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1 Veja no www.pol.org.br o evento da sua região! Promoção: Apoio: A Atuação dos Psicólogos junto aos Adolescentes Seminário Nacional: 8 a 9 de dezembro de 2006 Brasília - DF Conselhos Regionais de Psicologia Conselho Federal de Psicologia URGENTE! privados de Liberdade Secretaria Especial de Direitos Humanos - SEDH Comissão Nacional de Direitos Humanos e

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Veja no www.pol.org.bro evento da sua região!

Promoção: Apoio:

A Atuação dos Psicólogosjunto aos Adolescentes

Seminário Nacional:

8 a 9 de dezembro de 2006Brasília - DF

ConselhosRegionaisde Psicologia

ConselhoFederal dePsicologia

URGENTE!

privados de Liberdade

Secretaria Especial deDireitos Humanos - SEDH

Comissão Nacional deDireitos Humanos e

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Conselho Federal de Psicologia

Seminário Nacional:A Atuação dos Psicólogos junto aos Adolescentes Privados de Liberdade

8 e 9 de dezembro de 2006Brasília/DF

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Diretrizes para a prática profi ssional do psicólogo em unidades destinadas a adolescentes autores de ato infracional na internação provisória e em cumprimento das medidas socioeducativas de internação e semiliberdade

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Índice

Parte I:Seminário Nacional: A atuação dos psicólogos junto aos adolescentes privados de liberdade.......................................

Mesa de Abertura..................................................................Esther Arantes.......................................................................Marcos Ferreira......................................................................Maria Luiza Moura Oliveira.....................................................Carmem Oliveira....................................................................Ana Mercês Bahia Bock (coordenadora)..................................

Mesa Redonda 1: Subsídios para a construção de uma prática qualifi cada do psicólogo no atendimento aos adolescentes em privação de liberdade......................................................Monalisa Barros (coordenadora)............................................Júlio Jacobo Waiselfi sz...........................................................Renato Roseno.......................................................................Carmem Oliveira....................................................................

Mesa Redonda 2: Novas possibilidades de atuação para o psicólogo.................................................................................Iolete Ribeiro da Silva............................................................Luciana Matos.......................................................................Maria Luiza Moura de Oliveira................................................Mesa de encerramento...........................................................Esther Arantes.......................................................................Mônica Lima..........................................................................Ana Mercês Bahia Bock..........................................................

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Parte 2: Resultado do Seminário............................................Considerações preliminares...................................................Marcos referenciais...............................................................O contexto e atuação do psicólogo.........................................Atuação do psicólogo em unidades de privação de liberdade.Pressupostos.........................................................................Diretrizes da atuação.............................................................Formação..............................................................................Condições de trabalho...........................................................Referências...........................................................................

Anexos..................................................................................Moções de repúdio................................................................Lista de delegados.................................................................

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Parte I:Seminário Nacional: A Atuação dos Psicólogos junto aos Adolescentes

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Mesa de abertura

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Esther Arantes Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP

Ao longos dos 500 anos do chamado descobrimento, o Brasil acumulou uma enorme dívida social com sua população indígena, negra, camponesa, idosa e de crianças e adolescentes. Em 1988, através de intensa mobilização social, diversas reivindicações desses grupos foram colocadas na Constituição Federal, o que criou otimismo e expectativas em relação à promoção dos direitos sociais.

Passados quase 20 anos de sua aprovação, no entanto, as mudanças ocorridas não têm correspondido às nossas esperanças. Podemos apontar melhora em alguns indicadores, mas não em outros. Em alguns casos, a situação até piorou. Podemos dizer que houve melhoras na cobertura da infância, com maior ingresso na escola e diminuição da desnutrição e da mortalidade infantil. Mesmo assim, persistem questões referentes à qualidade desse ensino e ao trabalho e à prostituição infantil, dentre outros. São questões ainda não satisfatoriamente resolvidas.

Em relação aos adolescentes, a situação piorou bastante, agravando-se a partir dos 14 anos, quando verificamos aumento da evasão escolar, crescimento no número de atos infracionais e um aumento vertiginoso da mortalidade por causas externas – a chamada mortalidade violenta.

Quando buscamos saber quem são esses adolescentes, verificamos que são, em sua maioria, meninos negros e pobres que se encontram fora da escola e do alcance das políticas de proteção social.

Um estudo realizado com uma amostragem de adolescentes internados no Instituto Padre Severino, que é uma unidade de internação provisória, no Rio de Janeiro, mostrou que aproximadamente 50% dos adolescentes já haviam perdido pai, mãe e/ou irmão também de maneira violenta – acidentes,

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assassinatos ou doenças que facilmente teriam sido tratadas, mas não o foram, como a tuberculose.

Para esses adolescentes, têm sido reservadas, quando do cometimento de atos infracionais, medidas socioeducativas de privação e restrição da liberdade com muita freqüência, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente fale da excepcionalidade e brevidade dessa medida.

O relatório conjunto do Conselho Federal de Psicologia e da OAB sobre as unidades de internação de adolescentes privados de liberdade confirma esta realidade já sabida: superlotação nas unidades, maus-tratos, ociosidade, precariedade ou ausência dos projetos socioeducativos e sofrimento mental, dentre outros problemas.

Ao mesmo tempo em que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, aprova o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo/Sinase, que vamos discutir neste seminário, parcelas significativas da sociedade e da mídia apóiam o endurecimento da legislação e demandam o rebaixamento da idade penal e/ou aumento no número de anos permitidos para a internação. Sabemos dos desafios que essa problemática trás para todos nós, e, no caso específico, para nós, psicólogos, em particular.

Esses desafios são muitos e de várias ordens, e não podemos perdê-los de vista. Temos que identificar as engrenagens que promovem a exclusão social e a morte, para podermos desmontá-las. Sabemos que essas engrenagens se encontram tanto fora como dentro dos sistemas socioeducativo e protetivo assim como também, muitas vezes, na maneira mesma de atuar de profissionais do Direito, Educação, saúde e assistência. É necessário desmontar essas engrenagens para podermos encontrar esses adolescentes de uma outra forma - fora das rotulações e das relações estigmatizantes. Só assim vamos poder construir uma experiência na qual o jovem seja

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considerado solução, e não problema.Vindo para cá, tive notícia de que o filho da companheira

Mônica foi assassinado no Rio de Janeiro. Mônica e teve o filho adolescente internado no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, e, ao sair, quase imediatamente ingressou no sistema penal de adultos. Essa mãe vem numa luta muito grande em relação ao sistema socioeducativo, e hoje integra o Movimento Moleque, no Rio de Janeiro, um movimento de mães. Ela foi uma das pessoas designadas pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro para comparecer a este evento, mas não pôde vir. Talvez ela ainda venha esta noite ou amanhã, após o enterro do filho.

Fica aqui um triste depoimento do que estamos discutindo.

Muito obrigada.

Marcos FerreiraPresidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia

Para a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia é fundamental conhecer as práticas realizadas pelos psicólogos nas diversas frentes de trabalho que a profissão conseguiu estabelecer, para que isso possa alimentar concretamente a evolução das iniciativas relacionadas à formação de psicólogos. Assim, foi muito bem-vinda a proposta de realização deste evento. Nele, nós esperamos que vocês produzam uma caracterização da prática do psicólogo que está trabalhando com esses adolescentes, contem exatamente o que fazem, quais as preocupações importantes a serem consideradas e, como dizia o Marcus Vinícius há pouco, quais são os elementos imprescindíveis à prática de um psicólogo que atua nesse espaço.

O conhecimento dessas referências técnicas para a prática dos psicólogos que atuam junto aos adolescentes

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no cumprimento de medidas socioeducativas é fonte de alimentação para a nossa reflexão no âmbito dos cursos de Psicologia, para que os futuros psicólogos possam estar cada vez mais bem preparados para enfrentar essa realidade.

Sabemos que até pouco tempo atrás, a maioria dos psicólogos, ao sair dos cursos, que dizia despreparada para enfrentar a realidade na qual teriam que atuar. Talvez uma das queixas mais antigas que tenhamos dentro da categoria profissional dos psicólogos seja exatamente essa, a de um sentimento de que saímos dos cursos de Psicologia pouco preparados para aquilo que vamos encontrar no mercado de trabalho e na prática profissional cotidiana.

O fato é que muitos colegas garimparam, exploraram, descobriram e inventaram veredas dentro da sociedade brasileira ao constituir referências novas para a prática profissional. É preciso que, neste tema de hoje, sejamos capazes de resgatar essas criações, sistematizá-las e oferecê-las para o debate, quer seja da profissão, por meio das iniciativas dos Conselhos de Psicologia, quer seja para a formação, por meio das iniciativas da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia. Para nós, da ABEP, que temos a perspectiva de contribuir para a construção de uma psicologia efetivamente adequada à realidade do povo brasileiro, esse tema tão delicado sobre o qual vocês vão se debruçar nesses dias é de fundamental importância. Esse tema tem um caráter emblemático em relação ao desenvolvimento da nossa profissão, na medida em que provoca uma reflexão sobre quem deva ser considerado cliente de nossas iniciativas.

Durante estes dois dias, a ABEP estará representada por uma diretora, a nossa colega Mônica Lima. Se houver necessidade de qualquer esclarecimento sobre a ABEP, a Mônica poderá fazê-lo.

Assim, em nome da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia, quero dizer que, para nós, os dois aspectos serão

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importantes: tanto a construção dessas caracterizações do que efetivamente o psicólogo faz quando trabalha com esses adolescentes (com a definição de referências técnicas, de critérios e de parâmetros para o reconhecimento da qualidade dessa prática profissional) quanto eventuais indicativos dos participantes deste seminário para as preocupações que devam nortear o trabalho da ABEP quando discute, propõe e toma iniciativas de formação em relação a esse tema. Tudo isso vai trazer um resultado muito importante para nós, neste evento. Por favor, contem conosco para qualquer uma das propostas e das iniciativas indicadas.

Maria Luiza Moura OliveiraRepresentante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda

Eu me somo à saudação dos demais desta Mesa e também saúdo a todos os participantes do “Seminário Nacional: A Atuação dos Psicólogos junto aos Adolescentes Privados de Liberdade”. É com muito prazer que participamos deste momento que, como tantos outros, é de fundamental importância para o fortalecimento da luta por direitos humanos e justiça social para crianças e adolescentes em nosso país. Colocamos aqui um debate cotidiano, que visa a situar um tema recorrente na sociedade brasileira. Entendemos esta atividade e este espaço enquanto ação ampliada dos debates de que se ocupa o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda, um lugar importante para efetivarmos o que temos tentado implantar neste país, que é o trabalho de proteger e garantir os direitos de crianças e adolescentes brasileiros.

Atualmente, faço a representação do Conselho Federal de Psicologia no Conanda – o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que se organiza de

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forma colegiada e paritária e conta com a participação de entidades governamentais e não-governamentais que visam fundamentalmente à promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. O Conselho Federal de Psicologia é uma das entidades da sociedade civil organizada que participa dessa composição. Em sua estruturação, o Conanda organiza-se por meio de comissões permanentes e grupos temáticos, e o Conselho Federal de Psicologia faz parte da Comissão de Articulação e Comunicação e contribui para a elaboração e atualização de documentos ligados ao ordenamento e à normatização de políticas públicas centradas em direitos humanos. Sendo assim esse Conselho Nacional funciona como um órgão colegiado que delibera e controla ações que desencadeiam e pautam os grandes enfrentamentos que temos enquanto desafios colocados para a sociedade brasileira, especialmente para o universo infanto-juvenil.

Vejo que o Conselho Federal de Psicologia, em suas ações e representações, vem desenvolvendo um trabalho importante, especialmente a partir da Comissão Nacional de Direitos Humanos, com contribuições de extrema relevância, como a inspeção nacional às unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Acho que essa ação é uma forma de dizer como a sociedade brasileira organizada, em especial o psicólogo brasileiro, tem se preocupado com as múltiplas formas de violação de direitos que existem, e, diante desse cenário, tem se manifestado para buscar o desvelamento de tais barbaridades para, assim, combatê-las. Hoje inquieta-nos discutir a situação dos adolescentes privados de liberdade, pois, apesar dos dezesseis anos de aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, esse tema ainda nos desafia. Como disse a presidente do Conselho Federal de Psicologia, Ana Bock, temos leis e planos, mas o que estamos fazendo para efetivá-los? O resultado da inspeção nacional às unidades de internação

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de adolescentes em conflito com a lei produziu um relatório final, e, mais que isso, ele provoca a sociedade brasileira e a nós também, porque somos sociedade e fazemos parte desse sistema. Também atuamos frente a esse adolescente. E daí? O que estamos fazendo para garantir os direitos humanos?

Primeiro, vamos fazer uma auto-reflexão com o documento para, a partir daí, colocarmos essa nossa reflexão para a sociedade brasileira e, em especial, para todos os adolescentes que estão vivendo essa situação. O que conversamos hoje também é tema permanente do Conanda. Além da situação dos meninos e das meninas em medidas socioeducativas, também temos outros desafios, como, por exemplo, o trabalho infantil. Estou participando de uma comissão que trata do tráfico de pessoas e, embutido nesse contexto, tem-se a preocupação com o tráfico de órgãos. Há um caso já confirmado, em Recife, de uma criança que teve o rim extraído, e esse rim estava sendo levado para um outro país. Então, há fatos subterrâneos, e, com isso, a violação de direitos chega a atos de violência extremos e inimagináveis. Com esse exemplo, voltamos a atenção para o que as Comissões de Direitos Humanos – nacional e regionais - têm dito: “o que é feito para excluir não pode incluir”. Vejo que essa afirmação tem que ser permanente, assim como também tem de ser permanente a nossa atuação no sistema.

Há anos, como a Esther disse, temos vivido um processo que, às vezes, assume disfarces que perpetuam a cultura de se institucionalizar as crianças. Mas que crianças são essas? São as crianças pobres e negras que, por exemplo, não estão tendo acesso ao ensino, à saúde e à moradia, e, muitas vezes, quando o tem, é totalmente precário. Os últimos dados revelam que 14 adolescentes são mortos por homicídio no País, sendo que 70% são negros. Devemos enfrentar esse debate hoje, durante essa grande conversa que vamos ter, e levar o assunto para dentro das unidades. Que consigamos romper e nos contrapor todo sistema

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que, de fato, só reprime, é correcional e extremamente punitivo. Está lançado o desafio. Como referência atualizada sobre essa temática, publicamos o relatório da inspeção nacional às unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei e o Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, um guia de implementação das medidas socioeducativas, documento que a Carmem vai apresentar neste evento. Neste seminário, falarei um pouco sobre outro documento importante para nosso trabalho e debate, o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Os instrumentos estão aí; nós, pessoas e profissionais, estamos aqui, e os meninos estão agora, neste exato momento, vivendo privações. O que vamos fazer para enfrentar essa realidade? É um desafio, sim, mas temos plena condição de realizá-lo.

Deixo aqui um abraço e votos de um bom trabalho. Que continuemos fazendo essa representação e esse diálogo no Conanda, em nome do que a Psicologia brasileira pensa e faz pela garantia incondicional de direitos humanos para todas as crianças e adolescentes brasileiros.

Carmem Oliveira Subsecretária da Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, representando o Ministro Paulo Vanucchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República

Bom-dia a todas e todos, mais todas do que todos, como é a Psicologia em qualquer lugar.

Trago a saudação do Ministro Paulo Vanucchi, que ficou impossibilitado de estar neste evento, mas a Ana sabe do apreço de S.Exa. pela rede de Conselhos. Ele tem uma participação e um diálogo muito ativo em seu Estado de origem, São Paulo, com o CRP de lá e também com o Conselho Federal, não apenas nesta parceria, mas, esperamos, em várias outras, a exemplo da iniciativa da ABEP, para o próximo ano, de fazer uma grande

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discussão nacional sobre Psicologia e direitos humanos. São interseções que nos colocam lado a lado.

Particularmente, várias interseções me colocam nesta sala hoje. Sou psicóloga, já fui Conselheira Federal de Psicologia e fui Presidente da Febem do Rio Grande do Sul. Por vários motivos, sinto-me absolutamente convocada para este diálogo. O CFP tem tido uma liderança muito importante para nós, psicólogos e professores - também sou professora da Unisinos, no Rio Grande do Sul -, no sentido de repensarmos nossas práticas e nossos saberes e, especialmente, o nosso compromisso. Venho de uma geração em que direitos humanos ficavam muito atrelados ao tema da tortura, diante da ditadura militar que vivemos nas décadas de 60 e 70 - período em que fiz a graduação. Tivemos um paradigma bastante importante de um grupo de psicólogos que se aglutinou em torno do tema “tortura nunca mais” no Rio de Janeiro. Temos aqui uma ilustre representante dessa geração1. O Conselho Federal, a partir dos anos 80, deu uma guinada muito importante no sentido de repensar as nossas práticas, voltadas para a reconstrução do espaço democrático no Brasil.

Nos últimos anos, houve uma pauta bastante freqüente do Conselho Federal no sentido de pensar as instituições de privação de liberdade (e, por que não dizer, as instituições totais, porque, em certa medida, elas ainda o são), a exemplo do que foi a reforma psiquiátrica, a discussão do sistema penal e, agora, esse importante debate sobre o sistema socioeducativo. Na verdade, este é quase um eufemismo, porque ainda predomina, em boa parte do nosso cenário nacional, o “sistema Febem”. Parece-me que esta discussão, ao mesmo tempo em que é invisível e subterrânea, como falou a Malu, tem uma alta visibilidade. Acho que o Dr. Jacobo vai nos apresentar dados que nos deixam muito preocupados com a violência letal dos nossos adolescentes, bem como com uma série de outras

1 Referência a Esther Arantes, do CRP/05.

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violências praticadas contra os adolescentes em conflito com a lei, vistos predominantemente como autores da violência.

Parece-me que estamos abrindo este evento com uma certa consigna de morte, como foi anunciado pela Esther. Espero, entretanto, que possamos, até o final deste dia, visualizar o espaço de resistência ou, como diria Toni Negri, de biopotência, que é tudo de que precisamos, não apenas diante deste cenário brasileiro mas também desses tempos mortíferos de globalização.

Obrigada.

Ana Mercês Bahia Bock (coordenadora)Presidente do Conselho Federal de Psicologia

Quero receber todos em nome do Conselho Federal de Psicologia e ajudar a realizar o evento da melhor forma para que possamos cumprir essa tarefa que nos foi atribuída. Vocês formam um conjunto de representantes que vêm de vários encontros, em todo este país, que debateram a questão das medidas socioeducativas e, ao estarem aqui representando, têm uma tarefa a cumprir, tarefa que consideramos importante e necessária para avançarmos nesse campo das medidas socioeducativas e da contribuição dos psicólogos.

O Presidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia, Marcos Ferreira, já esclareceu que sempre temos a preocupação de reafirmar e registrar que a nossa tarefa é a de construção de referências para um exercício profissional nesse campo, e isso significa retirar da experiência que todos vocês têm elementos que, quando sistematizados e reunidos, formem um conjunto referencial para a prática nesse campo. Que qualquer estudante ou psicólogo recém-formado que queira se desenvolver nessa área, ao ter acesso a esse material, possa iniciar o seu trabalho e saber por onde caminhar e como se apropriar das questões fundamentais, das questões éticas, dos

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riscos e das habilidades necessárias para o desenvolvimento do trabalho.

O Conselho Federal de Psicologia, a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia e a Secretaria Especial de Direitos Humanos têm algumas perguntas para esse conjunto formado por vocês. Como é a prática de um psicólogo quando trabalha nesse campo? O que ele deve saber? O que deve conhecer? Quais são as necessidades? Com as respostas que vocês darão, vamos reunir um material de referência que será, é claro, traduzido, em seguida, em exigências para a formação.

Quero registrar a presença da Iolete, do Marcus Vinícius e da Monalisa, Conselheiros do Conselho Federal de Psicologia, além da Malu, que estão acompanhando esta atividade.

É com enorme satisfação que o Conselho Federal de Psicologia realiza este evento. Os motivos para essa satisfação são vários. O primeiro deles é porque, quando nos reunimos para debater as medidas socioeducativas, estamos, sem dúvida, colocando a Psicologia em um outro lugar social, um lugar de compromisso com a construção de uma sociedade mais justa. Esse é um motivo bastante importante que dá satisfação a todos nós e justifica estarmos envolvidos neste trabalho.

O segundo motivo é porque este é um lugar da relação entre um saber e um fazer técnicos com um debate de direitos humanos. Então, as medidas socioeducativas apresentam essa questão, e este espaço propicia a vivência, a concretização e o estabelecimento dessa relação. Trata-se de um debate de direitos humanos, de um debate sobre uma ética rigorosa para atuação nesse campo, um debate a respeito da infância e da adolescência, uma luta contra uma sociedade desigual como a nossa, que, com certeza, é a origem de muitos dos nossos problemas, e da necessidade de nós, como psicólogos, nos dedicarmos à discussão das medidas socioeducativas. Uma sociedade como a nossa, em que a maior parte da população

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brasileira se apropria de 25% do Produto Interno Bruto, da riqueza produzida neste país, e onde 10% se apropria do restante, é um país, sem dúvida alguma, que desperta preocupação, que merece a atenção de todos nós que estamos exercendo a nossa profissão nessa sociedade.

Um terceiro motivo de satisfação é porque, ao nos reunirmos aqui, estamos, juntos, buscando construir competência para a Psicologia. A possibilidade de reunir profissionais com um acúmulo de competências nessa área possibilitará a construção da competência, não mais individual como a que cada um desenvolveu em seu trabalho, mas o desenvolvimento de uma competência para uma profissão. Esse aspecto deste encontro é importante e motivo de satisfação para todos nós, porque o Conselho Federal de Psicologia, órgão que cuida da profissão e faz a mediação entre as possibilidades da profissão e as necessidades da sociedade, precisa desses profissionais que sabem o que fazer, que sabem o que dizer e que sabem o que pensar sobre essas questões para que isso possa, democraticamente, circular no âmbito da profissão como referência profissional, para que não fiquemos apenas com alguns poucos conhecemos do assunto. Pobre da profissão que tem algumas estrelas. O ideal é uma profissão que não tenha estrelas, mas que tenha profissionais com uma competência que os capacite para um exercício comprometido, ético e rigoroso do ponto de vista técnico.

No Conselho Federal de Psicologia, reuniremos o resultado deste evento no CREPOP - depois vocês terão a oportunidade de conhecê-lo melhor, pois, em algum momento deste evento, ele será apresentado. O CREPOP é o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, e uma das áreas pelas quais estamos começando o trabalho, instalando e desenvolvendo o centro é exatamente a das medidas socioeducativas. Para nós, interessa bastante o resultado deste evento, porque tudo será

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registrado no CREPOP para circular democraticamente entre os psicólogos e para que possamos oferecer à categoria novas referências, nesse campo, a fim de, desenvolver a qualidade dos serviços na área.

Um outro motivo que eu ainda gostaria de citar é que este evento é o posicionamento de uma profissão, e isso é bastante importante para nós, do Conselho. Estamos contribuindo, com o nosso encontro, para o desenvolvimento de uma cultura educativa em nosso país, uma cultura que está presente no ECA e que, infelizmente, não é disseminada; não podemos dizer, então, que a reconhecemos presente em nossa sociedade. É a partir da Psicologia e do nosso trabalho de psicólogos, assim como outros profissionais fazem com as suas competências e com as suas áreas, que queremos contribuir, nessa sociedade, para a construção dessa cultura educativa e dessa cultura de liberdade que, com certeza, são utopia para muitos, mas que nos unem e tornam esse sonho uma realidade; quando nos reunimos, olhamos olho no olho, e dizemos: vamos construir a competência possível.

É também um lugar de política pública. O Conselho Federal de Psicologia vem dando ênfase à necessidade da construção e do desenvolvimento das políticas públicas e da participação dos psicólogos nessa construção e nesse desenvolvimento. Nesse sentido, este encontro é importante para o Conselho Federal de Psicologia.

Acho que tudo o que vamos fazer aqui representa a reinvenção da profissão, uma profissão que deve sair de um lugar tradicional de cumplicidade com as elites brasileiras para um lugar de inquietação, de questionamento e de compromisso com a maior parte da população brasileira.

Muitos, ou talvez até a maioria, não conhecem a Mônica, citada aqui pela Esther, e sou uma dessas pessoas. Entretanto, todos nós temos a certeza de que sabemos quem é a Mônica,

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porque, neste país, são muitas as mães, os pais, as famílias que sofrem e os adolescentes que perdem suas vidas, o que gera esse sofrimento. Nós, psicólogos, estamos implicados nessas situações e estamos aqui porque reconhecemos essa implicação e queremos realizar esse trabalho tendo como meta a solução desse grave problema social.

Queremos uma psicologia diferente, uma psicologia que tenha um compromisso com o fim do sofrimento que a população brasileira vive cotidianamente.

