A Água e a Urna - Malu Delgado (Piaui 103)
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A água e a urna Como Alckmin e Dilma atuaram na crise de abastecimento em São Paulo em ano eleitoral
por Malu Delgado
Izabella Teixeira, ministra do Meio Ambiente, ligou seu iPad na manhã do último dia de
janeiro de 2014 e quatro análises de centros de pesquisa do governo federal saltaram na
tela. A obsessão da presidente Dilma Rousseff por gráficos e relatórios contaminara seus
auxiliares, e era rotineira a divulgação de informações digitais entre ministros na
Esplanada. A ministra não se conteve. Pegou o telefone e pediu uma audiência urgente
com a presidente. Bateu à porta de Dilma com um dado alarmante, sobretudo em ano
eleitoral: o chamado Sistema Cantareira, principal fornecedor de água para 9 milhões de
pessoas no estado de São Paulo, estava secando a passos largos.
Os diagnósticos apontavam para o agravamento da estiagem no Sudeste em 2014, depois
de um dezembro de 2013 atipicamente seco. Os dados sobre as condições pluviométricas,
os baixos níveis dos reservatórios, a queda da umidade do solo e previsões
meteorológicas pessimistas antecipavam um cenário de risco para a economia e a
política. O colapso do principal centro produtivo do país agravaria ainda mais o quadro
de crescimento pífio projetado pelos economistas. A quem o eleitor paulista, sem água
na torneira, acabaria responsabilizando por uma eventual crise de abastecimento? E o
pior: os reservatórios esvaziados afetariam a produção de eletricidade, trazendo risco de
racionamento de energia.
O maior sistema de abastecimento de água da América Latina, o Cantareira, que ao longo
de 2014 passaria a frequentar manchetes de jornais e conversas de bar, é obra de
engenharia complexa. Com capacidade para armazenar 982 bilhões de litros de água –
meio milhão de piscinas olímpicas enfileiradas –, no final de janeiro de 2014 contava
com apenas 22,4% desse volume em seus reservatórios.
A água que sai da torneira de quase metade dos habitantes da região metropolitana de
São Paulo percorre cinco represas (ou reservatórios) e sete túneis, ao longo de 48
quilômetros. Quando ela chega ao pé da Serra da Cantareira, precisa ser impulsionada
por bombas, fazendo um “salto” de 120 metros – é a Elevatória de Santa Inês. O ponto
final do sistema é a Estação de Tratamento de Água do Guaraú, de onde a água é liberada
para o consumo. As obras foram realizadas no regime militar, entre 1967 e 1974, quando
o crescimento da indústria paulista e a explosão demográfica na capital aumentaram a
demanda por água – a cidade tinha então 5,7 milhões de habitantes; hoje são 11,9
milhões.
É curiosa a origem do nome “Cantareira”, que se tornou conhecido nacionalmente só
agora, na mais grave seca no Sudeste em 84 anos. Nos séculos XVI e XVII, os tropeiros
que faziam o comércio com o interior cruzavam a serra repleta de nascentes e córregos
e, diante da abundância, aproveitavam para armazenar água em cântaros. O hábito
batizou a serra: “Cantareira.”
O diagnóstico sobre o Sistema Cantareira recebido por Izabella Teixeira não era nada
alvissareiro. A oito meses da eleição presidencial, os documentos colocavam na agenda
da presidente um embate antecipado com o principal nicho de poder do PSDB. Dilma
despachou a ministra para São Paulo, para uma conversa com o governador Geraldo
Alckmin. Pediu discrição e ação rápida.
A seca já estava no radar do tucano, também candidato à reeleição. Alckmin andava
encucado. Dezembro é mês que tem a letra R no meio, e, segundo a sabedoria dos
agricultores do interior paulista, chove em todos os meses em que a letra R aparece. No
final de dezembro de 2013, o tucano levou sua inquietação a Mauro Arce, presidente da
Cesp, a Companhia Energética de São Paulo: “É mês com R e não choveu.” Arce retrucou
que os boletins climáticos a sua disposição ainda não apontavam a continuidade da
estiagem severa, mas a queda dos reservatórios era um fato.
A seca persistiu em janeiro. Alckmin convocou uma reunião de governo. Falou-se da crise
de 2004, quando o Sistema Cantareira também chegou a níveis muito baixos. O
governador pediu à Sabesp, a empresa responsável pelo fornecimento de água no estado,
que estudasse um programa de oferta de bônus a quem reduzisse o consumo. O assunto
passou a ser discutido em reuniões semanais.
Em 27 de janeiro de 2014, a Sabesp divulgou um “comunicado importante”, de trinta
segundos, nas tevês abertas. “O Sistema Cantareira está com o nível mais baixo dos
últimos dez anos” – o governo estadual pedia economia de água. O slogan tranquilizava:
“Água: sabendo usar, não vai faltar.” Foi veiculado por dois dias. Um novo comercial,
também de meio minuto, foi ao ar nos dias 3 e 4 de fevereiro, ressaltando que o volume
do Cantareira havia atingido 22%; recomendava-se banho rápido e não lavar carros nem
calçadas. O governo considerava o bônus de 30%, implantado em 1º de fevereiro,
suficiente para reduzir o consumo e afastar o risco de um colapso no Cantareira. E
naquele momento ainda contava com as chuvas de fevereiro e março.
Logo depois da conversa com a presidente em 31 de janeiro, uma sexta-feira, a ministra
Izabella Teixeira telefonou para Alckmin. Dispunha-se a pegar imediatamente um voo
para se reunir com o governador no dia seguinte, sem alarde, como mandara a chefe.
Alckmin estava no interior do estado e pediu que o encontro fosse marcado para a
semana seguinte. Acabou ocorrendo numa quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014, no
Palácio dos Bandeirantes.
Izabella Teixeira levou Vicente Andreu Guillo, presidente da ANA, a Agência Nacional de
Águas, além de assessores do ministério. Fez-se acompanhar também por Joaquim
Gondim, superintendente de Operações e Eventos Críticos da ANA, um engenheiro com
experiência de gestão das secas no Nordeste que já havia trabalhado com o tucano Tasso
Jereissati no Ceará. Como convinha aos dois lados, detalhes da reunião não chegaram à
imprensa.
Naquele dia, o item “viagem a São Paulo” era a única anotação da agenda da ministra.
“Tive uma recomendação explícita da presidente, ordem explícita, para que em nenhum
momento o ministério conduzisse a questão na esfera político-partidária, e sim na esfera
político-institucional”, me disse Izabella Teixeira em seu gabinete em Brasília, numa
tarde nublada de março deste ano, catorze meses depois do episódio. Enfatizava a
palavra “explícita” com alguns decibéis acima do usual.
A ministra evitou ser fatalista na conversa com Alckmin, até porque “modelos
matemáticos têm boa previsão de curto prazo, mas não de longo prazo”. Era preciso
esperar o fim do período chuvoso de 2014, mas, “conforme o andar da carruagem”, seria
prudente traçar com antecedência medidas estratégicas.
Alckmin ouviu atentamente os alertas da ministra e de seus auxiliares, sem imiscuir
rivalidades políticas na conversa. “Ele foi muito receptivo”, disse a ministra. O tucano
chamou para a reunião no Palácio Dilma Pena, então presidente da Sabesp; Edson
Giriboni, secretário estadual de Saneamento e Recursos Hídricos; Alceu Segamarchi,
superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo,
o DAEE, que atua como órgão regulador; e João Meirelles, assessor especial de Assuntos
Estratégicos e hoje titular da pasta de Energia paulista. No governo, Meirelles era quem
fazia as previsões mais pessimistas sobre a seca.
