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 A ARTE E A VIDA SOCIAL e CARTAS SEM ENDERÊÇO

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A ARTE E A VIDA SOCIALe

CARTAS SEM ENDERO

Reviso ortogrfica EUCLIDES R. ROCHA

Capa de MARGUERITA BORNSTEIN

E T R b r a s i l i e n s e sot- an. MA Rua Baro de Itapetininsa, 93 12." anda*Slo BRASIL

GEORGE

PLEKHANOV

A ARTEE A

VIDA S O C I A L1.* edio: 1964 2 a edio

Traduo de EDUARDO SUCUPIRA FILHO

EDITRA

BRASILIENSE 1969

TTULO DO OKIGIN Ali ESPANHOL: E L ARTE Y L A VIDA SOCIAL

(Edicionee en Lenguae Extranjeraa Moscou)

IntroduoNa herana literria de George Plekhanov, eminente terico e propagandiste do marxismo, ocupam lugar importante as obras sobre problemas de esttica. O mrito histrico de Plekhanov na investigao dos problemas da teoria e histria da arte consiste em que foi o primeiro marxista russo que aplicou fecundamente a teoria de Marx, sua concepo materialista da histria, interpretao das manifestaes da arte. Uma de suas primeiras obras nesse campo so Cartas sem Endereo, onde investiga o problema da apario e do desenvolvimento da arte nas fases iniciais da sociedade humana. A anlise de abundantes dados concretos referentes aos perodos iniciais do desenvolvimento da humanidade lhe permite chegar concluso de que na sociedade primitiva a arte dependia diretamente da economia e que a fonte primria das necessidades espirituais dos homens (compreendidas as estticas) reside nas condies materiais de vida. No trabalho A Arte e a Vida Social aparecido posteriormente, Plekhanov examina problemas tais como o lugar e o papel da arte na sociedade e a relao que guarda com o movimento de libertao e o realismo, mtodo artstico mais fecundo. No mesmo artigo, submete a um crtica circunstanciada a teoria da "arte pela arte" e lhe contrape a misso social da arte.

O trabalho que oferecemos ateno dos leitores o texto reelaborado de uma conferncia lida por mim, em russo, em novembro do presente ano de 1912, em Lige e em Paris. Por essa razo, conserva at certo ponto sua forma de leitura. No final da segunda parte sero examinadas as objees que o Sr. Lunatcharski me dirigiu, publicamente, em Paris, no que respeita ao critrio da beleza. Em sua oportunidade, respondi verbalmente a ditas objees. Agora considero conveniente deter-me a examin-las na imprensa. G. Plekhanov

A ARTE E A VIDA SOCIAL (1)

(1) ste trabalho foi publicado inicialmente em novembro e dezembro de 1912 e janeiro de 1913. Posteriormente, foi includo no tomo XIV da edio pstuma das obras completas de G. V. Flekbanov.

IO problema da relao entre a arte e a vida social desempenhou sempre um papel muito importante em todas as literaturas que alcanaram certo grau de desenvolvimento. Na maioria dos casos, esse problema tem sido resolvido e se resolve em dois sentidos diametralmente opostos. Alguns costumavam dizer e dizem: o homem no foi feito para o sbado, mas o sbado para o homem; a sociedade no foi feita para o artista, mas o artista para a sociedade. A arte deve contribuir para o desenvolvimento da conscincia humana, para a melhoria do regime social. Outros rechaam em bloco essa opinio. Segundo eles, a arte um objetivo em si; convert-la em um meio de alcanar outros objetivos que lhe so estranhos, mesmo que sejam os mais nobres, eqivale a rebaixar o mrito da obra de arte. A primeira dessas duas opinies teve sua brilhante expresso em nossa literatura avanada, da dcada de 60(1). Isso sem falar de Pssarev(2), que por sua extrema unilateralidade, converteu-a quase em uma caricatura, podemos(1) Referncia aos democratas revolucionrios Tchernishevski. Dobrolibov, Pssarev, Saltikov-Scbedrin, Nekrssov e outros, inspiradores intelectuais do movimento revolucionrio emancipador da dcada de 60, do sculo passado. sses "ilustrados" que conferiam extraordinria importncia ao papel das idias avanadas na transformao da sociedade exigiam que a arte participasse da luta de libertao. (2) D. I. Pssarev (1840-1868): democrata revolucionrio russo, crtico e filsofo materialista. Em seus artigos de crtica literria pronunciava-se firmemente contra a teoria artepurista. A afirmao de Plekhanov de que le fra defensor extremadamente unilateral e simplista da arte utilitria no justa. Pssarev, que se opunha frontalmente a uma "arte pela arte" divorciada da realidade e que propugnou com tda a energia por uma arte de profundo contedo, penetrada das idias avanadas da poca, jamais negou o valor esttico das obras artsticas e literrias.

mencionar Tchernishevski e Dobrolibov como seus mais acreditados defensores na crtica daqueles tempos. Em um de seui primeiros artigos de crtica, Tchernishevski dizia: "A arte pela arte hoje em dia uma idia to estranha como a riqueza pela riqueza, a cincia pela cincia, etc. Todas as atividades humanas devem servir ao homem se no se quer que sejam vs e ociosas ocupaes; a riqueza existe para ser utilizada pelo homem; a cincia, para ser seu guia; a arte tambm deve ser de alguma utilidade essencial, e no servir de prazer estril." Segundo Tchernishevski, a importncia das artes, e em especial da mais sria delas, a poesia, reside na massa de conhecimentos que se difundem na sociedade. "As artes, diz le, ou melhor a poesia (apenas ela, pois as demais artes muito pouco fazem nesse sentido ) difundem na massa dos leitores uma quantidade enorme de conhecimentos e o que mais importante faz-lhes conhecer os conceitos elaborados pela cincia. Da, a formidvel importncia da poesia para a vida"(3). A mesma idia se expressa em sua famosa dissertao As Relaes Estticas entre a Arte e a Realidade. De acordo com a dcima stima tese, a arte no s reproduz a vida, mas a explica; suas obras tm amide "o valor de um juzo sobre os fenmenos da vida". Para Tchernishevski e para seu discpulo Dobrolibov, a principal significao da arte consiste em reproduzir a vida e o ajuizar de seus fenmenos(4). Os crticos literrios e os tericos da arte no eram os nicos em sustentar essa opinio. Em vo dizia Nekrssov que sua musa era "a musa da vin(3) N. G. Tchernishevski Obras Completas, ed. de 1906 t. I, pgs. 33-34. Trata-se do artigo Acrca da Poesia. As Obras de Aristteles (Ver Obras Filosficas Escolhidas, em trs tomos, Gospolitizdat, t. I, pg. 313.). (4) Esta opinio em parte uma repetio e em parte um desenvolvimento ulterior do ponto de vista adotado por Bielinski nos ltimos anos de sua vida. Em seu artigo Viso da Literatura Russa de 1847, Bielinski dizia: "O supremo e mais sagrado dos intersses da sociedade reside em seu prprio bem-estar, igualmente distribudo entre todos os seus membros. O caminho que conduz a este bem-estar a conscincia, a que a arte pode contribuir, tanto quanto a cincia. A cincia e a arte so igualmente necessrias, e nem a cincia pode substituir a arte, nem a arte a cincia". Mas a arte s pode desenvolver a conscincia dos homens "ajuizando os fenmenos da vida". Assim que a dissertao de Tchernishevski vem coincidir com a ltima opinio de Bielinski sobre a literatura russa.

gana e da dor". Em uma de suas poesias, o cidado dirigiu-se ao poeta com estas palavras: E tu, poeta, eleito dos deuses, arauto de verdades eternas: No reias que quem no tem po no merece tua lira proftica; no creias que os homens caram pra sempre. Deus no morreu na alma dos homens, e os soluos de um corao piedoso sempre sero ouvidos por le. S cidado, e servindo arte vive para o bem de teu prximo. Submete teu gnio ao sentimento de amor por todo o universo(5). Com tais palavras, o cidado Nekrssov exprimiu sua prpria interpretao da misso da arte. E assim, exatamente, era como a entendiam tambm as mais destacadas figuras das artes plsticas, por exemplo, da pintura; Perov e Kramski anelavam, como Nekrssov, ser "cidados" servindo arte; como le, "ajuizavam em suas obras os fenmenos da vida"(6). O ponto de vista oposto sobre a misso da criao artstica teve poderoso defensor na pessoa de Pushkin, poca de Nicolau I. Todo o mundo conhece, naturalmente, suas poesias: A Plebe e Ao poeta. O povo, que exigiu do poeta que melhore com seus cantos os costumes da sociedade, recebe dle uma borrifada depreciativa e at, pode-se dizer, insolente: Fora! Ao pacficoem nada podeis

poetainteress-lo.

Estais petrificados no vcio; a voz da lira no vos despertar. Sois repulsivos como sepulturas; por vossa estultcie e maldade tendes tido at agora chibatas, ergstulos e cadafalsos. Que mais quereis, escravos insensatos?(5) Extrato do trabalho de N. A. Nekrssov, O Poeta e o Cidado. ( 6 ) A carta de Kramski a V. V. Stssov, escrita de Menton, a 30 de abril de 1884, mostra a grande influncia que sobre le exerciam as idias de Bielinski, Gogol, Fiedtov, Ivnov, Tchernishevski, Dobro-

Nos versos que seguem, tantas vzes citados, Pushkin expe o conceito da misso do poeta: No nascemos para a agitao da vida, nem para o combate ou a ambio; nascemos para a inspirao, para as oraes e as doces melodias(7). Aqui temos a chamada teoria da arte pela arte em sua expresso mais ntida. No por acaso os adversrios do movimento literrio da dcada de 60 citavam Pushkin com tanto prazer e freqncia(8). Qual dessas duas opinies diametralmente opostas sobre a a misso da arte deve considerar-se acertada? Antes de intentar resolver o problema, preciso advertir que est mal formulado. Como todas as questes anlogas, no pode ser considerado do ponto de vista do "dever". Se os artistas de determinado pas fogem em determinado momento da "agitao da vida e do combate", e em outros momentos, pelo contrrio, procuram ansiosamente o combate e a agitao que inevitavelmente o acompanha, isso no se develibov e Perov (Iv NikolievUch Kramski, sua vida, sua correspondncia e seus artigos de crtica de arte, So Petersburgo, 1888, pg. 487). preciso advertir que os juzos acrca dos fenmenos da vida que encontramos nos artigos de crtica de I. N. Kramski so muito menos claros que os que nos oferece G. I. Uspenki, sem falar de Thernishevski e Doorolibov. (7) stes versos e os anteriores fazem parte da poesia de Pushkin, O Poeta e a Multido. (8) A poesia O Poeta e a Multido (publicada a princpio sob o ttulo de A Plebe) e outras deixadas por Plekhanov (como O Poeta e Ao Poeta) tinham um carter marcadamente polmico. O prprio Plekhanov explicou de modo convincente o sentido de tais ataques de Pushkin aristocracia cortes e aos crculos governamentais, que procuravam submeter a arte do grande poeta a seus intersses de classe. Na dcada de 60, os crticos liberais, que defendiam uma suposta independncia da arte frente vida social, apelavam para a autoridade de Pushkin em sua luta contra a democracia revolucionria. Interpretando errneamente o sentido das poesias mencionadas, tratavam de demonstrar que Pushkin era um adepto da "arte pura". Os decadentistas russos de fins do sculo passado e comeos do atual sustentavam o mesmo ponto de vita.

a que algum imponha de fora, diferentes obrigaes ("deveres") em pocas diferentes, mas a que em determinadas condies sociais apresentem certo estado de nimo; e em condies outras, apresente-se diversamente. Por conseguinte, para focalizar, como se deve, a questo, no devemos encar-la do ponto de vista do que deveria ser, mas do ponto de vista do que foi e do que . Assim, pois, apresentaremos a questo do seguinte modo: Quais so as condies sociais mais importantes dentre as que determinam nos artistas e nas pessoas qu se interessam vivamente pela criao artstica o aparecimento e a fixao da tendncia a fazer artepurismo? Quando tivermos a soluo desse problema, no nos ser difcil resolver outro problema, estreitamente relacionado com aquele, e no menos interessante: Quais so as condies sociais mais importantes dentre as que determinam nos artistas e nas pessoas que se interessam vivamente pela criao artstica a apario e fixao da chamada concepo utilitarista da arte, isto , a tendncia a atribuir a suas obras "a significao de uma avaliao dos fenmenos da vida"? A primeira questo obriga-nos a recordar uma vez mais a figura de Pushkin. Houve poca em que Pushkin no defendia a teoria da arte pela arte. Houve poca em que no refugia ao combate, e, pelo contrrio, procurava-o. Foi a poca de Alexandre I. Ento, le no pensava que o "povo" devia contentar-se com chibata, ergstulos e cadafalsos. Ao contrrio, em sua ode Liberdade exclamava indignado: AM Para qualquer lado que volta o olhar, ltegos por toda parte, por toda parte cadeias, a ignomnia de leis nafandas, lgrimas impotentes de escravido; por toda a parte o poder arbitrrio na tenebrosa noite dos preconceitos, etc. Posteriormente, suas idias sofreram radical mudana. Na poca de Nicolau I, adotou a teoria da arte pela arte. A que se deveu mudana to profunda?