Nesse sentido, é muito bom estarmos aqui aliados, sentados ao lado da Secretária Especial de Direitos Humanos. É muito bom estarmos ao lado de alguém que nos representa no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda. É muito importante para nós que este evento tenha uma comissão de direitos humanos trabalhando para o seu desenvolvimento. Isso é reconhecimento. Ter uma Secretária Nacional aqui conosco, organizando e realizando o evento, debatendo conosco, é reconhecimento social, e significa que os psicólogos hoje já têm um outro lugar na sociedade. Isso é fruto do trabalho cotidiano, de todos que inventam a profissão no seu dia a dia, é fruto do trabalho das nossas entidades.

Quero agradecer a parceria da Secretaria Especial de Direitos Humanos e ao Ministro Paulo Vanucchi, aqui representado pela Carmem, à Associação Brasileira de Ensino de Psicologia e a presença do Conanda. Quero agradecer, em especial, aos Conselhos Regionais de Psicologia e aos núcleos da ABEP que, da noite para o dia, realizaram encontros para a produção do debate necessário.

A Carmem disse que, quando contou ao Ministro sobre o evento, ele perguntou: “Vai ser quando, em 2007, o evento?” Ela disse: “Não, Ministro, é em 2006 mesmo. Eles fizeram!” Os Conselhos Regionais fizeram isso. O Conselho Federal, a ABEP e a Comissão de Direitos Humanos desencadearam e ajudaram,

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mas sabemos que, se os Conselhos Regionais e os núcleos da ABEP não tivessem realizado os eventos regionais, não teríamos este evento deste tamanho e com esse sucesso.

Agradeço às assessoras que trabalharam conosco: Maria de Lourdes Teixeira Trassi, Ana Luíza Castro e Cristiane Barreto.

Quero agradecer à Comissão Nacional de Direitos Humanos e às Comissões Regionais de Direitos Humanos, que trabalharam para o evento. A Monalisa e a Esther estão aqui representando esse coletivo.

Toda essa satisfação que procurei trazer deve se transformar em garra para que possamos efetivamente cumprir a tarefa que viemos desempenhar aqui.

Abraço, ao final, os pais e familiares e os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em nosso país e que não se encontram aqui, mas são a nossa preocupação principal. É com eles o nosso compromisso!

Encerro a nossa Mesa de abertura e convido a Monalisa Barros para que venha coordenar a próxima Mesa.

Sejam todos muito bem-vindos.

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Mesa Redonda 1:Subsídios para a construção de uma prática qualifi cada do psicólogo no atendimento aos adolescentes em

privação de liberdade

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Monalisa Barros (coordenadora)Conselheira Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia

Neste momento, estou substituindo a companheira Ana Luiza Castro, que deveria estar coordenando esta Mesa, mas, por motivos de força maior, não pôde chegar a tempo.

Antes de convidar os companheiros que vão compor a Mesa, gostaria de falar um pouquinho deste evento como também resultado desta campanha, na qual a Comissão Nacional de Direitos Humanos, junto às Comissões Regionais dos Conselhos de Psicologia, estão se empenhando desde o ano passado, chamada “O que é feito para excluir não pode incluir”.

Como parte dessa campanha, houve a realização de uma inspeção nacional, realizada no dia 15 de março de 2006, em vinte e dois Estados do Brasil e no Distrito Federal, que gerou um relatório. Essa inspeção foi feita pelo Conselho Federal de Psicologia e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O relatório se encontra nas pastas que foram distribuídas e traz um retrato das unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei. Nessa inspeção, tivemos um encontro com o campo e com os colegas de Psicologia que lá atuam. Quando nos deparamos com essa realidade, percebemos que esses colegas sentiam necessidade de um acolhimento e de um momento em que essas práticas pudessem ser discutidas, revistas e referendadas como tecnicamente recomendáveis à aplicação em diversos espaços.

Esse encontro com o campo nos fez refl etir muitíssimo e admirar muitos dos nossos companheiros que estão desenvolvendo iniciativas inovadoras, dignas de respeito e bem sucedidas. Também encontramos profi ssionais que se sentiam desamparados, sem muito direcionamento técnico, e que demandavam essa construção e esse apoio para sua atuação.

É claro que todo esse contexto, na maioria das vezes, está permeado por condições de trabalho inóspitas e apresenta

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inúmeras difi culdades para acreditarmos na construção de um projeto socioeducativo, com pouca referenciação técnica e delimitação do que o psicólogo deveria fazer, além de vários confl itos entre o que era demandado pelo sistema judiciário e o que efetivamente era feito, e muitos questionamentos e críticas à formação recebida.

Diante dessa situação, pensamos na elaboração desse encontro para que pudéssemos, como já foi dito aqui, referendar essas práticas, referendar tecnicamente a nossa ação e apontar direções para essa formação. Que lugar é esse que ocupamos? É uma campanha que questiona a privação de liberdade nas instituições totais e que se depara com profi ssionais que atuam nesses espaços. Então, que lugar é esse que ocupamos, que condições de trabalho encontramos nesses lugares e que saída ética vamos encontrar para, apesar de estarmos nas instituições totais, buscarmos construir viabilidades, saídas, acender luzes no fi m dos túneis de cada um daqueles jovens que estão trabalhando conosco?

Sabemos que a prevenção e a atuação em direitos humanos antecede o momento da internação, que deveria estar sendo executada desde as varas da infância e da adolescência até os projetos municipais, com muitas ações dentro das Secretarias de Desenvolvimento Social para evitar a proliferação cada vez maior do número de adolescentes que acabam submetidos a essas medidas socioeducativas.

Ontem tive acesso a um material elaborado pelo IBGE, junto ao Ministério do Desenvolvimento Social. É um perfi l dos Municípios brasileiros. É uma pesquisa de informações municipais básicas. Tive acesso a esses números e vi que, por exemplo, das Secretarias de Desenvolvimento Social em todo o País, 20% dos profi ssionais alocados nessas Secretarias são psicólogos. O percentual varia entre 17% e 20% - 17% no Sudeste, e 20% no Norte. Vejam que interessante: a Região Norte tem mais

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psicólogos, proporcionalmente, que a Região Sudeste. Vimos também que, apesar de as medidas socioeducativas

de meio aberto, a prestação de serviço comunitário e a advertência e a reparação de danos estarem sob a responsabilidade do Município, e apesar de sabermos que o trabalho da família junto ao adolescente é primordial na reinserção e na recuperação desses jovens, a grande maioria dos Municípios não conta com serviço de execução de medidas socioeducativas. Apenas 43% dos Municípios brasileiros têm algum serviço de execução das medidas socioeducativas. Na maioria dos Estados, as unidades de internação estão nas capitais, o que faz com que os jovens de todo o Estado sejam deslocados do seu ambiente social e familiar de convivência para a capital, fi cando desligados, por um período relativamente longo, dos seus laços e dos seus vínculos afetivos e sociais, o que difi culta ainda mais a ação de um profi ssional da Psicologia.

Temos responsabilidade com isso porque as medidas de meio aberto não dependem apenas de governo municipal, pois podem ser iniciativas de ONGs e da sociedade civil organizada. Além de refl etirmos sobre as práticas dos psicólogos nas unidades de internação, precisamos refl etir sobre a prática dessa comunidade, dessa sociedade civil de se articular para que as medidas de meio aberto sejam implementadas e efetivamente levadas a cabo em cada Município, a fi m de que consigamos diminuir a quantidade de jovens que têm os seus vínculos cortados.

Entretanto, precisamos refl etir sobre esse momento histórico e as condições sociais em que vivemos. Estamos promovendo este encontro por entendermos que, apesar de as unidades de privação de liberdade terem sido construídas no modelo feito para excluir - naquele momento, ainda não existia o Sinase como referência para a forma de construção dessas unidades -, a nossa ação tem de, necessariamente, estar comprometida com a inclusão. Então, poderíamos transformar a frase da nossa campanha nacional - “O

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que é feito para excluir não pode incluir” - para “Foi feito para excluir, mas deve incluir”. Essa é a nossa missão.

Para a Mesa, que tem o nome de “Subsídios para a construção de uma prática qualifi cada do psicólogo no atendimento aos adolescentes em privação de liberdade”, vamos convidar o Dr. Renato Roseno, advogado, ex-coordenador do Cedeca/Ceará e da Anced - Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança, ex-Conselheiro do Conanda, assessor da Anced para o monitoramento da implementação da Comissão Internacional dos Direitos da Criança no Brasil e representante, no Brasil, do DCI - Defence of Children International.

Convidamos também o Prof. Júlio Jacobo Waiselfi sz, sociólogo, consultor da OEI - Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, autor dos livros Mapa da Violência, Relatório do Desenvolvimento Infanto-juvenil e Juventude, Violência e Cidadania: o Jovem de Brasília, para nos falar sobre o Mapa da Violência.

Por fi m, convido a colega psicóloga, Drª Carmem Oliveira, Subsecretária da Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ex-diretora da Febem do Rio Grande do Sul, para falar sobre o Sinase - Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas.

Vou passar a palavra ao Dr. Júlio Waiselfi sz para que ele apresente o Mapa da Violência.

Júlio Jacobo Waiselfi sz Consultor da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, Ciência e Cultura – OEI

Caros colegas, quero saudar a presidente da Mesa, Monalisa Barros, e cada um dos colegas psicólogos presentes e os ausentes também.

Vou tentar falar com vocês sobre um tema um pouco “morto”. Vou falar sobre mortalidade. Para quem preconiza a vida, é um

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pouco problemático falar sobre a morte. É uma parte de nosso panorama, e, por isso, vou ter a coragem de falar morbidamente da mortalidade juvenil.

É um tema que toca muito tangencialmente no tema desta Mesa, que é criança e adolescente. Trabalho há muito tempo com o tema da juventude, com a defi nição das Nações Unidades, que inclui a faixa etária de 15 a 24 anos. Portanto, temos uma interseção, que agora é federal, porque, na Secretaria de Juventude, também se trabalha com a faixa de 15 a 24 anos. Essa interseção abrange uma grande parte das crianças e adolescentes que são objeto de internação e de privação de liberdade, a partir da faixa dos 14, 15 anos de idade.

Em primeiro lugar, de onde surgiu essa preocupação com a mortalidade? Começamos a trabalhar com o tema em 1997, quando ainda fazíamos parte da Unesco. A partir de um ato bárbaro - a morte do índio Galdino, aqui em Brasília -, começou a nos preocupar o tema da mortalidade. Jovens que matam e jovens que morrem, gente que morre ainda na juventude. Começamos a estudar o tema e fi zemos o trabalho Juventude, Violência e Cidadania: o Jovem de Brasília, outro de Curitiba, outro do Rio de Janeiro, outro em Fortaleza, lidando com a galera. Aqui fi zemos o trabalho Gangues, galeras, chegados e rappers, com jovens agressores das cidades de Brasília.

Nós nos preocupávamos com uma questão: uma visão extremamente maniqueísta da nossa juventude. Fizemos um estudo da mídia. Como a mídia representa os nossos jovens? Vimos que havia duas representações totalmente maniqueístas nessa época. Uma era o jovem da juventude dourada do Rio de Janeiro, o jovem de “Malhação”, o jovem de classe média, bonitão e fortão, que dava uma pauta nacional do que era a nossa juventude; por outro lado, no jornalismo e nas notícias televisivas, o jovem arruaceiro, o jovem malandro, o jovem do funk, o jovem da droga, o jovem perigoso, o jovem agressivo. Pertenciam a

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dois grupos sociais totalmente diferentes. Não era uma visão tão maniqueísta e contraposta. Era uma visão que todos nós, ainda hoje, temos do que seja a nossa juventude.

Pobre, arruaceiro, objeto de medidas socioeducativas, perigoso, e nós, classe média, lamentavelmente, temos que nos defender. Moramos em prédios com guarita, com guarda, com televisores, etc. Um grupo social que é perigoso e um grupo social que só se defende dessas agressões.

Esse momento nos deu oportunidade de começar a retrabalhar a visão maniqueísta, através da morte do índio Galdino. Não era um agressor qualquer. Era um agressor de classe média. Eram meninos fi lhos de juízes que, quando foram indagados - não sei se vocês se lembram da notícia do jornal - por que tinham cometido esse ato bárbaro de queimar o índio, a resposta foi: “Não sabíamos que era um índio. Pensamos que era um mendigo.” Isso já dá uma pauta de qual é a visão que temos sobre essa ruptura social que marca muito bem Brasília, porque está, inclusive, delimitada geografi camente. Diga-me onde moras em Brasília e te direi quem és, o que não acontece em outras cidades.

Preocupou-nos um aspecto muito problemático. Sabíamos e temos informações de que, na realidade, a principal vítima da violência não é a classe media, mas a própria juventude. Era a juventude brasileira que estava morrendo. Isso não aparecia nos jornais, isso não aparecia na mídia e não aparecia na consciência de nossa sociedade. O jovem era aquele bonitão ou era aquele malandro perigoso. Não era a principal vítima da violência. Publicamos o primeiro Mapa da Violência junto com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 1998. Publicamos atualizações em 2000, 2002, 2004 e, agora, em 2006. Este é o quinto Mapa da Violência. O Mapa da Violência é um termômetro. Pensamos em utilizá-lo como um termômetro para dizer: “Olha, a situação está grave ou não está grave”. É um indicador.

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Por que mortalidade como indicador? Por que trabalhamos esse indicador que tem impacto como indicador? É um indicador que não fala sobre si próprio. Não são só quantos mortos jovens ou quantas mortes existem na sociedade. Quando trabalhamos com indicadores de mortalidade infantil, sabemos que determinado grau de mortalidade está associado ao sistema público de saúde, ao aleitamento materno e ao atendimento materno-infantil. Está associado a muitos fatores. Também sabemos que a mortalidade juvenil está associada a estruturas sociais, a estruturas de exclusão, às rupturas que temos, em nossa sociedade, com o tema da juventude.

Não utilizamos esse indicador para avaliar políticas. Não dizemos que tal política seja boa ou ruim, dizemos que está ajudando ou não a trabalhar esse indicativo privilegiado. Quando a mortalidade infantil cai, todos nós festejamos. Festejamos quando caiu para menos de dois dígitos. Também vamos festejar quando a mortalidade juvenil cair, mas não como produto de um tratamento exclusivo da mortalidade, e, sim, de todo um trabalho político de inclusão da nossa juventude, na perspectiva de uma sociedade mais justa e equilibrada.

Vou tentar explicar para vocês qual é o trabalho que vimos fazendo. Todos os relatórios têm mais ou menos a mesma estrutura. Vou explicar muito rapidamente, porque, se tiveram acesso a um deles, vocês sabem do que se trata. Todos os cinco relatórios que publicamos - o quinto se chama Mapa da Violência de 2006 - começam com notas conceituais e técnicas. Explicamos o que é juventude, qual é a nossa metodologia, porque trabalhamos, o que pensamos, etc.

O que nos preocupa, na mortalidade, é a diferença que existe entre mortalidade juvenil e o resto da mortalidade. Trabalhamos quatro capítulos de mortalidade: homicídios, acidentes de transporte, suicídios e morte por arma de fogo, que engloba homicídios e suicídios produzidos por arma de fogo. Em cada

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um desses temas, é tratada a respectiva evolução nos Estados, nas capitais, nas regiões metropolitanas. Tomamos sempre os dez últimos anos como parâmetro. Consideramos a idade dos homicídios e dos acidentes para ver a sua incidência na juventude, mortalidade por raça e cor, mortalidade por sexo, sazonalidade, se existe algum padrão recorrente ou temporal de mortalidade em acidentes e homicídios. Fazemos comparações internacionais para ver como estamos em relação a outros países. Verifi camos, nesse capítulo, proporcionalmente, se morrem mais jovens do que deveriam ou não. Morrem, por igual, crianças, jovens e adultos? Percebemos que a proporção de jovens é muito maior do que a esperada. Estamos vitimando a juventude.

Depois disso, fazemos um estudo de fi dedignidade, ou seja, em que medida podemos confi ar nos dados. É dever do pesquisador fazer esse trabalho e avisar: “Olha, não tenha tanta confi ança no que estou dizendo porque os dados não são muito consistentes.” Sabemos que, no Brasil, por estimativa, porque existem cemitérios clandestinos, cadáveres jogados no mato, etc., não há formas de acesso a essas informações. Sabemos que o Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde cobre aproximadamente 80% da mortalidade. Tudo que vamos falar de morte, daqui para a frente, é sobre morte com certidão de óbito, mas nem todas as mortes do Brasil estão aqui registradas. Isso quer dizer que, provavelmente, as cifras são maiores do que as que estamos citando aqui.

Temos, agora, dados ofi ciais do Ministério da Saúde. O Sistema de Informações sobre Mortalidade, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, centraliza a informação das vinte e sete Secretarias Estaduais de Saúde, que são responsáveis por tabular e processar, inicialmente, as certidões de óbito, instrumento ofi cial. Por lei, nenhum cadáver pode ser enterrado ou transportado sem a correspondente certidão de óbito. Então, a Secretaria de Saúde processa a informação

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no Estado e manda para o Ministério, que centraliza toda essa informação. Essa é a nossa fonte de dados. São dados ofi ciais do Ministério da Saúde.

Temos fontes complementares: população e Censo, estimativas do IBGE e do Datasus, pois o Censo é realizado a cada dez anos, e temos trabalhos anuais. Os dados internacionais vêm da Organização Mundial da Saúde, no sistema que se chama “Mortality Database”. São as informações ofi ciais dos Ministérios da Saúde que são enviadas para a Organização Mundial da Saúde, como mandam o Brasil e os demais países do mundo.

Como defi nimos juventude? Defi nimo-la de muitas formas. Lamentavelmente, temos que defi ni-la por idade. Digo lamentavelmente porque todas as nossas informações são registradas por idade. Não é uma boa defi nição. Juventude não se defi ne por idade, diferentemente de criança e adolescência, que tem um correlato fi siológico claro. Por exemplo, adolescência é o período no qual se desenvolvem as características sexuais secundárias, o indivíduo se torna sexualmente reprodutivo, etc., etc. Adolescência ainda tem uma defi nição e podemos estabelecer um período; juventude, não. Sabemos mais ou menos quando começa a juventude. Começa no fi nal da adolescência, quando o indivíduo atinge o pleno potencial produtivo e reprodutivo. Pode entrar na produção e pode entrar na reprodução, mas a sociedade considera que ainda não está bem preparado. Isso depende da complexidade da sociedade. Quanto mais avançada uma sociedade, mais tempo ela dá para preparar a sua juventude. Nas sociedades primitivas, com os rituais de iniciação, quebrar um dente, quebrar uma perna ou caçar um leopardo era o sufi ciente para passar da infância à maturidade. Não havia transição.

José Vicente Tavares, no Rio Grande do Sul, fez um estudo com os colonos do vinho. As crianças já trabalhavam, já brincavam com pá e enxada, já desempenhavam os papéis que iriam desempenhar quanto atingissem 13, 14 ou 15 anos de idade.

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Quanto mais complexa uma sociedade, mais tempo dá aos seus jovens para se prepararem.

Se trabalhamos com esse conceito, sabemos que temos jovens em nossa sociedade. Há pessoas na sociedade que nunca tiveram e nunca terão juventude. São jovens de classe baixa que têm de trabalhar e não podem ser preparados.

Como temos de trabalhar com categorias etárias, pois, caso contrário, não encontramos informações, tomamos uma faixa etária e tentamos visualizar como demarcar essa faixa etária. Trabalhamos com a faixa de 15 a 24 anos.

Aí começamos a ver que o jovem não só vive de modo diferente. Se temos um produto de mercado que se chama juventude - vende-se moda jovem, música jovem, roupa jovem, tudo o que é da juventude se converte em objeto de mercado - quer dizer, se há uma especifi cidade de vida, também há uma especifi cidade de morte. O jovem morre de forma diferente.

No Brasil, de 1980 a 2004, a taxa de mortalidade cai, melhora a esperança de vida e melhora a nossa posição no ranking do IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, porque melhorou a esperança de vida do brasileiro. Há uns dias, saiu uma notícia do IBGE de que melhorou mais ainda, mas, para a juventude, piorou! Entre 1980 e 2004, sobe de 128 para 130 em 100.000. O jovem está atravancando a melhoria da esperança de vida de todo o Brasil, porque é a única faixa etária em que a mortalidade aumentou nos últimos vinte anos.

E não é só isso: o jovem morre de forma diferente por causas naturais. Chama-se de causa natural problemas de saúde e enfermidade. Quanto à população que ainda não chegou a ser jovem, de 0 a 14 anos, e a que já deixou de ser jovem, de 25 anos ou mais, 90% morre de enfermidade, de causas naturais. Quase 40% da mortalidade juvenil no Brasil se deve a homicídios. A cada 10 mortos jovens, 4 morreram por homicídio. Na população não-jovem, morrem 3 a cada 100. De 40%, passa para 3%.

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Por acidente de transporte, entre os jovens, morrem 17%, e entre os não-jovens, 2,8%.

Por suicídio, morrem 3,6%, e, entre os não-jovens, 0,10%. Isto nos preocupou: tentar explicar esse diferencial de mortalidade, porque dá o diferencial da forma de viver do jovem.

Vamos abordar primeiro os homicídios. Em 1994, segundo dados ofi ciais do Ministério da Saúde, o Brasil registrou 32.603 homicídios para a população total. Em 2004, foram 48.374 homicídios. Houve uma queda. Em 2004, com a campanha do desarmamento, se tudo continuasse igual, esperava-se 54.000 homicídios. Houve 48% de aumento. O que isso quer dizer? Que morrem 133 pessoas, por dia, vítimas de homicídio no Brasil.

Quanto aos jovens, em 1994, morreram 11.330, e, em 2004, morreram 18.599. Se, na população em geral, houve 48% de aumento, entre os jovens, houve 64% de aumento. A taxa já era alta e cresceu ainda mais. São 51 jovens que morrem por dia. Só isso!

Se alguém citar a quantia de 1 bilhão ou de 10 bilhões de dólares, eu não sei o que signifi ca. Para mim, é exatamente o mesmo. Eu posso me referir ao valor concreto. Eu sei o que faria com 100 mil reais, com 200 mil reais. Por exemplo, de 1 milhão para cima, dá no mesmo, pois é uma cifra inatingível.

Acontece o mesmo com a mortalidade. Dá no mesmo 10, 20, 30. São cifras. Se morre uma pessoa, sentimos muito. Se morrem 10 pessoas, ah, é uma chacina. Num acidente, morreram 150 passageiros. Vejam que fato bárbaro. No entanto, quando começamos a falar de 7%, 300%, 2.000%, 5.000%, nosso cérebro não encontra referências concretas para esses valores. Então, vamos buscar duas referências concretas.

Esses são confl itos armados no mundo. Selecionei alguns confl itos. No Brasil, em 2004, morreram 48.374 pessoas. Na Guerra da Chechênia e Rússia, que durou dois anos, morreram 50.000 - 25.000 pessoas por ano. Metade! Na Guerra Civil da Guatemala, que durou 24 anos, houve um extermínio das populações

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indígenas. Morreram 400.000 pessoas - 16.000 por ano. E aqui morreram 48.000 em um ano! Verifi quem os dados.

Se morreram 18.000 jovens no Brasil, morreram mais jovens que na Guatemala, na Guerra do Golfo, na Guerra Civil de El Salvador e na Guerra de Angola, que também foi de extermínio. Nossas referências concretas: no Brasil - não há confl itos étnicos, não há confl itos religiosos, não há confl itos de fronteira, não há confl itos de nacionalidade e não há confl itos de língua - morre mais gente que em confl itos étnicos abertos e declarados.

Outro dia, saiu no jornal que, em Bagdá, morreram, vítimas de atentado, oitenta pessoas. Oitenta! Aqui, todos os dias, morrem 133 pessoas vítimas de homicídio e não há nenhum escândalo. Essa é a referência concreta que temos de introduzir em nossa mente quando falamos de vítimas, principalmente de vítimas jovens.

Está sendo produzido um fenômeno raro de interiorização nos últimos quatro anos. Se a violência, os homicídios, eram patrimônio das grandes metrópoles, começou, em 1991, a ocorrer um processo de interiorização. Cidades desenvolvidas do interior estão se constituindo em focos dinâmicos da violência ao acompanhar os focos de crescimento urbano e crescimento econômico.

Se discriminamos por idade, aqui está 0 anos, 4 anos, 80 anos de idade. Vemos que a morte cai justamente na faixa dos 24 anos, a ponta do Everest da mortalidade por homicídio no Brasil. Até 12 anos, é a mortalidade residual, a mortalidade doméstica e pouco perceptível. Dos 12 e 13 anos, começa a crescer barbaramente até os 18 anos de idade. Aí há uma infl exão bárbara: mais de 2.000 mortes em cada faixa etária e depois começa a cair, suavemente. Ponto fundamental: a mortalidade atinge principalmente a nossa juventude.

Por sexo, 92% das mortes por homicídio na população total e 93,7% das mortes por homicídio na população jovem são homens.

