A Arte da improvisação musical ao teclado no Renascimento ...

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PORTO, Delphim Rezende. A Arte da improvisação musical ao teclado no Renascimento italiano: a didática do contraponto segundo Girolamo Diruta (1610). Per Musi. Ed. por Fausto Borém, Eduardo Rosse e Débora Borburema. Belo Horizonte: UFMG, n.33, p.79‐96. 79 DOI: 10.1590/permusi20163304 ARTIGO CIENTÍFICO A Arte da improvisação musical ao teclado no Renascimento italiano: a didática do contraponto segundo Girolamo Diruta (1610) 1 The Art of Musical Improvisation on The Keyboard during the Italian Renaissance: Counterpoint Teaching According to Girolamo Diruta (1610) Delphim Rezende Porto Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. [email protected] Resumo: Parte fundamental do exercício profissional do tecladista no Renascimento, a improvisação musical é o relevante tema do livro II da segunda parte do tratado Il Transilvano (1610). Única obra publicada pelo organista Girolamo Diruta (1554?‐ 1610?), o Transilvano expõe em ‘Diálogo’ as preceptivas da arte da música de seu tempo e é Monumentum da memória dos principais mestres atuantes na Sereníssima República de Veneza no século XVI – Adriano Willaert, Gioseffo Zarlino e Claudio Merulo. Padre da ordem franciscana e reconhecido organista das igrejas catedrais de Chioggia e Gobbio, Diruta registra por extenso a fortuna do ensino da Fantasia ao teclado como ápice e fim de um profundo estudo do Contraponto e seus artifícios. A partir da exposição desses preceitos, o presente artigo pretende contextualizar a livre – mas “correta” – manipulação dos sons segundo aquela técnica histórica e oferecer ao seu leitor um panorama da didática da música renascentista. Palavraschave: contraponto renascimentista; improvisação em teclados antigos; Girolamo Diruta. Abstract: Fundamental part of the professional keyboardist practice in the Renaissance, musical improvisation is the relevant subject of Book II of the treatise Il Transilvano (1610). Published by Girolamo Diruta (? 1554 ‐1610), the Transylvanian exposes in 'Dialogue' the precepts of the art of music of his time and is Monumentum of its masters – Adriano Willaert, Gioseffo Zarlino and Claudio Merulo – active composers in the Most Serene Republic of Venice in sixteenth‐century. Priest of the Franciscan order and renowned organist of the cathedral churches of Chioggia and Gobbio, Diruta writes down the fortune of the Fantasia on the keyboard as the higher development of the study of Counterpoint. Based on the exposition of these principles, this article aims 1 Pesquisa apoiada pela FAPESP (processo 2014/26766‐2).

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PORTO,DelphimRezende.AArtedaimprovisaçãomusicalaotecladonoRenascimentoitaliano:adidáticadocontrapontosegundoGirolamoDiruta(1610).PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.33,p.79‐96.

 

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DOI:10.1590/permusi20163304

ARTIGOCIENTÍFICO

AArtedaimprovisaçãomusicalaotecladonoRenascimentoitaliano:adidáticadocontrapontosegundo

GirolamoDiruta(1610)1

TheArtofMusicalImprovisationonTheKeyboardduringtheItalianRenaissance:CounterpointTeachingAccordingtoGirolamoDiruta(1610)

DelphimRezendePortoUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,[email protected]

Resumo:PartefundamentaldoexercícioprofissionaldotecladistanoRenascimento,aimprovisaçãomusicaléorelevantetemadolivroIIdasegundapartedotratadoIlTransilvano (1610). Única obra publicada pelo organista Girolamo Diruta (1554?‐1610?), o Transilvano expõe em ‘Diálogo’ as preceptivas da arte damúsica de seutempoeéMonumentumdamemóriadosprincipaismestresatuantesnaSereníssimaRepública de Veneza no século XVI – Adriano Willaert, Gioseffo Zarlino e ClaudioMerulo.PadredaordemfranciscanaereconhecidoorganistadasigrejascatedraisdeChioggia e Gobbio, Diruta registra por extenso a fortuna do ensino da Fantasia aotecladocomoápiceefimdeumprofundoestudodoContrapontoeseusartifícios.Apartirdaexposiçãodessespreceitos,opresenteartigopretendecontextualizaralivre–mas“correta”–manipulaçãodossonssegundoaquelatécnicahistóricaeofereceraoseuleitorumpanoramadadidáticadamúsicarenascentista.Palavras‐chave:contrapontorenascimentista;improvisaçãoemtecladosantigos;GirolamoDiruta.Abstract: Fundamental part of the professional keyboardist practice in theRenaissance,musicalimprovisationistherelevantsubjectofBookIIofthetreatiseIlTransilvano(1610).PublishedbyGirolamoDiruta(?1554‐1610),theTransylvanianexposesin'Dialogue'thepreceptsoftheartofmusicofhistimeandisMonumentumofitsmasters–AdrianoWillaert,GioseffoZarlinoandClaudioMerulo–activecomposersin theMostSereneRepublicofVenice insixteenth‐century.Priestof theFranciscanorderandrenownedorganistofthecathedralchurchesofChioggiaandGobbio,DirutawritesdownthefortuneoftheFantasiaonthekeyboardasthehigherdevelopmentofthestudyofCounterpoint.Basedontheexpositionoftheseprinciples,thisarticleaims

                                                            1PesquisaapoiadapelaFAPESP(processo2014/26766‐2).