O como do reinado de Nicolau I foi assinalado pela catstrofe do 14 de dezembro(9), que exerceu enorme influncia sobre o desenvolvimento ulterior de nossa "sociedade" e sobre o prprio destino de Pushkin. Com os derrotados "decembristas" desapareceram de cena os representantes mais cultos e avanados da "sociedade" de ento, o que no deixou de rebaixar consideravelmente seu nvel moral e intelectual. "Ainda que eu ento fsse muito jovem diz Herzen recordo-me que com a asceno de Nicolau I ao trono, a alta sociedade caiu a olhos vistos na degradao e submergiu ainda mais na abjeo e no servilismo. A independncia aristocrtica e a intrepidez cavalheiresca dos tempos de Alexandre desapareceram no ano de 1826(10). Era difcil a um homem sensvel e inteligente viver em uma sociedade como aquela. "Em volta diz Herzen em outro artigo tudo era soledade, silncio; nem um eco, nem um sentimento humano, nem uma esperana. E por acrscimo, tudo era extraordinariamente chato, nscio, mesquinho. O olhar que procurava simpatia no encontrava seno ameaa ou temor; ou fuga ou agravo". Nas cartas da poca em que foram escritas A Plebe e Ao Poeta, Pushkin queixa-se do aborrecimento e da vulgaridade imperantes em nossas capitais. Mas o que fazia sofrer no era somente a grosseria da sociedade que o rodeava; amargavam-lhe tambm a vida suas relaes com as "altas esferas". Na Rssia estava muito difundida a enternecedora lenda de que, em 1826, Nicolau I "perdoou" generosamente a Pushkin seus "juvenis devaneios" polticos e at se converteu em seu magnnimo protetor. Mas os fatos no ocorreram assim. A realidade foi que Nicolau e seu brao direito nessa classe de assuntos, o chefe de polcia, A. J. Benkendorf, nada "perdoaram" a Pushkin, e a "proteo" de ambos manifestou-se atravs de uma vasta srie de insuportveis humilhaes. "Pushkin informava Benkendorf a Nicolau, em 1827 depois de( 9 ) O autor refere-se insurreio armada dos revolucionrios aristocratas contra a autocracia czarista, a 14 de dezembo de 1825, em So Petersburgo ( de onde vem o nome de decembristas, aplicado aos insurretos). Aps o esmagamento da insurreio, seus organizadores foram executados, e desterrados para a Sibria muitos dos que dela participaram. (10) Referncia ao reinado do Imperador Alexandre I (18011825). Extrato do livro de Herzen, Memrias e Pensamentos, Moscou, 1947, pg. 290.

haver falado comigo, manifestou no clube ingls grande entusiasmo por Vossa Majestade e obrigou as pessoas que comiam com le a brindar pela sade de Vossa Majestade. Nem por isso deixa le de ser um malicioso notrio, mas se conseguirmos dirigir-lhe a pena e as palavras, isso ser de utilidadeA ltima frase desta passagem revela-nos o segredo da "proteo" dispensada a Pushkin. Quiseram-no converter num propagandista do regime. Nicolau I e Benkendorf se haviam proposto orientar a musa de Pushkin, rebelde em outros tempos, no sentido da moral oficial. Quando, depois da morte de Pushkin, o Marechal-de-Campo Paskvitch escreveu a Nicolau "lamento o desaparecimento de Pushkin como escritor" o czar respondeu: "comparto integralmente de tua opinio, mas pode-se dizer muito bem que nle choramos o futuro e no o passado".(ll) Isso quer dizer que sse inesquecvel imperador no apreciava o desaparecido poeta pelas grandes obras que havia escrito durante sua curta vida, mas pelo que podia haver escrito sob a oportuna vigilncia e direo da polcia. Nicolau esperava de Pushkin obras "patriticas", segundo o estilo da pea A mo do Altssimo Salvou a Ptria, de Kkolnik. At V. A. Zhukovski, poeta extramundo, e bom corteso, tentou faz-lo entrar em razo e infundir-lhe o respeito pela moral. Em carta datada de 12 de abril de 1826 diz: "Nossos jovens (isto , tda a gerao que est amadurecendo), dada a m educao que lhes no oferece qualquer apoio ante a vida, conhecem teus rebeldes pensamentos, envoltos no encanto da poesia; a muitos causou dano irreparvel. Isso deve surpreender-te. O talento no nada. 0 essencial a grandeza moral. . . "(12) Convenham comigo que ante tal situao, trazendo aos ombros as cadeias de tal tutela e obrigado a ouvir tais recomendaes, era perfeitamente natural odiar a "grandeza" que a arte podia trazer, lanando em cara dos conselheiros e protetores estas palavras: Fora! Ao pacfico poeta em nada podeis interess-lo.(11) P. E. Schgolev, Pushkin, Ensaios, So Petersburgo, 1912, pgs., 357. (12) Obra cit., pg., 241.

Em outros termos: dada a situao, era natural que Pushkin se tornasse partidrio da teoria da arte pela arte e dissesse ao poeta, dirigindo-se a si mesmo: s soberano. Segue o livre caminho a que te impele a inteligncia livre. Melhora os frutos de teus caros pensamentos, sem pedir recompensa por tuas nobres empresas. D. I. Pssarev objetar-me-ia que o poeta de Pushkin no dirige essas duras palavras a seus protetores, mas ao "povo" (13). Mas, o verdadeiro povo se encontrava completamente fora do campo visual da literatura de ento. A palavra povo tem para Pushkin a mesma significao da palavra "multido", freqentemente usada por le e que, naturalmente, no se refere s massas trabalhadoras. Em Os Ciganos, Pushkin assim define os moradores das cidades opressivas: Envergonham-se do amor y afugentam as idias, traficam com a liberdade, inclinam ante os dolos as cabeas e pedem dinheiro e cadeias. difcil supor que essa caracterizao se refira, por exemplo, aos artesos das cidades. Se tudo isso exato, ante ns desenha-se a seguinte concluso: A tendncia arte pela arte surge quando existe um divrcio entre os artistas e o meio social que os rodeia. Podem dizer-nos, naturalmente, que o exemplo de Pushkin insuficiente para fundamentar tal concluso. No rejeito nem discuto. Citarei outros exemplos da histria da literatura francesa, isto , da literatura de um pas cujas correntes intelectuais encontraram pelo menos at meados do sculo passado, a mais vasta simpatia em todo o continente europeu. Os romnticos franceses da poca de Pushkin tambm eram, salvo poucas excees, ardentes partidrios da arte pela arte. Tefilo Gautier, talvez o mais conseqente deles, apostrofava nos seguintes termos os defensores da concepo utilitarista da arte:( 13 ) Extrato da poesia de Pushkin: Ao Poeta. 18 George Plekhanov

"No, imbecis; no, cretinos e ignorantes: um livro no serve para fazer sopa de gelatina; uma novela no um par de botas sem costuras. . . Pelo bandulho de todos os papas passados, presentes e futuros, no, e duzentas vezes no!. . . Sou daqueles para quem o suprfluo o necessrio; meu amor pelas coisas e pessoas inversamente proporcional aos servios que me prestam"(14). 0 mesmo Gautier, em nota biogrfica sobre Baudelaire, dirigia grandes elogios ao autor de Flores do Mal, por haver este defendido "a autonomia absoluta da arte e no haver permitido que a poesia pudesse ter outro objetivo que no ela mesma e outra misso que no a de despertar na alma do leitor a sensao do belo no sentido absoluto da palavra" (autonomie absolue de Vart et qu'il re' admettait pas que la posie et d'autre but qu'elle mme et d'autre mission remplir que d'exciter dans l'me du lecteur Ut sensation du beau; dans le sens absolu du terme). Pela seguinte declarao de Gautier, vemos mal que lhe causavam ao esprito a "idia do belo" e as idias sociais e polticas: "Renunciaria alegremente (trs joyeusement) a meus direitos de francs e de cidado para ver um quadro autntico de Rafael ou uma formosa mulher nua: a Princesa Borghese, por exemplo, depois de posar para Casanova, ou Jlia Grisi quando entra no banho"(15). No se pode ir mais longe. No obstante, todos os parnasianos(l) certamente estariam de acordo com Gautier, em que pese a que talvez alguns dles formulassem certas reservas forma demasiado paradxica por que se exigia, sobretudo nos anos de juventude, a "autonomia absoluta da arte". A que se deve semelhante estado de nimo dos romnticos e parnasianos franceses? Acaso tambm les estavam divorciados da sociedade que os rodeava? Em 1857, em artigo escrito por motivos da representao no Thtre Franais da obra de Vigny Chatterton Tefilo(14) Prefcio novela Mademoiselle de Maupin. (15) Obra cit., ibid. ( 16 ) Grupo de poetas franceses que publicavam o almanaque O Parnaso Contemporneo (1866-76). Formavam parte desse grupo, Leconte de Lisle, J. M. Heredia e outros poetas partidrios da arte pela arte. Foram os precursores dos decadentistas.

