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A BASE NACIONAL COMUM DE BIOLOGIA E OS PRESSUPOSTOS DA ECTS
IONARA BLOTZ1
LEONIR LORENZETTI2
AWDRY FEISSER MIQUELIN3
Resumo: Este trabalho discute em que medida as orientações da Base Nacional Comum
Curricular (BNC) atendem às mudanças necessárias para a melhoria do ensino de Biologia no
país, levando em conta os pressupostos da Educação Científica com enfoque CTS (ECTS).
Utilizando a análise de conteúdos de Bardin (2011) procuramos identificar na BNC de
Biologia os elementos característicos da ECTS, visando discutir as concepções que orientam o
ensino da disciplina. Os resultados apontaram que embora a BNC tenha avançado na ênfase a
temas contemporâneos, direciona para uma abordagem conceitual e cognitiva dos conteúdos.
Quanto às relações CTS observou-se: concepção de ciências questionável; concepção de
tecnologia enquanto aplicação da ciência; ênfase às aplicações e impactos da C&T;
negligencia o poder de influência da sociedade sobre os rumos da C&T e as disputas de poder
envolvidas, respaldando o modelo de decisões tecnocráticas. Tais aspectos, entre outros,
levam-nos a considerar que, embora a proposta apresente aspectos inerentes à ECTS, estes
não são tratados com a criticidade necessária para atender às demandas sociais atuais.
Palavras-chave: BNC; Ensino de Biologia; ECTS.
INTRODUÇÃO
Apesar da elaboração da Base Nacional Comum (BNC) ter iniciado desde 2010, foi
com a apresentação para consulta pública do documento em sua versão preliminar no segundo
semestre de 2015 que o debate se intensificou levantando críticas, ponderações e
questionamentos dos diversos setores envolvidos.
Uma destas questões fomentou a elaboração deste trabalho: As proposições
apresentadas na BNC para o ensino de Biologia representam as mudanças necessárias para a
melhoria do ensino da disciplina?
Ao analisar as características da sociedade atual, marcada pela presença da ciência e
tecnologia e de seus efeitos sobre o ambiente, a saúde da população, a cultura e as relações
sociais, consideramos que as discussões a respeito das implicações sociais da ciência e da
tecnologia contempladas pela educação científica com enfoque CTS (ECTS) apresentam
propósitos fundamentais para um ensino de Biologia coerente com as demandas sociais
vigentes. Com base nisso, para podermos responder a questão motivadora deste trabalho,
buscamos identificar na proposta preliminar da BNC de Biologia os elementos da ECTS,
Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR. Campus Curitiba/PR. Mestranda. Universidade Federal do Paraná Campus Politécnico-UFPR. Curitiba/PR. Doutor. Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR. Campus Curitiba/PR. Doutor.
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traçando um paralelo entre os componentes curriculares presentes no documento e os
pressupostos CTS voltados à educação científica.
Feitas tais análises, a discussão dos dados foi orientada a partir de questões como: De
que maneira o desenvolvimento científico e tecnológico está sendo apresentado pela
disciplina? O que é pretendido para a educação científica? Qual o papel da disciplina na
formação dos estudantes no contexto social atual?
METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa documental na qual buscamos
identificar a presença dos pressupostos da ECTS na BNC de Biologia por meio da análise de
conteúdo pautada em Bardin (2011). Segundo Godoy (1995), a análise de conteúdo parte do
pressuposto de que, por trás do discurso aparente, simbólico e polissêmico, esconde-se um
sentido que convém desvendar. O pesquisador, deste modo, busca compreender as
características, estruturas ou modelos que estão por trás dos fragmentos de mensagens
considerados para análise.
Para o estudo dos pressupostos da ECTS, tomamos como referência os trabalhos de
Santos e Mortimer (2001; 2002), Santos e Schnetzler (2003) e Santos (2012) nos quais são
discutidas as principais proposições presentes na literatura que caracterizam a ECTS e que
devem compor os currículos na área de Ciências Naturais visando contemplar o exercício
consciente da cidadania.
A ECTS é caracterizada pela ênfase nas inter-relações entre os três elementos da
tríade e pela interseção de propósitos entre o ensino de ciências, a educação tecnológica e a
educação para a cidadania no sentido da participação na sociedade. (SANTOS, 2012:51).