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Morre, fundamentalmente, homem jovem. Por raça e cor, essas são as taxas de homicídio para a

população branca, e essas são as taxas de homicídio para a população negra. Para a população jovem, a taxa da população branca é de 34,9 homicídios em 100.000 brancos. A taxa da população negra é de 64,7 em 100.000 jovens. O que tal número quer dizer? Que há 85% a mais de vítimas negras do que de vítimas brancas. Morre principalmente jovem, homem e negro.

Também temos um fenômeno: morrem principalmente nos fi nais de semana. Não se morre em qualquer dia. No fi nal de semana, aumenta em aproximadamente 70% a mortalidade de jovens. Nos dias de semana, morrem, em média, 42 jovens por dia - todas as segundas, todas as terças, todas as quartas, todas as quintas e todas as sextas, morrem 42 jovens. Nos sábados e nos domingos, morrem, em média, 72. É aproximadamente 70% a mais. Isso, sem considerarmos a mortalidade de sexta-feira à noite e de segunda de madrugada, porque tenho dados de meia-noite a meia-noite. A diferença deve ser maior, porque aí entra a farra de sexta-feira e a ressaca de segunda-feira.

Em 2004, comparada a posição do Brasil com 84 países do mundo - e temos dados fi dedignos da Organização Mundial da Saúde - vemos que o Brasil, em mortalidade geral, com uma taxa de 27 para cada 100.000 habitantes, ocupa o quarto lugar, depois de Colômbia, Venezuela e Rússia. Esses países - Venezuela, Rússia e Brasil - estão disputando, nos últimos anos, o segundo lugar. As taxas da Venezuela, da Rússia e do Brasil são muito próximas. Num ano, é a Rússia, no outro ano, o Brasil é o segundo lugar, no outro ano, é a Venezuela. Eles vão se alternando. Os três têm os “louros” do segundo lugar em vítimas de homicídios.

Por outro lado, em população jovem, o Brasil ocupa o terceiro lugar, e não o quarto. Fica depois da Colômbia e da Venezuela. Na Rússia, diferentemente do resto dos países, a mortalidade é fundamentalmente adulta.

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Para que vocês vejam que mortalidade juvenil e homicídios são questões fundamentalmente culturais, discriminei os países segundo órbita, esfera geopolítica. Em países de tradição muçulmana ou árabe, praticamente não há homicídios. A média é menos de 1, e nós temos 27. Em países da órbita da comunidade européia, também é menos de 1. Em países da órbita do Pacífi co, asiáticos, também é menos de 1. Só países latino-americanos e países da órbita da ex-União Soviética, depois que começou o descalabro da União Soviética, da Europa central e leste, têm elevadíssimas taxas de homicídios.

Vamos falar de vitimização. Morrem mais jovens que o resto da população. No Brasil, a cada 100.000 jovens, morrem 51,7. Na faixa dos não-jovens, isto é, de 0 a 14 e de 25 anos ou mais, morrem 20,8. O que isso quer dizer? Que, no Brasil, a vitimização é de 148%. Proporcionalmente, morre 148% a mais de jovens que no resto da população, na população não-jovem. Nas capitais, essa cifra é absurda: morrem quase 200% mais jovens do que não-jovens.

Esse é o último quadro de vitimização. Se fazemos a história das taxas jovens e não-jovens de 1980, vamos verifi car um fato bem estranho. Em 1980, a taxa dos não-jovens era de 21,3 em cada 100.000. Em 1990, caiu para 18,1; subiu um pouquinho, em 2000, para 20,8. Então, de 1980 a 2004, a taxa não-jovem permaneceu mais ou menos constante. Está um pouquinho menor. Melhorou pouca coisa: de 21,3 para 20,8.

Dêem uma olhada na taxa jovem: passou de 30 para 38,8 e depois para 52. Conclusão rápida: a história da violência homicida no Brasil é a história da vitimização da nossa juventude. Não tem história fora da vitimização da nossa juventude. A violência homicida só aumentou nos últimos vinte e quatro anos em relação à nossa juventude. O extermínio da nossa juventude é maior do que a guerra declarada que temos agora no mundo.

Acidentes de transporte: depois de um período de

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crescimento que dura até 1997, período da nova lei de trânsito, há uma queda. Como nada foi feito desde então, começa a subir barbaramente, outra vez, a partir do ano 2000. Pararam com as campanhas e acabou o interesse público, e o índice acabou subindo de novo rapidamente. Aumentou 20,8% na população total e 24,3%, na população jovem.

Há um fenômeno de interiorização. Vejam aqui a população total nas capitais: sobe, cai e retoma. No interior, cai com a lei de trânsito, retoma barbaramente, e está muito maior do que em 1997, antes da lei do trânsito. Com a população jovem, idem. Entretanto, há uma diferença: se, no interior, é maior o número de mortes de adultos por acidentes de trânsito, nas capitais, é muito maior o número de mortes de jovens em acidentes de trânsito. O que quero dizer com isso? Há um processo de interiorização que está acompanhando novas formas de dispersão territorial do crescimento econômico e da urbanização.

Por faixas etárias, vemos que há uma queda em todas as faixas etárias, menos entre 20 a 24 e 25 a 29. Houve crescimento. Por quê? Não sei. São as únicas faixas que cresceram nos últimos dez anos. Cresceu o índice de mortalidade de acidentes de transporte. Deveria haver uma certa preocupação das autoridades para pesquisar as razões e tomar as medidas correspondentes.

Nesse caso, também morrem muito mais homens que mulheres: 81,5 das mortes em acidentes de trânsito são de homens.

Também há um acréscimo enorme nos fi nais de semana. Nos dias úteis, morrem 82 pessoas por dia, e, nos fi nais de semana, 134. Entre os jovens, há um aumento de 132% nos fi nais de semana. Provavelmente, pegam o carrinho do papai, bebem, etc. Em conseqüência, morte em acidente de trânsito.

Em relação aos países - aos 84 países analisados - estamos na posição 16, com uma taxa de 19,9. É muito alta ainda. Não é tão trágica quanto os homicídios, mas ainda é muito alta. Estamos

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na posição 26 quando se trata de mortes de acidentes de trânsito entre jovens.

Praticamente, não existe vitimização juvenil nessa área. Não temos os problemas de outros países, tais como jovens arruaceiros no trânsito. Eu me lembro de que houve uma época aqui em Brasília em que os jovens pegavam o carrinho do papai e faziam arruaça. Não temos vitimização, por isso estamos no 16º lugar quando se trata de mortes totais da população, e em 26º, quando falamos em mortes juvenis. O que isso quer dizer? Que outros países têm esse problema de meninos arruaceiros com carro. Não temos esse problema, pois essa notícia foi divulgada pela imprensa. A vitimização de 15% é praticamente inexistente, é muito baixa.

Suicídios. Praticamente, estamos estagnados na faixa de 4 a 5 suicídios desde 1994. Cresceu um pouco, principalmente na população total. A taxa entre os jovens era um pouco maior, e vai acompanhando, com poucas diferenças, as taxas do resto da população. Morreram 5.900 pessoas em 1984, e 8.000, em 2004, vítimas de suicídio.

Os suicídios se espalham por todas as faixas etárias, fundamentalmente a partir dos 20 a 24 anos de idade, e vão aumentando progressivamente... Não sei por que há uma faixa que cai, mas geralmente é um crescimento concomitante com o crescimento da idade - quanto mais idade, mais propensão ao suicídio, por enfermidade e outros motivos. Há uma anomalia nessas duas casas, mas, em geral, há um aumento concomitante.

Novamente aqui, a maior parte é de homens - 78,7%. Isso já foi registrado no último Censo, pelo IBGE. Toda essa mortalidade, fundamentalmente por homicídios, mas também por acidentes de transporte e suicídios, está originando, a partir dos 20 anos de idade, um forte desequilíbrio de sexos no Brasil. Há muito mais mulheres que homens devido a essa mortalidade excessiva que temos por causas violentas.

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Uma colega jornalista tem uma tese da qual não compartilho, mas é a sua tese. Verifi cando os dados, ela estabeleceu essa hipótese. Homem morre por qualquer coisa - homicídio, acidente e suicídio; a mulher não, pois a mulher agüenta pancada, agüenta tudo. Mulher não morre por nada. A mulher é muito mais forte que o homem. Eu não concordo com essa hipótese, mas os dados parecem evidenciar isso.

No ranking internacional por suicídios, fi camos nos últimos lugares. Ocupamos a posição nº 67 no total, e a posição nº 66 nos suicídios juvenis. Conclusão que se tira desse caso, para o Brasil e para a América Latina: prefere-se matar o outro do que se suicidar. Em outros países, acontece o contrário. É verdade. Visto o ranking, vista essa confi guração de 84 países do mundo, só em 14 países é maior o número de homicídios do que o número de suicídios. Em todos os demais países, é maior o número de suicídios que de homicídios, e, desses 14 países em que é maior o número de homicídios, 11 são países latino-americanos. Latino-americano, em caso de confl ito, prefere matar o outro a se matar.

Vou falar rapidamente sobre armas de fogo. Em 2004, experimentou-se uma forte queda, de aproximadamente 10%, do número de vítimas de armas de fogo, resultado diretamente imputável por procedimentos experimentais do estatuto do desarmamento, da campanha do desarmamento e da entrega voluntária de armas. Ainda assim, as nossas taxas são enormemente elevadas no contexto internacional. Apesar de ter caído 10%, ocupamos a 1º posição. Nossas diferenças eram tão amplas com referência ao resto dos países que ocupamos a 1ª posição internacional em vítimas jovens por armas de fogo e a 2º posição em vítimas na população total.

Com uma taxa de 20,7 mortes em 100.000 habitantes, por armas de fogo, o Brasil ocupa a 2ª posição, logo depois da Venezuela, e a 1ª posição, com 43,1, no ranking de mortes juvenis por arma de fogo. Nossas taxas são totalmente insuportáveis,

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vistas as condições normais de países medianamente civilizados. O que quer dizer isso? A mim me surpreende que uma campanha bem sucedida, como foi a do desarmamento, praticamente não seja mais mencionada pelo poder público ou não conste de suas iniciativas. Caiu no esquecimento - não sei o que aconteceu -, apesar de ter sido avaliada como uma campanha bem sucedida e ter conseguido reduzir em 10% as vítimas.

Ao terminar, quero dizer que a preocupação com a nossa juventude tem que ser excessiva, porque ela está sendo vítima de um extermínio. Essa visão maniqueísta que temos da classe baixa como geradora da violência, se correta, é extremamente parcial. É um grupo humano que é, ao mesmo tempo, o principal algoz e a principal vítima da violência brasileira, extremamente elevada. Se não podemos contribuir de uma ou de outra forma para criar consciência em relação a esse problema - temos dito, na Psicologia, que temos de respeitar -, que o primeiro passo da cura é a consciência da enfermidade. Com a consciência da enfermidade, não se garante a cura; porém, não há cura sem consciência da enfermidade.

Com isso, quero dizer que temos que tomar muito mais cuidado com o nosso trabalho com o jovem no Brasil.

Vocês podem encontrar esse trabalho, que é vendido e também distribuído gratuitamente, no seguinte site: www.violenciasnasescolas.org.br. Há uma versão completa e uma versão resumida desse trabalho.

Renato Roseno Advogado, ex-conselheiro do Conanda e Assessor da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança

Eu gostaria de agradecer imensamente ao Conselho Federal de Psicologia por este seminário, que é muito importante não só para a categoria dos psicólogos como também para o debate político brasileiro sobre direitos humanos e, em especial, sobre

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direitos humanos das crianças brasileiras. Portanto, eu queria fazer esse debate e participar desta Mesa com essa perspectiva. Obviamente, é uma agenda relevante dos profi ssionais da Psicologia e, sobretudo, da agenda política necessária para a efetivação dos direitos humanos no Brasil.

Falo em nome próprio. Não estou aqui como mandatário de nenhuma organização ou instituição. Desde o início, disse à Monalisa sobre a necessidade de o Conselho Federal de Psicologia e, em especial, a Comissão Nacional de Direitos Humanos, iniciarem um diálogo com a Associação Nacional dos Centros de Defesa, representante, no Brasil, do DCI, que tem feito uma campanha mundial para o fi m do encarceramento de crianças e adolescentes.

É disso que eu gostaria de tratar hoje. Eu também gostaria de agradecer muito ao prof. Júlio.

Tenho dito, pois temos nos encontrado em outras ocasiões, que a contribuição que ele vem dando, como intelectual, como profi ssional, desde a época em que estava na Unesco e, agora, na OEI, é fundamental para tirar o véu de invisibilidade que hoje ainda persiste sobre a maior tragédia que este país vive: a morte em massa da nossa juventude. Sou leitor, desde a primeira edição, do Mapa da Violência, e temos falado muito disso. Quando a Anced apresentou, ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU, com o Fórum DCA, o relatório da sociedade civil sobre a situação dos direitos da criança, um dos temas foi homicídio. Achávamos que aquele momento era fundamental para as esferas internacionais de direitos humanos discutirem por que este país mata tanto a sua infância.

Levando a refl exão ao tema do nosso seminário - proteção integral dos direitos daquele adolescente que está privado de liberdade -, faço outra pergunta: por que somos tão perversos com a nossa infância e com a nossa adolescência?

Enquanto o Dr. Julio falava, eu me lembrava do Legião Urbana:

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“E há tempo nem os santos têm ao certoA medida da maldadeHá tempo são os jovens que adoecemE há tempos o encanto está ausenteE há ferrugem nos sorrisos.”

No centenário de Hannah Arendt, lembramos uma outra forma de banalização do mal. O que acabamos de presenciar é a expressão disso. Como sociedade, consideramos natural que haja uma outra categoria de nobreza existente no Brasil do século XXI, o Brasil que ainda não conseguiu sequer fechar o seu ideário republicano. Nós, ainda hoje, convivemos com uma outra categoria de nobreza: há, de fato, seres humanos cujas vidas são naturalmente exterminadas ou cujos direitos são naturalmente, de forma muito banal, violados.

Há alguns dias, recebi um telefonema da Subsecretária Carmem - ela pode fazer menção a isso - dando conta de que o “Jornal do Brasil” estava sendo acusado do assassinato de uma senhora no Rio de Janeiro que fazia parte da elite brasileira. Era a ex-esposa de um industrial brasileiro. Acho que vocês viram isso. Aquilo nos assustou muito. A que ponto chegamos! A afronta deliberada de um dos grandes periódicos brasileiros à legislação. Assumidamente deliberada, aquela afronta.

Nós nos fazíamos uma pergunta naquele momento. Obviamente, aquele adolescente cometeu um crime violento, um ato infracional violento se, depois do devido processo legal, fi car confi rmado que, de fato, foi ele o autor, pois ainda há dúvidas. Se a vítima fosse outra, e se aquele ato tivesse acontecido não na Zona Sul, mas em outro território, será que o “Jornal do Brasil” também destilaria a sua ira contra o Estatuto da Criança e do Adolescente, como o fez? Aposto que não, porque todo dia, neste país, como acabou de provar o Dr. Júlio, são pelo menos 50 jovens que morrem de forma violenta, 43 que morrem assassinados por

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arma de fogo e, na faixa de 15 a 17 anos, em especial, são pelo menos 16 adolescentes que morrem todos os dias. Infelizmente, a o espaço dedicado a esse tema é muito pequeno.

Então, estamos de fato - eu me arrisco a dizer - num processo de banalização de uma nova categoria, de uma nova expressão daquilo que a Hannah Arendt chamou, a seu tempo, e agora podemos tentar atualizar, de uma nova banalização do mal. De fato, existem seres humanos de primeira e de segunda classes nesta nossa sociedade.

Digo isso para chegar ao ponto central que me foi solicitado, que é a proteção total daquele que está privado de liberdade. Em primeiro lugar, é necessário pensarmos, portanto, que as categorias de infância e adolescência são socialmente construídas. Não há infância, em todo o período da História, em especial, da sociedade ocidental, assim como não há adolescência e não há juventude.

Hoje, na nossa sociedade, não é possível falar de uma infância, de uma adolescência ou de uma juventude. Não existe infância genérica. Existem infâncias. Não há adolescência, e sim, diferentes expressões da adolescência, que estão, conforme já foi colocado, incluídas nessas duas tipologias - a adolescência de classe média urbana e a adolescência que é símbolo de marginalidade. Sendo essas categorias necessariamente categorias socialmente construídas, é importante que o meu fazer profi ssional seja cotidianamente confrontado com esta pergunta: em que medida, que categoria de infância e que categoria de adolescência estou consolidando? Será que o meu fazer profi ssional é hegemônico ou contra-hegemônico? Em que medida o meu discurso, como profi ssional, seja de que área profi ssional for, e o meu fazer consolidam algumas imagens hegemônicas na sociedade? Em especial, eu queria concentrar a exposição nas imagens já consolidadas em relação à adolescência.

Ao contrário da infância, nós, sociedade ocidental - sei

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que estou conversando com psicólogos e psicólogas, mas vou me arriscar a fazer um parêntese -, historicamente, padecemos, sofremos de síndrome de Herodes. Se, a partir dos séculos XVI e XVII, há a construção da percepção de infância como uma percepção que nos dá enlevo, não ocorre o mesmo em relação à adolescência, sobretudo hoje. Mesmo hoje, apesar de tudo, apesar da banalização do mal, a percepção da infância geralmente ainda é muito vinculada à percepção de enlevo.

Acontece, com a adolescência, de modo diferente. Em geral, a adolescência, em diferentes segmentos socioeconômicos, é percebida como problema, como o que dá trabalho. Quantas vezes nós, em nossos círculos familiares, não reproduzimos essa lógica? Estigmatizamos inclusive a adolescência como algo que, em alguma medida, nos incomoda. Pois bem, essa adolescência, ao longo do século XX, tem recebido, sobretudo do discurso do Direito e do discurso da saúde, diferentes concepções de normalização e de regulação. Obviamente isso depende do extrato socioeconômico do qual estamos falando.

No século XX, em especial no Direito, construímos o discurso do menor para o adolescente pobre, para aquele adolescente que não desejávamos ver nas ruas. No fi nal do século XIX, o Brasil deixa de ser agrário e passa a ser um país industrial, ou seja, deixa de ser um país rural e passa a ser urbano, em um processo de urbanização muito rápido e muito violento, em alguma medida, e, na virada do século XIX para o século XX, constrói o discurso do menor, constrói a identidade daquele que era o ser humano que precisava ser regulado, controlado, e, em alguma medida, higienizado. Os nossos primeiros discursos e as nossas primeiras concepções eram profundamente higienistas. Vemos isso muito claro na saúde e no Direito.

O que se dizia na virada do século XIX para o século XX? É necessário “salvar” aquele corpo, regulá-lo, educá-lo e discipliná-lo, sobretudo porque, naquele momento, estávamos falando

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de uma sociedade de disciplina, de sociedades disciplinares. Era necessário disciplinar aquele corpo, corrigi-lo, para que não fi zesse mal a si e a outro. De que “menor” se falava à época? Do fi lho das classes populares, não era do das elites, que merecia ser disciplinado e controlado.

Logo na seqüência, derivado do menorismo, construímos o discurso da situação irregular. Este, em especial, é mais opressivo. Aí, mais claramente, o Estado deveria regular e se opor àquele menor que estava em situação irregular. Além de ser um corpo que deveria ser controlado e disciplinado, ele era potencialmente perigoso porque estava em situação irregular. E o que era a situação irregular, senão a situação de classe? Quem estava em situação irregular? Sobretudo aqueles que estavam em uma determinada condição de classe vulnerável, mais uma vez, as classes populares, os mais pobres. Estes estavam em situação irregular.

Demoramos muito, até a década de 80, para que o movimento... Isso não acontece, obviamente, só no Brasil; é um movimento internacional. O mundo demorou muito. A primeira declaração sobre os direitos da criança é de 1924. É uma declaração de cinco artigos, da Liga das Nações, muito impulsionada pelo que havia no mundo, após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. Havia milhões de órfãos no mundo. Eram os órfãos da Primeira Guerra e dos anos subseqüentes à Revolução Russa. Então, a primeira declaração da criança, que foi escrita em 1923, mas adotada como declaração da Liga das Nações - não havia Nações Unidas ainda - em 1924, é muito voltada para essa lógica. Não era a lógica da universalidade dos direitos, do reconhecimento da humanidade da infância e da infância como ser humano e, portanto, credora de direitos, mas sim, de uma infância que deveria ser assistida.

Só em 1959, no âmbito das Nações Unidas, os países conseguem elaborar um discurso mais próximo do universalismo,

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que é o da Declaração da Criança. Entretanto, esse discurso só vira direito material que pode ser reivindicado, que vincula os Estados juridicamente, em 1989, data da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

Portanto, falar em proteção integral, ou seja, falar da superação do menorismo e da superação da situação irregular, é fato muito recente. A proteção integral dos direitos da criança, como doutrina das Nações Unidas, foi um debate do fi nal dos anos 70 ao fi nal dos anos 80. Foi um dia desses, do ponto de vista histórico. Estamos falando de reconhecimento da infância e da adolescência, no caso brasileiro, como sujeitos de direito, ou seja, como portadores de direitos, como credores de direito. É algo muito recente.

Digo isso, voltando ao ponto inicial, para dizer: em que medida as nossas cabeças não são cabeças menoristas? Vou falar em especial com os nossos juízes, promotores e advogados. Apesar da vigência, há dezesseis anos, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do art. 227 da Constituição de 1988, quantos, numa contradição “sui generis”, são aplicadores menoristas de uma legislação de proteção integral, ao contrário do que aconteceu em outras partes de mundo.

Vou abrir outro parêntese. Quando falei em operadores do Direito, não falei de técnicos do Direito, não falei de juiz; estou falando de vocês.

Em alguns países, há operadores mais avançados que a norma. No Brasil, geramos uma situação “sui generis”. Por causa do movimento social, muitas vezes, temos a situação do aplicador, de formação menorista, e, portanto, ele quer regular, disciplinar, controlar e punir, por uma normativa inspirada na proteção integral - portanto, da universalidade dos direitos, da indivisibilidade dos direitos, da interdependência dos direitos e da responsabilidade em relação aos direitos.

Sendo essa a nossa trajetória e vivendo nessa nossa

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contradição, pois, afi rmo eu, ainda temos hegemonicamente uma tendência menorista, o que é necessário para suplantar essa tendência menorista e chegar a uma concepção de proteção integral? O que viria a ser essa proteção integral? Como já falei, precisamos reconhecer a condição humana da criança e do adolescente.

Aqui eu gostaria de abrir um outro parêntese. Enquanto a Convenção Internacional dos Direitos da Criança trata como criança todo ser humano abaixo dos 18 anos, o Brasil inova. Nós geramos, juridicamente, a categoria adolescente. Isso é muito importante! Essa é uma contribuição brasileira para o debate internacional sobre os direitos da infância. Devemos entender que essa infância não é uma infância genérica, porque tem classe, raça, gênero, etnia, local de moradia e orientação sexual, e também que não é a mesma se tem 5 ou se tem 16 anos. Portanto, está correto o Estatuto da Criança ao fazer a diferenciação. O Direito também deveria expressar a diferença de se ter 5 anos ou de se ter 16 anos, e não só em relação à responsabilidade. Quando digo isso, as pessoas imediatamente vão ligar ao que é mais óbvio, que é a responsabilidade. A experiência humana de ter 5 anos e a experiência humana de ter 16 anos são absolutamente diferentes. Vocês sabem disso. Não preciso explicar muito.

O que é essa proteção integral? Primeiro, reconhecer esse sujeito como sujeito de direito. Reconhecer a sua condição humana. Repito: não foi fácil. Demoramos muito para ter um tratado internacional que reconhecesse a condição humana da criança. Segundo, a condição diferenciada, geracional, daquele ser humano. Portanto, ele é um ser humano que, em função da sua geração - e aí estamos falando de direitos humanos geracionais -, tem direitos especiais.

Quando estamos na unidade e na política pública, é importante fazermos sempre esta vinculação: estamos trabalhando com direitos humanos geracionais. Estamos trabalhando com seres

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humanos que, em função da sua condição humana e dos princípios de direitos humanos, reivindicam a universalidade dos direitos, todos os direitos a todas as pessoas, a sua interdependência, a sua indivisibilidade e, sobretudo, a responsabilidade. Por sua condição geracional, reivindicam direitos humanos especiais.

Em relação ao adolescente ao qual se atribui a prática de ato infracional, essa questão, em especial, é mais complicada. O que está por trás do menorismo ou da situação irregular? O que está por trás da doutrina do menorismo do início do século e da situação irregular de meados do século XX? Na prática, são perspectivas discriminadoras, controladoras e higienistas. Em geral, queríamos tornar invisível aquele adolescente. Não queríamos que ele existisse. Na prática, é isto: não queríamos que ele existisse. É isso que o menorismo e a situação irregular dizem do adolescente. Queremos retirá-lo das nossas vistas. Aí entra a questão dos “invisíveis sociais”. Nós achamos que ele não deveria estar aqui. Vamos deixá-lo em algum lugar para que ele fi que longe das nossas vistas. Ele vai ser disciplinado para que, mais tarde, possa voltar a ser visto. Esse é o discurso do menorismo ou da situação irregular. Obviamente, vamos marcá-los para que, mesmo que possam voltar a ser vistos, estejam marcados. Em geral, o discurso do menorismo e da situação irregular é esse. É o discurso da invisibilidade, e, em alguma medida, do extermínio simbólico daquele adolescente que virou um adolescente mau.