“A reunião foi cordial, de trabalho. O governador numa boa, a ministra também”,
lembrou Giriboni, do Partido Verde, hoje deputado estadual reeleito. Segundo ele, na
reunião procurou-se dividir as responsabilidades. “Foi assim: o problema não é só do
estado, é de todos nós. O que podemos fazer de forma conjunta para otimizar nossas
ações?”, disse.
A conversa partiu da exposição dos diagnósticos do Centro Nacional de Monitoramento
e Alertas de Desastres Naturais – o Cemaden, subordinado ao Ministério da Ciência e
Tecnologia –, aqueles que haviam pipocado no tablet da ministra. Naquele dia
aconselharam o governador a se servir do “volume morto” do Cantareira, caso a seca se
agravasse, como havia sido feito no Ceará – daí a presença do técnico da ANA na
comitiva.
Dilma Pena, que o governo tucano rifaria meses depois, sugeriu que a ANA integrasse o
grupo técnico que, criado naquela reunião, passaria a monitorar diariamente o Sistema
Cantareira, o GTAG-Cantareira – Grupo Técnico de Assessoramento para a Gestão do
Sistema Cantareira.
“O governador nunca tinha ouvido falar em volume morto”, disse, debochado, um
assessor do Ministério do Meio Ambiente, que não presenciou o encontro, mas é afeito a
intrigas políticas. Já Giriboni afirmou que obviamente isso já era de conhecimento da
Sabesp. “Todo mundo sempre soube que essa reserva existia. Só que a ANA precisaria
autorizar o uso.” Ele admitiu que, naquela data, o governo paulista não pensava usar o
volume morto e ainda contava com as chuvas. Quem havia introduzido o debate sobre o
uso dessa “água extra”, segundo os tucanos, fora Mauro Arce, um mês antes de a ministra
tocar no assunto com Alckmin. Em 2004, quando também se recorreu ao volume morto
do Cantareira, Arce era secretário de Energia e Recursos Hídricos.
O volume morto é uma quantidade de água significativa – 287,5 bilhões de litros – que
fica abaixo das tubulações do Cantareira e que em condições normais não é usada. “Não
existe nenhuma relação entre esse termo técnico e coisa morta, podre ou de má
qualidade”, explicou o especialista em engenharia hidráulica Rubem La Laina Porto,
professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
No dia seguinte à conversa no Palácio dos Bandeirantes, o Sistema Cantareira
armazenava apenas 20% de sua capacidade, sem considerar o volume morto. Na segunda
quinzena de fevereiro, o governador anunciou que a Sabesp cogitava usar parte do
volume morto. O GTAG-Cantareira divulgou seu primeiro comunicado: nos cinco meses
anteriores, saíra muito mais água do sistema do que entrara.
O grupo, com representantes dos governos estadual e federal, simulou três cenários para
definir o volume de água que poderia ser retirado do Cantareira a partir de março. Quem
tem poder para arbitrar sobre essa vazão são os órgãos reguladores e, num comunicado
conjunto dias depois, o DAEE, estadual, e a ANA, da União, definiram que a de março
seria de 27,9 metros cúbicos por segundo – a retirada normal era de 33 metros cúbicos
por segundo.
A exaustão do Sistema Cantareira expôs a anatomia complexa da gestão de recursos
hídricos no Brasil e sua implementação ainda frágil.
A Constituição de 1988 definiu quem são os “donos” das águas. Rios, lagos e quaisquer
reservas que atravessem mais de um estado são domínio da União; caso fiquem num
único estado, a responsabilidade é estadual. No Sistema Cantareira há reservatórios
federais e estaduais.
Por esse motivo é que União e estado devem trabalhar juntos na gestão do Cantareira.
Do mesmo modo, a outorga para a exploração do sistema depende de autorização da
ANA. Em 2004, a agência federal autorizou o DAEE a renovar por dez anos a concessão
da Sabesp – que a obtivera em 1974, por um prazo de trinta anos. A Sabesp é uma
empresa de capital misto, com ações na Bolsa brasileira e em Nova York. O governo de
São Paulo é o sócio majoritário. Essa segunda outorga do Cantareira venceu no auge da
crise, em agosto de 2014. Os dois lados concordaram em postergar para o final deste ano
o debate sobre a concessão.
Em 1997, no governo Fernando Henrique Cardoso, aprovou-se a Lei das Águas (Lei
9.433), que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. A legislação determina
que a água é um bem de domínio público, limitado, dotado de valor econômico. Se
escassear, deve-se dar prioridade ao consumo humano e à mitigação da sede dos animais.
Inspirada no modelo francês, a lógica da lei é a descentralização da gestão e a
participação dos cidadãos. Ela estabeleceu que seriam criados os comitês de bacias
hidrográficas, encarregados de monitorar aplicação e consumo da água, zelar pelos
mananciais e propor estudos técnicos, entre outras atribuições.
Quando a Lei das Águas entrou em vigor, o Brasil tinha dezenove comitês de bacias. Em
2013, havia cerca de 200 em funcionamento. No entanto, a maioria desses comitês tem
pouca ou nenhuma efetividade. Numa crise como a de 2014, há conflito entre os
diferentes usuários – indústria, produtores agrícolas, piscicultores, organizações
ambientais e usuários comuns.
Além das regras da Constituição e da Lei das Águas, uma lei mais recente sobre
saneamento básico, a Lei 11.445, aprovada em 2007, no governo Lula, amplia a
complexidade da gestão hídrica. O saneamento passou a ser responsabilidade dos
municípios. Engenheiros sanitaristas consideraram um avanço que o poder público
assumisse esse investimento; nos anos 90, preponderava o debate favorável à
privatização do setor – o que seria um obstáculo à universalização do saneamento básico
no país.
Toda essa legislação exige uma articulação entre União, estados e municípios que
raramente acontece a contento. Resultado: o planejamento fica prejudicado. “O que nós
estamos vendo nesta crise é que os planejamentos, se existiram, não consideraram de
forma adequada as variações climáticas, as possibilidades de estiagens prolongadas, e
nem que alternativas poderiam ser adotadas para fazer face a essas situações”, disse Leo
Heller, relator especial da Organização das Nações Unidas sobre o direito humano ao
saneamento e à água potável. Mineiro, integrante do Centro de Pesquisas René Rachou,
da Fiocruz, Heller foi escolhido para ocupar o posto da ONU. Eram 26 candidatos, do
mundo todo. Assumiu em novembro de 2014.
O fim do período chuvoso de 2014 se aproximava e a seca não dava trégua. O
Cantareira esvaziava e chegaria, no final de março, a apenas 13,4% da sua capacidade. O
glossário hídrico da população de São Paulo se ampliava: depois do “volume morto”, veio
a “redução de pressão”.
Em março, a Sabesp colocou em prática essa técnica, utilizada pela primeira vez em 1997
e muito comum nas empresas de saneamento: diminui-se a pressão da água que passa
pelo sistema. Num primeiro momento, a pressão foi reduzida apenas à noite. Com a crise
aguda, a prática passou a ser adotada ao longo do dia. Além de o consumo ser menor, a
companhia conseguiria diminuir também a água desperdiçada com vazamentos. Para
alguns especialistas, reduzir pressão é uma forma de racionamento. Não se deve
confundir com rodízio, quando há de fato o corte de abastecimento.
O governo estadual negava haver racionamento, mas moradores de algumas regiões
começaram a ficar sem água em casa. “Água passando com menos pressão reduz
vazamentos. Algumas pessoas, infelizmente, vão ficar sem água, ou porque estão em
áreas altas, que a pressão não atinge, ou estão muito no fim da rede de abastecimento,
onde a água não chega. Felizmente é pontual”, me disse o professor Rubem Porto, da
Politécnica da USP.
