao do ensinofundamental, na focalizao na populao de baixa renda e na desconcentraoparticipativa (delegao de atribuies ao terceiro setor, por exemplo).

    Um dos argumentos mais reiterados pelo Banco Mundial e pelos Governosneoliberais a favor da descentralizao, da municipalizao e da maior autonomia sescolas que alm de torn-las mais eficazes e eficientes, tais medidas permitemuma maior democratizao do Estado devido ampliao da participao dacomunidade (escolar, nos termos de Gohn). Uma forma de efetivar esta participao o estabelecimento de parcerias. No entanto, os parceiros preferenciais so asentidades chamadas de terceiro setor, ditas capazes de constituir uma esferapblica no estatal, configurando o que Habermas chamou de mundo da vida.

    Os movimentos dos subalternos e, em especial, as suas formas deorganizao propriamente econmico-poltica, como os partidos e os sindicatos,so interditados. A no ser na condio de parceiros aqui compreendidos ossindicatos dispostos a colaborar madurae responsavelmentecom as reformas.Neste caso, os governos, mesmo os da direita, so acometidos por sbitagenerosidade. Logo so disponibilizadas verbas pblicas para os sindicatos paraque estes funcionem como uma entidade do terceiro setor. Uma parte bastantemodesta das verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador-FAT (mas nonegligencivel em termos absolutos, dado o montante do Fundo, algo em tornode US$ 25 bilhes), tem sido prodigamente distribuda para os sindicatos paraque estes ofeream cursos de formao profissional que, a despeito deexperincias isoladas extraordinrias, tm: a) rompido a unidade da luta em favorda escola unitria; b) descaracterizado o uso das verbas deste Fundo,originalmente previsto para o custeio do salrio-desemprego e atualmente alvo derecorrentes denncias de corrupo; c) reduzido o potencial de contestao dossindicatos; e d) contribudo para a crena de que o desemprego decorre da faltade qualificao dos trabalhadores. Tambm aqui o argumento legitimador aconstituio da esfera pblica no estatal capaz de configurar o mundo da vida.

    Mundo da vida, Sistema e Esfera Pblica

    Em sua teoria da modernidade, Habermas adota como categorias bsicas omundo da vida e o s i s t e m a. Esta teoria desvincula o mundo sistmico(organizao econmica e poltica da sociedade, esferas que tm como meios de

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  • controle o trabalho, o dinheiro e o poder) e o mundo da vida (Lebenswelt).Nesta ltima esfera, comunicacional, intersubjetiva, a poltica, esvaziada pelostecnocratas e rotinizada pelos aparelhos, voltaria s ruas, transformando-se emcoisa de todos (Freitag, 1990: p. 151). As relaes econmicas, orientadas pelarazo instrumental, funcionariam sob o controle da maioria com bases numconsenso comunicativamente estabelecido e a qualquer momento negocivel(Ibid, p. 151). A possibilidade de negao do pensamento dominante estariaassegurada por meio de procedimentos sociais de busca da verdade e da fixaode normas, seria institucionalizada como instncia de problematizaopermanente. Nesta esfera, a linguagem assume papel de destaque, pois seriamativados os potenciais de racionalidade comunicativa na linguagem e nainterao, para que cada indivduo pudesse participar, cognitiva e praticamente,desse grande processo de recuperao e descolonizao do mundo vivido (Ibid,p. 152). Prosseguindo com a caracterizao, o mundo da vida o lugartranscendentalonde o que fala e o que ouve se encontram, onde eles podemreciprocamente colocar a pretenso de que suas declaraes se adequam aomundo () e onde eles podem criticar e confirmar a validade de seus intentos,solucionar seus desacordos e chegar a um acordo (Antunes, 1999: p. 147).