Gautier lembrava a primeira representao da pea, que tivera lugar em 12 de fevereiro de 1835. Eis o que dizia: "A platia, diante da qual Chatterton declamava, estava repleta de plidos adolescentes de cabelos compridos, os quais criam firmemente que no havia ocupao melhor do que escrever versos ou pintar quadros. . . e olhavam os burgueses com um desprezo que dificilmente podia equiparar-se ao que as rapsas(ll) de Heidelberg e Iena sentiam pelos filisteus"(18). Quem eram esses "burgueses" desprezveis? "Os burgueses responde Gautier eram quase todo o mundo: os banqueiros, os agentes da Bolsa, os notrios, os negociantes, os tendeiros, etc., todos os que no formavam parte do misterioso cenculo e ganhavam prosaicamente a vida"(19). Eis outro testemunho. Nos comentrios a uma de suas Odes Funambulescas Teodoro de Banville reconhece que ele compartia tambm dsse dio ao "burgus". E explica quais eram os cognominados com sse nome pelos romnticos: na linguagem dos romnticos, "burgus" era o "homem que no admirava seno as peas de cinco francos, que no tinha outro ideal que a conservao da pele e que, em poesia, amava nicamente o romance sentimental, e nas artes plsticas, a litografia em cres"(20). E ao recordar isso, Banville rogava a seus leitores que no se assombrassem de que suas Odes Funambulescas as quais, notem bem, foram publicadas no ltimo perodo do Romantismo tratem de canalhas a pessoas cujo nico delito era levar vida burguesa e no prosternar-se ante os gnios romnticos. sses testemunhos mostram de modo assaz convincente que os romnticos se encontravam realmente divorciados da sociedade burguesa que os rodeava. Certamente, tal divrcio no constitua qualquer perigo para as relaes sociais burguesas. Os jovens burgueses que formavam parte dos crculos romnticos no se opunham absolutamente a ditas relaes sociais, mas ao mesmo tempo, sentiam-se indignados ante a abjeo, o tdio e a vulgaridade da existncia burguesa. A nova arte, que tanto os entusiasmava, era para les um refgio contra essa abjeo,(17) alemes. (18) (19) (20) 20 George Alcunha dos estudantes do primeiro ano nas universidades Histoire du Romantisme, Paris, 1895, pgs., 153-54. Ibid., pg., 154. Les Odes Funambulesques , Paris, 1858, pg., 294-295. Plekhanov

tdio e vulgaridade. Nos ltimos anos da restaurao e na primeira metade do reinado de Lus Filipe, isto , na melhor poca do Romantismo, havia-lhes sido mais difcil acostumarem-se abjeao, ao prosasmo e ao tdio burgueses, porquanto a Frana acabava de passar pelas terrveis tormentas da grande revoluo e da poca napolenica que agitaram profundamente as paixes humanas. Quando a burguesia passou a ocupar posio dominante na sociedade e deixou de sentir-se inflamada pelo fogo da luta libertadora, nova arte no restou seno idealizar a negao do modo de vida burgus. A arte romntica foi justamente essa idealizao. Os romnticos esforavam-se por exprimir repulsa moderao e ao escrpulo burgueses, no s nas obras de arte, mas tambm na atitude. J ouvimos de Gautier que os jovens que enchiam a platia na primeira representao de Chatterton usavam cabelos compridos. Quem no ouviu falar do jaleco vermelho do prprio Gautier, motivo de escndalo entre a "gente de bem"? Os trajes fantsticos e os cabelos compridos eram recursos utilizados pelos jovens romnticos para se contraporem aos odiados burgueses. A palidez do rosto era tambm uma espcie de protesto contra a sociedade burguesa(21). "Naquele momento diz Gautier era moda na escola romntica possuir-se um tom plido, lvido, verdoso, e mesmo um pouco cadavrico. Isso dava um ar fatal, byroniano, como de pessoa atormentada pelas paixes e os remorsos. As mulheres sensveis achavam isso interessante "(22). Gautier diz,(21)Alfredo de Musset descreve a situao, do seguinte modo: "Ds lors, se formrent comme deux camps: d'une part les esprits exalts, souffrants; toutes les mes expansives qui ont besoin de Vnfini plirent la tte en pleurant ; ils s'envelopprent de rves maladifs, et l'on ne vit plus que de frles roseaux SUT un ocan d'amertume. D'une part, les hommes de chair restrent debout, inflexibles, au milieu des jouissances positives, et il ne leur prit d'autre souci que de compter l'argent qu'us avaient. Ce ne fut qu un sanglot et un clat de rire, l'un venant ae l'me, Vautre du corps'. (Desde ento se formaram dois campos: de um lado, os espritos exaltados, doloridos; tdas as almas expansivas que anelam o infinito inclinaram suas cabeas chorando; envolveram-se em sonhos enfermios, e nesse oceano de amargura no se viram seno uns frgeis ramos. De outro lado, os homens materiais permaneceram de p, inflexveis, em meio aos gozos positivos, sem outra preocupao que a de contar o dinheiro que possuam. Um soluo e uma gargalhada; aquele procedente da alma; esta, do corpo) (La Confession d'un Enfant du Sicle , pg. 10). (22) Obra cit., pg. 31.

ainda, que os romnticos dificilmente perdoavam a Victor Hugo seu apuro no trajar, e nas conversaes ntimas lamentava-se, amide, essa debilidade do genial poeta, que o "ligava humanidade e inclusive burguesia"(23). Em geral, preciso assinalar que os esforos por adquirir esta ou outra aparncia externa refletem sempre as relaes sociais de uma poca. Sobre sse tema poder-se-ia escrever um interessante estudo sociolgico. Dada sua atitude frente burguesia, os jovens romnticos no podiam deixar de indignar-se ante a idia de uma "arte utilitarista". Converter a arte em algo til era, a juzo dles, obrig-la a servir queles mesmos burgueses que tanto desprezavam. o que explicam as insolentes faccias que acabo de citar de Gautier contra os partidrios da arte utilitarista, aos quais tacha de "imbecis, cretinos, ignorantes", etc. Isso explica tambm o paradoxo de que o valor atribudo por ele s pessoas e s coisas fsse inversamente proporcional sua utilidade. Todas essas pilhrias e paradoxos tm exatamente a mesma significao que as palavras de Pushkin: Fora! Ao pacfico poeta em nada podeis interess-lo. Os parnasianos e os primeiros realistas franceses (os Goncourt, Flaubert e outros) tambm sentiam desprzo infinito pela sociedade burguesa que os rodeava. les tambm lanavam constantemente improprios contra os odiados "burgueses". E se publicavam suas obras, no era, segundo diziam, para um pblico vasto, mas to-smente para uns quantos eleitos, "para amigos ignorados", como dizia Flaubert em uma de suas cartas. Segundo o que pensavam, s um escritor de mediano talento podia agradar ao grande pblico. Leconte de Lisle cria que o grande xito de um escritor era sinal de inferioridade intelectual. Releva dizer que os parnasianos, como os romnticos, eram partidrios incondicionais da teoria da arte pela arte. Poderamos citar numerosos exemplos anlogos, mas no necessrio. Est suficientemente claro que a tendncia dos artistas ao artepurismo surge, espontaneamente, quando stes se encontram divorciados da sociedade que os rodeia. No demais definir em detalhe a razo dsse divrcio.(23) Ibid., pg. 32. 22 George Plekhanov

Em fins do sculo XVIII, na poca imediatamente anterior grande revoluo(24), os artistas franceses de idias avanadas tambm se encontravam divorciados da "sociedade" de seu tempo. Davi e seus amigos estavam contra o "velho regime". E o divrcio era evidentemente irremedivel, porque a conciliao com o velho regime era inteiramente impossvel. Ainda mais: esse divrcio era imcomparvelmente mais profundo que o existente entre os romnticos e a sociedade burguesa: Davi e seus amigos queriam a supresso do velho regime, ao passo que Tefilo Gautier e correligionrios, como j disse mais de uma vez, nada tinham contra as relaes sociais burguesas, e seu nico desejo era que o regime burgus deixasse de engendrar os vulgares costumes burgueses(25). Insurgindo-se contra o velho regime, Davi e seus amigos sabiam perfeitamente que atrs dles se avigorava aqule terceiro estado que em breve, segundo a clebre expresso do Abade Sieys(26), haveria de ser tudo. Por conseguinte, o sentimento de divrcio para com o regime imperante ia acompanhado de um sentimento de simpatia para com a nova sociedade que se estava gerando nas entranhas da velha sociedade e se dispunha a substitu-la. Em troca, nos romnticos e parnasianos, vemos algo bem diferente: no esperam nem desejam mudanas no regime social da Frana de sua poca. Por isso, o divrcio com a sociedade que os rodeia absolutamente irremedivel(27).(24) Referncia Revoluo Francesa (1789). (25) Teodoro de Banville diz abertamente que os ataques dos romnticos contra os "burgueses" no se referiam em absoluto burguesia ccrmo classe social ( Les Odes Funambulesques , Paris, 1858, pg. 294). Essa sublevao conservadora contra os "burgueses", tpica dos romnticos e que de modo algum se fazia extensiva aos fundamentos do regime burgus, foi interpretada por alguns . . . tericos russos contemporneos (Ivanov-Ruzmnik, por exemplo) como uma luta contra o esprito burgus, que por sua amplitude reduz considervelmente a luta social e poltica do proletariado contra a burguesia. Deixo que o leitor julgue por si a profundidade de tal interpretao. Ela mostra em realidade que os que falam da histria do pensamento social russo nem sempre, desgraadamente, se do ao trabalho de estudar previamente a histria do pensamento no ocidente da Europa. (26) Referncia famosa frase do Abade Sieys, em seu folheto, Que o Terceiro Estado?, publicado em 1789: Que o terceiro estado? Nada. Que deve ser? Tudo. (27) O estado de nimo dos romnticos alemes distingue-se pelo mesmo divrcio irremedivel entre les e o meio social que os rodeia, como o demonstra muito bem Brandese em seu livro Die Romantische

Nosso Pushkin, tampouco, esperava qualquer mudana da Rssia de ento, e pode-se dizer que na poca de Nicolau I at deixou de desej-la. Da, o pessimismo que lhe dominava as idias acerca da vida social. Parece-me que agora posso completar minha concluso e dizer: A tendncia arte pela arte dos artistas e das pessoas que se interessam vivamente pela criao artstica surge base de seu divrcio irremedivel com o meio que os rodeia. Mas isso no tudo. O exemplo de nossos homens da dcada de 60 que acreditavam firmemente no triunfo prximo da razo, assim como Davi e seus amigos, que acreditavam na mesma coisa com idntica firmeza, mostra-nos que: A chamada concepo utilitarista da arte, isto , a tendncia a atribuir s obras a significao de uma avaliao dos fenmenos da vida, e o alegre desejo que sempre acompanha dita tendncia de participar das lutas sociais, surge e se fixa quando existe simpatia recproca entre uma parte considervel da sociedade e as pessoas que sob forma mais ou menos ativa se interessam pela criao artstica, O fato seguinte demonstra, sem margem de dvidas, at que ponto isso verdadeiro. Quando estalou a tormenta vivificadora da revoluo de fevereiro de 1848, muitos artistas franceses, partidrios da teoria da arte pela arte, rechaaram-na decididamente. Inclusive Baudelaire, a quem Gautier haveria de citar- depois como o exemplo de artista firmemente convencido da necessidade de autonomia absoluta da arte, comeou desde o primeiro momento a editar a revista revolucionria Le Salut Public. bem verdade que a revista logo deixou de circular, mas ainda em 1852, no prefcio a Chansons, de Pedro Dupont, Baudelaire qualificava de pueril a teoria da arte pela arte e proclamava que a arte devia perseguir fins sociais. To somente o triunfo da contraSchule in Deutschland, segunda parte de sua obra Die Hauptstrmungen der Litteratur des 19-ten Jahrhundertes.