Deste modo, uma proposta curricular de CTS corresponde a uma integração entre
educação científica, tecnológica e social, em que os conteúdos científicos e tecnológicos são
estudados juntamente com a discussão de seus aspectos históricos, éticos, políticos e
socioeconômicos. (LUJÁN LÓPEZ; LÓPEZ CEREZO, 1996 apud SANTOS; MORTIMER,
2002:3-4).
Com base nestas características, o estudo comparativo entre os pressupostos da
ECTS e os elementos estruturais da BNC de Biologia visa identificar se tais elementos estão
contemplados na proposta curricular da disciplina. Para tanto, a pesquisa foi realizada a partir
das categorias estabelecidas no processo de análise do conteúdo e que se constituem como
eixos de discussão.
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Quadro 1: Comparativo entre os objetivos da ECTS e da BNC - Ciências da Natureza/Biologia.
A BNC DE BIOLOGIA E OS PRESSUPOSTOS DA ECTS
Tomamos como pontos para discussão os elementos estruturantes do currículo:
objetivos, estratégias de ensino e as intenções curriculares.
Os elementos estruturantes do currículo: objetivos
De acordo com trabalhos publicados na área, Solomon e Aikenhead, (1994); Zoller
(1982), Aikenhead, (1987; 1988), citados por Santos e Mortimer (2002:5), a ECTS visa, por
meio da alfabetização científica e tecnológica, o desenvolvimento da capacidade de tomada de
decisão frente aos problemas da vida real e a compreensão da natureza da ciência e seu papel
na sociedade. Isso significa preparar o indivíduo para participar ativamente na sociedade
democrática, na busca de solução de problemas que envolvam aspectos sociais, tecnológicos,
econômicos e políticos. Para tanto, implica conhecer princípios básicos da história e filosofia
da ciência para reconhecer as potencialidades e limitações do conhecimento científico.
Santos e Mortimer (2002) destacam também que estes currículos visam desenvolver
conhecimentos e as habilidades específicas, conforme podemos observar no quadro 1, no qual
apresenta um paralelo entre os objetivos da// ECTS e os objetivos presentes na proposta
preliminar de Ciências da Natureza para o Ensino Médio:
Fonte: Os autores (2016).
Dentre os objetivos propostos para a área das Ciências da Natureza, a BNC apresenta
em seu texto, objetivos que contemplam a compreensão das interações CTS: “Interpretar e
discutir relações entre a ciência, a tecnologia, o ambiente e a sociedade, em seu próprio
contexto e em âmbito maior no espaço e tempo.” (BRASIL, 2015:186).
O documento apresenta também objetivos que comungam com os da ECTS:
- Mobilizar conhecimentos científicos para emitir julgamentos e tomar posições a
respeito de problemas de interesse pessoal e social, relativos às interações da ciência
na sociedade; - Desenvolver o senso crítico e autonomia intelectual na busca de
soluções, visando a transformações sociais e à construção da cidadania; - Refletir
criticamente sobre valores humanos, éticos e morais relacionados à aplicação dos
conhecimentos científicos e tecnológicos (BRASIL, 2015:186).
OBJETIVOS ECTS BNC
Objetivo
Geral
Desenvolver a cidadania por meio da alfabetização
científica e tecnológica visando à tomada de decisões responsáveis sobre questões de cunho social, tecnológicos,
econômicos e políticos.
Inspirar o exercício da cidadania guiada por princípios
de liberdade e solidariedade; promover a inserção no mundo do trabalho e incentivar a continuidade dos
estudos.
Objetivos
específicos
- Aquisição de conhecimentos científicos
- Desenvolvimento de valores - Compreensão da natureza da ciência e seu papel na
sociedade
- Conhecimento conceitual - Apropriação de processos e práticas investigativas
- Compreensão da linguagem científica - Contextualização histórica, social e cultural.
Habilidades
desenvolvidas
- Autoestima – comunicação escrita e oral – pensamento lógico e racional para solucionar problemas – A tomada
de decisão – Aprendizado colaborativo/cooperativo
- Responsabilidade social – Exercício da cidadania – Interesse em atuar em questões sociais.
