A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos Modelos ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFES - PPGDIR MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos Modelos de MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência Brasileira Contemporânea VITÓRIA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFES - PPGD IR MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL

LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS

A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos

Modelos de MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência

Brasileira Contemporânea

VITÓRIA 2008

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UFES - PPGD IR MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL

LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS

A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos

Modelos de MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência

Brasileira Contemporânea

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito, na área de concentração Direito Processual. Orientador: Prof. Dr. Francisco Vieira Lima Neto

VITÓRIA

2008

LEIDE MARIA GONÇALVES SANTOS

A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos M odelos de

MIGUEL REALE aplicada à Jurisprudência Brasileira Contemporânea

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito em Direito Processual.

COMISSÃO EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Francisco Vieira Lima Neto Orientador ______________________________________ Prof. Dr. Hermes Zaneti Júnior Membro ______________________________________ Profª. Drª. Brunela Vieira de Vincenzi Membro

A Gil e Fred, por me encantarem todos os dias. A Helinho, in memorian.

AGRADECIMENTOS

A conclusão deste trabalho permitiu-me apreender preciosas novas lições, reforçar lições já

conhecidas e melhor cultivar algumas virtudes: a paciência, a persistência, a coragem para

vencer o medo do desconhecido e do novo, enfim... proporcionou-me um crescimento

inenarrável. Lições que me abriram os olhos e o interesse por tantos e diversos assuntos e

pelas relações e comportamentos da complexa vida em sociedade, que por si sós já me

autorizam a dizer que valeu a pena! Entretanto, talvez a maior de todas as lições tenha sido a

que a pesquisa científica não é um trabalho que possa ser construído individualmente,

sozinho. Não! A pesquisa exige uma conjugação de esforços, de opiniões, de teses e antíteses.

É um trabalho plural. Tal constatação, até mesmo por uma questão de fidelidade e lealdade,

impõe-me fazer alguns registros e agradecimentos àqueles que prestaram, de uma forma ou de

outra, uma importantíssima contribuição para o desenvolvimento dessa investigação.

Assim, precipuamente, agradeço a Deus, refúgio contra todas as tempestades, pelo dom da

vida.

À minha mãe, meu padrão de conduta, pelas lições de vida, pela coragem em todas as

adversidades e pelo amparo ao longo dessa jornada e à minha família, por sempre acreditarem

no meu trabalho.

À UFES, que me acolheu em toda minha vida acadêmica, desde os tempos da Engenharia.

Grande parte do que sou devo a essa Instituição. E, também, ao nosso Programa de Mestrado,

do qual, não tenho dúvidas, alcançará um nível de excelência a ser nacionalmente

reconhecido.

Ao Professor Dr. Francisco Vieira Lima Neto, de quem tenho o maior orgulho, pela

orientação segura e apoio incondicional ao longo de toda essa trajetória. A prontidão em

atender-me, as preciosas sugestões de bibliografia, de jurisprudência, as observações na

leitura dos textos, as interrogações formuladas, enfim ... Não foi fácil acompanhar o seu

ritmo! Quantos e-mails, quantos telefonemas... as lições apreendidas não se resumem às

páginas desse trabalho, nas quais há a sua marca em cada uma delas e em cada capítulo.

Minha gratidão por tudo, principalmente pelo equilíbrio nos momentos mais difíceis.

Ao Professor Dr. Hermes Zaneti Júnior, que semeou a idéia dessa pesquisa, a quem tributo a

minha gratidão pelas instigantes discussões em sala de aula, as quais foram determinantes

para levar a termo esse trabalho. Que desafio! A sua maestria, combatividade e dedicação são

fontes de inspiração a prosseguir nessa caminhada.

À Professora Drª Brunela Vieira de Vincenzi, pelos ensinamentos que colhi em sua obra “A

Boa-Fé no Processo Civil” e pela participação em minha banca de qualificação com

observações e questionamentos que me permitiram aprofundar a reflexão sobre o tema.

A todos os Professores do Mestrado, pela nobreza em compartilhar as experiências angariadas

nos escritórios, nos tribunais e nas incontáveis palestras proferidas de norte a sul do nosso

país.

Não poderia deixar de agradecer a alguns Professores, que, mesmo sem me conhecerem,

prestaram-me contribuições preciosas: Ao Professor Dr. Darci Guimarães Ribeiro, que além

do artigo de sua autoria, “O Sobreprincípio da Boa-Fé Processual como Decorrência do

Comportamento da Parte em Juízo”, indicou-me a obra fundamental do Professor Joan Picó I

Junoy, “El Principio de la Buena Fe Procesal” a qual, além do seu denso conteúdo, remete a

uma bibliografia riquíssima. Ao Professor Dr. Joan Picó I Junoy, que d’além mar, respondeu,

prontamente, aos meus e-mails, tanto dos Estados Unidos quanto da Espanha, aclarando

alguns pontos da aplicação da boa-fé objetiva no ordenamento espanhol. Agradeço, também, à

Professora Drª. Maria Celina Bodin por colocar-me em contato com a Professora Drª. Teresa

Negreiros, que num gesto de extrema grandeza, encaminhou-me o original de sua dissertação

de mestrado “Fundamentos Para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé”,

obra com publicação esgotada. O auxílio das bibliotecárias do STF e do STJ foi

imprescindível. Prontamente foram atendidas as solicitações feitas por e-mail, com posterior

postagem das cópias xerográficas de partes de livros e de periódicos, material indispensável

para desenvolvimento do trabalho.

À Thaís e Christina, tê-las como amigas só pode ser um presente dos céus. Obrigada por

caminharem comigo esse caminho.

Aos colegas de classe agradeço a frutífera convivência.

RESUMO

O presente trabalho apresenta a boa-fé objetiva como paradigma a reger as relações

intersubjetivas no campo do Direito Processual Civil demonstrando a superação da aplicação

rigorosa das técnicas processuais pela influência de valores sociais, políticos e culturais. O

novo matiz impresso pela boa-fé objetiva no campo do Direito Processual Civil estabelece um

modelo objetivo de conduta social marcado pela lealdade e probidade, que impera como

standard jurídico para todos os que participam da relação jurídica processual. As garantias

constitucionais processuais, expressão do Estado Democrático de Direito, são otimizadas por

meio das balizas estabelecidas pela boa-fé objetiva como norma que rege a dialeticidade do

contraditório marcado pela cooperação leal e proba. A boa-fé objetiva, como cláusula geral

positivada no art. 14, inciso II do Código de Processo Civil, irradia o seu conteúdo em todos

os espectros do Processo Civil, por meio de modelos jurídicos construídos pela jurisprudência

com o uso da tópica, trazendo um novo foco de luz para o alcance da efetividade da prestação

da tutela jurisdicional.

Palavras-chave: Boa-fé objetiva. Modelos jurídicos. Tópica. Cláusulas gerais. Cooperação.

Lealdade.

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PRESENTAZIONE

Lo scopo principale di questo lavoro è quello di presentare la buona fede oggettiva come

paradigma reggente dei rapporti intersoggettivi nel campo del Diritto Processuale Civile

dimostrando il superamento dell’ applicazione rigorosa delle tecniche processuali dall’influso

dei valori sociali, politici e culturali. La nuova sfumatura impressa dalla buona fede oggettiva

nel campo del Diritto Processuale Civile stabilisce un modello oggettivo di condotta sociale

segnato dalla lealtà e dalla probità che impera come standard giuridico per tutti coloro che

partecipano del rapporto giuridico processuale. Le garanzie costituzionali processuali,

espressione dello Stato Democratico di Diritto, sono ottimizzate attraverso le regole stabilite

dalla buona fede oggettiva come norme che regolano la dialetticità del contraddittorio

segnato dalla cooperazione leale e proba. La buona fede oggettiva, come causola generale

effettivata nell’art. 14, inciso II del Codice di procedura civile, irradisce il suo costrutto in

tutti gli espettri del Processo civile attraverso i modelli giuridici costruiti dalla giurisprudenza

con l’uso della Topica, portando un nuovo raggio di luce per il raggiungimento

dell’effettività della prestazione della tutela giurisdizionale.

Parole-chiave: Buona fede oggettiva. Modelli giuridici. Topica. Clausole generali.

Cooperazione. Lealtà.

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A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL: A Teoria dos M odelos de MIGUEL

REALE aplicada à Jurisprudência Brasileira Contemporânea

SUMÁRIO

Introdução.......................................................................................................................... 11

PARTE I – BOA-FÉ OBJETIVA COMO PRINCÍPIO ÉTICO, TEO RIA DOS MODELOS, TÓPICA E SISTEMAS JURÍDICOS ABERTOS. ..................................... 15

Capítulo I - A Boa-Fé Objetiva no Direito Processual Civil: O Modelo Jurisprudencial Construído pelo Supremo Tribunal Federal. ................................................................ 15

1.1. A Boa-Fé Objetiva: Matizes de Sua Conceituação................................................. 15 1.2. A Boa-Fé Objetiva: Concepções Doutrinárias........................................................ 21 1.3. A Boa-Fé Objetiva como Norma Otimizadora das Garantias Processuais Constitucionais............................................................................................................. 28

Capítulo II - A Teoria dos Modelos de Miguel Reale e sua Aplicação para Identificar um Modelo Jurisprudencial de Boa-Fé Objetiva no Processo Civil. ............................ 42

2.1. Notas Introdutórias. ............................................................................................... 42 2.2. A Construção dos Modelos Jurídicos ..................................................................... 46 2.3. Classificação dos Modelos Jurídicos...................................................................... 53 2.4. Dinâmica dos Modelos Jurídicos ........................................................................... 55 2.5. A Opção por Modelos Abertos .............................................................................. 58

Capítulo III - A Relevância da Tópica na Práxis Jurídica e a Tendência Contemporânea pelos Sistemas Jurídicos Abertos: a complementariedade necessária........................................................................................................................................ 62

3.1. A Tópica como Técnica de Identificação dos Problemas do Direito ....................... 62 3.2. Apontamentos Doutrinários à “Teoria Tópica de Viehweg” ................................... 70 3.3. Concepções Doutrinárias sobre os Topoi ............................................................... 74 3.4. Importância da Tópica na Construção Jurisprudencial............................................ 76 3.5. O Declínio da Codificação e a Construção do Pensamento Sistemático.................. 83 3.6. Concepções Doutrinárias sobre a Idéia de Sistema.................................................88 3.7. A Mobilidade como Traço Característico dos Sistemas Abertos............................. 92 3.8. Pensamento Sistemático e Tópica .......................................................................... 94

Capítulo IV – As Cláusulas Gerais: Fatores de Interação Sistemática e de Concreção Jurídica......................................................................................................................... 104

4.1. Cláusulas Gerais: Intercambialidade nos Sistemas Jurídicos Abertos e Criação do Direito pelos Tribunais ............................................................................................... 104 4.2. A Boa-Fé Objetiva: Fundamento Axiológico na Construção do Direito ............... 116 4.3. A Boa-Fé Objetiva como Elemento Estruturante na Construção de Modelos Jurídicos Jurisprudenciais........................................................................................... 120

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PARTE II – A BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL, ESTUDO DO MODELO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRO DE BOA-FÉ OBJE TIVA, MODELOS CONCRETOS AFERÍVEIS DA JURISPRUDÊNCIA EM PR OCESSO CIVIL ............................................................................................................................... 127

Capítulo V – A Boa-Fé Objetiva Processual na Constituição Federal ....................... 127 5.1. A Boa-Fé Objetiva como Instrumento de Ruptura da Dicotomia entre os Ramos do Direito Público e do Direito Privado........................................................................... 127 5.2. O Fundamento Constitucional da Boa-Fé Objetiva Processual ............................. 143

Capítulo VI - A Boa-Fé Objetiva no Processo Civil Brasileiro................................... 165 6.1. A Boa-Fé Objetiva como Diretiva Ordenadora do Comportamento Processual .... 165 6.2. A Boa-Fé Objetiva e o Abuso do Direito nos Domínios do Processo Civil ........... 176 6.3. A aplicação boa-fé objetiva pelo Juiz: Virtudes e Cautelas................................... 185 6.4. Referências sobre a boa-fé objetiva processual na experiência legislativa de outros povos ......................................................................................................................... 191

Capítulo VII - A Boa-Fé Objetiva na Jurisprudência Brasileira: Tentativa de Visualização de um Modelo ......................................................................................... 198

7.1. O Trabalho da Jurisprudência na “Concreção Jurídica” da Boa-Fé Objetiva......... 198 7.2. As Manifestações da Boa-Fé Objetiva nas Figuras: Supressio, Surrectio, Tu Quoque e Venire Contra Factum Proprium. ............................................................................ 207

7.2.1. Supressio e Surrectio.................................................................................... 207 7.2.2. A Proibição de Consubstanciar Dolosamente Posições Processuais – Tu Quoque............................................................................................................................... 211 7.2.3. O Venire Contra Factum Proprium............................................................... 214

7.3. A Preclusão Lógica e a Boa-Fé Objetiva.............................................................. 220

Capítulo VIII - Modelos Concretos da Boa-fé Objetiva Aferíveis da Jurisprudência no âmbito Processual Civil................................................................................................ 228

8.1. Introdução ........................................................................................................... 228 8.2 A Boa-Fé Objetiva como Norma que Veda a Atuação Dolosa de Posições Processuais................................................................................................................. 230 8.3 A Boa-Fé Objetiva Como Norma Otimizadora das Garantias Constitucionais Processuais................................................................................................................. 235 8.4 A Boa-fé Objetiva como Norma que Veda o Venire Contra Factum Proprium no Campo Processual Civil ............................................................................................. 245 8.5 A Boa-Fé Objetiva como Norma a Assegurar a Prestação da Tutela Jurisdicional em Tempo Razoável ........................................................................................................ 257 8.6 A Boa-fé Objetiva como Norma Orientadora da Atuação do Poder Judiciário Frente aos Jurisdicionados..................................................................................................... 266

Conclusão ..................................................................................................................... 273

Referências ................................................................................................................... 277

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Introdução

O processo ao longo do tempo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico de

aplicação de normas e alcançou um status que o coloca como autêntica ferramenta de

natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social.1 O rigor em

favor da técnica cede passo aos valores sociais, políticos e culturais, em razão dos quais todos

aqueles que, de forma direta ou indireta, participam da causa precisam conduzir-se de forma

proba, reta e leal. Há uma exigência de um modelo objetivo de conduta social que venha

imperar como um standard jurídico no seio processual.

Dentro deste contexto, o processo passa a desenvolver-se guiado não apenas pelas técnicas

processuais, mas nele sobrelevam os influxos dos valores sociais e, em especial, do dever de

lealdade e boa-fé como “bitolas” a ajustar a conduta de todos aqueles que dele participam.

O momento atual desnuda mudanças estruturais, procedimentais e técnicas, em que

paradigmas e dogmas são descontruídos com o surgimento, a toda evidência, de novos

modelos compromissados com o homem e os valores que lhe são inerentes.

No que tange à prestação da tutela jurisdicional, a atuação das partes é norteada por princípios

éticos que estabelecem balizas para o pronto agir no curso da relação jurídica entabulada, na

qual a dialeticidade é a marca de um contraditório que vem a revelar a cooperação das partes

na construção de uma prestação da tutela jurisdicional que espelhe a justiça do caso concreto.

O alvo da presente pesquisa é a boa-fé objetiva, entendida como uma regra padrão de

comportamento probo, leal e correto, ou seja, uma norma ética de conduta, a ser observada

por todos de forma objetiva (independente do estado psicológico do agente), cujo campo de

investigação é o Direito Processual Civil.

Como cláusula geral, cujo locus de positivação está no art. 14, inciso II, do Código de

Processo Civil, trata-se de disposição normativa que tem permitido um novo traçado ou um

novo desenho no âmbito processual civil. Embora possa parecer exagero, a boa-fé objetiva

1 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais In Processo e constituição. Rio de Janeiro: Forense. 2004, p. 2.

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tem contribuído para superação de dogmas processuais e para o estabelecimento de uma nova

ordem a reger o desenvolvimento do processo.

A boa-fé objetiva nos domínios do Direito Processual Civil estabelece as balizas do agir

permitindo a harmonização do desenvolvimento das garantias constitucionais processuais.

Trata-se de “reler os princípios e as garantias constitucionais”2 sob a ótica da boa-fé objetiva.

O presente trabalho se propõe a analisar a jurisprudência dos Tribunais pátrios para perquirir a

aplicação da regra prescrita no inciso II do art. 14 do CPC que impõe esse agir leal e

cooperador nos meandros processuais e, ao final, afirmar ou infirmar a existência de modelos

jurisprudenciais calcados nesses princípios éticos.

O objeto do presente estudo, portanto, restringe-se, especificamente, ao Direito Processual

Civil, circunscrito à análise jurisprudencial com vistas à identificação de modelos jurídicos da

boa-fé objetiva nesse campo. Para tanto, será analisada a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal - STF, do Superior Tribunal de Justiça – STJ, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo

e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 3

A opção pela análise da jurisprudência das Cortes Superiores revela-se fundada no fato de se

irradiar para os Tribunais pátrios os entendimentos lá construídos. Já a opção pela análise da

jurisprudência do Rio Grande do Sul prende-se ao fato de naquele Estado ver-se a grande

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 23. 3 Com este objetivo, nos julgados disponíveis nos sítios desses tribunais na internet (www.stf.gov.br, www.stj.gov.br, www.tj.es.gov.br e www.tj.rs.gov.br) verificar-se-á a ocorrência da menção às expressões “boa-fé” ou “boa-fé objetiva”, “boa-fé processual”, “lealdade processual” ou “lealdade e boa-fé” nas ementas de acórdãos proferidos nas diversas áreas do direito. Numa análise preliminar, na pesquisa efetuada nos sítios desses Tribunais na internet foram obtidos os seguintes resultados: no sítio do STF: para a expressão “boa-fé” foram encontrados 118 acórdãos; a expressão “boa-fé objetiva” não produziu nenhum resultado; quando consultado “boa-fé processual” encontrou-se 01 acórdão que faz menção ao termo; já o verbete “lealdade processual” gerou 49 resultados; quando consultada a expressão” lealdade e boa-fé” foi encontrado apenas 01 acórdão proferido em 1975. A consulta no endereço eletrônico do STJ produziu um maior quantitativo de resultados para as expressões consultadas, a saber: a expressão “boa-fé” gerou 963 resultados; a busca com a expressão “boa-fé objetiva” trouxe 35 acórdãos como resposta; utilizando as palavras chave “boa-fé processual” foram obtidos 6 resultados; com o verbete “lealdade processual” foram encontrados 34 resultados e para a expressão “lealdade e boa-fé” foram gerados 15 resultados. Quadra destacar que, embora não tenha sido feita a tabulação dos resultados, pode ser verificado que a grande maioria dos resultados obtidos para expressões que não continham o adjetivo “processual” versava sobre direito material, em especial, matéria relativa à posse e também à área de contratos e sobre direito do consumidor. Foi realizada uma pesquisa nos sítios dos Tribunais de Justiça do Espírito Santo e do Rio Grande do Sul cujos resultados apontam a existência de acórdão que fazem menção aos verbetes assinalados. Entretanto, embora não tenha sido feita qualquer tabulação desses resultados, são indicativos que demandam análise para verificar se atendem ao objetivo da pesquisa.

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influência do iminente jurista Clóvis do Couto e Silva4, bem como do hoje Ministro

aposentado do STJ, Ruy Rosado de Aguiar, que também atuou em julgamentos notáveis da

aplicação da boa-fé objetiva no campo do direito obrigacional5. Por outro lado, a opção pela

análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Espírito Santo é mais do que justificada

pela contribuição que, por certo, essa pesquisa trará para a comunidade jurídica do Estado,

proporcionando uma discussão sobre a ética na reformulação da justiça contemporânea do

Brasil.

Sob essa perspectiva, o fruto dessa pesquisa a ser realizada no âmbito do Programa de Pós-

Graduação em Direito Processual da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGDIR-

UFES) é apresentar as conclusões sobre as investigações científicas acerca da existência ou

não de um modelo de boa-fé processual desenhado a partir das decisões prolatadas no âmbito

dos tribunais.

Sobreleva o estudo dos precedentes jurisprudenciais quer como fonte do direito, quer para

analisar a coerência com o ordenamento. A importância do estudo aprofundado das decisões

judiciais ou administrativas revela-se de extrema importância para aferir a sintonia existente

entre os textos legislativos e as demandas que afloram do meio social.

Em um segundo momento, procura-se, a partir de um referencial teórico desenvolvido ao

longo do trabalho, verificar se nos citados acórdãos poderia ser detectado algum padrão, ou

seja, se neles há uma coerência de entendimento sobre o conceito de boa-fé e suas

diversificadas manifestações e funções, fenômeno que permitirá visualizar a existência de

modelo(s) de boa-fé objetiva no campo do Direito Processual Civil brasileiro.

Em termos mais simples, investiga-se a existência, nas decisões desses Tribunais, de uma

linha comum que possa ser identificada e que permitiria concluir que aquelas Cortes

concebem a boa-fé objetiva processual de uma maneira específica, como, por exemplo, uma

regra jurídica que impede o uso abusivo e doloso de posições processuais ou proíbe o

4 Conforme destacado por Judith Martins-Costa, no que tange à aplicação da boa-fé como modelo no campo obrigacional, “as decisões que iniciaram a trajetória de seu acolhimento como modelo jurisprudencial fazem expressas referências à obra de Clóvis do Couto e Silva [...]”.MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé como Modelo (uma aplicação da Teoria dos Modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 354. 5 TJRGS, AC 591028295, 5ª Câm. Cível, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., Data do julgamento: 06.06.1991.

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comportamento contraditório (vale dizer, uma aplicação no Direito Processual civil das

figuras venire contra factum proprium ou tu quoque).

No que tange ao campo teórico, como primeiro passo desta trilha, imprescindível se torna

explicitar a doutrina de Miguel Reale, para quem o Direito é composto de uma série de

modelos.

Ao analisar a teoria das fontes formais do Direito, Reale aduz que os modelos jurídicos

apresentam-se como uma nova perspectiva para essa teoria, uma vez que a sociedade

contemporânea, dinâmica e plural tal qual se apresenta, reclama por estruturas-modelos que

venham a abarcar as diversas e complexas questões que daí emerge, bem como que atendam à

dinamicidade própria da efervescência sócio-cultural desses novos tempos.

Neste sentido, a Teoria dos Modelos surge como uma via posta para atender aos anseios do

momento histórico-cultural das sociedades modernas, nas quais já não se mostra suficiente a

existência de um feixe normativo que esboce um sistema fechado no qual impera o

formalismo cego e estático. Juristas e legisladores têm somado esforços para a implementação

de mudanças estruturais no Código de Processo Civil com o objetivo precípuo de fazer

comungar os dois grandes valores alçados a direitos fundamentais: segurança e efetividade na

prestação da tutela jurisdicional.

Sob esse enfoque, a boa-fé objetiva ocupa lugar de relevo na formatação dos modelos

jurídicos. Ocorre que, sem um conteúdo definido pelo legislador, essa modelação vai sendo

delineada na prática forense cotidiana.

Pode-se, já nesse ponto, inferir que a boa-fé objetiva, no âmbito processual civil na

contemporaneidade, apresenta-se como uma diretiva para que os escopos processuais venham

a ser efetivamente alcançados.

Esse, portanto, o delineamento do trabalho ora proposto.

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PARTE I – BOA-FÉ OBJETIVA COMO PRINCÍPIO ÉTICO, TEO RIA DOS

MODELOS, TÓPICA E SISTEMAS JURÍDICOS ABERTOS.

Capítulo I - A Boa-Fé Objetiva no Direito Processual Civil: O Modelo Jurisprudencial

Construído pelo Supremo Tribunal Federal.

Sumário: 1.1. A Boa-Fé Objetiva: Matizes de Sua Conceituação - 1.2. A Boa-Fé Objetiva:

Concepções Doutrinárias - 1.3. A Boa-Fé Objetiva como Norma Otimizadora das Garantias

Processuais Constitucionais.

1.1. A Boa-Fé Objetiva: Matizes de Sua Conceituação

“Boa-fé significa retidão, honradez e confiança, a confiança com que uma das partes espera

uma conduta leal da outra.”1

Não é hodierna a dificuldade de se apreender uma precisa concepção do que vem a ser a boa-

fé objetiva, entretanto tal constatação reflete a amplitude do seu conteúdo e a vagueza que é

ínsita a tal instituto.

Dos domínios do Direito Civil, ao estipular um padrão de lealdade e probidade nas relações

privadas, ao âmbito do Direito Processual, ao veicular o imperativo da tutela da confiança e

do atuar probo e honesto, a boa-fé objetiva assume diversas faces, que delineiam modelos

jurídicos de comportamento e de atuação os quais têm a aptidão de fazer novas, vetustas

disposições legislativas, num trabalho engenhoso de adequação das emergentes situações

jurídicas com o ordenamento vigente.

A Constituição Federal de 1988 erigiu no seu art. 3º, inciso III, como um dos objetivos da

República a construção de uma sociedade solidária. Para o alcance do objeto posto nessa

1 DELGADO GONZÁLEZ, “Bona fides”, en el Diccionario de D. Privado de Casso-Cervera, I, pp. 700 e segs. apud DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 135, nota de rodapé nº 33.

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diretriz a exigência da eticidade deve nortear as condutas de todos aqueles que compõem a

sociedade, inclusive os que atuam no microcosmo do processo.

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro destaca que “o processo passa a congregar dois aspectos que se

fundem: o plano técnico e o humano ou ético, não para criar normas, mas para desvendá-las,

descobri-las, potencializá-las, aprimorá-las, interpretando-as na linha dos escopos jurídicos,

sociais e políticos do processo moderno, que informam o estado democrático de direito.”2

Nesse contexto, a boa-fé objetiva apresenta-se como vetor das condutas de todos os que

participam da relação jurídica processual, como valor que anima as garantias constitucionais

processuais com especial relevo para a definição dos contornos do devido processo legal, bem

como os corolários do contraditório e da ampla defesa. Pode-se dizer que a boa-fé objetiva

desvenda um novo olhar no desenvolvimento processual promovendo a potencialização e o

aprimoramento dos aludidos princípios constitucionais elevados à categoria de direitos

fundamentais os quais, sob o enfoque da boa-fé objetiva, têm o condão de estabelecer um

novo traçado para a prestação jurisdicional.

O direito não pode mais ser visto como um mero feixe normativo. A necessidade da

convivência ética – da convivência pautada pelo respeito à boa-fé objetiva – é um imperativo

reinante também na esfera processual civil. A ética que rege o desenvolvimento processual

impõe uma atitude cooperativa, fundada na lealdade e na probidade de todos aqueles que, de

uma forma ou de outra, participam da prestação da tutela jurisdicional, independentemente da

posição em que se encontrem. É a ética que dirige a “sociedade que queremos ter”3.

Segundo Rui Stoco “[...] Se o Direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e

cultural, concebido como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social,

as leis são o seu instrumento de realização, enquanto amostras de comportamento que

traduzem a consciência social de uma era. [...] Por essa razão o intérprete ou o aplicador da lei

tem a importante função de servir de elo entre o passado, o presente e o futuro. Torna-se guia

2 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. A ética dos personagens do processo. Revista Forense. v. 358, Rio de Janeiro: Forense. Nov. – dez. 2001, p. 352. 3 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 492

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e ponte para a transição, pois liga o passado à realidade atual e o presente às necessidades

futuras, sem romper definitivamente com as amarras do passado.”4

A importância da cláusula da boa-fé é de tal envergadura que transcende os domínios dos

ordenamentos jurídicos a tal ponto de se afirmar que “[...] O direito significa não somente

dirigir, mas também endereçar a vida e a boa-fé é uma expressão do ‘reto viver’.”5, 6

Diez-Picazo já advertia que “o conceito de boa-fé é um dos mais difíceis de apreender dentro

do Direito Civil e, é um dos conceitos que tem dado a mais apaixonada polêmica.”7

Manuel Cachón Cadenas também assinala que, apesar de todo o esforço da doutrina e da

jurisprudência para circunscrever a noção da boa-fé processual, não tem sido possível

suprimir a indeterminação do conceito e a inevitável vagueza que a consubstancia.8

Picó, por sua vez, afirma que “o princípio da boa-fé é uma das vias mais eficazes para a

superação de uma concepção excessivamente formalista e positivista da lei, que permite aos

juristas adequar as distintas instituições normativas aos valores sociais de cada momento

histórico.”9

A aplicação do princípio da boa-fé traz para o seio do ordenamento jurídico um elemento

externo a ele, extra jurídico, que passa a integrar a própria regra jurídica, cujo valor e

aplicação tem inquietado a doutrina.10

Segundo Alípio Silveira o conceito de boa-fé possui uma grande variedade de significados,

todavia, todos possuem como cerne um conteúdo ético-social firmado na honestidade,

probidade, lealdade, que deve estar presente em todas as relações jurídicas e que não possui

4 STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002, p. 35. 5 CALDANI, Miguel Angel Ciuro. Aspectos filosóficos de la buena fe. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 6. 6 No original: “el derecho significa no sólo dirigir sino enderezar la vida y la buea fe es una expresión del ‘recto vivir’ .” 7 DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 134. 8 CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de documentación judicial. 2006, p. 217. 9 PICÓ Y JUNOI, Joan. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del principio de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, p. 150. 10 DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 15.

18

um conteúdo essencial que possa deduzido a priori. Essa elasticidade do conceito da boa-fé

relaciona-se com o meio social e com o momento histórico.11

A doutrina e a jurisprudência têm sido pródigas no trato da boa-fé no que pertine ao direito

privado, dedicando especial atenção ao comportamento dos contratantes e à interpretação dos

atos efetivados no campo obrigacional. No que tange, especificamente, ao tema da boa-fé

objetiva no campo processual, o mesmo tem sido pouco explorado doutrinariamente, o que,

por si só, já justificaria a pesquisa ora empreendida.

Delinear a moldura que os Tribunais brasileiros têm dado à aplicação da boa-fé objetiva no

campo processual, bem como aferir a existência de modelos jurídicos formatados a partir das

decisões jurisprudenciais é o desafio que ora se propõe.

Ao tratar da aplicação da boa-fé no marco do Processo, Picó destaca que a primeira

interrogação que surge consiste em saber se as diversas regras ou pautas de conduta a serem

adotadas pelas partes estariam vinculadas ao que ele denomina por ‘princípio da boa-fé

processual’. A resposta advém de ensinamentos de diversos doutrinadores o que leva a

concluir que:

“Se por princípios do processo se entendem as ‘idéias que informam a regulação dos mais importantes aspectos daquele’, isto é, as ‘idéias base de determinados conjuntos de normas, idéias que se deduzem da própria lei ainda que não estejam expressamente formuladas nela’, ou, a maneira ‘como o processo se constrói’, que ‘permita conhecer o comportamento dos sujeitos que intervêm no processo, suas possibilidades, deveres e obrigações’, necessariamente chega-se a conclusão que a boa-fé processual é um verdadeiro princípio, posto que, na idéia da boa-fé se encontra ínsita o fundamento de distintas instituições processuais, existindo uma multiplicidade de normas que tendem à sua proteção.” 12, 13

11 SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, pp. 226-227. 12 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 51. 13 No original: “El primer interrogante que surge al analizar la aplicación de la buena fe en el marco del proceso, es el de si las diversas reglas o pautas de conducta que deben adoptar las partes responden a un principio general del proceso que podríamos denominar ‘principio de la buena fe procesal’. Si por principios del proceso se entienden las ‘ideas que informan la regulación de los más importantes aspectos de aquél’, esto es, las ‘ideas base de determinados conjuntos de normas, ideas que se deducen de la propia ley aunque no estén expresamente formuladas en ellas’, o dicho de otro modo, el ‘cómo está hecho el proceso’ que permite ‘llegar al conocimiento del comportamiento de los sujetos que intervienen en el proceso, sus posibilidades, cargas y obligaciones procesales, necesariamente llegamos a la conclusión de que estamos en presencia de un verdadero principio, el da la buena fe, puesto que […] la buena fe se encuentra ínsita en el fundamento de distintas instituciones procesales, existiendo multitud de normas que tienden a su protección.”

19

“A boa-fé é um conceito jurídico indeterminado e, portanto, só podem ser feitas meras

aproximações conceituais sobre a mesma. Dessa perspectiva necessariamente genérica, a boa-

fé processual pode definir-se como aquela conduta exigível a toda pessoa, no marco de um

processo, por ser socialmente admitida como correta.”14, 15

À vista da vaguidade do conceito da boa-fé, estabelece-se o dinamismo na adaptação dos

valores éticos da sociedade aos valores normativos do ordenamento, o que deverá ser

averiguado em cada caso concreto. O conteúdo da boa-fé não pode ser estabelecido a priori,

sendo necessário socorrer-se da jurisprudência para saber se o comportamento de um litigante

encontra-se afinado, ou não, à mesma. Será a jurisprudência e não o próprio texto da lei que,

dinamicamente, traduzirá as regras a serem levadas em consideração para a concreção do

conteúdo da boa-fé.16, 17

Como norma de comportamento leal, a boa-fé objetiva apresenta-se sob diversas facetas ou

nuances que se distinguem e se que manifestam à luz do caso concreto. “É norma nuançada

[...] na medida em que se reveste de variadas formas, de variadas concreções [...]. Não é

possível, efetivamente, tabular ou arrolar, a priori, o significado da valoração a ser procedida

mediante a boa-fé objetiva, porque se trata de uma norma cujo conteúdo não pode ser

rigidamente fixado, dependendo sempre das concretas circunstâncias do caso.”18

14 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 69. Idêntico conteúdo em: Id. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del princípio de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, p. 151; Id. Aproximación al principio de la buena fe procesal en la nueva ley de enjuiciamiento civil. In Revista Jurídica de Catalunia. ANY c, n. 4. Barcelona: 2001, p. 953. 15 No original: “La buena fe es un concepto jurídico indeterminado, y por tanto sólo pueden efectuarse meras aproximaciones conceptuales sobre la misma. Desde esta perspectiva necesariamente genérica, la buena fe procesal puede definirse como aquella conducta exigible a toda persona, en el marco de un proceso, por ser socialmente admitida como correcta.” 16 Ibid. pp. 69-70. Idem PICÓ Y JUNOI, Joan. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del princípio de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, p. 151. 17 No original: “Sólo desde esta perspectiva amplia se logra la continua adaptación entre los valores éticos de la sociedad y los valores normativos del ordenamiento, correspondiendo al juez, en cada caso concreto, analizar si la conducta procesal de la parte se adecua a la forma de actuar admitida pela generalidad de los ciudadanos. Como se ha indicado, resulta imposible formular planteamientos apriorísticos sobre lo que resulta ser la buena fe procesal, por lo que en muchas ocasiones deberemos que acudir a la casuística jurisprudencial para saber cuándo una determinada actuación de un litigante la infringe o no. En definitiva, será la jurisprudencia, en muchos casos, y no tanto la ley, la que nos indicará as reglas a tomar en consideración para concretar las conductas procesales maliciosas.” 18 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 412.