    Em inspirado ensaio, Ricardo Antunes (1999: p. 129) chama a ateno paraos pressupostos da formulao habermasiana que o leva a disjuno binria entreo sistema e mundo da vida. Um dos pilares da argumentao do pensadoralemo a desvinculao entre trabalho imaterial (visto por Habermas comodimenso da esfera comunicacional, dissociada da esfera instrumental dosistema) e material. Antunes discorda deste ponto de vista, pois, mesmo quandomais centrado na esfera da circulao, o trabalho imaterial interage com o mundoprodutivo do trabalho material e encontra-se aprisionado pelo sistema demetabolismo social do capital. Em suma, o mundo da vida e o sistema no sosubsistemas que possam ser separados entre si, mas so partes integrantes econstitutivas da totalidade social que Habermas, sistmica, binria edualisticamente secciona (Antunes, 1999: p. 158). Prosseguindo com suaanlise, Antunes (op.cit.: p. 155) observa que a disjuno operada entre essesnveis, que se efetivou com a complexificao das formas societais, levou o autor(Habermas) a concluir que a utopia da idia baseada no trabalho perdeu seupoder persuasivo (). Perdeu seu ponto de referncia na realidade.

    As implicaes polticas destas proposies so de enorme monta. ParaAntunes (op.cit. p. 155), Habermas acredita que as condies capazes depossibilitar uma vida emancipada no emergem diretamente de umarevolucionarizao das condies de trabalho, isto , da transformao dotrabalho alienado em uma atividade autodirigida (Habermas, 1989: pp. 53-54,Apud, Antunes, 1999). A consequncia, prossegue Antunes (Ibid), que, emHabermas, a centralidade transferiu-se da esfera do trabalho para a esfera da aocomunicativa, onde se encontra o novo ncleo da utopia.

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  • A Cidadania Negada

    A noo de democracia como um campo de discurso (esfera da aocomunicativa) em vez de uma arena de interesses em geral, tambm defendidapor Giddens (1997). Conforme Perry Anderson (1997: p. 62), esta perspectivaest identificada com a obra de Habermas, onde ela assume uma forma maissistemtica. Ela germina em seu estudo da nova esfera pblica dos principaisEstados Europeus no sculo XVIII, composta dos peridicos, clubes, cafs ebibliotecas circulantes de uma cultura civil emergente, no invlucro de umasociedade ainda aristocrtica. Estas novas formas de socializao, constituiram-se na semente do dilogo desinteressado sobre assuntos de preocupao comum,que Habermas posteriormente desenvolveu em uma teoria mais geral da razocomunicativa - em oposio instrumentalou estratgica - modelada nodilogo (Ibid).

    Entretanto, conforme salientam Anderson (1997), Antunes (1999) e Sbato(1999), a transposio deste conceito para a realidade prtica da sociedade declasses requer cuidados. A situao ideal de discurso, em que argumentospodem ser trocados em perfeita igualdade e boa vontade, os menos convincentesrendendo-se aos mais persuasivos, somente poderia ocorrer porque o dilogo sedesenvolvia no interior de um grupo mais ou menos uniforme - e necessariamenterestrito - e porque ele no avanava na poltica. O Ancien Rgime, na Frana,Alemanha ou alhures, no cedeu fora do melhor argumento: ele caiu sob osduros golpes do conflito social (Anderson, 1997: p. 62). Em termos de Marx:era a artilharia das mercadorias que convenceria o mundo da verdade docapital (Anderson, 1997: p. 62). Em suma, a poltica permanece eminentementeestratgica: no uma troca de opinies, mas uma disputa pelo poder (Ibid, p. 63).

    Embora sem poder empreender uma anlise mais completa da importncia doconceito de esfera pblica na obra de Habermas, necessrio aprofund-lo emcertos aspectos, vinculando-o aos conceitos de sistema e mundo da vida. O exameda argumentao de Habermas elaborado a partir de Direito e Democracia: entrefactividade e validade (1997/1992), especialmente do captulo VIII (O papel dasociedade civil e da esfera pblica).

    Os conceitos estruturadores mundo da vida esistemafundamentam a anlisede Habermas a propsito da esfera pblica. A esfera pblica, conforme Habermas(1997: p. 91):

    um sistema de alarme dotado de sensores no especializados, porm,sensveis no mbito de toda a sociedade. Na perspectiva de uma teoria dademocracia, a esfera pblica tem que reforar a presso exercida pelosproblemas, ou seja, ela no pode limitar-se a perceb-los e a identific-los,devendo, alm disso, tematiz-los, problematiz-los e dramatiz-los de modoconvincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados no contextoparlamentar.