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to contextualize the free ‐ but "right" ‐ manipulation of sounds according to thathistoricaltechniqueandofferanoverviewofRenaissance’smusicaltechniques.Keywords:Renaissancecounterpoint;improvisationonearlykeyboards;GirolamoDiruta.

Dataderecebimento:03/12/2015

Datadeaprovaçãofinal:10/04/2016

1–Afontedoartifício:otratadoIlTransilvano

Publicado em dois volumes – o primeiro em 1593 e o segundo em 1610 – sob a

imprensavenezianadafamosacasaeditorialVicenti,OTransilvanoéobradoorganista

franciscanoFreiGirolamoDiruta,herdeirodatradiçãodosprincipaismestresmusicais

atuantes na sereníssimaVeneza no século XVI – AdrianoWillaert, Gioseffo Zarlino,

CostanzoPorta,AndreaeGiovanniGabrielieClaudioMerulo.Umdosescritositalianos

maisamplossobreapráticamusicalpara instrumentosde tecladodoperíodo,este

tratado é também importante registro da didática musical. Endereçado aos

interessadosnaprática tecladística, especialmente ao órgãode tubos, este “diálogo

sobre o verdadeiromodo de tocar órgão e instrumentos de teclado”, apresenta os

assuntos da música prática italiana através da emulação dialogal entre um nobre

transilvano e Pe. Diruta. Para além dos assuntos técnicos inerentes ao órgão e ao

teclado,IlTransilvanofundamenta‐seporexcelênciacomoumdetalhadoregistroda

formaçãodomúsicoprático,ou seja,doeloquenteartíficedamúsica.Aescolhaea

disposiçãodosassuntosaseremexplicadosétambémíndiceparaesteargumento.

Oprimeirovolumedotratadoédedicadoaosmaisbasilaresassuntosdaarte,comoa

leitura musical, a maneira correta de sentar‐se frente ao instrumento, a postura

adequadae elegantedoorganista, a escolhadosdedos, enfim, apreparaçãonão só

técnica,mas,também,domododeagirexteriordoinstrumentista.Osegundovolume,

maistécnico,apresenta‐sedivididoemquatrolivroseaordemcomquesãodispostas

asementasdecadalivrorepresentammuitobemasvirtudesesperadasdotecladista:

primeiramenteénecessárioaprendera lerbemasdiversasformasdepartiturasao

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órgãoetambémaescreveretranscrevermúsicacorretamenteparaessefim(primeiro

livro); depois é preciso que o organista aprenda a modular os sons corretamente

atravésdatécnicadocontraponto(segundolivro)esubmetê‐losaummodooutom

que,porsuanatureza,écapazderepresentaroudescreverumdeterminadoefeitoou

afeto(terceirolivro);porúltimo,deverádesenvolveracapacidadedeacompanharum

coraledialogarcomeste,bemcomoescolherostimbresdoórgãodeacordocomos

modoseosefeitosdecorososaomomentolitúrgicoeaoassuntotratado(quartolivro).

Osucessodapublicaçãodeambososvolumeséreferidocomofortunaentrediversos

autorescontemporâneosaDiruta,comoAdrianoBanchieri (1568‐1634)eLudovico

Zacconi(1555‐1627)queocitamemsuasobras.BanchierideclaraospreceitosdoIl

Transilvano como os mais detalhados acerca da doutrina do dedilhado expressivo

tecladísticodoperíodoaotratarsobreaquestãonoL’OrganoSuonarino(1605,fl.A2).

No volume II do Prattica di Musica – uma das mais completas referências

renascentistasparaosassuntosdocontraponto–LudovicoZacconi(1622,p.57‐128)

utilizaprestigiosamentemuitosdosexemplospublicadosporDirutaemseutratado.

É,contudo,nosegundolivrodovolumeIIdoTransilvano,aoqualnosdeteremos,que

oautordesenvolveoassuntodaimprovisaçãoaoteclado.Comosehaveriadeesperar,

paraDiruta,improvisooufantasiaéomesmoquecontrapontoallamenteaoteclado:

umalivresobreposiçãodeduasoumaismelodiassem,aprincípio,nenhumartifício

particularobrigatório(obbligo),que,porém,segueasmesmasregrasfundamentaisdo

contraponto escrito. Para este fim, nosso tratadista colige uma série de juízos

doxásticos, basicamente relacionados ao entendimento da natureza dos sons

consonantesedissonanteseomovimentopossívelentreelesnasauctoritatesparaeste

tema – Gioseffo Zarlino (1517‐1590), Henricus Glareanus (1488‐1563) e outros. A

improvisação ao instrumento, neste sentido, torna patente – como ápice e fim – a

preparaçãododiscípuloparaamanipulaçãocriativaeregradadosdiversosartifícios

do contraponto sem a necessidade de deitá‐los primeiro ao papel. Nas palavras de

DIRUTAnoiníciodoIIlivrodasegundapartedoTransilvano(1610,p.215)2:“[...]eu

                                                            2AcorrespondênciadepáginasdotratadoIlTransilvanocitadasnesteartigoserefereàpaginaçãodaDissertaçãodeMestradodeDelphimRezendePortoqueotraduzàlínguaportuguesa.

