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A BIBLIOTECA ESCOLAR FAZ PARTE DE SUA MEMÓRIA? Graciela Juciane Minatti (FURB) [email protected] Dra. Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig (FURB) [email protected] Resumo: Este trabalho faz parte da pesquisa que está vinculada à linha de Linguagem e Educação, do Programa de Pós-Graduação/Mestrado em Educação da Universidade Regional de BlumenauFURB. O objetivo da pesquisa é analisar as relações entre as memórias das assistentes técnicas pedagógicas (ATPs) sobre a biblioteca escolar e as práticas de letramento desenvolvidas e vivenciadas hoje nesse espaço. Para tanto, pretende-se socializar os resultados parciais da pesquisa realizada com as ATPs de quatro escolas da rede estadual da 35ª Gered, dos municípios de Timbó e Indaial, de Santa Catarina, sobre as memórias e práticas da/na biblioteca escolar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e seus alicerces teóricos estão amparados nos estudos de Kleiman determinando as práticas e eventos de letramento. Na perspectiva enunciativa do Círculo de Bakhtin, no que se refere à diversidade de gêneros do discurso, bem como dos Novos Estudos do Letramento, em especial à escrita de autobiografias através das lembranças habituais do nosso passado, e Rego, que avalia as memórias com recursos e olhos do presente. Os dados foram gerados por meio de dois instrumentos. O primeiro, uma produção de um memorial descritivo escrito pelos sujeitos relatando as suas memórias da biblioteca escolar enquanto alunas na educação básica. O segundo, uma entrevista semiestruturada individual na qual os sujeitos, partindo de uma pergunta inicial, relatam seu trabalho na biblioteca escolar nos dias atuais. Nesse momento, objetiva-se com esta comunicação, socializar um recorte desse estudo focando a memória, no que diz respeito às lembranças sobre a biblioteca escolar. Os resultados preliminares a partir da análise dos memoriais sugerem que as memórias e lembranças da biblioteca escolar estão relacionadas ao espaço físico, acervos, trabalho pedagógico, interesse de procura, entre outros. A partir do memorial, percebemos o significado da biblioteca na vida das pessoas. A pesquisa permite que se possa (re)pensar o lugar e o papel das bibliotecas na esfera escolar. PALAVRAS-CHAVE: Memórias, Biblioteca Escolar, Letramentos 1. INTRODUÇÃO As discussões aqui apresentadas pretendem discorrer sobre as memórias da biblioteca escolar na esfera escolar. Socializamos, neste momento, um recorte deste estudo sobre as bibliotecas, focando na memória, no que diz respeito às lembranças sobre a biblioteca escolar. Os dados analisados fazem parte dos resultados da pesquisa realizada com quatro assistentes técnicas pedagógicas (ATPs), sendo duas das escolas estaduais dos municípios de Timbó e duas das escolas estaduais do município de Indaial, sobre memórias e

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A BIBLIOTECA ESCOLAR FAZ PARTE DE SUA MEMÓRIA?

Graciela Juciane Minatti (FURB)

[email protected]

Dra. Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig (FURB)

[email protected]

Resumo: Este trabalho faz parte da pesquisa que está vinculada à linha de Linguagem e

Educação, do Programa de Pós-Graduação/Mestrado em Educação da Universidade Regional

de Blumenau–FURB. O objetivo da pesquisa é analisar as relações entre as memórias das

assistentes técnicas pedagógicas (ATPs) sobre a biblioteca escolar e as práticas de letramento

desenvolvidas e vivenciadas hoje nesse espaço. Para tanto, pretende-se socializar os

resultados parciais da pesquisa realizada com as ATPs de quatro escolas da rede estadual da

35ª Gered, dos municípios de Timbó e Indaial, de Santa Catarina, sobre as memórias e

práticas da/na biblioteca escolar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e seus alicerces teóricos

estão amparados nos estudos de Kleiman determinando as práticas e eventos de letramento.