Ainda em março, Alckmin foi a Brasília. Telefonou para a ministra Izabella Teixeira e
pediu que ela intermediasse uma audiência com Dilma sobre a crise hídrica. Segundo
relataram assessores do tucano, no início de 2014 o governador e a presidente firmaram
um pacto secreto. Num evento institucional, Dilma puxou Alckmin pelo braço. A sós,
disse que os dois estariam ferrados se a crise fosse aguda. Ambos asseguraram que não
fariam uso político da escassez hídrica. Na visita ao Palácio do Planalto, o governador
levou uma lista de obras emergenciais de médio e longo prazos que garantiriam o
aumento de oferta de água em São Paulo. Queria apoio financeiro. O custo estimado era
de 3,5 bilhões de reais.
O ponto central da conversa girou em torno da obra na bacia do Paraíba do Sul. São Paulo
considerava prioritário fazer a interligação de duas bacias, tirando água do Paraíba do
Sul para jogá-la em outra, denominada PCJ (Piracicaba–Capivari–Jundiaí), para
fortalecer o Sistema Cantareira.
A situação era delicada porque é o Paraíba do Sul que garante a segurança hídrica do Rio
de Janeiro. Na década de 40, para a geração de energia foram construídas barragens ao
longo do rio, hoje a única reserva de água que o estado possui. Graças a essa obra, o Rio
tem um volume morto equivalente a duas Cantareiras (2 trilhões de litros de água).
Tecnicamente, a transposição de bacias não oferece riscos ao abastecimento do estado –
São Paulo propôs o desvio de um volume baixo do Paraíba do Sul, uma vazão de 5 metros
cúbicos por segundo (quantidade de água suficiente para abastecer 1,5 milhão de
pessoas, em média). Dilma aconselhou Alckmin a procurar o governador Sérgio Cabral,
do PMDB, e iniciar um diálogo amistoso.
Em uma das primeiras conversas entre os dois, Cabral se opôs à obra e foi sarcástico: “Se
eu apoiar essa obra posso me candidatar a senador, só que por São Paulo.” Estava
também em jogo a eleição de seu sucessor, o vice-governador Luiz Fernando Pezão.
Em seguida, Cabral renunciou ao governo fluminense, desistiu da candidatura ao
Senado, e coube a Pezão negociar com Alckmin. A disputa se arrastaria até depois das
eleições. No final de novembro, numa audiência de conciliação promovida pelo Supremo
Tribunal Federal, os governos de São Paulo, Rio e Minas se comprometeriam a resolver
o problema sem recorrer à Justiça. O desenho final da transposição seria feito em
conjunto, estabelecendo-se vazões mínimas e máximas que São Paulo retiraria do
Paraíba do Sul.
Uma das maiores críticas do governo paulista à ANA, além da politização da crise pelo
presidente da agência, é o fato de só depois das eleições o órgão regulador nacional ter
apoiado a obra da transposição. Já a União critica o fato de o governo estadual ter
mencionado a importância da obra em estudos internos desde 2010 e só ter dado
prioridade a ela na crise.
A partir de meados de abril de 2014, as reuniões no Palácio dos Bandeirantes se
tornaram intermináveis. Era preciso estar preparado para discutir a crise da água num
quadro político de incertezas – ninguém sabia ao certo para onde seriam canalizadas as
insatisfações que tomaram as ruas em 2013, e além disso o PSDB precisava levar em
conta a fadiga de vinte anos consecutivos no comando do estado.
Na residência oficial, discussões entre estrategistas e marqueteiros se estendiam pela
madrugada e fins de semana. Com base em pesquisas qualitativas, decidiu-se que o
próprio governador daria as respostas sobre a falta d’água, mas sem mencionar a palavra
crise. “Ele tomou a frente do debate para mostrar ação e que resolveria o problema”,
analisou um colaborador de Alckmin, que pediu anonimato.
A lógica recomendada pelo marketing político era a seguinte: Alckmin era o candidato
que mais conhecia a realidade de São Paulo e, portanto, o mais preparado para enfrentar
uma escassez hídrica tão severa. E, claro, o governo se ancoraria sempre na “maldade”
de são Pedro, o que era um fato insofismável: o volume de chuvas era o pior do último
século. No meio da confusão, Alckmin mudou o comando da Secretaria de Recursos
Hídricos e colocou Mauro Arce, de perfil técnico e alinhado a governos tucanos desde a
época de Mário Covas, para administrar o abacaxi.
Havia dois modelos para lidar com a seca, me disse o subsecretário de Comunicação de
Alckmin, Marcio Aith, ao fazer uma retrospectiva da crise durante um almoço, em março
deste ano, no Palácio dos Bandeirantes. Ou o governo decretava rodízio, com um
revezamento das áreas que teriam a água cortada, ou reduzia a pressão. “Por que a gente
iria para uma situação absolutamente radical se podíamos deixar todo mundo recebendo
água, mas com menos volume? Por que cortar?”
O que provocou uma grande irritação no PT, continuou Aith, é o fato de São Paulo não
ter decretado racionamento. “Rodízio não é estratégia, é colapso. Não se adota método
de colapso como estratégia.” O principal defensor da opção por reduzir a pressão foi
Paulo Massato, diretor metropolitano da Sabesp. “O samurai nos salvou”, brincou um
outro tucano no início deste ano, ao avaliar o saldo político da crise hídrica. Massato tem
ascendência nipônica.
Em maio, quando o período de estiagem já havia começado e o Sistema Cantareira
contava com apenas 8,2% de sua capacidade, o governo de São Paulo começou a usar a
primeira cota do volume morto. Simplesmente não choveu. “É como se tivéssemos tido
sobre todo o Sudeste uma bolha de ar, um centro de alta pressão. Essa área não permitia
a entrada de nuvens, de frentes frias”, explicou Jose Antonio Marengo, pesquisador
titular do Cemaden e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
da ONU.
Marengo, que além de meteorologista é físico, afirmou que a previsão do fenômeno foi
feita em dezembro de 2013. “O que não se previu foi a intensidade.” O bloqueio
atmosférico teve início no fim de dezembro, agravou-se em janeiro e permaneceu até os
primeiros dias de fevereiro de 2014. A bolha ficou no céu por 45 dias. As temperaturas
eram altas, não havia chuva, os rios estavam baixos, e os reservatórios em queda.
Foi uma “bola de neve” que se arrastou por 2014, avaliou Marengo. Os hidrologistas
afirmam que a crise persistirá ao longo de 2015, apesar das chuvas de fevereiro e março
deste ano. “Entramos no cheque especial já bastante negativo”, ele disse. O fenômeno
que castigou o Sudeste foi agudo no território paulista, segundo Marengo, porque a
maior parte das bacias está na divisa de São Paulo e Minas. “A chuva foi menor onde
estão as cabeceiras dos rios que abastecem os sistemas de água e energia.”
Ainda não há elementos científicos para uma associação direta entre a seca do Sudeste e
as mudanças climáticas. “Mudança climática é um processo de longo prazo”, ensina o
especialista. Se a seca se estender por longos períodos consecutivos, a possibilidade pode
vir a se confirmar. Marengo afirmou que na Califórnia, onde a estiagem se arrasta por
cinco anos, já há estudos “que associam a seca a ações humanas, tanto na emissão de
gases do efeito estufa como em mudanças do uso da terra”.
No início de agosto de 2014, o então presidente do Conselho Mundial da Água,
Benedito Braga, preparava-se para viajar ao Tajiquistão. O país da Ásia Central vive às
turras com o Uzbequistão por causa da água do rio Amudare, e a comunidade científica
tentava evitar um conflito armado. Um dia antes do embarque, Braga me recebeu em sua
sala na USP. Já contando com o volume morto, o nível do Cantareira era de 14,7%
naquela tarde. Assim como seus colegas da Politécnica da USP, Braga virou consultor de
jornalistas no auge da crise hídrica. “Dei umas 500 entrevistas. Sempre dizia: parem de
ficar procurando culpados e transmitam para as pessoas que a situação é muito grave.”