Não se pergunta, portanto, o que produziu a situação que levou aquele adolescente à prática de um ato tido como delituoso. Mais uma vez volto, em especial, ao campo do Direito ou ao campo da saúde, porque, através desses dois campos, a sociedade vai dizer o que é normal, o que é certo e o que deve ser feito. Ela vai dizer: existe um ato que não deveria ter sido cometido, um ato que fere. Portanto, se a pessoa cometeu aquele ato que não deveria ter cometido, será punida por aquilo. Os dois discursos, o do menorismo e o da situação irregular, ao contrário do da proteção

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integral, não perguntam o que levou aquele adolescente àquele contexto no qual cometeu um ato que, em tese e pela lei, fere a normalidade.

A proteção integral vai ter outro pressuposto. Portanto, não é simplesmente para punir ou para reprimir. Não se trata, portanto, de oprimir aquele ser humano. Essa é a lógica da proteção integral dos direitos.

Quando lemos as diretrizes de RIAD das Nações Unidas, percebemos muito claramente tal fato. Não se trata de fazer a exortação da pena ou do castigo. Aqui entra um confronto: o que achamos que seja a justiça? Achamos que justiça é devolver dor a quem porventura fez dor? Isso é justiça? Aqui estou dialogando com o Direito Penal do século XIX, que está vigendo até os dias atuais. O sentido da justiça é retributivo: é devolver, no veículo da pena, o castigo. Só que eu digo: o monopólio do castigo é o monopólio do Estado. O Estado vai inocular alguma dor a quem porventura causou dor. Isso é confronto. Esse confronto é contraditório. Quando lemos os documentos internacionais e os documentos nacionais, isso está muito claro. O Estatuto também não é uma peça única. Ele não é linear, inclusive nas suas concepções. Permitam-me dizer que o Estatuto vai ter algum indício de menorismo. Os fatos da vida não são lineares, não são absolutos. Obviamente, são complexos e contraditórios. Estou falando de movimentos muito difíceis de serem separados. A proteção integral vai inclusive questionar o sentido da sanção que deve ser atribuída ao adolescente que cometeu um ato infracional.

Esse é um campo muito polêmico. Várias pessoas, de vários campos do saber, vão defender a idéia de que o sentido da medida socioeducativa, conforme defi nido no Estatuto, é a pena. Todos concordamos que é uma sanção, só que aqui falei individualmente, e entendemos que é uma sanção que não deveria ser penal. É por isso mesmo que ela tem de ser socioeducativa. É por isso que as

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nossas casas de privação de liberdade - são instituições totais e são instituições de privação de liberdade - são chamadas de centros educacionais em alguns Estados. Na prática, não são centros educacionais. Trabalhamos em instituições que não são centros educacionais. O relatório do CFP e da OAB diz claramente: trabalhamos em instituições que humilham, torturam, negam a dignidade.

O que são direitos humanos? São a expressão material da dignidade humana. É a tomada de consciência da universalidade, de que há algo que se deseja a todos os seres humanos. É a fruição da dignidade, mesmo que a dignidade para mim e para o pataxó seja diferente. Nada pode permitir que eu relativize essa universalidade, mesmo entendendo que a expressão da universalidade é culturalmente diversa.

Pois bem, a fruição da dignidade humana é o que dá substância aos direitos humanos, e o que deveria ser o grande sustentáculo ético do nosso fazer profi ssional é, obviamente, a universalidade dos direitos humanos. Portanto, a universalidade da dignidade. Eu pergunto: será que, no nosso fazer, em instituições que humilham e torturam, não estamos porventura entrando em confronto com essa universalidade da dignidade dos direitos humanos? Essa é uma provocação para vocês.

Vou contar uma história. Comecei a militar na área dos direitos humanos na época da faculdade. Eu era estudante e ia para penitenciárias e centros educacionais. Certa vez, um preso - já cansado de ver aquelas visitas de direitos humanos - disse assim: “Lá vem vocês dos direitos humanos de novo. Vocês querem melhorar isso aqui. Eu quero é sair!” Ele tem toda a razão. Há essa contradição. Em alguma medida, queremos melhorar aquilo que não pode ser melhorado, mas é claro que pode. O sistema penal brasileiro e o sistema socioeducativo podem ser infi nitamente melhores. A privação da liberdade é o grande problema, mesmo que se dê em base de fruição da dignidade. A fala daquele preso

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tinha muito sentido, naquele momento: “Vocês querem melhorar isso daqui, e eu quero sair disso daqui.”

Talvez haja uma contradição que não seja resolvível. Para hoje, não é resolvível. Para a ordem capitalista mundial e para a sociedade ocidental em que vivemos, não é resolvível. Estamos querendo melhorar a privação da liberdade. Será que não tem sentido, em alguma medida, o discurso abolicionista de que, em última instância, queremos melhorar o imelhorável?

A proteção integral, portanto, tem que fugir da teoria da rotulação, da idéia do adolescente infrator. Isso está muito claro nos documentos e naquilo que a sociedade e, sobretudo, no que os movimentos dos direitos humanos construíram. Um dos princípios de RIAD é este: classifi car um jovem de “extraviado, delinqüente, pré-delinqüente” geralmente favorece o desenvolvimento de pautas permanentes de comportamento indesejado. O nosso discurso, o discurso hegemônico, ainda é o discurso da rotulação. Nós rotulamos. Você é delinqüente, infrator, indesejado. Essa rotulação é introjetada, e vai fazer parte da consciência daquele adolescente.

Então, para ter proteção integral, é necessário superarmos não só o menorismo mas também a teoria da rotulação. Eu já ouvi, mais de uma vez, e vocês também já devem ter ouvido o seguinte: “Para mim não tem mais jeito!”. Já ouvi isso muitas vezes. “Para mim não tem mais jeito”. Com 16 anos, ele mesmo estava se rotulando.

Sendo, portanto, adolescente, ou seja, existindo como adolescente, tenho que entender a sua condição peculiar de adolescente, e é muito difícil ser adolescente hoje no mundo. É muito difícil por muitos motivos. Ficar vivo já é difícil, e ser adolescente é muito difícil. Em geral, as nossas instituições de privação de liberdade são instituições de humilhação e tortura. Portanto, elas não são algo para nenhum ser humano, especialmente para um ser humano que está vivendo a sua adolescência, que vai passar uma parte da sua adolescência

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dentro de um centro desses. É difícil ser adolescente hoje.Eu queria fazer um outro parêntese. É difícil ser adolescente

sobretudo nos centros urbanos brasileiros. É muito importante que nós, que estamos trabalhando com a adolescência e com a juventude brasileira, entendamos a questão urbana. O nosso fazer político e profi ssional não pode prescindir de uma análise sobre os nossos padrões de desenvolvimento urbano. As cidades brasileiras hoje são muito ruins. São muito ruins. Viver, nas nossas cidades hoje, com raríssimas exceções... A qualidade de vida urbana hoje, no Brasil, é muito ruim. Ela leva a um mal-estar permanente, ao medo permanente, à violência, ao confronto, à dissociação. A cidade, que foi uma invenção destinada a associar, com raras exceções, dissocia. Então, aquele adolescente que está na nossa frente é um adolescente urbano das cidades brasileiras, dos assentamentos urbanos brasileiros. É como enxugar gelo, se eu não trouxer para o meu fazer profi ssional a refl exão sobre o seu espaço urbano.

Ele veio de onde? Ele vai voltar para onde? Qual é a comunidade, o território no qual está inserido? Será que ele não é rotulado, por estar naquele território? Várias vezes, os jovens - nós já presenciamos isso - não dizem qual é o bairro em que moram na entrevista de emprego. A rua, o bairro... Vimos isso várias vezes. Onde estão os centros educacionais? Em que parte das cidades eles estão? Normalmente, nos espaços menos valorizados, nos espaços periféricos.

Na cidade em que vivo, recentemente, o órgão público municipal quis instalar um abrigo num bairro da classe média. Houve revolta do bairro. O bairro fez um abaixo-assinado. Um membro da magistratura das cercanias utilizou o seu poder de juiz para impulsionar a retirada do abrigo, que não deveria estar ali. Quando ele diz isso, diz, portanto, que aquela instalação tem um lugar, tem um outro lugar. Aquele abrigo, com o que há dentro dele, tinha que estar em outro lugar.

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Institucionalização. Essa questão é a mais complicada, e a Subsecretária Carmem vai falar sobre o Sinase. Para nós, a idéia de ter um Sistema Nacional Socioeducativo é fazer com que a sociedade brasileira recoloque o tema da institucionalização em bases críticas. Mais uma vez, volto àquele preso lá no Ceará: melhorar o imelhorável. Estamos tratando da institucionalização de pessoas que serão levadas, contra a sua vontade, a instituições totais como uma medida de sanção. Em que medida essa institucionalização pode ser muito menos castigo, pode ser muito menos humilhação, pode ser muito menos tortura e pode ser mais educação? A pergunta é essa. Por isso, há uma contradição insuperável, e vamos ter que conviver com essa contradição. Estamos falando de uma institucionalização em outras bases. E a pergunta que deve fi car não-respondida é: será que, de fato, isso é possível? Institucionalização em outras bases? Eu arrisco a dizer que sim. Claro! Basta entrarmos em qualquer instituição de restrição de liberdade do Brasil, com raras exceções, e vamos dizer que é possível ter aquela institucionalização em outras bases. Eu acho que sim, eu acho que é possível. Vai depender muito do nível dos orçamentos, das rotinas pedagógicas, do plano individual. Vai depender de tudo isso, dessa ordem de fatores da política, e depende muito do compromisso e da qualidade do meu saber profi ssional. Muito!

Uma amiga dizia que é mais fácil capacitar um comprometido do que comprometer um capacitado. Concordo com ela. Eu não colocaria a ordem das competências na ordem exclusiva da formação tecnocrata, vamos chamar assim. Não se trata só disso. Trata-se, de fato, da formação ética e política daquele profi ssional para que ele possa estar numa instituição de privação de liberdade, e não pode ser emprego, até porque é um emprego mal-remunerado. Em geral, com raras exceções, é assim, e vocês sabem disso. É um exercício, em alguma medida, de desapego, mas também é um exercício de utopia, dessa utopia que nos

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alimenta. Falar de proteção integral em um lugar de privação de liberdade, falar de um discurso não penalizante, de um discurso que se confronta com o padrão de justiça retributiva, de tentar implantar um discurso de justiça restaurativa, ou seja, mais do que perguntar “o que ele fez?”, perguntar “e agora?”, é uma utopia. Portanto, é um exercício de desapego e é um exercício de utopia.

O núcleo do discurso que sustenta os direitos humanos é a utopia de que a experiência humana possa se dar em outras bases. Não podemos abrir mão dessa utopia em função do nosso fazer profi ssional. Concretamente, já vimos abrindo mão de utopias ao longo das décadas, e tem acontecido isso. Somos uma sociedade que matou mais os seus jovens em 2004 do que matou em 1994. Estamos piorando, desse ponto de vista. Desse ponto de vista, como coletividade, sociedade e comunidade, estamos piorando. Estamos matando mais as nossas crianças, os nossos adolescentes e os nossos jovens. A prova está aqui. Uma das participantes deste seminário está enterrando o fi lho!

Contra tudo isso, contra essa tormenta, eu só posso ter, obviamente, duas saídas: ou eu enterro a minha cabeça no chão, feito avestruz, e vou exercitar a minha insensibilidade, ou, para tentar conviver com a tormenta, porque não vamos resolvê-la, devo ter algum desapego e utopia. Sendo, portanto, a proteção integral e o trabalho daqueles que estão nas unidades de privação de liberdade baseados na doutrina da proteção integral de direitos humanos, no nosso exercício de desapego e utopia, é necessário entendermos que estamos indo contra a maré. Fica cada vez mais difícil! É desapego, é utopia e é confronto! É ir contra a maré. Por que? Porque a maré é o JB, que estampa, na primeira página, o exercício da violência, a exortação da violência. O discurso que se faz em qualquer cidade brasileira é o da redução da idade penal, é o da pena e o da sanção como castigos. É o culto ao castigo, o culto de que aquele adolescente precisa, de fato, sofrer. É o

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sofrimento como forma de expiação do pecado coletivo. Já vimos isso, e sabemos aonde isso foi dar, na história da humanidade.

Portanto, falar hoje da proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes, sobretudo dos adolescentes em instituições privadas de liberdade, é falar dos princípios de direitos humanos, do desapego que tenho de ter no meu exercício profi ssional para me voltar para os princípios de direitos humanos, afi rmá-los como uma utopia e, sobretudo, como confronto. Aqui encerro, fazendo esse convite para os CRPs, para o CFP e para todos vocês.

Sei que é muito difícil hoje trabalhar para o Estado brasileiro. Sei que é muito difícil estar em uma unidade. Não acho fácil. É difícil, mas tem que ser feito. Temos que fazer, mais do que nunca, a nossa confrontação pública contra esse processo de penalização e criminalização da nossa infância, da nossa adolescência e da nossa juventude.

Não podemos mais tratar o discurso da proteção integral como um discurso do movimento da infância ou, quanto muito, de direitos humanos, e fi carmos circunscritos aos nossos encontros, aos nossos seminários e aos nossos eventos. Isso tem que ser uma bandeira pública. Temos que resgatar o sentido público e político desse fazer e dizer que, contra a criminalização e contra o encarceramento, estamos, de fato, trazendo outra proposta. Devemos dizer para a sociedade: não queremos uma sociedade que puna mais; queremos uma sociedade que violente menos. É isso que está por trás da nossa opção e da proteção integral. A sociedade precisa entender isso. Precisamos estabelecer esse diálogo. Ao contrário do que se pensa, não é encarcerando mais ou matando mais que a sociedade vai melhorar. Ao contrário, ela tem piorado. Portanto, é dizer que a proteção integral talvez seja a única possibilidade, no caso da questão da infracionalidade cometida por adolescentes, de a sociedade melhorar. Estou convencido de que não há outra proposta ético-política em

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jogo. O que está colocado é o fato de a sociedade piorar com a criminalização da nossa juventude. Portanto, é necessário esse engajamento para fazer tal confronto.

Finalizo com duas citações. Ontem eu estava lembrando a música dos Secos e Molhados, “Primavera nos Dentes”:

“Quem tem consciência para ter coragem”, e precisamos de muita consciência para ter coragem;

“Quem tem a força de saber que existe”, sobretudo em uma sociedade em que os adolescentes são instados a não existir;

“E, no centro da própria engrenagem, inventa a contra-mola que resiste.” Quem está na engrenagem hoje? Somos nós. Então, no centro da própria engrenagem, temos que inventar a contra-mola que resiste. É aquela contradição que coloquei entre o nosso discurso abolicionista e a institucionalização; é assumir que somos a contra-mola que resiste.

Para os adolescente, que bom seria se pudéssemos ouvi-los, especialmente aqueles que passaram pelo sistema socioeducativo. Quando me perguntam o que é a proteção integral, sobretudo no sistema socioeducativo, respondo com a música da Vanessa da Mata, que diz mais ou menos isso: “Não vai te faltar carinho, plano ou assunto ao longo do dia.” Como seria bom se, de fato, as nossas instituições pudessem ser isto: carinho, plano e assunto ao longo do dia.

Carmem OliveiraSubsecretária da Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos

Esta apresentação está disponível no site e também aqui no “desktop” que está sendo usado nesta sala. Dessa maneira, podemos combinar o envio, se houver problema nas anotações, pois vou partilhar algumas informações e dados que podem interessá-los neste momento.

Começo pelo surgimento do Sinase. A bem da verdade, é difícil

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defi nir quando emerge uma proposta, porque quem vem do sistema socioeducativo de longa data não vai concordar que isso começe em determinado momento. Essas “contra-molas”, como designou Renato Roseno, estão operando há muitas décadas. Talvez o que tenhamos hoje seja a reunião de contra-molas, como este momento que estamos colocando aqui como início do Sinase.

Há um consenso sobre uma crise no fi nal dos anos 90, e, casualmente, eu estava na Presidência da Febem naquele momento, e senti na própria carne o que signifi cou esse estertor do moribundo, ou seja, da Febem moribunda, que insiste em sobreviver. O que temos nesse momento? Uma sucessão de rebeliões e motins muito graves que, inclusive, em alguns casos, geralmente foram evocados para atestar a periculosidade dos adolescentes, com cabeças decapitadas nos telhados da Febem de São Paulo, violação dos direitos dos internos, superlotação, baixa qualidade do atendimento e, ao mesmo tempo, custos elevados - uma contradição sobre a qual vou apresentar alguns números que possibilitam visualizar mais isso - e uma lentidão no reordenamento dessas instituições. Há um certo avanço, desde 1990, em alguns eixos do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas, seguramente, estamos lidando com a máquina mais emperrada e enferrujada que está para ser desconstruída através do ECA. Ao mesmo tempo, há pressões sociais e demandas punitivas para que outras medidas sejam tomadas, como o rebaixamento da idade penal e o agravamento das medidas.

Só para vocês terem uma idéia, temos aqui um quadro da evolução das internações na última década, que permite demonstrar um pouco o que seria esse momento crítico. Observem uma evolução bastante dramática, pois chegamos a 2006 com o sistema praticamente quatro vezes maior do que tínhamos há apenas dez anos. Se fi zermos uma comparação com o sistema penal, este leva vinte anos para duplicar, no Brasil, e nós levamos dez anos para quadruplicar.

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Podemos demonstrar que é um fenômeno que acontece em todas as regiões do Brasil - Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul - e o crescimento sempre acontece nesses últimos períodos.

Quanto ao crescimento, enquanto a média brasileira foi de 363%, temos Regiões onde esse crescimento foi muito maior, como, por exemplo, no Nordeste, que chegou, em uma década, a um crescimento de 681%. O menor crescimento foi na Região Centro-Oeste. As outras estão mais ou menos na média, mas houve um crescimento bastante elevado no Norte e no Nordeste. Então, aqui temos um sinal vermelho na tendência ao encarceramento, mais concentrada nas Regiões Norte e Nordeste.

É importante fazer uma ressalva. Quando comparamos o percentual de população jovem no Brasil com o percentual de população de internos, vamos observar que, apesar do elevado crescimento do Nordeste, a proporcionalidade está aquém do que temos de fatia de população jovem. Há uma fatia muito grande de jovens, o que torna esse crescimento ainda inferior no que diz respeito à internação. É o contrário do que se observa no Sudeste. A proporcionalidade é de 40% de população jovem, e já ultrapassou em 57% o percentual de internação.

Quanto aos Estados com maior número de internos, fi z o destaque até o 10º lugar. São Paulo, sem sombra de dúvidas, é o maior sistema socioeducativo, mas com uma tendência de decréscimo. Há dois anos, chegou a corresponder a 50% do sistema socioeducativo brasileiro, e há um declínio hoje para 39%. Isso é uma esperança. Se o Estado de São Paulo, com todos os seus problemas, conseguiu fazer essa redução, talvez isso seja menos uma utopia e mais um horizonte de possibilidades.

O Rio de Janeiro tem uma tendência de crescimento. Ele ocupava o 3º lugar, e agora sobe. O Rio Grande do Sul estava em 2º lugar, e baixou para 3º. Pernambuco vem crescendo, e o Paraná está em 5º lugar.

Nesse quadro, está representada a proporcionalidade no

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uso das medidas no sistema socioeducativo. Aqui são os lugares obtidos. O 1º lugar em internação é São Paulo, o 1º lugar em uso da provisória e o 1º lugar na semiliberdade e a maior quantidade de medidas em meio aberto na capital.

Em azul, nesta lâmina, faço alguns destaques. A tabela é mais complicada. Valeria a pena cada um de vocês analisar com mais cuidado. Observem que o Rio Grande do Sul é o 2º lugar na internação, mas é o 10º lugar na semiliberdade, ou seja, ele não usa essa medida da mesma forma que usa a medida de internação.

Observem também o fenômeno do Paraná, que ocupa o segundo lugar na provisória. Qual é o indicativo da provisória? A provisória tem uma característica de indicativo de periculosidade, ou seja, busca-se a salvaguarda do adolescente, a salvaguarda do seu meio, pois esse adolescente é recolhido por determinado tempo até que a medida seja aplicada. Ora, vamos observar depois que o Paraná tem hoje uma população maior na internação provisória do que na internação, o que sugere que estamos muito mais dando “susto” no adolescente do que o seu perfi l possa sugerir um agravamento para fazer uso dessa medida.

Chama a atenção também os dados de Minas Gerais, que ocupa o 8º lugar, um lugar médio, digamos assim. Vamos observar que esse 8º lugar que Minas Gerais assume na internação parece ser às custas do uso da detenção desse adolescente em cadeias e presídios, uma vez que ocupa o 1º lugar em colocação de adolescentes nessas modalidades.

Por último, chama a atenção o Estado do Espírito Santo, o último lugar no uso da semiliberdade, com nenhuma vaga ofertada. No que diz respeito à semiliberdade feminina, chama a atenção o fato de que 17 Estados não têm vagas para essa medida. Então, as meninas certamente fi cam prejudicadas, porque saltam de uma medida de meio aberto diretamente para a internação, sem-meio termo colocado aí.

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Também ressalto a execução de medidas socioeducativas em meio aberto na Capital, que não está implantada em 60% das Prefeituras. Pernambuco, por exemplo, ocupa o 3º lugar na internação e o 20º primeiro lugar em medidas socioeducativas de meio aberto. Então, tem alguma coisa errada aqui...

O levantamento nacional que realizamos neste ano foi singelo - um estudo mais detalhado será realizado no próximo ano, seja no meio aberto, seja no meio fechado -, mas já nos permite ter alguns indicativos. Em apenas quatro anos, tivemos um crescimento de 28% no sistema socioeducativo, e, para nós, gestores, especialmente desta gestão, é preocupante. Tudo que esperávamos de uma gestão petista era incidir nessa tendência de crescimento, e não foi esse o resultado obtido. O maior crescimento foi na internação provisória - medida que mais cresceu, chegando a 34%, sendo que a média foi 28% -, e, na semiliberdade, houve um crescimento de apenas 9%, o que é ainda muito singelo.

Das unidades pesquisadas, 70% estavam em conformidade com os parâmetros de até 40 leitos, estabelecidos pelo Sinase. Isso já é uma boa notícia, ou seja, estamos acabando com os grandes internatos, com os grandes estabelecimentos prisionais, digamos assim, mas isso não garante a qualidade do atendimento. Pode haver “microinfernos” também, não precisa haver Complexos do Tatuapé para haver violação de direitos...

Hoje temos um défi cit de vagas que chega a 3.396, com destaque para Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, todos eles, entretanto, com crescimento do sistema. Pensem: já crescemos tanto assim e ainda temos défi cit de vagas... É uma bola de neve! Quanto mais gira, mais demanda vai surgindo.

Hoje temos 685 adolescentes em cadeias, sobretudo em Minas Gerais e no Paraná. No caso dos dois Estados que ocupam os primeiros lugares no uso de cadeias, sequer estamos falando aqui de Estados pobres ou defi citários, ou de profi ssionais pouco qualifi cados.... Minas Gerais tem 300 adolescentes na cadeia,

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quase metade da situação que temos no Brasil, seguido do Paraná, Goiás, Rondônia e Tocantins, quer dizer, o ECA está sendo rasgado em muitos lugares... Temos, infelizmente, uma situação que eu não gostaria de apresentar a vocês, não para colocar a sujeira debaixo do tapete, mas por ser uma vergonha nacional, um absurdo.

Todavia, houve uma melhora substantiva no défi cit de vagas. Diminuímos consideravelmente o défi cit. Na internação, também houve uma redução importante. Na semiliberdade, temos também mais vagas disponíveis. É a única medida em que não temos défi cit; ao contrário, sobram vagas.

Quanto ao maior “défi cit” de vagas, temos, estourando, Pernambuco. Esse Estado, praticamente, teria que construir um outro sistema socioeducativo - o sistema atual é mais ou menos do tamanho daquele que faltaria construir, caso o investimento fosse nesse sentido. A seguir, aparecem Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais, ou seja, todos eles acima de 300 vagas defi citárias.

Projetando: se o nosso défi cit está ao redor de 3.000 vagas, haveria necessidade de construir 72 novas unidades, com o custo de 568 milhões. Só para vocês terem uma idéia, nesses últimos quatro anos, nós investimos 60 milhões no sistema socioeducativo inteiro, incluindo meio fechado e aberto. Então, na melhor das projeções, a depender da média de fi nanciamento do governo federal (cerca de 27 milhões em obras na última gestão), levaríamos 84 anos para dar conta dessa demanda.