- Qualificar os jovens para o uso das tecnologias –
reconhecer e interpretar fenômenos, problemas e
situações práticas; - Fazer julgamentos - Tomar iniciativas práticas
- Elaborar argumentos
- Apresentar proposições.
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Quadro 2: Paralelo entre os elementos curriculares da ECTS e da BNC de Biologia.
Podemos observar que os objetivos de ambas as propostas coincidem em muitos
aspectos, dentre eles, a formação para cidadania, a tomada de decisão com base no
conhecimento científico, considerando suas práticas de investigação e linguagem própria e o
desenvolvimento de responsabilidade social.
Os elementos estruturantes do currículo: estratégias de ensino
Neste tópico discutimos os elementos estruturantes do currículo que correspondem às
estratégias de ensino sugeridas por educadores da ECTS e pela BNC de Biologia. O quadro 2
a seguir, apresenta um comparativo entre os elementos curriculares que compõe a ECTS e as
orientações da BNC.
Elementos
curriculares ECTS BNC
Estrutura
Conceitual
- Interação entre C, T e S – Processos tecnológicos – Temas
sociais relativos à CT – Aspectos filosóficos e históricos da Ciência – Aspectos sócias de interesse da comunidade
científica – Inter-relação entre os aspectos anteriores.
- Conhecimento conceitual: fenômenos, processos e situações.
- Processos e práticas investigativas.
- Compreensão da linguagem científica. Contextualização histórica, social e cultural.
Estratégias de
Ensino
Participação ativa dos estudantes em: jogos de simulação e
desempenho de papéis, fóruns, debates, projetos individuais
e coletivos, redação de cartas para autoridades, pesquisa no campo do trabalho, palestras, ação comunitária, visitas,
estudos de caso, entrevistas, relatórios e análise de dados,
filmes, jogos.
A partir de diferentes estratégias e múltiplos
instrumentos didáticos, buscando promover o encantamento, o desafio e a motivação dos
estudantes para o questionamento.
Temas de
Estudo
Saúde, alimentação e agricultura, recursos energéticos, indústria e tecnologia, ambiente, transferência de
informação e tecnologia, ética e responsabilidade social,
recursos hídricos, crescimento populacional, substâncias perigosas.
- Biologia: a vida como um fenômeno único – Biodiversidade – Metabolismo – Organismo –
Hereditariedade – Evolução – Dinâmica dos
ecossistemas – Gestão Ambiental – Diversidade sociocultural
Abordagem Social e Interdisciplinar: um problema central do qual
partem os conceitos de ciência necessários para resolvê-lo. Conceitual – apresentação dos conceitos num
contexto ampliado de interações com outras esferas.
Contextualização Tema social e de interesse científico. Histórica, social e cultural – não necessariamente
uma problemática. Ênfase na aplicação prática.
Investigação e
Prática
Centrada em uma problemática: meio de explorar as ideias
dos estudantes e desenvolver compreensão conceitual.
Metodologia como objeto de estudo com vista a propor soluções de problemas que envolvam
conhecimento científico.
Fonte: dos autores (2016).
Com base nesta análise comparativa observamos que em termos de elementos
conceituais e estratégias de ensino não encontramos muita discrepância entre ambos. Os
temas de estudo presentes na ECTS, das quais partem os conteúdos a serem trabalhados, em
algumas situações são contemplados na BNC inseridos dentro dos eixos temáticos que
contemplam os conteúdos da disciplina. Quanto aos demais elementos, abordagem,
contextualização e a investigação e prática precisam ser confrontadas com mais propriedades.
Apesar dos textos introdutórios da BNC de Biologia reconhecerem a importância das
discussões sobre questões sociocientíficas e os objetivos de aprendizagem apresentarem
tópicos que envolvam controvérsias em torno da aceitação de teorias, a proposta não garante
uma abordagem socialmente contextualizada.