Na perspectiva enunciativa do Círculo de Bakhtin, no que se refere à diversidade de gêneros

do discurso, bem como dos Novos Estudos do Letramento, em especial à escrita de

autobiografias através das lembranças habituais do nosso passado, e Rego, que avalia as

memórias com recursos e olhos do presente. Os dados foram gerados por meio de dois

instrumentos. O primeiro, uma produção de um memorial descritivo escrito pelos sujeitos

relatando as suas memórias da biblioteca escolar enquanto alunas na educação básica. O

segundo, uma entrevista semiestruturada individual na qual os sujeitos, partindo de uma

pergunta inicial, relatam seu trabalho na biblioteca escolar nos dias atuais. Nesse momento,

objetiva-se com esta comunicação, socializar um recorte desse estudo focando a memória, no

que diz respeito às lembranças sobre a biblioteca escolar. Os resultados preliminares a partir

da análise dos memoriais sugerem que as memórias e lembranças da biblioteca escolar estão

relacionadas ao espaço físico, acervos, trabalho pedagógico, interesse de procura, entre

outros. A partir do memorial, percebemos o significado da biblioteca na vida das pessoas. A

pesquisa permite que se possa (re)pensar o lugar e o papel das bibliotecas na esfera escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias, Biblioteca Escolar, Letramentos

1. INTRODUÇÃO

As discussões aqui apresentadas pretendem discorrer sobre as memórias da

biblioteca escolar na esfera escolar. Socializamos, neste momento, um recorte deste estudo

sobre as bibliotecas, focando na memória, no que diz respeito às lembranças sobre a

biblioteca escolar. Os dados analisados fazem parte dos resultados da pesquisa realizada com

quatro assistentes técnicas pedagógicas (ATPs), sendo duas das escolas estaduais dos

municípios de Timbó e duas das escolas estaduais do município de Indaial, sobre memórias e

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práticas na biblioteca escolar. Utilizamos como instrumento de pesquisa a produção

individual de um memorial descritivo.

Neste artigo, trazemos excertos de falas de dois desses sujeitos referente às suas

memórias sobre a biblioteca escolar em seu tempo de escola, enquanto alunos. A fim de

proteger a identidade desses profissionais, nos referimos a eles como Livro 1 e Livro 2, ambos

graduados em Pedagogia e atuando como ATP.

Para considerar os dados de nossa pesquisa, apresentamos a seguir uma divisão

temática deste trabalho, em três partes: primeiramente, no que diz respeito a este estudo

referimo-nos resumidamente acerca da história das bibliotecas, sua função e lembranças sobre

a mesma. Na segunda parte, relata-se sobre a história e importância dos memoriais, foco deste

texto. Entendemos que, os memoriais são uma proposta de trabalho que vem crescendo em

diferentes áreas seja como trabalho final em disciplinas, como parte introdutória de

dissertações, teses e trabalhos de conclusão de curso, seja como objeto de investigação em

pesquisas de diferentes áreas do conhecimento. São inúmeros os trabalhos que partem das

biografias, autobiografias, história de vida, diários, entre outras abordagens de investigação,

resgatando as memórias. Em todas elas, a ideia que predomina é de que todas as histórias,

sendo singulares, merecem ser narradas. Assim, não é sem razão que Bakhtin afirma que as

palavras não são neutras, pois “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios

ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN,

1990, p. 41).

Por último, apresentamos nossas considerações preliminares com um fechamento

em torno da biblioteca escolar e suas memórias.

2. LEMBRANÇAS DA BIBLIOTECA ESCOLAR

“No dia em que todas as cidades do

Brasil tiverem a sua biblioteca infantil, o

Brasil estará a salvo de todos os males,

porque todos os males do Brasil tem uma

causa única: a ignorância dos adultos

justamente porque não lhes foi despertado o amor pela leitura, quando

eram crianças". (Monteiro Lobato)

Para falar de biblioteca, teremos também que falar obrigatoriamente de seus leitores.

A partir dessa epígrafe entendemos o sentido de ser necessário o incentivo à leitura desde a

infância. Com o passar do tempo, o amor pela leitura reflete nos atos de nossa vida, e quem

não tem em suas lembranças a passagem por uma biblioteca escolar?

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Ao inferir sobre nossas memórias em relação à biblioteca escolar, virão à tona

experiências positivas, experiências não tão bem sucedidas ou até mesmo nada de lembranças

por não ter acontecido à vivência nesse espaço. Assim, podemos dizer que a biblioteca escolar

tem um papel fundamental dentro da esfera escolar e que acaba refletindo em nossas

memórias. Acreditamos que ela deva ser pensada com base nas estruturas que já estão

funcionando, sem projetos mirabolantes, mas que atenda à comunidade escolar, pois

percebemos o sentido da mesma na vida das pessoas. Na esfera escolar, a biblioteca não deve

ser um conjunto de coleta de materiais reunidos aleatoriamente, ao contrário, o acervo e suas

práticas de leitura e escritas devem ser formadas e desenvolvidas com critérios, levando-se em

conta o projeto político pedagógico e o contexto em que se insere.