Chamo a atenção para o fato de que não é só o ônus fi nanceiro, é o ônus social dessa opção de construção de mais e mais unidades de internação, o que é incalculável...

Nesta outra lâmina, temos uma demonstração de como cada um dos principais Estados utilizam as suas medidas. Observem o que acontece em São Paulo e no Rio Grande do Sul, com um percentual de internação acima da média. A média brasileira é

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de 79%. O Paraná, embora use menos a internação, usa mais da metade na internação provisória. Chama a atenção também o uso bastante expressivo, no Rio de Janeiro, da semiliberdade, seguramente bem acima da média brasileira. É um Estado que pode ter todos os seus problemas, como concentração das unidades na capital, mas no que diz respeito à semiliberdade, pode nos ensinar muito. Por exemplo, o Rio Grande do Sul está bem abaixo da média, e é o pior Estado no uso dessa medida.

Alguns dados sobre a proporção de funcionários. Aqui estão os lugares que cada sistema ocupa. Por exemplo, São Paulo é o campeão nos quadros de técnicos, de monitores e de administradores. Tem algumas distorções que vocês podem visualizar depois nos seus respectivos Estados, mas eu diria que não é por falta de funcionários que temos a situação agravada no sistema socioeducativo. De longe, isso supera, por exemplo, o que existe de quadro disponível no sistema penal. A proporcionalidade é muito ajustada ao que preconiza o Sinase.

Este aqui é um perfi l razoavelmente conhecido de vocês. Esta é uma pesquisa de 2002 - espero que, em 2007, tenhamos esse dado atualizado - que permite demonstrar quem é o adolescente que está sendo internado. Não é qualquer adolescente. Via de regra, deve ser o mesmo que corre o risco de estar ou que já esteve nas tabelas do Dr. Jacobo. Um adolescente pobre, de baixa escolaridade, de baixo acesso aos equipamentos dessa cidade, aos signos culturais valorizados bem como às demandas dessa sociedade de consumo.

Não há um perfi l agravado, pelos menos nas duas pesquisas que temos disponíveis, nos anos 1996 e 2002. Vocês podem ver que, quanto a delitos contra o patrimônio, houve um certo recuo, e possivelmente “melhorou”, quer dizer, houve uma migração de “business”: o adolescente deixou de roubar e furtar para trafi car. Isso seria a fatia da internação. Contudo, o que justifi ca a internação está claramente colocado no ECA: “graves

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violações de direitos contra a pessoa”. E o que vamos encontrar no socioeducativo? Predominantemente outra coisa...

A situação demonstrada nesta outra lâmina também é conhecida de vocês, pois estava posta no levantamento de 2002 e descrevia realidade dos programas de atendimento na internação. Infelizmente, vemos uma série de irregularidades. Não vou chamar a atenção, mas, a depender do relatório da OAB e do CFP neste ano, subsiste, ainda, pelo menos nas unidades que foram identifi cadas, todo esse tipo de situação apontada no mapeamento de quatro anos atrás.

Em síntese, o que vemos é um atendimento de baixa qualidade nas unidades, onde não existe ambulatório de saúde, onde a escola é de caderno e lápis, e não há biblioteca, etc. Contudo, aqui está a média “per capita” dos custos com a internação. No Rio Grande do Sul, os valores atualizados são de, aproximadamente, R$4.000,00 (quatro mil reais) em média. Ora, com essa quantia, vou levar o meu fi lho adolescente para Luxemburgo ou para a Inglaterra, que têm zero de taxa de violência letal por homicídio, e ele vai aprender duas línguas. Agora, este alto “per capita” não justifi ca que esse adolescente interno só tenha caderno para ir à escola, não tenha livro didático, esteja com chinelo de dedo, não tenha lençol disponível, não tenha ambulatório de retaguarda e tudo o mais. O que justifi ca pagarmos tudo isso para o adolescente ter esse tipo de atendimento? Espero que vocês consigam responder a essa pergunta durante o dia...

Por último, quero apresentar os investimentos que a Secretaria vem fazendo. Os recursos para o programa socioeducativo equivalem a cerca de 70% do orçamento da SPDCA. Neste último ano, evoluímos para destinar metade da previsão orçamentária deste programa para a execução das medidas em meio aberto.

Vinte e um Estados fi zeram convênios para reforma ou construção. Vamos apresentar, na próxima semana, ao Conanda,

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um levantamento de tudo o que o Governo Federal investiu nos últimos dez anos em reforma e construção. Não tenho esse número atualizado. Fico devendo para vocês. Quem está fazendo esse levantamento diz que é algo absurdo... Em especial, porque, em um local onde você pagou uma construção ou uma reforma, é possível que, quatro anos depois, se apresente uma nova demanda de melhoria do equipamento.

Chamo a atenção para o fato de que há, nesse último relatório da OAB e do CFP, unidades colocadas como violadoras de direitos que têm apenas cinco anos de construção, ou seja, são construções recentes e equipes novas que reproduzem o velho modelo Febem.

Chegamos, então, a uma síntese diagnóstica. Até agora, o foco predominante foi nas medidas de meio fechado, mas sem reverter a crescente prisionalização, que se fez acompanhar da criminalização da adolescência pobre. Além disso, vemos que a privação de liberdade nem sempre tem sido usada em situação de excepcionalidade e por breve duração, ou seja, rasgamos o primeiro art. do ECA referente à internação. Já é uma primeira “contra-mola” negativa. Por outro lado, embora não signifi que, a privação de liberdade tem se constituído, sim, em privação de direito dos adolescentes. Por exemplo, os adolescentes não são alvo de distribuição de preservativos. Há uma moral conservadora que diz que estamos incitando a relações homoeróticas dentro das unidades masculinas, porque, afi nal, não há meninas. Então, por que distribuir preservativos? Então, é essa lógica que vai se acumulando..., ou seja, estabelecimento educacional para algumas das situações que analisamos aqui é um eufemismo.

Conclusão: há uma sobrevida do “sistema Febem”, que coexiste com o Sinase, e há esse confronto, muito bem colocado pelo Renato. O que estou defi nindo como “sistema Febem”? Uma defi nição que está no relatório da Caravana de Direitos Humanos, que o deputado federal Marcos Rolim liderou na época:

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“um conjunto de mecanismos institucionais responsável pela reprodução do paradigma de encarceramento”, ou seja, através de várias lâminas, creio ter podido demonstrar como se reproduz essa lógica, e a submissão de adolescentes a um conjunto de procedimentos extrajudiciais - quer dizer, completamente fora da lei. É uma instituição em confl ito com a lei. Uma herança do antigo Código de Menores. O Rolim tem uma expressão que considero bárbara: “A instituição Febem é a fi lha dileta do Código de Menores, ainda largamente hegemônica, que subsiste na vigência do ECA.”

Agora, algumas fotos... A imagem, às vezes, é mais eloqüente que os números. Como podem ver, isso não tem nada a ver com socioeducação2. Nesta outra foto, temos a reação dos adolescentes3. Aí eles se tornam os violadores. Esta outra imagem fala por si4. Isso não tem nada a ver com a proposta de “holding” que, conforme Winnicott, seria o necessário acolhimento, a continência. “Operações especiais” é bárbaro! Nós, técnicos, também inventamos uma categoria: a sala de atendimento especial. A masmorra do isolamento. É um outro eufemismo que constituímos para dizer de um atendimento especial. Eu pergunto: qual é o técnico que visita o adolescente quando ele está no isolamento? Aliás, ele nem poderia estar ali. Tudo o que esse adolescente não tem no isolamento é atendimento especial, inclusive com a nossa cumplicidade, pois sabemos que isso está acontecendo ao lado.

Assim, quais são os desafi os para uma política de direitos humanos? Em primeiro lugar, não economizar esforços para reduzir ao máximo a internação de adolescentes. Ao constituir essa apresentação, fui mais radical, mas pediram que eu diminuísse o meu radicalismo. Eu tinha defendido a abolição da internação de adolescentes. Ok, eu reduzo aqui o radicalismo se fi car mais palatável e nos possibilitar dialogar, mas não reduzo a utopia. Mas eu digo que sim, trabalhamos pelo fi m do encarceramento.

2 Adolescentes de cabeças baixas, raspadas e uniformizados.3 Adolescentes em um pátio de unidade, virando um carro.

4 Adolescentes nus, no pátio de uma unidade, vigiados por policiais militares com uniformes nos quais se lê “Operações Especiais”.

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Venho da luta antimanicomial, e sei que, no início da década de 80, quando começamos essa mobilização, diziam “não coloque antimanicomial”. Éramos gestores públicos, e um gestor público não deveria dizer que era “anti” o principal estabelecimento em questão. Tal estranhamento pode ser semelhante ao que hoje poderia ser uma proposta de fechar as Febens, fechar as unidades de privação de liberdade. Aqui entre nós, sim, eu tenho essa utopia. Como o Renato, acredito que a melhor unidade de internação de adolescente é aquela que nem precisaria existir. Por isso, propomos que afi rmar a natureza socioeducativa da privação de liberdade signifi ca ter consciência de que, do ponto de vista de uma política de direitos humanos, o encarceramento juvenil jamais será plenamente humanizável, ou seja, repressão e educação são incompatíveis, já nos ensinou o mestre Ferrajoli. Não há uma compatibilidade possível aí. Assim como não há o bom manicômio, não há a boa unidade de privação de liberdade. Claro, queremos que ela viole ao mínimo o direito dos que lá estão postos nessa privação de liberdade, mas não queremos que esse sistema cresça e se prolifere temos como visto acontecer nos últimos anos.

Uma outra difi culdade: buscar alianças sociais para a necessária política inclusiva dos adolescentes em um cenário onde vigora a cultura do medo diante da violência urbana e da crise da segurança pública. É a contramão citada pelo Renato. Tive uma experiência interessante nesta semana, em um evento da Secad/MEC, que reuniu trabalhadores da educação do Brasil inteiro. Eles têm um programa novo, bem interessante, chamado “Escola que Protege”. Os trabalhadores da educação estão trabalhando de forma excelente, com identifi cação da violência na escola, da violência sexual dos alunos. Fui lá levar o desafi o da escola inclusiva para os adolescentes em confl ito com a lei. Vocês podem imaginar o desassossego que foi. É muito mais fácil acolher as pobrezinhas das crianças vítimas da violência sexual

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do que os adolescentes supostamente autores da violência...Outro desafi o: enfrentar a crise da interpretação do Estatuto.

Uma pausa aqui, porque acho importante. Essa tendência ao encarceramento não está sendo posta hoje apenas pelos maus intérpretes do ECA, esses que são declaradamente punitivos. A tendência ao encarceramento também está sendo favorecida pelos ditos bons intérpretes do ECA, como diz Emílio Garcia Mendes, ou seja, aqueles que, em nome da proteção dos adolescentes, encarceram, aqueles que, em nome da proteção dos adolescentes, aumentam o tempo de permanência na unidade de privação de liberdade. Estão conseguindo perceber a diferença? O adolescente permanece na unidade porque ainda é um drogadito, porque vai para a atividade externa e volta “chapado”. Então, tem que fi car para tratar a sua drogadição. Ele permanece ali porque está desempregado, porque acham que a família é desorganizada. E aí ele vai fi cando...

Em decorrência, o que observamos hoje no sistema socioeducativo brasileiro? Está aumentando a faixa etária. Temos hoje 25% dos adolescentes em São Paulo, na faixa de 18 a 21 anos de idade. No Rio Grande do Sul, chega a ser 33%. Acho importante verifi carmos que é cada vez mais rara a medida de um ano. Praticamente, hoje temos uma medida aplicada para seis meses, que se prolonga para outros seis e, adiante, mais seis. Até quando? Na internação, o adolescente deveria responder pelo delito que cometeu, e não pela sua trajetória. Você não deveria cumprir medida porque tem um pai alcoolista, porque está desempregado ou porque se evadiu da escola.

Sintetizo, nas próximas duas lâminas, as demandas trazidas pelo Sinase e o que deve estar contemplado nas nossas práticas profi ssionais. Em primeiro lugar, o SINASE incorpora normativas internacionais em direitos humanos, em especial a idéia de considerar o adolescente sujeito de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento. Há algo interessante que o Sinase

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detalha um pouco mais: o respeito à diversidade étnico-racial, de gênero e orientação sexual. É possível pensar, por exemplo, políticas de cor dentro do sistema socioeducativo? Ontem, a Febem de São Paulo - até por essas boas surpresas que temos - realizou uma discussão sobre o quesito “cor”. Quanto às políticas de gênero, é possível pensarmos que, nas unidades femininas de internação, as meninas não têm, por exemplo, que fazer apenas cursos de manicure. Por que não inclusão digital para as meninas? Só para os meninos? No Rio Grande do Sul - e eu assisti a isso -, as meninas recebiam as roupas sujas da unidade masculina da frente, porque tinham que passar pela ofi cina de lavanderia. E vinham as cuecas dos meninos para serem lavadas e devolvidas limpinhas! Não poderia ser o inverso? Não poderia ter uma ofi cina de lavanderia na unidade masculina, para as calcinhas e os sutiãs irem para lá?

Já a garantia de atendimento especializado para adolescentes com defi ciência e sofrimento psíquico é um grande problema! O que temos observado é que há uma instituição total que, no seu estertor de moribundo, quer inserir uma outra instituição total dentro dela. A Febem de São Paulo, por exemplo, está com a idéia de montar uma unidade especial que é, entre outras palavras, uma internação psiquiátrica dentro da internação. Será que não se está inventando um monstrengo, que é o manicômio judiciário juvenil, sem as prerrogativas desse tipo de aparato completamente ilegal?

Eu chamaria a atenção - e esse é um tema para nós, psicólogos - sobre a elevada medicalização. O tal dos “pregos”, como se diz no Rio Grande do Sul, ou os “pára-te quieto”. Hoje, isso é uma realidade. Há uma contenção química praticada nas unidades. É uma camisa-de-força química.

Um outro desafi o é a primazia das medidas socioeducativas de meio aberto. Trata-se de inverter a pirâmide atual ou, como diz o Cláudio, conselheiro do Conanda, é preciso ler o ECA na posição

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que ele tem, e não invertida. Alguém inverteu o ECA, e leu que a primazia é o meio fechado.

O que signifi ca isso? Uma série de medidas. É inadmissível que, no Brasil, 60% das capitais não tenham municipalização das medidas de meio aberto. A Monalisa abriu hoje o debate com uma outra notícia que é preocupante: 43% dos Municípios brasileiros sequer têm execução de medidas em meio aberto, municipalizadas ou não.

Um outro ponto a ser enfrentado é o reordenamento das unidades mediante parâmetros pedagógicos e arquitetônicos. Da minha experiência na Febem, no Rio Grande do Sul, posso dizer que, em seis meses, conseguimos reordenar uma unidade, do ponto de vista pedagógico e arquitetônico, com um custo praticamente zero. Era um dos prédios mais antigos e onde o sistema melhor resposta deu à proposta que vínhamos tentando implantar. Enfatizo muito isso, pois, como converso muito com dirigentes estaduais, a primeira pergunta que fazem, quando os governos estaduais e federal entram em discussão, é: quanto de dinheiro vai ser repassado para fazermos o reordenamento das unidades? Como se o recurso fosse a única forma de fazer uma reforma institucional...

O tema da formação continuada dos operadores do sistema de garantia dos direitos também é desafi ador. A meta que temos, hoje, na SPDCA, é trabalhar com centros de formação socioeducativa. Recebemos demandas de alguns Estados para que os centros fossem instalados dentro da área física do sistema estadual. Entendemos essa mudança de maneira diferente. Há que se deslocar o centro de formação socioeducativa. Há que se desconfi nar os trabalhadores do sistema socioeducativo. Temos de colocá-los em interação com a cidade e com a Universidade, “oxigenar” esse conhecimento e fazer outras interlocuções.

A nossa meta, já para 2007, é constituir cinco centros de formação socioeducativa, com projeto-piloto em cinco Estados, em

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parceria com universidades regionais. Inclusive, esse trabalhador vai obter o certifi cado pela Universidade. A Universidade vai ter que oferecer uma programação permanente. Não será um curso por semestre ou um curso ao ano, mas um espaço permanente, que pode ser de supervisão técnica, de discussão de casos, de ofi cinas de produção de texto, pois é preciso que as boas experiências se transformem em textos que circulem, como já propunha uma colega de vocês de São Paulo - inclusive até participei da banca da dissertação de mestrado dessa colega. A dissertação está lá na Universidade, e é preciso que esse conhecimento circule.

Ainda temo que se tenha de construir a intersetorialidade e a articulação em rede. Não são um exemplo, mas podem ser constituídas. Temos hoje, no Governo Federal, doze Ministérios que participam de uma comissão de implementação do Sinase. Por que cada Estado não pode usar a lógica de reunir várias Secretarias que trabalhem juntas para avaliar o sistema socioeducativo? Com que a Secretaria de Educação contribui para o Sinase? Com que contribuir a Secretaria de Cultura? Com que contribuem as Secretarias de Esporte e de Trabalho? Com que contribuem entram as demais?

Quanto à articulação em rede, tenho uma preocupação. Pelo menos no Rio Grande do Sul, pois participei do debate, quase 80% do tempo dos psicólogos é dedicado à elaboração de pareceres. Além de dizer que temos que colocar o ECA no seu devido lugar, digo que temos que dar o devido lugar e tempo para o parecer técnico na jornada de trabalho do psicólogo. Estamos entrando numa lógica judicializadora do trabalho do psicólogo, ou seja, do procedimento que atende ao juiz, mas que não é necessariamente o que possibilita o processo pedagógico dentro da unidade. Muitas vezes, ocorre o contrário. Pergunto: qual o tempo que vocês vão ter para conhecer a rede de onde esse menino veio ou para onde ele vai? Será que não seria 80% do tempo? Ou, pelo menos, metade da carga horária dos psicólogos?

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Precisamos ainda da construção de um sistema de informação e de monitoramento. Nesse sentido, estamos trabalhando na revitalização do Sipia, especialmente no módulo que nos permite trabalhar com indicadores do socioeducativo. Foi um projeto que fi cou muito condensado na região de Pernambuco e em alguns Estados, com sérios problemas de implantação. A idéia, agora, é reconfi gurar esse sistema para que tenha um alcance nacional e possamos efetivamente interligar os dados da unidade, com os dados do Judiciário e com um sistema nacional de informação.

Chamo a atenção para o fato de que a participação dos Conselhos de Direitos é fundamental no Sinase, tanto do ponto de vista da defi nição das políticas públicas quanto do ponto de vista do controle social. Por exemplo, o Conanda vem nos fazendo algumas cobranças já há algum tempo. Qual a dotação orçamentária do Governo para a implementação do Sinase? Essa é uma pergunta que também deve ser feita aos governos estaduais. Não é só a União que deve alocar recursos para o sistema do meio fechado. Pensando o meio fechado e o seu efetivo trabalho, temos também que pensar como os governos vão investir no meio aberto. O que os gestores e as equipes do meio fechado têm a dizer sobre isso, por exemplo?

Por último, um item não menos fundamental: a mobilização das comunidades e da mídia. Sem sombra de dúvidas, há um trabalho institucional a ser feito com os nossos pares, com outros técnicos, os ditos monitores ou mesmo com as equipes administrativas, e há um trabalho muito grande a ser feito nesses segmentos institucionais. Todavia, não podemos perder o espaço de discussão em uma rádio da cidade ou em um jornal de veiculação local. Temos que fazer os contrapontos necessários, para além dos muros das instituições. Uma matéria que sai no jornal, um leitor que, em uma coluna, resolve “pedir a cabeça” de alguém, são todos espaços necessários para o debate democrático.

Minha graduação em Psicologia não dizia que isso era tarefa

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do psicólogo. Em nenhum momento tive uma aula em que fosse dito que poderia fazer clínica “a céu aberto” ou que eu poderia operar mudanças não necessariamente dentro das quatro paredes do consultório. Mas, em tempos mediáticos, creio que isso já pode ser melhor assimilado pelas novas gerações de psicólogos...

Não deu tempo para apresentar as estratégias específi cas que vimos construindo no Governo Federal para 2007, mas vocês podem consultá-las nas demais lâminas desta apresentação ou no site da SEDH.

Assim, encerro com uma citação de Guimarães Rosa: “O que mais a vida quer da gente é coragem.”

E eu espero que tenhamos coragem sufi ciente para tirar o Sinase do papel. Afi nal, somos poucos, mas somos barulhentos...

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Mesa Redonda 2:“Novas possibilidades de atuação para

o psicólogo”

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Iolete Ribeiro da SilvaConselheira do Conselho Federal de Psicologia

A Mesa vai ser composta por duas colaboradoras, a psicóloga Luciana Matos, mestranda da PUC de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Estudos Metodológicos em Serviço Social, e a psicóloga Maria Luiza Moura de Oliveira, representante do CFP no Conanda, Coordenadora-Geral do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil, na Universidade Católica de Goiás, e membro do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil.

A Luciana Matos vai falar sobre o posicionamento do psicólogo frente à situação de tortura, e a Maria Luiza Moura vai falar sobre o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária.

Luciana Matos Psicóloga mestranda da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Em primeiro lugar, quero agradecer pelo convite. É um momento muito relevante, não só pelo seminário que está sendo realizado hoje, mas também pelos encontros regionais e pelas inspeções que foram realizadas. Vejo como um momento único do CFP e temos que dar continuidade a ele. Então, quero agradecer pelo convite e falar sobre a responsabilidade que sinto por estar nesta Mesa para abordar o posicionamento de psicólogos em situações de tortura.

Quero começar partilhando com vocês um lapso de linguagem que tive, quando fui dizer a uma amiga que estava participando de encontros regionais com psicólogos de adolescentes privados de liberdade. Eu disse: “Estou participando de encontros com psicólogos internados.” Apesar de parecer uma piada, diz um pouco sobre como vejo esse lugar, um lugar em que também estive.

Trabalhei seis anos com adolescentes internados, na Febem

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de São Paulo, cinco anos no Complexo do Tatuapé, e um ano em semiliberdade. Eu ainda me sinto psicóloga, atuando em privação de liberdade. Depois desses seis anos, trabalhei com famílias de adolescentes privados de liberdade. Trabalhei por um período na Amar, uma associação de mães de adolescentes que estão internados na Febem de São Paulo, e pude ter contato com os mais diversos relatos de situações de tortura. Com essa trajetória, construí as considerações que vou fazer hoje aqui e as questões que trouxe para pensarmos juntos.

É também importante dizer que a Cristiane Barreto tem um relato sobre o psicólogo e o adolescente privado de liberdade, mas, por problemas de vôo, não conseguiu chegar. Considerando, então, o que ela iria dizer, fi z um recorte desse universo amplo, que é o adolescente privado de liberdade. Vou manter esse recorte e me situar na questão da tortura. É importante dizer que vou fazer esse recorte.

Além disso, vou fazer outros recortes também. A questão da tortura passa por muitos atravessamentos e por muitas omissões, que não dizem só do psicólogo, mas vou me centrar em dizer como o psicólogo pode lidar com isso. Então, isso defi ne o escopo da minha fala. Como psicóloga, falo para psicólogos sobre a questão da tortura, e não vou discutir as implicações de outros profi ssionais. Ainda que isso seja necessário, acho que podemos ter outros espaços. Não vou discutir omissões de outras instâncias ou de outros atores sociais. Digo isso porque reconheço que existem essas omissões, mas não vou falar disso aqui. Penso que precisamos tomar cuidado para não falar sobre as omissões de outras instâncias e não cuidar da nossa implicação nesse processo. Então, vou direcionar a apresentação para esse aspecto, pois sinto que estamos num momento que nos convoca a uma auto-refl exão, como já foi dito aqui. É preciso que vejamos para a implicação do psicólogo nesse processo.

Fui bastante privilegiada porque me coube esse recorte:

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falar sobre tortura. Nos encontros regionais, uma questão que me incomodava bastante e que fi cava presente era: como dizer de outras práticas, de outras possibilidades e trazer outras referências se não nos dedicarmos a limpar e romper essa situação de tortura que está acontecendo? Não falamos de um papel, mas sim, de uma situação vivida. Provavelmente, neste momento, adolescentes no território nacional estão vivenciando isso. Então, tenho o compromisso ético de falar disso que está aí posto, está no relatório de inspeção.

Quero partir de uma base comum, e, por isso, vou levantar quatro pontos para situar o centro do qual partiremos para a discussão.

Tortura é crime. Não é novidade para ninguém, está na lei, e não é questão de limite humano ou de sensibilidade para nos posicionarmos. Tortura é crime, e não depende do que eu acho ou do que outra pessoa ache. Vou dizer aqui - imagino que todos já conheçam isso - que “constitui crime de tortura submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.” A pena aumenta se a infração é cometida por agente público. Isso está posto, é lei, e não depende de discussões teóricas ou acadêmicas. Enfi m, esse é o primeiro aspecto que eu queria colocar.