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  • Um pouco adiante, Habermas (op.cit.: p. 92) especifica:

    a esfera pblica pode ser descrita como uma rede adequada para acomunicao de contedos, tomadas de posio e opinies; nela os fluxoscomunicacionais so filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem emopinies pblicasenfeixadas em temas especficos. Do mesmo modo que omundo da vida tomado globalmente, a esfera pblica se reproduz atravs doagir comunicativo, implicando apenas o domnio de uma linguagem natural;ela est em sintonia com a compreensibilidade geralda prtica comunicativacotidiana.

    Um aspecto crucial, tendo em vista suas implicaes polticas, diz respeito aomodo de interao desta esfera com os problemas polticos concretos. DizHabermas:

    A esfera pblica no se especializa (), por isso, quando abrange questespoliticamente relevantes, ela deixa ao cargo do sistema poltico a elaboraoespecializada. A esfera pblica constitui principalmente uma e s t ru t u r acomunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com oespao social gerado no agir comunicativo, no com as funes nem com oscontedosda comunicaocotidiana (Habermas, op.cit.: p. 92).

    No sendo uma instituio, como designar esses encontros comunicativos?Habermas (I b i d: p. 93) prope metforas arquitetnicas como foros,palcos, arenas etc. Estes espaos, importante frisar, no so deliberativos.As decises continuam reservadas a instituies que tomam resolues (Ibid: p.94). Na esfera pblica, as manifestaes so escolhidas de acordo com temas etomadas de posio pr ou contra; as informaes e argumentos so elaboradosna forma de opinies focalizadas. Tais opinies enfeixadas so transformadas emopinio pblica atravs do modo como surgem e atravs do amplo assentimentode que gozam(Ibid: p. 94). O pressuposto que as instituies que tomam asdecisesesto mais dispostas a escutar a opinio pblica do que os grupos depresso do capital , no Brasil, uma aposta arriscada. A troca de votos porbenesses governamentais, o pertencimento de parlamentares a seitas religiosasparticularistas, a vinculao de membros do parlamento com o crime organizadoe a compra e venda de votos, no recomendam o jogo.

    Tambm aqui a crtica de Antunes (1999) disjuno entre mundo da vida esistema pertinente. Em uma sociedade em que a excluso assume feioestrutural, a desconexo entre o mundo do trabalho e a participao do sujeitosocial na esfera pblica torna-se demasiadamente artificial e implausvel. Aprpria existncia de uma esfera pblica deve ser problematizada. A brutalconcentrao dos meios de comunicao, a escolarizao e o desenvolvimentodesiguais que fazem com que tempos histricos desiguais estejam em permanentetenso, configuram uma situao em que dificilmente a esfera pblica no sentido

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  • A Cidadania Negada

    habermasiano pode vicejar. Em um quadro em que a razo instrumental estpresente em todas as esferas da vida, no h como ignorar o peso das ideologiasdominantes na criao de disposies, valores e formas de ver e sentir o mundo.

    A existncia de uma esfera pblica, onde todos podem falar e ser ouvidos,no demanda apenas o domnio de uma linguagem natural. Requer muito mais doque isto, conforme o prprio Habemas parece reconhecer em Para aReconstruo do Materialismo Histrico (1990). Neste trabalho, a constituiodo Eucompetente, descentrado, visto como um processo em que as condiesde socializao fazem diferena. A escolarizao e a participao em espaoscapazes de promover a competncia lingustica e a descentrao estoestritamente relacionados s condies de classe social. Ou ser que, em um pascomo o Brasil, estes direitos no esto, em absoluto, relacionados ao lugar quecada grupo ocupa no mundo do trabalho? O que dizer das mais de 600 milcrianas entre cinco e nove anos de idade, 3,9 milhes de crianas e adolescentesentre dez e catorze anos e cinco milhes de adolescentes entre quinze e dezesseteanos que esto submetidos violncia do trabalho embrutecedor, totalizando 9,5milhes de crianas e adolescentes trabalhando (dados de 1993 compilados porBoito Jr., 1999)? O que dizer do crescimento das diversas formas de trabalhocompulsrio?

    Tampouco as solues dos conflitos distributivos da riqueza social seroresultantes de confrontaes discursivas, baseadas no melhor argumento, isentasde confrontos sociais concretos. A rigor, face excluso social, os miserveissequer so escutados enquanto sujeitos, a no ser quando organizados eminstituies polticascomo, por exemplo, os camponeses despossudos doMovimento dos Sem-Terra. Os assassinatos de lideranas camponesas, demoradores dos bairros perifricos e de dirigentes sindicais atestam o quo longeestamos da democracia discursiva.