A história das bibliotecas, no mundo, acompanha a própria história da escrita e das

formas de registro do conhecimento humano. (FERREIRA, 2000). Há relatos de bibliotecas

na antiguidade que já reuniram milhares de tábuas de argila. A mais famosa biblioteca da

antiguidade foi a de Alexandria no Egito, criada no século III a. C., e que chegou a reunir

cerca de 700 mil volumes manuscritos. A palavra biblioteca possui origem do vocábulo grego

com o significado de lugar onde se guardavam os rolos de papiro ou pergaminho na

antiguidade, sendo atualmente, as estantes o lugar destinado à organização dos livros. É

definida como um espaço físico em que se guardam diversos tipos de materiais

informacionais, sejam eles impressos como os livros, que compõem coleções, enciclopédias,

dicionários, manuais, revistas, jornais, mapas ou multimídia como CDs, DVDs e bancos de

dados.

Atualmente, as escolas públicas contam com o Programa Nacional Biblioteca na

Escola (PNBE), que foi desenvolvido pelo governo federal, orientado pelo Fundo Nacional de

Desenvolvimento da Educação (FNDE) em parceria com a Secretaria de Educação Básica do

Ministério da educação, foi criado em 1997, a partir da Resolução nº 7, de 20 de março de

2009, e Decreto nº 7.084, de 27 de janeiro de 2010. Esse programa tem como ação distribuir

materiais para democratizar o acesso às fontes de informação, o fomento à leitura e à

formação de alunos e professores leitores, além do apoio à atualização ao desenvolvimento

profissional do professor. Esses materiais são distribuídos às escolas obedecendo à seguinte

organização: em anos pares, são contempladas as escolas da educação infantil, de jovens e

adultos, anos iniciais do ensino fundamental e, nos anos ímpares, são atendidas as escolas de

ensino fundamental dos anos finais e ensino médio. A cada ano o acervo é modificado e

adaptado à realidade e às necessidades educacionais do país. Como consequência, sugerem-se

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novas ações que beneficiam não apenas os acervos das bibliotecas, mas também a família, a

comunidade e os professores. O acervo compreende obras clássicas da literatura, poemas,

contos, crônicas, novelas, peças de teatro, textos de tradição popular, romances, memórias,

diários, biografias, relatos de experiências, livros de imagens e histórias em quadrinhos.

Apesar disso, sabe-se que a biblioteca escolar, em sua maioria, necessita de melhores

condições para exercer seu papel uma vez que existem nas escolas espaços denominados

bibliotecas que não passam de depósito de livros. Em nossa pesquisa, encontramos bibliotecas

escolares em que os alunos só têm acesso se algum professor os acompanhar, pois a falta de

um bibliotecário é real.

No entanto, os sujeitos defendem que relacionar o trabalho de uma biblioteca com a

melhoria do ensino, utilizando-a em sua plenitude, é proporcionar o processo ensino-

aprendizagem. Esse espaço deve ser mais valorizado por todos que compõem a esfera escolar

e que sejam planejadas e desenvolvidas ações de incentivo à leitura, fator principal da

existência de uma biblioteca escolar. “O universo da biblioteca tem de ser mágico: ali o

sujeito se encanta com o que vê, ouve e percebe entre as prateleiras algo desafiador,

encantador e acima de tudo, prazeroso”. (MELO, 2006, p.43)

Verificamos no enunciado de Livro 1 na escrita do memorial, o que está em suas

lembranças sobre a biblioteca escolar em seu tempo de idade escolar:

Livro 1: A partir da 5ª Série, passei a frequentar a Escola de Educação Básica Polidoro

Santiago, na qual havia biblioteca, mas apenas se realizavam ali as trocas de livros, não

participávamos de nenhuma outra atividade na biblioteca que não fosse essa. As trocas

eram realizadas todas as semanas, nas aulas de Língua Portuguesa

O sujeito Livro 1, ao lembrar que somente fazia a ação de troca de livros num único

tempo e disciplina na escola, informa que nenhuma outra atividade era realizada na biblioteca.