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também pouco dormi pensando no modo que deveria proceder para ensinar‐vos

facilmenteaArtedoContrapontoaonosso instrumento–porqueestedevesero

nossopapelpautado(grifosnossos)[...]”3.

Essahabilidade,contudo,vaigradualmentesendopreparadaatravésdeummétodo

queprimeiroeducaoouvidododiscípuloparabemjulgaraquiloquevenhaaescrever.

Nãoédepoucaimportânciaaconsideraçãoqueaquelesantigosautorestinhamcomo

contraponto,umavezque,éunânimeadiscussão,aoladodoaprendizadodosmodos

ou tons, dos preceitos que o regulam em todos os manuais de música – inclusive

naquelesquesededicam,aparentemente,somenteaosinstrumentos.

2–Aciênciadamanipulaçãodossons

Na cultura do Renascimento, aprender contraponto, segundo ZACCONI (1622, p.5)

equivale a aprender música – pois o seu processo pedagógico, desde o primeiro

exercício,visatreinaroarbítrioeoouvidodoaprendizdaartecomregrasprecisase

graduaissobreoqueécorreto–portanto,bom–namanipulaçãodosom.G.Maria

ARTUSI(1585,p.7)declaraque,noâmbitodamúsicaespeculativa,detodosossons

queexistemnouniverso,algunssãodeinteressedomúsicoeparaestepropósitoforam

ordenadosparaquepudessemsermanipuladossegundoumaregra.Estessonssãode

doistiposdistintos:consonânciasedissonâncias.Matematicamenteconsideradasna

natureza, as consonâncias foram percebidas e divididas também em dois tipos:

perfeitas e imperfeitas. O uníssono, a quinta e a oitava, são aqueles intervalos que

podemserdemonstrados,parao autor, comoconsonâncias absolutas e, a terça e a

sexta, como consonâncias menores, imperfeitas. Embora nos temperamentos

mesotônicos seja possível demonstrar essa relação de maneira diversa, essa

adjetivação intervalar obedece ao argumentomatemático (especulativo) damúsica

teóricaeéaceitocomoverdadeiroàquelescompositores–comoargumentaZARLINO

(1558, p.86‐97) na segunda parte das Instituições Harmônicas, especialmente nos

                                                            3 “...Et io ancora hò poco dormito, pensando qual modo douesse tenere nell’informarui facilmentedell’artedelContrapuntosoprailnostroinstrumento,perchequestohàdaesserelanostracartela...”

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capítulos17a26.Nalínguaantigaitalianaosprincipaisintervalosmusicaisreferidos

porDIRUTA(1610)sãoosseguintes:

Figura1:Tabelacomosantigosintervalosmusicaiseseuscorrespondenteshodiernos.

Além da habitual classificação acima exposta, os intervalos musicais poderiam ser

ordenados entre si segundo diversas espécies. A espécie de um intervalo indica

ordinariamenteadistribuiçãoeaquantidadedeocorrênciasdassílabasdesolmização4

mi‐faentreasnotasquecompõemomesmo.Porexemplo,umintervalodesextamaior

éassimchamadoporqueaolongodaescalaqueintrinsecamentecontémesteintervalo

háaocorrênciadeapenasummi‐fa5,enquantoque,nasextamenor,estasílabaocorre

duas vezes:DeDó a Lá:ut‐re‐mi‐fa‐sol‐la; deRé a Sib: re‐mi‐fa‐re‐mi‐fa.Omesmo

ocorreemtodososoutrosintervalos.NaTerça,porexemplo,Dó‐Mi:ut‐re‐mi,nãohá

ocorrênciadomi‐fa,portanto,échamadamaior,enquantoquenaterçaRé‐Fá:re‐mi‐

fa,temosoreferidosemitom–queafazterçamenor.Alémdaquantidadedoreferido

semitom,asuadistribuiçãotambéminteressa,principalmenteparaaescalamodal–

assunto desenvolvido no terceiro livro da segunda parte do Transilvano. Ainda:

                                                            4DescreveAntonioExímenonaobraDelorigenyreglasdelamúsica(1774,p.22)aquestãodasolmizaçãoedosolfejo–duaspráticasdeleituramusicalquecoexistiamemseutempo:“...querendomelhorarosistemadeGuidod”Arezzo, os ultramontanos acrescentaramao solfejo a sílabaSI, paradistinguir eentoarasétimacorda(nota),emcujolugar,nosolfejodeGuidosetornavaarepetiralgumadassílabasjá entoadas. Assim, os franceses quase abandonaram os nomes de C‐sol‐fa‐ut, D‐la‐sol‐re, etc,substituindoemseulugarassílabasUt,Re,Mi,Fa,Sol,La,Si;demaneiraqueoquesignificanabocadeumfrancêsacordaSol,nadeumitalianoouespanholsignificaG‐sol‐re‐ut.NaItáliaémuitofrequenteométododesolfejarcomassetereferidassílabas,mudandounicamenteoUtemDó...”.5Considere,gentilmenteo leitor,adistinçãoquefazemosentreas ‘sílabasdesolmização’eas ‘notasmusicais’:asprimeirasvêmgrafadasemitálicoeletraminúscula,easdemais,emtipocorrenteeletramaiúscula.