20

Fazendo referência à concreção da cláusula da boa-fé objetiva, Wieacker destaca que “o apelo

ao parágrafo 242 do BGB vincula também a jurisprudência futura aos princípios

jurisprudenciais anteriormente elaborados na aplicação daquele. Não obstante, essa

compreensão não deve obscurecer a compreensão dos limites que já tenham sido

estabelecidos na estrutura do mesmo ordenamento jurídico ao conteúdo da cláusula geral.”19,20

Segundo Wieacker: “As novas criações ético-jurídicas que são invocadas, hoje, com base no

parágrafo 242 escapam totalmente à codificação e à exposição científica. O legislador não é

dono do futuro de sua sociedade, e a história tem sempre burlado o intento de dirigir seus

enormes poderes por canais previamente estabelecidos. Razão suficiente para que nossa tarefa

consista em desviar as calmas marés, dominá-las e dirigi-las para um trabalho que seja

útil.” 21,22

A boa-fé objetiva é “um modelo de conduta social, ou, uma conduta socialmente considerada

como arquétipo, ou também uma conduta que a consciência social exige como dado

imperativo ético.”23, 24

A concepção da boa-fé objetiva para Diez-Picazo é posta nos seguintes termos:

“Outra coisa distinta é o princípio geral da boa-fé. Aqui a boa-fé [...] engendra uma norma jurídica completa, que, ademais, se eleva à categoria ou ao patamar de princípio geral do direito: todas as pessoas, todos os membros de uma comunidade jurídica devem comportar-se segundo a boa-fé em suas recíprocas relações. Isso tem significações: que devem adotar um comportamento leal em toda a fase prévia à constituição de tais relações (diligência in contrahendo), e que devem também comportar-se lealmente no desenvolvimento das relações jurídicas já constituídas entre eles. Este dever de comportar-se segundo a boa-fé se projeta, por sua vez, nas

19 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 85. 20 No original: “[…] apelación al parágrafo 242 vincula también la jurisprudencia futura a los constantes principios jurisprudenciales que con anterioridad fueron elaborados para la aplicación de aquél. Sin embargo, con todo ello no debe oscurecerse la comprensión de los límites que al rendimiento de una cláusula general han sido establecidos en la estructura del mismo ordenamiento jurídico.” 21 Ibidem. p. 98. 22 No original: “Las nuevas creaciones ético-jurídicas que hoy suelen invocarse con base en el parágrafo 242 escapan totalmente – como hemos ya señalado – a la codificación y a la exposición científica. El legislador no es dueño del futuro de su sociedad y la historia se ha burlado siempre del intento de dirigir sus enormes poderes por cauces previamente establecidos. Razón de más para que nuestra tarea deba consistir en desviar las mareas en calma, dominarlas y dirigirlas hacia un trabajo útil.” 23 DIEZ-PICAZO E GULLÓN. Sistema de derecho civil. vol. I, 10. ed. Madri: Tecnos. 2001, p.424. apud PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 69. nota de rodapé 117. 24 No original: “un modelo de conducta social o, si prefiere, una conducta socialmente considerada como arquetipo, o también una conducta qua la consciencia social exige conforme un imperativo ético dado.”

21

direções em que se diversificam todas as relações jurídicas: direitos e deveres. Os direitos devem ser exercitados de boa-fé; as obrigações devem ser cumpridas de boa-fé.”25, 26

A boa-fé objetiva é “um standard ou um modelo ideal de conduta social. É a conduta social

que se considera paradigmática.”27, 28

“Os standards são diretrizes gerais de que o julgador pode servir-se para chegar a uma

solução mais justa baseada no exame das circunstâncias especiais do caso concreto. São

‘critérios axiológicos’ para julgar o comportamento de um dever ou de um direito.”29

1.2. A Boa-Fé Objetiva: Concepções Doutrinárias

Ao longo dos anos, o Processo Civil tem passado por diversas mudanças com o único objetivo

de torná-lo mais eficiente, realmente, um instrumento apto para uma prestação jurisdicional

efetiva. As transformações sócio-econômicas e políticas deram causa a muitas das reformas

implementadas no Direito Processual para moldá-lo às novas exigências daí decorrentes.

Entretanto, por mais que se empreendessem esforços para que as disposições legais pudessem

abarcar essa diversidade oriunda do viver social, a conclusão indubitável foi que a riqueza

oriunda das relações estabelecidas reclamava por um catálogo normativo que pudesse dar

maior perenidade à regulação dessas relações.

25 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 12. 26 No original: “Otra cosa distinta es el principio general de buena fe. Aquí la buena fe es ya un puro elemento de un supuesto de hecho normativo, sino que engendra una norma jurídica completa que, además, se eleva a la categoría o al rango de un principio general del derecho: todas las personas, todos los miembros de una comunidad jurídica deben comportarse de buena fe en sus reciprocas relaciones. Lo que significa varias cosas: que deben adoptar un comportamiento leal en toda la fase previa a la constitución de tales relaciones (diligencias in contrayendo); y que deben también comportarse lealmente en el desenvolvimiento de las relaciones jurídicas ya constituidas entre ellos. Este deber de comportarse según la buena fe se proyecta a su vez en las dos direcciones en que se diversifican todas las relaciones jurídicas: derechos y deberes. Los derechos deben ejercitarse de buena fe, las obligaciones tienen que cumplirse de buena fe.” 27 Ibidem., pp. 12-13. 28 No original: “un standard o un modelo ideal de conducta social. Aquella conducta social que se considera como paradigmática.” 29 DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 53. Com fundamento nas lições de Roscoe Pound, para quem “Todos os standards implicam: 1) um certo juízo moral a respeito da conduta; 2)Não exigem um conhecimento jurídico exato que tenha que ser exatamente aplicado, mas o emprego do sentido comum ou da experiência cotidiana; 3) Não são formulados com caráter absoluto nem se lhes dá um conteúdo fixo, mas que dependem das particularidades do caso.” (An Introduction to the philosophie of law, New York, 1945, p. 118. apud DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 54, nota de rodapé nº 28.

22

Nesse contexto, a codificação estática restou superada por disposições abertas, normas

fluidas, cuja plasticidade trouxe como penhor a aderência a cada momento histórico numa

perfeita adaptabilidade do contexto social com a ordem jurídica. Essas proposições,

materializadas por meio de princípios, cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados,

viabilizaram a sincronia da ciência do direito com a dinamicidade emergente do tecido social.

É importante realçar que a figura da boa-fé assume duas conotações: a subjetiva e a objetiva.

No entanto, são figuras distintas que não podem ser confundidas.

A boa-fé subjetiva, que também é conhecida como boa-fé crença30, decorre de avaliação

individual e equivocada que a pessoa possui e que faz acreditar que está atuando conforme o

direito, o sujeito se encontra em completo estado de ignorância sobre as características da

situação jurídica. A pessoa acredita ser titular de um direito que, na realidade, não tem, porque

esse direito só existe de maneira aparente.31 Ou, segundo Amaral, “a boa-fé subjetiva é a

convicção pessoal da inexistência de vício, um estado de espírito, relevante para os direitos

reais, [...]”.32

A boa-fé objetiva não está inserida nesse contexto. “A boa-fé objetiva quer significar –

segundo a conotação que adveio da interpretação ao § 242 do Código Civil alemão [...] –

modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve

ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com

honestidade, lealdade, probidade”.33

Teresa Negreiros assevera que é na normativa constitucional que se deve buscar os critérios

de interpretação e densificação da noção da boa-fé objetiva, visto que é “onde e para onde, em

última e definitiva instância, se radicam e convergem os princípios constitucionais”.34

30 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 132. 31 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 411. 32 AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UFRJ, 1995, p. 33. 33 MARTINS-COSTA, op. cit. P. 411. nota 31 34 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1997, p. 51.

23

Para corroborar esse entendimento a Autora traz à colação o entendimento de Ruy Rosado de

Aguiar Júnior:

“A boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade, conforme está na Constituição da República), numa tentativa de ‘concreção em termos coerentes com a racionalidade global do sistema’”.35

Essa visão leva Teresa Negreiros a concluir: “Esta perspectiva, imposta pelo próprio

legislador, de se conferir à concreção do princípio da boa-fé um conteúdo constitucionalizado,

de forma a que esta se realize ‘em termos coerentes com a racionalidade global do sistema’,

importa, portanto, uma profunda revisão da conceituação dos princípios jurídicos e, bem

assim, da própria idéia de sistema, fundado constitucionalmente.”36

Não se podem vislumbrar as garantias processuais constitucionais dissociadas da boa-fé

objetiva. “A boa fé é princípio geral do direito e, portanto, princípio diretor ou vetor de todo o

ordenamento jurídico e, como tal, inamovível.”37 Essa concepção ou formulação do conteúdo

e da importância da boa-fé objetiva pode parecer, em um primeiro momento, estarrecedora.

No entanto, a harmonização das garantias constitucionais processuais conduz,

inexoravelmente, ao efetivo acesso à justiça.

Com efeito, a repercussão da atuação da boa-fé objetiva nas relações intersubjetivas conduz a

trilhar um novo caminho no campo do Direito Processual trazendo solução para grande parte

dos entraves na prestação de uma tutela jurisdicional efetiva.

São precisas as anotações de Dinamarco de que “a grande lição a extrair da obra de

Cappelletti é a de que o acesso à justiça é o mais elevado e digno dos valores a cultuar no

trato das coisas do processo. [...] a solene promessa de oferecer tutela jurisdicional a quem

tiver razão é ao mesmo tempo um princípio-síntese e o objetivo final, no universo dos

princípios e garantias inerentes ao Direito Processual Constitucional. Todos os demais

35 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. “A Boa-Fé na Relação de Consumo”, in Revista de Direito do Consumidor, nº 14, Revista dos Tribunais, São Paulo, abril-junho de 1995, p. 24. 36 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1997, p. 51. 37 CÓRDOBA, Marcos. Palabras iniciales in Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. VII.

24

princípios e garantias foram concebidos e atuam no sistema como meios coordenados entre si

e destinados a oferecer um processo justo, que outra coisa não é senão o processo apto a

produzir resultados justos.”38

O processo justo é o objetivo que tem sido perseguido. A maneira de alcançá-lo é o que tem

impulsionado os juristas de todas as épocas numa busca incansável. Várias fórmulas já foram

apresentadas: a solução ideal ainda não foi encontrada.

Conciliar a certeza e a segurança jurídicas com a prestação de uma tutela em tempo razoável é

o dilema que atormenta a todos envolvidos na lide forense. Entretanto, essa constatação não

pode conduzir ao desencantamento nem, muito menos, levar ao descrédito desse valiosíssimo

instrumento da atuação estatal. A missão que se impõe é por demais nobre para deixar-se

vencer pelos percalços já encontrados ao longo dessa trajetória.

Os mecanismos estão postos: as garantias constitucionais processuais vistas hoje como pilares

que dão sustentação à atuação estatal na missão da justa composição da lide. Quer parecer que

a grande dificuldade está na habilidade para se trabalhar esses mecanismos. Dinamarco

adverte:

“É preciso [...] não se ofuscar tanto com o brilho dos princípios nem ver na obcecada imposição de todos e cada um a chave mágica da justiça, ou o modo infalível de evitar injustiças. Nem a segurança jurídica, supostamente propiciada de modo absoluto por eles, é um valor tão elevado que legitime um fechar de olhos aos reclamos de um processo rápido, ágil e realmente capaz de eliminar conflitos, propiciando soluções válidas e invariavelmente úteis. A adoção dessa premissa metodológica manda, em primeiro lugar, que todos os princípios e garantias constitucionais sejam havidos como penhores da obtenção de resultados justos, sem receber um culto fetichista que desfigura o sistema. [...] Muitas vezes é preciso sacrificar a pureza de um princípio, como meio de oferecer tutela jurisdicional efetiva e suficientemente pronta, ou tempestiva; muitas vezes, também, é preciso ler uma garantia constitucional à luz de outra, ou outras, sob pena de conduzir o processo e os direitos por rumos indesejáveis.”39

Judith Martins-Costa apresenta a boa-fé objetiva como “topos subversivo”, expressão que a

ela mesma repercute com certa estupefação. Entretanto, como demonstra a autora, embora

seja um conceito que remonta à antiguidade, o mesmo permanece sempre atual e inovador na

ordem jurídica. Nesse sentido, são diversas as adjetivações que têm sido atribuídas ao tema –

38 DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, pp. 21-22. Destaques no original. 39 Ibidem. pp. 22-23.

25

‘expressão da pós-modernidade’40, ‘fenômeno espantoso’41, ‘um mar sem margens’42, que

demonstram a amplitude do seu conteúdo e a inovação que o mesmo traz à ordem jurídica.43

Demolombre denomina a boa fé como “a alma das relações sociais”44. Jean Cruet diz que “a

boa-fé é o lubrificante invisível que suaviza o funcionamento da máquina jurídica”45. “A boa-

fé purifica e dulcifica os textos rígidos da lei com o banho lustral de suas normas éticas.”46,

afirma Milhomens. “Alma que preside a convivência social e todos os seus atos”47 afirma

Clemente de Diego. Há, também, para alguns como A. Volanski, o conceito amplíssimo no

qual “a boa-fé é o próprio fundamento do direito”.48 Fuzier Herman define o conceito amplo

de boa-fé de outra forma quando diz que é “a equidade que preside a interpretação e execução

dos contratos.”49 Von Thur diz “que não se trata de uma norma jurídica única. Mas de um

princípio de direito que informa diferentes normas e que às vezes se inclina diante de outros

interesses que o legislador julga mais importantes.”50 Alsina Atienza sustenta que a boa-fé é

‘princípio genérico’ que possui a aptidão para solucionar casos concretos, de servir de

fundamento e de propiciar a adequação da lei ao caso concreto, atenuando a sua aparente

inflexibilidade.51 Destaca Alípio Silveira que “a doutrina atribui à boa-fé o caráter de

40 STORME, Marcel. La bonne foi: expression de la postmodernité en droit, in La bonne foi, cit. p. 460 e segs. apud MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 409. 41 Patrick Henri. La bonne foi, Actes du colloque organizé le 30 mars 1990 per la Conférence Libre du Jeune Barreau de Lièg, ASBL, Éditios du Jeune Barreau de Liège, 1990, p. 5. apud MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 409. 42 David-Constant. La bonne foi: une mer sans rivages, in La bonne foi, cit. p. 7 e segs. apud MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 409. 43 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 409. 44 Code de Napoleon, XXIV, p. 376. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229. 45 A vida do direito e a inutilidade das leis. trad. port. p. 182. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229. 46 MILHOMENS, Jônathas. Da presunção de boa-fé no processo civil. 1. ed. São Paulo: Forense. 1961, p. 22. 47 El silencio en el derecho, p. 98. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229. 48 Essai dúne définition expressive du droit basée sur la bonne foi. apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229. 49 Répértoire alphabetique du droit français, voz Bonne foi. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 229. 50 La buena fe en el derecho romano y em el derecho actual, trad. esp. En la Revista de derecho privado, Madrid, 1925, p. 337. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 246. 51 Efectos jurídicos de la buena fe, 1935, p. 4. Apud SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 247.

26

princípio não apenas informador do texto legal, mas, também, fornecedor de soluções

“praeter legem” para os casos a ela omissos.”52

Jônathas Milhomens destaca que o “direito do século da técnica recolheu do passado os dados

da experiência. Sem quebra de linha evolutiva, apropriou-se da sabedoria dos romanos [...] e

engastou a bona fides em princípio. A boa-fé no direito moderno – separado da moral, mas

não brigado com ela – se apresenta sob a forma de princípio.”53

Darci Guimarães Ribeiro põe em relevo a importância da boa-fé processual qualificando-a

como um sobreprincípio54, na seguinte transcrição:

“A boa-fé processual quer seja ela obrigação, dever ou ônus, quer esteja explícita ou implícita, é, indiscutivelmente, um valor que paira acima de qualquer instituição jurídica, porque, nas palavras de Couture, ‘el deber de decir la verdad existe, porque es um deber de uma conducta humana.’ O processo tem, em certa medida, uma boa dose de verdade, porque no seu conceito, em sentido social ou, como querem alguns, instrumental, ele é um instrumento de realização da justiça, que está colocado à disposição das partes pelo Estado, para que elas busquem a prestação da tutela jurisdicional, e nenhum instrumento de justiça pode existir fundado em mentira. [...] Estas são as razões pelas quais a boa-fé processual é erigida à categoria de sobreprincípio processual, que se sobrepõe aos demais, por possuir um interesse público iminente, condicionando, sempre que possível, os demais princípios, e coloca a verdade como apoio e sustento da justiça, que é a base do direito. O sobreprincípio da boa-fé processual obriga as partes a agir e a falar a verdade em juízo, pois, segundo Klein, ‘es principio geral que todo cuanto obste o dificulte los objetivos del proceso debe ser evitado.’ [...] A boa-fé processual caracteriza-se, pois, como um sobreprincípio do ordenamento jurídico, posto que paira por cima dos demais princípios jurídicos, conseqüentemente condiciona, determinando no espaço e no tempo, sua interpretação. Não se pode negar que os demais princípios processuais, inclusive aqueles guindados à categoria constitucional, como por exemplo: o direito de ação, o contraditório etc., não fiquem imunes ao dever supraconstitucional de agir e de falar em juízo ou fora dele com boa-fé, com retidão e com lealdade.”55

52 SILVEIRA, Alípio. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 247. 53 MILHOMES, Jônathas. Da presunção de boa-fé no processo civil. 1. ed. São Paulo: Forense. 1961, p. 10. 54 O Autor esclarece que a expressão “sobreprincípio” é utilizada por analogia àquela consagrada por Pontes de Miranda, regras de sobredireito, que segundo Pontes, significa “Ser de sobredireito não é ser de direito ‘anterior’ o direito sobre que versa a regra de sobredireito, é ser por cima desse direito para o determinar no espaço, no tempo, ou em sua interpretação.” PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1972, 2. ed. t. I, § 44, p. 245. O Autor observa, também, que Galeno Lacerda utiliza essa expressão emprestada, quando qualifica as normas sobre nulidades como “normas de sobredireito processual”. LACERDA, Galeno. O Código e o Formalismo Processual. Revista da AJURIS. n. 28. ano 10. Porto Alegre: AJURIS. julho. 1983, p. 11. 55 RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, pp. 76-78.

27

Afinal, que ‘fenômeno’ ou que ‘instituto’ é este que tem causado tamanha estupefação e,

ademais, desde os romanos, tem demonstrado a sua força para reger relações, estipular

comportamentos, transmudar o primado da autonomia da vontade56 e, no âmbito processual,

tem servido para por em xeque ou, pelo menos, impor à reflexão dogmas e verdades que

pareciam tão absolutos?

Princípio ou sobreprincípio geral do direito? Cláusula geral de textura fluida tal qual “um mar

sem margens”, “alma das relações sociais”, “fundamento próprio do direito”, “expressão da

pós-modernidade”?

Essas são concepções que buscam traduzir a amplitude e a complexidade da boa-fé, que, no

seu matiz objetivo, flexibiliza os textos rígidos da lei e harmoniza as relações, que estabelece

a confiança e reprime a deslealdade, que faz surgir direitos e faz desaparecer direitos, que

impõe obrigações, que rompe paradigmas e estabelece paradigmas...

56 Clóvis do Couto e Silva destaca que: “O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano, criando o ‘Direito do Caso’. O aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir valor autônomo, não relacionando com a vontade. Por ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se ‘construir’ objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes.” COUTO E SILVA,Clóvis. O direito civil brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera Maria Jacob de. (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, p. 42. Nesse mesmo sentido Judith Martins-Costa assevera que “A concepção da obrigação como processo e como uma totalidade concreta põe em causa o paradigma tradicional do direito das obrigações, fundado na valorização jurídica da vontade humana, e inaugura um novo paradigma para o direito obrigacional, não mais baseado no dogma da vontade (individual, privada ou legislativa), mas na boa-fé objetiva.” MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 394. Por sua vez, Tereza Negreiros destaca que “[...] A boa-fé objetiva é conceituada como um dever de recíproca cooperação entre partes ligadas por um vínculo obrigacional, e que, como tal, exige uma reformulação do significado da autonomia da vontade à luz, precisamente, da normativa constitucional.” NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1997, p. 6.

28

1.3. A Boa-Fé Objetiva como Norma Otimizadora das Garantias Processuais

Constitucionais.

A ideologia norteadora da Carta Política de 1988 imprime no campo do Direito Processual

Civil a consagração dos fundamentos éticos do processo. A garantia do devido processo legal

é efetivamente assegurada quando aliada a justiça formal à justiça substancial57, 58 refletindo,

por conseguinte, um processo que “seja intrinsecamente équo e justo segundo os parâmetros

ético-morais aceitos pela sociedade de qualquer época e país, que se revela capaz de realizar

uma justiça verdadeiramente imparcial, fundada na sua natureza e na sua razão.”59, 60

Sob essa ótica, o Supremo Tribunal Federal, na sua precípua função de guardião da

Constituição Federal, teve oportunidade de se manifestar sobre o princípio do devido processo

legal, reconhecendo ser a máxima do fair trial uma das faces desse princípio e que, a garantia

de um processo justo e équo está imbricada à observância da boa-fé objetiva de todos os

sujeitos participantes do processo.

Sob o delineamento amplíssimo da concepção da boa-fé objetiva, sobreleva a sua aplicação

no âmbito do Direito Processual Civil, no qual o processo - como instrumento público - para a

consecução dos seus escopos social, político, jurídico e pedagógico, tem na boa-fé objetiva o

norte a reger as atuações de todos os sujeitos processuais.

Na busca da realização dos aludidos escopos vale indagar: Como compatibilizar as garantias

constitucionais, que visam à efetividade do processo, expressas nos princípios do devido

57 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Abuso de Direito Processual no ordenamento jurídico brasileiro. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 109. 58 “[...] a teoria que melhor atende às idéias do formalismo-valorativo [...] é aquela que entende o processo como um procedimento em contraditório pensada por Elio Fazzalari. [...] o processo só pode ser encarado, a partir da perspectiva do formalismo valorativo, como um procedimento em contraditório, jungido aos valores constitucionais e devidamente demarcado pelas garantias processuais mínimas que configuram o devido processo legal processual (art. 5º, LIV). Visa à produção do justo, sua indelével e irrenunciável vocação constitucional, com o que também no domínio do processo e através dele se estará a construir uma sociedade mais livre, justa e solidária (art. 3º, I, CRFB), fundada na cidadania e na dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III, CRFB).” MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma Teoria Contemporânea do Processo Civil Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 145. 59 COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 105 60 No original: “Quest’ultima impone di considerare come dovuto ( e cioè: como due, debido o devido) non già qualunque processo che si limiti ad essere estrinsecamente fair (vale a dire: correto, leale o regolare, sul piano formale, secondo la law of the land), bensi un processo che sia intrinsecamente equo e giusto, secondo i parametri di qualsiasi epoca e paese, in quanto si riveli capace di realizzare una giustizia veramente imparziale, fondada sulla natura e sulla ragione.”

29

processo legal, da ampla defesa e do contraditório com o princípio constitucional da duração

razoável do processo? Onde estaria o ponto de equilíbrio? Qual a amplitude do devido

processo legal? Qual a extensão da ampla defesa? Até que ponto pode ser desenvolvido o

contraditório? Todas essas indagações encontram respostas que deságuam na aplicação da

boa-fé objetiva. Para a perfeita identificação do substrato oriundo do conteúdo da boa-fé

objetiva processual é que se lança mão dos modelos jurídicos captados da fonte

jurisprudencial na solução veiculada em cada caso concreto.

Quadra por em relevo que as garantias constitucionais processuais não são de todo absolutas.

O manejo e a extensão de cada uma delas deve ocorrer de forma harmônica o que, de per si,

implica o alcance do ponto de equilíbrio que importará um “processo justo”.

A idéia de que as garantias constitucionais processuais seriam absolutas advém da ideologia

do Estado liberal. Nesse sentido vale trazer à colação as lições de Marinoni:

“[...] o direito liberal, diante da desconfiança em relação ao judiciário, foi obrigado a não dar ‘elasticidade’ às noções de ampla defesa e contraditório, e assim tornou inviável a tutela do direito antes da plenitude de cognição. [...] Os conceitos de ampla defesa e de contraditório devem ser construídos a partir dos valores das épocas. Quando a preocupação do direito centrava na defesa da liberdade do cidadão diante do Estado, a uniformidade procedimental e as formas possuíam grande importância para o demandado, nesse sentido a rigidez dos conceitos de ampla defesa e contraditório assumia função vital para o réu. Entretanto, como não poderia deixar de ser, a ampla defesa e o contraditório eram vistos como garantias em relação ao Estado, e não como elementos que, quando conjugados, podem viabilizar a formação de procedimentos adequados às necessidades das diferentes situações de direito substancial [...] ”61

Concorrem para refletir essas reminiscências da concepção liberal no Código de Processo

Civil o seguinte excerto:

“O que hoje parece evidente, não o era à época da promulgação do Código de Processo Civil, em 1973. O processo judicial no Brasil, visto a partir de sua disciplina constitucional, foi por muito tempo focalizado com um sistema de garantias contra o arbítrio e o personalismo, impondo limitações ao poder de julgar em nome da idéia de segurança jurídica, tão cara ao pensamento moderno. Respaldada pelo discurso científico da modernidade, essa visão forjou processo tendencialmente plenário, de feição cognitivista e pródiga recursividade. Tal modelo buscava proteger os indivíduos contra os avanços do “Estado-Juiz”, impondo a “certeza” como condição de atuação efetiva do Estado, projetando enormemente a eficácia do princípio do contraditório e da ampla defesa, fixando consistentes limites formais à atividade jurisdicional e oferecendo amplas possibilidades de revisão

61 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 46.

30

hierárquica das decisões. A vocação à ordinariedade se fez evidente na própria estrutura do Código,[...]. Pouca atenção se deu ao aspecto temporal do processo e o seu descompasso, logo evidenciado, com a velocidade real da vida e com as exigências dos novos direitos em afirmação.”62

Entretanto, para o perfeito alcance do conteúdo das normas processuais faz-se mister

compreender situar o momento histórico-cultural da sociedade. O direito advém da

experiência social, conforme já afirmado por Miguel Reale. Portanto, a essência das suas

normas não pode ser alcançada dissociada da realidade social e da sua situação histórica.

Nesse sentido adverte Ovídio Baptista:

“É indispensável, no entanto, ter presente que essas tentativas de formação de sistemas, no que diz respeito ao direito, devem ser recebidas com reservas, pois o fenômeno jurídico, como se dá com todas as expressões culturais formadoras das ciências do espírito, é um ramo do saber humano que não se harmoniza com o conhecimento sistemático, próprio da ciência da natureza. O direito, enquanto ciência hermenêutica, busca o individual, em toda sua riqueza existencial e histórica, e, mesmo admitindo que se descreva como sistema, como é próprio das ciências explicativas, que buscam alcançar o domínio da natureza e a construção de princípios e regras de validade universal, sua vocação natural orienta-o para a compreensão do fenômeno humano, que será sempre situado historicamente. Esta peculiaridade, comum a todo fenômeno jurídico, mostra-se ainda mais visível quando se trata do direito processual, dado que este ramo da ciência jurídica tem de tratar, necessariamente, de casos individuais, onde a construção de regras gerais mostrar-se-á sempre uma tarefa limitada e precária.”63

O processo, compreendido como fenômeno cultural, deve traduzir os valores e ideologias

reinantes no seio social, deve retratar a cultura reinante na sociedade a qual se dirige.

“Se no processo se fazem sentir a vontade e o pensamento de um grupo, expressos em hábitos, costumes, símbolos fórmulas ricas de sentido, métodos e normas de comportamento, então não se pode recusar a esta atividade vária e multiforme o caráter de fato cultural. Nela, na verdade, se reflete toda uma cultura, considerada como conjunto de vivências de ordem espiritual, que singularizam determinada época de uma sociedade. Costumes religiosos, princípios éticos, hábitos sociais e políticos, grau de evolução científica, expressão do indivíduo na comunidade, tudo isto, enfim, que define a cultura e a civilização de um povo, há de retratar-se no processo, em formas, ritos e juízos correspondentes. Ele, na verdade, espelha uma cultura, serve de índice de uma civilização.”64

Marinoni conclama: “É chegado o momento do tempo do processo tomar o seu efetivo lugar

dentro da ciência processual, pois este não pode deixar de influir sobre a elaboração

62 AMARAL, Guilherme Rizzo e CARPENA, Márcio Louzada. (Coord.). Visões críticas do Processo Civil Brasileiro: uma homenagem ao Prof. José Maria Rosa Tesheiner. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, pp. 23-24; 63 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da, GOMES, Fábio Luiz . Teoria geral do Processo Civil. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, pp. 11-12. 64 LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense. 2008, p. 4.

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dogmática preocupada com a reconstrução do processo justo ou com aquele destinado a

realizar concretamente os valores e os princípios contidos na Constituição da República.”65

“O justo processo é interesse de toda a sociedade e obrigação do Estado. Os direitos e

garantias fundamentais estatuídos na Constituição são também programas de ação e vetores

do Estado por exprimirem valores que direcionam os fins da sociedade.”66

As garantias constitucionais processuais atuam como vetores na atuação jurisdicional dando

nova conotação axiológica às normas processuais, ressaltando que “o formalismo valorativo

deixa evidente o imbricamento entre o processo civil, a Constituição e a cultura, sendo esse

último, pois, o método mais adequado para estudar o direito processual civil

contemporâneo.”67. Ademais, conforme asseverado por Mitidiero com escólio em Natalino

Irti - La Età della Decodificación - e em Zagrebelsky - Il Diritto Mitte – Legge, Diritto,

Giustizia:

“Vencida a ideologia de que ‘il diritto si resolve nella leggi dello Stato’, própria daquilo que muito adequadamente já se chamou de ‘mondo della sicurezza’ cuja forma histórica de legislação é a forma-Código (com a sua indisfarçável marca de ‘auto-suficiência’ – ‘completude e coerência’), temos de levar a sério a idéia de Estado Constitucional, concretizando cotidianamente os direitos fundamentais e reconhecendo que o direito, nessa quadra histórica, espraia para além do círculo da legalidade estatal, buscando a sua unidade, suas potencialidades e seus limites nos valores e nas normas constitucionais.”68

Nessa perspectiva, a norma inserta no art. 14, inciso II do CPC traz uma nova moldura para as

normas processuais sob o espectro do Texto Constitucional. A absolutez dos direitos

fundamentais, como garantias liberais, já não perdura. O processo justo não compactua com

tal concepção. O Processo não é mero duelo das partes. A finalidade pública do processo

desborda os limites dos interesses das partes que são colocados na lide. Embora tenha sido

concebido com matiz subjetivista – o agir de acordo com a lei e com o direito – traduzido pela

boa-fé subjetiva, há que se fazer uma releitura desse dispositivo legal com os olhar posto no

65 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 16. 66 MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no Processo Civil brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores. 2001, p. 61. 67 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 21. 68 MITIDIERO, Francisco. Processo civil e estado constitucional. Porto alegre: Livraria do Advogado. 2007, p. 106.

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Texto Constitucional. Para tal desiderato, Mitidiero, parafraseando Denti, convida a que se

escreva “um novo capítulo da história jurídica”:

“[...] formalismo-valorativo, entendido esse como movimento cultural destinado a concretizar valores constitucionais no tecido processual [...] à força do caráter nitidamente instrumental do processo, trazendo novamente ao plano dos operadores do processo a busca pelo justo. O método é o instrumental, e a racionalidade que perpassa o fenômeno é a racionalidade prática (quer na sua vertente processual, tópica-retórica, quer na sua vertente material), resgatando-se, em outro nível qualitativo, o pensamento do problemático para o direito processual civil. O processo deixa de ser visto como mera técnica [...] assumindo a estatura de um verdadeiro instrumento ético, sem que se deixe de reconhecer, no entanto, a sua estruturação igualmente técnica. Tal é o momento que ora se está a viver: fomalismo-valorativo, em que os valores constitucionais impregnam a técnica do processo, escrevendo mesmo, como observa Vittorio Denti, um novo ‘capitolo di storia della nostra cultura giuridica’.” 69

Os modelos jurídicos jurisprudenciais fundados na boa-fé objetiva desempenham importante

função otimizadora de todo o sistema processual ao promover a ordenação da aplicação das

normas processuais, bem como ao estabelecer uma aplicação prospectiva das mesmas, na

busca indissociável da efetividade do processo.