Engenheiro hidráulico e especialista em recursos hídricos pela Universidade Stanford,
ele foi o primeiro brasileiro a comandar o Conselho Mundial da Água. Foi diretor da ANA
desde 2001, ano em que se criou a agência reguladora, até 2009, passando pelos
governos Fernando Henrique e Lula. No cargo, cuidou diretamente da outorga do
Sistema Cantareira, em 2004.
Bem-humorado e elegante, de terno e gravata, fez questão de me explicar as funções da
entidade que comandava desde 2012. “O conselho existe para conscientizar a classe
política. Água tem que estar na agenda política assim como saúde, educação e energia.”
Perguntei se ele havia sido procurado pelos governos estadual e federal para discutir
saídas para a crise. Sim, tinha havido sondagens dos dois lados, mas ele optara por se
manter distante, sobretudo por ser ano eleitoral. “O conselho pode falar de forma mais
livre, conceitual.”
Quatro meses mais tarde, em dezembro de 2014, Braga seria convidado por Alckmin para
ser secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do estado.
Naquela tarde de agosto, porém, traçou seu diagnóstico com independência. Em outubro
de 2013, disse, “a coisa já não estava boa”. Mas poderia chover em novembro, dezembro
e janeiro. Não choveu. “Opa. Então, meu amigo, agora eu não vou esperar mais fevereiro
e março. Eu vou logo impor uma regra, pois de março a outubro não tem chuva, e a gente
já sabe disso.”
Braga fez questão de enfatizar que essa era sua “visão pessoal”, que não estava dizendo
“que Alckmin pisou na bola”. Se fosse ele o gestor, prosseguiu, tomaria um caminho
diferente do adotado pelo governo paulista, de dar bônus para quem economizasse água.
Considerava as campanhas de esclarecimento sobre a crise insuficientes e pouco
transparentes. Defendeu que as pessoas que excedessem o consumo fossem
sobretaxadas, o que o governador evitou fazer no ano eleitoral. O bônus estava
funcionando, mas havia limites. O governo de fato foi surpreendido pela situação
anômala do clima, disse, para acrescentar: “Mas você é surpreendido até um certo
ponto.”
Gesticulando muito e curvando-se sobre a mesa, Braga elogiou a decisão da Sabesp de
reduzir a pressão da água. Abominava a ideia de rodízio. “Fechar o sistema não é solução,
tecnicamente não é uma proposta razoável porque há risco de contaminação da água.”
Parte da população ficaria permanentemente sem água, além de haver também
seriíssimo risco de as tubulações estourarem. “Ou seja, não tem vantagem nenhuma.”
Braga estimou que o Cantareira demoraria pelo menos três anos para se recuperar. E
esperava que no fim de 2014 a seca não fosse tão severa quanto foi no fim de 2013. “Se
uma situação como essa se repetir, será praticamente o apocalipse.” Quase foi.
Perguntei a Benedito Braga o que era mais fácil: obter um acordo no Tajiquistão ou entre
Alckmin e Pezão? Ele deu uma longa risada. Enfatizou que o tucano não precisaria ter
consultado a ANA ou o governador do Rio porque a obra do Paraíba do Sul será feita em
um rio exclusivamente estadual. “Não há corte no mundo que impeça São Paulo de fazer
essa transposição.”
Listou também obras mais baratas e mais rápidas que poderiam ter sido consideradas
pelo governo paulista antes da transposição do Paraíba do Sul, e disse que a solução
hídrica definitiva para o estado seria a obra do baixo rio Juquiá, que poderia prover 83
metros cúbicos por segundo ao estado – “20% a mais do que se consome hoje”, somando-
se todos os sistemas (Cantareira, Guarapiranga e Alto Tietê). O problema é o custo, de
aproximadamente 5 bilhões de dólares, mais do que os 8 bilhões de reais que a
transposição do São Francisco, obra federal ainda inconclusa, consumiu até agora.
“Ninguém mais fala dessa alternativa. Por quê? É cara. Uma região que tem 30% do
Produto Interno Bruto do país vai resolver seus problemas com obras baratas? Não vai.
Para fazer uma obra dessa tem que ter coragem política, coisa de estadista, o que está em
falta.”
Se no começo da crise a presidente Dilma havia dado ordem “explícita” para que
ninguém no governo fizesse uso político da seca, foi ela própria quem jogou água no
discurso. Segundo um tucano, os golpes “abaixo da linha da cintura” começaram no
primeiro semestre. No dia 8 de maio, quando recebeu jornalistas para jantar no Palácio
da Alvorada, a petista introduziu a nova linha. Disse que energia era um assunto federal
e a água, estadual. São Paulo, enfatizou, não havia feito os investimentos necessários para
garantir o abastecimento hídrico.
Em junho, quando o PT lançou o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha candidato ao
governo paulista, Dilma gravou uma mensagem em vídeo: “São Paulo não pode mais
confiar em volume morto. Você é o volume vivo que São Paulo precisa.”
No segundo turno da eleição presidencial, com o PT em desespero e temendo perder para
Aécio Neves, a presidente levou a crise hídrica ao programa eleitoral. O partido tentava
minar a vantagem tucana em São Paulo, maior colégio eleitoral do país. “É preocupante
e também muito triste saber que os brasileiros que vivem em São Paulo, estado mais rico
do país, estão passando por uma crise de falta d’água sem precedentes na sua história”,
disse no programa de 19 de outubro. A presidente justificou a preocupação: “O que afeta
São Paulo afeta, claro, todo o país.” Em seguida, deu a explicação para sua tristeza: o
povo paulista “não precisava estar passando” por esse sofrimento, pois o governo
estadual havia sido alertado para a situação dez anos antes.
De fato, em 2003 estudos técnicos bancados pelo Banco Mundial deixavam clara a
sobrecarga no Sistema Cantareira e a necessidade de controlar a demanda eaumentar a
oferta. Dilma usou diagnósticos passados para atacar o “modelo de gestão do PSDB”.
Dias antes do segundo turno da eleição presidencial, eleitores paulistas receberam
torpedos sobre a crise hídrica, acusando Alckmin e os tucanos de serem péssimos
gestores.
“O PT torcia por uma crise mais grave para ver se isso maculava o governador Alckmin”,
disse Duarte Nogueira, presidente estadual do PSDB e secretário Estadual de Logística e
Transportes. Uma das maiores críticas que os tucanos paulistas fazem ao governo federal
é a insistência do PT, na eleição, em afirmar que a seca se restringia ao estado, e não
abrangia todo o Sudeste. Segundo eles, a ANA teve comportamento “assimétrico” com
São Paulo. Vicente Andreu Guillo, o presidente da agência federal, mostrou-se emocional
e tendencioso, acusou Nogueira. “Ele foi muito mais um dirigente partidário do que o
representante de uma agência reguladora.”
Na reta final da eleição, Alckmin equilibrava o copo ora meio cheio, ora meio vazio.
Sua frase no último debate da Rede Globo, no dia 30 de setembro, virou meme na
internet: “Não falta água em São Paulo, não vai faltar água.” Mais da metade da
população já tinha passado por falta de água em suas casas e 75% dos paulistas
acreditavam que a crise poderia ter sido evitada com medidas preventivas, segundo
pesquisa do Datafolha divulgada em 20 de outubro. Os dois meses anteriores ao pleito
foram de extrema tensão para os tucanos. Em agosto, também segundo o Datafolha, 64%
dos eleitores já consideravam que o governo paulista filtrava informações sobre a crise e
só divulgava o que era de seu interesse. Quase 30% declararam que o fornecimento
doméstico de água já havia sido interrompido pelo menos uma vez nos trinta dias
anteriores.