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conforme Antonio FERNANDEZ (1626, fl.43), a natureza matemática dos tons e

semitons dentro da oitava varia de tamanho e, para o mesmo intervalo musical,

podemos encontrarmedidas diferentes. Esse autor, por exemplo, demonstra que a

medida do intervalo de terçamenor ré‐fá é menor que a mesma terçamenor

compreendidaentremi‐sol.Naquelecontextoespeculativo, sãoconsideradas,assim,

duasterçasmenores–umamaioreoutramenor.

Três intervalos são significativamente importantes para o contraponto e a teoria

modal,conformedemonstraDiruta:aquartaeaquinta.Ointervalodequinta,Diapente,

ocorreemquatroespéciese,odequarta,Diatessaron,emtrês.

Figura2:AsquatroespéciesdeDiapenteeastrêsespéciesdeDiatessaronquecompõemaescalamusicalsegundoIlTransilvano(p.268)6

A oitava ou Diapason, para estes teóricos, combina as diferentes disposições da

Diapente com a Diatessaron e se manifesta em sete espécies, todas elas de,

aproximadamente, cinco tons e um semitom, distribuídos diferentemente. Essas

diferentesqualidadessonorasdomesmointervalo,paraARTUSI(1585,fl.6),também

funcionam como amatéria básica para a composição das regras do contraponto.O

movimento entre os sons, enquanto preceptiva comum do antigo contraponto,

considera, a priori, a natureza dos diferentes intervalos para determinar o

desenvolvimentodapolifonia.Aeducaçãodoouvidoparaapercepçãodestasregras,

tópicarecorrenteemtodosos tratadosqueconsultamos,sebaseianadiferenciação

daquiloqueéounãocorretoenquantomovimentocontrapontístico.Umavezqueessas

regrasadvêm,paraestestratadistas,danaturezapercebidaecomprovadapelamúsica

especulativa,matemática,obedecê‐lasgaranteaomúsicoaseguraindústriadobelo.

                                                            6OsexemplosreproduzidosdotratadoIlTransilvanoaquisãofac‐símiledaediçãode1593custodiadapela Biblioteca Internazionale della Musica di Bologna – a qual muito agradecemos – e gozam denullaostaemnomedoautordopresenteartigosoboprotocolo363/13.II.

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AARON no seu compendiolo (15??, fl.33), na Ottaua Regola sistematiza que o

movimentoentreasconsonânciasdeveconsiderarsemprecaminharparaaquelamais

próxima.Dessa forma,a terçamenordeve iraouníssono;a terçamaior,àquinta;a

sextamenordevedesceràquintae,asextamaior,devesempreiràoitava.Adécima

menor vai à oitava e a maior à décima segunda. Como podemos ver, há um

entendimento geral queos intervalosmaiores tendemaseabrir e osmenores, a

fecharem‐se. Além disso, é importante observar que estão contemplados nestes

movimentosaquelesquefazemacadência:aoitavaeouníssono.Paraacadênciaem

oitava, se utiliza a sexta maior e para a cadência em uníssono, a terça menor –

impreterivelmente. Segundo a preceptiva de Gioseffo ZARLINO (1558, fl.21), a

cadênciaestáparaamúsicatalcomoopontoestáparaaprosaouverso–comtodaa

suaconsequência.O tratadistadeclaraqueexclusivamentenocantochãoumaparte

sozinhapodefazercadência.Acadênciaemcantofiguradoenvolvepelomenosduas

partesesedivideemdoistipos:asqueterminamemuníssonoeasqueterminamem

oitava – chamadas cadências perfeitas. Outros autores consideram também como

cadênciaasqueseconcluemcomoutrasconsonâncias,porém,paraesseautor,devem

sernomeadasde‘imperfeitas’.Atravésdaartedadiminuição,oscompositorespodem

engenhosamentevariarsuascadênciase,nessesentido,DirutanolivroIIdosegundo

volume apresenta uma coletânea dasmais “artificiosas e belas” das 320 cadências

compostasporGabrieleFattorini(floruit1598‐1609),paraqueotransilvanopudesse

vislumbrarquãocomplexaseinteressantespodemserasmesmas.

SegundoDiruta,aoimprovisarallamenteouallacartella,omúsicodeveobservaro

máximo possível as diversas regras sobre os movimentos entre as consonâncias

justamenteporquesãoelasquegarantembelezaplenadeumacomposição.Doistipos

de movimentos melódicos são considerados no contraponto: o caminhar por grau

conjunto e o saltar. Embora ambos os procedimentos sejam possíveis, os saltos

requerem mais atenção, pois podem provocar diversos defeitos tanto melódicos

quanto harmônicos. Do ponto de vista da harmonia das linhas melódicas, Diruta

consideraaindadoisartifícios:omotocontrarioeoreto–o“oblíquo”,oautoroinclui

nocontrario.Destes,consideracomoomaisbelo,ocontrário,poisconduzasvozes

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com“graçaevariedade”e,segundonossoautor(p.219),“dentreosmovimentos,este