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Lowe (1985), Aikenhead (1994), Santos e Mortimer (2002) e Santos e Schnetzler
(2003) explicam que a abordagem CTS deve partir de um problema central do qual parte os
conceitos de ciência necessários para resolvê-lo. “As possíveis soluções são propostas em sala
de aula após a discussão de diversas alternativas, surgidas a partir do estudo do conteúdo
científico, de suas aplicações tecnológicas e consequências sociais.” (SANTOS;
MORTIMER, 2002:13). Essa é a diferença entre o foco do conteúdo da educação CTS e o
foco do currículo tradicional. (SANTOS, 2012). A abordagem temática representa então, um
dos princípios estruturantes da ECTS, pois:
É a partir da discussão de temas reais e da tentativa de delinear soluções para os
mesmos que os alunos se envolvem de forma significativa e assumem um
compromisso social. Isso melhora a compreensão dos aspectos políticos,
econômicos, sociais e éticos. Além disso, é dessa forma que os estudantes aprendem
a usar conhecimentos científicos no mundo fora da escola. (SANTOS; MORTIMER,
2001:103).
Tomamos como objeto de análise os objetivos de aprendizagem para a 1ª série,
relativo à UC2 – Biodiversidade- Organização, Distribuição e Abundância:
Entender que os seres vivos se relacionam com componentes bióticos e abióticos do
ambiente, influenciando a sua distribuição, abundância e composição.
Exemplo: Estudo de casos nos quais a competição entre seres vivos e/ou predação
podem ser utilizadas no controle de pragas para a agricultura (BRASIL, 2015:195).
O exemplo apresentado sugere a contextualização através do controle biológico de
pragas na agricultura. Na descrição, o estudo de casos é entendido num sentido de aplicação
do conceito estudado e não de problematização do conhecimento.
A abordagem com base em uma problemática foi encontrada com mais propriedade
na unidade de conhecimento 7, trabalhada exclusivamente na 3ª série do Ensino Médio
referente aos temas Ecossistemas, Gestão ambiental e Diversidade sociocultural. Isso pode ser
explicado pela própria característica dos conteúdos propostos se referirem às problemáticas
envolvendo questões ambientais.
O fato de o documento carecer de exemplos cujos conteúdos partam de situações
problematizadoras torna a contextualização sujeita a ganhar aspectos de exemplificação.
Desta forma, a abordagem que não contemple as problemáticas sociais, e a contextualização
sendo entendida apenas como aplicação de conhecimentos, compromete o desenvolvimento
da capacidade de julgamento dos estudantes, pois:
A adoção de temas envolvendo questões sociais relativas à C&T, que estejam
diretamente vinculadas aos alunos, nos parece ser de primordial importância para
auxiliar na formação de atitudes e valores. Para isso, parece ser essencial o
desenvolvimento de atividades de ensino em que os alunos possam discutir
diferentes pontos de vista sobre problemas reais, na busca da construção coletiva de
possíveis alternativas de solução. (SANTOS; MORTIMER, 2001:107).
De acordo com dados da pesquisa de Patronis, Potari e Spiliotopoulou (1999), os
estudantes são capazes de desenvolver argumentos e obter decisões quando eles encaram uma
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Quadro 3: Concepções curriculares da ECTS e da BNC- Ciências da Natureza.
situação na qual estão realmente envolvidos (SANTOS; MORTIMER, 2001:104). Podemos
considerar com isso que a ausência de uma abordagem temática pautada em temas da
sociedade, compromete a formação para a cidadania na medida em que limita o envolvimento
dos estudantes na busca de soluções para os problemas em torno de questões sociocientíficas.
Nesse sentido, as contribuições do movimento CTS para o ensino das Ciências
revelam a importância do ensinar a resolver problemas, a confrontar pontos de vista, a
analisar criticamente argumentos, a discutir os limites de validade de conclusões alcançadas e
saber formular novas questões. (MARTINS, 2002).
A respeito da contextualização dos conteúdos, a BNC apresenta uma perspectiva
sistêmica e temporal, visando demonstrar a complexidade dos eventos biológicos, o que
consideramos muito apropriado, pois não podemos ignorar que a educação científica envolve
outras dimensões além das reflexões críticas sobre as inter-relações CTS.
As intenções curriculares
De acordo com Cóssio (2014), mesmo considerando que o currículo ultrapassa a
relação de conteúdos, quando se configura como uma base comum em que apresenta os
conhecimentos selecionados, dentre tantos outros, como necessários em cada etapa e nível de
escolarização, permite considerar que formaliza as intencionalidades e as ideologias presentes
em sua formulação. (CÓSSIO, 2014:1572).