-revoluo fz com que Baudelaire e outros artistas de idias anlogas voltassem definitivamente "pueril teoria da arte pela arte." Leconte de Lisle, um dos futuros astros do "parnasianismo", mostrou com extraordinria clareza o sentido psicolgico dessa volta, no prlogo a seus Pomes Antiques, cuja primeira edio veio luz em 1852. Nle diz que a poesia j no engendrar a5es hericas nem inspirar virtudes sociais, porque agora, como em tdas as pocas de decadncia literria, a lngua sagrada s pode exprimir mesquinhas impresses pessoais. . . e j no est apta a orientar o homem(28). Dirigindose aos poetas, Leconte de Lisle diz que o gnero humano sabe agora mais do que les, que em certa poca foram seus mestres (29). Segundo o futuro parsaniano, o papel da poesia consiste agora em "dar vida ideal a quem j no tem vida real"(30). Nessas profundas palavras revela-se o mistrio psicolgico da tendncia arte pela arte. Teremos ocasio de voltar mais uma vez ao citado prefcio de Leconte de Lisle. Para terminar ste aspecto da questo, direi ainda que qualquer poder poltico prefere a concepo utilitria da arte, sempre e quando, claro, se interesse por essa matria. Isso se compreende facilmente: o poder poltico est interessado em pr tdas as ideologias a servio da causa que le mesmo serve. E como o poder poltico, s vzes revolucionrio, , na maioria dos casos, conservador e at francamente reacionrio, sse nico fato mostra-nos que no devemos crer que a concepo utilitarista da arte seja sustentada sobretudo pelos revolucionrios ou, em geral, pelas pessoas de idias avanadas. A histria da literatura russa mostra com grande eloqncia que sequer nossos conservadores lhe tinham averso. Eis alguns exemplos: Em1814, apareceram as trs primeiras partes da novela de V. T-

Narezhni Gil Brs Russo ou As Aventuras do Gavrilla Simonovitch Christiakov( 31). A novela foi imediatamente, por ordem do ministro da Instruo Conde de Razumovski, que por sse motivo exps a opinio acerca da atitude da literatura ante a vida:

Prncipe proibida Pblica, seguinte

(28) Pomes Antiques, Paris, prefcio, pg. VII. (29) Obra cit., pag. IX. (30) Ibid., pg. XI. (31) V. T. Narezhni (1780-1825) - Escritor russo. Na novela aludida apresenta uma imagem satrica da sociedade aristocrtica, assim como a vida e os costumes dos senhores feudais.

"Acontece comumente que os autores de novelas, mesmo tratando, aparentemente, de combater os vcios, apresentam-nos com tais cores ou os descrevem com tal minuciosidade que, por esse mesmo fato, fazem com que os jovens se sintam atrados por vcios dos quais conviria no falar. Qualquer que seja o mrito literrio das novelas, estas s podem ser publicadas se tm em vista um fim verdadeiramente moral." J se v como Razumovski considerava que a arte no pode ser um objetivo em si. Isso mesmo era o que opinavam os serviais de Nicolau I que, por sua posio oficial, estavam obrigados a adotar certa atitude perante a arte. Estaro os leitores lembrados de que Benkendorf procurava levar Pushkin ao bom caminho? As autoridades, tampouco, deixaram de lado a Ostrovski. Em maro de 1850, quando foi publicada sua comdia, Entre Amigos nos Entendemos, e certos amantes "ilustrados" da literatura.. . e do comrcio comearam a temer que a obra ofendesse aos mercadores, o ministro de Instruo Pblica (Prncipe P. A. Shirinski-Shikhamtov) ordenou ao diretor do ensino da circunscrio acadmica de Moscou que chamasse o novel dramaturgo e "lhe fizesse compreender que a nobre e til misso do talento no deve consistir nicamente em dar uma imagem viva do ridculo e do mau, mas tambm em sua justa condenao, no s sob forma caricaturesca, como tambm mediante a difuso de elevados sentimentos morais. Por conseguinte, deve-se opor o vcio virtude, e ao ridculo e delituoso idias e a5es que enobream a alma; finalmente, deve-se afirmar a convico, to importante para a vida social e privada, de que o mal encontra seu digno castigo mesmo na terra". O prprio Imperador Nicolau Pvlovitch tambm considerava a misso da arte de um ponto de vista eminentemente "moral". Como sabemos, Nicolau I compartia a opinio de Benkendorf de que seria conveniente domestcar Pushkin. Referindo-se pea No te Metas em Tren Alheio escrita na poca em que Ostrovski, influenciado pelos eslavfilos, dizia em alegres regabofes que com ajuda de alguns amigos "faria retroceder toda a obra de Pedro"(32) pea at certo ponto muito edificante,(32) Eslavfilos: uma das tendncias do pensamento social russo da quinta e sexta dcadas do sculo passado. Sustentavam a teoria de ue o desenvolvimento histrico da Rssia seguia um caminho prprio, iferente do do Ocidente e baseado em trs aspectos supostamente ex-

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o czar dizia elogiosamente: "Ce n'est pas une pice, c'est une leon". Para no multiplicar intilmente os exemplos, limitar-me-ei a assinalar, ademais, os dois fatos seguintes: 0 Moskovski Telegraf, de N. Polevi, atraiu definitivamente as iras do governo de Nieolau e foi proibido, quando publicou uma crtica desfavorvel obra "patritica" de Kkolnik A Mo do Altssimo Salvou a Ptria. Mas quando o prprio N. Polevi escreveu as obras patriticas O Av da Frota Russa e O Mercador Igolkin, o imperador, segundo narra um irmo do autor, entusiasmou-se ante o talento dramtico do autor: " 0 dramaturgo disse tem dotes extraordinrios. Seu dever escrever, escrever e escrever. Isso o que deve fazer e no dedicar-se acrescentou sorrindo a editar revistas"(33). E no pensem que os governantes russos constituam em tal caso uma exceo. Nada disso. Um representante tpico do absolutismo, como Lus XIV de Frana, no estava menos convencido de que a arte no pode ser tun objetivo em si, mas deve coadjuvar na educao moral dos homens. Essa convico tivera profunda repercusso em tda a literatura e a arte da clebre poca de Lus XIV. Analogamente, Napoleo I tambm teria considerado a teoria da arte pela arte como uma daninha inveno de incmodos "idelogos." le tambm queria que a literatura e a arte estivessem a servio de objetivos morais. E em grande parte o conseguiu. Assim, por exemplo, a maioria dos quadros exibidos nas exposies peridicas daqueles tempos (os Sales), representavam as proezas blicas do consulado e do imprio. Seu "pequeno" sobrinho, Napoleo III, seguiu as pegadas do tio, ainda que com muito menos xito. le tambm queria que a arte e a literatura servissem ao que chamava moralidade. Em novembro de 1852, o Professor Laprade, de Lio, escreveu uma stira intitulada, Les Muses d'Etat, em que ridicularizava mordazmente essa tendncia bonapartista arte edificante, predizendo a pronta apario de uma poca em que as musas do Estado submeteriam a razo humana disciplinaclusivo dos eslavos: o regime comunal, a religio ortodoxa e a conjuno harmnica do poder czarista e do povo. Os eslavfilos eram inimigos da revoluo e combatiam o materialismo. Fazer retroceder tda a obra de Pedro: ao dizer "a obra de Pedro", Ostrovski referia-se atividade reformadora de Pedro I, sua luta contra o secular atraso russo, mediante a europeizao do pas. (33) Memrias de Xenofonte Polevi, So Petersburgo, Ed. Suvorin, 18888, pg. 445.

militar, o que significaria o triunfo da ordem, pois nenhum escritor se atreveria a exprimir o menor descontentamento. Il faut tre content s'il pleut, s'il fait soleil, S'il fait chaud, s'il fait froid: "Ayez le teint vermeil, Je dteste les gens maigres, face ple: Celui qui ne rit pas mrite qu'on l'empale" (34), etc. Direi, de passagem, que essa engenhosa stira valeu ao autor a perda de sua ctedra. 0 governo de Napoleto III no tolerava motejos custa das "musas do Estado"

(34) " preciso estar contente, chova ou faa sol, faa frio ou calor: Tende boas cores, que detesto gente magra e face plida; o que no ri merece ser empalado".

IiMas abandonemos as "esferas" governamentais. Entre os escritores franceses do segundo imprio h os que, ao rechaarem a teoria da arte pela arte, no o faziam devido a considerao de carter progressista. Assim, Alexandre Dumas, filho, afirmava categoricamente que as palavras "arte pela arte" no tinham qualquer sentido. Ao escrever O Filho Natural e o Pai Prdigo perseguia determinados objetivos sociais, pois considerava necessrio apoiar com suas obras a "velha sociedade", a qual, segundo as prprias palavras, rompia-se por todo os lados. Em 1857, Lamartine avaliava a obra literria de Alfredo de Musset, que acabava de morrer, lamentando-se de que esta no tivesse servido para exprimir f religiosa, social, poltica ou patritica, e reprovava aos poetas contemporneos haverem esquecido o sentido de suas obras em aras do metro e da rima. Finalmente, citarei uma figura literria de muito menor significao, Mximo Du Camp, que, condenando o apego exclusivo forma, exclamava: La forme est belle, soit! quand Vide est au fond! Qu'est-ce donc qu'un beau front qui n'a pas de cervelle?{ 35) E tambm ataca o chefe da escola romntica na pintura, porque, "como certos literatos que criaram a arte pela arte, o Senhor Delacroix inventou a cr pela cor. A histria e a humanidade no so para le mais do que um pretexto para combinar matizes bem escolhidos". Segundo sse mesmo escritor,(35) A forma bela quando no fundo h uma idia. Que cale fronte bela, se no h m.iolo atrs dela?

os tempos da escola da arte pela arte passaram para sempre(36). Lamartine e Du Gamp so to pouco suspeitos de tendncias subversivas como Alexandre Dumas, filho. Se rechaavam a teoria da arte pela arte no era porque quisessem substituir a ordem burguesa por um nvo regime social, mas porque queriam robustecer as relaes burguesas, sensivelmente quebrantadas pelo movimento emancipador do proletariado. Nesse aspecto, diferenavam-se dos romnticos, e em particular dos parnasianos e primeiros realistas, nicamente por lhes convir, muito mais que a les, o gnero de vida burgus. Em face dos mesmos problemas, uns eram otimistas conservadores, enquanto outros eram, de igual modo, pessimistas conservadores. De tudo isso se depreende claramente que a concepo utilitarista da arte se compagina to bem com o esprito conservador quanto com o esprito revolucionrio. A nica cousa que pressupe necessariamente a tendncia a esta concepo um intersse vivo e ativo por determinada ordem ou ideal social, qualquer que seja, e desaparece, sempre que por uma ou outra causa desaparece dito intersse. Prossigamos agora, e vejamos qual dessas duas concepes opostas favorece mais o progresso da arte. A exemplo do que ocorre com os demais problemas da vida social e do pensamento social, ste no admite soluo absoluta. Tudo depende das condies de tempo e lugar. Recordemos Nicolau I e seus lacaios . Eles queriam converter Pushkin, Ostrovski e outros artistas da poca em servidores da moral, tal como a entendia o corpo de gendarmes. Suponhamos por um momento que tivessem logrado realizar sse firme propsito. Qual teria sido o resultado? A resposta no difcil. As musas dos artistas, submetidas at ento a sua influncia, ter-se-iam convertido em musas do Estado; teriam mostrado os mais evidentes sinais de decadncia e perdido grande parte de sua veracidade, vigor e fora de atrao. A poesia da Pushkin Aos Caluniadores da Rssia no se pode situar entre suas melhores criaes poticas. A obra de Ostrovski No te Metas em. Tren Alheio benvolamente reconhecida como "lio til", tampouco algum(36) Ver a respeito o excelente livro de A. Cassangne La Thorie de l'Art pour l'Art en France chez les Derniers Romantiques et les Premiers Ralistes, Paris, 1906, pgs. 96-105.