éomaisdifícile,dele,dependetudo,debeloedebomquehánocontrapontoestrito–

tãoestimadopelosvalent’huominidestaprofissão”.7

Aestepropósito,aprimeiraregradocontrapontoprescritapelonossoautoréaque

regulaarelaçãoentreasconsonânciasperfeitas–oitavaequinta–justamenteatravés

domovimentocontrário.Muitorecomendadopelos tratadistasdesteperíodo, como

Artusi e Aaron, este movimento deve ser empregado obrigatoriamente entre

consonânciasdomesmotipoafimdegarantirvariedadeàoperaçãoeevitarquehaja

a repetição dasmesmas consonâncias ocultamente. O funcionamento do artifício é

simples:enquantoumavozascender,aoutradevedescender–tantoporsaltoquanto

porgrauconjunto.Asucessãodeconsonânciasperfeitaséconsideradapoucoelegante

e, para a maior parte dos autores, um erro técnico. Das diversas alegações que

explicitam,amaisdistintaserefereaovazioharmônicoqueoempregodeduasquintas

ou duas oitavas em seguida traz à composição. A não observância do movimento

contrário entre essas consonâncias gera implicitamente a repetiçãodaquelaúltima,

comosepodevernoexemploqueDirutanosoferece.As flechaspornóscolocadas

(Figura3)indicamanotaquevirtualmenteexistedentrodointervalo,anotadaspor

extensoporDiruta.Omovimentoretooudiretoentreumaoitavaeumaquintaevice‐

versa gera sempre este fenômeno e por isso deve ser empregado apenas entre

consonânciasimperfeitas.

                                                            7“...questomouimento:ciòhòfatto,perchefràglialtrièilpiùdifficile;edaquestodependetuttoilbuono,e’lbellodelContrapuntoosseruato,tantostimatodavalent’huomenidiquestaprofessione...”.

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Figura3:IlTransilvano(p.221)–Movimentosdiretosentreconsonânciasperfeitasqueincorrememquintaseoitavasparalelasocultas(originaletranscriçãocom

notaçãomodernaquecomacréscimosealteraçõesparamaiorclareza).

NogrupodecompassosnúmeroumdaFigura3,Dirutaapresentaomovimentodireto

eascendenteentreumaoitavaeumaquintaqueresultaemumaquintaparalelaoculta

(Fá‐Dó e Sol‐Ré). A composição virtual dos intervalos musicais – coerente com a

doutrina das espécies que vimos a pouco – é explicitada pelo autor através de

semínimasquepercorremtodoaqueleâmbitoedesvelamoparalelismoantesoculto.

Osegundogrupodecompassosdescreveomovimentodescendenteentreumaquinta

eumaoitavaqueocasionaumaoitavaparalelaigualmenteoculta(Ré‐RéeDó‐Dó).O

terceiro e quarto grupos apresentam como resultado do movimento direto entre

consonânciasperfeitasduasoitavasparalelasocultas.

OsegundoprincípiosobreocontrapontoestritoemDirutacoordenaasterçasesextas

entresi.Eledeclaraqueentreconsonânciasimperfeitasomovimentoentreasmesmas

deveser livrementeescolhidosegundooarbítriodocompositor/improvisador,mas

recomendacombiná‐lasinteligentementealternandoasespéciesdemaioremenor,de

modo que a sequência terça‐sexta, considere fazer uma maior e outra menor.

Igualmentelivredeveser,segundoaterceiraregra,aligaçãoentreumaconsonância

perfeitaeumaimperfeita.NaFigura4,primeirocompasso,asextamaiorSol‐Mivaià

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terçamenorRé‐Fápormovimentodireto;emseguida,asextamaiorDó‐Lásefecha

naterçamenorSi‐Ré;e,domesmomodo,asextamenor;Si‐Solsefechanaterçamenor

Lá‐Dó.Apesardestaúltimademonstraçãonãoalternarasespéciesmaioremenordos

intervalos,elasegueapreceptivadeAARON(15??,p.6)dequeumintervalomenor

devenaturalmentesefecharoudescender.

Figura4:IlTransilvano(p.221)–Movimentodiretoentreconsonânciasimperfeitas.

Comoúltimaobservaçãosobreosmovimentosentreasconsonâncias,Dirutaensinaao

transilvano o procedimento para, corretamente, aproximar uma consonância

imperfeitadeumaperfeita.Sumaimportânciaparaocontrapontotemesteartifício,

poiséatravésdestequeserealizamascadências–comovimosacima,tantoemoitava

quanto em uníssono – sempre através do moto contrario. De maneira geral,

considerandoaterçaemrelaçãoàsconsonânciasperfeitas,podemosdizerque,como

observaPACCHIONI(1995,p.55),amaioréaptaairàquintaeàoitava,eamenor,

apenasaouníssono.Dasexta,amaioréprópriaaandaràoitavaeàquinta–casouma

vozfiqueparadaedepoisváemterça–eamenor,podesefecharemumaquinta,terça

ouuníssono.

Não seria surpresa alguma se o nosso autor também expusesse, por extenso, as

condiçõesquesinalizamosacima.Contudo,atravésdeumaregrageral–adoquarto

movimento,motocontrarioesemituono–Dirutasimplificaessarelação.Aoestabelecer

queumadasvozescanteassílabasdesolmizaçãomi‐fa,umsemitom,–Figura5–o

autorgaranteocorretomovimentoentreasvozessemprecisardescreveroprincípio

danaturezadosintervalos.Noprimeiroesegundocompassostemosumasextamaior

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que se abre à oitava – Sol‐Mi/Fá‐Fá, e, Fá‐Ré/Mi‐Mi, respectivamente. No terceiro

compasso,seguindoapreceptiva,vemosqueasextamenorsefecha–nestecaso,em

umaquinta:Lá‐Fá/Lá‐Mi,

Figura5:IlTransilvano(p.218)–ExemplodapreceptivadoQuartomovimento–contrárioesemitom–entreconsonânciasimperfeitaseperfeitas.