O segundo aspecto é o seguinte: a inspeção nacional - esse relatório que todos têm em mãos - apresenta denúncias de práticas de tortura em quinze Estados. Falo “tortura” porque, quando lemos, no relatório, “espancamentos”, penso que poderíamos ler tortura, já que espancamento está caracterizado como uma ação realizada com o uso de instrumento, e acabamos de ver, na lei de tortura, que não é isso. Com ou sem instrumento, podemos ter

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tortura. Aí trago exemplos da Febem de São Paulo, onde o relatório constata que é “um sistema prisional, pautado pelas práticas de tortura, negligência e humilhação”.

Sempre vou fazer referência a São Paulo, porque é o lugar do qual consigo falar com mais propriedade. Depois vocês vão poder contar como isso se dá em outros Estados, mas acho que o relatório mostra que não há muita diferença.

O terceiro ponto que quero levantar para continuarmos a discussão: só no Estado de São Paulo, temos 303 psicólogos atuando em unidades de internação.

Então, tortura é crime, e em quinze Estados, foi constatada a tortura; temos, em São Paulo, 303 psicólogos, e talvez o CFP tenha o número dos outros Estados.

Passo, agora, ao quarto ponto. O Código de Ética dos Psicólogos, em seus princípios fundamentais, aponta: “O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades, e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Enfi m, o Código de Ética afi rma que o psicólogo vai contribuir para essa eliminação.

Então, se juntarmos esses quatro dados, estamos com uma questão bastante séria, e precisamos tratar dela com urgência.

Estou aqui com o papel de colocar o dedo na ferida. Acho que devo isso aos adolescentes e aos familiares que atendi. Essa mãe que está aqui hoje pode ser um bom termômetro para dizer... Não temos adolescentes aqui para compor a Mesa ou para falar. Seria um lugar só deles, pois só o adolescente torturado ou a família poderiam falar disso. Eu me arrisco a tentar dar um pouco de voz a essa experiência. Para a construção desse texto, revivi cenas, relatos, histórias, imagens e nomes dos adolescentes. Eles têm nome. Não é um dado estatístico, não é um número. Há uma pessoa ali. Isso fi cou presente o tempo todo, na construção do texto.

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Estamos falando de adolescentes que perderam a audição por sessões de tortura, foram mordidos por cachorros, estão sem dentes, porque os dentes foram quebrados em sessões de tortura. Falamos de hematomas e ferimentos graves. Precisamos ter isso em mente. É complicado falar dos limites, e estamos falando de situações graves.

Desde quando fui convidada a falar, fi quei pensando em qual seria a contribuição que tem sido dada pelos psicólogos para a eliminação dessas práticas de tortura. Não quero generalizar, e sim, ter bastante cuidado e falar também dos psicólogos que conseguem se posicionar e tentam formar núcleos de resistência e, de uma forma ou de outra, eliminar essas agressões. Mas são núcleos de resistência! Com esses dados que temos, podemos dizer que é preciso ampliar esses núcleos de resistência, e que isso está sendo difi cultado pela falta de ressonância que existe em relação aos demais psicólogos. A omissão de muitos reforça o sentimento de impotência daqueles que se posicionam.

Estarei sempre falando da prática, do dia a dia. Acho que só consigo me colocar neste lugar falando da prática e de quem está nessas unidades. Quando me refi ro ao psicólogo, estou fazendo mais um recorte. Esta fala é cheia de recortes! Estou falando daquele psicólogo que, ao ter um colega que denuncia uma situação de tortura e é demitido ou transferido, assume o lugar do outro que foi transferido e torna-se cúmplice, compactuando. É desse psicólogo que quero falar. Ele se articula com outros agentes para amenizar os registros de tortura, para induzir o adolescente a não falar, para fazer uso de discursos da área psi a fi m de coibir a família e impedí-la de se posicionar. É desse profi ssional que quero falar.

Acho que todos assistiram, nos encontros regionais, um vídeo com a exposição do Dr. Flávio Frasseto sobre as questões trabalhistas que o psicólogo enfrenta. É bem verdade. Há o medo de perder o emprego e de ser perseguido. Pensando na questão

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do medo, sempre me vem à mente uma entrevista a que assisti, do familiar de uma pessoa que havia sido assassinada por policiais. Havia uma manifestação de familiares, e o repórter perguntou ao pai: “Você não tem medo de falar disso?” A pessoa respondeu: “Eu tenho medo, mas a indignação deve vencer o medo.” Realmente, peguei essa afi rmação e fi z uma espécie de colagem. Eu dizia isso em todas as manifestações que fazíamos com os familiares: a indignação deve vencer o medo.

Sei que há profi ssionais que adoecem, sofrem e querem falar, mas também há psicólogos que reproduzem a demanda punitiva, que, em algum momento, já foi citada aqui. Hoje de manhã, a Esther disse que há parcela signifi cativa da população que apóia o endurecimento das ações. Precisamos dizer e reconhecer que também há psicólogos que apóiam o endurecimento das ações. Há psicólogos que, nas intervenções - se é que podemos chamar assim - com os adolescentes, após uma noite de tortura, a um adolescente que está todo arrebentado ali na sua frente, dizem: “Mas o que vocês fi zeram? Por que vocês foram se envolver com isso? Se você tivesse fi cado na sua, não tinha acontecido isso, você não teria sido torturado.” Na verdade, nem se usa a palavra “tortura”.

Aí eu penso na Psicologia sendo capturada e colocada a serviço da manutenção da tortura. É duro dizer isso, mas não faria sentido estar nesta Mesa hoje se não pudesse olhar para essa questão. Quero falar dessa situação porque, se não rompermos com essa forma de atuação, não vamos conseguir avançar em nenhuma outra prática do profi ssional de Psicologia dentro das unidades de internação.

Ouvimos psicólogos dizendo: “Eu faço a minha parte. Eu digo para o adolescente que é assim mesmo, que Febem é isso, que sou impotente diante dessa situação. As unidades funcionam assim mesmo. Eu faço a minha parte com ele. Eu devo levá-lo a refl etir sobre o motivo de ter vindo para cá”. Penso que não podemos

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ter essa atuação. Nessas falas, o psicólogo se convence ou tenta convencer o outro, que é o adolescente que está na frente dele, de que ele, psicólogo, está fazendo a parte dele. Como assim? Está fazendo a parte dele?

Sei também que não soa nada bem trazer esses depoimentos, mas precisamos falar do que está colocado e da intervenção que acontece. Esses relatos soam como se estivessem desconectados, absurdos, e trazem incômodo, se pensarmos em construções teóricas e acadêmicas, mas não soam desconectados do cotidiano das unidades de internação. Eles circulam livremente, senão não teríamos as constatações em documentos e em outras instâncias.

Portanto, eu me sinto obrigada não a trazer construções acadêmicas, mas, sim, a dizer o que, para alguns, pode soar como aberração, mas que os adolescentes são obrigados a ouvir como postura de intervenção técnica. Portanto, não estou me propondo aqui a trazer discursos sofi sticados se for para permanecerem no plano dos discursos.

Sempre faço referência a uma música que ouvi na Febem. É uma composição que os meninos fi zeram com o Gigabu, um grupo de rap. Eles diziam: “Chega perto de mim, me deixa falar. Você vem de muito longe para me condenar.” Às vezes eu sinto que o psicólogo vem de muito longe mesmo, para condenar.

Com esse tipo de atuação, o psicólogo se põe muito longe do adolescente. Cria um abismo que, a meu ver, impossibilita qualquer outra discussão, refl exão ou construção. Se o adolescente percebe que quem está na frente dele não é coerente, como favorecer outras possibilidades de construção? Qualquer orientação cai no vazio, porque não tem compromisso, e o adolescente compreende isso muito bem.

Novamente, a Psicologia é capturada, e faz um diagnóstico do adolescente como resistente ao atendimento, como evasivo em suas colocações ou tantos outros rótulos que as práticas psicológicas criaram para os adolescentes privados de liberdade.

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Quando falo de rótulos, sempre gosto de contar duas histórias que mostram como estamos longe para condenar. Quando trabalhamos com adolescente internado, acontecem muitos fatos que nos marcam e vamos construindo outras formas de ser. Havia um adolescente que era um caso midiático; todo mundo o conhecia, ele estava na mídia. Na unidade, todos pensavam que ele fosse perigoso, possuísse alta periculosidade. Naquela época, quando trabalhei na Febem, ainda eram possíveis as atividades externas; o adolescente poderia ir ao médico ou ao psiquiatra fora - até hoje ele “poderia”, está previsto no ECA que ele poderia fazer isso, mas, na Febem de São Paulo, considera-se que é lei e que não se pode mais sair desde que houve uma fuga do Batoré, se não me engano. Eu e uma monitora fomos, com esse adolescente, para um atendimento psiquiátrico. As pessoas diziam que ele iria fugir, pois era um caso muito grave.

Fomos para o atendimento, e, na volta - era um projeto de unidade bem diferenciado - fomos almoçar com ele, num restaurante por quilo. Eu pensei: “Que legal! Ele vai achar uma boa oportunidade para sair daquela comida da Febem. No restaurante, ele encheu o prato dele de tomate. Achei estranho e brinquei com ele. Quando sentamos para almoçar, ele teve uma crise de choro, e batia os talheres na mesa. De repente, saiu correndo. Nós pensamos que ele estivesse fugindo, e ele saiu correndo para a unidade de Tatuapé. Chorou muito lá dentro, e, à tarde, quando uma pessoa conseguiu conversar com ele, falou que entrou em pânico porque não sabia como comer, como se comportar.

Quantos rótulos ele tinha? Quantos psicólogos tinham passado por ele e nem de longe tinham visto isso? Poderia, certamente, ser um adolescente considerado liderança negativa, essas etiquetas que muitos gostam de colocar, e ele estava nessa condição. Precisamos ter uma outra forma de olhar.

Há um outro adolescente que conheci na Febem e que era considerado liderança negativa. Talvez, se fosse hoje, seria

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um desses adolescentes que foram encontrados marcados, torturados. Depois de algum tempo, eu estava na Avenida Paulista, e, numa subida, vi uma pessoa carregando uma carroça. O fato me chamou a atenção pelo sofrimento. Olhei bem para a pessoa que carregava uma carroça gigante, naquele contexto de Rua Augusta e Jardins, totalmente desconectado do lugar. Quando olhei bem, vi que era o menino que estava na unidade. As pessoas diziam que ele seria um supertrafi cante. Eles não sabiam de nada, mesmo, e rotulavam.

Eu gosto de contar isso. Não sei se acrescenta, mas gosto de trazer esses fatos à discussão.

Nesse caos todo em que se confi guram essas medidas de internação, estou trazendo exemplos bem práticos. Hoje já tivemos diversas discussões teóricas, importantíssimas para nossa atuação, porque qualifi cam muito a discussão, mas eu me dispus a trazer questões práticas.

Muitas vezes, o psicólogo faz uso de estratégias meio veladas para tentar romper a conivência. Muitas vezes, o psicólogo faz um esforço imenso para tentar eliminar o que está ali, pois não sabe como lidar com o fato.

Por exemplo, uma estratégia é ligar para a família do adolescente pedindo que denuncie, que a família tome providências, mas que não diga que foi o psicólogo que contou. Essa estratégia, entre tantas outras, ainda que superfi cialmente possa parecer bem posicionada, é perversa, porque o familiar fi ca exposto àquilo que o técnico não quer assumir. É transferir responsabilidades que não podem ser transferidas. É punir, mais uma vez, a família. Essas estratégias mostram o quanto o psicólogo pode estar submetido à mesma lógica punitiva, controladora e burocrática a que está submetido o adolescente.

Uma outra demanda para a minha apresentação era trazer proposições práticas para lidar com situações de tortura. Pensei muito nisso desde que recebi o convite, e penso que falar somente

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sobre encaminhamentos práticos não contemplaria a gravidade da situação. Temos uma série de informações práticas sobre os lugares que podemos acionar, os caminhos que podemos percorrer, onde é possível denunciar. Entretanto, em termos de estratégias possíveis, penso que o primeiro passo é sair do isolamento das ações deste ou daquele psicólogo na busca pela eliminação da tortura.

Estamos neste encontro, e a continuidade dessas ações tem o propósito de criar ações coletivas, como já disse aqui, e ampliar as ações e os núcleos de resistência.

De qualquer forma, quero falar da responsabilidade individual - está no Código de Ética - de acionar o Ministério Público, o Conselho, o Cedeca, enfi m, qualquer instância que entendermos como necessária. Devemos denunciar, acionar e falar da prática de tortura. Não podemos fi car na condição de neutralidade e tentar passar a responsabilidade para o outro.

Como referência para a formação, pensando na questão que foi aqui colocada pela ABEP, quando se diz da construção de uma psicologia adequada e de preocupações que devam nortear o trabalho de formação, acho que essa é uma preocupação urgente que tem a ver com o que o Renato também apresentou. Como fazer com que as pessoas saiam da faculdade considerando questões mais éticas que não passam por cursos teóricos? Enfi m, deve-se garantir o respeito ao Código de Ética.

Sempre que colocamos essas questões, há aquele questionamento: como falar do agente de tortura? Já ouvi inúmeras vezes essa contra-argumentação: “Você acredita no adolescente? Você acredita que o adolescente possa se transformar?” Como não acreditar no agente da tortura? Muitas vezes, ele está submetido aos mesmos atravessamentos do adolescente: ou tem problemas de drogadição, ou mora na mesma região, ou tem um histórico de vulnerabilidade parecido com o do adolescente. Como acreditar no adolescente? Apostar no adolescente? Apostar que o adolescente

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possa se transformar? E não vou apostar no agente da tortura?Essas observações me incomodam muito, porque, nelas,

o adolescente já está ali sendo responsabilizado. Ele já está no espaço em que é responsabilizado por um ato infracional que cometeu, sendo que, muitas vezes, a medida é aplicada na contramão do que está previsto no ECA. Às vezes ele já está sendo excessivamente punido. Então, ele já está nessa condição, já está nesse lugar. O agente do crime de tortura fi ca na impunidade. Temos que fazer essa diferenciação. Estamos falando de responsabilização, e não de torturar o cara que comete a tortura. Vejo esse contraponto como perigoso, porque pode trazer um certo desvirtuamento.

Como eu disse no início, não me propus a contemplar todo o universo da privação de liberdade. É claro que há uma série de outras questões para discutir. Essa era a exposição da Cristiane, e acho que depois podemos compor essa apresentação juntos; afi nal, estamos aqui reunidos.

Voltando a falar dos agentes de tortura, reconheço que eles precisam de cuidado. Isso está posto. Também já presenciei uma série de cenas, em que funcionários eram, de certa forma, violados nos seus direitos, até na contratação mesmo. Presenciei a contratação de monitores. Era uma fi la. Era uma contratação que ocorria no corredor. As pessoas chegavam lá, indicadas por alguém. Era uma contratação de emergência. Os agentes eram orientados exatamente assim: “Olha, os adolescentes são os seus maiores inimigos. Eles têm, como alvo, o muro e vocês. Entretanto, se vocês precisam do emprego, vão.” As pessoas que estavam na fi la precisavam do emprego e foram. É preciso dizer que não ativamos ou desativamos as marcas de tortura. Não se liga ou desliga, ativa ou desativa, constrói ou derruba.

Para encerrar, vou contar o trecho do que disse o sociólogo Chico de Oliveira e depois vou parafraseá-lo.

Em um trecho, ele dizia que, em Paris, os alemães chamaram

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o grande Picasso e colocaram, à frente, o quadro Guernica. Os interrogadores alemães lhe perguntaram: “Quem fez esse horror?” Aí Picasso respondeu: “Foram vocês.”

Chico de Oliveira, falando de uma questão social, continua: “Quem fez esse horror? Poderíamos perguntar aos homens do poder quem fez esse horror. Foram eles, mas também foi consenso plácido e passivo da sociedade brasileira, que precisa voltar a despertar para a construção democrática e republicana pela qual lutamos há tanto tempo.”

De que cena estamos falando aqui? Estamos falando de adolescentes em celas com baratas, nus, sentados em chão gelado, adolescentes com cabeças arrebentadas por tacos de beisebol, adolescentes com lábios estourados por pisões que levaram na cabeça, vinte e oito adolescentes mortos em três anos nas unidades de internação do Estado de São Paulo, alguns carbonizados. Mais do que isso, estamos falando de adolescentes que perderam a visão, de adolescentes que têm lesões irreversíveis em órgãos devido a sessões de tortura, adolescentes que estão tomando banho gelado na madrugada para apagar essas marcas. E daí podemos nos perguntar: quem fez esse horror? Poderíamos perguntar aos donos do poder. Foram eles, mas também foram os psicólogos dessas unidades de internação, por ação ou omissão.

Acho que temos compromisso com esses adolescentes. Estamos nesse espaço. Fizemos investimentos. Ocupamos lugares neste hotel e estamos em um quarto confortável. Há adolescentes dormindo no chão gelado. Então, penso que esse investimento não fará nenhum sentido se não se reverter em ações que atinjam o adolescente que está lá internado. Se isso permanecer no plano das publicações, a nossa instalação aqui será mais um ato de violação entre tantos a que os adolescentes estão submetidos. Penso que esse é o tamanho da nossa responsabilidade. Era isso o que eu tinha a dizer. Obrigada.

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Maria Luiza Moura de Oliveira Representante do Conselho Federal de Psicologia no Conanda

O desafi o agora é nos concentrarmos após o almoço. Está lançado mais um desafi o: mantermo-nos alertas.

Organizei a minha conversa com vocês na forma de slides, utilizando a tecnologia de ponta - de ponta do dedo, pois apertamos aqui e ali. Vou dispor desse recurso tecnológico-humano ou humano-tecnológico para mantê-los alertas, lendo um pouquinho lá na tela e prestando atenção aqui.

Com as pessoas que estão aqui à frente e com as que já estiveram aqui, como vamos pensar sobre as possibilidades abertas aos profi ssionais da área social, da área de saúde? Voltando o foco para nós, estamos nos perguntando: diante desse quadro - já fi zemos uma leitura de conjuntura -, sobre a realidade na qual estamos inseridos, de que sociedade nós falamos? Assim foram os elementos que a Profª Carmem Oliveira, o Prof. Júlio Jacobo Waiselfi sz e o Prof. Renato Roseno nos trouxeram. Vamos falar um pouco de experiências do dia a dia. Como nós, psicólogos, temos atuado e considerado essa realidade institucional dos adolescentes privados de liberdade, e que desenho e redesenho se coloca para essa situação? Somos seres humanos tratando de seres humanos adolescentes, crianças e suas famílias. Vou falar da família, lugar onde estão e vivem ou deveriam estar vivendo. Não podemos esquecer esse contexto. Às vezes falamos desses adolescentes como sujeitos desgarrados de sua história de vida.

Vou convidá-los para, antes de entrarmos no tema, projetarmos um vídeo curto que vai nos localizar na História. Hoje já tivemos várias passagens e visitas pela História. Esse DVD é um dos frutos de uma pesquisa solicitada pelo Conanda e pela Subsecretaria de promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente que foi realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, e coordenada pela economista e pesquisadora Enid Andrade Rocha da Silva. O estudo mostrou as faces ocultas da

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realidade das crianças e adolescentes nos abrigos, e foi intitulado “O abandono de crianças e o direito a convivência familiar e comunitária no Brasil”. Há uma publicação editada em 2004 e um vídeo sobre esse trabalho. Eles geraram, a partir dessa pesquisa, um passeio nessa história ao marcar as principais citações e os principais acontecimentos na área da infância e defi nir como esta foi situada na história brasileira. O material do DVD é bem didático e nos conduz pela história da infância e da adolescência, além de nos aquecer. Vou deixá-los passeando nesse vídeo e depois voltamos a conversar.

(Exibição de vídeo).

Essa introdução foi para demonstrar, de forma mais sintética e rápida, como a situação da infância brasileira é histórica e rica em detalhes. Todo o processo demarca a forma como a infância e a adolescência foram ocupando um lugar que nunca lhes foi concedido, pois a condição da criança e do adolescente, enquanto sujeitos de direitos e enquanto atores sociais, resultam de muita luta. A começar pela descoberta do Brasil, como reproduz o fi lme “A Missão”, ao mostrar como os jesuítas chegaram e se aproximaram dos índios, pois o contato e a aproximação se deram por meio das crianças indígenas que, estabeleceram o caminho para acessar e domesticar os demais. Eles estavam modifi cando a cultura para que as crianças se transformassem e se adaptassem ao mundo cristão. A criança acabou sendo uma presa fácil para todas as Entradas e Bandeiras realizadas em nosso país.

Outra marca importante foi a instalação da Roda. Por que a roda dos expostos veio para cá? Muitas crianças eram abandonadas nas naves das igrejas e nas portas das casas e calçadas; naquela época, muitos animais, como cachorros e porcos, andavam pelas ruas. Então, muitas crianças eram devoradas por esses animais. Com isso, escreveu-se à coroa para pedir uma alternativa para o problema. A resposta veio com a Roda, um sistema que havia

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sido introduzido na Europa. No continente europeu, muitos pescadores lançavam suas redes nos rios e, ao puxá-las, vinham, nas redes, muitos corpos de crianças e de bebês. Diante dessa situação, o Papa Inocêncio III (1198-1216) instalou um hospital – a chamada Casa de Misericórdia, ao lado do Vaticano, para receber os expostos e abandonados, e, assim, diminuir a mortalidade e o abandono de bebês. Posteriormente, as Casas de Misericórdia se adaptaram para receber essas crianças, e passaram a ter instalado, no muro, um cilindro, que nada mais era do que a própria roda da época medieval,agora recebendo abandonados.

Essa roda atravessou o mar e foi instalada no Brasil. Da criança da roda dos expostos até a criança e o adolescente que estamos debatendo aqui hoje, vemos quantas coisas se passaram e quantas não se passaram. O Renato Roseno disse que a roda dos expostos continua girando, com outro desenho, mas sua essência, que é o abandono e a desfi liação, estão presentes. Na verdade, a história da criança brasileira é uma história em que as crianças foram, em muitos projetos, apartadas do convívio familiar. Vemos, ainda, que a política de assistência também foi marcada por um processo histórico de desqualifi cação da família como cuidadora dos seus fi lhos. É nesse campo que, na maioria das vezes, se atua, nessa mediação das pessoas que saem desse espaço, também contraditório, que é a família, mas é o espaço de convivência e o espaço onde nos constituímos. Todos aqui temos família. Viemos de famílias e vamos para famílias. O modelo é esse. Ainda não inventamos outro modelo. Essas crianças também são gestadas nesse “lócus”. Então, esse desenho vai se consolidando na sociedade e chegamos ao menino de rua, um sujeito que confi rma, numa certa medida, nossa rotulação de que existe criança de rua. De fato, tiramos totalmente a criança da família. O vídeo mostra um pouco isso. Devemos compreender que essas coisas não chegam aqui por acaso, mas são fruto de uma história.

O menino que atendemos hoje é, de fato, o resultado de todo

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o processo histórico que vivemos em nossa sociedade. Isso exige de nós muito esforço e muita compreensão, tanto teóricos quanto subjetivos, porque também vivemos nesse espaço contraditório chamado família. É onde os meninos estão questionando, de onde estão fugindo, indo para as ruas, e, por fi m, parando nas unidades de internação.

Vejo que a própria pesquisa do IPEA chamou a atenção para a necessidade de se criar um plano nacional com ênfase no direito à família e à vida em comunidade. Por que planos, convenções, com tanta lei? Que sociedade é a nossa que tem de ter lei para dizer que a criança deve ter direito à vida? Cada vez mais, isso é urgente, porque é fundamental o direito à vida. As pessoas estão sendo descartadas. Ouvimos muito, nas exposições de hoje, que é um processo de separação, de apartação. Existe, então, uma escolha: quais são as pessoas que podem ou que não podem viver, que podem ou que não podem ter acesso a direitos fundamentais. Isso tudo vai sendo construído por nós, pois somos uma sociedade que age dentro de uma lógica mais racional.

Então, o Plano Nacional de Promoção e Direito à Convivência Familiar e Comunitária vem se contrapor a essa realidade, que não é de hoje, mas vem se barbarizando. O Plano Nacional foi escrito e produzido coletivamente por vários profi ssionais da área da infância e da adolescência e de trabalho com a família. É um documento denso, que caminha quase na mesma linha do Sinase. Ele foi submetido a uma consulta pública e recebeu inúmeras contribuições valiosas, que foram incorporadas. Não sei se algum de vocês teve contato com esse documento na internet. Sempre há documentos disponíveis no site do Conanda e da Secretaria Especial de Direitos Humanos para receber contribuições das pessoas.

Passada essa fase, esse plano vai, no dia 13 de dezembro, ser divulgado. É um plano que está sendo construído com o Conselho Nacional de Assistência. Ele já está aprovado e vai ser divulgado

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e colocado à disposição da sociedade no dia 13 de dezembro, por meio de uma resolução conjunta elaborada pelos dois Conselhos – Conanda e CNAS.