Desta forma, julgamos relevante identificar as concepções presentes em tais
currículos visando discutir a coerência entre os elementos que os compõe e o contexto social e
histórico em que se originaram.
No quadro 3, estão presentes as concepções que consideramos importantes para a
elaboração de um currículo para a educação científica.
Concepções ECTS BNC
Concepção de
ciência
Projeto social e culturalmente contextualizado, uma
atividade aberta que está em contínua construção.
Um empreendimento humano, construído histórica e socialmente; Instrumento de leitura do mundo para
interpretação de fenômenos e problemas sociais.
Concepção de
tecnologia
Conhecimento que nos permite controlar e modificar o mundo. Incorpora aspectos técnicos, organizacionais e
culturais.
Não expressa definição clara.
Sociedade
Fonte de inspiração para a seleção de temas e conteúdos a serem trabalhados.
Sua organização baseada no desenvolvimento científico e tecnológico justifica o ensino das ciências e seu impacto.
Interações
ciência-
tecnologia-
sociedade
Caráter multidisciplinar, relacional, na qual há efeitos
mútuos entre ambos. Seus efeitos e suas inter-relações variam de época e lugar.
Caráter integrador. Expressa a compreensão das questões
científicas, tecnológicas, ambientais e sociais. O
conhecimento científico e tecnológico articula-se com a sociedade enquanto elementos de transformações sociais e
promotores de impactos.
Tomada
de decisão
Busca de uma solução que atenda ao interesse da coletividade. Implica em participação no debate público,
capacidade de fazer julgamento em termos de valores,
ética e cultura e saber negociar a solução de interesse comum.
Não apresenta definição.
Cidadania Implica na ação social responsável para transformação Reflexão sobre a cultura na qual se insere, consciência de
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Fonte: Os autores (2016).
Dentre as concepções apresentadas chamamos a atenção para o conceito de ciência
apontado na BNC. De acordo com Cachapuz, Praia e Jorge (2004), o entendimento da Ciência
como construção sociocultural banaliza o conhecimento científico, colocando-o a par, por
exemplo, da astrologia ou quiromancia. Segundo eles, “persiste assim uma grande confusão
entre Ciência como mera construção sociocultural e Ciência como projeto social e
culturalmente contextualizado (que é o que ela é). A diferença não é só de grau. É também
epistêmica.” (CACHAPUZ; PRAIA; JORGE, 2004:371). Para os autores, considerar este
aspecto epistemológico torna-se fundamental, pois o modo como se ensina as Ciências tem a
ver com o modo como se concebe a Ciência que se ensina.
Em relação às interações entre CTS, percebemos que embora o eixo
Contextualização histórica, social e cultural das Ciências da Natureza, vise contemplar a
relação entre conhecimentos conceituais e as relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade,
o mesmo não enfatiza os efeitos mútuos que uma exerce sobre a outra. Há um direcionamento
mais no sentido de apontar os impactos promovidos na sociedade e no ambiente.
O poder de influência que os cidadãos têm nos rumos da Ciência e da Tecnologia
(C&T) e dos produtos por elas desenvolvidos também não é destacado. Não há um
direcionamento crítico no sentido de questionamento das decisões tecnocráticas. A ausência
desta discussão em sala de aula reforça a ideia das decisões pautadas em especialistas e que
limita a participação da sociedade nos rumos da C&T. O fato de os objetivos de aprendizagem
exemplificarem sobre as aplicações biotecnológicas sem enfatizar as implicações sociais
também contribui para uma visão salvacionista da ciência.
Contraditoriamente, foi a necessidade do controle público da C&T que contribuiu
para uma mudança nos objetivos do ensino de ciências nos países europeus e da América do
Norte e que resultou no desenvolvimento de diversos projetos curriculares CTS destinados ao
ensino médio. A ênfase destes currículos visava à preparação dos estudantes para atuarem
como cidadãos no controle social da ciência. (SANTOS; MORTIMER, 2001:96).