Um colaborador do tucano admitiu que o clima dentro do governo havia se acirrado.
Numa reunião no Palácio dos Bandeirantes, Alckmin quis detalhes de todas as obras da
Sabesp – cronogramas, andamento, valores dos investimentos. Espinafrou a presidente
da empresa, Dilma Pena, ao tomar conhecimento de que algumas obras anunciadas havia
uma década, com financiamento aprovado, não tinham saído do papel.
Em outubro, a presidente da Sabesp já sabia que não permaneceria no cargo se o tucano
fosse reeleito. Mauro Arce e Dilma Pena não se entendiam mais. O secretário de Recursos
Hídricos chegou a defender o rodízio e multas para o excesso de consumo. A Sabesp
resistia à primeira sugestão; o governador, à segunda. A situação de Dilma Pena ficou
insustentável quando vazou um áudio de uma reunião da Sabesp em que ela admitia que
a empresa, por “orientação superior”, não atuava na mídia para dar informações à
população sobre a crise. “É um erro”, disse ela.
piauí pediu uma entrevista a Dilma Pena em novembro do ano passado. A assessoria da
Sabesp informou que ninguém da empresa falaria sobre a crise. Os tucanos admitem
reservadamente, hoje, que a empresa pecou no planejamento estratégico. Mas são
enfáticos em negar que houve irresponsabilidade do governador por razões políticas.
Marcio Aith, subsecretário de Comunicação do estado, disse que a declaração de Alckmin
no debate, cinco dias antes da eleição, foi prudente do ponto de vista da gestão, e
essencial como “elemento de estabilidade” na seara política, num momento em que os
adversários do PSDB tentavam propagar a lógica do caos para forçar um racionamento.
“São Paulo enfrentaria a crise com organização, não na base do pânico difundido por
Andreu e pelo PT– Andreu, aliás, autor de previsões catastróficas nunca confirmadas e
de expressões jocosas incompatíveis com o cargo que ocupa e com a gravidade do
problema da água”, disse Aith.
Um interlocutor de Alckmin refutou a ideia de que o governador tenha sido
excessivamente otimista. “Mesmo os pessimistas, com base nas informações técnicas
disponíveis, não achavam que a crise seria tão grave. Os dados apontavam que seria
possível chegar a dezembro de 2014 ainda com água nos reservatórios.”
No mês que antecedeu a eleição, o governo de São Paulo comprou briga até com a ONU.
A portuguesa Catarina de Albuquerque, então relatora especial de direito humano à água
potável e ao saneamento, deu uma entrevista em visita ao Brasil. Disse que parte da crise
era imprevisível, mas ressaltou que havia ineficiências e problemas de gestão. O título da
reportagem da Folha de S.Paulo foi além: “Falta de água é culpa do governo de SP, afirma
relatora da ONU.” O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, recebeu uma
carta de Alckmin, acusando a relatora de fazer uso político de suas funções.
O sucessor de Catarina tem convicção de que a colega não agiu política ou
partidariamente. Em março deste ano, quando me recebeu no escritório da Fiocruz em
Belo Horizonte, Leo Heller afirmou que as palavras da antecessora foram usadas
indevidamente. “Mas o que ela disse eu venho repetindo: faltou planejamento e o
planejamento foi inadequado.” Enfatizou que a gestão da crise hídrica foi contaminada
pelo processo eleitoral. “Não precisa ser especialista para afirmar isso.”
Em 5 de outubro de 2014, dia da eleição, a água que restava no Cantareira equivalia a
6% da capacidade do reservatório (incluindo aí o volume morto, cuja primeira cota já se
esgotava). O tucano venceu no primeiro turno, com 57% dos votos válidos. No fim do
mês, o Cantareira agonizava: seu nível chegou a 3%. No dia 24, o governo de São Paulo
começou a usar o segundo volume morto. A seca estava escancarada.
Embora reeleito, Alckmin sofria um desgaste político devido à escassez de água. Num
sobrevoo do Cantareira no fim de outubro, acompanhado de Paulo Massato – o
“samurai” da Sabesp que propusera e executara com minúcia a estratégia de reduzir a
pressão da água –, Marcio Aith ficou chocado com o retrato seco que via abaixo. “Paulo,
seja sincero com o amigo aqui: e se também não chover em 2015?”, perguntou Aith.
Engenheiro, Massato sempre respondia citando modelos estatísticos e probabilidades
fundadas em fatos conhecidos, na experiência passada. A chance de 2015 repetir a
tragédia de 2014 seria ínfima, assegurou. O subsecretário de Comunicação ficou em
silêncio. “Eu sei que você está me enrolando, mas hoje estou cansado demais para
descobrir como”, disse, minutos depois.
O helicóptero pousou e os dois não falaram mais no assunto. No dia seguinte, numa
reunião com a presença do governador, Aith voltou a cutucar Massato. “Paulo, descobri
a falha no seu truque estatístico. Qual é a chance de uma cigana húngara descer em
Cumbica, pegar um táxi, entrar na Sabesp, abrir a porta da sua sala e cuspir na sua cara?
Mas não é qualquer cigana”, insistiu Aith, “tem que ser húngara.” Diante da colocação
inusitada alguns riram, outros ficaram estupefatos. Sem jeito, o engenheiro foi lacônico:
“Raro, né?” “Tão raro quanto a falta de chuvas em 2014?”, insistiu Aith. “Mais raro até”,
respondeu Massato, assustado com o rumo do diálogo. “Pois é. Mas vamos supor que a
cigana húngara já tenha aparecido uma vez, já tenha entrado na sua sala e já tenha
cuspido na sua cara. Qual seria a chance de uma segunda cusparada?” Mesmo achando
tudo aquilo muito pouco lógico, Massato concluiu: “Aí é maior, né” “Então, Paulo, não é
verdade que as chances de chover em 2015 são maiores”, disse Aith. “A cigana húngara
já entrou na sua sala e já nos cuspiu”, finalizou, arrancando gargalhadas do próprio Paulo
e dos técnicos que acompanhavam a conversa.
A imagem virou um mantra no Bandeirantes. E passou a servir de alerta político aos
técnicos: as previsões de 2014 às quais o governo teve acesso jamais revelaram com
clareza um cenário tão trágico como o que de fato ocorreu. “Os meteorologistas”, disse
Aith, “são todos uns profetas do acontecido. O que minimamente deveriam reconhecer é
a crescente inutilidade de suas previsões, principalmente à luz dos fenômenos climáticos
atuais, todos malucos”.
O PT não conseguiu capitalizar a crise hídrica eleitoralmente. Alexandre Padilha, o
candidato do partido ao governo de São Paulo, fez uma campanha sofrível e terminou em
terceiro lugar, com 18% dos votos válidos – desempenho medíocre se comparado a
disputas anteriores, em que o partido superou a marca de 30% do eleitorado no estado.
Na campanha, quem mais explorou a crise foi Paulo Skaf, presidente da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo e candidato do PMDB. Ficou em segundo, com 21,5%.
Boa parte dos dirigentes do PT paulista exigia que o prefeito paulistano, o petista
Fernando Haddad, usasse a crise hídrica para romper publicamente com Alckmin.
Haddad sempre manteve uma relação amistosa com o governador, e parte da direção
nacional do partido concordava com sua posição cautelosa. Se a água acabasse, a
população também poderia culpar o prefeito e a presidente Dilma.