O Plano Nacional de Promoção e Direito à Convivência Familiar e Comunitária seguiu alguns passos: primeiramente, parte do preceito constitucional de que esse é um direito preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, e diz respeito diretamente a esses meninos e a essas meninas que cumprem medidas socioeducativas.

O que a pesquisa do IPEA sobre abrigos notou? Que a maioria dessas crianças dos abrigos está longe das suas famílias. Então, como garantir um direito, se, pela questão territorial, não há acesso à família? Ela não recebe visita, então, colocamos uma condição que impede o exercício desse direito. Nas unidades de internação, a visita familiar é muito importante. É tão importante quanto à forma como nós, profi ssionais, devemos trabalhar com essa família. É uma família que ouviu, a vida inteira, que não dá conta de cuidar dos fi lhos. O que estou dizendo para essa família? Essa família também se acabou, porque faz parte da sociedade e acaba engolindo esse comprimidinho de que “não dá conta”. Muitas mães falam para vocês que não dão conta, que não tem mais jeito. “Estou entregando esse menino.”

Isso refl ete toda uma política construída para as famílias entregarem seus fi lhos. E essa entrega continua acontecendo. Como vamos fazer para atuar nesse meio-de-campo de uma família que, de fato, acaba cumprindo esse papel da desfi liação? Há muitos movimentos das famílias em relação aos seus adolescentes. Por que será que isso acontece na adolescência? Porque, na adolescência, a pessoa começa a tomar consciência de muitas coisas. Começa a dizer não e a questionar. Até então, estava crescendo e sendo submetida a toda regra e à sorte colocada para aquele grupo familiar.

Temos uma pesquisa interessante com ex-meninos de

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rua. Foi feito um trabalho comparativo entre meninos de rua de Nova Iorque e meninos de rua de São Paulo. O que se encontrou, ao entrevistar esses meninos? “Por que você saiu de casa?” A violência é o elemento impulsionador que os tirou de casa. Mães nervosas. Eles diziam com freqüência: “Minha mãe era muito nervosa. Meu pai batia muito na minha mãe.” Além disso, alcoolismo, transtorno psiquiátrico e transtorno mental, muitas vezes, são parte desse contexto de vida.

Hoje, ao trabalhar com adolescente, também temos que pensar em trabalhar com a família. Nesse sentido, em nosso plano de atuação, não podemos pensar no adolescente desgarrado e desfi liado de seus elos parentais. Como você vai fazer esse caminho de volta? De adolescente e de família? Como esses atores vão dialogar? Como fi ca a atuação do profi ssional da Psicologia, tendo acesso e compreendendo tudo isso que a família viveu e quais são as possibilidades de reencontro, de reatar laços, de trabalhar os elos afetivos e os vínculos? Vamos trabalhar só a questão d ele estar institucionalizado?

Dentre os desafi os do Plano Nacional, observa-se a construção de metodologia para o processo de desinstitucionalização de adolescentes, pois é algo que toma contornos culturais em relação à forma de tratar as crianças e os adolescentes que querem só ser. Ao longo da História, observava-se, desde os jesuítas, a instalação de processos intervencionistas a partir da fi gura da criança até os higienistas, e toda a aproximação das famílias via crianças contribuiu para esse fenômeno de desautorizar as famílias a cuidar dos seus fi lhos.

Nós perguntamos: como a Psicologia vê esse fato? Em que medida também contribuímos para isso? Em que medida contribuímos para sanar essa situação? Há sutilezas tão marcadas que hoje nos levam a deixar de compreender esses meninos. São meninos que desafi aram o mundo higienista, são meninos que desafi aram a ordem. Vejam que houve até questão de segurança

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pública. Quem estuda a história da infância brasileira sabe o que signifi ca o Serviço de Atendimento ao Menor - SAM, que herança ele deixou. Ele chegou a ser chamado de “sucursal do inferno”, porque o que acontecia por lá era de extrema crueldade.

São situações em que dizemos: passou ou não passou? Recentemente acompanhamos um caso aqui do Caje. Um adolescente foi encontrado morto - você, que trabalha no sistema aqui de Brasília, deve ter acompanhado também - com as duas orelhas dentro da boca. Quantos e quantos relatos temos acompanhado e, inclusive, ido a esses lugares pelo Conselho Nacional dos Direitos e visto situações de extrema violação de direitos humanos. Isso tudo está embutido nessa história que acabamos de narrar. Ouvi o Renato, hoje pela manhã, e concordo com ele, porque as nossas expectativas têm de diminuir, e devemos fi car mais com o pé no chão, na realidade. Eu me detenho muito no meu universo, como psicóloga. Acho que podemos fazer denúncias e, para nos proteger, podemos fi car no anonimato também. Agora, eu acredito que a questão seja muito maior, porque estamos com tantos problemas - doenças mentais, delinqüência juvenil, desemprego, mas, atrelado a esses fatos, podemos, atenuar isso, a pobreza, as instituições elitistas e outros fatores que provocam esse tipo de trabalho.

É um trabalho unifi cado. Existe uma equipe toda, existe um todo ali dentro, os educadores trabalhando. Acho que esse processo não se resume só a psicólogo. Fala-se que estamos aqui no hotel, que está bom, mas eu estava ali trabalhando. Estamos fazendo o nosso trabalho, batalhando, lutando e gritando.

Algumas coisas diminuíram. Hoje de manhã, lá em Recife, foi demitido o diretor de uma outra unidade de internação por causa de torturas e provocações. Então, algumas atitudes estão sendo tomadas.

O que eu queria dizer é: o que podemos fazer? Esses R$ 4.000,00 (quatro mil reais) “per capita” de cada adolescente não

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vêm para nós, não. Precisamos ampliar mais, porque não temos nem cadeira para sentar, não temos mesa para escrever ou um espaço físico saudável e positivo para fazer um bom trabalho.

Como podemos conseguir unifi cação de pensamento? Se não houver um pensamento só, não haverá solução dos problemas. Unifi car esse mundo todo!

Sou a favor da idéia de Foucault e Paulo Freire, que fala muito da educação e da família. Viver em liberdade. O adolescente que está lá dentro só quer ir embora. Ele quer estar livre. E nós somos imaginados da mesma forma que eles. Talvez tenhamos a oportunidade de discutir mais nos trabalhos em grupo.

Concordo com a Luciana no sentido de que não devemos fi car apenas no papel. Este evento é único, é ímpar. Quero dar parabéns ao Conselho. Fiz uma crítica ao Conselho lá no Conselho Regional - começamos a fazer reuniões, mas não houve continuidade. Nas instituições, nada tem continuidade. Começamos a desenvolver uma atividade e paramos! Não sei como - acho que estamos juntos - vamos dar alguns passos maiores. Não sei se temos poder para isso. Acho que o único poder que temos é o de ir para as ruas e gritar.

Obrigada.

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Mesa de encerramento

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Esther ArantesCoordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos

Em primeiro lugar, gostaria de falar da minha alegria por ter participado destes dois dias, deste encontro intenso, com muita solidariedade, com muito trabalho, com muita energia e com muita alegria.

Este momento é um desdobramento da campanha da Comissão de Direitos Humanos - “O que é feito para excluir não pode incluir” -, que gerou as inspeções nas unidades socioeducativas, precedidas dos encontros regionais, mas esse trabalho não termina aqui. A partir de todas essas nossas movimentações, já conseguimos novas parcerias ou consolidamos parcerias já feitas anteriormente - e temos convites muito importantes, não só da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do próprio Conanda, mas também da Anced - Associação Nacional do Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esse é o passo seguinte na direção da implementação dessas políticas.

Aqui manifestamos nosso desejo. O Estatuto foi um desejo que a sociedade manifestou, o Sinase foi outro, e este encontro foi outro. Mas não podemos ficar só no desejo. Precisamos dar um passo à frente no sentido da implementação. Este encontro também não pára aqui, pois tem alguns desdobramentos.

As Comissões de Direitos Humanos e os Conselhos Regionais continuarão mobilizando as pessoas regionalmente. Vamos nos manter informados, em rede, pois haverá novos convites, tanto para comemorar quanto para avaliar e propor novas lutas e novos encaminhamentos.

Muito obrigada.

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Mônica LimaDiretora Nacional da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia - ABEP

Em nome da Associação Brasileira de Ensino em Psicologia e, particularmente, de Marcos Ferreira, nosso Presidente, quero parabenizar a todos pelo trabalho.Foi um prazer estar aqui. Não lido diretamente com as medidas socioeducativas, mas aprendi muito e vi a seriedade do trabalho realizado neste evento.

Quero ressaltar que o ano 2006 foi particularmente importante, bonito e marcante para nossa história, na minha opinião e na opinião dos abepianos. As parcerias que temos realizado com o Conselho Federal de Psicologia, com os Conselhos Regionais de Psicologia, com os núcleos da ABEP e, particularmente, com vocês, têm sido fundamentais para fazermos um trabalho como este: construir uma psicologia socioculturalmente sensível às demandas da sociedade brasileira. Muito obrigada!

Ana Mercês Bahia BockPresidente do Conselho Federal de Psicologia

É com satisfação, mas com muita satisfação mesmo, que essas entidades se uniram para realizar este evento.

É uma pena que a Secretaria Especial de Direitos Humanos não esteja aqui conosco para este encerramento, mas está aqui simbolicamente, porque esteve conosco organizando e pensando em como seria o evento e no que deveríamos fazer. Ficamos orgulhosos ao ver o resultado de uma iniciativa tão ampla, que começou nos Conselhos Regionais e nos núcleos da ABEP e se transformou neste encontro, com qualidade, com seriedade e com responsabilidade.

Eu sempre digo: não sei se vocês se dão conta do que fizeram. Ficaram dois dias aqui, seriamente pensando,

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comprometidamente pensando sobre a atuação do psicólogo, para que isso possa se tornar uma referência e possa circular entre todos aqueles psicólogos que também querem estar comprometidos com essa área ou trabalhar nessa área de forma comprometida.

Vocês construíram um momento histórico na profissão dos psicólogos, reafirmaram o compromisso social da categoria com as questões urgentes da sociedade, tudo isso feito com muita garra e muito respeito à Psicologia e à sociedade brasileira.

Quero agradecer, em nome do Conselho Federal de Psicologia, por todo esse trabalho que vocês realizaram.

Obrigada.

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Parte 2:Resultado do Seminário

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“O que a gente faz de errado, recebe o dobro. Por isso tô preso. O meu comportamento é bom na casa. Bom comportamento é não brigá, não desrespeitá o monitor. Eu tô na FASE porque eu cometi um roubo, porque eu tenho isso daí desde pequeno, e eu queria um lugar para melhorá, pra estudá, pra esquecer de tudo. Quando eu saí já vou ter uma nova vida. Mas não aconselho ninguém entrá nessa vida aí. É ruim vivê preso todo o dia, junto com aqueles outros guri, só vendo o sol nascê quadrado, não vendo nada, não tá perto da família. Cadeia é cadeia, não existe hotel. Tu não tem como te regenerá lá dentro. Agora que fui isolado, eu só me atrapalhei, agravei meu perfi l, o juiz vai lê o meu isolamento e vai querê dá mais seis pro cara. Isolamento é fi cá no brete dormindo sem colchão. É que eu fi z um espanque, dei boas vindas prum cara novato. Mas tô tomando medicação pra dormir, duas vezes por dia, aí o cara não vê o tempo passar. Quando não tava isolado, eu estudava de tarde, dormia de manhã, e tinha um bom comportamento: não brigava, não desrespeitava os monitor. Mas se essas mulher acham que eu não mudei, então eu não vou nunca mudá mesmo. Só eu cumpri essa medida que o juiz me deu e voltá pra casa”. 5

5 Depoimento de adolescente, extraído da dissertação de mestrado “Ato Infracional”, Exclusão e Adolescência: Construções Sociais (Castro, 2006).

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Considerações preliminares O presente documento (a parte 2 do documento) se constituiu,

inicialmente, em subsídio à discussão realizada no Encontro Nacional “A atuação do Psicólogo junto aos adolescentes em privação de liberdade” com a fi nalidade de expor os balizadores do Conselho Federal de Psicologia para o trabalho do psicólogo junto aos adolescentes em privação de liberdade. Posteriormente, foram agregados os conteúdos relativos às produções dos debates do Encontro Nacional que incluíram propostas de formação do psicólogo e condições de trabalho. Esta parte do documento prioriza a elucidação dos princípios orientadores da ação do psicólogo, pautando-se na legislação vigente, para estabelecer diretrizes que possam ser operacionalizadas na prática do atendimento direto a esses adolescentes bem como sinalizar aspectos da formação do profi ssional e das condições de trabalho que interferem na prática responsável do atendimento aos adolescentes em internação provisória ou em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade.

A atual mobilização dos psicólogos, em torno de suas práticas nas unidades de internação no Brasil, foi motivada pelo relatório da inspeção nacional às unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei, realizada em parceria entre a OAB e o CFP, em março de 2006, através dos Conselhos Regionais de Psicologia, simultaneamente, em 22 Estados brasileiros e no Distrito Federal.

Os resultados dessa inspeção estão publicados em: “Um retrato das unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei”

Neste documento, é possível verifi car como tratamos uma parcela de nossos adolescentes. Constataram-se as várias denúncias dos organismos nacionais e internacionais quanto às precárias condições de cumprimento da medida de

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privação de liberdade em todo o território brasileiro, condições essas agravadas, em alguns locais, por práticas de violência física e reprodução de modelo carcerário (muitas horas de cela e poucas horas de sol ou o “domínio” da unidade pelos adolescentes, por exemplo). Essas condições de cumprimento da medida socioeducativa estão em desacordo com normativas internacionais, com a Constituição Federal, com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com o Código de Ética Profi ssional do Psicólogo.

Para a elaboração de diretrizes para a prática do profi ssional do psicólogo nas unidades destinadas a adolescentes que cumprem medida socioeducativa de privação de liberdade, é necessário, inicialmente, situar os dados referentes aos adolescentes no cenário da violência e referir-se aos documentos que fornecem diretrizes e parâmetros para todo o trabalho na área, inclusive o do psicólogo.

Os dados que situam o adolescente brasileiro no cenário da violência urbana são imprescindíveis como aporte desta refl exão. Dos 25.030.70 adolescentes brasileiros (IBGE/2000), havia 39.578 em cumprimento de medida socioeducativa, em 2004, e os dados anteriores (2002) sobre o conjunto dos adolescentes em medida socioeducativa revelam que 9.555 estavam em privação de liberdade, em 190 unidades de internação. Incluindo na categoria de privação de liberdade também a internação provisória e a semi-liberdade, esse número abrange 13.489 adolescentes. Os dados foram retirados do documento Sinase (a ser abordado posteriormente) no qual consta, no capítulo Marco situacional, outros dados de caracterização (perfi l) do adolescente em privação de liberdade e a caracterização das condições das unidades de internação.

Nessa contextualização, importa considerar não só o adolescente como agente mas também como vítima. Os dados relativos ao último Mapa da Violência, de 2006, de Julio Jacobo

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Waiselfi sz, apontam que 72,1% das mortes de jovens (entre 15 a 24 anos) se dá por causas violentas (acidentes de trânsito, homicídios e suicídios), sendo o homicídio a causa de 39,7% dos óbitos. As exceções a essa cifra são “... os Estados do Rio de Janeiro (1º), Pernambuco (2º) e Espírito Santo (3º), onde mais da metade das mortes de jovens foram provocadas por homicídio”.

Essa taxa de homicídios de jovens coloca o Brasil na 3ª posição no mundo, logo depois da Colômbia e da Venezuela. A comparação internacional é dramática, porque os índices brasileiros de homicídios de jovens são 100 (cem) vezes superiores aos de países como Áustria, Japão e Egito, e o estudo demonstra que é na faixa de 14 a 16 anos que mais têm crescido essas taxas. Nos últimos anos, essa situação se agrava. A taxa de morte juvenil por arma de fogo (43.1 mortes em 100.000 jovens) coloca o Brasil na 1ª posição dentre 65 países do mundo.

Marcos referenciais

Quanto aos documentos balizadores da prática do profi ssional, inclusive do psicólogo, a referência primeira é o ECA − Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8.069, de 13/07/1990.

O ECA conceitua o que é ato infracional (art.103 e 104) os direitos individuais do adolescente autor de ato infracional (art.106 a 109) as garantias processuais (art. 110 e 111) as medidas socioeducativas de responsabilização desse adolescente (art. 112 a 114) e, na seqüência, os artigos 114 até o 128 referem-se à caracterização de cada uma das seis medidas socioeducativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e privação de liberdade.

Vale ressaltar que o ECA também determina medidas aplicáveis às entidades que violam os direitos dos adolescentes em cumprimento das medidas socioeducativas, e há artigos que versam sobre crimes e infrações administrativas dos responsáveis

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pelos adolescentes em privação de liberdade. O artigo 232 refere-se a situações de vexame ou a constrangimento, e o 233, a situações de tortura e às respectivas penalidades.

Portanto, essa lei constitui-se em instrumento jurídico de salvaguarda de direitos de todas as crianças e adolescentes brasileiros, inclusive dos autores de ato infracional. Quanto à medida de privação de liberdade, que busca a responsabilização do adolescente e está sujeita aos princípios de excepcionalidade, brevidade e respeito à “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, é dever do Estado garantir condições dignas para o seu cumprimento, condições essas que implicam soluções criativas e responsáveis quanto ao tratamento das questões que envolvem a vida dos adolescentes − particularmente, seus confl itos subjetivos e difi culdades de múltiplas determinações que afetam sua posição no campo social de forma radical.

Na busca do estabelecimento de uma política nacional para a área, um outro documento que se destaca como referencial para o trabalho é o Sinase – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, um conjunto ordenado de princípios, regras e critérios de caráter jurídico, político, pedagógico, fi nanceiro e administrativo, que abrange desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa. Aprovado pelo Conanda, em maio de 2006, traça diretrizes para o sistema socioeducativo nacional e visa a estabelecer um modo de integração das diferentes políticas públicas na área dos adolescentes autores de ato infracional, da gestão dos programas e dos parâmetros de ação e gestão pedagógica do atendimento socioeducativo.

Vale a pena destacar, desse documento, os aspectos referentes a seus princípios mais diretamente relacionados à privação de liberdade, a saber:

• Incolumidade, integridade física e segurança: o Poder Público tem a responsabilidade de adotar todas as medidas

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para que tais garantias sejam respeitadas. O espaço físico adequado implica garantir ao adolescente instalações físicas em condições adequadas, com acessibilidade, habitabilidade, higiene, salubridade, segurança, o cuidado com a aparência e a dignidade de apresentação pessoal, assim como o vestuário adequado. A alimentação deve ser sufi ciente e adequada à faixa etária. Os cuidados na área de saúde – acesso à clínica médica, ao tratamento em saúde mental, odontológico e farmacêutico. Destaca-se também a proibição de castigos físicos e a preocupação com a preservação da vida dos adolescentes;

• Incompletude institucional: caracterizada pela utilização do máximo possível de serviços na comunidade, responsabilizando as políticas setoriais no atendimento aos adolescentes;

• Atendimento especializado para adolescentes com defi ciência;

• Descentralização político-administrativa. Neste princípio, vale destacar o último parágrafo: “Em um Estado Democrático de Direito, tem-se, como princípio fundamental, o monopólio da força física pelo Poder Público, de modo que não se admite que particulares usem da força para restringir direitos de terceiros. Portanto, é inadmissível que se delegue a particulares atribuições que necessitem do uso da força...”;

• Gestão democrática e participativa na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis;

• Co-responsabilidade no fi nanciamento do atendimento às medidas socioeducativas;

• Mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação e responsabilização dos diversos segmentos da sociedade.

O Sinase defi ne a competência de cada esfera na área da educação, da saúde, da assistência social, trabalho/emprego, previdência social, cultura, esporte e lazer, segurança pública e defensoria pública. Na área da saúde, as ações propostas estão

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de acordo com a Portaria Interministerial MS/SEDH/SPM, de 14/7/2004, e com a Portaria da Secretaria de Atenção à Saúde nº 340, de 14/7/2004, que estabelecem normas para a operacionalização das ações de saúde ao adolescente privado de liberdade. É importante destacar essa portaria interministerial como um documento importante no que concerne a defi nir parâmetros para o atendimento à saúde dos adolescentes em privação de liberdade ao assegurar os aspectos de saúde e de dignidade humana.

Quanto à organização, o Sinase defi ne que as unidades devem possuir capacidade máxima para 40 adolescentes, estabelece a composição mínima da equipe de atendimento e discrimina os profi ssionais e seu número − no caso do psicólogo, a proporção é de 2 para 40 adolescentes.

Quanto aos parâmetros da gestão das unidades, as ações pedagógicas no atendimento direto são consideradas prioritárias, ou seja, o Sinase condena as ações meramente sancionatórias, elucidando que o projeto pedagógico é o pilar da ação e gestão do atendimento, e determina a participação dos adolescentes na construção, monitoramento e avaliação das ações socioeducativas. É o respeito à singularidade do adolescente bem como a presença educativa e de exemplaridade, representada aqui pelo corpo técnico-político das unidades, que são tidas como condições necessárias. A diretividade no processo, ou seja, um projeto bem conduzido, é a garantia da efi cácia dessas ações. A disciplina é citada como meio para a realização da ação, e não como a fi nalidade do processo socioeducativo.

Outros aspectos da proposta se destacam: a dinâmica institucional deve garantir a horizontalidade e a socialização dos saberes entre a equipe multiprofi ssional; a garantia dos direitos da diversidade étnico-racial, de gênero e sexual, norteadora da prática pedagógica; a família e a omunidade devem participar ativamente da experiência socioeducativa; a importância da formação continuada dos trabalhadores. No tópico sobre

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acompanhamento técnico, consta o psicólogo na equipe técnica e uma referência à Portaria Interministerial nº 340/2004, na qual são estabelecidas diretrizes de implementação do atendimento à saúde do adolescente em confl ito com a lei, e, novamente, consta o psicólogo como profi ssional da equipe multiprofi ssional.

Há, também, no tópico Suporte institucional e pedagógico, a orientação quanto à construção de instrumentais para o registro sistemático das abordagens e acompanhamentos aos adolescentes: Plano Individual de Atendimento (PIA); os relatórios de acompanhamento, controle e registro das atividades individuais, grupais e comunitárias, com dados referentes ao perfi l socioeconômico dos adolescentes e de sua família; a indicação de realização de acompanhamento sistemático (individual e/ou em grupo) dos adolescentes durante o atendimento socioeducativo, segundo a concepção de que a elaboração e o acompanhamento do desenvolvimento do plano individual de atendimento incluam sempre a participação da família e dos próprios adolescentes. É sinalizado que o atendimento deve garantir os prazos estabelecidos no determínio judicial em relação ao envio de relatórios de início de cumprimento da medida, circunstanciados, de avaliação da medida e outros que se fi zerem necessários, bem como a garantia do atendimento técnico especializado (psicossocial e jurídico) imediato ao adolescente e aos seus responsáveis logo após a sua apreensão e/ou admissão no programa socioeducativo.

Outras ações, no sentido de superar as condições precárias do atendimento, referem-se à organização de um regimento interno da unidade, incluindo a elaboração de um manual do socioeducador e um guia do adolescente.

O contexto e atuação do psicólogo

É fundamental abordar, ainda, uma condição, apontada no relatório da fi scalização OAB/CFP e denunciada com freqüência por várias entidades internacionais e nacionais, que se constitui em

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vivências absolutamente cruéis e brutalizadoras dos adolescentes em privação de liberdade: a tortura, os maus-tratos e o abuso de autoridade.

A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada em 10 de dezembro de 1984, pela Assembléia Geral da ONU, e que entrou em vigor em 26 de junho de 1987, foi ratifi cada pelo Brasil, em 28 de setembro de 1989. Em seu artigo 1º, ela defi ne tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infl igidos intencionalmente a uma pessoa a fi m de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confi ssões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas, ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infl igidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”.

Os elementos fundamentais, nessa defi nição, são a imposição de dores e sofrimentos graves de natureza física e mental, com intencionalidade, por parte de pessoas no exercício de funções públicas ou com o seu consentimento, e com o propósito de obter informação, punir ou intimidar.

A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), ratifi cada pelo Brasil, em 20 de julho de 1989, defi ne a tortura, no seu artigo 2º, como “todo ato pelo qual são infl igidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais com fi ns de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fi m. Entender-se-á também como

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tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidas no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo”.

Da mesma forma, a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura responsabiliza, pelo delito da tortura, os empregados ou funcionários públicos que atuam diretamente ou instigam outros a praticá-la ou se omitem diante de sua ocorrência.

No caso do Brasil, a tortura foi tipifi cada como crime pela lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997. Pelo seu artigo 1º, constitui crime de tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fi m de obter informação, declaração ou confi ssão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa e c) em razão de discriminação racial ou religiosa”. Constitui também crime de tortura “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal” (§ 1º). Também responde pelo crime de tortura “aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las (...)” (§ 2º). Diferentemente do que prevê a Convenção contra a Tortura, a lei nº 9.455/97 não vinculou o crime de tortura exclusivamente ao ato praticado por agente público.