No entanto, o fato de levar o livro para a troca nos faz perceber que o ato da leitura já ocorria

e que essa ação continua presente nos dias atuais na esfera escolar. Desse modo, suas

lembranças fazem acreditar que o trabalho da biblioteca deva ir além “dessa troca”. A

biblioteca escolar deve ser um local onde interagem indivíduos de vários níveis de idade,

escolaridade, diferentes raças, origens, equipe gestora, professores e comunidade em geral.

Seu ambiente deve ser organizado, ter um bom espaço físico, compor-se de um acervo

atualizado, considerando as necessidades de quem tem acesso, deve dar início aos hábitos e

atitudes de leitura, como também oferecer práticas pedagógicas para frequentá-la. Assim, a

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biblioteca escolar é descrita pelos sujeitos como um ambiente de apoio e desenvolvimento à

comunidade escolar, tendo como missão primordial oferecer a seus membros a possibilidade

de se tornarem pensadores críticos e efetivos usuários da informação em todos os formatos e

meios, por meio da leitura.

Segundo CHARTIER (1998, p. 123), “... a leitura pública supõe que a biblioteca saia

dos seus muros, vá ao encontro dos leitores...”. Desta forma, o hábito de frequentar uma

biblioteca contribui diretamente para a formação de leitores. Por meio do convívio com textos

informativos e literários eles podem desenvolver o prazer pela leitura, descobrir o mundo que

o cerca e identificar suas preferências.

As atividades à promoção das leituras desenvolvidas pela biblioteca escolar

contribuem para que os educandos desenvolvam a curiosidade, busquem novos

conhecimentos e desenvolvam práticas de leitura. Neste sentido, a biblioteca tem como

função social ser um recurso de ensino e de aprendizagem e é considerada como uma

disseminadora do conhecimento nela existente, bem como promotora de leitura através das

práticas pedagógicas. Para tanto, vale ressaltar que:

As bibliotecas, de modo geral, vêm deixando de se constituírem enquanto espaços

estáticos, fechados, silenciosos, onde as pessoas se enclausuram para realizar seus

estudos e leituras, e estão passando a se constituir enquanto espaço dinâmico,

interativo e em permanente construção (MOTA, 2011, p. 2).

Ao perceber as mudanças que estão ocorrendo nas bibliotecas escolares, podemos

afirmar que novas práticas pedagógicas estão surgindo. Efetivar essas práticas pedagógicas na

biblioteca requer a importância de um trabalho em equipe de corpo docente, discente e toda a

comunidade escolar para o significado da biblioteca dentro de uma escola, em especial a

presença de um mediador para desenvolver os interesses das crianças, jovens e adultos. Esse

trabalho, através das práticas não pode restringir-se apenas ao papel didático-pedagógico,

deve extrapolar seus limites, visando a um eixo cultural, isso significa trazer autores para

conversar, discutir livros, formar círculos de leitores, reunir grupos de crianças, jovens e

adultos interessados num personagem, num autor ou num tema.

Essas práticas pedagógicas desenvolvidas são eventos de letramentos vivenciados

hoje na esfera escolar. Validando a afirmação de Soares quando diz: “o letramento abre

caminhos para o indivíduo estabelecer conhecimentos do mundo em que vive” (SOARES,

2004, p. 15), entendemos a importância dos usos da língua escrita por todos os lados, fazendo

parte da paisagem cotidiana: na escola, nas bibliotecas, no ponto de ônibus, nos produtos,

campanha, serviços, no comércio, no serviço público, informando e orientando as pessoas,

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entre outros, compreendendo assim o sentido, levando assim ao letramento. Ele envolve a

criança, o jovem e o adulto. Neste sentido, parece-nos relevante a afirmação:

[...] o termo letramento é empregado para designar a relação que indivíduos e

comunidades estabelecem com a escrita nas interações sociais. Conforme a autora,

essa relação é condicionada pelo uso, amplo ou restrito, que as pessoas fazem da

escrita nas mais diversas situações sociais, pelo conhecimento que elas têm sobre

essas situações, pelas relações de poder que envolvem o uso social da escrita e, entre

outros fatores, pelo valor que a comunidade atribui a essa modalidade da língua.