primor. E no obstante, nela Ostrovski apenas d uns passos em direo quele ideal por cuja realizao anelavam os Benkendorf, os Shirinski-Shikhmtov e demais partidrios de sua prpria corte da arte utilitria. Suponhamos, ademais, que Tefilo Gautier, Teodoro de Banville, Leconte de Lisle, Baudelaire, os irmos Concourt, os parnasianos e os primeiros realistas franceses houvessem aceitado o meio burgus que os rodeava e psto suas musas a servio daqueles senhores que, segundo a expresso de Banville, sobrepunham a tudo a pea de cinco francos. Qual teria sido o resultado? A resposta no oferece dificuldades. Os romnticos, os parnasianos e os primeiros realistas franceses decairiam consideravelmente. Suas obras apresentar-se-iam muitos menos vigorosas, muito menos verazes e muito menos atraentes. Que obra possui maior mrito artstico: Madame Bovary, de Flaubert, ou Le Gendre de Monsieur Poirier, de Augier?(37) A pergunta parece-me ociosa. No se trata unicamente de diferena de talento. A vulgaridade dramtica de Augier, verdadeira apoteose de moderao e escrupulosidade burguesas, pressupe necessariamente outros recursos criadores que os utilizados por Flaubert, os Goncourt e outros realistas que viravam as costas, de modo desprezativo, a essa moderao e escrpulo. Finalmente, a circunstncia de que uma dessas correntes literrias atrasse mais autores de talento que a outra, tinha tambm suas causas. Que demonstra tudo isso? _ _ Demonstra que o mrito de uma obra artstica depende em ltima instncia da riqueza de seu contedo, cousa que de modo algum aceitaram os romnticos, como Tefilo Gautier. ste dizia que a poesia no s nada demonstra, mas sequer diz alguma cousa, e que a beleza de um verso depende de sua musicalidade, de seu ritmo. Mas isso um profundo rro. O que ocorre justamente o contrrio: a obra potica, e em geral a obra artstica sempre dwem algo, porque sempre exprimem algo. "Dizem", claro est, sua maneira. O artista exprime sua idia por meio(37) Emile Augier (1820-1889) Dramaturgo francs, nascido em Valence, criador de peas de sentido social. Alm do drama citado, autor das seguintes obras: Matre Gurin, Le Fils de Giboyer, Les Lionnes Pauvres, Les Effronts, L'Aventurire, e Les Fouchambault (N. do T.)

de imagens, enquanto o publicista demonstra seu pensamento mediante dedues lgicas. E se um escritor, em lugar de operar com imagens, recorre aos argumentos lgicos ou se utiliza das imagens para demonstrar uma questo determinada, ento no se trata de um artista, mas de um publicista, mesmo no caso em que no escreva ensaios ou artigos, mas novelas, relatos ou obras de teatro. Tudo isso evidente, mas da no se deduz que a idia no tenha importncia em uma obra artstica. E mais: no possvel obra artstica sem contedo ideolgico. Inclusive as obras dos autores que se preocupam exclusivamente com a forma, sem fazer caso do contedo, exprimem, em que pese a tudo e de uma ou de outra maneira, uma idia. Gautier, que se no preocupava com o contedo ideolgico de suas obras poticas, assegurava, como vimos, que estava disposto a sacrificar seus direitos polticos de cidado francs pelo prazer de ver um quadro autntico de Rafael ou uma bela mulher nua. Um estava ligado estreitamente ao outro: sua preocupao exclusiva pela forma determinava-se pela indiferena ante as questes sociais e polticas. As obras cujos autores s se preocupam com a forma exprimem sempre determinada atitude irremediavelmente negativa desses mesmos autores ante o meio social que os rodeia. a que reside a idia comum a todos les e que cada qual exprime de modo diferente. Mas se no h obra artstica que carea por completo de contedo ideolgico, nem toda idia pode ser expressa em obra de arte. Ruskin diz muito bem que uma jovem pode cantar o amor perdido, mas um avarento no pode cantar o dinheiro perdido. E observa com muita justeza que o mrito de uma obra de arte depende da elavao dos sentimentos que exprime. w Interrogue-se voc diz a respeito de qualquer sentimento que o domine fortemente: pode tal sentimento ser cantado por um poeta? Pode servir-lhe de verdadeira inspirao? Se a resposta positiva, ento se trata de um sentimento nobre. Se no pode ser cantado ou se apenas inspira zombaria, porque se trata de sentimento inferior". Nem poderia ser de outro modo. A arte um dos meios de comunicao espiritual entre os homens. E quanto mais elevado o sentimento expresso pela obra de arte, tanto melhor pode ela desempenhar, em igualdade com as demais circunstncias, seu papel de meio de comunicao. Por que o avarento no pode cantar o dinheiro perdido? Simplesmente porque, se cantasse a perda do dinheiro, sua cano no comoveria ningum, isto , no serviria de meio de comunicao com os demais homens.

Poderia algum citar as canes guerreiras e perguntar: Acaso a guerra serve de comunicao entre os homens? Responderei que a poesia de guerra, ao exprimir o dio ao inimigo, exalta ao mesmo tempo a abnegao dos guerreiros, sua disposio de morrer pela ptria, pelo Estado, etc. E, precisamente na medida em que essa poesia exprime tais sentimentos, serve de meio de comunicao entre os homens dentro de certos limites (tribo, comunidade, Estado) cuja amplitude depende do nvel de desenvolvimento cultural alcanado pela humanidade, ou mais exatamente, pela parte concreta da humanidade. I. S. Turguniev, que detestava os defensores da concepo utilitarista da arte, disse certa vez: "A Vnus de Milo mais indiscutvel que os princpios de 1789". E tinha absoluta razo. Mas que se deduz disso? Algo muito diferente do que I. S. Turguniev queria demontrar. No mundo h muitas pessoas que no s "discutem" os "princpios" de 1789, como sequer tm a menor noo deles. Perguntai a um hotentote, que no passou pela escola europia, qual sua opinio acrca de tais princpios. Ficareis convencidos de que o hotentote nunca ouviu falar dles. Mas o hotentote no s desconhece os princpios de 1789, como tambm a Vnus de Milo. E se a visse, sem dvida a "discutiria". le possui seu ideal de beleza, cuja representao se encontra freqentemente nas obras de antropologia com o nome de Vnus hotentote. A Vnus de Milo oferece um atrativo "indiscutvel", mas s para uma parte dos homens de raa branca, para os quais efetivamente mais indiscutvel que os princpios de 1789. A que isso se deve? nicamente, a que ditos princpios exprimem relaes que s correspondem a determinada fase do desenvolvimento da raa branca poca da afirmao do regime em sua luta contra o regime feudal(38) ao passo(38) O artigo 2 da Dclaration des Droits de L'Homme et du Citoyen aprovada pela Assemblia Constituinte Francesa nas sesses de 20 a 26 ae agosto de 1789, diz: "Le hut de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l'homme. Ces droits sont: la libert, la proprit, la sret et la rsistance l'oppression". ("O objetivo de tda associao poltica manter os direitos naturais e imprescritveis do homem. sses direitos so a liberdade, a propriedade, a segurana e a resistncia opresso"). A preocupao pela propriedade revela o carter burgus da revoluo que se estava realizando, e o reconhecimento do direito de "resistncia opresso" mostra que a revoluo ainda se estava realizando, mas no havia

que a Venus de Milo representa um ideal da beleza feminina que corresponde a muitas fases dsse mesmo desenvolvimento, A muitas, mas no a todas. Os cristos tinham seu ideal de beleza feminina. sse ideal podemos v-lo nos cones bizantinos. bem notrio que os adoradores desses cones consideram "discutveis" a Vnus de Milo e outras Vnus, as quais qualificavam de diabas e destruam sempre que podiam. Mas poca veio em que as diabas da antigidade voltaram a agradar aos homens de raa branca. Preparou o advento dessa poca a luta da libertao dos habitantes das cidades da Europa Ocidental, isto , precisamente aqule movimento que encontrou sua mais clara expresso nos princpios de 1789. Por isso, podemos dizer em que pese a Turguniev que a Vnus de Milo ia sendo tanto mais "indiscutvel" na nova Europa quanto mais amadurecia a populao europia a proclamar os princpios de 1789. No se trata de um paradoxo, mas de um fato histrico puro e simples. Tda a significao da histria da arte na poca do Renascimento do ponto de vista do conceito de beleza reside no fato de que o ideal monstico cristo de beleza humana vai sendo relegado, pouco a pouco, a segundo plano, por um ideal terreno, cuja origem se deve ao movimento de libertao das cidades e cuja colaborao se viu facilitada pela recordao das diabas da antigidade. J Bielinski, que no ltimo perodo de sua atividade literria havia dito com tda a razo que "o puro, o abstrato, o no condicionado, ou, como dizem os filsofos, o absoluto, jamais existiu em qualquer parte", admitia, no obstante, que "as obras pictricas da escola italiana do sculo XVI se aproximavam em certo grau do ideal de arte absoluto", pois foram criao de uma poca durante a qual "a arte constitui o principal e nico intersse da parte mais culta da sociedade" (39). E cita, como exemplo, a Madona, de Rafael, obra mestra da pintura italiana do sculo XVI, isto , a Madona Sixtina, que se conserva na galeria de Dresde. Mas as escolas italianas do sculo XVI representam o trmo de uma longa luta entre o ideal terreno e o ideal monstico cristo. E por exclusivo que fra o intersterminado e enfrentava a forte resistncia da aristocracia secular e togada. Em junho de 1848 a burguesia francesa j no reconhecia ao cidado o direito de resistncia opresso. (39) Ver V. G. Bielinski - Obras Filosficas Escolhidas, Edit, de Literatura Poltica do Estado, Moscou, 1941, pg. 403.

se da parte mais culta da sociedade do sculo XVI pela arte (40), indubitvel que as madonas de Rafael constituem uma das mais tpicas expresses artsticas do triunfo do ideal terreno sobre o ideal monstico cristo, O mesmo cabe dizer, sem o menor exagero, inclusive das madonas que foram pintadas na poca em que Rafael se encontrava submetido influncia de seu mestre Perugino e cujas fisionomias refletem aparentemente sentimentos puramente religiosos. Atrs da aparncia religiosa transluz tal vigor e uma alegria to loua de vida puramente terrenal, que nelas j no resta nada que recorde as piedosas virgens dos mestres bizantinos(41). As obras dos artistas italianos do sculo XVI tinham to pouco que ver com a "arte absoluta" quanto as obras de todos os mestres precedentes, desde Cimabue e Duccio Di Buoninsegna. Tal arte no existiu efetivamente em qualquer parte. E se Turguniev refere-se a Vnus de Milo como a um produto dessa arte absoluta, isso se deve exclusivamente a que, como todo os idealistas, interpretava de modo errneo o curso real do desenvolvimento esttico da humanidade. O ideal de beleza que impera em momento dado em determinada sociedade ou em determinada classe da sociedade depende em parte das condies biolgicas do desenvolvimento do gnero humano, que so as que determinam, entre outras cousas, as peculiaridades raciais; e em parte, das condies his tricas em que surgiu e existe essa sociedade ou classe. E por isso, precisamente, dito ideal sempre muito rico de contedo inteiramente condicionado e nada absoluto. Quem rende culto "beleza pura" nem por isso se liberta das condies biolgicas e histrico-sociais que determinaram seus gostos estticos. cerrar mais ou menos conscientemente os olhos a tais condies. Isso o que ocorreu aos romnticos, entre outros, a Tefilo Gautier. Dissera eu que seu intersse exclusivo pela forma da obra potica se encontrava em estreita relao causai com sua indiferena social e poltica.(40) Seu carter exclusivo, que no pode ser negado, significava to somente que no sculo XVI existia um divrcio irremedivel entre as pessoas que amavam a arte e o meio social que as rodeava. sse divrcio tambm deu lugar ento tendncia da arte pura, isto , da arte pela arte. Em pocas anteriores, como por exemplo nos tempos de Giotto, no existiram sse divrcio nem essa tendncia. (41) significativo que o prprio Perugino fsse considerado suspeito de atesmo por seus contemporneos.