A eficácia do ordenamento jurídico processual está condicionada à observância da boa-fé

objetiva. Neste sentido, a aplicação das normas processuais encontra suas balizas na boa-fé

objetiva. É a boa-fé objetiva que permitirá extrair a essência do conteúdo da norma para

aplicá-la ao caso concreto. Daí exsurge incontroverso que na multiplicidade de situações a

aplicação da norma tanto poderá ser ampliada quanto restringida, sendo que tal equilíbrio será

aferido na situação in concreto tendo por norte a efetividade do processo.70

“Podemos, a partir de então, dizer que o vocábulo amplo para defesa não guarda pertinência com ilimitado, porém, indiscutivelmente, significa extensa. Não conota defesa pródiga, mas abundante. Isto porque o princípio constitucional da amplitude de defesa é abrangente (não ilimitado), significando que tolera mitigações, em face

69 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, pp. 19-20. 70 Nesse sentido, traz-se à colação: - MULTA DE 20% PREVISTA NO ARTIGO 601 DO CPC. A utilização dos meios de defesa, com base nos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, encontra limites nos deveres processuais de lealdade e boa-fé e nos princípios da celeridade e efetividade do processo, que têm o condão de assegurar à parte um processo rápido e útil, como garantia do direito fundamental de ação, previsto na Constituição Federal. Assim, os meios legais para impugnação das decisões judiciais não podem ser usados simplesmente para protelar a execução. A oposição vazia e impertinente da parte, com o flagrante e deliberado objetivo de retardar o resultado do processo, atenta contra a dignidade da Justiça, e deve ser combatida pelo Poder Judiciário. Dessarte, correta a sentença ao enquadrar a conduta da Ré no artigo 600, inciso II, do CPC, e condená-la à multa prevista no artigo 601 do mesmo Código. (TRT 9ª R.; Proc. 21561-2007-011-09-00-1; Ac. 30053-2008; Quarta Turma; Relª Desª Márcia Domingues; DJPR 26/08/2008). (sem destaques no original)

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da eficácia normativa da efetividade, alçada ao status constitucional do direito à jurisdição e do devido processo legal, e não comporta dilações intermináveis, mesmo em nome da perfeição da descoberta da verdade; mas contém certos conteúdos indispensáveis no jogo da proporcionalidade.”71

O direito à efetiva prestação da tutela jurisdicional importa atender à necessidade de outorga

da tutela do direito pelo processo. Nesse passo, o magistrado atua, sistematicamente, à luz das

diversas garantias constitucionais processuais incidentes sobre a lide e orientado para o

atingimento desse alvo. A aplicabilidade de tais garantias não possui extensão ilimitada. A

grande questão está no equacionamento dos valores segurança e efetividade. O direito de

defesa encontra limites no marco da duração razoável do processo.

A boa-fé objetiva no âmbito processual civil apresenta-se como norma que equilibra a

aplicação desses princípios na conjugação dos fatores segurança/certeza e celeridade na

prestação da tutela jurisdicional.

Nesse diapasão, a boa-fé objetiva é norma conformadora das garantias constitucionais

processuais aos interesses que se contrapõem nos domínios do processo. Teresa Negreiros

propõe “um enquadramento constitucional para o “renascimento da boa-fé”, o que implica

buscar na hermenêutica constitucional os caminhos para a aplicação do princípio. [...] O

princípio da boa-fé configura-se, nesta ótica, não como agente “subversivo” das

transformações na operação do sistema jurídico, mas como um resultado necessário de sua

conformação à “hierarquia de interesses” fixada constitucionalmente.”72,73 Na concepção

formulada por Célia Barbosa Abreu Slawinski74, a boa-fé objetiva é “regra que vem

instrumentalizar valores constitucionalmente previstos”.

71 MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no Processo Civil brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores. 2001, p. 80. 72 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1997, p. 12. 73 A proposição de Teresa Negreiros encontra-se alicerçada nas lições de Pietro Perlingieri: “Se o fundamento de cada ramo do direito de um ponto de vista não somente formal, mas também substancial, deriva do quadro constitucional, os atos e atividades devem ser influenciados, nos seus requisitos de validade e de eficácia e nos seus próprios pressupostos, pela hierarquia dos interesses que resulta da análise das normas de uma Constituição rígida, fonte privilegiada das relações pessoais, econômicas e sociais”. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 285. 74 Contornos dogmáticos e eficácia da boa-fé objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2002, p. 191.

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Dar interpretação subjetivista à norma do art. 14, inciso II do CPC, na atual quadra histórica, é

esvaziar o seu conteúdo. É ter uma visão míope da grandeza que dela advém. É querer a

perpetuação das concepções liberais individualistas em pleno século XXI. A elaboração

dogmática e doutrinária mantém-se renitente a ler essa cláusula como metanorma, como

garantia de que os direitos constitucionais serão garantidos em sua plenitude. Francisco

Antônio Barros e Silva Neto afirma: “Se o dever de lealdade processual revela a crítica ao

liberalismo, é natural que o esforço da moralização do processo encontre resistência nos

setores mais conservadores da praxis forense e das academias.”75 Entretanto, essa postura das

academias e dos tribunais não pode ser vista com naturalidade. É preciso libertar-se dessas

raízes. É preciso deixar para traz a concepção subjetivista da boa-fé aliada a bolo e má-fé. A

leitura do art. 14, inciso II do CPC com os olhos postos na Constituição Federal liberta-o

dessa concepção subjetivista e dá-lhe conotação objetiva imprimindo uma nova validade

dogmática.

A concepção liberal das garantias constitucionais processuais como absolutas endossa a visão

duelística do processo. Visão essa que não coaduna com o processo cooperativo, fruto da

leitura das normas processuais à luz da Constituição. A leitura do art. 14, II, do CPC - como

boa-fé objetiva - é norma que veda o agir individualista. É norma que limita o duelo irrefreado

no campo processual, é norma que veda o uso indevido do processo. A boa-fé objetiva limita

o uso das garantias processuais, no sentido advindo da idéia liberal, aplicando outras garantias

constitucionais. Trata-se de ler o princípio da ampla defesa, não como ‘defesa pródiga’ ou

‘defesa ilimitada’, mas como ‘defesa necessária’. É ler a garantia do contraditório como

garantia de participação efetiva, participação na construção da decisão. É ler o devido

processo legal na sua feição substantiva e não meramente formal, é o devido processo leal, é o

‘devido processo justo’. É ler o princípio da igualdade ou da paridade de armas com os olhos

postos na boa-fé objetiva. Significa não se olvidar, na aplicação dessas garantias processuais,

de outras garantias constitucionais, tais como, justiça, equidade, tutela jurisdicional adequada.

A boa-fé objetiva traz ínsita em seu conteúdo a noção de “correção processual”. É máxima do

comportamento correto. Atua no sistema jurídico como pretensão de correção. Nesse sentido

vale trazer à colação:

75 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 13.

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“O centro do aparato das garantias reconhecidas como fundamentais, tanto para o processo civil, quanto para o processo penal, emanadas da Convenção Européia e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, resume-se na exigência da correção processual, expressão que bem pode traduzir a palavra inglesa fairness e hearing, constantes do art. 6º, I, da e do art. 14, I, do que qualificam o justo processo (fair hearing). [...]doutrinador: ‘a mais expressiva componente do complexo de implicações que a jurisprudência da Corte e da Comissão Européia extrai, de um ponto de vista genérico, da idéia de ‘correção processual’, é certamente aquela que se traduz no princípio da ‘igualdade ou paridade das armas’ entre as partes do processo” 76

Aí está a grandeza da cláusula da boa-fé objetiva. Trata-se de norma cogente, norma de ordem

pública. Atua “independentemente da vontade dos interessados e mesmo contrariando tais

vontades, que são impotentes (=irrelevantes) para impedir a sua incidência, a qual é, assim,

inexorável.”77 É metanorma, atua estruturando a aplicação de outras normas processuais. É

norma que expressa a “correção processual”. A boa-fé objetiva como “correção processual”

encontra-se afinada à historicidade do direito. Alexy sustenta que a pretensão de correção do

direito importa em atribuir-lhe uma dimensão ideal necessária.78, 79

Nesse ponto, vale trazer à baila que o princípio do devido processo legal pode ser definido

como a espinha dorsal do processo. É sobre tal princípio que o processo, em seu procedimento

em contraditório, se ancora. A relevância de tal princípio é incontestável, sendo diretriz

suprema do Estado Democrático de Direito.

Conforme bem apontado por Maria Rosynete Oliveira Lima, hoje, quase duas décadas após a

instalação da ordem jurídica pela Constituição Política de 1988, onde o princípio do devido

processo legal veio expressamente estampado, a doutrina e a jurisprudência mantêm o

76 CHIAVARIO, Mario. apud FAGUNDES FILHO, Henrique. A equidade e o processo justo In Processo e Constituição: estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, p. 722. 77 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. Vol. I. 7. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 122. 78 ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensión de corrección del derecho: la polémica Alexy/Bulygin sobre la relación entre derecho y moral. Traducción e Introducción de Paula Gaido. Teoría Jurídica y Filosofía del Derecho, n. 18. Bogotá: Universidad Externado de Colombia. 2001, pp. 28-29. 79 No original: “Para Alexi el análisis de la relación entre derecho y moral en el marco de la teoría del discurso muestra a la pretensión de corrección como una dimensión ideal y necesaria del derecho, que lo conecta con la moral universal procedimental. Según Alexi, la pretensión de corrección implica una pretensión de justificabilidad. La pretensión de justificabilidad crea la posibilidad de presentar mejores contra-argumentos, que pueden cambiar la práctica de la justificación en el futuro. Para Alexy justificar implica aceptar a otra persona como un igual, y la pretensión de defender lo que se afirma no sólo frente al adversario sino frente a cualquiera. Estas pretensiones de igualdad y de universalidad constituyen la base de una ética procedimental, sobre la que se basa Alexy, y que toma fundamentalmente de Habermas. La conexión que la teoría del discurso crea entre los conceptos de corrección, justificabilidad y generalizabilidad puede, conforme a Alexy, ser transportada del derecho con la ayuda de la tesis de que el discurso es un caso especial del discurso práctico general.”

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interesse pelo tema já não se discutindo mais a sua presencialidade normativa, mas a sua

significação no contexto jurídico brasileiro.80

Nesse passo, o devido processo legal desdobra-se nas feições formal e substantiva como

matriz da segurança jurídica, tendo como corolários a ampla defesa, o contraditório e a

motivação das decisões.

Neste sentido são as lições de Dinamarco:

“O Direito Processual Constitucional põe o estudo do procedimento sob o enfoque da garantia do devido processo legal e com isso o estudioso conscientiza-se de que as exigências do Código constituem projeção de uma norma de maior amplitude e mais alta posição hierárquica, sendo indispensável uma interpretação sistemática. Daí para entender que o procedimento é um meio técnico para a efetividade do postulado democrático da participação, o passo é pequeno e já se vai chegando à percepção das grandes linhas do que se chama justo processo (Augusto Mário Morello), ou processo justo e équo (Luigi Paolo Comoglio).”81, 82

Nelson Nery Júnior, por sua vez, destaca que:

“[...] bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies. [...] Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e os incisos do art. 5º, em sua grande maioria, seriam absolutamente despiciendos. De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5º, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o legislativo, e o judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores indagações.”83, 84

Daniel Francisco Mitidiero põe em relevo que:

80 LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 1999, pp. 174 e 176. 81 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. V. II. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2002, p. 731. 82 Comoglio destaca as expressões equivalentes a processo “justo e équo” em diversos idiomas como: devido processo legal, debido processo, processo equitativo, proceso justo, proceso limpio. COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 106. nota de rodapé nº 38. 83 NERY Junior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8. ed. ver. ampl. e atual. com as novas súmulas do STF e com análise sobre a relativização da coisa julgada. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, – (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman; v. 21), pp. 60 e 70. 84 Em que pese o entendimento do notável Autor, não se pode negar a importância da explicitação de todos os incisos que integram o art. 5º.

37

“Partindo de uma postura constitucional de processo, própria do formalismo-valorativo, mostra-se fundamental a análise do devido processo legal processual brasileiro, porque nele se encontra a disciplina mínima de nosso formalismo, emanada diretamente de nossa Constituição, o nosso modelo constitucional de processo civil, como observam Cândido Rangel Dinamarco e João Batista Lopes. Cuidando o processo civil, no fundo, da domesticação do arbítrio estatal dentro do processo, natural que a cláusula do due process of law erigida entre nós à categoria de direito fundamental, formal e materialmente, galgue posição de destaque. O devido processo legal processual brasileiro é o nosso modelo mínimo de processo équo: da sua fiel consecução, pois, depende mesmo a própria obtenção da justiça através do processo, uma vez que somente de um processo justo podem advir decisões justas, como bem observa, entre outros, Marie-Emma Boursier.”85

Ocorre que, diante de tamanha relevância do princípio do devido processo legal e das demais

garantias constitucionais processuais dele decorrentes, expressas, sobretudo, na ampla defesa

e no contraditório, desponta a boa-fé objetiva como norma otimizadora dessas garantias

constitucionais. Esses direitos ou garantias constitucionais processuais não são irrestritos e

não podem ser utilizados como armaduras para legitimar condutas que afrontem a boa-fé

objetiva dos sujeitos processuais.

Com a publicização do processo, a visão individualista e privatista do processo restou

superada por novos princípios processuais que deram nova roupagem aos institutos

processuais e à conduta a todos os participantes do processo, estabelecendo deveres a serem

observados no desenvolvimento do procedimento. Entretanto, as garantias processuais

constitucionais têm sido terreno fértil para a prática de atos descompassados com o dever de

lealdade de boa-fé. Conforme asseverado por Marcelo Abelha, especialmente a garantia do

contraditório dá ensejo a desvios de condutas processuais, visto que “fazendo uso indevido

desse princípio, e escondido nas vestes de um suposto contraditório, é que se praticam ilícitos

ou abusos processuais. Sob a alegação de que determinada conduta não poderia ser reprimida,

pois representaria uma ofensa ao contraditório, os litigantes de má-fé comumente invocam

este princípio para ‘legitimar’ a prática de abuso de direitos processuais. [...] é de se notar que,

sendo o processo o contraditório em movimento, o improbus litigator dele faz uso para obter

vantagens indevidas e antiéticas sob a cortina de fumaça do contraditório.”86

Marinoni sublinha que “a ampla defesa e o contraditório, na época do direito liberal clássico,

eram pensados de maneira rígida, pois constituíam garantias de liberdade contra o arbítrio do

85 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma Teoria Contemporânea do Processo Civil Brasileiro . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 41. 86 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008, p. 258.

38

juiz, enquanto, no Estado contemporâneo, assumiram conformação elástica, por terem

passado a servir para a modelação de procedimentos adequados à tutela das novas

realidades.”87

Em decisão paradigmática, sob a Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, unanimemente,

aquela Corte expressa essa posição:

“O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas apara a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial , no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. A máxima do fair trial é uma das faces do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e da lealdade dos sujeitos que dele participam, condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos. Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgão, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à justiça. Contrárias à máxima do fair trial – como corolário do devido processo legal, e que encontra expressão positiva, por exemplo, no art. 14 e seguintes do Código de Processo Civil – são todas as condutas suspicazes praticadas por pessoas às quais a lei proíbe a participação no processo em razão de suspeição, impedimento ou incompatibilidade; ou nos casos em que esses impedimentos são forjados pelas partes com o intuito de burlar as normas processuais.”88

Em consonância com esse entendimento e sob a mesma fundamentação, encontra-se a decisão

proferida no julgamento do RE 529.733-1/RS. Dessa feita, a questão centrou-se em agravo de

instrumento interposto pelo INSS contra decisão que obstou o seguimento do Recurso

Extraordinário.

87 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 47. 88 STF: RE 464.963-2/Go., 2ª Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. Decisão unânime. Julgamento em 14.02.2006, Publicação DJ 30.06.2006, Tratava-se de situação em que o patrono dos recorridos, Diretor-Geral do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Goiás, havia feito sustentação oral no julgamento da apelação. No julgamento do Recurso Extraordinário foi reconhecida a nulidade dos atos processuais praticados pelo patrono face à incompatibilidade do exercício da advocacia com o cargo de Diretor-Geral do Tribunal Regional Eleitoral, nos termos dos arts. 4º, 27 e 28 do Estatuto da OAB. Ademais, no julgamento do RE 1999,088, DJ de 16.04.99, que teve como Relator o Ministro Carlos Velloso, entendeu-se ser incompatível com a advocacia os cargos de assessor de juiz e de desembargador, incompatibilidade essa assentada na ética e na moralidade pública. Na situação em pauta, concluiu aquela Corte que o julgamento da apelação encontrava-se “contaminado por fortes irregularidades e eventual suspicácia”, em clara afronta aos princípios da moralidade e do devido processo legal.

39

Em ação ordinária que tramitou no Juizado Especial Federal, julgada parcialmente

procedente, constou expressamente no dispositivo da decisão que as partes, se tivessem

interesse, poderiam recorrer, dentro do prazo de dez dias, a contar da intimação da sentença,

pela simples palavra ‘apelo’, não havendo necessidade de apresentar as razões e contra-razões

de apelação, as quais seriam consideradas, como remissivas, às respectivas manifestações das

partes no curso do processo, não havendo, entretanto, óbice para que, se houvesse interesse,

pudessem apresentar, no referido prazo, fundamentos suplementares. O INSS interpôs recurso

consignando tão somente a expressão ‘apelo’, desacompanhado, portanto, de razões do

recurso.

A Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio Grande do Sul não conheceu do

recurso por entender que a simples aposição da expressão ‘apelo’, desacompanhada das

razões e do pedido de reforma da decisão guerreada, não seria suficiente para devolver ao

juízo ad quem a matéria discutida. Ademais, no entender da Turma Recursal, os Juizados

Especiais Federais primam pela celeridade na prestação da tutela jurisdicional, o que não

coaduna com a proliferação de recursos manifestamente procrastinatórios.

O INSS manejou embargos de declaração, com fulcro nos princípios do devido processo legal

e da ampla defesa, para que fosse declarada a nulidade da parte do dispositivo da sentença que

versava sobre o procedimento para recurso, com a conseqüente abertura de novo prazo para

apresentação de razões recursais, sendo que tais embargos também não foram providos.

Nesse passo, o INSS protocolou recurso extraordinário, que não foi admitido sob a

fundamentação de ausência de pré-questionamento, fato esse que deu ensejo ao agravo de

instrumento.

No julgamento desse agravo de instrumento, o STF entendeu que, muito além da consignação

da expressão ‘apelo’ a discussão desbordava matéria de ordem constitucional – o princípio do

devido processo legal. Conforme destacado no voto do Ministro Gilmar Mendes, a decisão de

primeira instância “expressa e especificamente, prescreveu que a mera indicação ‘apelo’ seria

necessária e suficiente para instrumentalizar o recurso, com implícita reiteração do conteúdo

discursivo da peça inicial.”89

89 AI 529.733-1/RS. STF. 2ª Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. Julg. 17.10.2006, DJU 01.12.2006, p. 097.

40

Outra não poderia ser a decisão daquela Corte senão corrigir o rumo da discussão, retomando

os trilhos do fair trial, como corolário do devido processo legal, e que como garantia de

participação leal, justa, e equânime, norteada pela boa-fé objetiva processual e que deve ser

observado por todo aparato jurisdicional.

Nesses termos, a boa-fé objetiva é reconhecida como expressão do fair trial , “projeção

concretizadora do devido processo legal”90, impondo um comportamento processual probo e

leal para o deslinde de um processo que tem por escopo a pacificação social materializada na

entrega de uma prestação jurisdicional justa.

O devido processo legal é o fundamento do “processo justo e équo” ou, do “processo

limpo”.91, 92 Ora, sendo a boa-fé objetiva uma das expressões do fair trial , resta inafastável a

relevância dessa cláusula geral no âmbito do Direito Processual Civil para a densificação do

due process of law.

Essa decisão proferida pela Suprema Corte pátria vem dar o tom e denotar a importância da

norma expressa no art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil, que, na aplicação laboriosa

dos Tribunais pátrios, tem levado à construção de modelos jurídicos jurisprudenciais que vêm

representar o conteúdo da cláusula geral boa-fé objetiva no Direito Processual Civil.

A boa-fé objetiva é norma cogente93 que rege as relações endoprocessuais e que possibilita o

desenvolvimento de um processo justo e équo. Anderso Schereiber põe em relevo que o

“nemo potest venire contra factum proprium expressa um interesse normativo po assim dizer

público, cogente, consubstanciado na tutela da confiança, na proteção da boa-fé objetiva e na

concretização dos valores constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa

90 Ext 633 / CH - Republica da China – Extradição, Relator: Min. Celso de Mello, Julgamento: 28/08/1996 ,Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação, DJ 06-04-2001 PP-00067. Expressão utilizada pelo Ministro Celso de Mello na redação do seu voto: “O direito ao fair trial – que constitui projeção concretizadora do postulado concernente ao devido processo legal [...].” 91 COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 148. 92 No original: “[...] per i grande valori di civilitá giuridica, insiti nella blasonate tradizioni del ‘due process of law’ angloramericano, sui qualli si fonda anche il modello internazionale di processo justo e èquo.” 93 Ao analisar a boa-fé objetiva no Projeto do novo Código Civil Junqueira assevera que o art. 421 do CC é insuficiente por várias razões. Uma delas é porque não se sabe se se trata de norma cogente ou norma dispositiva. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto do Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais. ano 89, v. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais. maio de 2000, p. 12.

41

humana”94. Na concepção de Ovídio Baptista da Silva o preceito contido no art. 14, inciso II,

do CPC é uma manifestação do princípio geral de boa-fé objetiva que se constitui, mais do

que um princípio, é o verdadeiro oxigênio sem o qual a vida do direito seria impossível.95

Tomando de empréstimo a expressão formulada por Dinamarco em “A nova era do Processo

Civil” pode-se dizer que boa-fé objetiva também busca no processo civil “satisfazer o senso

do justo e do razoável [...] Ousar sem o açodamento de quem quer afrontar, inovar sem

desprezar os grandes pilares do sistema”.96

É esse “fenômeno espantoso”, denominado boa-fé objetiva, que no seu multissignificativo

conteúdo possibilita a concretização do fair trial , do fair play, que será mais bem desnudado

nas páginas que se seguem.

94 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 261. 95 SILVA, Ovídio Araújo Baptista. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. I. p.110. 96 DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 31.

42

Capítulo II - A Teoria dos Modelos de Miguel Reale e sua Aplicação para Identificar um

Modelo Jurisprudencial de Boa-Fé Objetiva no Processo Civil.

Sumário: 2.1. Notas introdutórias – 2.2. A construção dos modelos jurídicos – 2.3.

Classificação dos modelos jurídicos – 2.4. Dinâmica dos Modelos Jurídicos – 2.5. A opção

por modelos abertos

2.1. Notas Introdutórias.

Haveria um modelo de boa-fé objetiva na jurisprudência brasileira? Para o deslinde dessa

questão mister se faz compreender a Teoria de Miguel Reale concernente à concepção dos

modelos jurídicos jurisprudenciais.

A Ciência Jurídica assume nova feição à medida que os fatos, os valores e as normas, que

compõem a vida do direito, são alterados de modo inter-relacional. Exemplo disso, são as

repercussões ocorridas nas fontes do direito advindas das transformações político-econômicas

que mudaram o cenário das relações Estado-Sociedade ao longo da história. A mudança do

objeto (o direito) e também a forma de investigá-lo (a ciência jurídica) decorre, por exemplo,

da prioridade atribuída a cada um desses fatores em relação aos outros, bem como da

correlação dialética entre os mesmos.1

Para o entendimento dessa relação dialética e dinâmica na linha do tempo, Miguel Reale

destaca a importância das idéias de Benedetto Croce para a “compreensão histórica, ou, por

melhor dizer, historicista do Direito, a cuja luz este se apresenta como um ordenamento

concreto em constante mutação, isto é, não como simples conglomerado sistemático e

logicamente coerente de normas ou proposições normativas, mas antes como realidade social

viva, em pleno desenvolvimento.” 2

1 REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol. LVIII. 1982, p. 791. 2 Idem. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 2. Destaques no original.

43

Segundo Reale, para Croce “toda regra é a ‘previsão de uma classe de comportamentos

futuros”3 Nesse panorama, Reale põe em destaque que:

“[...] nessa nova conjuntura histórica, sentiu-se a necessidade de uma nova Dogmática Jurídica, revelando-se insuficiente uma solução redutível a meras regras hermenêuticas, ou à simples valorização desta ou daquela outra fonte tradicional: fortaleceu-se, em suma, cada vez mais a exigência do repensamento e revisão da teoria das fontes, para atender-se através de estruturas normativas plásticas e pluralistas, aos novos e diversificados objetivos sociais e políticos.”4

Tal fato culmina, segundo Reale, com um novo enfoque no conceito de fontes e de estrutura

normativa, havendo o superamento do conceito de fonte material, “que deu lugar

definitivamente a distintos conceitos como os de fundamento ético, sociológico, histórico etc.

do Direito. Superava-se, em suma, o horizonte legislativo, para nos elevarmos ao horizonte

normativo.” Reale chega a essa conclusão ao analisar a Teoria Pura do Direito de Kelsen.

Como ele mesmo adverte, pode parecer paradoxal “que num contexto histórico tão denso de

elementos factuais e axiológicos” destacar “uma doutrina que reivindicou não o Direito Puro

[...] mas a Ciência Jurídica pura”. Entretanto, Reale ressalta que, para ele, a inovação

fundamental de Hans Kelsen, nesse universo, foi a “unificação do conceito lógico de norma,

abrindo lugar para uma nova e mais rica abrangência do campo normativo”.5

Reale aponta como primeiro mérito de Kelsen a mudança de foco na teoria das fontes, que

deixa de ter a lei como ponto de referência e passa a abarcar distintas espécies normativas tais

como as decisões judiciais. Aquilo que era ‘formalmente’ ou ‘essencialmente’ jurídico foi

confiado aos juristas.6

De acordo com Reale, “[...] essa redução concomitante das leis, dos costumes jurídicos e das

decisões judiciais, com acréscimo das estipulações contratuais, ao denominador comum da

proposição jurídica [...]”7 trouxe um novo enfoque para a teoria das fontes que passa a ter

implícito em seu conceito o de “estrutura normativa”.

3 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 10. 4 REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol. LVIII. 1982, p. 795. 5 Ibidem. pp. 795- 796. Todos os destaques no original. 6 Ibidem. p. 796. 7 Ibidem. p. 796. Todos os destaques no original.

44

Segundo Reale, “nos domínios das ciências jurídicas, a teoria das estruturas culmina

necessariamente, numa teoria dos modelos, entendido como ‘estrutura normativa’.”8

As estruturas normativas, agora, precisam ser conformadas de modo a que tenham uma

aplicação prospectiva, ou seja, a aplicação dessas estruturas precisa atender a demandas

futuras. Para tal concepção, Reale sustenta que a Ciência Jurídica precisa ser visualizada

segundo a “Teoria dos Modelos”.

“[...] a teoria das fontes deve ficar adstrita ao momento genético das ‘estruturas normativas’, as quais condicionam a existência de diversos ‘modelos jurídicos’. Não se trata, a bem ver, de substituir as fontes pelos modelos, mas de correlacioná-los a partir da observação fundamental de que as fontes são retrospectivas (volvem-se para a origem da norma) enquanto que os modelos são prospectivos: referem-se à norma enquanto esta se atualiza, assumindo distintos valores semânticos, ainda que não ocorra qualquer mudança no seu enunciado verbal.”9

Ao analisar a acepção dos termos ‘estrutura’ e ‘modelo’, Reale destaca que “[...] uma

estrutura adquire a qualidade de modelo quando, além de representar, unidiversificadamente,

dado complexo de significações, se converte em razão de ser ou ponto necessário de partida

para novos juízos futuros [...] ou, então, a novas valorações, como acontece no plano das

ciências humanas, no do Direito, em particular.”10

No que tange às fontes formais do direito e os modelos jurídicos, Reale aduz que os modelos

jurídicos apresentam-se como uma nova perspectiva para a teoria das fontes formais do

direito, uma vez que a sociedade contemporânea, dinâmica e plural tal qual se apresenta,

reclama por estruturas-modelos que venham a abarcar as diversas e complexas questões que

afloram, bem como que atendam às “exigências de unidade metodológica da Ciência.”11.

Importa ressaltar que os modelos jurídicos não substituem as fontes antes lhes dão o conteúdo

na concretização da experiência social. A retrospectividade das fontes jurídicas está no fato de

as mesmas ficarem adstritas ao momento genético, momento da criação, enquanto que os

modelos jurídicos são prospectivos, visto que a sua dinamicidade acompanha a dinamicidade

das mutações ocorridas na sociedade.

8 REALE Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 147. 9 REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol. LVIII. 1982, p. 797. 10 Idem. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 7. 11 Op. cit. p. 167, nota 8.

45

Nesse sentido, Reale afirma que:

“[...] o conceito de ‘modelo’ nos põe perante um momento autônomo da vida do direito, quando a experiência jurídica se expande ou se projeta em formas objetivas ou positivas, consubstanciando-se em estruturas racionais, nas quais os elementos da estrutura social são focalizados segundo um repertório ou classe de comportamentos válidos numa totalidade de sentido.”12

Ao traçar um paralelo entre as fontes jurídicas e os modelos jurídicos Reale destaca que:

“[...] o conceito de fonte jurídica é retrospectivo, enquanto o de modelo jurídico é prospectivo; - na teoria das fontes prevalece o aspecto técnico-formal da vigência das normas, ao passo que na dos modelos predomina o seu caráter operacional, em função da eficácia dos comportamentos; a primeira ordena-se segundo uma escala linear e hierárquica, que desce da lei até a cláusula negocial, enquanto, à luz da segunda, constituem-se e movem-se os modelos jurídicos, os quais se ordenam, de maneira plural, na esfera do modelo legal, este sempre em expansão, compondo todos, em conjunto, o macromodeo do ordenamento; - na teoria das fontes, as normas legais fixam os limites da validade formal das fontes secundárias, enquanto, na teoria dos modelos, o significado dos modelos legais é potencializado pelo das normas subordinadas e vice-versa, ocorrendo as mutações do sentido de um e de outros em uma correlação funcional; a teoria dos modelos, em suma, expressa a experiência jurídica em toda a sua concreção e dinamicidade, atendendo, além do mais, à dupla exigência do saber científico de operabilidade e comunicação.”13

Pode-se inferir que na dinamicidade da sociedade que exige uma pluralidade de soluções

sociais, políticas e jurídicas a teoria dos modelos jurídicos vem atender à exigência dessa

articulação entre a ciência jurídica e as relações ocorrentes no seio social. Os modelos

jurídicos têm essa notável aptidão de moldar essa multiplicidade de situações da estrutura

social ao modelo legal numa relação harmônica de operabilidade e ordenação mesmo com o

transcorrer do tempo.

Conforme assinalado por Reale, os modelos jurídicos representam o conteúdo das fontes

“como dever-ser que se concretiza na experiência social, correlacionando-se com conjunturas

factuais e axiológicas.”14

Com o dinamismo da sociedade atual, em que novas relações emergem com velocidade cada

vez maior, as estruturas construídas precisam ser revistas com freqüência para abarcar as

novas exigências que afloram cotidianamente no seio dos grupos sociais. A ciência do direito

12 REALE, Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 172. 13 Ibidem., p. 173. 14 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 31.

46

não pode quedar-se apática a essas novas realidades, antes precisa encontrar contornos que

assegurem perfeita adaptabilidade às peculiaridades da experiência dinâmica.

2.2. A Construção dos Modelos Jurídicos

No contexto das relações sociais os indivíduos subordinam-se a modelos de comportamentos

estipulados tanto por regras costumeiras, cristalizadas na convivência do grupo, quanto por

normas estabelecidas pelo ordenamento jurídico estatal. Independentemente de sanção

heterônoma, portanto, tais modelos impõem comportamentos almejados pelo grupo social aos

que se destinam. Formulando uma análise sociológica, Reale aponta que:

“Os indivíduos que se situam no âmbito de uma estrutura social absorvem, uns mais outros menos, os standards ou esquemas de ação esperados ou desejados no seio de seu grupo de tal modo que tais modelos se tornam forças efetivas atuantes no comportamento de cada um, independentemente de sanções externas. Constituem-se assim ‘sistemas de expectativas normativas’, com diversos graus de eficácia, até às de tipo mais estável e solidário, dotadas de uma ‘base de legitimidade’, admitida ou reconhecida pelos participantes, como se dá com as instituições, ou modelos institucionais.”15

Nesse contexto, vale trazer os apontamentos de Marcela Varejão sobre as lições de Manuel

Atienza e Juan Ruiz Manero :

“A terceira aproximação consiste em considerar a norma não em termos de casos ou soluções, nem em termos de razões de agir, mas em conexão com os interesses e as relações de poder existentes na sociedade. De um lado, a norma jurídica pode ser considerada como o resultado ou o efeito de determinadas relações sociais, de outro lado, as normas jurídicas modelam as relações intersubjetivas atribuindo poderes e protegendo interesses de alguns sujeitos em relação a outros. Enfim, o poder que as normas jurídicas colocam à disposição de certos indivíduos (ou grupos) é empregado para modificar (ou, em geral, para incidir sobre) as próprias relações sociais. [...]”.16, 17, 18

15 REALE, Miguel.O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 153. 16 ATIENZA, Manuel, MANERO, Juan Ruiz. Tre approci ai principi nella vita dell diritto in P. COMANDUCCI, R. GUASTINNI (a cuta di), Analisi e diritto. 1993, apud VAREJÃO, Marcela. I Modelli Giuridici e L’ermeneutica in Miguel Reale in Rivista internazionale de filosofia del diritto. Milão: Giuffrè editore, V. LXXII, série IV, out./dez. 1995, pp. 832-833, nota de rodapé n. 6. 17 No original: “Il terzo approccio consiste nel considerare le norme non in termine di casi e soluzione di ragioni per agire, ma in connessione com gli interessi e le reazione di potere esistenti nella società. Da um lato, le norme giuridiche possono considerarsi come il resultato o l’effetto di determinati rapporti sociali; dall’altro, lê norme giuridiche modellano lê relazioni iersoggetive attibuendo poteri e proteggendo interessi di alcuni soggeti nei confronti di altri. Infine il potere che lê norme giuridiche mettone a disposizione di certi indivudui (o gruppi) è da loro impigato per modificare (o, in generale, per incidere su) i propri rapporti sociali. [...].”