Ao buscar as concepções presentes no documento da BNC, percebemos que não foi
possível encontrar elementos suficientes para uma definição em torno dos temas tecnologia e
tomada de decisão.
social, capacidade de julgamento de valores, de tomada de
decisão, competências cognitivas e a alfabetização científica e tecnológica.
seus direitos, busca de formas de intervenção pessoais e
coletivas, assumir responsabilidade social e ambiental.
Currículo Promotor de competências
Orienta a atuação dos estudantes em diferentes práticas
sociais: na vida cotidiana, cultural, do trabalho, da comunicação e da cidadania.
Educação
para a
cidadania
Ressignificação dos conteúdos visando à formação de
atitudes e valores democráticos, a tomada de decisão e a
ação social responsável.
Visa o desenvolvimento cognitivo e cultural, autonomia
intelectual e senso crítico no enfrentamento de problemas
e na busca de soluções, visando à transformação social.
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Apesar do termo, tecnologia aparecer no texto do documento diversas vezes, não há
uma definição sobre sua concepção. Porém, algumas passagens levam ao entendimento de
que a tecnologia é considerada pelos autores, enquanto aplicação prática da ciência, tratando
ambas de forma dissociada. A tecnologia é enfocada no sentido mais restritivo, enquanto
aparato ou equipamento tecnológico:
[...] a compreensão de questões culturais, sociais, éticas e ambientais, associadas ao
uso dos recursos naturais e à utilização do conhecimento científico e das
tecnologias. (BRASIL, 2015:149, grifo nosso)
[...] por sua presença na cultura e por sua relação com produtos e processos
tecnológicos. Por isso, entre as razões de uma formação articulada entre Ciências e
tecnologias, está a necessidade de qualificar os jovens para o uso das tecnologias
[...]. (BRASIL, 2015:184, grifos nossos).
No que diz respeito à tomada de decisão, considerada pela BNC como uma das
capacidades a ser desenvolvida pela educação científica, aparece associada apenas em dois
sentidos, em questões éticas de âmbito pessoal e na participação no processo eleitoral do país:
[...] na análise de situações de tomada de decisão por familiares diante de resultado
de exames desta natureza (BRASIL, 2015:201).
[...] muitos desses sujeitos têm poder decisório por serem eleitores, exercerem
direitos e deveres de cidadãos, participarem no mundo do trabalho, fazendo parte de
contextos culturais nos quais a ciência aparece como mais uma cultura com a qual
eles vão interagir. (BRASIL, 2015:184, grifo nosso).
Tais apontamentos remontam a outros conceitos importantes que estão diretamente
ligados à tomada de decisão e que também não apresentam definição, embora estejam
contemplados nos objetivos formativos do documento, é a participação responsável e
responsabilidade social. Que tipo de participação social se espera instigar nos estudantes? A
participação no planejamento político, econômico, nos rumos da C&T, nas avaliações de
custo/benefício? Ou no sentido de aderir às ações governamentais? Responsabilidade com
atividades de mitigação de impactos ou com a busca de novas estratégias de produção com
menor efeito negativo?
Tomando como base o trecho da BNC mencionado acima, a tomada de decisão, no
que diz respeito ao caráter coletivo, parece-nos estar mais próxima ao modelo decisionista
(HABERMAS, 1973), restringindo a participação a uma forma indireta, enquanto eleitores
que outorgam a outros, o poder de decisão.
A tomada de decisão que é discutida na ECTS é entendida, de modo geral, como a
participação no debate público e a busca de uma solução que atenda ao interesse da
coletividade - implica capacidade de fazer julgamento, avaliar as diferentes opiniões que
surgem neste debate e saber negociar a solução de interesse comum. Tais atitudes podem ser
encorajadas se uma perspectiva de tomada de decisão for incorporada ao processo
educacional (SANTOS; MORTIMER, 2001).
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As concepções de cidadania, as intenções sociais e as interações entre ciência,
tecnologia e a sociedade também não são claramente definidas. Conforme já mencionado, a
ausência de clareza sobre a concepção de princípios estruturantes dos currículos representa
um aspecto preocupante quanto à intencionalidade da proposta.