Essa indiferena elevava-lhe o valor das obras poticas, porquanto o preservava da vulgaridade, da moderao e da escrupolosidade burguesas. Mas ao mesmo tempo reduzia sse mesmo valor, pois lhe limitava o horizonte e o impedia de assimilar as idias avanadas de sua poca. Tomemos o j conhecido prefcio a Mademoiselle de Maupin, onde ataca com um arrebatamento quase infantil os defensores da concepo utilitarista da arte. "Deus meu exclama Gautier que cousa nscia essa pretensa perfectibilidade do gnero humano com que nos aturdem os ouvidos! Dir-se-ia, em verdade, que o homem uma mquina suscetvel de ser melhorada, e que uma engrenagem melhor ou um contrapso colocado de maneira mais conveniente podem faz-la funcionar com mais facilidade" (42). Para demonstrar que no era assim, Gautier citava o Marechal De Bassompierre, que bebia de um trago a bota cheia de vinho sade dos treze cantes. E assinala que seria to difcil superar o gesto dsse marechal, no que bebida se refere, como a um contemporneo nosso ganhar em capacidade digestiva a Mlon de Crotona, que era capaz de comer um boi inteiro. Essas observaes, em si muito justas, so tpicas quando se consideram as teorias da arte pela arte, do modo por que so expostas pelos romnticos conseqentes. de perguntar-se: Quem inculcou a Gautier essas doutrinas acrca da perfectibilidade do gnero humano? Os socialistas, e em especial os partidrios de Saint-Simon, muito populares na Frana poca que precedeu a apario de Mademoiselle de Maupin. Contra les so dirigidas essas observaes em si muito justas a respeito da dificuldade de superar o Marechal de Bassompierre, embriagado, ou Mlon de Crotona, em voracidade. Mas stes reparos, em si justos, ficam totalmente fora de lugar quando dirigidos contra os saint-simoniens. A perfeio do gnero humano, de que falavam os seguidores de Saint-Simon, nada tem a ver com o aumento da capacidade do estmago. Os saint-simoniens referiam-se melhoria da organizao social em benefcio da parte mais numerosa da populao de sua parte produtiva, isto , dos trabalhadores. Qualificar de necessidade semelhante tarefa e perguntar se realizada far com o que homem seja capaz de encharcar-se mais de vinho ou de empanturrar-se de(42) Mademoiselle de Maupin, prefcio, pg. 23. 36 George Plekhanov

carne, dar mostras daquela limitao burguesa que mexia com os brios dos jovens romnticos. Gomo pde ocorrer isso? Como pde a limitao burguesa infiltrar-se no raciocnio de um escritor, para quem todo o sentido da existncia residia numa luta de vida e morte contra essas mesmas limitaes burguesas? m mais de uma ocasio, ainda que por outro motivo, respondi a esta pergunta ao comparar as idias dos romnticos com as de Davi e seus amigos. Disse que os romnticos, ao mesmo tempo em que se sublevavam contra os gostos e costumes dos burgueses nada tinham a objetar contra o regime social burgus. Agora, devemos analisar mais detalhadamente essa questo. Alguns ramntcos, como George Sand na poca de sua amizade com Pedro Leroux simpatizavam com o socialismo. Mas eram exceo. Geralmente, os romnticos, que se erguiam contra a vulgaridade burguesa, eram tambm inimigos dos sistemas socialistas, que mostravam a necessidade de uma reforma social. Os romnticos queriam mudar os costumes da sociedade, sem mexer no regime social, o que, evidentemente, de todo impossvel. Por isso, a insurreio dos romnticos contra os "burgueses" teve to poucas conseqncias prticas como o desprzo das "raposas" de Goettingen ou de Iena pelos filisteus. Dita insurreio foi completamente estril do ponto de vista prtico. Mas essa esterilidade prtica teve conseqncias literrias bastante importantes, pois imprimiu aos heris romnticos sse carter irreal e artificioso que no fim de contas conduziu ao desmoronamento dessa escola. 0 carter irreal e artificioso dos personagens no pode ser aceito de modo algum como mrito de uma obra de arte, pelo que, a par do aspecto positivo apontado mais acima, devemos indicar agora um aspecto negativo: ainda que tenha sido muito o que ganharam as obras de arte romnticas com a insurreio de seus autores contra os "burguesesde outra parte perderam bastante, em conseqncia da vacuidade prtica dessa insurreio. Os primeiros realistas franceses esforaram-se por suprimir o principal defeito das obras romnticas: o carter irreal e artificioso de seus personagens. Na obras de Flaubert (com exceo, talvez de Salamb e Contos), no h sombra da irrealidade e artificialismo dos romnticos. Os primeiros realistas tambm se sublevam contra os "burgueses", mas fazem-no

sua maneira. No opem aos vulgares burgueses, heris imaginrios, mas procuram criar fiis imagens artsticas desses mesmos tipos vulgares. Flaubert considarava de seu dever tratar o meio social que descrevia, com a mesma objetividade com que um naturalista se situa ante a natureza. " preciso ver os homens diz como se vem os mastodontes e os crocodilos. caso pode algum entusiasmar-se com as prsas daqueles ou as mandbulas dstes? preciso mostr-los, convert-los em espantalhos, met-los em frascos de lccol, e nada mais. Mas no lanceis condenaes morais, pois quem sois vs, rs insignificantes?" Na medida em que Flaubert lograva ser objetivo, os tipos apresentados em suas obras adquiriam a significao de "documentos", cujo estudo absolutamente indispensvel para todo aqule que queira fazer um estudo cientfico dos fenmenos de psicologia social. A objetividade era o lado forte de seu mtodo, mas ainda sendo objetivo no processo da criao artstica, Flaubert no deixava de ser muito subjetivo na apreciao dos movimentos sociais de sua poca. Tanto le como Gautier desprezavam profundamente os "burgueses", mas ao mesmo tempo eram acrrimos inimigos de todos os que de um modo ou de outro atentassem contra as relaes sociais burguesas. E o prprio Flaubert, mais do que Gautier. Flaubert era decididamente contra o sufrgio universal, que qualificava de "vergonha da inteligncia humana". "Com o sufrgio universal escrevia a George Sand o nmero prevalece sobre a inteligncia, a instruo, a raa e inclusive o dinheiro, que vale mais que o nmero." Em outra carta diz que o sufrgio universal mais estpido que o direito divino. Para le, a sociedade socialista um monstro enorme que devorar tda ao individual, tda personalidade, todo pensamento, que tudo dirigir e tudo far por si s. Vemos por isso que sua atitude negativa ante a democracia e o socialismo faria coincidir sse detrator dos "burgueses" com os mais limitados idelogos da burguesia. E sse mesmo trao se observa em todos os partidrios da arte pela arte, contemporneos de Flaubert. Em um ensaio sobre a vida de Edgar Poe, Baudelaire, que desde muito esquecera seu revolucionrio Salut Public, diz: "Em um povo sem aristocracia, o culto da beleza s pode corromper-se, diminuir e desaparecer". Em outro lugar afirma que s existem trs sres dignos de respeito: "o cura, o soldado e o poeta". Isso j no esprito conservador, mas reacionrio. To reacionrio quanto le, era Barbey d'Aurvilly. Em seu livro Les

Poetes refere-se s obras poticas de Laurent-Pichat e diz que este poderia ter sido um grande poeta "se tivesse tomado a deciso de pisotear o atesmo e a democracia, esses dois oprbrios (ces deux dshonneurs ) do pensamento"(43). Desde que Tefilo Gautier escrevera seu prefcio a Mademoiselle de Maupin (maio de 1835), correra muita gua. Os saint'simoniens , que, segundo suas palavras, lhe haviam atordoado os ouvidos com seus propsitos acerca da perfectibilidade do gnero humano, proclamavam aos gritos a necessidade de uma reforma social. Mas, do mesmo modo que a maioria dos socialistas utpicos eram les decididos partidrios de um desenvolvimento social pacfico, e, portanto, adversrios no menos decididos da luta de classes. Alm disso, os socialistas utpicos se dirigiam sobretudo aos bem acomodados. No acreditavam na atuao independente do proletariado. Mas os acontecimentos de 1848 demonstraram que essa situao independente podia chegar a ser muito ameaadora. Depois de 1848 j se no apresentava a questo de se as classes possuidoras queriam ou no encarregar-se de melhorar a sorte dos despossudos, mas de quem possuidores ou desprotegidos haveria de triunfar na luta travada entre uns e outros. As relaes entre as classes da nova sociedade se haviam simplificado de modo extraordinrio. Ento, todos os idelogos da burguesia compreenderam que o de que se tratava era de saber se essa classe conseguiria manter as massas trabalhadoras sob o jugo econmico. A conscincia dsse fato calara na mente dos partidrios da arte para os ricos. Ernesto Renan, um dos mais notveis dentre les por sua significao cientfica, exigia em sua obra La Reforme Intelectuelle et Morale um governo forte "que obrigue os bons aldees a realizar parte do trabalho enquanto ns especulamos "(44). Os idelogos da burguesia compreendiam, com muito mais clareza que dantes, o significado da luta entre a burguesia e o proletariado, e sse fato no podia deixar de influir de modo extraordinrio sobre a natureza das "especulaes" a que se entregavam sses idelogos. O Eclesiastes diz muito bem: "A calnia perturba o prprio sbio". Ao descobrir o segredo da(43) Obra cit., 1893, pg. 260. (44) Citado por Cassangne em seu livro, La Thorie de Art pour l'Art chez les Derniers Romantiques et les Premiers Ralistes, pgs. 194195.

luta entre sua classe e o proletariado, os idelogos burgueses perderam gradualmente a capacidade de analisar serena e cientificamente os fenmenos sociais, o que reduziu grandemente o valor intrnseco de seus trabalhos mais ou menos cientficos. Se antes a economia poltica burguesa pudera produzir um gigante do pensamento cientfico, como Davi Ricardo, agora, os que pontificam entre seus representantes so uns insignificantes palradores do tipo de Frederico Bastiat. Na filosofia, firmava-se gradualmente a reao idealista, cuja essncia consiste na tendncia conservadora a conciliar os progressos das cincias naturais modernas com a velha tradio religiosa, ou mais exatamente, a conciliar o oratrio com o laboratrio (45). A arte, tampouco, deixou de seguir o destino comum. E veremos mais adiante a que absurdos ridculos chegou a influncia da atual reao idealista em certos pintores ultramodernos. Por ora limito-me a dizer o seguinte: 0 modo de pensar conservador e em parte reacionrio dos primeiros realistas no os impediu de estudar a fundo o meio circundante e criar obras de grande valor artstico. Mas no h dvida de que limitou consideravelmente seu campo visual. Ao voltar as costas, hostilmente, ao grande movimento emancipador de sua poca, excluram dentre os "mastodontes" e "crocodilos" submetidos sua observao, os exemplos mais interessantes e de vida interior mais pletrica. Sua atitude objetiva diante do meio estudado por eles, significava a rigor uma ausncia de simpatia para com sse meio. E era natural que no sentissem simpatia pelo que, dado seu conservadorismo, era o nico que podiam observar: as "idias mesquinhas" e as "pequenas paixes" engendradas no "lodo impuro"(46) da(45) "On peut, sans contradiction, aller successivement son laboratoire et son oratoire." ("Pode-se, sem contradio, ir sucessivamente ao oratrio e ao laboratrio") dizia h alguns anos Grasset, professor de medicina clinica de Montpellier. Essa sentena foi repetida com entusiasmo por tericos do tipo de Jlio Soury, autor do Brviaire de l'Histoire du Matrialisme, escrito segundo o esprito do clebre trabalho de Lange sbre o mesmo tema. (Ver o artigo, Oratoire et Laboratoire na recopilao de Soury, Campagnes Nationalistes, Paris, 1902, pgs. 233-266 ). Ver na mesma recopilao o artigo, Science et Religion, cuja idia mestra encontra sua expresso nas clebres palavras de Du Bois-Reymond: ignoramus et ignorabimus. (46) As palavras aspadas so da poesia de Nelcrssov, Cavaleiro por uma Hora.