(TERZI, 2006, p. 3)

Esses eventos de letramento encontrados no dia a dia escolar e no cotidiano

envolvem as práticas de texto, leitura e escrita. Segundo Soares (2010, p.39), o surgimento de

novos termos faz parte da necessidade que a sociedade tem para nomear coisas e objetos para

que realmente eles existam, assim, a palavra “letramento” nasceu para caracterizar aquele que

sabe fazer uso do ler e do escrever, que responde às exigências que a sociedade requer nas

práticas de leitura e de escrita do cotidiano.

Assim, os eventos de letramento são entendidos como “o estudo das práticas

relacionadas com a escrita em toda a atividade da vida social” (KLEIMAN, 2008, p. 489), nos

ajudam a refletir sobre as práticas de uso da língua escrita que ocorrem no ambiente escolar.

Sendo assim, a biblioteca escolar pode ser compreendida como um espaço de circulação e

negociação de significações, uma construção coletiva. “Evidentemente, cada enunciado

particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos

relativamente estáveis de enunciados, dos quais denominamos gêneros do discurso”

(BAKHTIN, 2003, p. 262). Sendo assim, entende-se a importância da exploração e resgate

dos eventos de letramentos nas atividades cotidianas, inclusive no local de trabalho dos

sujeitos participantes desta pesquisa.

Sabemos que crianças cujas famílias são letradas e que participam de atos de leitura e

escrita desde muito cedo, vendo familiares escrevendo e lendo, ouvindo histórias, chegam à

escola conhecendo muitos dos usos e funções sociais da língua escrita. Participam do que

Heath (1982, p. 50) denomina eventos de letramento: "eventos em que a linguagem escrita é

essencial à natureza das interações e aos processos e estratégias interpretativas de seus

participantes". Em contrapartida, as crianças oriundas de famílias pouco alfabetizadas, ou não

alfabetizadas, isto é, com pouca oportunidade de participação em eventos de letramento, ao

chegarem à escola, em sua grande maioria, entendem que texto escrito é aquele que a escola

lhes apresenta, geralmente, textos prontos. Temos conhecimento que os eventos de letramento

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fazem parte no dia a dia escolar, e aqui representado pelos sujeitos da pesquisa passam

consequentemente a fazer parte de suas lembranças sobre a biblioteca escolar.

3. MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA ESCOLAR

Diante dessas informações, com o objetivo de relacionar a importância da produção

de um memorial sobre as lembranças da biblioteca escolar, nesse momento iniciamos com a

definição do termo memorial e seu papel, em seguida apresentamos um excerto do sujeito

Livro 2 narrando como a biblioteca escolar faz parte de sua memória.

O termo memorial (séc. XIV), do latim tardio memoriale, designa “aquilo que faz

lembrar”. Ele é utilizado em várias áreas do conhecimento. Em Arquitetura, refere-se a um

monumento (Memorial da América Latina), em Contabilidade, designa um livro de anotações,

em Direito: um relatório, em Literatura ou em História: um “relato concernente a fatos ou

indivíduos memoráveis”. (PASSEGGI, 2010, p.19).

Em Portugal e no Brasil, essa abordagem é introduzida, notadamente, no contexto da

formação docente, pelos trabalhos de Antônio Nóvoa (1995a, 1995b, 1992), que se formou na

Escola de Genebra. A história recente do memorial autobiográfico no Brasil compreende,

paralelamente, três períodos: o de sua institucionalização (anos 1930/1980), momento em que

o memorial se torna uma das exigências em concursos públicos para ingresso e/ou progressão

na carreira docente, notadamente, nas universidades federais. Um período de diversificação

(anos 1990), quando o memorial passa a ser concebido como uma prática reflexiva na

formação docente e se expande como instrumentos de avaliação em diversas situações no

ensino superior. Um período de fundação (anos 2000), quando se busca formalizar normas e

procedimentos sobre esse gênero acadêmico e se desenvolvem pesquisas sobre ele.

Assim, os memoriais possuem um potencial renovador para pensarmos as

inquietações e as diferentes perspectivas que cercam os processos formativos e a cultura

escrita no dia a dia. Memoriais colocam em circulação saberes, experiências e reflexões que

diferentes sujeitos têm construído ao longo de suas trajetórias, ou seja, suas lembranças.