Figura6:Quadrosinótico(originaletraduzido)dosmovimentoscontrapontísticossegundoGirolamoDiruta–IlTransilvano(p.217).

A variedade do contraponto está justamente baseada na observância destes

movimentos preceituados e sinteticamente expostos na Figura 6 – principalmente

daquelesrelacionadosàsconsonânciasperfeitas,quesão,paraDiruta,osmovimentos

maisdifíceis.Paraevitarenganos(eoitavasparalelasouocultas)oautorrecomenda

escreverentreaslinhasonúmerodosintervalosqueasconsonânciasfazem–comose

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podeverabaixonaFigura7–denotacontranotasobreumsoggeto.Autilização,na

partedotenor,deumamelodiaemcantochãoparaaindústriadocontrapontoémuito

significativa:suaimportâncianamúsicaseiscentistaequivaleàrelevânciadalinhado

Baixoparaaharmoniaoitocentista,efuncionacomoumalinha‐guiasobreesobaqual

sedesenvolvemoutrasmelodiasemcantofigurado.

Figura7:IlTransilvano(p.234)–Contrapontodenotacontranota.Osintervalosentreumavozeoutradevemsergrafadosnumericamentesegundo

GirolamoDiruta.

3–Ométodopara“falar”deimproviso

Umavezaprendidasas regras sobreos intervalose seusmovimentos, aestradado

ensinodaartedocontrapontoprossegue,conformeainstruçãodeDiruta,nafaturade

contrapontosdeobbligo–obrigaçõesparticularesquedevemserobservadas–além,é

claro,dasregrasjáestabelecidas–sobreumamelodiaemcantochão,oTenor.TalTenor

deve permanecer o mesmo durante o aprendizado para que o discípulo possa

confrontarproblemáticasdiferentesemummesmocontextoharmônico,seguindoo

máximo possível todas as regras. Diruta apresenta alguns exercícios preparatórios

antecedentesaosobblighiparaqueoTransilvanocomomesmoTenor,queénestecaso,

curto, experimente os procedimentos e tratamentos da dissonância e da rítmica

contrapontística.

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OprimeirotipodeexercícioprevistoporDirutaéode‘notacontranota’–umaespécie

de contraponto em cantochão e em ritmo simples, que se desenvolve apenas em

consonâncias.Alémdeobrigaroestudantearealizarosmovimentosentreasvárias

consonânciascorretamente,esteexercíciotemporfinalidadeprimeiraaeducaçãodo

ouvido – talvez o aprendizado mais complexo do processo, tendo em vista,

principalmente, o desenvolvimento do contraponto alla mente, base para a

improvisação.Mesmoescolásticos,osexercíciosjápreveemarealizaçãodecadências

obedecendoapreceptivadeG.Zarlino–tantonafigura7quantona8,daterçamenor

indoaouníssono.Osegundotipodeexercíciopreceituadopelonossoautorcontempla

ocontrapontocomfigurasdemesmovalor–duasnotascontrauma–eoterceiroe

quartotipos,emsíncopas.Oquintoeúltimotipodecontrapontopreparatóriodeveser

realizado em figuração rápida. Tal preparação e disposição, semelhantes àquela

registradaporJohannFux(1660‐1741)maisdeumséculodepois,serãoestabelecidas

sobonomedeespécies.Segueabaixooprimeiroexercício(Figura8)comaindicação

dosmovimentosintervalares.

Figura8:AnotaçõesdoContrapontodenotacontranotadoIlTransilvano(p.237;originaletranscriçãoparaclaveshodiernascomintervalosentreaspautas).

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Após aprender amanipular os sons corretamente, Diruta prevê a adequação desse

materialsonoroadeterminadasrepresentaçõesdasemoçõeseassuntospormeiodos

diversosmodosou tons–que,naquelapreceptiva,sãooconteúdoextrínsecodessa

linguagem:aspaixõeseosassuntosqueamúsicadescreve.Segundoantigouso,os

tons, assim como na linguagem falada, são a codificação da expressão humana – o

decorobasilardamúsica.Assimcomoooradorusacertasinflexõeseentonaçõespara

dar sentidoe coerência ao conteúdoqueprofere tendoemvistaanaturezadoque

descreveeofimdoseudiscurso,igualmenteconsidera,onossoautor,osmodospara

a música. Consequência das diferenças entre as disposições das espécies da

DiatessaroncombinadascomaDiapente,osmodosseservemdasváriasespéciesda

Diapasonparainstituirdozetiposdeescalas:seisautênticaseseisplagais.–baseadas

nasantigasseissílabas(ounotasdesolmização)daquelamúsica:ut,re,mi,fa,solela.

Oprimeiroesegundotonssebaseiamnanotare,o terceiroequarto,nanotami,o

quintoeosexto,nanotafa,osétimoeooitavo,nanotasol,ononoeodécimo,nanota

la,eodécimoprimeiroedécimosegundo,nanotaut.Dirutaexplicaqueadiferença

musicalentreumaescalaautênticaeumaplagalestánotipodeescritaquecomporta.