quotidiana existncia burguesa. Mas essa falta de simpatia pelos objetos observados e representados ocasionou logo, como no podia deixar de suceder, a perda de intersse por essa existncia. O naturalismo, fundado por les com suas magnficas obras, encontrou-se em pouco, segundo a expresso de Huysmans, em um "beco sem sada, em um tnel fechado". Tudo podia chegar a ser objeto de estudo, at a sfilis, como dizia Huysmans(47). No obstante, o movimento operrio contemporneo era inacessvel para le. Sei, certamente, que Zola escreveu Germinal. Mas, deixando de lado os aspectos dbeis dessa novela, no se deve esquecer que Zola se bem comeasse a inclinar-se, como dizia, para o socialismo, seu chamado mtodo experimental foi sempre muito pouco apropriado para o estudo e a representao artstica dos grandes movimentos so-

ciais. sse mtodo achava-se ligado do modo mais estreito quele matrialisme, que Marx denominou materialismo naturalista, o qual no compreende que as aes, as tendncias, os gostos e os costumes da mente social no podem encontrar uma explicao satisfatria na fisionomia ou na patologia, j que esto determinados pelas relaes sociais. Fiis a sse mtodo, os artistas podiam estudar e representar seus " mastodontes" e "crocodilos" como indivduos, mas no como membros de um grande todo. E Huysmans dava-se conta disso quando dizia que o naturalismo se metera em um beco sem sada, e que o nico que lhe restava era narrar uma vez mais os amores da tendeira com o taberneiro da esquina (48). sse tipo de relato s podia despertar intersse no caso de que pusesse de manifesto certo aspecto das relaes sociais, como ocorreu com o realismo russo. Mas o intersse social se encontrava ausente nos realistas franceses. Da a razo por que os "amores da tendeira com o taberneiro da esquina" perdessem todo o intersse e se fizessem desagradveis, e at repulsivos. O prprio Huysmans foi um naturalista puro em suas primeiras obras, como na novela Les Soeurs Vatard. Mas se cansou de apresentar "os sete pecados capitais" (so palavras suas) e renunciou ao naturalismo. Como dizem os alemes, com a gua da banheira atirou fora tambm a criana. Em Rebours, novela estranha, de passagens(47) Aluso de Huysmans novela Les Virus d'Amour, do belga Tabarant. (48) Ver Jules Huret, Enqute sur Vvolution Littraire, pgs., 176-177.

extraordinariamente aborrecidas, mas cujos defeitos a tornam sumamente instrutiva, Huysmans apresenta, ou melhor, inventa, no personagem Des Esseintes, uma espcie de super-homem (um aristocrata completamente degenerado), cuja vida deve representar, tda ela, a negao completa da vida do '"taberneiro" e da "tende ir a". A criao de tipos tais confirma ainda o pensamento de Leconte de Lisle de que, quando no h vida real, a misso da poesia criar a vida ideal. Mas a vida ideal de Des Esseintes era to vazia de contedo humano que sua criao no oferecia a menor escapatria ao beco sem sada. E Huysmans caiu no misticismo, que foi a sada "ideal" para uma situao da qual era impossvel sair por uma via "real". Em tais circunstncias, era o mais lgico. Muito bem, veja-se o que acontece. 0 artista que se torna mstico no despreza o contedo ideolgico, mas lhe d um carter particular. O misticismo tambm uma idia, mas uma idia obscura, amorfa como a nvoa e em luta mortal com a razo. O mstico no s est disposto a relatar, mas a demonstrar. E o que relata algo fantstico, e em suas demonstraes toma como ponto de partida a negao do senso comum. O exemplo de Huysmans mostra uma vez mais que a obra de arte no pode prescindir do contedo ideolgico. Mas quando os artistas perdem a capacidade de ver as mais importantes correntes sociais de sua poca, reduz-se consideravelmente o valor intrnseco das idias expressas por les em suas obras, o que inevitavelmente redunda em prejuzo destas ltimas. sse fato tem tanta importncia para a histria da arte e da literatura que se impe examin-lo de vrios ngulos. Mas antes disso, faremos um balano das concluses a que chegamos depois do estudo precedente. A tendncia arte pela arte surge e se afirma quando existe divrcio irremedivel entre as pessoas que se dedicam arte e o meio social que as rodeia. sse divrcio repercute favoravelmente na criao artstica na medida exata em que ajuda os artistas a se situarem acima do meio ambiente. Assim aconteceu com Pushkin, na poca de Nicolau I. Assim aconteceu com os romnticos, os parnasianos e os primeiros realistas, na Frana. Multiplicando os exemplos, poder-se-ia demonstrar que sempre isso acontece quando existe tal divrcio. No obstante, ao mesmo tempo em que se sublevavam contra a vulgaridade dos costumes do meio social que os envolvia, os romnticos,42 George Plekhanov

os parnasianos e os realistas nada tinham a manifestar contra as relaes sociais que constituam a base dsses costumes vulgares. Ao contrrio, enquanto maldiziam os "burgueses", tinham em grande apreo o regime burgus, primeiro, instintivamente, e depois, com plena conscincia. E quanto mais fora ia ganhando na nova Europa o movimento de emancipao dirigido contra o regime burgus, mais consciente se ia tornando o apego que os partidrios franceses da arte pela arte manifestavam para com o regime. E quanto mais consciente era sse apgo, menos podiam permanecer indiferentes ante o contedo ideolgico de suas obras. Mas sua cegueira em face da nova corrente dirigida no sentido de renovar a vida social fazia com que suas concepes fossem errneas, limitadas e unilaterais e diminua a qualidade das idias expressas em suas obras. Tudo isso teve como conseqncia natural a situao desesperada do realismo francs que provocou arrebatamentos decadentes e uma tendncia ao misticismo em escritores que haviam passado pela escola realista {naturalista ). Comprovaremos com mais detalhes a concluso no artigo seguinte. E como hora de concluir, direi, para terminar, algumas palavras acrca de Pushkin. Quando seu "poeta" se volta contra a "plebe", percebemos em suas palavras uma grande clera, mas no encontramos qualquer vulgaridade, por muito que fale D. I. Pssarev(49). O poeta condena a multido mundana precisamente esta e no o verdadeiro povo, que fica totalmente margem do campo visual da literatura russa da poca por preferir a panela ao Apoio do Belvedere. Isso quer dizer que lhe era insuportvel seu estreito esprito prtico. E nada mais. Nega-se resolutamente a educar a multido, mas isso no revela seno sua absoluta falta de f, sem qualquer matiz reacionrio. E essa a enorme vantagem de Pushkin em face dos defensores da arte pela arte, como Gautier. A vantagem , no obstante, relativa. Pushkin no zombava dos saint-simoniens. Mas duvidoso que tivesse ouvido falar dles(50). Era um homem honrado e generoso. Mas sse homem honrado e generoso assimilara desde a infncia certos preconceitos de classe. A su( 49 ) Referncia ao artigo de D. I. Pssarev Pushkin e Bielnski (1865). (50) Comprovou-se, posteriormente, que Pushkin conhecia as obras dos saint-simoniens.

presso da explorao de uma classe por outra devia parecer-lhe utopia irrealizvel e at ridcula. Se houvesse conhecido alguns planos prticos para pr fim a essa explorao, e sobretudo se esses planos tivessem provocado tanto alvoroo na Rssia como os dos saint-simoniens na Frana, provvel que tivesse investido contra les em violentos artigos polmicos e em irnicos epigramas. Algumas observaes em seu artigo, Pensamento no Caminho sbre a vantajosa situao do campons servo russo frente do operrio da Europa Ocidental obriga-nos a pensar que no caso indicado o inteligente Pushkin poderia ter raciocinado com to pouca sorte como raciocinava o incomparvelmente menos inteligente Gautier. O atraso econmico da Rssia salvou-o de cair nessa possvel debilidade. uma velha histria, mas eternamente nova. Quando uma classe vive da explorao de outra classe situada em graus mais baixos da escala econmica, e quando aquela logrou dominar por completo na sociedade, todo avano que faz representa uma incurso para baixo. dsse modo que se explica o fenmeno, primeira vista incompreensvel e at incrvel, de que nos pases economicamente atrasados a ideologia das classes dominantes seja amide muito mais elevada do que nos pases avanados. A Rssia tambm alcana, agora, sse nvel de desenvolvimento econmico em que os partidrios da teoria da arte pela arte se convertem em defensores conscientes de um regime social baseado na explorao de uma classe por outra. Por isso, tambm, em nosso pas se dizem, agora, em nome da "autonomia absoluta da arte" tantas tolices reacionrias no campo social. Mas na poca de Pushkin, isso no acontecia, o que foi uma grande sorte para le.

IIIJ tive ocasio de dizer que no existe obra de arte que carea por completo de contedo ideolgico. E acrescentei que nem tda idia pode servir de base a uma obra de arte. S o que contribui para a comunicao entre os homens pode servir de verdadeira inspirao para o artista. Os limites possveis dessa comunicao no so determinados pelo artista, mas sim pelo nvel de cultura alcanado pelo todo social de que le faz parte. Mas na sociedade dividida em classes, isso depende tambm das relaes entre ditas classes e da fase de desenvolvimento em que no momento se encontra cada uma delas. Quando a burguesia mal comeava a libertar-se do jugo da aristocracia secular e togada, isto , quando era ela mesma uma classe revolucionria, ento arrastava tda a massa trabalhadora, que constitua com ela um mesmo esteio: o estado igual. Ento os idelogos avanados da burguesia eram tambm os idelogos avanados " de tda a nao, exceo dos privilegiados". Em outros trmos: naquela poca era relativamente muito amplo os limites de comunicao entre os homens, servindo de instrumento as obras dos artistas que adotavam o ponto de vista da burguesia. Mas quando os intersses da burguesia deixaram de ser os intersses de tda a massa trabalhadora, e em particular quando se chocavam com os intersses do proletariado, sses limites viram-se restringidos. Ruskin dizia que um avarento no pode cantar a perda de seu dinheiro; pois bem, havia chegado o momento em que o estado de nimo da burguesia se ia aproximando do avarento que chora seus tesouros perdidos. A diferena residia apenas em que o avarento chora uma perda que j teve lugar, ao passo que a burguesia perde sua tranqilidade de esprito ante a ameaa de uma perda futura. "A calnia direi com as palavras do Eclesiastes conturba o prprio sbio". sse mesmo