Em janeiro de 2014, no aniversário de São Paulo, Haddad publicou um artigo
na Folha em que, depois de celebrar avanços de sua gestão, disse que “todo o esforço da
administração municipal” poderia “ser sombreado pela falta de água”. Segundo ele, uma
caça às bruxas não traria soluções. “Da nossa parte, estaremos solidários com as
autoridades do governo do estado responsáveis”, concluiu. Em reuniões internas do PT,
Haddad dizia que a crise hídrica era desastrosa e culpava a gestão tucana, mas que não
achava prudente ser ele o porta-voz dessa crítica.
No início de fevereiro deste ano, o prefeito foi chamado pelo governador ao Palácio dos
Bandeirantes. O secretário municipal de Educação, Gabriel Chalita, foi o articulador do
encontro. O tucano mostrou ao petista slides que dias depois seriam vistos na reunião
do Comitê de Crise Hídrica, que reúne trinta prefeitos da região metropolitana. Haddad
até deu opiniões a Alckmin sobre quais informações enfatizar.
O debate sobre a seca no Sudeste esteve pouco presente na agenda eleitoral em Minas
Gerais. O petista Fernando Pimentel, ex-ministro de Dilma, venceu a eleição no primeiro
turno com 52,9% dos votos válidos. Na campanha, deu declarações acusando o PSDB –
que governou o estado por doze anos – de gestão ineficiente e de fazer um “racionamento
camuflado” de água. Mas o tema não foi prioridade em sua campanha.
A seca do semiárido mineiro sempre esteve no radar dos candidatos, mas não um
eventual colapso do abastecimento de água na região metropolitana. Só depois de
desbancar o PSDB no reduto de Aécio Neves, o petista colocou a água no topo de suas
preocupações. “É a questão central. Essa é a agenda principal do nosso governo”, afirmou
Helvécio Magalhães, secretário de Planejamento e Gestão de Minas e coordenador da
força-tarefa da crise hídrica, criada em janeiro último.
Ao contrário de Alckmin, que não podia invocar o passado para justificar a crise,
Pimentel encontrou nesse caminho um vasto recurso político. Numa conversa em
fevereiro, perguntei ao secretário por que a escassez de água não havia ocupado lugar de
destaque na campanha. O governo anterior, justificou Magalhães, não forneceu
informações claras sobre os níveis dos reservatórios de água, nem durante o governo de
transição. “Minas via as notícias da crise de São Paulo como algo distante do estado”,
disse. A afirmação destoa de declarações dadas por Pimentel dias antes da eleição,
quando ele já falava em um plano de emergência para a seca, caso fosse eleito.
No final de janeiro, já no governo, Pimentel admitiu a possibilidade de “racionamento
severo”. Elaborou um plano emergencial de obras e, como Alckmin, foi bater à porta do
governo federal, reivindicando 800 milhões de reais. O petista trocou toda a equipe da
Copasa, empresa de saneamento mineira, e preparou o terreno para fazer o que Alckmin
também só resolveu implantar depois de eleito: multar quem consome água em excesso.
Em março, Minas já tinha 167 municípios em situação de emergência por causa da seca.
Se o consumo não cair 30%, haverá racionamento em breve.
“A crise não é só de São Paulo, de Minas e do Rio. É também do Espírito Santo”, disse o
gaúcho Paulo Renato Paim, convidado pelo governador Paulo Hartung, do PMDB, para
presidir a Agência Estadual de Recursos Hídricos. O governo capixaba, segundo ele, agiu
preventivamente para evitar efeitos mais drásticos da seca. Suspendeu a geração de
energia em uma usina, poupando a pouca água do reservatório para abastecer a
população. “O Espírito Santo não tem quase nenhum reservatório. Ou tem água nos
mananciais ou não tem.” Um programa de redução do uso trouxe resultados imediatos:
o capixaba consumia, em média, 200 litros de água por dia; passou a usar 170 litros. A
média ainda é alta segundo o padrão da ONU, que recomenda 110 litros de água por
indivíduo por dia.
Numa manhã de fevereiro deste ano, Vicente Andreu, o presidente da ANA odiado
pelo PSDB paulista, chegou à sede da agência em Brasília com uma mochila nas costas,
vestindo camisa e calça jeans. Estatístico, ex-sindicalista e filiado ao PT, Andreu presidiu
a Sanasa – a empresa de saneamento de Campinas –, trabalhou na Companhia Paulista
de Força e Luz e foi secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente na
gestão de Carlos Minc. Comanda a ANA desde 2010 e tem mandato até 2018. Sem
modéstia, diz que conhece o Sistema Cantareira como poucos.
No auge da crise hídrica, ele afirmou que Alckmin nunca assumiu o racionamento e que
só um dilúvio salvaria o Cantareira. E mais: a Sabesp teria que tirar água do lodo se fosse
usar o terceiro volume morto. E acusou o governo paulista de não adotar medidas de
gestão razoáveis quando ainda havia água nos reservatórios. Isso enfureceu os tucanos.
No hall de entrada da ANA há um painel com os gráficos e os diagnósticos do Atlas Brasil:
Abastecimento Urbano de Água. O estudo de 2009 fazia projeções para 2015. Para evitar
problemas de abastecimento, a agência federal alertava que seria necessário investir 7,4
bilhões de reais no Sudeste, dos quais 5,4 bilhões em São Paulo. Em 2025, segundo o
Atlas, a população do estado vai consumir 159 mil litros por segundo, o dobro do que a
Sabesp é capaz de oferecer atualmente. A Sabesp afirma que, de 1995 a 2013, investiu 9,3
bilhões de reais no abastecimento da região metropolitana. Informou genericamente que
fez “várias ampliações” no sistema e reduziu o desperdício de água de 32,4% em 2009
para 30% em 2014.
Vicente Andreu segurava uma cumbuca com leite e cereais quando entrei em seu
gabinete. “Me atrasei, não tomei café.” Antes de finalizar a refeição, ele reclamou do uso
que a imprensa fez de suas declarações para alimentar as rivalidades entre PT e PSDB.
No processo eleitoral, frisou, nenhum candidato abordou de fato a gestão da água: a
urbanização desordenada, a destruição dos mananciais, como lidar com os usos
múltiplos dos recursos hídricos. “Foi zero de discussão, exceto por uma ou duas questões
de denuncismo.”
O presidente da ANA enumerou o que chamou de “fatos” sobre a crise: foi a seca mais
severa das últimas oito décadas; foi uma seca durante uma eleição; foram adotadas
muitas medidas corretas em São Paulo durante a crise, mas o estado não havia feito
nenhuma obra preventiva. “A ausência de planejamento, de medidas anteriores, é um
fato.”
O principal embate entre a ANA e o governo paulista, segundo ele, disse respeito ao
controle da vazão do Cantareira. Em abril de 2014, Andreu sugeriu ao então secretário
de Recursos Hídricos, Mauro Arce, que se criasse uma metodologia conjunta e inédita
para estipular quanto de água sairia dos reservatórios. A proposta da agência era
restringir ao máximo a vazão: o volume de água ainda disponível seria dividido pelos
meses restantes do ano, até o próximo período chuvoso; a partir do que entrasse no
sistema nos quinze dias anteriores a cada mês, seria feito um cálculo de quanto se poderia
tirar. “É a visão de segurança hídrica, e não a visão de demanda, que sempre foi a da
Sabesp.”
O governo de São Paulo nunca se disse contra o controle de vazão, mas também nunca
consentiu que uma regra fixa fosse adotada. Andreu diz ter acertado com Arce, numa
conversa por telefone em agosto de 2014, que a nova norma seria implantada entre
setembro e outubro. Arce circulou dentro de sua pasta, com cópia para dirigentes da ANA
e do DAEE, um e-mail que falava sobre a negociação. Andreu recebeu esse e-mail no dia
21 de agosto. Com isso, anunciou publicamente a nova regra, mas o secretário de Alckmin
negou que houvesse um acordo formal; disse que se tratava de conversas preliminares.