47

Essa relação dinâmica dos modelos jurídicos com as mutações sociais foi inicialmente

apontada pelos jurisconsultos romanos ao tomarem “plena consciência da existência de

formas de conduta reiteradamente seguidas por uma comunidade e como tais, suscetíveis de

serem objeto de uma disciplina normativa.”19 À luz dos modelos “as prescrições jurídicas

adquirem objetividade transpessoal, correlacionando-se entre si harmonicamente, como

expressões dos valores comuns de convivência”.20

Nesse sentido, Reale destaca que:

“[...] a pré-determinação jurídico-normativa da conduta humana pressupõe a correlação de dois valores aparentemente contrários, que consistem, de um lado, na liberdade de agir e, de outro, na subordinação da ação a determinados parâmetros, considerados obrigatórios em virtude de uma opção constante ou relativamente duradoura no quadro de análogas conjunturas (e é o que ocorre na esfera do Direito costumeiro) ou, então, por ter havido uma ‘opção de poder’ em função de determinado resultado considerado legítimo e reclamado pelo interesse público.”21

Dentro deste contexto, existem estruturas estáticas, já construídas, que não atendem às

expectativas sociais o que impõe a criação de modelos que “indicam a direção desejável da

ação, sob a forma de fins e standards de comportamentos.”22

No campo da experiência jurídica Reale salienta que as estruturas sociais apresentam-se como

‘sistemas de modelos’ compreendidos como “estruturas normativas que ordenam fatos

segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos futuros, a que se ligam

determinadas conseqüências.”23, 24

18 A primeira e a segunda aproximação são apontadas por Reale para quem as normas precisam ser dotadas de obrigatoriedade e devem explicitar não apenas os comportamentos, mas também as competências. 19 REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova Fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 164. 20 Idem., Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 18. 21 Op. cit., pp. 164-165, nota 18. 22 Reale lança mão dos ensinamentos de Parsons para descrever a formação das estruturas, para quem “o conceito de estrutura importa no de função, cujo papel crucial é fornecer o critério e a importância de fatores dinâmicos e dos processos, no interior do sistema: ‘a idéia de função, escreve ele, implica o conceito do sistema empírico como um sistema em movimento. A sua estrutura é construída por um sistema de modelos determinados que a observação empírica revela como tendentes a ser conservados, dentro de certos limites, ou, segundo uma interpretação mais dinâmica, como tendentes a se desenvolver segundo um modelo empiricamente constante (...).’’ PARSONS, Talcott. La théorie sociologique systématique et sés perspectives in La Sociologie au Xxe Siècle, p. 49. apud REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, pp. 152-153. 23 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 162. 24 Nesse mesmo sentido em REALE, Miguel. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p.17.

48

Na teoria realiana “Os modelos jurídicos se estruturam graças à integração de fatos e valores

segundo normas postas em virtude de um ato de escolha e de prescrição (ato decisório) [...]

que pode ser tanto do legislador ou do juiz, como resultar de estipulações fundadas na

autonomia da vontade.”25

A elaboração de modelos está intrinsecamente relacionada à experiência “num trabalho

rigoroso e delicado de qualificação tipológica, que representa o cerne da pesquisa

científica.”26 Trata-se de uma análise dinâmica de fatos concretos por meio da qual se busca

conhecê-los empiricamente e revelá-los como tendentes a serem conservados em

acontecimentos futuros.

“[...] é indispensável que o paradigma normativo seja isomórfico em relação à experiência social, e que como tal se mantenha através das mutações operadas nela, compreende-se a exigência metodológica de uma qualificação tipológica da conduta humana, segundo critérios cada vez mais objetivos e seguros.”27

Os modelos jurídicos são fruto da experiência jurídica. Não se concebe modelos jurídicos

divorciados da realidade. Eles são a expressão das soluções normativas que equacionam fatos

e valores, num trabalho engenhoso do jurista de fazer a conciliação destes com a norma

levando-se em conta o momento em que tal ocorre, ou seja, em conformação com os

paradigmas vigentes. Na vida dos modelos jurídicos, conforme concebe Reale, “[...] o valor

opera sempre como mediador entre o fato e a norma, não se inserindo como componente de

nenhum desses dois termos.”28

A construção de modelos jurídicos vem, pois, ao encontro da necessidade da desconstrução de

institutos vigentes, com a mudança de paradigmas e maior aderência à realidade a qual se

destina. “Ao falar-se em modelo, no âmbito da ciência do direito [...] se deve pensar em algo

que implica, de per si, a projeção de comportamentos intersubjetivos referíveis à prefiguração

normativa positivada, com a correlação necessária entre a norma e situação normada, sentido

e efetividade de sentido, o que põe em realce a sua conotação ética.”29

25 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 163. 26 Ibidem., p. 165. 27 Ibidem., pp. 166. 28 REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 168. 29 Op. cit., pp. 177-178, nota 25.

49

E prossegue Reale: “Que fizeram, na realidade, os legisladores e juristas, séculos a fio, senão

plasmar, em estruturas normativas, renovadas porções ou momentos da vida humana? E, na

prática, que tem sido a atividade dos advogados e dos juízes senão um permanente cotejo

entre situações concretas e os modelos objetivados nos códigos e nas leis, nos precedentes

jurisprudenciais, nas cláusulas dos testamentos e dos atos negociais?”30

Reale exorta que “[...] já não se pode conceber a atividade jurisdicional divorciada dos

modelos teóricos que a Ciência Jurídica constitui, interpretando de maneira sistemática as

normas legais, à luz de fatos e valores originais ou emergentes de estruturas sociais.”31

Para melhor compreensão, ele esclarece a relação existente entre estrutura e modelo no

mundo jurídico:

“Estrutura é uma ordenação de elementos interdependentes em função do todo, e de meios correlacionados numa unidade de fins.” [...] Se dada estrutura serve de base a uma série ordenada e conjugada de atos tendentes a alcançar certos objetivos visados, dizemos que ela tem o valor de um modelo. [...]” “Modelo é, pois, uma estrutura paradigmática que implica as diretrizes de ação indispensáveis à consecução do objetivo proposto ou querido.”32 “[...] quando uma estrutura social adquire valor de paradigma, pondo-se como padrão ou razão de comportamentos futuros, ela assume as características de uma estrutura normativa, ou seja, de um modelo social (político, jurídico etc.) Todo modelo social, e o jurídico em particular, é uma estrutura dinâmica e não estática: é-lhe inerente o movimento, a direção no sentido de um ou mais fins a serem solidariamente alcançados.”33

Para compreender a concepção da palavra “paradigma”, Reale traz à colação os ensinamentos

de T. Kuhn, para quem paradigma é a “idéia mestra segundo a qual se torna necessário

proceder a uma revisão de muitas teses ávidas como assentes, quer para substituí-las, quer

para retificá-las.”34, 35

30 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 178. 31 Idem., Jurisprudência e doutrina In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 19. 32 Ibidem, p. 19. 33 Ibidem, p. 20. Todos os destaques no original. 34 Citação de Miguel Reale em Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: Saraiva. 1996, p. IX. 35 “No caso do direito (o direito posterior à Revolução Francesa) – e isso é senso comum – aquele paradigma do século passado, da lei e do juiz autômato, da lei geral universal, em que o juiz não tinha papel algum, ficou ultrapassado. Veio, então, um segundo paradigma, no qual o juiz ganhou um papel importante – o que é revelado, inclusive, pela quantidade de trabalhos de hermenêutica – e que trouxe mudanças no tipo de solução. E é isso que Kuhn diz a propósito do paradigma: que paradigma é uma espécie de modelo de problema e de solução que os operadores de uma determinada área de conhecimento usam para as questões com que se defrontam. O paradigma, na visão de Kuhn, é um modelo teórico que serve a um grupo,, que se dedica a algum tipo de conhecimento, para solucionar os problemas que se apresentam.” AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto do Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais. ano 89, v. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais. maio de 2000, p. 16.

50

Não sem razão que Reale sempre põe em evidência que:

“[...] os processos e métodos de criação do direito são retrospectivos, visto como apontam para os fatos e valores passados que condicionaram o aparecimento das regras que devem ser aplicadas. Os modelos jurídicos, ao contrário são prospectivos, uma vez que representam, em síntese, uma previsão de determinado comportamento futuro, considerado necessário toda vez que determinado fato vier a acontecer: o modelo visa, pois, à realização de um ato futuro, exigido em razão do bem comum, cujo valor objetivo e atualizado prevalece sobre a intenção originária do órgão que o instaurou.”36 “[...] normas jurídicas e modelos jurídicos não são termos sinônimos, sendo estes espécies, ou melhor, especificações ou tipificações daquelas. Pode um modelo jurídico coincidir, às vezes, com uma única norma de direito, quando esta já surge como uma estrutura, denotando e conotando, em sua formulação, uma pluridiversidade de elementos entre si interligados numa unidade lógica de sentido, mas geralmente, o modelo jurídico resulta de uma pluralidade de normas entre si articuladas compondo um todo irredutível às suas partes componentes.”37 “[...] os modelos jurídicos representam uma nova linguagem expressiva do conteúdo normativo das fontes do direito, ou, por outras palavras, que o conteúdo normativo das fontes é melhor captado quando compreendido no sentido de modelos, os quais constituem sempre como estruturas postas em razão dos fins que devem ser realizados, sendo-lhes, pois, inerente um sentido prospectivo de dever-ser (Sollen), tal como é o próprio direito, em que pesem as tentativas fisicalistas de reduzi-lo apenas ao que é (Sein).”38

Segundo Reale a característica mais marcante dos modelos jurídicos “é a sua natureza

prescritiva [...], ou seja, a sua específica e precisa função prática de reger, de maneira

objetiva, atos futuros.”39

“[...] os modelos jurídicos [...] são [...] o resultado da ordenação racional do conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes do direito, para atender aos característicos de validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva dessas normas.”40 [...] “[...] há um sentido prospectivo ou vetorial em todo modelo jurídico, pois [...] este é sempre de natureza normativa, e toda norma é emanada para reger atos ou acontecimentos futuros.”41

Ao usar a expressão ‘modelo jurídico’ Reale adverte que não está a se referir a “nenhum

protótipo ideal, em algo que se ponha como alvo superior a ser atingido. Os modelos jurídicos

são antes modelagens práticas da experiência, forma do viver concreto dos homens, podendo

36 REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978, pp. 54-55. 37 Idem., Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, pp. 29-30. 38 Ibidem, p. 30 39 Ibidem, p. 37. 40 Ibidem. p. 40. 41 Ibidem, p. 48.

51

ser vistos como estruturas normativas de fatos, segundo valores, instauradas em virtude de um

ato concomitante de escolha e prescrição.”42

Tendo por marco que “se o direito existe, é porque as atividades sociais se desenvolvem

segundo determinados esquemas de comportamento suscetíveis de previsão, devendo sobrevir

conseqüências iguais ou análogas toda vez que se verificarem atos qualificáveis devido ao seu

enquadramento em estruturas iguais ou análogas [...]” 43 Reale reafirma a Teoria dos Modelos

Jurídicos contemporânea segundo a qual “a experiência do direito se desenrola segundo

modelos ou estruturas normativas, sendo umas de natureza prescritiva e outras de caráter

doutrinário ou dogmático. Os casos concretos, portanto, direta ou indiretamente, subsumem-

se a classes de conduta previamente previstas ou enquadráveis em esquemas análogos, graças

à contribuição mediadora e criadora do intérprete.”44

Miguel Reale põe em relevo que “as estruturas sociais apresentam-se sob a forma de

estruturas normativas ou sistemas de modelos” 45 para as quais a hermenêutica jurídica

propõe soluções jurídicas que “acompanham pari e passu os processos de transformação da

sociedade e do Estado.”46 Essa dinamicidade da revelação do conteúdo do direito emana dos

valores histórico-culturais de cada época fixando as normas e os limites da exegese do Direito

de cada época.47 “[...] toda Hermenêutica Jurídica é sempre expressão da estrutura histórico-

cultural na qual ela se insere e se desenvolve, só podendo e devendo ser apreciada no

respectivo contexto.”48

Para a perfeita compreensão e alcance dos conteúdos normativos, faz-se mister fixar o

momento ao qual os mesmos se destinam, uma vez que “a clareza do Direito é uma categoria

42 REALE, Miguel.Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol. LVIII. 1982, p. 798. 43 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p.13. 44 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 13. 45 Idem. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p.17. 46 Idem. Para uma hermenêutica jurídica estrutural In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 72. 47 Ibidem, p. 72. 48 Ibidem, pp. 74-75.

52

histórica, variável segundo a posição do intérprete, em função da superveniência de novos

fatos e novas tábuas de valores.”49

“Modelos jurídicos são, em suma, os que surgem na experiência jurídica como estruturação volitiva do sentido normativo dos fatos sociais; modelos do Direito ou dogmáticos são estruturas teoréticas, referidas aos modelos jurídicos, cujo valor eles procuram captar e atualizar em sua plenitude. Em ambas as hipóteses, todavia, por mais que se distingam os objetivos que os põem in esse, há uma nota comum, que é a natureza operacional própria dos instrumentos de vida e convivência humana, governando tanto a intencionalidade volitiva dos modelos jurídicos como a intencionalidade teorético-compreensiva dos modelos dogmáticos.”50 [...] “Elaborar um modelo jurídico é, por conseguinte, um trabalho de aferição de dados da experiência para a determinação de um tipo de comportamento não só possível, mas considerado necessário à convivência humana. [...] entre o modelo jurídico preferido ou reconhecido pela experiência deve haver uma correspondência isomórfica, como condição de seu êxito operacional ou de sua efetividade. De certo modo, por presumir-se que o modelo jurídico corresponda a um conjunto motivacional fundado na análise objetiva de fatos sociais, como paradigma de comportamentos normalmente previsíveis, proclama-se entre outras razões, a obrigatoriedade universal do direito, não se admitindo, em regra, a ignorantia juris como excusa de seu não-adimplemento.”51

A construção dos modelos jurídicos relaciona-se diretamente com as exigências que emergem

da realidade social devendo haver uma perfeita imbricação entre as relações intersubsujetivas

e as estruturas normativas numa modelação prospectiva a qual os comportamentos devem se

conformar.

Os modelos jurídicos possuem como característica natural e própria a plasticidade, que lhes é

inerente em razão de serem instrumentos que expressam as estruturas sociais, que exigem de

per si dinamicidade.

Nesse cenário, os modelos jurídicos são construções representativas da aliança entre o

conteúdo normativo e a realidade social, numa relação dinâmica e inter-relacional, albergando

as mutações tanto de sentido quanto de valores que venham a emergir da realidade social. Os

modelos jurídicos, em razão dessa plasticidade e dessa prospectividade, mantêm-se sempre

atuais, projetando-se ou expandindo para estarem adaptados à realidade, fato esse que os

fazem sobrepujar as fontes.

49 REALE, Miguel. Para uma hermenêutica jurídica estrutural In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 76. 50 REALE, Miguel. Para uma hermenêutica jurídica estrutural In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p.18. 51 Idem. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 20.

53

2.3. Classificação dos Modelos Jurídicos

Reale põe em realce a diferenciação necessária entres as fontes do direito e as estruturas

jurídicas representadas pelos modelos jurídicos. Enquanto o conceito de fonte é retrospectivo

os modelos jurídicos são prospectivos e podem possuir classificações distintas, em função das

fontes das quais promanam, em legais, jurisdicionais, consuetudinários e negociais.

Entretanto, os modelos jurídicos não ficam vinculados às fontes que lhes deram origem, pois

precisam estar continuamente adaptados à multiplicidade dos fatos sociais. 52

Segundo a teoria realiana, os modelos de direito podem ser classificados em duas espécies: os

modelos dogmáticos ou hermenêuticos, de caráter puramente teórico; e os modelos jurídicos

(stricto sensu), que possuem caráter prescritivo e obrigatório. Nestes, “existe a previsão ou a

prefiguração de uma ‘ordem de competências’, ou, então, de uma ‘ordem de conduta’, estando

sempre determinadas as conseqüências que advêm de seu adimplemento, ou de sua

violação.”53

Os modelos, lato sensu, em razão dessa natureza prospectiva, permitem uma visão antecipada

dos resultados a serem alcançados por meio de uma seqüência ordenada de medidas ou

prescrições.54 “Cada modelo expressa, pois, uma ordenação lógica de meios e fins.”55

Reale destaca que “modelo jurídico pode se expresso por uma única regra de direito, ou por

um conjunto de regras interligadas [...] : em ambos os casos, porém, há sempre uma ‘estrutura

normativa’ constituindo uma unidade de fins a serem atingidos, em virtude da decisão tomada

pelo emanador do modelo.”56

Os modelos podem ser classificados como modelos jurídicos e modelos dogmáticos. Os

modelos jurídicos veiculam uma diretriz a ser seguida sendo, pois, prescritivos. Entretanto, a

sua prescritibilidade não se relaciona com vinculabilidade. Por prescrição deve-se entender,

dentre outros, os seguintes significados: 52 REALE, Miguel. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 23. 53 REALE, Miguel. Da teoria das fontes à teoria dos modelos do direito. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Estudos em Homenagem aos Profs. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga . Vol. LVIII. 1982, p. 798. 54 Ibidem., p. 797. 55 Ibidem., p. 798. 56 Ibidem., p. 798.

54

“[...] impositivo, que vincula o destinatário a único esquema de conduta; o interpretativo, que determina o significado obrigatoriamente atribuível a um dispositivo legal, o programático, que abre um leque de possibilidades de ação segundo um plano traçado de maneira genérica; o dispositivo, que prevê uma solução típica, aplicável na hipótese de não ter sido prevista outra pelos interessados, ou ser inviável a via por eles escolhida etc.”57

Já os modelos dogmáticos ou hermenêuticos “[...] são, fundamentalmente, ‘estruturas

teóricas’, às quais cabe, de maneira primordial, a função interpretativa dos mencionados

modelos prescritivos, bem como dos processos de sua aplicação eficiente e justa.”58 Judith

Martins-Costa explica que a elaboração dos modelos dogmáticos ou hermenêuticos é

doutrinária e “cuja força é indicativa, argumentativa e persuasiva”.59

Ao traçar a diferença entre modelos jurídicos prescritivos e modelos jurídicos dogmáticos

Reale assevera que “os primeiros dotados de imperatividade, como estruturas ou formas de

poder, originário ou derivado (modelos legais, costumeiros, jurisprudenciais e negociais) e os

segundo correspondentes a esquemas doutrinários não-cogentes, cuja função consiste em

dizer o que os modelos jurídicos significam e quais conseqüências eles devem resultar ‘in

concreto’.”60 Na jurisprudência pátria, entretanto, constata-se uma forte influência do

bartolismo, referência feita ao português Bartolo de Saxoferrato, ao invocar a doutrina na

construção das decisões. Judith Martins-Costa destaca que “entre nós os juízes recorrem, em

suas decisões a largas citações da doutrina, nacional ou estrangeira. Por esta via, os modelos

doutrinários, largamente aceitos pela jurisprudência, são convertidos em modelos jurídicos

jurisprudenciais, estes sim marcadamente prescritivos, graças ao poder constitucionalmente

conferido ao juiz [...]”61.

Os modelos jurisdicionais são resultantes “do poder jurisdicional caracterizado pela

congruência de uma multiciplicidade de decisões judiciais.”62 São construídos na práxis

57 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, pp. 180-181. 58 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 180. 59 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 350. 60 REALE, Miguel. Jurisprudência e doutrina In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 18. Destaques no original. 61 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 352. 62 REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 31.

55

jurídica no incansável ofício dos juízes de interpretar as soluções normativas e aplicá-las ao

caso concreto.

2.4. Dinâmica dos Modelos Jurídicos

Os modelos jurídicos são de extrema importância na prestação da tutela jurisdicional, pois

como afirma Reale “o modelo jurídico pode ser tanto uma norma como um conjunto de

normas, desde que haja uma estrutura normativa que represente uma unidade de fins a ser

atingida, como síntese das decisões tomadas, o que pressupõe uma forma de poder de

decidir.”63 Nesse passo “os modelos jurídicos não são nenhum protótipo ideal ou como um

alvo a ser atingido, “são antes modelagens práticas da experiência, formas do viver concreto

dos homens”.64 “[...] são antes estruturas normativas talhadas na concretitude da experiência

humana. São formas típicas plasmadas em contacto permanente com a vida humana, mudando

ou desaparecendo em função dos fatos e valores que nela operam.”65

Corroborando esse entendimento, Reale afirma que “[...] quando se fala em modelo, na

Epistemologia contemporânea, não se pensa em um protótipo ou modelo ideal, em termos

platônicos ou mesmo weberianos, mas sim em uma estrutura que compendia sinteticamente as

notas identificadoras ou distintivas de dado segmento da realidade, a fim de ter-se dele uma

base segura de referência no plano científico.”66 Seguindo essa compreensão “o modelo

jurídico [...] indica [...] o fim ou os fins concretos que se inserem no dever ser do Direito

correspondente ao complexo de regras objetivadas ou formalizadas segundo os requisitos

exigidos pelo ordenamento jurídico para que se possa falar em fonte de Direito.”67

Reale ressalta, entretanto, que quando se refere aos modelos jurídicos, no âmbito da ciência

do Direito, “sem os considerar meros esquemas lógicos representativos da realidade social,

nem arquétipos ideais a serem alcançados [...]” ele está “[...] tratando dos modelos jurídicos

63 REALE, Miguel. Estrutura e fundamento da ordem jurídica In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, pp. 26-27 64 Ibidem, p. 27. 65 Ibidem, p. 28. 66 Idem., Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 37. Nesse mesmo sentido em Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 32. 67 REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 32.

56

enquanto elementos operados pelo jurista em sua faina de juízes, advogados ou

administradores”.68

Dessa forma, os modelos jurídicos se apresentam como “o resultado da ordenação racional do

conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes do Direito, para atender aos

característicos de validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva dessas mesmas

normas.”69 Como o ordenamento jurídico “constitui-se como integração normativa cujos

elementos se articulam racionalmente”70 “a configuração de um modelo jurídico implica o

estudo de distintos processos normativos que, por sua natureza ou finalidade, exijam reductio

ad unum, isto é, interpretação e aplicação conjuntas.”71

Reale reafirma que:

“Os modelos jurídicos – ao contrário dos modelos dogmáticos [...] - não são meros entes conceituais, ou esquemas lógicos de qualificação de tipos de conduta social, mas são as relações sociais mesmas enquanto se tornam estruturas normativas. [...] os modelos jurídicos são antes a realidade social mesma, enquanto conjunto de estruturas normativas, cada um deles correspondente a uma classe de comportamentos possíveis, tão certo como o Direito é norma e situação normada, num só ato de concreção. Destarte, todo pensamento jurídico opera segundo modelos, uns já postos ou vigentes, outros reclamados pela experiência social.”72

Ao tratar das repercussões que o dinamismo das transformações sociais traz para o

ordenamento jurídico, Reale observa que existe um aparente antagonismo que as normas

jurídicas precisam conciliar: a preservação da estabilidade e a garantia do movimento e do

progresso.73 Nas sociedades em mudança, a ordem jurídica precisa estar perfeitamente

estruturada para dar as respostas às novas demandas que emergem do meio social, o que

exige, também dinamismo na feitura e na aplicação das leis de modo a que essas não se

tornem obsoletas frente às novas demandas oriundas da multifacetada sociedade.

68 REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 42. 69 REALE, Miguel. Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 34. 70 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 34. 71 Ibidem, p. 34. 72 REALE, Miguel. Para uma teoria dos modelos jurídicos In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 24. 73 Idem., A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 52.

57

Essa insuficiência do direito em retratar a multiciplicidade das situações oriundas da vida de

relações também foi apontada por Caio Mário da Silva Pereira ao afirmar que “não seria

possível enclausurar na estática rigidez dos textos, o dinamismo do direito, consectário da

instabilidade da vida. Cada geração encontra novos problemas a resolver, novas idéias;

surgem sempre situações imprevistas, e é preciso que o direito possa dar-lhes assistência.”74

Sob esse enfoque, Reale põe em relevo que esse dinamismo social tem especial repercussão

na teoria dos modelos jurídicos ante a necessidade de atualização das formas jurídicas para

melhor correspondência à realidade.75 Ademais, “[...] a correlação entre o modelo e o que é

modelado [...] justifica e exige a substituição de um normativismo jurídico lógico-formal por

um normativismo concreto. Por outro lado, como os fatos e valores, que informam o conteúdo

do modelo, se subordinam à emergência de novas configurações factuais, como é próprio dos

entes prospectivos [...]”76 o que exige que a norma seja concebida na dialeticidade dos fatos e

valores que devem integrar as estruturas normativas.77

Reale adverte que:

“[...] a teoria dos modelos jurídicos não se exaure no plano lógico-formal ou pragmático, implicando, obrigatoriamente, a análise das estruturas normativas em função da vida jurídica, tanto no aspecto científico de sua ‘configuração normativa’ [...] como mesmo antes ou depois dessa estatuição lógico-normativa, ou seja, quando o comportamento individual e o social vão adquirindo e preservando ‘determinadas formas de querer e de agir’ dotadas de difusa força cogente.”78

Isso implica um constante construir e reconstruir dos modelos jurídicos para uma perfeita

aderência à realidade social.

74 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Boa-fé I. In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 11. FRANÇA, R. Limonge (Coord.). São Paulo: Saraiva. 1977, p. 485. 75 REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978,p. 54. 76 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p 34. 77 Ibidem., p. 35. 78 REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 164.

58

2.5. A Opção por Modelos Abertos

Com vistas a abarcar um leque maior de situações oriundas do cotidiano, tem sido mais

recorrente a opção por modelos jurídicos abertos, ou seja, estruturas normativas plásticas, sem

conteúdo previamente definido, cujos contornos são traçados à vista das decisões proferidas

na solução do caso concreto. Dada a sua principal característica ser a elasticidade, permite que

diferentes situações possam aí se conformar dando maior dinamismo ao sistema jurídico.

Reale põe em relevo que:

“[...] esse processus de correção progressiva do conteúdo dos modelos jurídicos só é possível porque estes, sobretudo em se tratando de modelos jurídicos abertos, cada vez mais dominantes no Direito contemporâneo, possuem uma virtude expansiva, ou ‘elasticidade’, conforme terminologia de Pontes de Miranda, que permite a adaptação de regra do direito a novas situações emergentes, sem mudança em sua estrutura morfológica. É claro, porém, que chegado a certo estágio evolutivo, torna-se impossível essa ‘autocorreção normativa’, impondo-se a revogação do modelo jurídico, o que poderá implicar ou não em sua substituição. O certo é que, enquanto não privada de vigência, o modelo jurídico vale e se impõe prescritivamente, muito embora com significação independente da intenção inicial de seus elaboradores, só ocorrendo a sua morte como conseqüência de revogação, como perda de validade formal, ou, excepcionalmente, por exaustão de eficácia, nos casos já lembrados de desuso.”79

Corroborando esse entendimento, Reale destaca as “idéias mestras de CESARE VIVANTE,

que haviam norteado o direito comercial italiano,”80 com especial relevo para a “necessidade

de recorrer a princípios mais abertos, àquilo que POLACCO denominara de ‘le finestre del

diritto’ ”.81

Esse sentido vem ao encontro do que os filósofos do direito têm denominado de “livre

criação jurisprudencial do direito”. Kaufmann e Hassemer destacam que “a incompletude da

lei não é, ao contrário do que sugere a concepção positivista, uma falha: ela é apriorística e

necessária. A lei não pode nem deve ser formulada de modo inequívoco, visto ser concebida

para casos cuja diversidade é infinita. Uma lei fechada sobre si mesma, completa, sem

lacunas, inequívoca (se tal fosse possível) faria estagnar a evolução do direito. Isso também é

importante para a linguagem da lei.” 82

79 REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, pp. 167-168. 80 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 5 81 Idem., p. 5. 82 KAUFMANN, A. e HASSEMER, W. (Org.). Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 193.

59

Corroborando esse entendimento, Reale pondera que “os modelos jurídicos, [...], são

entidades complexas, em cujo âmbito se coordenam regras de diversas categorias, cogentes e

fechadas umas, dispositivas ou abertas outras, o que demonstra a impossibilidade de

converter os modelos jurídicos em entidades rígidas, quando, ao contrário, é-lhes natural e

própria a plasticidade diversificada das estruturas sociais que normativamente expressam.”83

As influências das idéias de BONFANTE e CHIOVENDA também são destacadas por Reale

quando ambos mostram que “o ordenamento jurídico não é estático, estando sujeito a

contínuas transformações, o que faz com que as mesmas normas jurídicas, com o correr do

tempo, passem a adquirir nova significação, bem diversa da visada originariamente pelo

legislador.”84

Reale traz à colação as lições de Ascarelli, para quem “a norma jurídica, seja ela legal,

jurisprudencial ou costumeira, é algo de plástico, e adaptável às circunstâncias.”85 Nesse

sentido, “ele lembra a frase de BENJAMIN CARDOSO de que o direito deve ser estável, mas

não pode ser estático.”86

Nesse sentido, Reale destaca a idéia impregnada no pensamento de Ascarelli “do emprego de

‘standards’, ou como se prefere hoje dizer, de modelos abertos, que, aparentemente só

possuem um valor programático, mas que, na realidade, ao mesmo tempo, orientam e balizam

a atividade do hermeneuta, permitindo-lhe achegar-se melhor às exigências que deram

origem às prescrições normativas. São as janelas do direito [...], e que o jurista não pode, nem

deve dispensar [...]”.87

Ao analisar as fases de desenvolvimento do direito moderno, Reale acentua que, na terceira

fase88, afirma-se a concepção do direito como experiência concreta onde se estabelece uma

83 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 181. 84 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 7. 85 Ibidem., p. 8. 86 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 8. 87 Ibidem., p. 14. Destaques no original. 88 Ao analisar as “Três Fases do Direito Moderno”, Reale ressalta, já no início, que não pode apontar eventos que possam representar pontualmente os últimos duzentos anos, uma vez que foram permeados por múltiplos fatores e tendências. (“As três fases do direito moderno” In Nova fase do direito moderno, pp. 93 e 94)

60

correlação dialética entre a realidade social e os modelos jurídicos.89 Dentro desse contexto,

destaca a prevalência “tanto na legislação (modelos jurídicos prescritivos) como na doutrina

(modelos jurídicos hermenêuticos), de modelos normativos abertos, tornando-se cada vez

mais inconsistente a antiga distinção entre ‘normas jurídicas imperativas’ e ‘normas jurídicas

programáticas’.90 Sob esse enfoque, traz-se à colação os seguintes excertos:

“[...] a preferência por modelos abertos ou standards, torna-se uma exigência das peculiaridades histórico-sociais de nosso tempo. Por modelos abertos entendo aqueles que se desvencilham do casuísmo, de tal modo que a matéria é regulada segundo classe ou gênero de comportamentos, e não de conformidade com atos particularmente configurados.”91 [...] “A técnica do Direito vai cada vez mais se orientando no sentido de dar preferência àquilo que chamamos os ‘modelos abertos’, preferindo soluções normativas que comportem maior plasticidade na sua adaptação à experiência corrente. Não mais a norma rígida, como que prefigurando os casos de uma forma férrea, mas, ao contrário, o delineamento de figuras normativas capazes de guiar aqueles que as vão aplicar num contexto de casos não previstos.”92

A característica marcante do sistema normativo contemporâneo é a vagueza, pondo em realce

a necessidade de que:

“a) no plano legislativo, dar preferência a modelos jurídicos abertos, não receando recorrer a valores como o da eqüidade ou boa-fé, os quais servirão de elementos mediadores da desejada concreção jurídica, incompatível com o mero dedutismo a partir das disposições legais;

A primeira fase, delimitada por Reale pelo período compreendido desde a Revolução Francesa até a última década do século XIX, a ênfase foram os códigos civis, isto é, “sistemas normativos que têm como protagonistas os homens comuns” p. 95. Nessa fase, desenvolveram-se a Escola da Exegese, a Escola Histórica e a Escola dos Pandectistas. Ademais, Reale destaca o normativismo jurídico estatal nos países da Common Law. De acordo com Reale, até a última década do século XIX nos dois grandes sistemas de Direito do mundo ocidental prevaleceu a compreensão da Dogmática Jurídica segundo três elementos que caracterizariam a Ciência do Direito: ordem jurídica positiva, ocupa-se com as normas jurídicas e é uma ciência de sentido objetivo. . (Texto elaborado com base no texto “As três fases do direito moderno” In Nova fase do direito moderno pp. 95-102) A segunda fase tem início na primeira década do século XX. Nessa fase houve uma reivindicação pelo conteúdo social do direito, que culminou com a salvaguarda de direitos sociais e com a concepção hermética do ordenamento legal. Os costumes, a atividade jurisdicional, a doutrina ganham espaço nesse novo cenário. A compreensão sistemática do aparato normativo e a nova concepção do poder jurisdicional, que já podia preencher os vazios normativos dão nova roupagem à Dogmática Jurídica. Entretanto, conforme bem assinalado por Reale, essa fase é também marcada pela contradição existente entre a tão sonhada socialidade e a estatilidade, decorrente das múltiplas tarefas abarcadas pelo Estado, com o fortalecimento de novas disciplinas jurídicas como o direito tributário, o direito do trabalho e a maior projeção do direito administrativo. Aliado a isso, Reale destaca a mudança ocorrida no conceito de norma, com relevo para os estudos de Kelsen. (Texto elaborado com base no texto “As três fases do direito moderno” In Nova fase do direito moderno pp.101-113) 89 REALE, Miguel. As três fases do direito moderno In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p.123. 90 REALE, Miguel. As três fases do direito moderno In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p.124. 91 REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978, pp. 55-56. 92 Idem. A sociedade contemporânea, seus conflitos e a eficácia do Direito In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978, p. 62.