Aautênticamodulanormalmentefiguraçõesascendenteseaplagal,descendentese,

emboraaúltimasecomponhadomesmomaterialdaprimeiraecadencienasmesmas

cordas(notas),comportapaixõesdistintasdaquela.

Alémdedeterminarotipodeafetodeumacomposição,omodoprevê,soboparadigma

vocal,oâmbitoquesedevesituarasmelodias,seuslimitesaoagudoeaograveeo

lugarordináriodesefazerascadências–noprimeiro,quintoeterceirograusdomodo

autêntico,quenestecaso,emprestasuascordascadenciaisaoplagal.Adiscussãosobre

omodalismoérecorrenteemváriostratadosdoperíodo,comonoMelopeodePietro

Cerone(1566‐1625)publicadoem1613.Duranteséculosocantochãosedeclarousob

apenasoitomodos,porém,conformedemonstradoporZarlinoeGlareanus,oâmbitoe

asespéciesquemuitosdestesmodulavamjáconstituíamoutrostons.Assim,nãose

deveria considerar que tais autores estivessem criando novos modos, mas, sim,

codificandoumusoquejáexistia.

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Adespeitodessacontrovérsia,certoéquemuitoscompositoresparateclado,entreeles

Andrea Gabrieli (1532/3‐1585), Claudio Merulo (1533‐1604) e Adriano Banchieri

(1568‐1634), realizaram considerável número de obras em que os doze tons são

exercitados. Tal produção corresponde à demanda que o antigo organista tinha de

entoar,duranteosdiversosatoslitúrgicos,asnotasdocoroedeimprovisar,emcanto

figurado,sobreoscantochãos.OquartolivrodosegundovolumedoIlTransilvanose

dedicajustamenteaexporasdiferençasdosmodos“modernos”eaqueleseclesiásticos

afimdepropiciaraotecladistaumacorretabasetonalparaaentoação.Segundonosso

autor, muitos compositores de canto figurado, por não conhecerem a correta

disposiçãodosváriostons,confundemassuasespéciesemodulamindecorosamente

os assuntos sobomodoequivocado, deixandode ladoos efeitosnaturais que cada

escalarepresenta.

Alémdaimitaçãocorretadopontodevistadostonsedoseuâmbitocoral–umavez

queosmodosdeviam ser concordes àproblemática vocal emuitas vezesocorriam

transpostos –Dirutadeterminaqueodecorodomodo seja compreendido também

enquantotimbre,aoórgão.Paracadatomoorganistadeveescolherdentreosdiversos

registrosdoinstrumentoaquelesmaisconvenientesaoefeitonaturalquesecredita

aosdiferentestons.Dessamaneira,oconhecimentodosdiversostonsdeveriarefletir

tantoodecorodascadênciascorretamenterealizadasnascordas(notas)particulares

decadamodoquantoumadeterminadasonoridadedostubos.

Acadênciaéconsiderada,nestecontexto,comoomeiomaisseguroparaaexpressão

deummodoemcantofigurado.Umacomposiçãomusicalsóconseguiriaexpressar‐se

correta e decorosamente se observasse, na parte do Tenor, principalmente, as

cadênciasregularesdomodoqueémaisadequadoaoseuassunto.Igualmente,para

Diruta,osoggettodamúsica,temadaimitação–tambémchamadodefuga–deveria

considerarmodular,nocasodeummodoautêntico,suasnotasascendentemente,ou

seplagal,descendentemente.Paraexemplificaresteuso,nossoautor,nolivroIIIdo

segundovolume,apresentadiversosRicercari–aformadasformasdoséc.XVI–de

várioscompositoresqueassimprocederam.

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NaFigura9temosademonstraçãoquenossoautorfazdascordas(notas)cadenciais

decadatom,segundoasuanaturezaautênticaouplagal.ObservequeDirutanãocoloca

osacidentesnecessáriosparaoartificiodacadência:éprovávelquepressuponhaque

tenha sido claro na preceptiva do semitommi‐fa nas cadências, conforme já vimos

anteriormente.8

Figura9:IlTransilvano(p.276)–Tabelasinóticadascordas(notas)cadenciaisdosmodosautênticoseplagais.

Consideraçõesfinais

Comoformacontrapontísticadeimitaçãocondensada,apráticadaimprovisaçãoeda

composição a vozes e sobre osmodos, constitui o verdadeiro exercício da arte da

músicaparaDiruta.Tal índice sãoaspeçasde repertórioqueoautorapresentaao

transilvanoaofinaldasexplicaçõessobreocontrapontoeosmodos:diversasToccate

aofinaldoprimeirovolume,Ricercariemtodososdozetonsno livroIIeasmuitas

                                                            8Paraaprofundamentodoassuntodasolmizaçãoeconsequenteleituradepartiturasrenascentistas,verDOMINGOS,Nathalia.TraduçãocomentadadaprimeirapartedotratadoAplaineandeasieintroductionto praticall musicke (1597) de Thomas Morley. 2012. 353p. Dissertação (Mestrado) – Escola deComunicaçõeseArtes,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo.