Ao analisar o trabalho de Moniz dos Santos (2004), Toti, Pierson e Silva (2009)
destacam que a ideia de cidadania não é exata e imutável, ao contrário, ela é condicionada
histórica e socialmente:
Os significados que lhes são atribuídos traduzem acordos e desacordos políticos e
sociais, interpretações mais restritas ou mais alargadas e variam com as
características que “fazem” um cidadão [...] Assim, importa não aderir
ingenuamente à ideia de cidadania. A capacitação para um debate sobre o que é
ou deve ser cidadania envolve uma análise diacrônica e sincrônica do conceito.
(MONIZ DOS SANTOS, 2004:79 apud TOTI; PIERSON; SILVA, 2009, sn, grifo
dos autores).
Na literatura relacionada à ECTS, os autores supracitados constataram princípios
atribuídos à cidadania como, ação social responsável, transformação social, capacidade de
julgamento de valores, tomada de decisão, competências cognitivas e a alfabetização
científica e tecnológica.
Na BNC, em torno do tema cidadania podemos observar: a participação social,
consciência de direitos, responsabilidade social e ambiental, autonomia intelectual, princípios
éticos, conhecimento científico contextualizado. Contudo, o texto não esclarece no que
implica a participação e responsabilidade social que se almeja.
Da mesma forma, a educação para a cidadania que, ao se pautar pela busca de
soluções, pela tomada de decisão e transformação social, precisa explicitar o que se define
como tomada de decisão, que tipo de transformação social é almejada e qual a participação
dos cidadãos neste processo. Essa superficialidade ao tratar tais aspectos favorece o abismo
que costuma existir entre os objetivos presentes nos documentos oficiais e as práticas em sala
de aula, transformando-se muitas vezes, em discursos educacionais vazios.
Além de não priorizar uma abordagem temática, favorecendo uma abordagem
conceitual do conhecimento, é possível observar o enfoque puramente biológico em
conteúdos que requerem tratamentos mais amplos. Este caso pode ser exemplificado no
objetivo para 2ª série, UC4- Organismo:
Compreender que as doenças sistêmicas podem ser causadas por vários fatores,
dentre eles a obesidade e o uso excessivo de drogas, que dificultam o funcionamento
adequado no organismo, exigindo integralidade de saberes no que se refere a ações
preventivas de controle e de tratamento.
Exemplo: Reconhecimento de que o uso do tabagismo e outras drogas podem
aumentar a incidência de câncer nos pulmões; o acúmulo de placas de gordura,
colesterol e outras substâncias nas paredes das artérias, o que restringe o fluxo
sanguíneo e que pode levar a infartos. (BRASIL, 2015:199).
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A abordagem puramente biológica de temas que tem forte componente social, além
de não atrair o interesse dos estudantes, não contribui para a necessidade de torná-los
sensíveis à necessidade de enfrentamento. Essa capacidade se torna possível quando tais
problemas são tratados de forma ampla, dimensionando a complexidade em que estão
inseridos. Este direcionamento exige que temas como estes sejam discutidos sob uma
perspectiva histórica, cultural e social considerando os aspectos científicos e tecnológicos
imbricados. Nesta perspectiva, os conteúdos não têm valor em si mesmo e são analisados
considerando também, suas relações com as demais áreas, naturais e/ou humanas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da proposta curricular preliminar para a disciplina de Biologia trazer alguns
avanços em relação à ênfase em temas contemporâneos em detrimento à organização clássica
dos conteúdos e orientar o trabalho dos conhecimentos de maneira integrada e progressiva,
envolvendo estudos de investigações prática e considerando aspectos históricos, culturais e
ambientais, ainda mantém um direcionamento à abordagem conceitual destes conteúdos.
No que diz respeito às relações entre ciência, tecnologia e sociedade, embora seu
estudo esteja contemplado nos objetivos da BNC, alguns aspectos importantes foram
apontados: - concepção de ciências questionável; - falta de clareza quanto ao entendimento de
tecnologia, dando indício de um entendimento da tecnologia enquanto aplicação da ciência; -
considera as relações C&T enfocando as aplicações e os impactos na sociedade ignorando as
relações de reciprocidade entre a tríade CTS e seus efeitos mútuos; - não discute o poder de
influência da sociedade sobre os rumos da C&T e as disputas de interesse e poder envolvidas,
favorecendo a compreensão de decisões tecnocráticas, exclusiva aos especialistas.