A definição do memorial como escrita onde se guarda o que é memorável ganha aqui

toda a sua força, pois sugere que o autor se apresente como um candidato digno do projeto

institucional: “o objetivo do memorial é justificar que meu presente é meritório da mais alta

hierarquia universitária”. (KLEIMAN, 1999, p. 2).

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A memória é um conceito que constitui um estudo em diversas áreas do

conhecimento, é um tempo de lembrar que exige esforço e dedicação. Para Bosi (1994, p. 55),

é interessante observar que:

[...] na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir e

reelaborar as experiências do passado e que nesse trabalho de recuperar a memória

de uma vida, fica o que significa. Todavia, o conteúdo das memórias sempre será

avaliado com os recursos e olhos (imagens e ideias) do presente.

Portanto, entendemos que a utilização das escritas sobre si, em outras palavras, das

narrativas (auto) biográficas, não é recente; pelo contrário, é uma tradição bastante antiga, que

se originou com os primeiros gregos, especialmente com a Poética de Aristóteles. Sabe-se que

o indivíduo, ao elaborar uma narrativa, decide o que fazer do passado no próprio momento do

relato.

Diante disso, apresentamos, nesse momento, um excerto do memorial descritivo do

sujeito Livro 2, que expõe suas lembranças sobre a biblioteca escolar enquanto aluna, na

educação básica, relacionando-as com os dias atuais:

Livro 2: A biblioteca resistiu ao tempo. Continua no mesmo lugar (na mesma sala) em que

ficou a vida toda. Hoje está mais moderna, como novos móveis, sem algumas enciclopédias,

mas continua sendo usada por muitas crianças, que insistem em meio a toda modernidade

existente, acreditar que os livros ainda podem ser bons amigos.

O fato de Livro 2 mencionar que a biblioteca resistiu ao tempo, afirma o quão ela

está viva em sua memória, pois, para ele, a biblioteca não se perdeu e continua significativa.

Entende-se que ao escrever seu memorial, o sujeito reflete sobre a história de sua formação

quando faz a relação da evolução no ambiente e da importância dos livros serem bons amigos.

Entendemos aqui o livro como um amigo pois, além de nos transportar a outros

mundos, um livro faz a gente aprender com os tropeços alheios sem precisar vivê-los. Como

exemplo, depois de ler a história da Chapeuzinho Vermelho, a gente pensa bem antes de

seguir pelo caminho não recomendado; não aceita “maçãs” de estranhos a exemplo da Branca

de Neve e aprende que mentiras podem nos trazer problemas bem grandes, quem sabe até

piores do que ser engolido por uma baleia, como Pinóquio.

O Livro é também um amigo e grande companheiro para todas as horas e em todos

os cantos: na escola, na praia, na cama, no avião, no banheiro, na sombra de uma árvore,

sozinho ou acompanhado. Nos momentos em que o coração parece explodir e o peito se enche

de angústia, onde ele acalma a mente. Até travesseiro ele pode ser, afinal, quem nunca

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adormeceu em cima de um livro... Entendemos que o sujeito tenha em sua memória todos

esses e demais aspectos para mencionar “ele” como um amigo.

Resgatar essa escrita do memorial também democratiza a autoria. Quem escreve seus

memoriais se torna autor do discurso e testemunho de sua vida. É possível admitir que a

escrita de si tenha êxito, quando o narrador, ao responder às exigências, descobre o potencial

formativo do memorial e se deixa envolver pelo encantamento estético e ético de fazer da vida

intelectual e profissional como arte formadora da sua vivência e existência.

Bakhtin define memória como ativa a partir da vivência, isto é, sempre reanimando a

vivência. A memória se exerce no nível daquilo que o sujeito já havia pensado sobre si

próprio, renovando a cada momento as próprias vivências, juntando-as todas. Segundo o

autor, “junto todo meu eu no futuro perpetuamente porvir e não no passado” (BAKHTIN,

1997, p.140).

Ao resgatar de sua memória, o espaço da biblioteca, passa a estar carregado das

experiências da humanidade, ao se atualizar no movimento da leitura e da escrita, e torna-se,

assim como a própria linguagem, um lugar vivo e inquietante, ou seja, criando pelo presente o

seu próprio futuro.