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IntonazionidolivroIV9.Taisobrasencerramemsi,porextenso,sobretudohabilidades

requeridasaopráticodoórgãoedosteclados‐comoimitar,porexemplo,nocasodo

organistaqueacompanhaumcoro,improvisadamente,ostemascantadosoumesmo

realizar uma introdução em canto figurado aos cantochãos da liturgia com os

elementosdamelodiaqueseráentoada.NoIlTransilvanotemosumaótimaintrodução

quesituaesseassuntodentrodopanoramadaformaçãodoorganistaedasobrasque

aprofundam o tema. Métier da atuação profissional daqueles músicos e método

didáticodaarte,ocontraponto–aliadoaoconhecimentotécnicodoinstrumento–é,

naquele momento histórico, gramática da língua musical: parâmetro que regula a

modulaçãodossons–oucomodefineZACCONI(1622,p.5):“caminhoseguroesólido

queconduzaoprazereaobomgostoaquelesqueamamamúsica”.

Referências

1.AARON,Pietro(15xx).Compendiolodimoltidubbi.Fac‐símile–Milão.Bologna:ForniEditore,s/d.

2.ARTUSI,GiovanniMaria(1585).L’artedelContraponto.Fac‐símile–Veneza.Bologna:ForniEditore,1980.

3.BANCHIERI,Adriano(1605).L’organosuonarino.Fac‐símile–Bolonha.Bologna:ForniEditore,s/d.

4.CERONE,P.(1613).ElMelopeu.MvsicaTheoricaypratica.Fac‐símile–Nápoles.Disponível em < http://imslp.org/wiki/El_melopeo_y_maestro_(Cerone,_Pietro) >.Acessoem:10Set2014.

5.EXÍMENO,Antonio(1774).Delorigenyreglasdelamusica,conlahistoriadesuprogresso,decadênciayrestauracion.Fac‐símile–Madri.Madrid:MaxtorEditorial,2010.

6.DIRUTA,Girolamo(1593e1610).Iltransilvanodialogosoprailveromododisonarorgani,etistromentidapena.Fac‐símile–Veneza.Bologna:ForniEditore,s/d.

                                                            9ParaapráticadodedilhadoedaartedasdiminuiçõesDirutaconsideraaToccatacomoogêneromaisfavorável,enquantoqueoRicercare,formamaisestritaepolitemática,éogêneromaisartificiosoparaa prática da composição. Já as Entoações ou Intonazioni são peças curtas em canto figurado queantecedemo cantochão ou outramelodia executada pelo coro durante a liturgia e funcionam comoespéciedeintroduçãoquedáotomeimprovisaalgumaimitaçãosobreosoggettodaquelaantífonaouhino.Destegênero,muitodifusassãoaspublicaçõesdeAndreaeGiovanniGabriellisobosdozestonsemtablaturaem1593.

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7.FERNANDEZ,António(1626).ArtedeMusicadeCantoDorgameCantoChameProporçoēsdeMusicadivididasharmonicamente.Lisboa:PedroCraesbeeck.

8.PACCHIONI,Giorgio(1995).Selvadivariiprecetti:LapraticamusicaletraisecoliXVIeXVIIInellefontidell’epoca.Bologna:OrpheusEdizioni.

9.REZENDEPORTO,Delphim(2013).GirolamoDiruta:IlTransilvano–Diálogosobreamaneiracorretadetocarórgãoeinstrumentosdeteclado.UmestudosistemáticodoTratadoedaMúsicaemprincípiosdoséc.XVII.2013.342f.Dissertação(Mestrado)–EscoladeComunicaçõeseArtes,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo.

10.ZACCONI,Ludovico(1592e1619).PratticadiMusicaIeII.Fac‐símile–Veneza.Bologna:ForniEditore,s/d.

11.ZARLINO,Gioseffo(1558).Leistitutioneharmoniche.Fac‐símile–Veneza.Bologna:ForniEditore,2008.

Literaturarecomendada

1.DOMINGOS,Nathalia(2012).TraduçãocomentadadaprimeirapartedotratadoAplaineandeasieintroductiontopraticallmusicke(1597)deThomasMorley.353p.Dissertação(Mestrado)–EscoladeComunicaçõeseArtes,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo.

Notassobreoautor

DelphimRezendePortoéorganista,cravistaeregente.IniciouseusestudosdepianomodernoaosseteanoscomapolonesaDonataLange,naUniversidadeLivredeMúsica,emSãoPaulo,eéMestreeDoutorandoemMusicologiapelaECA‐USP,sobaorientaçãoda Profª. Drª.Mônica Lucas, e pesquisador dedicado ao contraponto histórico e aocanto figurado seiscentista italiano. Aperfeiçoa‐se aos teclados históricos do cravo,órgãoeclavicórdiocomNicolaudeFigueiredo,ElisaFreixoePeterSykes.LicenciadoplenoemPedagogiapelaPUC‐SP,graduou‐secomocompositoreregentepeloInstitutodeArtesdaUNESP,ondetambématuoucomocravistadasuaOrquestraAcadêmica.Durante o ano de 2016, a convite da Columbia University de Nova Iorque efinanciamentoBEPE/FAPESPprocesso2015/22613‐0,realizapesquisamusicológicaparaseudoutoramentosobaorientaçãodoProf.Dr.GiuseppeGerbino.