efeito nefasto exerceria sobre o prudente (insisto sobre a palavra prudente!) temor de perder a possibilidade de oprimir os outros. As ideologias da classe dominante perdem seu valor intrnseco medida que esta se aproxima do fim. A arte criada por suas emoes decai. 0 presente artigo tem por objetivo completar o que foi dito sobre a questo no artigo precedente, prosseguindo o exame de alguns dos sintomas mais evidentes, da atual decadncia da arte burguesa. Vimos como o misticismo penetrou na literatura francesa contempornea. A conscincia da impossibilidade de limitar-se a uma forma sem contedo, isto , sem idia, e mais a incapacidade de elevar-se at a compreenso das grandes idias emancipadoras de nossa poca, conduziram ao misticismo. E essa mesma conscincia e incapacidade trouxeram juntas tambm outras conseqncias que, analogamente ao misticismo, diminuem o valor intrnseco das obras de arte. 0 misticismo inimigo irreconcilivel da razo. Mas no s os que caem no misticismo esto em luta contra a razo. Tambm so hostis a ela os que por uma ou outra causa, de um modo ou de outro, defendem uma idia falsa. E quando se toma por base da obra de arte uma idia falsa, esta envolve contradies internas que diminuem inevitavelmente o valor esttico da obra de arte. Falei da pea Knut Hamsun, .s Portas do Reino, como exemplo de uma obra de arte diminuda pela falsidade de sua idia fudamental(51). O leitor perdoar-me- que volte a falar dela. Diante de ns, surge como heri dessa pea var Kareno, jovem escritor que talvez no tenha talento, mas que tem de sobra auto-suficincia. Diz ser um homem de "idias livres como um pssaro". Sobre que temas escreve sse pensador livre como um pssaro? Sobre a "resistncia". Sobre o "dio". A quem aconselha a que se resista? A quem ensina a odiar? Aconselha que se resista ao proletariado. Ensina a odiar o proletariado. No verdade que se trata de um heri totalmente novo? At agora, na literatura, havamos encontrado muitos poucos heris dsse tipo, para no dizer nenhum. Mas o homem que prega a resistncia ao proletariado o mais indubitvel idelogo da burguesia. var Kareno, ste idelogo da burguesia, considera(51) Ver o artigo de minha autoria, O Filho do Doutor Stockman, em minha recopilao, Da Defesa ao Ataque.

a si mesmo e considerado por seu criador, K n u t H a m s u n u m grande revolucionrio. J vimos no exemplo dos primeiros romnticos franceses que existem tendncias "revolucionrias", cujo principal trao o conservantismo. Tefilo Gautier odiava os "burgueses" e ao mesmo tempo investia contra os que diziam que chegara a hora de suprimir as relaes sociais burguesas. Evidentemente, var Kareno u m descedente espiritual do clebre romntico francs. No obstante, o descendente foi muito alm do ponto a que chegou seu antepassado. le odeia conscientemente aquilo que em seu antepassado despertava apenas hostilidade instintiva ( 5 2 ) . (52) Refiro-me poca em que Gautier ainda no desgastara seu famoso jaleco vermelho. Porteriormente, nos dias da Comuna de Paris, era j um inimigo consciente, e dos raivosos dos anelos de emancipao da classe trabalhadora. Cabe assinalar, tambm, que Flaubert pode ser considerado como um predecessor ideolgico de Knut Hamsun, e talvez at com maior motivo. Em um de seus livros de notas encontram-se estas linhas notveis: Ce n'est pas contre Dieu que Promthe aujourd'hui devrait se rvolter , mais contre le Peuple, dieu nouveaux. Aux vieilles tyrannies sacerdotales , fodales et monarchiques, on a succd une autre, plus subtile, inextricable, imprieuse et qui dans quelque temps ne laissera pas un seul coin de la terre qui soit libre" ("Hoje em dia, Prometeu no deveria sublevar-se contra Deus, mas contra o Povo, nvo deus. As velhas tiranias sacerdotais, feudais e monrquicas foram substitudas por outra tirania, mais sutil, inextricvel, imperiosa, que dentro de algum tempo no deixar na terra um s rinco livre"). Ver o captulo Les Carnets de Gustave Flaubert, no livro de Luis Bertrand, Gustave Flaubert, Paris, 1912, pg., 255. o mesmo pensamento, livre como um pssaro, que inspira a lvar Kareno. Em sua carta a George Sand, datada de 8 de setembro de 1871, Flaubert diz "Je crois que la foule, le troupeau, sera toujours hassable. Il n'y a d'important qu'un petit groupe d'esprits toujours les mmes et qui se repassent le flambeau". ("Creio que a multido, a manada, sempre ser odiosa. O nico que importa um pequeno grugo de espritos, sempre os mesmos que passam o facho uns aos outros. ) Na mesma carta encontram-se as linhas, por mim citadas mais acima, acerca do sufrgio universal, qualificado de vergonha do esprito humano, pois graas a le o nmero domina "at o dinheiro"l (Ver Flaubert, Correspondance, 4me. srie (1869-1880, Paris, 1910). var Kareno teria reconhecido certamente nesses conceitos suas idias livres como um pssaro. No obstante, no acharam ainda sua expresso direta nas novelas de Flaubert. A luta de classes na sociedade contempornea teve que dar um grande passo adiante antes que os idelogos da classe dominante sentissem a necessidade de exprimir diretamente na literatura dio aos anelos de amancipao do "povo". E aqules que com o tempo chegaram a sentir essa necessidade j no puderam defender a "auto-

Se os romnticos eram conservadores, var Kareno reacionrio da mais pura gua. E alm disso, um utopista do tipo daquele selvagem latifundirio de Schedrin(53). le quer exterminar o proletariado, como ste queria exterminar os mujiques. Essa utopia chega ao cmulo da comicidade. Ademais, tdas as "idias, livres como um pssaro", de var Kareno, chegam ao limite do absurdo. Para le o proletariado uma classe que explora as outras classes da sociedade. Esta a mais errnea de tdas as idias, livres como um pssaro, de Kareno. E a desgraa consiste em que, aparentemente, Knut Hamsun comparte a errnea idia de seu heri. Kareno sofre tdas as desventuras precisamente porque odeia o proletariado e "resiste" a le. Por isso no pode obter a ctedra e sequer editar seu livro. Em uma palavra, atrai tda uma srie de perseguies daqueles burgueses entre os quais vive e atua. Mas, em que parte do mundo, em que utopia vive essa burguesia que castiga to implacavelmente a "resistncia" ao proletariado? Tal burguesia no existiu nem pode existir em nenhuma parte. Knut Hamsun tomou como base de sua obra uma idia que est em contradio irreconcilivel com a realidade. E essa circunstncia prejudicou de tal modo sua obra, que esta provoca riso justamente naqueles trechos que, segundo a inteno do autor, deviam adquirir um sentido trgico. Knut Hamsun possui um grande talento, mas nenhum talento capaz de converter em verdade algo diametralmente oposto a ela. Os enormes defeitos do drama, s Portas do Reino, so uma conseqncia lgica da absoluta inconsistncia da idia que lhe serve de base. Essa inconsistncia devida incapacidade do autor de compreender o sentido da luta de classes na sociedade contempornea, luta da qual seu drama um eco literrio. Knut Hamsun no francs. Mas isso no muda a questo. 0 Manifesto do Partido Comunista j assinalava com muito acrto que nos pases civilizados, e em virtude do desenvolvimento do capitalismo, "a estreiteza e o exclusivismo nacionaisnomia absoluta" das ideologias. Ao contrrio: apresentaram s ideologias o objetivo consciente de servir de arma espiritual na luta contra o proletariado. Mas disso falarei mais adiante. (53) No conto, "O Latifundirio Selvagem", Saltikov-Schedrin pinta de forma satrica um homem que queria resolver o problema campons exterminando os mujiques.

tornam-se dia a dia mais impossveis; das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura universal". Certamente, Hamsun nasceu e se educou num pas da Europa Ocidental que est longe de pertencer aos pases mais desenvolvidos sob o aspecto econmico. Assim se explica, evidentemente, a ingenuidade verdadeiramente pueril de suas idias acerca da situao do proletariado combatente na sociedade em que vive. Mas o atraso econmico de sua ptria no o impediu de adquirir o mesmo ressentimento contra a classe operria e a mesma simpatia pela luta contra ela (pie agora aparecem logicamente entre a intelectualidade burguesa dos pases mais avanados. var Kareno no mais que uma variedade do tipo nietzschiano. E que o nietzschianismo? uma nova edio, corrigida e aumentada, de acordo com as exigncias do perodo mais moderno do capitalismo, de algo que j conhecemos bem: aquela luta contra os "burgueses" que se compaginava perfeitamente com uma inquebrantvel simpatia pelo regime burgus. E o exemplo de Hamsun pode muito bem ser substitudo por outros tomados literatura francesa contempornea. Francisco De Curei sem dvida alguma um dos dramaturgos de maior talento e de idias mais profundas o que no caso ainda mais importante da Frana de hoje. Seu drama em cinco atos, Le Repas du Lion, que deve ser reconhecido sem a menor vacilao como a mais digna de destaque entre tdas as suas obras, atraiu muito pouco a ateno da crtica russa. Em virtude de algumas circunstncias excepcionais de sua infncia, o personagem central da pea, Jean de Sancy, em dado momento se sente interessado pelo socialismo cristo. Depois, rompe resolutamente com ste e se converte em eloqente defensor da grande produo capitalista. Na terceira cena do quarto ato pronuncia um discurso para demonstrar aos operrios que "o egosmo dedicado produo (Vgoisme qui produit) para a massa trabalhadora o mesmo que a caridade para o pobre". E como os que o ouvem se mostram desacordes com sse ponto de vista, se entusiasma progressivamente e mediante brilhante e grfica comparao explica-lhes o papel do capitalismo e de seus operrios na produo moderna. "Dizem que no deserto, os chacais seguem em grupo ao leo para se aproveitarem dos restos de sua prsa. Demasiado dbeis para atacar o bfalo, demasiado lentos para alcanar as gazelas, toda sua esperana est nas garras do rei da selva.

Nas garras! Percebem? hora crespuscular, o leo abandona a cova e corre, rugindo de fome, em busca de presa. Ei-la a seu alcance ; um salto prodigioso, e comea uma luta feroz, um abrao mortal. A terra cobre-se de sangue, que nem sempre da vtima. A seguir, vem o festim real, que assistido com ateno e respeito pelos chacais. Quando o leo est saciado, os chacais comem. Crem vocs que estariam melhor alimentados se o leo compartisse com les a sua presa, em partes iguais, reservando para si uma pequena poro? Nada disso! sse bom leo j no seria um leo, mas um co lazarento. Ao primeiro gemido da vtima, afrouxaria as garras e comearia a lamber-lhe as feridas. Falem-me de um animal feroz, ansioso de despojos e sonhando apenas em matar e destroar. Quando ruge, os chacais se lambem". O eloqente orador esclarece o sentido, j de si evidente, dessa parbola, com as seguintes palavras, muito mais concisas, e no menos expressivas: " 0 industrial faz brotar fontes de nutrio, cujas sobras so absorvidas pelos trabalhadores". Sei muito bem que o escritor no responsvel pelos discursos pronunciados por seus heris. Amide, faz entender, por uma ou outra forma, sua atitude ante tais discursos, o que nos permite julgar suas opinies. Todo o curso ulterior de Le Repas du Lion nos mostra que o prprio De Curei considera totalmente justa a comparao feita por Jean de Sancy entre o industrial e o leo e entre os operrios e os chacais. Tudo nos indica que o autor poderia repetir, plenamente convencido disso, as seguintes palavras de seu heri: "Creio no leo. Inclino-me ante os direitos que lhe conferem suas garras". E est disposto a admitir que os operrios so chacais que se alimentam dos restos do que o capitalista obtm com seu trabalho. A luta dos operrios contra os patres para le, como para Jean de Sancy, uma luta de chacais invejosos contra o poderoso leo. Nessa comparao est a idia fundamental da obra, com a qual o autor liga os destinos de seu heri principal. Mas nessa idia no h um pingo de verdade. 0 autntico carter das