    Hilda Sbato (1999), assevera, por sua vez, que a constituio de umaesfera pblica na Amrica Latina no encontra rigoroso suporte histrico. Noapenas em termos temporais, mas tambm em termos de escopo. De fato, oprocesso de edificao da esfera pblica na Europa do sculo XVIII, descrito porHabermas, somente pode ser encontrado - de forma parcial e fragmentria - nasegunda metade do sculo XIX. Alm disso, esta no conheceu a mesma difusoda europia, pelo menos na maior parte da regio, permanecendo restrita scamadas mais privilegiadas da populao. Finalmente, a esfera pblica, em seusprimrdios, esteve significativamente afastada da esfera poltica, pois estevepraticamente restrita a peridicos literrios, cafs e espaos similares.

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  • Contradio em Movimento: Movimentos Sociais emDefesa do Ensino Pblico

    Por meio do entrelaamento das crticas aos pressupostos que tentamlegitimar a emergncia de novos movimentos sociais, desvinculados do mundodo trabalho, este estudo tem a expectativa de ter contribudo para conferiratualidade aos movimentos que, operando as contradies de classes, buscamtransformaes no mundo do trabalho para a emancipaoda sociedade futura.Com este propsito, estes movimentos, institucionalizados ou no, plantam hoje,por meio da luta em defesa da escola pblica, gratuita e de qualidade, as sementesda educao tecnolgica, para utilizar a bela sntese de Marx a respeito daeducao do futuro. So grupos de mulheres do Movimento de Educao da ZonaLeste de So Paulo, Associaes de Pais e Mestres, Sindicatos dos Trabalhadoresem Educao, Ncleos de Educao dos partidos de esquerda, que sabem,sentem, vivem, na carne, as contradies advindas da assimetria entre a riquezasocialmente produzida, por meio do trabalho, e as condies materiais eespirituais de vida. O drama da pobrezano apenas decorrente dos baixossalrios, mas da educao focalizada, minimalista, somente capaz de produziraberturas para o futuro pelo compromisso tico-poltico de sujeitos nas salas-de-aula, nos movimentos religiosos, no mbito familiar, etc. Estes movimentos,alguns deles desde os anos 1950, forjaram, na difcil luta coletiva contra governosmuitas vezes truculentos, edificar um sistema pblico de ensino, ainda sequeruniversalizado, mas que j se encontra perigosamente ameaado pelas polticasneoliberais.

    Essas lutas, caractersticas da classe-que-vive-do-trabalho, conforme a feliza rgumentao de Antunes (1999), esto sendo paulatinamente apagadas. E, comisso, os seus sujeitos esto sendo submetidos ao silncio e ao esquecimento. Em seul u g a r, o pensamento dominante anuncia como seus p a rc e i ro sos novosmovimentos sociais, caracterizados como terceiro setor ou ONG, vistos comoexpresso da vivacidade da sociedade civil liberta de um passado de confrontaode corte classista. De acordo com as ideologias dominantes, configuram,discursivamente, esferas pblicas em que os conflitos podem ser solucionados combase no melhor argumento. O vetor discursivo o entendimento.

    Arcaicos e modernos, entretanto, invertem os papis. Os movimentos sociaistradicionais, capazes de empreender uma luta do alcance dos CongressosNacionais de Educao (CONED), hoje o principal espao pblico de discussoe defesa da educao pblica, so rotulados de arcaicos, mesmo propondo umaagenda educacional radicalmente moderna, republicana, laica. Inversamente, osnovos movimentos, qualificados como modernos, defendem uma agendaeducacional arcaica, que vincula a educao a interesses particularistas, submetea escola ao pensamento nico, reinventam formas anacrnicas de filantropia,corroem as bases do que seria a esfera pblica to exaltada.