61

b) no plano jurisdicional, conferir maior autonomia e poder criador aos juízes para que a adaptação das normas aos fatos concretos não redunde em simples e perigosa operação mecânica, mas constitua uma atividade predominantemente axiológica; c) no plano hermenêutico, conceber o ato interpretativo como um todo estrutural, no qual as diversas formas de exegese [...] se componham em função da natureza da espécie normativa analisada in concreto [...]; d) no plano das fontes do direito, reconhecer que a sua natureza retrospectiva deve ser completada pela visão prospectiva dos modelos jurídicos, cuja aplicação na Ciência Jurídica ainda encontra descabida resistência apesar de ser um dos instrumentos epistemológicos mais empregados das pesquisas científicas contemporâneas; [...]”93

À vista do que se expôs, pode-se concluir que a Teoria dos Modelos surge como uma via

posta para atender aos anseios do momento histórico-cultural das sociedades modernas, nas

quais já não se mostra suficiente a existência de um feixe normativo que esboce um sistema

fechado onde impera o formalismo cego e estático, mas, como apontado por Reale, “[...] os

modelos jurídicos representam formas ou fôrmas, [...] mas fôrmas flexíveis ou plásticas

[...]”.94 Juristas e legisladores têm comungado esforços para a implementação de mudanças

estruturais nos Códigos de Processo “para a adoção de modelos genéricos ou standards,

suscetíveis de configurar, de maneira flexível, uma grande classe de fatos ou eventos. Com a

aceleração das mudanças sociais, a técnica legislativa tende a alargar o campo de aplicação

dos standards, que resulta, por assim dizer, de uma visão panorâmica dos fatos sociais.”95

Reale observa que “à medida que a legislação e a doutrina se desenvolvem e ordenam fatos,

vão surgindo distintos modelos normativos, correspondentes a diversas estruturas sociais e

históricas. No fundo, a história do Direito é a história de seus modelos, de seus institutos,

instituições e sistemas normativos.”96

93 REALE, Miguel. As três fases do direito moderno In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p.124. 94 Idem., Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 38. Nesse mesmo sentido em Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 32. 95 REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978, p. 55. 96 Idem., Natureza dos modelos jurídicos In Perspectivas atuais do direito. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1994, p. 33.

62

Capítulo III - A Relevância da Tópica na Práxis Jurídica e a Tendência Contemporânea

pelos Sistemas Jurídicos Abertos: a complementariedade necessária

Sumário: 3.1. A Tópica como Técnica de Identificação dos Problemas no Direito. 3.2.

Apontamentos Doutrinários à “Teoria Tópica de Viehweg”. 3.3. Concepções Doutrinárias

sobre os Topoi. 3.4. Importância da Tópica na Construção Jurisprudencial. 3.5. O Declínio da

Codificação e a Construção do Pensamento Sistemático. 3.6. Concepções Doutrinárias sobre a

Idéia de Sistema. 3.7. A Mobilidade como Traço Característico dos Sistemas Abertos. 3.8.

Pensamento Sistemático e Tópica

3.1. A Tópica como Técnica de Identificação dos Problemas do Direito

A questão a que o presente trabalho se propõe a responder é sobre a existência ou não de um

modelo jurisprudencial de boa-fé objetiva no âmbito do Direito Processual Civil brasileiro.

Sob esse enfoque, a boa-fé objetiva ocupa lugar de relevo na construção dos modelos

jurídicos, acepção essa já demonstrada no capítulo anterior. Por tratar-se de uma cláusula que

não possui conteúdo definido pelo legislador como se vê no inciso II do art. 14 do Código de

Processo Civil, para a sua concretização importa trazer a lume o trabalho da jurisprudência

para atender aos casos concretos que lhes são levados à apreciação.

Para cumprir tal desiderato, a tópica apresenta-se como um caminho posto, pois de acordo

com a tese de Viehweg “[...] a tópica desenvolve uma técnica de pensar o problema a partir da

retórica que se constitui num elemento constitutivo do pensamento jurídico e caracteriza a

estrutura do pensamento jurídico”.1 Nesse passo, sobreleva destacar que se trata de problemas

jurídicos individualizados, que possuem características próprias, que os distinguem uns dos

outros. Daí a insuficiência do pensamento lógico-dedutivo para responder a esses problemas.

Por não serem “problemas em série” colocou em evidência, ou melhor, trouxe à tona a

inadequação do modelo traduzido pelos sistemas fechados de codificação.

1 DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, pp. 11-12.

63

Estabelece-se, pois, uma premissa procedimental prática na qual sobressai a importância da

tópica na abordagem dos problemas que são alvo da Ciência do Direito frente ao sistema. O

Direito é sempre problemático não se subsumindo em modelo axiomático. A pluridiversidade

dos problemas conduz, inexoravelmente, ao modelo indutivo segundo o qual há que,

primeiramente, identificar o problema para, em um passo posterior, buscar a solução. O êxito

desse processo não prescinde da tópica. A tópica é a técnica que permite a identificação do

problema. Somente após uma perfeita identificação do problema é que se buscará, no sistema,

a solução adequada para o mesmo.

A construção dos modelos jurídicos jurisprudenciais tem em sua base a identificação dos

problemas para os quais tais modelos foram consolidados. A razão do modelo é definida pelo

problema que se pretende resolver e a estabilidade dos mesmos está na precisa identificação

do problema, o que demanda a atuação da tópica como ‘arte de identificação dos problemas’.

Como conseqüência, há que se ressaltar que os modelos jurídicos não se confundem com

tipos normativos, pelo contrário, são estruturas dinâmicas com sobrevida determinada pelos

problemas a que se propõem a resolver. À medida que não mais consigam responder ao

problema precisam ser reformulados ou substituídos.

Nesse sentido concorrem as observações de Miguel Reale no tocante à estabilidade e ao

“movimento” dos modelos jurídicos:

“A vida dos modelos jurídicos se desenvolve entre dois fatores operantes, um visando à sua preservação e permanência, outro reclamando a sua reforma ou substituição, o que assegura à experiência dos modelos jurídicos uma ‘auto-correção’, num processo de marcado feed-back, isto é, de contínua regeneração ou realimentação, a qual se dá em função das mutações operadas no plano dos fatos, dos valores e do próprio ordenamento normativo global, repercutindo imediatamente nos domínios cambiantes da Hermenêutica Jurídica.”2

Para se compreender o ciclo de vida dos modelos jurídicos não se pode perder de vista que,

“como estruturas fático-axiológico-normativas, acham-se imersos na práxis social [...] assim

como desta não se libertam também os legisladores (lato sensu) os advogados e os juizes, isto

é, os que elaboram os modelos jurídicos e os que com ele operam.”3 Todas as mutações

ideológicas, políticas e econômicas operadas no meio social repercutem no significado dos

2 REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 165. O texto “Vida e morte dos modelos jurídicos” foi também publicado na Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v.148, out./dez., 1987, pp.291-297. 3 Ibidem., p.169.

64

modelos jurídicos tornando-os, por exemplo, cogentes e não meramente supletivos. Verifica-

se, pois, que há uma relação dialética da práxis social com os modelos jurídicos de forma a

ajustá-los á realidade.4

Ao prefaciar a obra de Viehweg, Tércio Sampaio Ferraz Junior ressalta que o pensamento

científico, em sentido lato, precisa ter aptidão não só para descrever e explicar os objetos de

um determinado campo de observação, mas, também, deve ter capacidade para prevê-los. Daí

as dificuldades das ciências humanas, pois além de terem de considerar a dinamicidade dos

comportamentos, não podem perder de vista não só a variabilidade desses comportamentos,

bem como, a época e a cultura aos quais se prendem.5

A amplitude das variáveis envolvidas nas relações intersubjetivas singulariza a Ciência do

Direito, que precisa ter aptidão para conciliar a dinamicidade dos comportamentos com os

aspectos axiológicos e culturais reinantes na ocasião.

Viehweg percebeu essa dificuldade – correlacionar as teorias jurídicas à práxis -, que, na

verdade, dá à Ciência do Direito uma natureza peculiar. Entretanto, ele observa que, por

muito tempo, o pensamento teórico dos juristas comungou com a idéia de que a estrutura

formal do Direito poderia ser entendida pela lógica dedutiva. Implicava dizer, na visão de

Viehweg, que a interpretação era relegada a um plano secundário. As teorias jurídicas trazem

à lume conseqüências político-sociais. No dizer de Viehweg são “teorias com função social”.6

Daí Tércio Sampaio Ferraz Junior compreender o seguinte sentido das conclusões do

pensamento de Viehweg:

“[...] as teorias jurídicas utilizam-se de um estilo de pensamento denominado tópico. A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função

4 REALE, Miguel. Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 169. 5 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p. 2. 6 Ibidem., pp. 2-3.

65

dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras ‘fórmulas de procura’ de solução de conflito.”7

As precisas palavras de Viehweg merecem transcrição:

“O aspecto mais importante na análise da tópica constitui a constatação de que se trata de uma técnica do pensamento que está orientada para o problema.8 [...] A tópica pretende proporcionar orientações e recomendações sobre o modo como deve comportar uma determinada situação caso não se queira restar sem esperança. Essa constitui, portanto, a técnica do pensar problematicamente.”9

“Apenas o problema concreto ocasiona de modo evidente tal jogo de ponderação, que vem se

denominando tópica ou arte de criação.”10 De acordo com Viehweg, fazendo uso das palavras

de Zielinski, isso significa dizer “a arte de evocar, em cada situação da vida, as razões que

aconselham ou desaconselham dar um determinado passo, bem compreendidos ambos os

sentidos dessas razões, portanto, tanto as razões favoráveis quanto as contrárias.”11

Esse ponto é realçado por Eduardo García de Enterría ao afirmar ser impossível desfazer a

contribuição conceitual e sistemática central da obra de Viehweg de que a “[...] ciência

jurídica tem sido sempre, e não pode deixar de ser uma ciência de problemas singulares, que

jamais poderia ser reduzida a um esquema mental axiomático-dedutivo.”12,13

A tese de Viehweg de uma estrutura tópica da jurisprudência é construída por meio de um

traçado histórico que remonta às idéias de Vico às quais agrega as idéias de outros autores que

também se dedicaram ao estudo da tópica, em outros âmbitos que não o jurídico, para

perquirir a relação entre a tópica e o saber jurídico.

7 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p.3. 8 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 33. 9 Ibidem, pp. 33-34. 10 Ibidem., p. 34. 11 Ibidem., p. 34. 12 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Prólogo In: Topica Y Jurisprudencia. Tradução de Luiz Diez-Picazo de Leon. Madri: Taurus. 1964, p. 13. 13 “[...] la aportación conceptual y sistemática central de esta obra, esto es, que la Ciencia jurídica ha sido siempre, es y no puede dejar de ser una ciencia de problemas singulares, jamás reductible – frente a ingenuos intentos, siempre fallidos – al esquema mental axiomático-deductivo expresado en las matemáticas.”

66

Viehweg traz à colação a compreensão de Curtius14 sobre os topoi no âmbito da literatura, na

qual fica clara a operabilidade dos topoi não apenas como forma de traduzir uma

compreensão da vida e da arte, mas construí-la num movimento dinâmico de expiração dos

velhos tópicos e o surgimento de novos topoi.

Kelly Susane Alflen da Silva, no prólogo da obra “Tópica e Jurisprudência” destaca a

importância da tópica no processo decisório, nos seguintes termos:

“Muito embora o modo de pensar tópico de Viehweg tenha como eixos principais as noções de problema e aporia, em realidade, o ponto é um problema concreto, um dado real. Neste ponto está o aspecto medular, que faz da tópica uma doutrina direcionada ao decisionismo e, também, desse ponto decorre que a tópica é sensivelmente dotada de mobilidade que permite ser complementada por princípios ou doutrinas tendentes à natureza da decisão.”15

A tese de Viehweg publicada em 1953, em que a tópica foi apresentada como o método de

pensar problematicamente, colocou no foco da discussão o pensamento fundado no problema

em relação ao pensar de maneira sistemática, aliado a isso suscitou a discussão se o sistema

jurídico seria aberto ou fechado.16

Viehweg se reporta à dissertação elaborada por Vico em 1708 sob o título “De nostri temporis

studorium ratione”, que traduzido significa “O modo de estudar de nosso tempo”. Nessa obra,

a real intenção de Vico era a de revelar “A conciliação do antigo e do moderno modo de

estudar”. O antigo método científico é caracterizado por Vico como retórico, compreendia a

tópica e o moderno, como crítico, modo de pensar cartesiano,.17

“Vico caracteriza o novo método (crítico) do seguinte modo: o ponto de partida é o primum verum, que não pode ser anulado [invalidado] pela dúvida. O amplo desenvolvimento conseguinte se faz em consonância com o mesmo modelo da geometria, i. e., segundo os cânones da primeira ciência verificável que, em geral, e no possível, se ampara nas mais amplas conclusões concatenadas (sorites) [deduções]. De modo contrário, o método antigo [tópica], apresenta-se assim: o ponto de partida é dado pelo sensus communis (sentido comum reiterado, commom sense), que procede por verossimilhança (verisimilia), alterna pontos de vista

14 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 39. 15 ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência : uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 12. Destaques no original. 16 Ibidem. p. 12. 17 Op. cit. p. 18, nota 14.

67

segundo os cânones da tópica retórica e, em particular, atua principalmente com quantidade de silogismos.”18

“Para Vico, as vantagens do método crítico consistem na agudeza e na precisão (sempre que o

primum verum seja um verum)” 19. Já o método da tópica, “[...] ensina a considerar uma

situação a partir de distintos ângulos e, a encontrar uma quantidade de pontos de vista. Deve-

se- intercalar – diz Vico – o antigo modo de pensar tópico no novo, já que este sem aquele

não pode obter nenhum resultado”.20

Viehweg recorre-se a Aristóteles para compreender o que venha a ser a tópica. Aristóteles faz

uma distinção entre o que é apodítico e o que é dialético. “O primeiro ele assinala como o

campo da verdade para a pretensão dos filósofos. O segundo, é considerado para ele [...] como

o terreno do meramente opinável, dos retóricos e dos sofistas.”21 Daí concluir que a tópica

pertence ao terreno do que é dialético, não do apodítico.22 O objeto da tópica são as

conclusões dialéticas. Para Aristóteles, as conclusões dialéticas são aquelas que têm como

premissas pontos de vista respeitáveis e verossímeis. Daí compreender que “[...] a tópica tem

por seu objeto conclusões que decorrem de premissas que parecem verdadeiras com base em

uma opinião respeitável.”23 “Topoi são para Aristóteles, então, pontos de vista empregáveis

em muitos sentidos, aceitáveis universalmente, que podem ser empregados a favor e contra ao

opinável e podem conduzir à verdade.”24

Kelly Susane Alflen da Silva destaca que:

“Então, a tópica versus a argumentação possui um cariz em função estabilizadora dos postulados contingentes e historicamente condicionados, e, por isso, tem como base um pertinente consenso em torno do tido por evidente, que, logo mais, num momento ulterior, por já ser evidência consumada, não necessita propriamente de fundamentação argumentativa. Nas palavras de Norbert Horn, isso significa que, “O que a todos ou à maioria ou aos sábios parece verdadeiro, vale como verdadeiro.” A tópica, pois, serve a um conceito dialético de verdade. Mas a um

18 ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência : uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 19. 19 Ibidem. p. 19. 20 Ibidem. p. 19. 21 Ibidem. p. 22. 22 Ibidem. p. 22. 23 Ibidem. p. 24. 24 Ibidem. pp. 25-26.

68

conceito de verdade que não se confunde com dedução-lógica, que serve a uma lógica – apodíctica -, mas tem como pressuposto o consenso pelo diálogo.”25

Segundo Aristóteles, “[...] São os topoi, de fato, que podem nos ajudar, de um modo

suficientemente completo, a extrair conclusões dialéticas com relação a qualquer problema.”26

Tércio Sampaio Ferraz Junior traz à compreensão que “[...] a dialética é [...] uma espécie de

arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre elas um diálogo, confrontando-as,

no sentido de um procedimento crítico.”27 Trata-se, segundo o Autor, da “virtude de saber

sopesar argumentos, confrontar opiniões e decidir com equilíbrio.”28

Cláudia Rosane Roesler destaca dois aspectos na abordagem de Viehweg à tópica aristotélica.

“A primeira delas é a divisão entre apodíctico e dialético e a segunda, a caracterização da

tópica enquanto auxílio na discussão de qualquer tema, enfatizando o seu perfil de

instrumento para a construção argumentativa.”29

Segundo a autora, no que tange à vinculação entre tópica e dialética, “[...] a dialética vem

concebida por Aristóteles como uma arte de argumentação crítica, especializada em por à

prova, em testar os argumentos, independentemente de seu tema.” Aplicável em todos os

âmbitos do conhecimento é instrumento que permite aferir as contradições e as

conseqüências do raciocínio.30 “[...] a dialética, na medida em que nos permite investigar uma

aporia em ambas as direções, nos possibilita discernir o verdadeiro do falso.”31

“Como se vê, Aristóteles esboça na sua tópica uma teoria da dialética (entendida, aqui, no sentido de arte retórica [...]), na qual ele proporciona um catálogo de tópicos estruturado de modo flexível e apto a fornecer relevantes serviços à prática.”32

25 ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência : uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 14. 26 Op. cit., p. 26, nota 24. 27 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p. 5. 28 Ibidem. p. 5. 29 ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso racionalidade. Florianópolis: Momento Atual. 2004, pp. 114-115. 30 Ibidem., p. 115. 31 Ibidem. p. 116. 32 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 30.

69

Já concernente à relação entre a tópica e a dialética com a retórica, a autora destaca que “[...] a

dialética seria a arte da argumentação crítica e a retórica a arte de investigar como os

argumentos podem ser apresentados com vistas à persuasão.”, já que, para Aristóteles, a

retórica é a arte de encontrar o que é persuasivo em cada caso. Seguindo esse raciocínio, a

Autora esclarece que “[...] pode-se então considerar que a tópica forneceria – assim como o

fez para a dialética – à retórica aquelas “regras”, leis ou fórmulas genéricas que gozam de

aceitação e viabilizam a construção de argumentos persuasivos, os topoi.”33

Após a análise da tópica aristotélica, Viehweg analisa a tópica em Cícero e destaca a maior

influência histórica da Tópica de Cícero em relação à de Aristóteles. Enquanto em Aristóteles

ganha relevo a distinção entre o apodítico e o dialético, em Cícero encontra-se a distinção

entre ‘invenção’ e ‘formulação do juízo’. A importância dos topoi “como lugares de onde se

extrai o material”34, na concepção dada por Aristóteles, é reconhecida por Cícero por meio de

uma linguagem figurada: “Assim como é fácil encontrar objetos que estão escondidos, desde

que se determine e se prove o lugar em que se situam, do mesmo modo, se quisermos

investigar sobre uma matéria qualquer, temos que conhecer seus topoi”.35

Numa análise comparativa entre a tópica de Aristóteles e a tópica de Cícero Viehweg pontua:

“[...] Aristóteles esboça na sua tópica uma teoria da dialética (entendida aqui, no sentido de arte retórica), na qual ele proporciona um catálogo de tópicos estruturado de modo flexível e apto a fornecer relevantes serviços à prática. É isso que interessa a Cícero. Ele entende por tópica uma prática da argumentação que adota um catálogo de tópicos, que com este propósito ele elaborou. Apesar de Aristóteles tratar, ainda que de modo não exclusivo, mas em primeiro lugar, da formação de uma teoria, para Cícero importa, ao invés, a aplicação de um catálogo de topoi.”36

Por sua vez, Tércio Sampaio Ferraz Junior traça um paralelo entre a tópica aristotélica e a

tópica cicerônica, destacando:

“Os conceitos e as proposições básicas dos procedimentos dialéticos, estudados na Tópica aristotélica, constituíam não axiomas nem postulados de demonstração, mas topoi de argumentação, isto é, lugares (comuns), fórmulas, variáveis no tempo e no espaço, de reconhecida força persuasiva no confronto das opiniões. A tópica, assim,

33 ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso racionalidade. Florianópolis: Momento Atual. 2004, p. 118. 34 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 28. 35 Ibidem., p. 28. 36 Ibidem., p. 30.

70

estaria a serviço da ars disputations, caso em que as conclusões a que se chega valem pelo efeito obtido, e é, pois, mais importante, uma bem feita elaboração das premissas. É o que chamou Cícero de ars inveniendi. Cícero entendeu a tópica não mais como uma teoria da dialética, mas como uma práxis da argumentação, elaborando catálogo de lugares comuns aplicáveis ao exercício retórico.”37

Ao fazer a análise da “Tópica e Civilística” Viehweg assegura que:

“[...] se é certo que a tópica é a técnica do pensamento problemático a jurisprudência, como técnica que está a serviço de uma aporia, deve corresponder com os pontos essenciais da tópica. É preciso, por isso, descobrir na tópica a estrutura que convém à Jurisprudência. Tentaremos fazer isso e estabelecer os três seguintes pressupostos: 1) A estrutura geral da jurisprudência só pode ser determinada a partir do problema. 2) As partes integrantes da Jurisprudência, seus conceitos e suas proposições têm de permanecer vinculadas de um modo específico com o problema e só podem ser compreendidas a partir dele. 3) Os conceitos e as proposições da Jurisprudência só podem ser utilizados numa implicação que conserve sua vinculação com o problema. Qualquer outra é preciso ser evitada.”38

Verifica-se que a tópica encontra lugar de relevo na práxis jurídica na abordagem dos

problemas num movimento circular que os tem como ponto de partida e como ponto de

chegada. Como ponto de partida, os problemas é que determinarão quais serão os ‘lugares

comuns’, ou alternativas para a solução dos mesmos. E como ponto de chegada tem-se o

culminar da solução eleita entre tantas propostas.

3.2. Apontamentos Doutrinários à “Teoria Tópica de Viehweg”

García de Enterría vê no trabalho de Viehweg a exaltação do labor diário do “jurista

experimentado”, visto que, segundo Viehweg, a tópica precisa ser compreendida como um

pensamento que opera, por meio de ajustes concretos, a resolução de problemas singulares

partindo de diretrizes ou de guias que não são princípios lógicos dos quais se possa, por meio

da dedução, resolvê-los, mas loci communes que são revelados pela experiência.39, 40

37 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo o direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 322. 38 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 97. 39 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Prólogo In: Topica Y Jurisprudencia. Tradução de Luiz Diez-Picazo de Leon. Madri: Taurus. 1964, p. 14. 40 No original: “[...] importa retener sobre todo como enseñanza central para el jurista, aunque otra cosa pueda ser para el historiador de las ideas o para el filósofo, que por tópica ha de entenderse aquí, como el autor precisa, la ‘techné del pensamiento de problemas’, de un pensamiento que opera por ajustes concretos para

71

Nesse sentido, conclui García de Enterría soar até como um paradoxo na obra de Viehweg,

um livro que reclama, para ciência do direito, sua humildade e suas limitações, frente ao

complexo de inferioridade diante das ciências exatas ou ‘axiomatizantes’, resultar na

ampliação dos horizontes dessa mesma ciência. Entretanto, assevera Enterría: “[...] outro é

nosso caminho e, portanto, nossa dignidade. Na sociedade de onde emergem incessantes

transformações e problemas jurídicos inéditos, ter plena consciência desse ensinamento é, sem

dúvida, o maior serviço que pode ser prestado às possibilidades reais da justiça.”41, 42

Hermes Zaneti Júnior destaca que na concepção de Viehweg fica clara a “necessidade de se

criar uma teoria da prática”, o que, no entendimento de Zaneti traduziria a criação de

‘modelos jurisprudenciais’. Ao privilegiar a tópica de Cícero, em detrimento da tópica de

Aristóteles, Viehweg busca construir uma “teoria para a argumentação forense”, pois para

Cícero interessavam os resultados obtidos com a aplicação da tópica no discurso concreto.

“[...] trata-se de observar na tópica cicerônica [...] a difusão de uma técnica de resolução de

problemas”43

“Para Aristóteles, em outro sentido, a tópica era a projeção de uma teoria da dialética, entendida como arte retórica, buscando mais as causas dos argumentos do que a sua aplicação prática [...]. O objetivo de Cícero [...] era facilitar a compreensão e criação de catálogos de tópicos para um jurista prático (os catálogos especiais ou catálogos tópicos de segundo grau), encaminhando sua utilidade para a localização dos problemas a solucionar [...].”44

Hermes Zaneti Júnior destaca a crítica de Alexy45 em oposição ao pensamento tópico. No

entanto, faz uma releitura dessa crítica nos seguintes termos: “[...] adotando a racionalidade

resolver problemas singulares partiendo de directrices o de guías que no son principios lógicos desde los que poder deducir con resolución, sino simples loci communes de valor relativo y circunscrito revelados por la experiencia.” 41 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Prólogo In: Topica Y Jurisprudencia. Tradução de Luiz Diez-Picazo de Leon. Madri: Taurus. 1964, p. 18. 42 No original: “Puede resultar paradójico que un libro como éste que reclama para la ciencia jurídica su humildad y sus limitaciones resulte a la postre libertador y ampliador de horizontes, pero eses efectos son siempre una virtud de la verdad, sea cual fuere, y no del poder y de la fuerza. No es poco librar al Derecho como ciencia de esa suerte de complejo de inferioridad que ha venido padeciendo desde que el mundo moderno perfeccionó las ciencias físicas o axiomáticas. Otro es nuestro camino y por tanto nuestra dignidad. En la sociedad nueva en incesante transformación y penetrada de problemas jurídicos inéditos, tener plena consciencia de esta enseñanza es, sin duda, el mejor servicio que pueda prestarse a las posibilidades reales de la Justicia.” 43 ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 87. 44 Ibidem., p. 87. 45 A crítica de Alexy à Teoria Tópica é no sentido de que a busca de premissas é generalizada demais, não havendo uma diferenciação entre as diversas premissas plausíveis, por conseguinte subestimaria a importância da lei, da dogmática e dos precedentes no processo de justificação das decisões jurídicas. ALEXY, Robert.

72

prática discursiva o discurso prático do caso especial, a tópica passa a ser um instrumento

para a verificação dos problemas e a lei, a dogmática e os precedentes formam os catálogos

tópicos especiais com que o jurista deve lidar para obter um discurso racional”46.

Corroborando esse entendimento, Kelly Susane Alflen da Silva assevera que:

“Isso diz respeito ao fato de um problema poder se fundar numa pré-compreensão, num contexto dado previamente à compreensão, o que em Viehweg, relativamente ao direito se leva à concretude em sua teoria do Basindoktrin, i. e., um substrato ideológico estabilizador que serve de supedâneo a postulados jurídicos tidos por geralmente certos e indiscutíveis para o funcionamento do direito. Em sendo o direito formado por um corpus de postulados e opiniões às quais se atribui absolutez, são dogmatizados, muito embora também opere sobre a base de seus tópicos provenientes da consciência social. Então, a tópica é, originariamente, fonte da dogmática! Mas, não só. A dogmática também é marco da própria tópica, é o marco do que se encontra subjacente aos tópicos e que conformam a sociedade no campo jurídico; serve de limite à admissibilidade de tópicos como argumentos.”47

Margarida Maria Lacombe Camargo48 destaca que a doutrina e a jurisprudência podem ser

utilizadas pela tópica como “argumentos de autoridade”, pois traduzem uma opinião

reconhecida apresentando-se como premissas respeitáveis e fortes aptas a fundamentar uma

cadeia de raciocínio válido.49

A ‘tópica de primeiro grau’ consiste no procedimento orientado por pontos de vista diretivos,

que não são explícitos. Já a ‘tópica de segundo grau’ consiste no procedimento que utiliza

catálogos de topoi, repertórios de pontos de vista disponíveis.50 Encontra-se na tópica de

segundo grau um “repertório, já pronto para ser usado, de pontos de vista, muito importantes e

Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. 2. ed. Tradução de Zilda Huchinson Schild Silva. São Paulo: Landy. 1990, pp. 30-33. 46 ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 88. 47 ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência : uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, pp. 13-14. 48 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, p. 154. 49 Judith Martins-Costa anota a importância no direito brasileiro da interpretação doutrinária nas decisões judiciais influência essa advinda do ‘bartolismo’, O bartolismo “[...] na acepção que foi emprestada por Clóvis do Couto e Silva, indica o fato de as sentenças judiciais refletirem as opiniões de autores de diversos sistemas jurídicos, servindo-se os juizes de autores nacionais e de outros paises, ‘como se existisse ainda um ‘Direito Comum’ supranacional’. Esta é uma especificidade própria do sistema jurídico brasileiro e que justifica a maior abertura que as nossas sentenças têm para a doutrina, ‘que é, assim, fonte de direito’.” MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 241. 50 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 56.

73

amplamente aceitos, em forma de citações jurisprudenciais, porém sem nenhuma intenção

sistemática e em uma descurada ordem.”51

Tércio Sampaio Ferraz Junior ao fazer referência à tópica de segundo grau assevera que “[...]

Esta organização [...] é sempre limitada, não surgindo nem na forma rigorosa de deduções

lógicas, nem como sistemas unitários, abarcantes, como grandes hierarquias conceituais que

alcancem toda a realidade em questão. O raciocínio tópico que se vale dos repertórios de

topoi, vale, portanto, em certos limites [...].”52

Judith Martins-Costa adverte que a técnica de raciocínio tópico é assistemático, pois o

raciocínio parte do caso particular e busca premissas que possam trazer a solução para aquele

caso particularmente analisado.53

Nesses termos, Tércio Sampaio Ferraz Junior observa que “[...] qualquer que seja a tópica de

segundo grau, uma dedução sistemática dos topoi é uma impossibilidade. Na verdade,

qualquer tentativa nesse sentido altera a própria intenção da tópica que, sendo problemática, é

assistemática até por necessidade de produção de efeitos persuasivos de argumentação.”54

Larenz assinala que a tópica, levada a cabo por Viehweg para aplicação na jurisprudência,

consiste em um procedimento que, vinculado ao caso, leva em conta discursivamente os

argumentos relevantes favoráveis e contrários à solução ponderada. Esses argumentos

relevantes são os topoi.55

Larenz destaca que, na concepção de Viehweg “[...] não existem apenas os ‘tópicos

universalmente aplicáveis de que tratam Aristóteles, Cícero [...], mas também outros que estão

comprovados para uma determinada disciplina’. Tópicos jurídicos serão, pois, argumentos

utilizados na solução de problemas jurídicos, e que podem contar neste domínio com a

51 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 56. 52 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, p. 4. 53 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 44. 54 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo o direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 324. 55 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 170.

74

concordância geral, o ‘consensus omnuim’.” 56 Nessa esteira, Viehweg qualifica como tópicos

jurídicos, dentre outros, ‘a tutela da boa-fé’.

3.3. Concepções Doutrinárias sobre os Topoi

Para Egon Schneider “são topoi postulados como boa-fé, proteção de confiança, [...]

dignidade humana etc. [...] O mesmo autor qualifica também como tópicos os métodos ou

idéias diretivas da interpretação jurídica, assim como os conceitos jurídicos normativos e os

valorativos como equidade, justiça, [...] segurança jurídica, doutrina estabelecida e

jurisprudência estabelecida.”57, 58

Bokeloh, por sua vez, cita como topoi os princípios que dão concretude à boa-fé como, por

exemplo, o venire contra factum proprium.59, 60

A concepção de Wieacker sobre os topoi é expressa nos seguintes termos:

“[...] pontos de vista de probabilidade e força de convicção geralmente reconhecida que se buscam para a decisão de um caso. Tais pontos de vista podem ser [...] desde convencionais verdades comuns, regras e máximas da razão prática [...] e, em particular para a obtenção do direito, os standards sociais, os precedentes reconhecidos, os enunciados doutrinários que expressem a opinião comum dos especialistas. A função que todos esses tópicos teriam para o raciocínio jurídico seria a de servir de argumentos para a discussão. Esses argumentos fundamentam as soluções obtidas da discussão.”61, 62

56 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 203. 57 SCHNEIDER, Egon. Rechtspraxis und Rechtswissenschaft, cit. pp. 7-11 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 133. 58 No original: “son topoi postulados como la ‘buena fe’, ‘protección de la confianza’ […] ‘dignidad humana’ etc. […] el mismo autor califica también como tópicos los métodos o ideas directivas de la interpretación jurídica, así como los conceptos jurídicos normativos e los valorativos, como ‘equidad’, ‘justicia’ ‘practicabilidad’, ‘seguridad jurídica’, ‘doctrina establecida’ y ‘jurisprudencia establecida.” 59 BOKELOH, A. Der Beitrag der Topik zur Rechtsgewinnung, cit. p. 28 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 134. 60 “BOKELOH cita como topoi los principios que concretan el general de buena fe, como venire contra factum proprium […].” 61 WIEACKER, Franz. Zur praktischen der Rechtsdogmatik, cit. p. 327 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 130-131. 62 No original: “Wieacker caracteriza los topoi como puntos de vista de probabilidad y fuerza de convicción generalmente reconocida que se buscan para la decisión de un caso. Tales puntos de vista pueden ser [...] desde convencionales verdades comunes (konventionelle Gemeinwahrheiten), reglas y máximas de la razón práctica […], y, en particular para la obtención del derecho, los standards sociales, los precedentes reconocidos, los enunciados doctrinales que expresen la opinión común de los especialistas etc. La función de todos estos tópicos tendrían en el razonamiento jurídico sería la de servir de argumentos para la discusión. Esos argumentos han de fundamentar una convición general sobre la corrección de las soluciones obtenidas de la discusión.”