A Convenção contra a Tortura não especifi cou um conceito para os tratamentos e penas cruéis e degradantes, o que difi culta a

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adoção explícita de dispositivos legais para o seu enfrentamento. Todavia, a pesquisa, na legislação interna, demonstra alguns conceitos, a exemplo da lei nº 9.455/97, que, no § 1º do art. 1º, equipara maus-tratos à tortura, e do Código Penal de 1940, que estabelece o que sejam maus-tratos.

No artigo 136 do Código Penal brasileiro, os maus-tratos são defi nidos como o ato de “expor a perigo a vida e a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância para fi m de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”.

Quanto ao abuso de autoridade, a lei nº 4898/65 prevê as condutas tipifi cadas como tal. Conforme seu art. 3º, “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profi ssional. Constitui, também, abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) deixar de comunicar imediatamente ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fi ança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao

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seu valor; g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa; h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade” (art. 4º).

A tortura é praticada não só, mas principalmente, nas unidades de privação da liberdade dos indivíduos. De acordo com o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura, esses locais, denominados “centros de detenção”, devem ser entendidos como qualquer lugar sob a jurisdição e controle de um Estado onde “pessoas são ou podem ser privadas de sua liberdade, quer por força de ordem dada por autoridade pública, quer sob seu incitamento ou com sua permissão ou concordância” (art. 4º, § 1). No § 2 do art. 4º, o Protocolo Facultativo defi ne a privação de liberdade como “qualquer forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou outra autoridade, ela não tem permissão para ausentar-se por sua própria vontade”.

Nesse sentido, consideram-se unidades de privação de liberdade uma ampla rede de lugares, tais como delegacias de polícia, locais de internação de adolescentes, penitenciárias, cadeias públicas, centros de imigração, zonas de trânsito de aeroportos internacionais, instituições psiquiátricas e locais de prisão administrativa.

Nesse contexto, e de acordo com o II princípio fundamental do Código de Ética da profi ssão: “O psicólogo trabalhará visando a promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade

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e opressão”. É, portanto, dever de todo psicólogo denunciar qualquer situação de maus-tratos, abuso ou tortura. É um direito dos psicólogos promover, construir e sustentar práticas favoráveis à dignidade dos adolescentes brasileiros em privação de liberdade.

Vale ressaltar um último aspecto.A prática institucional, especialmente aquelas que envolvem

o aspecto de segregação, como a privação de liberdade, requer, do profi ssional, um posicionamento político claro e um embasamento consistente no contexto − amplo e necessariamente complexo − que envolve as demandas, as ações técnicas e as conseqüências aí implicadas. Essa é uma condição para considerar as propostas institucionais vigentes vinculadas a um projeto político. Nesse caso, é imprescindível considerar que a proposta das medidas socioeducativas implica a construção de um conjunto de seis medidas, as quais estabelecem entre si uma dinâmica, condições e princípios comuns de funcionamento.

A implementação das medidas socioeducativas em meio aberto e sua execução adequada, o que implica priorizá-las − tanto no que diz respeito à implantação e implementação quanto à aplicação − são, portanto, condições fundamentais também para uma adequada aplicabilidade, execução e conseqüentes bons resultados da medida de privação de liberdade.

As propostas legais estabelecidas para tratar a situação dos adolescentes autores de atos infracionais envolvidos no cenário da violência inclui a internação em “estabelecimento educacional”, conforme conceitua o ECA. A privação de liberdade signifi ca, portanto, a restrição do direito de ir e vir, e não signifi ca a privação de todos os outros direitos garantidores da vida, da cidadania, da dignidade humana.

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Atuação do psicólogo em unidades de privação de liberdade

Pressupostos

- O atendimento aos adolescentes autores de ato infracional é responsabilidade DA SOCIEDADE E DO ESTADO e envolve todas as políticas públicas e, portanto, a qualidade desse atendimento e o que ocorre no interior das unidades de privação de liberdade –internação provisória, semi-liberdade e internação - destinadas a esses adolescentes dizem respeito a todos.

- O adolescente autor de ato infracional é, antes de tudo, um adolescente com suas singularidades, o que implica uma abordagem do ato infracional no contexto de sua história e circunstâncias de vida.

- O ato infracional deve ser compreendido em sua complexidade e, portanto, visto como uma ação multideterminada.

- O psicólogo, nas unidades de privação de liberdade, é um profi ssional da saúde que produz suas intervenções em um programa de socioeducação a partir de um compromisso ético-político de garantia dos direitos do adolescente, preconizados no ECA e nas normativas internacionais.

- A prática profi ssional do psicólogo junto aos adolescentes, nas unidades de privação de liberdade, se dá a partir da interface entre as várias áreas da Psicologia, e suas intervenções são construídas numa perspectiva socioeducativa com caráter multidisciplinar.

- Não há neutralidade possível frente a qualquer tipo de violência. É necessário posicionar-se, pois a negligência profi ssional é uma das faces da violência, assim como a humilhação, o tratamento cruel e degradante, a omissão de ajuda e socorro, os maus-tratos e a tortura.

- A relação do psicólogo com os demais membros da equipe de trabalho e outros profi ssionais envolvidos no atendimento e/

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ou trabalho institucional é de parceria, socialização e construção de conhecimento, respeitado o caráter ético e o sigilo conforme o Código de Ética Profi ssional do Psicólogo, não devendo haver relação de subalternidade na equipe multiprofi ssional.

- A relação com o Poder Judiciário e demais profi ssionais do sistema de justiça deve ser pautada pela fundamentação técnica qualifi cada e pelo respeito à especifi cidade do trabalho do profi ssional, e não pela relação de subserviência ou temor.

- Os relatórios, pareceres técnicos e informativos devem ser elaborados em conformidade com a Resolução CFP nº 07/2003 e evitar rótulos e estigmas e consider as condições existentes para o cumprimento da MSE, com informações elucidativas. Caso seja pertinente, poderá haver sugestões de encaminhamento para a inclusão social e familiar e acesso à rede de proteção social. O objetivo do relatório é subsidiar as decisões jurídicas, e não ocupar o lugar de julgamento dos adolescentes.

- A atuação do psicólogo nas unidades de privação de liberdade deve ser orientada pelas várias formas de intervenção próprias da Psicologia e não se restringir à elaboração de pareceres e relatórios sobre os adolescentes, devendo contribuir com seu fazer para a garantia da natureza socioeducativa da medida.

- É importante conhecer a cultura de grupo dos adolescentes e as suas práticas de convivência assim como as formas como se constituem e se apresentam na instituição. É necessário, a partir de uma perspectiva desnaturalizante e crítica, colocar em análise as práticas instituídas e reconhecer o sofrimento da determinação da violência e da arbitrariedade sobre as relações sociais na instituição.

- Em situações críticas, quando o adolescente da unidade corre risco de morte ou está em condições de produção de grave adoecimento físico ou psíquico, é dever intervir e buscar auxílio junto às instâncias superiores de gestão da instituição e/ou

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Poder Judiciário ou outras organizações da sociedade civil. Nos casos de dúvidas, no que tange a aspectos éticos de sua atuação ou de ocorrências que envolvam o adolescente e não encontrem respaldo nas instâncias de proteção intra ou extra-institucional, o psicólogo poderá recorrer à Comissão de Ética do Conselho Regional de Psicologia a que pertence e, se necessário, ao Conselho Federal de Psicologia.

- A prática do psicólogo nas unidades de privação de liberdade deverá se pautar pela inter e transdisciplinaridade com enfoque nas garantias dos direitos humanos, com respeito à legislação vigente e às convenções internacionais.

Diretrizes da atuação

O psicólogo, nas unidades de privação de liberdade – internação provisória, semi-liberdade, internação –, tem como diretrizes para a sua atuação:

1- Participar da elaboração, implementação e acompanhamento do projeto de atendimento socioeducativo da unidade de internação a partir dos subsídios da Psicologia, pautando-se no entendimento do projeto sociopolítico pedagógico institucional, em conformidade com o Sinase;

2- Elaborar, socializar, implantar, avaliar e acompanhar o plano de trabalho de seu setor, garantindo a integração interdisciplinar;

3- Contribuir para a capacitação permanente dos trabalhadores da unidade, particularmente aqueles em contato direto e diuturno com os adolescentes, permanecendo atento e intervindo preventivamente em possíveis situações ou confl itos que sejam impeditivos do trabalho;

4- Fomentar a existência de espaços de formação permanente, com toda a equipe de trabalhadores da unidade, para a construção coletiva de práticas que considerem a especifi cidade do grupo de adolescentes e suas singularidades;

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5- Participar na organização e estabelecimento de rotinas, regras de convivência e sistema de conseqüência às transgressões das regras institucionais pelos adolescentes;

6- Auxiliar, responsabilizar e sustentar permanentemente a prática de acolhimento aos adolescentes que chegam à unidade de internação;

7- Contribuir e/ou responsabilizar pela construção, junto a cada adolescente, do seu plano de atendimento individual;

8- Construir estratégias de cuidado e atendimento individual com respeito à lógica do trabalho interdisciplinar, considerando o sofrimento mental e as questões subjetivas dos adolescentes e fazendo os encaminhamentos necessários condizentes com os princípios da reforma psiquiátrica;

9- Acompanhar e articular ações com a rede de medidas socioeducativas, contatando os programas em meio aberto ou os programas de egresso quando do término do cumprimento da medida;

10- Desenvolver, com outros setores de trabalhadores da unidade, o trabalho de escuta, refl exão e orientação junto aos familiares e/ou responsáveis pelo adolescente, visando ao seu acolhimento, apoio, retaguarda e encaminhamentos necessários;

11- Realizar, preferencialmente com os membros da equipe profi ssional, grupos de escuta, orientação e refl exão com os adolescentes sobre temas emergentes no cotidiano da unidade, de interesse dos adolescentes ou relativos a aspectos das medidas socioeducativas – aplicação, execução, progressão, etc. e cidadania (direitos e deveres), de temas que envolvam a adolescência contemporânea, tais como: toxicomania, questões de gênero, sexualidade, relações com a família, mundo do trabalho, formação escolar, profi ssionalização;

12- Ampliar os espaços de debate através de convites a profi ssionais − do campo jurídico, universitário, referências das áreas técnicas − que não trabalham na unidade, para a realização

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de palestras ou debates num espaço de interlocução com os adolescentes e técnicos da unidade;

13- Elaborar relatórios e pareceres técnicos destinados ao Poder Judiciário, e, quando necessário, elaborá-los a fi m de viabilizar o encaminhamento do adolescente a serviços e programas da comunidade ou a atividades externas;

14- Intervir em situações críticas da unidade: na sua prevenção (avaliação do cotidiano institucional) e nos episódios de risco de morte e buscar recursos na equipe técnica da unidade e/ou em grupos e instituições da comunidade para o equacionamento dessas situações.

15- Participar da rede ampliada de serviços de educação, saúde, cultura, geração de renda, assistência social, etc.

16- Estimular o adolescente ao desenvolvimento de seu espaço coletivo de convivência institucional, com vistas a uma participação social produtiva e criativa;

17- Promover atividades coletivas de lazer, recreação e culturais com os adolescentes, na unidade e nos espaços da cidade;

18 - Recorrer ao seu órgão de categoria (Conselho Regional de Psicologia) em situações críticas que envolvam questões éticas e profi ssionais;

19- Incentivar o desenvolvimento de pesquisa e produção teórica, vinculados ou não à Universidade, com divulgação dos resultados e produtos;

20- Manter a documentação dos atendimentos individuais e dos projetos em desenvolvimento, atualizada e contribuir para fomentar banco de dados.

Formação

As características do objeto de estudo, pesquisa e prática profi ssional do psicólogo (um objeto em permanente transmutação), os novos, complexos e desafi adores fenômenos

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sociais colocados pela contemporaneidade, que determinam novos modos de ser e existir na relação do humano com o seu próprio corpo, com o outro e com o mundo físico e social e a disposição da comunidade científi ca para a construção de um conhecimento interdisdisciplinar que coloque a produção intelectual a serviço da garantia do exercício de direitos e bem-estar para os cidadãos, constituem-se em justifi cativa para a formação contínua e permanente do psicólogo para além dos cursos de graduação e de formação.

Nesse sentido, é importante considerar que, como para inúmeras outras áreas de atuação do psicólogo, há os conhecimentos básicos e introdutórios a serem garantidos no curso de graduação, conhecimentos menos genéricos/mais específi cos a serem garantidos na formação de psicólogo e conhecimentos especializados que implicam investimento permanente após a formação profi ssional curricular.

Quanto à graduação, é importante garantir:- uma compreensão do humano e dos fenômenos sociais

como multideterminados e, portanto, a utilização de saberes de áreas afi ns de conhecimento e de conhecimentos atualizados da Psicologia, sendo que esses saberes devem estar contextualizados na realidade econômica, política e social da comunidade, instituição ou grupo com o qual se trabalha;

- a compreensão que a Psicologia, e, posteriormente, a atuação do psicólogo, tem uma dimensão política, uma dimensão ética e uma dimensão técnica;

Os conteúdos programáticos - relativos ao tema - devem assegurar, nessa etapa da graduação (conforme currículo mínimo do curso de Psicologia):

- conteúdos atualizados sobre a Psicologia do desenvolvimento da criança e do adolescente, em seu aspecto físico-motor, afetivo-emocional, intelectual e social e o processo de formação de identidade / novas subjetividades;

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- conteúdos atualizados sobre teoria de grupos e instituições. Cabe ressaltar a relevância dos conteúdos relativos à família e suas transformações aceleradas enquanto estrutura e funcionamento da escola enquanto instituição de formação dos cidadãos, os meios de comunicação (mídia eletrônica) e outros grupos de pertencimento da criança e do adolescente;

- conteúdos introdutórios sobre temáticas relativa à infância e juventude: o brincar, a drogadição, a sexualidade, as relações virtuais, etc;

- conteúdos introdutórios relativos a teorias e técnicas de entrevista, abordagem dos grupos , instituição e diagnósticos;

- os conteúdos do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente - considerando que, em qualquer área de atuação do psicólogo junto à criança e ao adolescente, esses conhecimentos devem ser balizadores de sua atuação.

Na formação do psicólogo (estágios curriculares), mostra-se importante garantir:

- conteúdos relativos às diferentes instituições (diagnóstico, intervenção): educacionais, culturais, assistenciais, de privação de liberdade e das práticas e dispositivos relativos à saúde mental;

- conteúdos relativos ao Código de Ética no que concerne a dilemas e impasses para o psicólogo (tortura, situações de confl ito, etc) e à questão da neutralidade científi ca;

- conceitos fundamentais da área: vulnerabilidade, resiliência, incompletude institucional, protagonismo juvenil, sistema de garantia de direitos;

- conteúdos estruturantes de uma concepção crítica do fenômeno do adolescente autor de ato infracional: história social da infância e família, história da infância e juventude no Brasil (a vivência na rua, a violência doméstica, o trabalho precoce, a prostituição infanto-juvenil, a mendicância, a criminalização da pobreza, o preconceito, a violência como fenômeno multideterminado e multifacetado, a criminalidade como uma

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expressão da violência, os novos fenômenos da criminalidade e da cooptação da juventude e da adolescência (o crime organizado, o tráfi co de drogas);

- conteúdos relativos a planejamento de trabalho, equipe multidisciplinar, técnicas de manejo de grupo (adolescentes, famílias, trabalhadores), teorias e técnicas diagnósticas;

- as diferentes possibilidades de intervenção: clínico-sociais, clínico-educacionais, institucionais, grupais e individuais.

E, ao fi nal da formação curricular, a complexidade do fenômeno do adolescente autor de ato infracional coloca como exigência para o profi ssional, nessa área de atuação - quer nos programas de medidas socioeducativas de meio aberto ou naqueles de privação de liberdade, o investimento e a continuação da formação permanente através de uma prática calcada no contexto das políticas públicas na área (Sinase), o domínio do fl uxo do sistema de justiça da área da infância e juventude, a contextualização de suas práticas a partir dos dados da realidade local (diversidade regional, diversidade de gênero, de idade), a qualifi cação de seus relatórios técnicos e o fortalecimento de seus princípios éticos de defesa dos direitos à dignidade do adolescente autor de ato infracional.

Essa formação continuada pode ocorrer através de cursos formais (aperfeiçoamento, especialização, aprimoramento, pós- graduação), grupos de estudo, supervisões, participação em fóruns de discussão virtuais e/ou presenciais, participação em eventos políticos e técnicos da área. Essas modalidades podem ser promovidas e/ou incentivadas por órgãos públicos, pela parceria das universidades e centros de pesquisa com as instituições de execução dos programas de medida socioeducativas, pelas organizações não governamentais, pelos Conselhos Regionais e/ou da categoria, e dependem também da iniciativa pessoal de cada um dos profi ssionais em seu projeto ético-político de ser psicólogo.

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Uma modalidade privilegiada de formação nessa área é a supervisão pessoal e/ou da equipe de trabalho institucional por profi ssional qualifi cado e, preferencialmente, indicado pela própria equipe. Essa modalidade de formação permite que os conhecimentos sejam socializados, que a equipe usufrua da produção do investimento intelectual, da investigação das situações dilemáticas e de confl ito e da construção e desconstrução dos casos em atendimentos (histórias de vida, com vistas à sua compreensão e encaminhamentos), e possibilita realizar a desafi adora articulação teoria-prática, portanto, os benefícios do investimento subjetivo revertem para o trabalho institucional, cuja fi nalidade última é a qualifi cação do atendimento ao adolescente.

Condições de trabalho

1- As condições de trabalho para o desempenho profi ssional dos psicólogos junto aos adolescentes privados de liberdade devem garantir a realização das tarefas necessárias para um exercício profi ssional de qualidade, através de uma jornada de trabalho compatível com as peculiaridades de seu trabalho;

2- O ambiente físico para o desempenho profi ssional do psicólogo nas unidades de privação de liberdade deve ser adequado e capaz de preservar a privacidade do atendimento e, portanto, o sigilo profi ssional;

3- O psicólogo deve pautar sua atuação na liberdade do exercício profi ssional e na autonomia dentro da equipe interdisciplinar;

4- O psicólogo deve respeitar os parâmetros do Sinase nos aspectos referentes às condições de exercício profi ssional, como, por exemplo, a proporção de dois psicólogos para quarenta adolescentes internos;

5- Garantir suporte técnico para a equipe de trabalhadores

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da unidade – não só para a equipe técnica – através de supervisão ou de outros dispositivos que garantam a qualidade das relações humanas no trabalho e a saúde mental dos trabalhadores;

6- O psicólogo deverá desempenhar suas funções no sentido de estimular e garantir uma gestão democrática e participativa na unidade;

7- O psicólogo deverá realizar ações junto aos demais trabalhadores com o objetivo de instalação de CIPAS - comissões internas de prevenção de acidentes - em todas as unidades de privação de liberdade.

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Referências

ASSIS, Simone Gonçalves e outros. Resiliência - Enfatizando a Proteção dos Adolescentes. Porto Alegre: Artmed/Unicef, 2006.

BARRETO, Cristiane. Liberdade Assistida: Recortes ao Vivo de uma Experiência. In: Liberdade: uma medida. Org.: Cristiane Barreto e Mônica Brandão. Prefeitura de Belo Horizonte, 2006, no prelo.

CASTRO, Ana Luiza. Ato Infracional, Exclusão e Adolescência: Construções Sociais. Dissertação de mestrado. PUC-RS, 2006.Código de Ética do Psicólogo.

Decreto Interministerial do Ministério da Saúde nº 340/2004.

ILANUD, ABMP, SEDH, UNFPA (orgs.) Justiça, Adolescente e Ato Infracional: Socioeducação e Responsabilização. São Paulo: Ilanud, 2006.

Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil. Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência Institucional, SEDH/PR, dezembro/2005.

Relatório da Inspeção Nacional OAB/CFP.

Relatório do Fonacriad sobre a inspeção da OAB/CFP às unidades de internação socioeducativa nos Estados e Distrito Federal, outubro/2006.

Sinase – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, Conanda/SDH, maio/2006.

TRASSI, Maria de Lourdes. Adolescência-Violência: Desperdício de Vidas. SP: Cortez, 2006.

WAISELFISZ, Julio J. Mapa da Violência: os Jovens do Brasil (sumário executivo), 2006.

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Anexos

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Moções de repúdio

Seminário Nacional “A Atuação dos Psicólogos Junto aos Adolescentes Privados de Liberdade”.

Moção 1

Nós, psicólogos reunidos no Seminário Nacional “A atuação dos psicólogos junto aos adolescentes privados de liberdade”, nos dias 8 e 9 de dezembro de 2006, em Brasília – DF, lamentamos a morte de Rafael da Silva Cunha, ocorrida no dia 05 de dezembro próximo passado, no Rio de Janeiro, de forma brutal e com características de execução sumária.

Solidarizamo-nos com sua mãe, Mônica Cunha, do grupo Moleque, e com todas as mães brasileiras que, incansavelmente, lutam pela vida e pela dignidade de seus fi lhos.

Registramos, ainda, o nosso repúdio às práticas de tortura, extermínio e violências em geral, que têm vitimizado, de forma sem precedente, a infância e a juventude no Brasil.

Moção 2

Os psicólogos que trabalham em unidades de atendimento de adolescentes privados de liberdade REPUDIAM a implementação de unidades voltadas especifi camente para a internação e tratamento de adolescentes que apresentam diagnóstico de transtorno mental e de comportamento, por compreender que tais medidas se apresentam como um retrocesso às conquistas promovidas pelo movimento de luta antimanicomial e pela categoria de psicólogos.

Moção 3

Nós, psicólogos de diversos Estados, declaramos ser contrários à existência de solitárias/isolamento dentro de instituições socioeducativas.

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Lista de delegados

Admilse da Costa Menezes Santos (TO)Alexandre Cardoso Aranzedo (ES)Amanda Rocha Leite de Mattos (MG) Amanda Sousa de Oliveira Cabral (RO)Ana Lúcia Canetti (PR)Ana Lúcia Santos da Silva (PA)Ana Paula Torres Pinheiro (BA)Aruana Rita Cardoso Silva (TO)Celso Durat Junior (PR)Cláudia Márcia Ramos Silva (DF)Cristiane Tomazelle dos Santos (SP)Cynara Maria C. de Almeida Veras (PI)Ederson Ribeiro (SP)Edílson Ribeiro Araújo (GO)Eliamar Machado (SC)Elton Alves Gurgel (CE)Elyane Nazaré Rodrigues (AP)Elyane Sarkis (PE)Eniedes Souza Mendes (MA) Érika Vinhal Rodrigues Vieira (MG) Eunicete Ferreira de Lima (AC)Fábio Tomasello Guimarães (DF)Fernanda Freitas Santos (CE)Gustavo Paiva de Carvalho (RR)Hortência Correa Servian (RO)Irineu Tuim Viotto Filho (SP) Juliana de Souza Pires (GO)Karen Cristiane B. Costa (GO)Karla P. Melo (BA)Leciane Andressa dos Santos (SP)Liliane dos Santos Silva (PB)

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Lizelda Peniza Bravo Cassales (RS) Lucas de Oliveira Borges (MG)Lucas de Oliveira Borges (TO)Luiz Henrique Oliveira (ES)Lygia Santa Maria Ayres (RJ)Manoel de Christo Alves Neto (PA)Marcela Giudicissi Rehder (SP)Marcelo Augusto Zacarias (AM)Maria Alice do Carmo Miguel (RN)Maria Aparecida da Fonseca Silva (AL)Maria Helena Machado (SP)Maria Izabel Calil Stamato (SP)Maria Jozina Ferreira (PB)Maristela Schneider Vettorazzi (SC)Mariza Seixas Tardelli de Azevedo (SP)Micheline Menezes Lima (RN)Monise Gomes Serpa (PI)Nivya Kellen de Castro Valente (AM)Noélia Maria Loureiro Gonçalves (CE)Patrícia Santana Santos (DF)Regina Reck (SC)Rodrigo Tôrres Oliveira (MG)Rosana Maria Luz Fernandes (RR)Samara Lopes de Moraes (AC)Sandra Cristina Figueiredo Abdalla (MT)Sandra Torossian (RS)Selma Silva de Araújo (SE)Severino Ramos de Lima (PE)Silvia Giugliani (RS)Sílvia Guimarães Dias (MS)Sônia Cristina Oliveira (MT)Sônia Maria Cordeiro de Lima (AL)Vanda Vasconcelos Moreira (RJ)

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Vera Lúcia Hortega (MS)Vilma Beatriz T. Croco de Oliveira (SP)Vladimir França Gama (MA)Walter Firmo Cruz (AP)Walter Ude (MG)

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Conselho Federal de PsicologiaSRTVN 702 - Ed. Brasília Rádio Center - sala 4024-A

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