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  • A Cidadania Negada

    A crtica ao suposto carter corporativista dos sindicatos, elaborada por partede setores da esquerda prximos a terceira via, de certo modo, surpreendente.No apenas os sindicatos esto entre as principais entidades responsveis pelaexistncia de um sistema pblico de ensino na Amrica Latina, como tm sidouma referncia para a preservao de princpios educativos republicanos emsociedades tensionadas por tempos histricos onde a runa da escola pblicamoderna uma das possibilidades. O questionamento da nfase na pautaeconmica, por parte dos sindicatos, contm inequvocas marcas economicistas.Gramsci (1980) nos mostra a dialtica entre as pautas econmico-corporativa,econmico-poltica e tico-poltica. Indubitavelmente, a pauta econmica hoje sereveste de um carter poltico de fundo, pois atinge o mago das polticasneoliberais, prisioneiras (e artfices) da voluptuosidade do capital financeiro. Areivindicao da responsabilidade do Estado com a manuteno e odesenvolvimento do ensino pblico , neste contexto, uma insgnia radical efecunda. Os desdobramentos dilacerantes do desenvolvimento desigual docapitalismo no podem ser esquecidos. A pauperizao dos docentes e o processode objetivao/ fetichizao que o capital impe ao trabalho pedaggico estoinscritas em uma restruturao que prev a perenizao da condio culturaldependente, expresso simblica da condio capitalista dependente investigadapor Florestan Fernandes. Em termos mais genricos, os movimentos sociais anti-capitalistas, entre os quais se encontram muitos sindicatos, esto em confrontocom esta poltica.

    As virtualidades dos movimentos sindical e popular, entretanto, nopodem servir de lente para ocultar a crise em que vivem estes movimentos.Inegavelmente, os movimentos sociais empenhados em construir a hegemoniados subalternos esto em crise, h reduo do nmero de sindicalizados emimportantes categorias (embora no no setor educacional), a participao nasaes polticas conhece revezes, alternando momentos de forte mobilizao edesmobilizao; afinal, o capital promove a sua vingana em relao sconquistas do trabalho. Evidentemente, existem motivos de ordem propriamentepoltico-sindical, algumas delas apontadas na seo anterior. Por isso, prticastm de ser repensadas. A democratizao radical das entidades ainda umprocesso incerto. A assimilao passiva ordem infelizmente requer averticalizao da estrutura sindical, ampliando o hiato entre o ncleo dirigente ea base, afastando a ltima da direo. As polticas propositivas precisam sermais amplamente discutidas pelas entidades de base e no podem comprometer aautonomia sindical. A ampliao do conceito de classe trabalhadora comoclasse-que-vive-do-trabalho tem que ter consequncias para a organizao dasentidades, como a incluso dos excludos (desempregados, trabalhadoresprecarizados etc) e dos setores ditos minoritrios (mulheres, ndios, negros,homossexuais etc). Igualmente, preciso ousar no estabelecimento de eixos deluta que questionem o mago do capitalismo e anunciem, in nuce, a economia

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  • poltica do socialismo, como a transformao da natureza em mercadoria, aobjetivao da educao, da cincia e da tecnologia, a fetichizao das relaesde produo e das foras produtivas etc. O presidente da CUT, em sua exposioneste Seminrio, indicou mudanas positivas a este respeito, embora aindadbeis, como uma maior preocupao com a qualidade de vida, com o meioambiente, com a participao das mulheres e com as etnias historicamentediscriminadas. Estas breves indicaes atestam o vigor tico-poltico de entidadesque historicamente foram (e ainda so) pilares da modernidade. Foi nossindicatos que as mulheres e os homens que vivem do trabalho construram - asuor e sangue - os valores tico-polticos que esto no cerne da modernidade.

    Aps a expanso de uma srie de movimentos multiculturalistas (muitosdeslizaram para o racismo e exercitam a intolerncia) e, sobretudo, docrescimento sem precedentes do terceiro setor, cabe indagar: onde um trabalhadorcomum pode se reunir com os seus companheiros, falar e ser escutado, com oobjetivo de politizar o espao pblico? foroso reconhecer que, na maior partedos pases, ainda hoje, os sindicatos e movimentos populares como o MSTnoBrasil e os Zapatistas no Mxico, so uns dos poucos espaos pblicos em que possvel reivindicar as transformaes necessrias vida e organizar a luta emfavor de valores tico-polticos universais, livres da fetichizao e da objetivaoda vida.

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  • A Cidadania Negada

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