75

Garcia Amado colaciona algumas noções de topos trazida pela doutrina, posteriormente à

obra de Viehweg, dentre as quais se destacam:

Na concepção de Esser os topoi são:

“[...] argumentos que gozam de um consenso geral no meio ou de grande capacidade para alcançá-lo, consenso que se pretende trasladar a novas soluções que do emprego dos topoi se sigam”63, 64, “‘fórmulas vazias’ que são dotadas de conteúdo em cada caso”65, 66, “argumentos retóricos, distintos dos argumentos utilizados em cláusulas gerais, standards ou princípios, assim como a inovação de máximas ou credos gerais de caráter ético, social ou político”67, 68, “a argumentação tópica é parte da argumentação retórica, cuja finalidade não é demonstrativa, mas persuasiva.”69, 70

“[...] em um sistema jurídico aberto aos problemas, por contraposição a um sistema axiomaticamente fechado, seus princípios fundamentais são os topoi; isto é, pontos de vista pragmáticos de justiça material ou correspondente a fins jurídico-políticos, que renunciam a esquema dedutivo cerrado e que, como pontos de partida retórico da argumentação, afrontam o problema como aberto e por meio de enunciados de razão ou de sentido comum geralmente aceitos.”71, 72

Para Nobert Horn, se pode admitir a denominação de topos, no âmbito do Direito, “[...] para

todo princípio básico que seja admissível, isto é, que esteja juridicamente reconhecido e se

possa invocar para obter ou fundamentar a decisão jurídica. Topoi seriam, por conseguinte,

tanto proposições jurídicas particulares como pontos de vista jurídicos e regras generalizáveis,

63 ESSER, Joseph. Vorverständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung, cit., p. 155; Juristisches Argumentieren im Wandel des Rechtsfindungskonzepts unseres Jahrhunderts, cit. pp. 13, 15 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128. 64 No original: “[...] son argumentos que gozan de un consenso general en el medio o de gran capacidad para alcanzarlo, consenso que se pretende trasladar a las nuevas soluciones que del empleo de los topoi se sigan, […] ” 65 ESSER, Joseph. Unmerklicher und merklicher Wandel del Judikatur, cit. pp. 221-222;“Die Interpretation im Recht“, en Studium Generale, 7/1954 (pp. 372-279), p. 378 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128. 66 No original: “son ‘formulas vacías’, que han de dotarse de contenido concreto en cada caso;” 67 ESSER, Joseph. Motivation und Bergründung richterlicher Entscheiddungen, cit. p. 149; Unmerklicher Waldel del Judikatur, cit. pp. 221-222 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128. 68 No original: “son argumentos retóricos, distintos de los argumentos basados en cláusulas generales, standards o principios, así como de la invocación de máximas o credos generales de carácter ético, social o político;” 69 ESSER, Joseph. “Methodik des Privatreschts, en Thiel, M. (ed.), Methoden der Rechtswissenschaft. Teil I., Munich, R Oldenbourg, 1972 (pp. 3-37), p. 15 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128. 70 No original: “la argumentación tópica es parte de la aumentación retórica, cuya finalidad no es demostrativa, seno persuasiva.” 71 ESSER, Joseph. Grundsatz und Norm, cit. p. 44 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 128-129. 72 No original: “[...] en un sistema jurídico abierto a los problemas, por contraposición a un sistema axiomáticamente cerrado, sus principios fundamentales son topoi; esto es, puntos de vista pragmáticos de justicia material o correspondientes a fines jurídico-políticos, que renuncian a un esquema deductivo cerrado y que, como puntos de arranque retórico de la argumentación, afrontan el problema como abierto y por medio de enunciados de razón o de sentido común generalmente admitidos.”

76

assim como regras formais (tipos de argumentação, por exemplo) que sejam usadas na

argumentação jurídica.”73, 74

3.4. Importância da Tópica na Construção Jurisprudencial

A tópica, segundo Viehweg, foi de suma importância para a jurisprudência. Entretanto,

assegura que “[...] é próprio dela fazer com que a Jurisprudência não se converta em um

método”75, uma vez que por ‘método’ deve-se compreender “[...] um procedimento que, do

ponto de vista lógico, seja estritamente controlável, que estabeleça, por conseqüência, um

unívoco texto argumentativo, i. e., um sistema dedutivo.”76

A função dos topoi, segundo Viehweg, é servir à discussão dos problemas.

“No alterar de situações e de casos particulares se deve encontrar, pois, cada vez mais, novas informações para se fazer tentativas de resolver o problema. Os topoi, intervindo em auxílio, recebem em torno de si o próprio sentido do problema. Eles remanescem sempre essenciais pelo fato de que eles recebem uma ordem com relação ao problema. Em realidade, com relação ao problema que eles acompanham, uma compreensão não é imodificável, e na mesma medida nem adequada e conveniente ou inadequada. Eles devem ser entendidos funcionalmente, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento.”77

Tércio Sampaio Ferraz Junior ressalta a importância da irrupção da tópica no Direito, como

ferramenta para sua manutenção e atualização.

“A interrupção, indispensável no pensamento jurídico, desenvolve-se dentro do estilo tópico: o que garante a permanência de uma ordem jurídica em face de certos câmbios sociais no correr do tempo é justamente este estilo flexível em que os problemas são pontos de partida que impedem o enrijecimento das normas interpretadas. A própria interpretação dos fatos exige o estilo tópico, pois os fatos de que cuida o aplicador do direito, sabidamente, dependem das versões que lhe são atribuídas. Ademais, o uso da linguagem cotidiana, com sua falta de rigor, suas

73 HORN, Nobert. “Topik in der rechtstheoreticher Diskussion”, en BREUER, D./SCHANZE, H. Topik, cit (pp. 57-64), p. 60 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p.129. 74 No original: “En el ámbito del Derecho se puede admitir la denominación de topos para todo principio básico que sea admisible, esto es, que esté jurídicamente reconocido y se pueda invocar para obtener o fundamentar la decisión jurídica. Topoi serían, por consiguiente, tanto proposiciones jurídicas particulares como puntos de vista jurídicos y reglas generalizables, así como reglas formales (tipos de argumentación, por ejemplo) que se usen en la argumentación.” 75 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 77. 76 Ibidem., p. 77. 77 Ibidem., pp. 39-40.

77

ambigüidades e vaguezas, condiciona o jurista a pensar topicamente. Por isso, em seu raciocínio, ele sabe, de algum modo, que não há sistema em si que possa resolver todos os problemas jurídicos.”78

A importância estrutural da tópica no pensamento medieval levou a um esquema

representativo da mesma que consiste em: 1) estabelecimento do problema; 2) pontos de vista

próximos; 3) pontos de vista contrários e 4) solução.79

A tópica atua no sistema jurídico dentro de quatro campos:

1 – Na interpretação: o pensamento interpretativo deve se mover dentro do raciocínio da

tópica, visto que o ordenamento jurídico está sujeito a constantes modificações temporais,

pondo em realce o papel da interpretação e, por conseguinte, o da tópica.80

2 – Na aplicação do Direito: por meio de uma interpretação que modifique o sistema

promovendo uma extensão, redução, comparação, síntese, com vistas a dar soluções tanto aos

casos que podem resolvidos dentro do próprio sistema como para aqueles casos que não

encontram solução dentro do sistema. Nessa última hipótese, para a solução sem o auxílio do

legislador, só com o auxílio da interpretação.81

3 – No uso da linguagem: por meio da apreensão dos novos pontos de vista que asseguram a

dinamicidade no alcance das proposições veiculadas por meio de conceitos e proposições

sistematicamente incertos. Isso se dá com sucessivas interpretações e reinterpretações.82

4 – Na interpretação do estado de coisas: é uma forma da atuação da tópica que se encontra

fora do sistema jurídico, mas que nele repercute, visto que necessita torná-lo dinâmico em

sentido jurídico. Trata-se de uma recíproca aproximação entre os fatos e o ordenamento

jurídico. Segundo Viehweg, tal perspectiva foi descrita por Engisch como “permanente efeito

recíproco” e da “ida e volta da perspectiva”.83 Nesse sentido, a partir “[..] de uma

78 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo o direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 325. 79 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007 p. 70. 80 Ibidem., p. 88. 81 Ibidem., p. 88. 82 Ibidem. p. 89. 83 Ibidem., p. 90.

78

compreensão preliminar de coesão jurídica, forma-se a compreensão do estado de coisas, a

qual, por sua vez, repercute de novo sobre a compreensão do direito, sendo solucionado.”84

Claudia Rosane Roesler sintetiza a tese de Viehweg nos seguintes termos:

“[...] para Viehweg, a tópica permanece na Jurisprudência como sua estrutura na medida em que esta orienta-se para o que o autor qualifica como ‘problema’. A tópica é, deste modo, uma técnica de pensar por problemas. [...] O interesse do autor é dirigido, portanto, para a dimensão da tópica que pode-se chamar formal, na medida em que dá estrutura à jurisprudência.”85

Na concepção de Viehweg, ‘problema’ é “[...] qualquer questão que consinta aparentemente

mais de uma resposta e que pressuponha, necessariamente, uma compreensão provisória,

conforme a qual toma o cariz da questão que se deve levar a sério, justamente se buscará,

pois, uma resposta única como solução.”86

Judith Martins-Costa destaca dois elementos que estariam no núcleo dessa definição:

“a) o que faz com que uma questão se ponha com um problema é a existência de distintas alternativas para o seu tratamento e, por conseqüência, de distintas respostas, ou vias de atuação possíveis; b) embora a possibilidade de diversas alternativas, o que se busca é uma resposta, o que conduz à necessidade de uma decisão e, consequentemente, de uma eleição entre as possíveis alternativas.”87

Nesse contexto, na “contramão” do ‘problema’ estaria o pensamento lógico-dedutivo, o qual,

em razão da completude normativa e indicação precisa da conseqüência, indica um único

caminho a trilhar.

Por outro lado, existem normas que não possuem essa rigidez e precisão. Dentre elas, Judith

Martins-Costa destaca as cláusulas gerais, cuja aplicação demanda que o jurista desenvolva o

seguinte procedimento: “a)determine o seu o campo e o seu grau de extensão – o que

significará concretizar o standard ou o valor ao qual ele reenvia – e b) defina, punctualmente,

84 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 90. 85 ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso racionalidade. Florianópolis: Momento Atual. 2004, p. 142. 86 Op. cit. p. 34, nota 84. 87 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 366-367.

79

as suas conseqüências.”88 Para resolução do problema, diversas alternativas e diversas

respostas serão apresentadas, cabendo ao jurista eleger a melhor solução dentre essas muitas

alternativas apresentadas que será o norte da sua decisão.

“A escolha do conteúdo que há de ser conferido à norma que caracteriza cláusula geral, não estando indicado no texto legislativo, implica ponderações e valorizações que se reportam a um âmbito de referência tecido por variadas escalas: os precedentes, a história institucional, as opiniões consolidadas doutrinariamente, os usos e costumes do tráfego jurídico, as soluções advindas do direito comparado. Os precedentes, de modo especial, têm relevantíssima função de fixar, embora de maneira não rígida, o concreto desenho dos valores aos quais reenviam as cláusulas gerais, possibilitando a solução do caso.”89

Qualquer atualização da tópica remete-se ao seu significado formulado no pensamento de

Aristóteles. O conceito de topos teria, já antes de Aristóteles, um significado técnico,

relacionado com pontos de vista relativos a conteúdos ou de determinadas técnicas por meio

das quais o orador estaria em condições de realizar em cada ocasião as afirmações adequadas

a seus fins.90

A tópica é para Viehweg uma “técnica do pensamento problemático”, na qual o ponto de

partida é um problema concreto, uma situação da vida real, um estado de coisas que Viehweg

denominou de ‘aporia’, no sentido de uma questão sem solução, sem saída. É esse problema

concreto que constitui a ‘tópica ou arte da invenção’.91, 92

No dizer de Tércio Sampaio Ferraz Junior, o pensamento tópico trabalha com ‘noções-chave’,

que trazem em si um sentido vago, que é determinado em função do problema, por isso está

88 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 367. 89 Ibidem., p. 368. 90 SPRUTE, J. Die Enthymentheorie der aristotelischen Rhetorik, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1982, p. 150 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 43. 91 GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 75. 92 No original: “La tópica es para Viehweg una ‘técnica de pensamiento’ caracterizada por orientarse al problema. De ahí que la defina como Techne des Problemdenkens, esto es, técnica del pensamiento de problemas o, como DIEZ-PICAZO traduce entre nosotros, ‘técnica del pensamiento problemático’. El punto de arranque es un problema concreto, una situación de la vida real, un estado de cosas que configura lo que Viehweg, utilizando un término que ha suscitado numerosas críticas, llama una ‘aporía’. Una aporía significa para Viehweg una cuestión acuciante e ineludible, respecto de la que no está marcado un camino de salida (weglosigkeit), pero que no se puede soslayar. Y es ese concreto problema el que desencadena un juego o intercambio de consideraciones que constituyen lo que propiamente se denomina ‘tópica o arte de de la invención.”

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sempre posta e renovadamente em discussão, animando toda a jurisprudência como uma

‘aporia da justiça.’93

“Esses conceitos e proposições básicas do pensamento jurídico não são formalmente rigorosos nem podem ser formulados na forma de axiomas lógicos, mas são topoi da argumentação. A expressão topos significa lugar (comum). Trata-se de fórmulas variáveis no tempo e no espaço, de reconhecida força persuasiva, e que usamos com freqüência, mesmo nas argumentações não técnicas das discussões cotidianas. [...]. No direito são topoi, nesse sentido, noções como interesse, interesse público, boa-fé, autonomia da vontade [...].”94

Hermes Zaneti Júnior põe em relevo “[...] O reconhecimento da complexidade do direito, ao

mesmo tempo em que revela a ilusão da certeza e desestabiliza os conceitos estabelecidos

aprioristicamente, liberta o jurista. [...] liberta porque permite o questionamento sincero e

profundo das estruturas abstratas.”95

Kelly Susane Alflen da Silva destaca que:

“A tópica, pois, é muito mais diretiva, diretiva de modos de proceder na práxis jurídica e de seus pressupostos. Segundo a tópica são relevantes os pressupostos de partida – não os propósitos finais -, pelos quais as opções decisórias são factíveis de serem colocadas em um contexto que lhes atribua sentido, e, assim, tornam-se capazes de aceitação e consenso. É dizer, que, neste caso, se o consenso é o ponto de partida da argumentação jurídica, distingue-se do consenso enquanto propósito final da argumentação jurídica, pois neste último caso, seria possível a verificação da racionalidade da decisão. Ou ainda, pode-se afirmar que se trata de reconduzir todo juízo, com apoio em valorações topicamente argumentadas, a uma plausibilidade que se apresenta como racionalidade social evidente, ou se trata de retrotrair os argumentos a um nível tal em que tendem, precisamente, a um efeito de coincidência.”96

Menezes Cordeiro põe em relevo que:

“Em 1953, ao relançar a idéia básica de que o Direito é e permanece uma técnica de resolução de problemas, THEODOR VIEHWEG traçou as bases da moderna jurisprudência problemática. [...] Segundo Viehweg, o Direito só na aparência comportaria uma estrutura sistemática, que possibilitaria a dedução de todas as suas proposições e competentes soluções a

93 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional. 1979, pp. 3-4. 94 Ibidem., p. 4. 95 ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, pp. 85-86. 96 ALFLEN DA SILVA, Kelly Susane. Prólogo à edição brasileira. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência : uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, p. 13.

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partir de uns quantos axiomas de base. Na verdade, quatro planos decisivos impossibilitariam tal contextura para a Ciência do Direito: a escolha dos princípios de bases e seus conceitos é, logicamente, arbitrária; a aplicação do Direito requer, perante as proposições pré-elaboradas, extensões, restrições, assimilações, concentrações e passos similares; a necessidade de recurso à linguagem, sempre multi-significativa, impossibilita derivações; a apreensão da matéria de facto, condicionante de qualquer solução, escapa ao sistema.”97

A insuficiência de um sistema axiomático-dedutivo conduziria à natureza tópica do Direito,

entendida como “um processo especial de discussão de problemas [...].”98

“[...] dado um problema, chegar-se-ia a uma solução; de seguida, tal solução seria apoiada em tópicos, em pontos de vistas suscetíveis de serem compartilhados pelo adversário na discussão, pontos de vista esses que, uma vez admitidos, originariam respostas lógicas infalíveis.”99

Entretanto, tal posicionamento foi fortemente rechaçado por Canaris, que defende a idéia do

pensamento sistemático do Direito – em sentido não axiomático. Caberia a atuação da tópica

setorialmente, como na integração de lacunas, na aplicação de conceitos jurídicos

indeterminados e de cláusulas gerais.100

No que tange à aplicação das cláusulas gerais, Rui Rosado de Aguiar Júnior vê na tópica a

técnica mais apropriada para a concretização: “[...] Sendo a cláusula geral uma norma que

permite a solução do caso, é apropriada para a sua aplicação a tópica, que é "técnica de

pensamento orientado por problemas”, e serve para resolver a seguinte questão: o que, aqui e

agora, é o justo.”101

Para Menezes Cordeiro é essencial situar a tópica no contexto da metodologia jurídica. Nesse

sentido, Margarida Maria Lacombe Camargo vê na tópica uma mudança na discussão

metodológica característica do pós-positivismo. Conforme a Autora, com a obra de Viehweg

houve uma “mudança do eixo da discussão metodológica”, que, até então, repousava sobre o

método sistemático, de matriz lógico-dedutiva. Entretanto, essa concepção positivista já não

97 MENEZES CORDEIRO, António. Perspectivas metodológicas na mudança do século. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. VLVI. 98 Ibidem.. pp. XLVI-XLVII. 99 Ibidem., p. XLVI. 100 Ibidem., p. XLVI. 101 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/470, acesso em 10.11.2007, Artigo publicado também na Revista de Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000 e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 18, 2000, p. 221-228.

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mais atendia “às perplexidades e inseguranças causadas por um mundo de novos e variados

valores. [...] A lógica formal, de feição cartesiana, não dava mais resposta satisfatória à

complexidade das questões jurídicas.” Sob esse panorama, a obra de Viehweg traz uma nova

luz “[...] à necessidade de se construir uma teoria satisfatória para o direito, haja vista a

incapacidade de um sistema axiomático dedutivo fornecer fundamentos aceitáveis à prática

judicial.” Daí apresentar Viehweg o raciocínio tópico para a resolução de problemas.102

Francisco Amaral ressalta que, embora a tendência atual reconheça a importância da lógica

formal e combata veementemente a concepção silogística, o caminho posto é no sentido do

acatamento da contribuição “[...] da lógica dialética ou lógica da argumentação, que contesta

uma aplicação rígida e inflexível das leis, respeitando a dupla exigência do direito, de ordem

sistemática, que é a criação de uma ordem coerente e unitária, e da ordem pragmática, que é a

busca de soluções ideologicamente aceitáveis e socialmente justas.”103

“[...] A tópica [...] faz parte natural do pensamento jurídico. Para livrar o direito da tópica, seria necessária uma rigorosa sistematização dedutiva com meios exatos, que pressupõe que os problemas do direito possam ser mais bem resolvidos por essa técnica. Se isso não se aceita, a jurisprudência (ciência do direito) tem de ser entendida necessariamente como ‘um procedimento especial de discussão de problemas que, como tal, é objeto da ciência do direito’.”104

Segundo Garcia Amado, a especificidade dos problemas jurídicos na concepção dada por

Viehweg resulta da ‘aporia fundamental’ da ‘disciplina jurídica’ em seu conjunto, o que lhe

dá sentido e a faz necessária, é a questão do ‘que é o justo aqui e agora’. 105, 106

Na concepção de Hermes Zaneti Júnior, “a aporia fundamental do direito” “[...] pode aqui ser

entendida como a dificuldade de ordem racional, que decorre exclusivamente de um

raciocínio ou conteúdo dele e lhe é intrínseca. Por isso se afirma que o direito é

essencialmente problemático, pois lida constantemente com a aporia da justiça.”107

102 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2003, pp. 135-150 passim. 103 AMARAL, Francisco. Direito Civil : introdução. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 85. 104 ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 86. 105 GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 77-78. 106 No original: “[...] en qué radica la especificidad de los problemas jurídicos […]. […] la ‘aporía fundamental’ de ‘la disciplina jurídica’ en su conjunto, lo que le da sentido e la hace necesaria, es la cuestión de que ‘qué es lo justo aquí e ahora’”. 107 Op. cit., p. 90, nota 104.

83

3.5. O Declínio da Codificação e a Construção do Pensamento Sistemático

A grande questão colocada entre pensamento tópico e pensamento sistemático remete,

inicialmente, à concepção do conceito de sistema no pensamento jurídico.

A gênese da idéia de sistema faz volver o olhar para a época do direito natural, ponto de

partida para um breve traçado histórico do desenvolvimento da Ciência do Direito. De acordo

com Wieacker a “[...] exigência de um ‘sistema natural’, isto é, de um modelo imanente da

natureza e da sociedade que pudesse exprimir num sistema científico coerente e autônomo”108

teve inspiração nas ciências exatas, mais especificamente nas descobertas de Galileu e

Descartes, sem os quais “a fase lógico-sistemática do jusracionalismo não teria sido

possível.”109

A metodologia desenvolvida para a ‘construção sistemática da experiência científica’ foi

levada a efeito mediante o desenvolvimento do raciocínio dedutivo orientado pela observação

empírica, que propiciou a constatação de leis naturais, seguidas de leis mais gerais e, por fim

de axiomas. Segundo Wieacker, foi por meio “deste progredir em direção a formulações cada

vez mais gerais que se formaram os sistemas fechados desta época – a imagem fisicalista da

natureza de Newton [...] a Ethica more geometrico demosntrata de Espinosa, e com uma

importância não menor, os sistemas jusracionalistas.”110

No jusracionalismo, a visão do homem ganha uma nova perspectiva: não mais como obra

divina, mas como elemento de observação das leis naturais da sociedade, para quais se busca

a mesma imutabilidade das deduções alcançadas na matemática e na física. Essa nova

antroplogia leva à construção de um “sistema fechado da sociedade, um ‘direito natural’” à

semelhança do modelo lógico-dedutivo das ciências exatas.111

Wieacker assinala que, sob a influência do mecanicismo de Galileu e do racionalismo de

Descartes, Pufendorf “desenvolveu um sistema geral, por meio da dedução racional em

108 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 284. 109 Ibidem. p. 285. 110 Ibidem., pp. 286-287. 111 Ibidem, p. 288.

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cadeia e da observação empírica.”112 Também, sob a influência de Descartes, Pufendorf

“chegou à ligação entre dedução e indução, entre os axiomas e a observação, entre o método

sintético e o analítico, ligação que caracterizava o pensamento das ciências naturais desde os

Discorsis de galileu.”.113 Ademais, “através da combinação de dedução e observação,

Pufendorf ensaiou o primeiro sistema de uma teoria do direito, que, no que diz respeito aos

seus pormenores (conclusões) [...] determinou o próprio conteúdo do direito natural, o tornou

mais aberto e o enriqueceu.”114 Wieacker assegura que “[...] O sistema de Pufendorf

sobreviveu até hoje nos grandes códigos da Europa central, na medida em que estes se

baseiam na sistematização da ciência do direito comum pelo jusracionalismo. Em particular a

‘parte geral’ de muitos dos novos códigos seria dificilmente pensável sem o trabalho prévio

de Pufendorf.”115

O Código Civil francês, de 1804, e o Código alemão, de 1896, são os grandes marcos da era

da codificação, influenciando de lá para cá a construção catalogada das leis nos mais diversos

países.

Natalino Irti destaca que, na técnica de redação do Código Civil italiano, de 1865, os artigos

se desenvolvem segundo a lógica clássica de fattispecie e dos efeitos delas decorrentes, isto é,

hipóteses particulares das conseqüências jurídicas correlatas. A criação legislativa de um

repertório de figuras típicas para as quais o juiz pouco ou nada pode acrescentar na análise do

caso concreto em confronto à leitura do texto normativo. A técnica da fattispecie elimina ou

reduz ao máximo as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos fluidos. O Código é ‘desenhado’

tendo por característica a imutabilidade acompanhada da pretensão de completude e da

ambição de dar resposta a todos os problemas da realidade.116, 117

112 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 348. 113 Ibidem, pp.. 348-349. 114 Ibidem, p. 349. 115 Ibidem, p. 350 116 IRTI, Natalino. L’età della codificazione. Revista de Direito Civil, imobiliário, agrário e empresarial. ano 3. n. 10. out. – dez. 1979, pp.17-18. 117 No original: “Il primo dato sta nella tecnica di redazionedel codice civile del 1865. Gli articoli si svolgono secondo la logica classica di fattispecie ed effeti, cioé di ipotesi particolari e di correlative conseguenze giuridiche. Il legislatore s’illude di creare un repertorio di figure e discipline tipiche, sicché il giudice poco o nulla possa aggiungere all’accertamento del fato concreto ed alla lettura del testo normativo. Latecnica della fattispecie elimina, o riduce al minimo, le clausole generali i concetti fluidi: al carattere dell’immutabilità si accompagnano la pretesa della compiutezza e l’ambizione di dare risposta a tutti i problemi della realità.”

85

Entretanto, face às peculiaridades da Ciência do Direito, o positivismo e o formalismo foram

postos em xeque, uma vez que as considerações estritamente jurídico-positivas consideradas

intocáveis, que recusam quaisquer ‘referências metafísicas’ ou ‘filosóficas’, marcadas pela

interpretação exegética dos textos, demarcam a fragilidade desse sistema reclamando por um

novo traçado metodológico para essa mesma Ciência.118

“O primeiro óbice que se opõe ao formalismo reside na natureza histórico-cultural do Direito. [...] sabe-se que o Direito pertence a uma categoria de realidades dadas por paulatina evolução das sociedades.119 O segundo obstáculo reside na incapacidade do formalismo perante a riqueza dos casos concretos. Na verdade, todas as construções formais assentam num discurso de grande abstração e, como tal, marcado pela extrema redução de suas proposições. Quando invocadas para resolver casos concretos, tais proposições mostram-se insuficientes: elas não comportam os elementos que lhes facultem acompanhar a diversidade de ocorrências e, daí, de soluções diferenciadas.”120

Nesse sentido concorrem as afirmações de Judith Martins-Costa sobre a metodologia adotada

na construção do Código Civil alemão e também na do Código Civil brasileiro:

“O sistema jurídico é visto de modo fechado como a concatenação das projeções jurídicas obtidas mediante análise, de tal modo que elas formem, entre si, um sistema de regras logicamente claro, em si logicamente livre de contradições e sobretudo sem lacunas, para o que todos os fatos da vida tidos como jurídicos possam logicamente subsumir-se numa das normas contidas pelo Código.”121

Portanto, conforme asseverado por Menezes Cordeiro “[...] a incapacidade demonstrada pelos

esquemas formalistas tradicionais e pelo juspositivismo em acompanhar as novas

necessidades enfrentadas pelo Direito.”122 . “[...] constatam, no fundo, a insuficiência de

ambas essas posturas perante as necessidades da efectiva realização do Direito.”123

“Eis, pois, o desafio. Confrontando com as insuficiências do formalismo e do positivismo, o discurso jurídico tem de, como primeira tarefa, ampliar a sua base de incidência. Todo o processo de realização de Direito, portanto todos os factores que aí interferem, justificam ou explicam as decisões jurídicas, devem ser incluídos no discurso juscientífico. Noutros termos, o discurso juscientífico deve ser integral.124

118 MENEZES CORDEIRO, António. Dilemas da ciência do direito no final do século XX. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. XIII-XVI. 119 Ibidem, pp. XVIII-XIX. 120 Ibidem, p. XX. 121 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 225. 122 Op. Cit., p. XXVII, nota 118. 123 Ibidem, p. XXIII. 124 Ibidem, p. XXIV.

86

Essa insuficiência foi notada, também, por Clóvis do Couto e Silva ao deixar expresso que “a

idéia de Código, como totalidade normativa, corpus juris completo e acabado, não mais tem

sentido [...] A complexidade social atingiu um grau tão elevado, acarretou um número tão

grande de leis, que em todo mundo se observa a tendência a reduzi-las ao indispensável.”125

A integralidade desse discurso, no entanto, não poderia ser alcançada, exaustivamente, em

proposições normativas, o que denotava a incoerência das idéias de completude do sistema

codificado e de aversão à probabilidade da presença de lacunas no ordenamento. Tal

constatação levou a uma nova configuração normativa com a adoção de princípios gerais,

conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais etc.

Essa inexorável realidade era veementemente rechaçada pelos adeptos do positivismo e do

formalismo, fato esse que, por si só, não teve força suficiente para a manutenção de um

sistema jurídico enclausurado em suas próprias amarras.

“O Direito é um modo de resolver casos concretos. Assim sendo, ele sempre teve uma particular aptidão para aderir à realidade: mesmo quando desamparado pela reflexão dos juristas, o Direito foi, ao longo da História, procurando as soluções possíveis.126 [...] “A concepção positivista da contraposição entre os sistemas interno e externo deve ser superada, através da sua síntese. Definitivamente interligadas, a lógica imanente do Direito e as proposições externas necessárias ao seu estudo e à sua aprendizagem constituem um todo que só em abordagens analíticas pode ser dissociado.”127 “Por isso quando se fala em sistema, no Direito, tem-se em mente uma ordenação de realidades jurídicas, tomadas nas suas conexões imanentes e nas suas fórmulas de exteriorização.”128

Tal constatação levou ao pensamento sistemático do Direito como Ciência capaz de lidar com

a diversidade de comportamentos, de culturas, de fatores econômico-sociais. Para o equilíbrio

desse sistema tornou-se imperioso o delineamento de “bitolas de comportamento”129 que

visassem à estabilidade das sociedades o que conduziu “[...] desde logo, uma primeira idéia de

125 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. Porto Alegre: AJURIS: Revista da Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul. ano XIV. Jul. 1987, p. 147. 126 MENEZES CORDEIRO, António. Dilemas da ciência do direito no final do século XX. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. XXIV. 127 Ibidem., p. LXIX. 128 Ibidem, p. LXIX. 129 Expressão utilizada por Menezes Cordeiro.

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sistema: o Direito assenta em relações estáveis, firmadas entre fenômenos que se repetem,

seja qual for a consciência que, disso, haja.130

“O Direito pressupõe, na verdade, uma repetição de fenômenos normativos, enquanto acontecimentos dotados de dimensão social, independentes, em certos estádios evolutivos, da própria consciência gnoseológica que, deles, exista. A objectivação assim permitida não pode, no entanto, fazer esquecer que o Direito é sempre um fenômeno cultural. A sua existência depende da criação humana e a sua estruturação advém da adopção pelos elementos que compõem uma sociedade, de certas bitolas de comportamento.”131

Nesse contexto, Menezes Cordeiro ressalta “[...] o relevo profundo que a arrumação

imprimida, pelo legislador, aos seus diplomas, assume em sede de soluções jurídico-

materiais”.132

“As exigências renovadas de uma Ciência Jurídica clara e precisa, capaz de responder a uma realidade em evolução permanente e que tenha em conta os actuais acontecimentos hermenêuticos e as exigências de maleabilidade deles decorrentes apontam para um novo pensamento sistemático.”133

Nessa senda, Canaris coloca em evidência que:

“Longe de ser uma aberração, como pretendem os críticos do pensamento sistemático, a idéia do sistema jurídico justifica-se a partir de um dos mais elevados valores do Direito, nomeadamente do princípio da justiça e das suas concretizações no princípio da igualdade e na tendência para a generalização. Acontece que um outro valor supremo, a segurança jurídica, aponta na mesma direcção. Também ela pressiona, em todas as suas manifestações – seja como determinabilidade e previsibilidade do Direito, como estabilidade e continuidade da legislação e da jurisprudência ou simplesmente como praticabilidade da aplicação do Direito – para a formação de um sistema, pois todos esses postulados podem ser muito melhor prosseguidos através de um direito adequadamente ordenado, dominado por poucos e alcançáveis princípios, portanto um Direito ordenado em sistema, do que por uma multiciplicidade inabarcável de normas singulares desconexas e em demasiado fácil contradição uma com as outras.”134

Em apertada síntese, “[...] O papel do conceito de sistema é, no entanto, como se volta a

frisar, o de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem

130 MENEZES CORDEIRO, António. Dilemas da ciência do direito no final do século XX. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. LXIV. 131 Ibidem, p. LXVII. 132 Ibidem, p. LXIX. 133 Idem. A realização do direito. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. CXII. 134 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 22.

88

jurídica.”135, que se contrapõe à “[...] idéia do Código, no seu sentido tradicional e positivista,

como algo que incorpore a totalidade em seu universo a totalidade normativa de um país”136

3.6. Concepções Doutrinárias sobre a Idéia de Sistema

Para a compreensão dessa visão sistêmica da Ciência do Direito oportuno se torna trazer à

colação a concepção de balizada doutrina, citada por Canaris:

“KANT caracterizou o sistema como ‘a unidade sob uma idéia, de conhecimentos variados’ ou, também, como ‘um conjunto de conhecimentos ordenados segundo princípios’. No ‘Dicionário dos conceitos filosóficos’ de EISLER, define-se sistema:’1. Objectivo: um conjunto global de coisas, processos ou partes, no qual o significado de cada parcela é determinado pelo conjunto supra-ordenado e supra-somativo (...)2. Lógico: uma multiciplicidade de conhecimentos, unificada e prosseguida através de um princípio, para um conhecimento conjunto ou para uma estrutura explicativa agrupada em si e unificada em termos internos lógicos, como o correspondente, o mais possível fiel, de um sistema real de coisas, isto é, de um conjunto de relações das coisas entre si, que nós procuramos, no processo científico ‘reconstruir’ de modo aproximativo’. Segundo SAVIGNY, o sistema ‘é a concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as regras de Direito numa grande universidade’, segundo STAMMLER ‘uma unidade totalmente coordenada’, segundo BINDER, um conjunto de conceitos jurídicos ordenado segundo pontos de vista unitários’, segundo HEGLER, ‘a representação de um âmbito do saber numa estrutura significativa que se apresenta a si própria como ordenação unitária e concatenada’, segundo STOLL um ‘conjunto unitário ordenado’ e segundo, GOING uma ‘ordenação de conhecimentos segundo um ponto de vista unitário.’”137

Para Judith Martins-Costa, em sentido lato, “[...] a noção de sistema supõe, portanto, na

matéria jurídica, pelo menos a reunião de certos elementos em um conjunto organizado e

ordenado e a unitariedade das fontes de sua produção.”138

Na definição de sistema há duas características que emergem:

“[...] a de ordenação e a de unidade; elas estão, uma para a outra, na mais estreita relação de intercâmbio, mas são, no fundo, de separar. No que respeita, em primeiro lugar, à ordenação, pretende-se, com ela [...] exprimir um estado de coisas

135 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 23. Todos os destaques no original. 136 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. Porto Alegre: AJURIS: Revista da Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul. ano XIV. Jul. 1987, p. 137. 137 Op. cit., pp. 10-11, nota 135. 138 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 41.