Relacionado a este aspecto e com implicações fundamentais para a compreensão das
relações CTS e para o desenvolvimento de atitudes e participação social, elencadas como
objetivos da educação científica na BNC é a abordagem dos conteúdos partindo de temas de
relevância social.
Nesta direção também observamos a falta de delineamento em elementos apontados
como objetivos da área das Ciências da Natureza, na qual está inserida a disciplina de
Biologia: participação crítica, tomada de decisão, responsabilidade social, transformação
social e cidadania. Entendemos que o efetivo tratamento da educação científica para a
formação de cidadão depende da clareza em torno de tais conceitos. Caso contrário, estes
conceitos acabam ganhando sentido de discurso vazio utilizado para reproduzir valores e
mascarar uma educação despolitizada e acrítica.
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Concordamos também com Cóssio (2014) que a falta de uma fundamentação teórica
e epistemológica clara na proposta, acaba repercutindo em uma prática sem reflexividade,
focada em aplicações metodológicas que se configuram insuficientes para as verdadeiras
mudanças necessárias no ensino. A falta de definições em torno dos elementos essenciais para
caracterização do currículo pode ser entendida ingenuamente como uma postura curricular
neutra, visando atender a uma pluralidade metodológica.
Contudo, concordamos com Santos e Mortimer (2001:107) ao afirmar que “uma
educação científica que se pretende neutra é ideologicamente tendenciosa”:
ao invés de preparar o cidadão para participar da sociedade, pode reforçar valores
contrários ao ideal de democracia e de cidadania, ao não questioná-los. Nesse
sentido, ao pensar em reformas curriculares, precisamos superar a posição ingênua
de reduzir essa tarefa à inclusão de novos conceitos que expliquem melhor os
princípios científicos relativos às questões tecnológicas. Também não é suficiente
mencionar as consequências do desenvolvimento científico e tecnológico, sem
desenvolver uma consciência para a ação social responsável. (SANTOS;
MORTIMER, 2001:107).
Também podemos considerar que a proposta da BNC como forma de reduzir as
desigualdades ao se basear em aprendizagem mínima para cada ano de escolaridade sem levar
em conta as condições estruturais e sociais envolvidas, configura um ensino puramente
cognitivista. Encontramos associação com este aspecto na ausência de abordagem temática
focada nas problemáticas sociais e a falta do caráter político-pragmático de tomada de
decisões.
É possível perceber, neste sentido, que o currículo da disciplina está coerente com os
propósitos da educação voltada para a preparação para o mundo do trabalho, através das
habilidades em lidar com as tecnologias disponíveis e de participação social focada na escolha
dos representantes políticos; no modo a controlar os impactos do desenvolvimento
tecnológico, sem questionar de forma mais incisiva os meios de produção científica e
tecnológica e os seus interesses. Portanto, o que temos até o momento:
[...] se encaminha para definir um tipo de educação sustentada pela lógica
cognitivista, individual; universaliza os conhecimentos necessários para „todos‟ com
base no „direito à aprendizagem‟; incide sobre a atuação docente, estabelecendo os
conteúdos que devem ser priorizados e que serão avaliados nas provas nacionais e
ranqueados com destaque; orienta a formação de professores com privilégio da
dimensão prática sobre a teórica. (CÓSSIO, 2014:1570).
Diante de todos estes apontamentos, é possível considerar que as proposições
apresentadas na BNC para o ensino de Biologia atende parcialmente as mudanças necessárias
para a melhoria do ensino da disciplina. Apesar de conferir um enfoque mais integrado do
conhecimento, levando em consideração aspectos culturais e a relação dos conteúdos com o
cotidiano dos estudantes, não age na raiz do problema e tal superficialidade não atende às
reais necessidades da sociedade contemporânea.
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Entendemos que ainda há um longo caminho a ser percorrido para alcançarmos
mudanças mais efetivas, capazes de promover a transformação necessária na educação
científica no país. Contudo, é importante assegurar que as escolas e os professores assumam
um posicionamento crítico e participativo em todo o processo, não se configurando apenas
como implementadores das reformas educacionais lançadas pelo governo.
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