Em represália, o presidente da ANA deixou o Grupo Técnico de Assessoramento da
Gestão do Cantareira, aquele criado na reunião de fevereiro entre Alckmin e Izabella
Teixeira.
Em setembro, outubro e novembro, durante e logo após a campanha eleitoral, a vazão
de retirada do sistema não foi definida pelos órgãos reguladores estadual e federal. A
Sabesp se pautou pela última decisão desses órgãos, de julho, que determinara a retirada
de 19,7 metros cúbicos por segundo. Na época, a empresa alegava que o limite mínimo
de vazão para atender a demanda era de 24 a 22 metros cúbicos por segundo.
Em fevereiro deste ano, quando conversei com Andreu, a retirada foi de 10 metros
cúbicos por segundo. “Isso revela que essas medidas poderiam ter sido tomadas muito
antes. Não foram também por causa da leitura eleitoral”, disse o dirigente da ANA.
Mauro Arce, que em janeiro deste ano deixou a secretaria e voltou para a Companhia
Energética de São Paulo, não quis falar com a piauí. O entrevero entre ele e Andreu
ajudou a azedar as relações políticas, mas não institucionais. O próprio Alckmin muitas
vezes telefonou para o presidente da ANA ao longo da crise, segundo relatou um aliado
do tucano. Quando a disputa com Arce atingiu o máximo de tensão, Alckmin chamou o
presidente da ANA para uma reunião no Palácio. Andreu fez elogios ao governador: ele
o considera “afável, bom contador de casos” e um político que entende os problemas
cotidianos do estado.
“Do ponto de vista técnico”, o relacionamento com São Paulo é excelente, me disse
Andreu. Salientou, porém, que a União e o estado nunca chegaram a um acordo sobre as
medidas a serem adotadas e sobre como expor à população a “real dimensão do
problema”. “Eu ia a alguns lugares e diziam assim: vem aqui o Vicente Andreu, da ANA,
que ninguém sabe se é loira, morena ou ruiva. E eu digo que tem uma crise. Do outro
lado vem o governador de São Paulo, reeleito em primeiro turno, com altíssima
credibilidade. Ele diz que não tem crise, que a água não vai faltar. Em quem você vai
acreditar?” Só quando faltou água na torneira os paulistas entenderam o tamanho da
crise, afirmou.
De toda a tensão dos meses anteriores, as acusações de omissão e inação da agência
reguladora foram as que mais tiraram Andreu do sério. Para ele, a crise no Sudeste
evidenciou a inexistência de um marco regulatório aplicável a situações extremas, e a
ANA tem limites de atuação. Essas regras – definições claras de vazão em caso de seca
severa, por exemplo – precisariam ser construídas por acordo e com clareza, para que no
futuro processos eleitorais não venham a afetar decisões de gestão.
Sob o ponto de vista técnico, enfatizou, São Paulo não descumpriu normas. Ao contrário,
a Sabesp cumpriu todas as determinações da ANA e do DAEE, o órgão regulador
estadual. “Mas a ausência de regras permitiu que você tomasse medidas discricionárias
durante o processo eleitoral. Esse é um dos grandes aprendizados.”
Já Marcio Aith, o subsecretário de Comunicação de Alckmin, disse que a ANA se omitiu
do debate sobre a prioridade de uso da água, se a geração de energia ou o abastecimento
da população. “Houve uma omissão monumental nessa questão do uso da água para
gerar energia em São Paulo”, afirmou. Segundo ele, Vicente Andreu tinha a obrigação de
ter levantado a voz para impedir que o Operador Nacional do Sistema Elétrico tirasse
água dos reservatórios do estado num momento tão crítico. “Mas ele ficou lá quietinho,
não falou nada.”
A Lei de Águas e a lógica mandam dar prioridade ao abastecimento humano quando há
escassez de água. Andreu, entretanto, disse que essa regra é insuficiente em situações
extremas. Segundo ele, não se pode cortar a irrigação das lavouras e interromper a
produção de uma hidrelétrica se, ao mesmo tempo, as pessoas continuam a encher
piscinas, lavar carros e calçadas, e as empresas de saneamento têm desperdício por causa
de vazamentos. Não tem sentido, exemplificou, um trabalhador ser demitido por causa
da falta de água “e ir tomar banho em casa”.
Em nosso encontro de março deste ano, a ministra Izabella Teixeira sustentou que o
governo federal sempre agiu de forma republicana. Se houve uso político da crise hídrica,
foi na campanha eleitoral, não na ação do Ministério, disse. A isenção da ministra é
reconhecida pelo PSDB. No início do ano, ela recebeu um telefonema de Mauro Arce, que
lhe agradeceu a condução da crise num ano de embates políticos.
O próprio Alckmin ligou para a ministra depois que Marcio Aith publicou um artigo
na Folha de S.Paulo no final de janeiro. Intitulado “O apagão dos fatos”, o subsecretário
listava ações da Sabesp e do governo estadual, criticando a cobertura jornalística da crise.
Ele acusava “ministros e agentes reguladores federais” de adotarem um “discurso hostil
a São Paulo”. E questionava por que só depois de um ano do início da crise, só após as
eleições e diante de um apagão que atingiu onze estados e o Distrito Federal, o governo
federal admitiu tratar-se da maior crise hídrica já registrada na história.
Quando leu o artigo, a ministra estrilou, levou a Dilma sua contrariedade. Naquele
mesmo mês, o governo federal havia incluído a obra de um novo sistema hídrico proposto
pelos paulistas, o São Lourenço, no Plano de Aceleração do Crescimento, dando agilidade
com a dispensa de licitação. Empreiteiras que farão a obra, uma Parceria Público-
Privada, foram buscar na União o financiamento de 2,2 bilhões de reais.
No telefonema trocado com Izabella Teixeira, o governador teria colocado panos quentes
no episódio. A ministra não deixou passar em branco. Segundo um assessor seu, ela foi
direto ao ponto: “Isso é inaceitável. Como é que o senhor diz que não estamos
trabalhando junto com São Paulo?” O Palácio dos Bandeirantes diz que essa versão do
diálogo é descabida, já que a posição do subsecretário contou com apoio de toda a equipe
de governo. “O artigo procurou trazer fatos e repor a verdade. Não se pede desculpas por
isso”, disse Aith.
As críticas dos tucanos também fizeram a ministra chamar à razão o presidente da ANA.
“É inadmissível fazer política com água”, reiterou ela, nadando contra a corrente dentro
do governo.
Questionei a ministra se o governo federal não foi omisso em relação à seca no Sudeste,
já que historicamente a preocupação nacional tem se voltado para o Nordeste. Ela disse
que o ministério agiu na primeira hora no caso de São Paulo, quando a crise ainda não
estava tão grave. O caso do estado, alegou, era o mais agudo. No Rio, segundo ela, não
há crise hídrica. “São Paulo só sobrevive por causa do volume morto. O paciente não
morreu, mas está na UTI e todo mundo rezando pra ele sair”, disse, enquanto mirava o
enorme pôster do Cristo Redentor em seu gabinete.
O Rio, enfatizou a ministra, ainda não estava usando seu volume morto. “As minhas
conversas com o Rio não são por causa de 2015, eu tenho que ter água lá em 2016. Terei
uma Olimpíada lá, e no inverno, tá?”
Há falta de água e ineficiências técnicas gravíssimas no estado, que a companhia de
saneamento estadual, a Cedae,está tentando sanar, disse Izabella. O Rio precisa de
apenas 50 metros cúbicos por segundo para seu consumo. Mas entram no sistema 110
metros cúbicos. O estado desperdiça uma quantidade enorme de água para diluir o
esgoto e amenizar o efeito da chamada intrusão salina – entrada da água do mar que
afeta a produção de água potável.