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intrínseco racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade. No que toca à unidade, verifica-se que este factor modifica o que resulta já da ordenação, por não permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais.”139

O traçado estrutural desse novo pensamento sistemático da Ciência do Direito é delineado por

Menezes Cordeiro, da seguinte forma:

“Tal pensamento pode ser comodamente indiciado através de quatro requisitos presentes no sistema por ele postulado: trata-se de um sistema aberto, móvel, heterogêneo e cibernético. Aberto no duplo sentido de extensivo e intensivo; extensivo por oposição a pleno: admite questões a ele exteriores, que terão de encontrar saídas; intensivo por oposição a contínuo: compatibiliza-se, no seu interior, com elementos materiais a ele estranhos. Móvel por, no seu seio, não postular proposições hierarquizadas, antes surgindo intermutáveis. Heterogêneo por apresentar, no seu corpo, áreas de densidade diversa: desde coberturas integrais por proposições rígidas até às quebras intra-sistemáticas e às lacunas rebeldes à analogia. Cibernético por atentar nas conseqüências de decisões que legitime, modificando-se e adaptando-se em função desses elementos periféricos.”140

Judith Martins-Costa faz a distinção entre sistema fechado e sistema aberto nos seguintes

termos: “O sistema fechado é o que se auto-referencia de modo absoluto – é exclusivo e

excludente”. Por sistema aberto deve-se compreender “[...] o sistema que se auto-referencia

de modo apenas relativo. Não é, portanto, excludente do que está em suas margens, possuindo

mecanismos de captação do seu entorno e de ressistematização destes elementos.”141

Por sua vez, a Autora traça a diferença existente entre ‘ordenamento’ e ‘sistema’, vez que não

são termos sinônimos, sendo delineados os traços característicos do ‘ordenamento’ como o

“[...] conjunto de normas que regulam a vida jurídica em certo espaço territorial. O sistema

exprime as ligações, nem sempre existentes, entre estas normas. O ordenamento é, assim, uma

espécie de ‘ecossistema’, que pode abranger uma ampla variedade de sistemas e subsistemas

normativos.”142

Na visão de Francisco Amaral a idéia de sistema permite, não só didaticamente, uma melhor

compreensão do direito, bem como do direito comparado ao possibilitar o confronto e o

139 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. 12-13. 140 MENEZES CORDEIRO, António. A realização do direito. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. CXII-CXIII. 141 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 42-43. 142 Ibidem., p. 43.

90

relacionamento entre os diversos sistemas integrantes do universo social. Ademais, traz a

compreensão dos valores e do modo de agir presentes na realidade social numa relação

indissociável com o sistema jurídico.143

Larenz, por sua vez, destaca os empenhos da doutrina em trazer o sentido de sistema na

Ciência do Direito. Inicia pela concepção de sistema concebida por Engisch, que rechaça a

possibilidade de um sistema axiomático no campo jurídico. Entretanto, não descarta a idéia de

sistema e afirma que “[...] mesmo uma ordem jurídica que tacteie de caso para caso e de

regulação particular para regulação particular” seria desenvolvida “de acordo com princípios

imanentes que formam no seu conjunto um sistema”. Logo, a concepção de Engisch é de um

sistema de princípios diretivos que, coerentemente, se relacionam entre si, e que não

reclamam para si qualquer validade geral ou plenitude. Segundo Engisch, “o sistema não

poderia ser lançado como uma rede sobre o direito”. Daí Larenz compreender, das aportações

feitas por Engisch, que o sistema precisa ser ‘desenvolvido continuamente a partir do

conjunto do Direito, das suas conexões de sentido imanentes, e tornar esse todo transparente e

compreensível enquanto uma conexão de sentido.”144

Segundo Larenz, Esser faz a distinção entre sistema fechado – relacionado à idéia de

codificação – e sistema aberto – relacionado à casuística e não admite a exclusividade da

tópica para a resolução de problemas. Segundo Esser, “em todas as culturas jurídicas repete-se

um processo circular de descoberta de problemas, formação de princípios e consolidação do

sistema.” Os critérios que fundamentavam, de modo comprovável, cada decisão dos

problemas individualmente analisados, eram apreendidos em conceitos que, por sua vez,

“ofereciam um quadro racional de valoração no âmbito do qual a actividade de julgar se

poderia continuar a desenvolver.” Larenz esclarece que Esser não tem em vista conceitos

exaustivamente definidos, mas ‘conceitos-quadro’, cabendo à jurisprudência preenchê-los.145

Adepto, também, à idéia de sistematização do direito Larenz destaca que na concepção de

Coing todo o sistema “[...] condensaria o conhecimento alcançado na resolução de problemas

concretos: os princípios reconhecidos na sua relação recíproca, bem como as estruturas

materiais reconhecidas que se deparam no caso, no objecto da regulação.” Dessa forma,

143 AMARAL, Francisco. Direito civil : introdução. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 120. 144 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 231. 145 Ibidem., pp. 232-233 passim.

91

Larenz observa que o sistema revela o trabalho que foi desenvolvido dando origem a novos

conhecimentos que servirão de base para ulterior desenvolvimento do Direito. Nesse contexto,

“o trabalho sistemático permanece como uma tarefa contínua: só que se tem de ter

consciência de que nenhum sistema pode dominar dedutivamente a totalidade dos problemas;

o sistema tem de permanecer aberto. É apenas uma condensação provisória”, adverte

Coing.146

Larenz sintetiza as idéias de Engisch, Esser e Coing nos seguintes termos: “[...] o sistema

jurídico-científico tem de permanecer ‘aberto’, nunca tornado definitivo e, portanto, não

podendo nunca ter à disposição uma resposta para todas as questões [...].”147

Das diversas análises das concepções sobre sistema na Ciência do Direito Larenz conclui:

“É-nos lícito acreditar que nos chega à mão, aqui e ali, um pedaço do fio cujo fim é para nós oculto. Sendo assim, então para a Ciência do Direito [...], a única espécie de sistema ainda possível é o sistema ‘aberto’ e, até certo grau, ‘móvel’ em si, que nunca está completo e pode continuamente ser posto em questão, que torna clara a ‘racionalidade intrínseca’, os valores directivos e os princípios do Direito. A busca de tal sistema e a orientação dada por ele em questões fundamentais é uma parte constitutiva irrenunciável do labor jurídico.”148

As concepções doutrinárias colacionadas vêm corroborar a idéia de que se vive um constante

reconstruir da Ciência do Direito, na qual a pretensa exatidão dos textos normativos em uma

codificação que aspira por ser exaustiva, e na qual sobreleva a onipotência do legislador, cede

espaço a uma sistematização aberta aos influxos das novas e emergentes relações sociais, que

admite a presença de lacunas e faz uso de princípios gerais, conceitos jurídicos

indeterminados e cláusulas gerais estabelecendo um novo paradigma da práxis jurídica – o

paradigma da concreção.

Conforme ressaltado por Judith Martins-Costa, o sistema jurídico visto como um ‘sistema

aberto’ “não mais se revela como uma mera servidão à lei, formalmente caracterizada [...]

afastando-se, por conseqüência, a idéia de que o Direito possa ser aplicado, interpretado e

146 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, pp. 233-234. 147 Ibidem., p. 234. 148 Ibidem., p. 241.

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desenvolvido a partir de si mesmo – seja através das representações do legislador seja por

intermédio de um suposto ‘sentido imanente’”.149

3.7. A Mobilidade como Traço Característico dos Sistemas Abertos

Os autores que concebem a idéia do Direito como um sistema aberto aos influxos do que está

em seu entorno apresentam como traço característico desse sistema, além da abertura, que lhe

seria inerente, a mobilidade. Canaris, adepto dessa corrente, apresenta as seguintes

considerações no que tange à mobilidade e à abertura dos sistemas:

“No que toca, em primeiro lugar, à abertura, encontram-se na literatura, utilizações lingüísticas diferentes. Numa delas, a oposição entre sistema aberto e fechado é identificada com a diferença entre uma ordem jurídica construída casuisticamente e apoiada na jurisprudência e uma ordem dominada pela idéia de codificação; [...]150 Na outra, entende-se por abertura a incompleitude, a capacidade de evolução e a modificabilidade do sistema; neste sentido, o sistema da nossa ordem jurídica hodierna pode caracterizar-se como aberto. Pois é um facto geralmente conhecido e admitido o de que ele se encontra em uma mudança permanente [...].”151

A ordem e a unidade têm sido apontadas pela doutrina como características do conceito geral

de sistema152. Canaris faz, respectivamente, “a sua correspondência jurídica nas idéias da

149 MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos Tribunais . São: Revista dos Tribunais. n. 680. jun. 1992, p. 49. 150 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 103. 151 Ibidem, p. 104. 152 Em que pese a grande maioria doutrinária ser adepta da corrente que percebe o sistema jurídico como um sistema aberto, não implica, todavia, que seja uma corrente unitária. Espelhada na doutrina dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varella, que conceberam o conceito de autopoiese “para caracterizar seres vivos, enquanto sistemas que produzem a si próprios” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. O direito como sistema autopoiético. In Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. XXXIX, n. 163. jul. set. 1991, p. 185) há uma corrente doutrinária, encabeçada por Niklas Luhmann, que transpôs esse conceito de autopoiese para os sistemas sociais. Adepto dessa teoria Teubner, “discípulo de Luhmann” afirma que “o sistema jurídico dos nossos dias pode ser visto como um sistema autopoiético de segundo grau. Trata-se de um sistema constituído por actos de comunicação particulares gravitando em torno da distinção ‘legal/ilegal’, que se reproduzem como actos jurídicos. Tais actos comunicativos são regulados por expectativas jurídicas especializadas (que coordenam os processos sistemáticos internos da reprodução daqueles) e definem, graças a sua especialização ‘normativa’, as fronteiras do próprio sistema jurídico. Nas suas operações, o sistema jurídico constrói um meio envolvente próprio, a ‘realidade jurídica’, que aqui deve ser entendida no sentido sistémico estrito de modelo externo do mundo exterior – sendo nisso que reside a sua abertura cognitiva ou informativa do sistema jurídico operativamente fechado.” TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1989, p. 140. Entretanto, conforme destaca Engracía, trata-se de recente evolução do pensamento filosófico e sociológico do direito. “Nunca será demais recordar que a hipótese autopoiética originária (enquanto autopoiesis do biológico) surgiu em meados da década de setenta e que sua transposição para o domínio das ciências sociais e humanas ocorreu apenas em meados da década de oitenta, sendo certo que sua aplicação ao domínio das ciências jurídicas constitui evento recentíssimo”. (ANTUNES, Engracía. Prefácio. In TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1989, p. XXX.) Citado, também, por KANIJNIK, Danilo. Os standards do

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adequação valorativa e na unidade interior do direito; [...].”153 Nessa perspectica, segundo

Canaris “[...] deve-se definir o sistema jurídico como ‘ordem axiológica ou teleológica de

princípios jurídicos gerais’. [...].”154

É importante destacar que essa concepção de Canaris não se restringe à ordem jurídica, mas

alcançaria também as proposições doutrinárias.

“Este sistema não é fechado, mas antes aberto. Isto vale tanto para o sistema de proposições doutrinárias ou ‘sistema científico’, como para o próprio sistema da ordem jurídica, o ‘sistema objectivo’. A propósito do primeiro, a abertura significa a incompleitude do conhecimento científico, e a propósito do último, a mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais. A função do sistema na Ciência do Direito reside, por conseqüência, em traduzir e desenvolver a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica. A partir daí, o pensamento sistemático ganha também a justificação que, com isso, se deixa derivar mediatamente dos ‘valores jurídicos elevados’.”155

Ao adotar a técnica legislativa com o uso das cláusulas gerais o legislador tem em mira

assegurar uma permanente atualização do direito legislado, sem que se tenha que recorrer a

alterações no seu texto.

“É característico para a cláusula geral o ela estar carecida de preenchimento com valorações, isto é, o ela não dar os critérios necessários para a sua concretização, podendo-se estes, fundamentalmente, determinar apenas com a consideração do caso concreto respectivo.”156

Sob esse prisma tanto a jurisprudência quanto a doutrina desempenham papel de relevo na

construção do conteúdo veiculado pela cláusula geral.

convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. In: Revista Forense. vol. 353. jan. – fev. 2001, p. 30. Embora seja recente, trata-se de uma teoria que instiga à investigação e ao aprofundamento. “No sistema jurídico [...] se transmite a regulamentação de conduta, garantindo expectativas de comportamentos, através de aplicações das normas do sistema, feitas por juízes ao decidirem lides, e também por particulares ao fazerem um contrato, pelos legisladores ao elaborarem as novas leis etc. Fazer a aplicação do direito pressupõe uma compreensão dele [...]. A compreensão de regras do direito, porém, pressupõe que se imagine sua aplicação e possíveis resultados, dela, tendo em vista o sistema jurídico como um todo. E nessa circularidade auto-referencial, reflexiva, que o direito, de forma recursiva, vai-se auto-produzindo, continuamente, enquanto sistema autopoiético. GUERRA FILHO, Willis Santiago. O direito como sistema autopoiético. In Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, vol. XXXIX, n. 163. jul. set. 1991, p. 196. Para melhor aprofundamento sobre a teoria recomenda-se a obra de Teubner. 153 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 279. 154 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 280. 155 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 280 156 Ibidem, p. 142.

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“O ‘sistema móvel’ está, legislativamente, entre a formação de previsões normativas rígidas, por um lado, e a cláusula geral, por outro. Ele permite confrontar de modo particularmente feliz, a polaridade entre os ‘mais altos valores do direito’, em especial a ‘tendência generalizadora’ da justiça e a ‘individualizadora’ e constitui, assim, um enriquecimento valioso do instrumentário legislativo. Ele não deve, contudo, ser exclusivamente utilizado, antes representando uma possibilidade legislativa entre outras, ligadas entre si.”157

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira destaca a importância do papel do sistema no domínio do

Direito Processual, face à capacidade de realizar a adequação valorativa e a unidade interior

da ordem jurídica.158

3.8. Pensamento Sistemático e Tópica

Em sua obra datada de 1953, Theodor Viehweg defendeu a tese de que a estrutura do direito

não poderia ser captada com o auxílio do pensamento sistemático. A Ciência do Direito é,

pela sua estrutura, tópica.159

A juízo de Viehweg, “o ponto mais importante na consideração da tópica constitui a

determinação daquela técnica de pensamento que será orientada pelo problema” sendo a

tópica “a técnica do pensamento problemático.”160

Garcia Amado, ao analisar a tese de Viehweg sobre a inviabilidade do sistema lógico-

dedutivo, compreende que o desenvolvimento das idéias de Viehweg sobre o sistema e sua

relação com a tópica teve como ponto de partida a lógica dos juristas e não a lógica das

normas; no raciocínio a partir de um material dado e não na ordenação concreta desse

material. Poderia dizer que, no centro do interesse de Viehweg, estaria uma consideração

dinâmica do direito, em contraposição a um enfoque estático ou estrutural.161, 162

157 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 282. 158 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo valorativo em confronto com o formalismo excessivo. Revista de processo. n. 137. ano 31. São Paulo: Revista dos Tribunais. jul. 2006, p. 21. 159 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 243-245, nota 154. 160 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução da 5ª ed. alemã, rev. e ampl. de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 2007, pp. 33-34. 161 GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 146-147. 162 No original: “Por otra parte puede ser clarificador tratar de delimitar a qué ámbito de lo jurídico se refiere Viehweg cuando haba de la inviabilidad del sistema jurídico lógico-deductivo. […] al desarrollar sus ideas

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Seguindo essa linha de raciocínio, o Autor afirma que, sendo a tópica uma técnica de pensar

por problemas, e como os problemas não se incorporam de modo estável e definitivo em um

sistema dedutivo, antes são dinâmicos e se renovam continuamente no âmbito da sociedade à

qual se refere, a partir dos problemas se opera uma seleção dos sistemas e não o inverso.

Destarte, os topoi seriam, por sua flexibilidade, intercambialidade e fácil renovação o

instrumento mais adequado para o enfrentamento dessa dinâmica de problemas frente à

rigidez e permanente defasagem da lei positiva. Daí concluir que a decisão jurídica de solução

de conflitos seria, portanto, o centro de interesse de Viehweg, partindo desse ponto para

analisar a possibilidade ou utilidade da idéia de sistema para a vida jurídica.163, 164

É importante notar que, posteriormente à sua obra ‘Tópica e Jurisprudência’, conforme

abordado por Garcia Amado, Viehweg voltou ao tema do sistema jurídico, só que, desta vez,

de forma mais ampla. “Em 1961 já havia escrito que ao dizer que o pensamento jurídico não

se apresenta como um sistema dedutivo não significa dizer que não há vestígio de sistema, de

ordenação coerente do conjunto.”165, 166, 167

Ademais, conforme apontado por Garcia Amado, em 1968, no artigo intitulado

‘Systemprobleme in Rechtsdogmatik’ Viehweg assegura que o ordenamento jurídico é um

agrupamento que constitui um todo, dele se servindo o jurista. Trata-se, segundo Viehweg, de

sobre el sistema en su relación con el pensamiento tópico , Viehweg tiene puesto el punto de mira en la lógica de los juristas, no en las normas, en el razonamiento a partir de un material dado y no en la ordenación concreta de este material. […] Con otras palabras, en el centro de interés de Viehweg estaría una consideración dinámica del Derecho, por contraposición a un enfoque estático o estructural.” 163 GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 147. 164 No original: “Ya el primer y más general planteamiento de su teoría tópica parece indicar esta orientación. La tópica sería aquella técnica del pensamiento que se orienta hacia el problema o ‘técnica del pensamiento de problemas’, y los problemas no son algo que se pueda incorporar de modo estable y definitivo a un sistema deductivo de reglas para su solución, sino que surgen, cambian y se renuevan continuamente en el marco de la sociedad o grupo de que se trate. De ahí que a partir del problema se opera una selección de los sistemas, y no a la inversa. Y, por lo mismo, los topoi serían, por su flexibilidad, intercambiabilidad y fácil renovación, el instrumento más adecuado para afrontar esa dinámica de problemas, frente a la artificialidad, rigidez e permanente desfase de toda decisión que no pretende más apoyo que el de la ley positiva en sus estrictos términos.[…] La decisión jurídica de solución de conflictos sería, por tanto, el centro de interés de Viehweg y desde él valora la posibilidad o utilidad de la idea de sistema para la vida jurídica. 165 VIEHWEG, Theodor. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung, cit. P. 329. apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 150. 166 No original: “Ya antes, en 1961, había precisado que decir que el pensamiento jurídico no se presenta como un sistema deductivo no significa decir que falta todo vestigio de sistema, de ordenación coherente del conjunto.” 167 Nesse sentido a posição de Robles Morchón: “a tópica tem sido considerada como oposta ao sistema, quando é evidente que em qualquer caso os catálogos de topoi constituem sistemas rudimentares. A tópica é contrária somente ao sistema fechado.” ROBLES MORCHÓN, G. Epistemologia e Derecho. Madrid: Pirámide. 1982, p.113. apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 150, nota de rodapé 32.

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uma construção sistemática que pode adotar diversas concepções, seja no sentido funcional

(sistema com função dogmática, que constitui a dogmática jurídica, e sistema com função

investigadora, que possibilita o conhecimento sobre o direito, visto o seu interesse ser o

cognoscitivo). Sob o aspecto estrutural os sistemas podem assumir diversas funções, dentre as

quais destaca o sistema tópico, que provém da retórica e se apresenta como um sistema

argumentativo que se orienta pelo problema.

Segundo Viehweg “[...] o sistema tópico está em permanente movimento e cada formulação

do mesmo indica somente uma etapa argumentativa em relação à problemática, tal como esta

se apresenta. Pode, por isso, ser designado como sistema aberto, visto que deixa sua

deliberação aberta a novos pontos de vista. [...]”168 Conclui Garcia Amado que, na acepção de

Viehweg, poder afirmar que a tópica e sistema em sentido amplo não são excludentes, mas

são plenamente conciliáveis. A incompatibilidade maior seria entre tópica e sistema dedutivo,

já que a tópica não pode configurar-se segundo o modelo dedutivo.169

Sob essa ótica, é importante ressaltar que a boa-fé objetiva no campo processual, na qualidade

de standard ou modelo jurídico, tem a aptidão de permitir a aplicação no caso concreto, sem

uma definição à priori, pelo contrário, dada a sua característica polissêmica, móvel e fluida os

seus contornos são delineados à vista de cada problemática.

Nesses termos, trazemos à colação os apontamentos de Danilo Knijnik:

“[...] os standards não são como acertadamente observa Strache, regras configuradas conceptualmente, às quais se possa efectuar simplesmente subsunção por via do procedimento silogístico, mas pautas ‘móveis’, que têm de ser inferidas da conduta reconhecida como ‘típica’, e que têm de ser permanentemente concretizadas ao aplicá-las no caso a julgar. O standard é, segundo Strache, um tipo real, mas é, ao mesmo tempo, sempre um tipo ideal axiológico. [...].”170 “Portanto, todos os standards, paradigmas ou modelos de constatação, sob pena de destruir-se a si próprios, são abertos. Deles não se podem esperar soluções lógico-dedutivas. A regra que eles encerram deve, assim, ser hetero-integradas, ou seja, completadas com base em critérios meta-jurídicos que, segundo o lugar-comum tradicional, existem na sociedade.”171

168 VIEHWEG, Theodor. Sustemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung, cit. pp. 337-338 apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, p. 153. 169 GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 150-155. 170 KANIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. In: Revista Forense. vol. 353. jan. – fev. 2001, p. 27. 171 TARUFFO, Michelle. La giustificazione delle decisione fondate su ‘standards. In: La regola del caso: materiali sul ragionamento giuridico, Cedam, Milão, 1995, p. 267 apud KANIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. In: Revista Forense. vol. 353. jan. – fev. 2001, p. 27.

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Ao analisar a relação existente entre tópica e sistema, podem ser identificadas três posições

doutrinárias: 1) aqueles que vêem radical incompatibilidade entre ambos; 2) aqueles que

apontam uma tensão entre sistema e tópica e, por fim 3) aqueles que compreendem a

compatibilidade existente entre pensamento tópico e o pensamento sistemático – ambos são

complementares.172

Com relação a essa terceira corrente, Garcia Amado faz uma subdivisão em função da

importância atribuída à tópica e ao sistema:173

a) Em primeiro lugar, estão aqueles autores que aludem uma necessidade de recíproca

complementação entre tópica e sistemática sem, entretanto, que qualquer deles ocupe uma

posição de preeminência. Estão nesse grupo Frederich Müller e Esser.

b) Em um segundo grupo estão elencados os autores que, embora reconhecendo a

compatibilidade da tópica e do sistema, vêem que a tópica se sobressai, tais como Horn e

Egon Schneider.

c) Finalmente, aqueles autores que admitem a presença simultânea da sistemática e da tópica,

mas que põem em destaque a sistemática. Dentre eles encontra-se Canaris.

Segundo Canaris:

“A contraposição entre sistemática e tópica tem caráter dialético, uma vez que há um condicionamento recíproco. Assim a teoria que se desenvolve com a ajuda da sistemática se tem de provar ante o problema e receber dele sua justificação última, assim, por outro lado, as propostas de solução obtidas partindo do problema recebe força vinculante tão somente mediante sua inserção no sistema e nos valores fundamentais do Direito válido. Afirma, inclusive, que os representantes do pensamento tópico precisam reconhecer a existência de conexões gerais e internas entre os objetos. Com isso, os catálogos de tópicos, na medida em que queiram ser vinculantes e utilizáveis pela Ciência do Direito, e não uma mera aplicação do caso concreto, somente podem ser obtidos com a ajuda desse ‘sistema interno’ de um ordenamento. [...] Isso não significa dizer que o pensamento tópico está sempre submetido ao pensamento sistemático. Existiriam aspectos do Direito nos quais a tópica teria preeminência como, por exemplo, na concreção de conceitos que necessitam de complementação valorativa ou em campos como o Direito internacional privado [...].”174, 175

172 GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 159-160. Tradução livre da autora. 173 Ibidem, pp. 160-166. 174 CANARIS, C.W., Die Feststellung von Lüncken in Gesetz, Berlin, Duncker & Humblot, 2ª ed.. 1983, pp. 107-108. También puede verse , del mismo autor, Systemdenken und Systembergriff in der Jurisprudenz, cit. p.

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Canaris destaca que a tópica tem uma função de preeminência a cumprir dentro da Ciência do

Direito frente à insuficiência do pensamento sistemático:

“[...] sempre que faltem valorações jurídico-positivas suficientemente concretizadas. Pois nesse caso, não só as possibilidades do pensamento sistemático deparam com limites inultrapassáveis, como também se verificam, em regra, as características da tópica: as normas só podem aqui ser preenchidas, em termos de conteúdo, através do juiz, de tal modo que este deve actuar como legislador, decidindo, efectivamente, acerca da máxima do ‘comportamento correto”; ele fica adstrito, no campo da sua ‘auto-valoração’, a considerar os valores e as intuições jurídicas, culturais e sociais dominantes na comunidade jurídica em causa [...].”176

Hermes Zaneti Júnior anota que as conclusões de Canaris “acabam por reforçar a prevalência

da tópica nos modernos ordenamentos jurídicos e no direito brasileiro posterior à Constituição

de 1988, em particular”. O autor gaúcho destaca que as afirmações de Canaris conduzem “à

prevalência, ou maior espaço, do método tópico na aplicação das cláusulas gerais e no direito

constitucional”.177

Nesse panorama, Canaris põe em relevo a aplicação da tópica nos casos de lacunas da lei e

para o preenchimento das cláusulas gerais com valorações.

“Perante o pensamento sistemático, a tópica tem assim, aqui, uma função complementadora inteiramente legítima a cumprir, pode-se mesmo dizer que, nesta questão, se exprime de novo a ‘polaridade’ dos valores jurídicos mais elevados: a tópica ordena-se na equidade, portanto na tendência individualizadora da justiça; ela representa o processo adequado para um problema singular formulado o mais estritamente possível ou uma argumentação de equidade, orientada para o caso concreto, na qual, no essencial, nenhum ponto de vista discutível se pode rejeitar liminarmente como inadmissível, tal como é típico do pensamento sistemático abstracto, apoiado na tendência generalizadora da justiça.”178

149 y sigs. apud GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madri: Civitas. 1988, pp. 164-165. 175 No original: “Canaris, en Die Fesstellung von Lücken im Gesetz, afirma que la contraposición entre ‘Systemdenken y Problemdenken’ tiene carácter dialéctico, pues ambos se condicionan recíprocamente. Así como la teoría que se desarolla con ayuda de la sistemática se ha de probar ante el problema y recibir de él su justificación última, así, por otro lado, las propuestas de solución que se obtienen partiendo del problema reciben fuerza vinculante tan sólo mediante su inserción en el sistema y en los valores fundamentales del Derecho válido. Afirma que incluso los representantes del pensamiento tópico han de reconocer la existencia de conexiones generales e internas entre los objetos. Con ello, los catálogos de tópicos, en la medida que quieran ser vinculantes y utilizables por a Ciencia del Derecho, y no una mera aplicación de la justicia del caso concreto, sólo se pueden obter con ayuda de ese ‘sistema interno’ de un ordenamiento. Con todo esto no quiere decir Canaris que el pensamiento tópico esté siempre totalmente sometido al sistema. Existirían incluso aspectos del Derecho en los que aquél tendría preeminencia; por ejemplo, en lo relativo a la concreción de conceptos necesitados de complemento valorativo, o en campos, como el Derecho internacional privado […].” 176 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, pp. 269-270. 177 ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 91. 178 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 272. Destaques no original.

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Conforme destacado por Canaris “os pensamentos tópico e sistemático não são opostos

exclusivistas, mas antes se complementam mutuamente. Assim, eles não estão [...] isolados

um frente ao outro, antes se interpenetram mutuamente. Assim, também quando à tópica seja

conferida a primazia, não se torna a sistemática totalmente sem sentido.”179

“[...] também na concretização das cláusulas gerais carecidas de preenchimento com valorações, nas quais a tópica é bem mais que um mero auxiliar, surge uma tendência clara para a sistematização. Não só as cláusulas gerais se devem interpretar sempre à luz da ordem jurídica global, portanto sobre o pano de fundo do sistema [...] como ainda, e, sobretudo, se verifica que a sua concretização ocorre, largamente, através da formação de tipos, isto é, em parte, através da formação clara de previsões normativas, pressionando-se, com isso, no sentido da determinação sistemática. [...] Assim, não se deve abandonar totalmente a cláusula geral à equidade e, com isso, ao pensamento tópico.” 180 “Antes releva, também nela, a simultaneidade das tendências individualizadora e generalizadora da justiça e a esta última pressiona sempre no sentido da sistematização.”181 “De forma inversa, o âmbito virado, em primeira linha, para o pensamento sistemático, não se conserva totalmente livre da tópica.”182 “Não há, assim, uma alternativa rígida entre o pensamento tópico e o sistemático, mas antes uma complementação mútua. Quão longe vai um ou outro determina-se, em termos decisivos, de acordo com a medida das valorações jurídico-positivas existentes, - assim se explicando também o facto de a tópica jogar um papel bastante maior em sectores fortemente marcado por cláusulas gerais [...] ou em áreas reguladas de modo lacunoso [...].”183

Judith Martins-Costa entende ser equivocado o pensamento de Viehweg em contrapor

sistema e problema. Segundo a Autora existe uma relação de “complementariedade entre

sistema e problema”. “Dito de outro modo, o raciocínio jurídico não se desenvolve de uma

forma ‘puramente’ tópica nem puramente’ sistemático-dedutiva.”184

Judith Martins-Costa assegura que, para perscrutar a significação e o alcance da boa-fé

objetiva torna-se necessária a utilização do pensamento tópico, que alterou significativamente

a concepção de ‘sistema’ compreendido como sistema fechado, dotado em si mesmo de

plenitude lógica e que, portanto, apto a dar soluções às mais diversas questões por meio do

pensamento lógico-dedutivo.185

179 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p. 273. 180 Ibidem, pp. 273-274. 181 Ibidem, pp. 275-276. 182 Ibidem, p. 276. 183 Ibidem, p. 277. 184 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 370-371. 185 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 21.

100

Nessa senda, a técnica do pensamento tópico aplicada à boa-fé objetiva rompe com a clausura

do sistema “[...] ou sistema de auto-referência absoluta, exclusivo e excludente de tudo o mais

que não estivesse em si logicamente contido [...]” aflorando “[...] a ressistematização, seja das

próprias decisões judiciais, seja do material que progressivamente introduz no campo

normativo no qual situado o princípio.”186

No que tange à tópica, Luiz Roberto Barroso chama a atenção para o pensamento de

Canaris187 nos seguintes termos: “Embora o pensamento do autor seja, em princípio, infenso à

tópica, reconhece ele que a positivação de normas de textura aberta dá espaço à utilização do

referido método, sem perder de vista, contudo, a primazia das conexões sistemáticas que

conferem legitimidade à interpretação jurídica.”188

Luiz Roberto Barroso chama a atenção para o uso das cláusulas gerais: “As cláusulas gerais

não são uma categoria nova no Direito – de longa data elas integram a técnica legislativa –

nem são privativas do direito constitucional – podem ser encontradas no direito civil, no

direito administrativo e outros domínios. Não obstante, elas são um bom exemplo de como o

intérprete é co-participante do processo de criação do direito.”189

No entanto, ao tratar das cláusulas gerais no âmbito do direito civil, Judith Martins-Costa

adverte que a doutrina e a jurisprudência ainda não se deram conta do novo matiz

metodológico que ditas cláusulas impingem ao ordenamento jurídico.

“[...] não é comum encontrar o seu adequado tratamento teórico-prático, de modo que, em larga medida, permanecem elas como que sem voz, emudecidas. Nem são chamadas a falar por meio da jurisprudência nem a doutrina tem percebido a sua função de instrumento viabilizador do direito privado, segundo modelo que evite a pulverização de suas normas em centenas de pequenos mundos, valorativamente autônomos, em si mesmos fechados e conclusos e impermeáveis à incidência das normativas constitucionais notadamente aquelas que, por consubstanciarem os valores fundamentais do sistema visto em sua globalidade, teriam o condão de operar a releitura e rejuvenescimento da legislação ordinária, de matriz civilista.”190 [...]

186 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 22-23. 187 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático de sistema na ciência do direito. 3. ed. Introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002, p 277. 188 BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 28. n. 60. jul. – dez. 2004, p. 36, nota de rodapé 33. 189 Ibidem, p. 36, nota de rodapé n. 34. 190 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 25.

101

“Por isso hoje se entende ser preciso o encontro de um modelo de código pelo qual, mantida a concepção sistemática, permita-se a sua abertura aos elementos externos e mobilidade para enfrentar a mutabilidade da vida, possibilitando à prática jurisprudencial coordená-lo com os demais elementos do sistema, notadamente os valores constitucionais.”191

A Constituição Federal imprime uma identidade normativa às normas processuais atribuindo-

lhes real significação. Essa identidade constitucional não se restringe às garantias processuais

formalmente especificadas. Há que se ter uma perfeita permeabilidade das diretivas

constitucionais nas normas processuais especialmente quando se está diante de cláusulas

gerais. No que concerne à necessária coordenação das normativas constitucionais com o

conteúdo a ser atribuído às cláusulas gerais Luiz Roberto Barroso acentua:

“Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz dos problemas, dos fatos relevantes, analisados topicamente; ii) ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.”192

As transformações ocorridas tanto em relação ao papel da norma quanto em relação ao papel

do juiz quando se está diante de disposições normativas tais quais as cláusulas gerais são

destacadas por Barroso:

“As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social, boa-fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá que ir além, interpretando o comando normativo com a sua própria avaliação.”193

191 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 26. 192 BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 28. n. 60. jul. – dez. 2004, pp. 35-36. 193 BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 28. n. 60. jul. – dez. 2004, p. 36.