Quando o sujeito afirma que biblioteca resistiu ao tempo, podemos pensar que a

leitura e a escrita na biblioteca implica, em contrapartida, ultrapassar a ideia de que consiste

essa instância num edifício, numa sala de leitura, numa mera coleção de livros enfileirados

numa estante ou digitalizados nos provedores informáticos. Uma biblioteca, em qualquer

esfera da atividade humana, emerge com base nos pressupostos bakhtiniamos, como um

espaço discursivo por excelência, o qual só adquire sentido pelo trabalho linguístico de seus

leitores-escritores.

4. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Neste artigo, nosso objetivo foi refletir sobre o papel da biblioteca escolar nas

memórias dos sujeitos. A intervenção da biblioteca, na esfera escolar é decisiva na promoção

de práticas de leitura e consequentemente de suas lembranças. Considera-se então que essas

práticas de leitura sejam um processo fundamental para tornar-se um leitor. Portanto a

importância do acesso a uma biblioteca na esfera escolar é essencial. Não apenas para

visualizar como um conjunto de coleta de materiais reunidos aleatoriamente, ao contrário,

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participar na construção de um acervo formado e desenvolvido com critérios, levando-se em

conta o projeto político pedagógico da escola e o contexto em que se insere.

No entanto, há de se rever as práticas pedagógicas mais amplas quanto à utilização

da biblioteca escolar, desenvolvendo, assim, os eventos de letramento. A biblioteca, além de

ser um espaço de fomento de leitura, também precisa ser utilizada como estimulador das artes,

da cultura e da relação com o mundo real e o mundo fictício. Afinal, muitas coisas saem de

suas estantes: realidades, sonhos, histórias e um sem fim de possibilidades. Nesse sentido, os

sujeitos que fazem parte da esfera escolar devem se apropriar das possibilidades que esse

espaço lhe oferece, tornando seu fazer pedagógico mais eficaz. Acreditamos que para a

biblioteca escolar ser um instrumento de mudanças na vida de cada aluno, não sejam

necessários grandes aparatos tecnológicos, salas de informática ou coisas do gênero e sim um

conjunto de obras de literatura a partir das quais o gosto pela leitura e as práticas pedagógicas

passem a acontecer de forma presente e, consequentemente, memoriável.

Partindo do pressuposto de que um memorial possui uma função pedagógica, qual

seja a de ser um exercício de elaboração e reelaboração crítica de experiências pessoais em

conexão com as experiências profissionais, destacamos a importância da interpretação e

reflexão desses dados dentro da biblioteca escolar.

Compreender, através dos sujeitos desta pesquisa, o papel que a biblioteca já exerceu

em suas memórias, descrever os eventos de letramentos, os usos e organização das bibliotecas

escolares hoje e refletir sobre as práticas pedagógicas que devem existir é o que se pretende

com essa pesquisa, pois a biblioteca escolar é um espaço que acompanha o desenvolvimento

da sociedade.

5. REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das

Letras, 1994.

BRASIL, PROGRAMA NACIONAL BRIBLIOTECA DA ESCOLA (PNBE): leitura e

biblioteca nas escolas públicas brasileiras. Brasília: Ministério da Educação, 2008.

CHARTIER, Roger, A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo de

Moraes. São Paulo: Ed UNESP (Prismas), 1999

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CORDEIRO, Verbena Maria Rocha; SOUZA, Elizeu Clementino de; Memoriais, literatura

e práticas culturais de leitura. Salvador: EDUFBA, 2010

HEATH, Shirley Brice. What no bedtime story means: narrative skills at home and school.

Language in society, v. 1, n. 2, p. 46-79, 1982. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782006000300006. Acesso

em 10 jul. 2014.

KLEIMAN, Angela B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática

social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995

MELO, Ângela Magna C. S.. Literatura com açúcar e com afeto. AMAE Educando, Belo

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MOTA, Francisca Rosaline Leite. Bibliotecários e professores no contexto escolar: uma

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<http://gebe.eci.ufmg.br/downloads/321.pdf>. Acesso em: 13 out. 2012.

REGO, Teresa Cristina. Memórias de escola: cultura escolar e constituição de

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SOARES, Magda. Letramento e escolarização. In: Letramento no Brasil, reflexões a partir

do INAF 2001 (org.) Vera Massagão Ribeiro – 2ª Ed. – São Paulo, Global , 2004