Sobre Minas e o Espírito Santo, disse que o governo federal estava em contato com os
dois governadores. “Nós não sabíamos da magnitude da crise em Minas. O governo
federal está dando o apoio que pode aos estados quando o domínio da água não é da
União.”
Num domingo de dezembro de 2014, depois de passar um fim de semana em Brasília
com amigos da ANA, Benedito Braga, o professor da Politécnica da USP e presidente do
Conselho Mundial da Água, aterrissou na capital paulista. No aeroporto, viu que havia
três ligações perdidas e uma mensagem no celular. “Era um camarada chamado Marcio
Aith.” Braga retornou a ligação do subsecretário de Comunicação de Alckmin. O
governador queria vê-lo ainda naquele domingo, no Palácio dos Bandeirantes.
Benedito Braga chegara às quatro da tarde na capital e embarcaria às sete da noite para
o Cairo. De lá, iria para Marselha. Aith insistiu. Disse que seria uma conversa rápida. “Me
pegaram, botei minha malinha no porta-malas e fui.” Braga não conhecia Alckmin. Mas
a empatia foi grande. “Conversa vai, conversa vem, o governador disse: ‘Queria convidar
o senhor para ser meu secretário.’” Braga não deu resposta de imediato. Disse que
precisaria dar um telefonema para a mulher, consultando-a. Dona Sandra assentiu, mas
ele pediu a Alckmin tempo para concluir seus compromissos internacionais.
Braga embarcou, participou do Fórum Árabe das Águas. Na manhã seguinte, desistiu de
voar para a França. Retornou a São Paulo e, do aeroporto, telefonou para Alckmin. Era
11 de dezembro. “Ah, que bom que já está em São Paulo. Então vou anunciá-lo hoje
mesmo”, avisou o governador.
As águas de março deste ano entusiasmaram o agora secretário de Recursos Hídricos de
São Paulo. O volume do Cantareira estava em 12,9% quando voltamos a conversar no dia
9 daquele mês. Ele entrou apressado na sala de reuniões do seu gabinete. Para quem ia
para o Tajiquistão e não queria se envolver com os governos locais, muita água tinha
rolado, brinquei. “Continuo não querendo me meter em questões políticas”, disse, jocoso.
Benedito Braga diz ter absoluta autonomia para agir. Foi ele quem convidou Jerson
Kelman, ex-presidente da ANA, para presidir a Sabesp. E também definiu que o
engenheiro Ricardo Borsari assumiria o DAEE, o órgão regulador do estado. “Somos uma
equipe.”
Falei com Kelman por e-mail e por telefone antes que ele fosse indicado para comandar
a Sabesp. Também o encontrei em novembro do ano passado, em São Paulo, num evento
da Academia Brasileira de Ciências em que se criticou a falta de transparência do governo
paulista na condução da crise hídrica. Kelman é signatário do documento. No primeiro
semestre de 2014, o ex-presidente da ANA tinha dúvidas sobre a obra da transposição do
Paraíba do Sul. Em novembro, ele já havia mudado de ideia. Considerava a transposição
importante e viável. Empossado em janeiro deste ano, não atendeu aos pedidos de
entrevista da piauí.
Depois que anunciou o novo secretário, Alckmin também avisou que São Paulo passaria
a multar os “gastões”. Foi criada a sobretaxa, como Braga queria. O governo começou a
falar abertamente que sim, havia racionamento de água, já que as vazões do Cantareira
eram reduzidas progressivamente por determinação da ANA. Também se ouviu pela
primeira vez que, se a situação ficasse ainda mais crítica, o governo poderia adotar um
rodízio.
Braga não considera que tenha sido escolhido porque Alckmin precisava de uma
reviravolta em seu discurso político. “Minha nomeação não foi para mudar, mas para dar
enfoque mais técnico ao problema.” Ele elogiou as ações que haviam sido adotadas pela
Sabesp. O mais complicado para o novo secretário foi explicar o meme do chefe – “Não
vai faltar água em São Paulo”. Braga gaguejou, falou dos cenários de 2013, de 2014, da
expectativa de estiagem mais branda em janeiro de 2015. “Não veio a chuva. Veio agora
em fevereiro. Todos os cientistas estão atônitos com as complexidades do clima.”
“Rodízio não é uma palavra que está no meu léxico neste momento”, disse o secretário.
Três integrantes do governo Alckmin me asseguraram que não haverá rodízio em 2015,
mas há um temor de admitir isso publicamente e entusiasmar a população, que relaxaria
na economia de água. Oitenta por cento dos paulistas reduziram significativamente o
consumo. A demanda caiu de 73 metros cúbicos por segundo ao mês para 50 metros
cúbicos por segundo. O esforço da maior parte da população e a redução da pressão
salvaram São Paulo, pelo menos por enquanto.
Para evitar o rodízio e um colapso de abastecimento, a Sabesp implantou obras
emergenciais, espremendo água de todos os lugares possíveis. O desespero da empresa
rendeu um apelido a Jerson Kelman: “Caçador da Água Perdida.” O objetivo é que sejam
fornecidos 10,4 metros cúbicos a mais por segundo até o fim de 2015. Nas duas últimas
décadas, as obras da Sabesp elevaram a oferta de água em apenas 15,6 metros cúbicos
por segundo, de acordo com os dados da Secretaria de Recursos Hídricos. A Sabesp
divulga que o aumento da oferta foi um pouco maior no período, de 18 metros cúbicos
por segundo.
Em médio prazo, o governo vai fazer a transposição do Paraíba do Sul e o Sistema São
Lourenço, que vai gerar 4,7 metros cúbicos por segundo a mais para o abastecimento da
região metropolitana. A obra só fica pronta em 2017. Vai ainda investir em duas estações
de reúso de água e analisa explorações de água subterrânea. Até 2018 a Sabesp
desembolsará 12,8 bilhões de reais para expandir sistemas de água e esgoto, informou a
assessoria da empresa.
Braga afirmou que o governo “não vai deixar a Sabesp quebrar”. Um balanço divulgado
no final de março escancarou a vulnerabilidade financeira da empresa, com queda de
53% nos lucros e de quase 7% de sua receita bruta. Os gestores paulistas argumentam
que, se a presidente Dilma tivesse cumprido a promessa eleitoral de 2010, de extinguir a
cobrança de impostos sobre o faturamento do setor de saneamento, as empresas
estaduais teriam, em valores atualizados, 12 bilhões para investir.
O aumento da tarifa de água está no horizonte do governo paulista. O grande debate,
agora, é saber quando e como anunciar a novidade depois de um ano em que a população
não recebeu um serviço adequado. Uma das saídas para fazer o paulista aceitar a medida
é incorporar o bônus à tarifa.
Quando encerrávamos a conversa, perguntei a Benedito Braga se a crise tinha mudado a
visão dos paulistas sobre governança hídrica. “A gente vive de hoje para a frente. A gente
não vive de hoje para trás. A água hoje está na agenda política. A crise serviu de alerta
para o futuro. Estamos correndo atrás.” Animado, na despedida disse estar em curso uma
mudança de paradigma.
No elevador da Secretaria de Recursos Hídricos de São Paulo liam-se comunicados da
Sabesp com explicações sobre a redução da pressão e folhetos da campanha “Se
economizar, não vai faltar”. No prédio em frente ao da secretaria, um funcionário lavava
a calçada com uma máquina de alta pressão. Um dia antes, a Câmara Municipal havia
aprovado uma lei para multar em 250 reais quem usasse água potável para limpar a rua.