102

Vozes de autorizada doutrina destacam que a relevância do princípio da boa-fé objetiva é de

tal ordem a ponto de “transformar o conceito de sistema e a própria teoria tradicional das

fontes dos direitos subjetivos e dos deveres.”194

Nessa esteira, Judith Martins-Costa demonstra a inter-relação operada no conceito de sistema

à vista da concreção jurídica com base na boa-fé objetiva ao afirmar que “[...] A adoção da

perspectiva traçada pelo problema das fontes de produção jurídica, sua criação,

desenvolvimento e transformação permitirá, por sua vez, percorrer o preenchimento gradual

da noção de sistema no direito e o correlato papel que foi reservado, a cada momento

histórico, à boa-fé objetiva [...].”195

Ora, para que a noção de sistema seja construída gradualmente com as fontes de produção

jurídica mediante a operabilidade da concepção dada à boa-fé objetiva, tem-se como premissa

ou condição sine qua non a concepção de um sistema aberto, que se contrapõe ao hermetismo

dos Códigos, com tipificação cerrada, e ao modelo lógico-subsuntivo. Esse modelo de

codificação hermética, que pretende exaurir em suas normas todas as previsões de

comportamentos sócio-culturais, em que assenta o positivismo jurídico já não atende à

complexidade das novas relações oriundas das relações sociais em seus mais variados

espectros. Para libertar o direito desse hermetismo e permitir-lhe atender à complexidade

advinda das relações sociais a técnica legislativa de trabalhar com normas-principiais favorece

o trabalho de concreção jurisprudencial, dada a irradiação dessas normas na diversidade de

problemas que reclamam por solução.

Judith Martins-Costa, em precisa síntese, afirma:

“Com efeito, somente a partir do reconhecimento da necessidade de uma recíproca coordenação entre o procedimento dedutivo e o indutivo, entre o sistema e o caso, entre o método sistemático e o tópico, se poderá compreender como, como numa estrutura formal como é a do direito codificado, emergem, continuamente, elementos problemáticos, que são, por sua vez, sistematizados. Sistematização e assistematização constituem, assim, a polaridade dialética na qual se desenvolve o sistema aberto, eis que tendente à permanente ressistematização.”196

194 COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 44. 195 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 28. 196 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 377.

103

É bem verdade que a obra de Judith Martins-Costa está fundada em uma análise no âmbito do

direito civil, mais especificamente, no campo do direito das obrigações, entretanto, as

concepções e conclusões por ela trazidas ao longo do trabalho não invalida a sua transposição,

ainda que com todas as cautelas necessárias, para o campo do Processo Civil.

Na trilha a que se propõe o presente trabalho, os riscos também estão presentes, e em muito

maior amplitude do que aqueles aos quais se refere a Autora, visto que não se pode olvidar do

caráter público do Direito Processual, ou seja, além dos interesses das partes em litígio estão

presentes os interesses do Estado na prestação jurisdicional efetiva. Entretanto, a conformação

da boa-fé objetiva como modelo jurídico, na acepção conferida por Miguel Reale e tratada no

capítulo anterior, revela um novo ângulo de visão na teoria das fontes do direito, o que

demonstra a relevância do estudo não, apenas no âmbito das relações privadas, mas, também,

nos domínios do Direito Processual.

104

Capítulo IV – As Cláusulas Gerais: Fatores de Interação Sistemática e de Concreção

Jurídica

Sumário: 4.1. Cláusulas Gerais: Intercambialidade nos Sistemas Jurídicos Abertos e Criação

do Direito pelos Tribunais - 4.2. A Boa-Fé Objetiva: Fundamento Axiológico na Construção

do Direito - 4.3. A Boa-Fé Objetiva como Elemento Estruturante na Construção de Modelos

Jurídicos Jurisprudenciais

4.1. Cláusulas Gerais: Intercambialidade nos Sistemas Jurídicos Abertos e Criação do

Direito pelos Tribunais

O desenvolvimento histórico da ciência demonstra que os Códigos já tiveram a pretensão de

esgotarem em si mesmos todas as hipóteses que pudessem regular as relações sociais. Tal

pretensão era acompanhada por uma vinculação estrita do juiz à lei, vez que havia a idéia

prevalente de que as normas eram rigorosamente elaboradas de forma a não pairar quaisquer

sombras de dúvidas sobre o seu conteúdo e aplicação. O juiz era um autômato da lei, sendo-

lhe vedado qualquer juízo interpretativo.

Entretanto, esse tempo faz parte de um passado que deixou como lição que a vinculação cega

à lei e a rigorosa elaboração legislativa que pudesse veicular em si um sentido unívoco eram

impraticáveis diante da “vida na pluralidade das suas formas e na sua imprevisibilidade”.1

“As leis, porém, são hoje, em todos os domínios jurídicos, elaboradas por tal forma que os juizes e os funcionários da administração não descobrem e fundamentam as suas decisões tão somente através da subsunção a conceitos jurídicos fixos, a conceitos cujo conteúdo seja explicitado com segurança através da interpretação, mas antes são chamados a valorar autonomamente e, por vezes, a decidir e a agir de um modo semelhante ao do legislador. [...] O ponto de partida das nossas novas considerações terá de se ter a metódica da própria legislação ao afrouxar o vínculo que prende à lei os tribunais e as autoridades administrativas. Pois se nos deparam hoje diversos modos de expressão legislativa que são de molde a fazer com que o julgador (o órgão aplicador do Direito) adquira autonomia em face da lei. Como modos de expressão desse tipo

1 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, pp. 206-207.

105

distinguiremos: os conceitos jurídicos indeterminados, os conceitos normativos, os conceitos discricionários, e as cláusulas gerais.”2

As cláusulas gerais surgem como solução harmonizadora para um sistema flexível que tem a

capacidade de ajustar-se às novas demandas sociais e que tem a plasticidade por característica

marcante e a superação do fetichismo da lei e dos Códigos absolutos por disposições fluidas,

vagas.

As cláusulas gerais são definidas por Wieacker como “linhas de orientação, que, dirigidas ao

juiz, o vinculam e, ao mesmo tempo, lhe dão liberdade.”3 Ao analisar a concepção estrutural

do Código Civil Alemão, no que tange à opção pelo uso de cláusulas gerais, tal qual a boa-fé,

Wieacker destaca que “[...] O legislador transformou o seu trabalho [...] em algo de mais apto

para as mutações e mais capaz de durar do que aquilo que era de esperar.”4

No entanto, essa técnica legislativa não está imune a severas críticas no sentido de as

cláusulas gerais atribuírem ao juiz uma função que não estaria afinada ao seu ofício, o que

constituiria um perigo para a ordem jurídica. Tais críticas se baseiam no fato de ficar ao

alvedrio do juiz o preenchimento do conteúdo dessas cláusulas gerais “[...] por não permitir e,

ao mesmo tempo esvaziar de sentido, qualquer atividade subsuntiva, desde que ela, por seu

turno, não remeta para a situação bem definida de uma moral estabelecida e de técnica

judicial firme.”5

Wieacker põe em relevo, ainda, que a utilização das cláusulas gerais evidencia o recuo do

formalismo jurídico à pretensão de completude e liberta o juiz da sua vinculação às hipóteses

elencadas precisamente na lei. Tal técnica legislativa traz modificações substanciais na função

da lei, que passa a ser “[...] um elemento de social engineering [...]”, que traz uma nova

orientação jurídica ao colocar a cargo dos tribunais a apreciação do seu conteúdo, o que

confere ao juiz novas atribuições nas considerações da justiça do caso concreto.6

2 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, pp. 207-208. 3 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 545. 4 Ibidem, p. 546. 5 Ibidem, pp. 546-547. 6 Ibidem, p. 626.

106

A vinculação estrita do juiz ao texto legal cedeu espaço a uma nova conformação sistemática

do direito, ante a presença das cláusulas gerais, manifestando uma nova relação do juiz com a

lei. “Hoje, na verdade, a prática jurídica sente, com todo o direito, como sua tarefa mais

importante, não a solução sistemática ou conceitualmente justificada ou elegantemente

construída, mas a decisão do caso concreto de acordo com a razão jurídica nos quadros de

uma determinada ordem jurídica.”7

Ao trabalhar com as cláusulas gerais o juiz precisa realizar o processo de concreção, que

consiste na individualização da regulação para o caso concreto. Depreende-se que “[...] o ônus

inafastável da operação com normas de textura aberta por meio da concreção está localizado

no seu preenchimento e na sua fundamentação.”8

Rui Rosado de Aguiar Júnior faz a seguinte advertência:

“Disso sobressai a responsabilidade do juiz de agir com extremo cuidado ao estabelecer tal norma de dever, que ele usará como parâmetro para resolver o caso. Deverá ter atenção para os valores da comunidade, saber quais as condutas normalmente adotadas naquele lugar e naquelas circunstâncias e verificar de que modo poderia a parte cumprir com tais expectativas. Nesse trabalho criador, o juiz deve, mais do que em outras ocasiões, fundamentar as suas decisões, porque ele deve explicar às partes e à comunidade jurídica como e por que tais condutas foram consideradas as devidas na situação do processo, pois foi nessa norma de dever (criada por ele para o caso) que alicerçou a solução da causa. É um trabalho bem mais complexo do que o da simples subsunção. Nesta, o juiz já tem a norma; definido o fato e escolhida uma das normas positivas aplicáveis, basta explicar as razões dessas duas proposições para que se entenda a conclusão. No caso da cláusula geral, contudo, primeiro se exige a definição da própria norma de conduta, cujo conteúdo tem de ser encontrado para o caso, e somente depois disso será feita a subsunção da conduta efetivada em relação a tal preceito.”9

O trabalho jurisprudencial de concreção das cláusulas gerais traz como imperativo para o

magistrado a necessidade de ‘fundamentação racional e convincente para a finalidade de

7 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Tradução de A. M. Botelho Espanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 627. 8 MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. ano XXXIII. n. 103. set.-2006, p. 80. 9 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/470, acesso em 10.11.2007, Artigo publicado também na Revista de Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000 e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 18, 2000, p. 221-228. Destaques nossos.

107

afastar abusos’ e, por seu turno, a doutrina, num trabalho de cunho crítico-construtivo,

também passa a exercer papel de relevo no controle da prestação jurisdicional.10

Nessa esteira, Judith Martins-Costa realça o papel das cláusulas gerais na construção

jurisprudencial:

“Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar resposta, previamente, a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é de enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou através de variadas tipologias sociais dos usos e costumes.”11

Nesse mesmo sentido são os apontamentos de Wieacker sobre a aplicação da cláusula geral da

boa-fé no Código Civil alemão:

“Na medida em que a aplicação que da norma se faz na decisão judicial – considerada como realização daquela eleição - contém elementos volitivos ao lado do juízo lógico, cada decisão constitui um elemento de uma nova criação do direito, com se diz em nosso Continente – “elaborando a lei”. Essa atividade é tanto mais criadora quanto mais indeterminada seja a prescrição do legislador. [...] Por essa razão, a aplicação de uma cláusula geral – isto é, toda sentença baseada no parágrafo 242 – contribui para a criação do direito futuro, da mesma maneira que a formação de um tecido se dá com o trabalho de cada golpe da agulha: traça uma linha cuja direção não se pode estabelecer previamente.”12, 13

A Cláusula geral da boa-fé objetiva, conforme já asseverado por Judith Martins-Costa, “atua

tecnicamente como metanorma”. As cláusulas gerais não possuem conteúdo definido

aprioristicamente, não possui nem conteúdo nem conseqüência. Diferem, portanto, dos

conceitos jurídicos indeterminados, visto que nestes o antecedente precisa ser preenchido, e,

uma vez preenchido, decorre, automaticamente, a sua conseqüência.

10 MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. ano XXXIII. n. 103. set.-2006, p. 92. 11 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 299. 12 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Traducción de Lose Luis Carro. Prologo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 39-40. 13 No original: “En la medida en que la aplicación que de la norma se hace en la decisión judicial – considerada como realización de aquella elección – contiene elementos volitivos al lado del acto de juicio lógico, cada decisión constituye un elemento de una nueva creación de Derecho, es decir, en cierto modo – y también en nuestro Continente – ‘law in making. Y ello es tanto más así cuanto más indeterminada sea la preescisión del legislador. […] Por esta razón, la aplicación de una cláusula general - esto es, toda sentencia basada en el parágrafo 242 – contribuye a la creación del Derecho futuro, de la misma manera que cada golpe de aguja a la formación del tejido: traza una línea cuya dirección no puede establecerse previamente.”

108

A compreensão da cláusula geral da boa-fé objetiva como metanorma descortina o horizonte

de sua funcionalidade. Na acepção dada por Humberto Ávila as metanormas “situam-se num

segundo grau e estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas, princípios e regras.”14

Trata-se, portanto, na expressão cunhada por Ávila, de postulado normativo aplicativo, visto

que “funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas”15. As metanormas, ou

postulados normativos, não se confundem com as regras, nem com os princípios nem com os

sobreprincípios. Os postulados normativos aplicativos “estruturam a aplicação do dever de

promover um fim; [...] não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de

raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem

comportamentos”16.

Destarte, a cláusula geral da boa-fé objetiva atua, pois como metanorma ao direcionar o juiz

para a aplicação de outras normas. Tomando de empréstimo a expressão de Ávila, atua como

postulado normativo aplicativo, ou seja, “norma estruturante da aplicação de princípios e

regras”17 “Os postulados normativos foram definidos como deveres estruturais, isto é, como

deveres que estabelecem a vinculação entre elementos e impõem determinada relação entre

elas”18

Sob esse enfoque, a boa-fé objetiva, positivada no art. 14, inciso II do Código de Processo

Civil, deve ser interpretada como cláusula geral que possui a aptidão de atuar tecnicamente

como metanorma, estruturando a aplicação de regras e princípios afetos ao direito processual.

Judith Martins-Costa destaca que [...] constituindo ‘norma-princípio’, mais propriamente um

modelo, a boa-fé objetiva em sua concreta atuação opera articuladamente com outros

princípios e regras”.19

Releva destacar que a atuação judicial por meio das cláusulas gerais não implica

discricionariedade na decisão. “Não se trata – é importante demarcar desde logo este ponto –

de apelo à discricionariedade: as cláusulas gerais não contêm delegação de

14 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. ver. ampl. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 122. 15 Ibidem, p. 123. 16 Ibidem, p. 123. 17 Ibidem, p. 127. 18 Ibidem, p. 129. 19 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 373.

109

discricionariedade.”20 Corroborando esse entendimento, Menezes Cordeiro pontifica: “[...] a

Ciência do Direito, com o seu método e seus objectivos, transcende o sistema que faculta a

sua aprendizagem e reprodução. Quando o sistema, voluntariamente ou por incapacidade,

deixe à boa fé, desamparada, uma solução, esta serve para, ainda aí, recordar que à Ciência do

Direito, e não ao arbítrio, compete decidir.”21

“A concreção não é discricionária, mas atrelada a itens que proporcionam aos que lidam no

expediente forense maior mobilidade aos elementos do Processo Civil.” Sob essa perspectiva,

as decisões judiciais fulcradas na boa-fé objetiva, como cláusula geral que é, não escapa ao

crivo de severo controle, o que impõe em maior escala o rigor na fundamentação dessas

decisões. “Em busca da adequação procedimental e utilizando-se de cláusulas gerais, os

intérpretes da lei deverão exigir ‘excelente fundamentação’ das decisões inspiradas na

adequação fática do procedimento, em busca da maior efetividade das decisões judiciais.

Nesse aspecto repousa uma das mais intrincadas questões que circundam as ‘cláusulas gerais’,

senão a de mais destaque entre elas: o controle do uso e imposição de limites ao julgador.”22

Essa foi, também, a preocupação de Wieacker ao tratar da aplicação da cláusula geral da boa-

fé veiculada no § 242 do Código Civil alemão.

“[…] a invocação ao parágrafo 242 vincula também a jurisprudência futura aos constantes princípios jurídicos que anteriormente foram elaborados pela aplicação daquele. No entanto, convém deixar claro que a compreensão dos limites que o conteúdo de uma cláusula geral tem sido estabelecido na estrutura do próprio ordenamento jurídico.”23, 24

A tão aplaudida vagueza25 atribuída às cláusulas gerais traz como conseqüência imediata a

complexidade do seu alcance, que nas palavras de Judith Martins-Costa “são proteiformes

20 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 299, nota 11. 21 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 1267. 22 HENRIQUES FILHO, Ruy Alves. As cláusulas gerais no processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 33. jan. 2008, p. 354. 23 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Traducción de Lose Luis Carro. Prologo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 85. 24 No original: “[…] apelación al parágrafo 242 vincula también la jurisprudencia futura a los constantes principios jurisprudenciales que con anterioridad fueron elaborados para la aplicación de aquél. Sin embargo, con todo ello no debe oscurecerse la comprensión de los límites que al rendimiento de una cláusula general han sido establecidos en la estructura del mismo ordenamiento jurídico.” 25 Para Judith Martins-Costa houve uma imprecisão semântica de Engisch ao utilizar o termo ‘generalidade’ como atributo das cláusulas gerais, o que, segundo ela, promove uma confusão. Daí ela utilizar sempre o termo

110

porque assumem, seja qual for o ângulo de análise do estudioso, uma diversa significação.

São proteiformes, também, porque o exame de suas significações traz consigo uma longa lista

de problemas nucleares à teoria do direito e à dogmática jurídica, afastando, assim, qualquer

reducionismo ou simplificação de sua análise.”26

“É que as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo.”27

Judith Martins-Costa, por sua vez, anota as modificações da técnica e da linguagem

legislativa, destacadamente na segunda metade do século XX, quando “assumindo a lei

características de concreção e individualidade”. Especialmente no que tange ao emprego das

cláusulas gerais, a Autora destaca que são “normas cujo enunciado, ao invés de traçar

punctualmente a hipótese e suas conseqüências, é intencionalmente desenhado como uma

vaga moldura, permitindo pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores,

princípios, diretrizes e máximas de conduta, originalmente estrangeiros ao corpus codificado,

bem como a constante formulação de novas normas [...].”28

Segundo a Autora, a cláusula geral, sob o ponto de vista da técnica legislativa, pode ser

compreendida nos seguintes termos:

“[...] a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’, ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (uma competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente, ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originariamente extra-sistemáticos no interior do ordenamento jurídico.”29

‘vagueza’ para adjetivar a tessitura das cláusulas gerais. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 303. 26 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 273-274. 27 Ibidem, p. 274. 28 Ibidem, pp. 285-286. 29 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 303. Todos os destaques no original.

111

Karl Engisch apresenta as cláusulas gerais como um ‘conceito multissignificativo’, que tem

uma significação própria, e que não se confunde com os conceitos jurídicos indeterminados. É

um “conceito que se contrapõe a uma elaboração ‘casuística’ das hipóteses legais.” De acordo

com Engisch ‘casuística’ “é aquela configuração da hipótese legal (enquanto somatório dos

pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares grupos de casos na

sua especificidade própria.”30

Na concepção de Judith Martins-Costa: “O modelo da cláusula geral, portanto, seria o modelo

da ‘não-casuística’.”31 “Desse modo, devemos entender por cláusula geral uma formulação da

hipótese legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete a tratamento

jurídico todo um domínio de casos.”32

“O verdadeiro significado das cláusulas gerais reside no domínio da técnica legislativa. Graças à sua generalidade, elas tornam possível sujeitar um mais vasto grupo de situações, de modo ilacunar e com possibilidade de ajustamento, a uma conseqüência jurídica.”33

Em oposição à casuística, Judith Martins-Costa destaca que “[...] às cláusulas gerais é

assinalada a vantagem da mobilidade proporcionada pela intencional imprecisão dos termos

da fattispecie que contém, do que o risco do imobilismo é afastado por esta técnica porque

aqui é utilizado em grau mínimo o princípio da tipicidade.”34

No que concerne ao aspecto estrutural – entendido como a “conjugação de certa previsão

normativa (hipótese normativa) com determinadas conseqüências jurídicas (efeitos,

estatuição) que lhe são correlatas”35 - das cláusulas gerais, Judith Martins-Costa ressalta a

existência de duas correntes: uma que considera as cláusulas gerais como “normas ou

preceitos jurídicos cujos termos são dotados de elevado grau de ‘generalidade’”, o que

significaria dizer que a particularidade estaria em a previsão normativa (fattispecie) abarcar

uma ampla gama de casos, que seriam determinados de acordo com um padrão objetivo de

conduta ou um valor juridicamente aceito. A sua aplicação dar-se-ia nos mesmos moldes, por

30 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 228. 31 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 296. 32 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Tradução de J. Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 229. 33 Ibidem, p. 233. 34 Ibidem, p. 298. 35 Ibidem, p. 329.

112

exemplo, do pensamento desenvolvido quando se defronta com conceitos jurídicos

indeterminados. A outra corrente, de modo distinto, vê as cláusulas gerais como “normas

(parcialmente) em branco”, as quais exigem do juiz, para a sua concreção, socorrer-se de

referências extrajurídicas. “[...] exige que o juiz seja reenviado a modelos de comportamento e

a pautas de valoração que não estão descritos nem na própria cláusula geral nem, por vezes,

no próprio ordenamento jurídico, podendo ainda o juiz ser direcionado pela cláusula geral a

formar normas de decisão, vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um

padrão social, assim reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta.”36

Clóvis do Couto e Silva reporta-se à particularidade do pensamento de Wilburg, para quem a

abertura do sistema não se restringia a “receber aspectos e concepções extrajurídicos, mas por

conceber uma ‘abertura interna’ permitindo a formulação de soluções jurídicas por meio da

composição de diversas normas já pertencentes ao próprio sistema numa perfeita dialeticidade

harmonizada pela própria coerência que identifica o sistema”.37, 38

Nesse sentido observa Rui Rosado de Aguiar Júnior:

“A cláusula geral, portanto, exige do juiz uma atuação especial, e através dela é que se atribui uma mobilidade ao sistema, mobilidade que será externa, na medida em que se utiliza de conceitos além do sistema, e interna, quando desloca regramentos criados especificamente para um caso e os traslada para outras situações.”39

Larenz opta por utilizar a nomenclatura “pautas carecidas de preenchimento” para se reportar

“[...] quando a lei recorre a uma pauta de valoração que carece de preenchimento valorativo,

para delimitar uma hipótese legal ou uma conseqüência jurídica. [...]”40, dentre as quais

destaca a boa-fé.

Segundo Larenz: 36 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 329-330. 37 WILBURG. Zusammenspiel der Karfte, cit., pág. 379. apud COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 50. nota de rodapé nº 13. 38 Essa concepção é adotada por Judith Martins-Costa em A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 341. 39 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/470, acesso em 10.11.2007, Artigo publicado também na Revista de Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000 e na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 18, 2000, p. 221-228. 40 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 310.

113

“Tais pautas não são, por assim dizer, pura e simplesmente destituídas de conteúdo; não são ‘fórmulas vazias pseudonormativas’ que seriam compatíveis com todas ou quase todas as formas concretas de comportamento. [...] Estas pautas alcançam o seu preenchimento de conteúdo mediante a consciência jurídica, que não só é cunhada pela tradição, mas que é compreendida como estando em permanente reconstituição. Os tribunais consideram-se de certo modo como ‘caixas de repercussão’ dessa consciência jurídica geral [...].”41

Na concepção de Larenz, a concretização das “pautas carecidas de preenchimento” contribui

para futuras concretizações, de novos casos concretos a decidir, uma vez que são criados

pensamentos tipológicos, ou seja, há o agrupamento de casos e o tratamento dos elementos

que para eles são típicos ou, a idéia jurídica levada em consideração, servindo para uma nova

concretização.42

“No que concerne às pautas carecidas de preenchimento valorativo, torna-se claro, com particular nitidez, que a sua ‘aplicação’ exige sempre a sua concretização, quer dizer, a determinação ulterior de seu conteúdo, e esta por seu lado retroage à ‘aplicação’ da pauta a casos futuros semelhantes, pois que cada concretização (alcançada) serve de caso de comparação e torna-se assim ponto de partida para concretizações ulteriores. A pauta é ‘concretizada’ no julgamento do caso em que o julgador reconheça ‘aplicável’ ou ‘não aplicável’. Nesse processo de concretização mediante julgamento de casos, a pauta é enriquecida no seu conteúdo e assim desenvolvida. Aplicação do Direito e desenvolvimento do Direito caminham a par e passo.”43

É importante destacar que, no âmago dos tribunais, se dá a criação do direito sem que ocorra

qualquer intervenção do legislador. Como as cláusulas gerais ou “pautas carecidas de

preenchimento” não possuem uma fattispecie autônoma, exigem a sua progressiva formação

pelo juiz tanto ao criar a fattispecie quanto ao traçar as suas conseqüências.

Nesse passo, essa criação do direito pelo juiz remete à construção dos modelos jurídicos

jurisprudenciais, fruto do catálogo de decisões judiciais, na acepção da “Teoria de Modelos de

Miguel Reale”. Significa dizer que, como os modelos jurídicos representam o conteúdo das

fontes eles estão intrinsecamente relacionados às fontes no que tange à sua dinamicidade,

historicidade e processualidade.

41 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 311. 42 Ibidem, p. 311. 43 Ibidem, pp. 311-312. Destaques nossos.

114

Clóvis do Couto é Silva destaca que as cláusulas gerais são “um convite para uma atividade

judicial mais criadora, destinada a complementar o corpus juris vigente, com novos princípios

e normas. O juiz é, também, um legislador para o caso concreto.”44

Nesse contexto, o “arquétipo exemplar da experiência social”, concretizado pelo juiz por meio

da cláusula geral, ingressa no sistema jurídico por meio delas, à medida que redunda na

construção do modelo jurídico o qual, de acordo com Miguel Reale, por sua natureza

prospectiva e prescritiva, serve de ponto de partida para novos juízos futuros, não podendo

olvidar que a concretização das cláusulas gerais somente se opera à vista do caso concreto.45

A opção por sistemas abertos permite a criação de soluções jurídicas que dão concretude ao

conteúdo das cláusulas gerais, além de permitir ao magistrado ‘caminhar’ pela teia dos

dispositivos legais num trabalho de formulação da norma jurídica para o caso concreto.

Conforme salientado por Hermes Zaneti Júnior, há, hoje, uma necessidade premente de

desmistificar a teoria das fontes do direito, pois o processo não mais é visto como “técnica a

serviço de um sistema de direito privados ou de direitos do Estado”, mas, sim, “como

fenômeno de poder” cuja técnica é norteada pela ideologia.46 A jurisprudência, nesse cenário,

sob a perspectiva do processo constitucional, encontra relevo, ante a nova conformação

estrutural normativa com a adoção do uso dos princípios, das cláusulas gerais.

Ao jurista já não mais se reserva uma atuação de autômato aplicador da lei num raciocínio

lógico-dedutivo. Pelo contrário, a atividade jurisprudencial desempenha um importante papel

na construção do direito, que não se restringe a uma influência subsidiária, mas uma atividade

criadora que se desenvolve na justiça do caso concreto, na jurisprudência da concreção.

Sob essa perspectiva, a boa-fé objetiva tem prestado um grande contributo na construção do

direito, conforme ressalta Menezes Cordeiro:

44 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O direito Civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. Porto Alegre: Revista da AJURIS. ano XIV. Jul. 1987, p. 149. 45 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 334-345, passim. 46 ZANETI JÚNIOR. Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 235.

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“A primeira idéia da boa fé, como é sabido, andou em torno de uma delegação expressa do legislador ao juiz para intervir nas lacunas, para suprir a inexistência de regulações particulares ou para adaptar proposições jurídicas abstractas às especialidades do caso concreto. Hoje, reconhece-se face à realidade insofismável dos últimos sessenta anos, que a boa fé foi, de facto, utilizada para a criação de uma série de institutos novos admitindo-se, ao lado de um Direito Judicial que visa concretizar a lei, outros que pretendem colmatá-la, corrigi-la e complementá-la o que, nem por isso, provocaria uma quebra na clivagem entre as funções legislativa e judicial.”47

A jurisprudência ocupa o patamar de fonte primária do direito numa denotação de clara

ruptura com a divisão estanque de poderes, na qual a atividade do juiz é de ‘dar conteúdo às

cláusulas gerais’, assim como aplicar princípios e trabalhar com conceitos jurídicos

indeterminados numa tarefa metodológica de construção do direito que traduzirá em

precedentes e modelos jurídicos jurisprudenciais. É certo que a responsabilidade do juiz

aumenta em razão direta a esse aumento de poder, entretanto nada que possa comprometer o

controle judicial tendo-se por norte o princípio da motivação das decisões judiciais, que

nesses casos, requer uma maior demonstração da construção refletida no provimento judicial.

Judith Martins-Costa destaca a importante contribuição da cláusula geral da boa-fé para a

mudança paradigmática da concepção de sistema. Segundo a Autora, a boa-fé “é o caminho

pelo qual se permite a construção de uma noção substancialista do direito, atuando como um

modelo hábil à elaboração de um sistema aberto, que evolui e se perfaz dia-a-dia pela

incorporação dos variados casos apresentados pela prática social, um sistema no qual os

chamados operadores do direito passam a ser vistos como seus verdadeiros autores, e não

como meramente seus aplicadores, recipiendários ou destinatários.”48

Dessume-se que, na órbita de um ordenamento jurídico configurado por um sistema aberto,

que permite influxos advindos das diversas esferas normativas e valorativas, o magistrado,

rompendo com o antigo e profundo viés que separa o legislador do aplicador da lei, passa a

criar o direito do caso concreto. Direito esse que, pelas reiteradas aplicações, constrói e

reconstrói a norma, numa modelação que é delineada na estrutura dinâmica dos modelos

jurídicos jurisprudenciais que dão vida e conteúdo às “pautas carecidas de preenchimento”49.

47 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 1267. nota de rodapé nº 182. 48 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 382. 49 Expressão tomada de empréstimo de Larenz para denominar as cláusulas gerais. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997, p. 310.

116

4.2. A Boa-Fé Objetiva: Fundamento Axiológico na Construção do Direito

O dinamismo e a multiplicidade das relações sociais abrem espaço que foge do alcance da

regulação dos textos normativos propiciando que a boa-fé objetiva surja nessas zonas não

contempladas pela codificação com um relevo dogmático real: seja para assegurar a

reprodução do sistema; seja para abarcar áreas que ganham a característica de juridicidade,

seja para adaptar à nova realidade social textos jurídicos arcaicos, seja concretizando um

projeto que o legislador apenas sinalizou.50

Torna-se imperioso, portanto, verificar qual a importância, qual o conteúdo da boa-fé frente

ao sistema jurídico.

A boa-fé objetiva nos ordenamentos jurídicos modernos tem alcançado posição de relevo.

Menezes Cordeiro destaca que “a boa-fé para além de transmitir elementos próprios do

sistema na sua globalidade, comunica ainda o seu próprio conteúdo o qual, conjuntamente,

como sempre, com o caso a decidir, tem, também, um papel no selecionar do material. Em

termos formais, pode proclamar-se que a boa-fé, apesar da sua vaguidade, quando não tenha

havido um processo adequado de concretização, não integra o vácuo regulativo da lacuna,

visto ser, ela própria, regulação.”51

De uma ou de outra maneira a boa-fé objetiva vai concretizando num trabalho engenhoso da

jurisprudência a atualizar os textos normativos sem qualquer intervenção do legislador

fazendo surgir o “direito jurisprudencial”. “A boa-fé permite a consolidação dessa dogmática

que, no sistema jurídico, e não, apenas, na lei tenha a sua força: por outro lado, pela sua

vocação expansiva, pode ser chamada a intervir em qualquer caso.”52

A importância da cláusula geral da boa-fé objetiva dá mobilidade aos textos legais permitindo

que o seu conteúdo seja definido à vista do caso concreto.

“Com a edição de conceitos abertos como o da boa-fé, a ordem jurídica atribui ao juiz a tarefa de adequar a aplicação judicial às modificações sociais, uma vez que os

50 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 46. 51 Ibidem, p. 1265. 52 Ibidem, pp. 47-48.

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limites dos fatos previstos pelas aludidas cláusulas gerais são fugidios, móveis; de nenhum modo fixos. [....] A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos, vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura jurídica, de molde a chegar-se a uma solução que atenda à diversidade de interesses resultantes de determinada situação.”53

Assim, a boa-fé tem essa dinamicidade que lhe é inerente, amoldando a cada caso concreto

uma solução jurídica aderente aos parâmetros de lealdade e de honestidade. Embora, como

afirma Judith Martins Costa, não se possa, a priori, tabular ou arrolar o significado da

valoração a ser procedida mediante a boa-fé, ela serve de fundamento para todo o sistema

jurídico e, como modelo jurídico, deve ser construído concretamente à vista de cada relação.

Ressalte-se que “as cláusulas gerais são normas jurídicas derivadas de um processo legislativo

constitucionalmente previsto, que as posiciona na categoria formal de leis. São normas

jurídicas dotadas de uma função peculiar, diferenciada das demais normas, por carregarem

uma amplitude semântica ou valorativa maior do que a generalidade das disposições

normativas”.54.

Rizatto Nunes aponta que:

“[...] a boa-fé objetiva [...] erigida a verdadeira fórmula de conduta, capaz de, por si só, apontar o caminho para a solução da pendência. Pode-se, a grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com parâmetros de lealdade e honestidade. Anote-se bem, a boa-fé objetiva é fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e dever ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. [...] o intérprete lança mão dela [boa-fé objetiva], utilizando-a como um modelo, um standard (um topos) a ser adotado na verificação de cada caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva que lhe é adjacente. [...] A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de precondição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto deve se amoldar. [...] Ela é um modelo principiológico que visa a garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude cooperativa que seja capaz de realizar o intento da relação jurídica legitimamente estabelecida. Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade da lide, sempre que o magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na

53 COUTO E SILVA,Clóvis. O direito civil brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera Maria Jacob de. (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, pp. 39 e 43. 54 JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas gerais no novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 22.

118

verificação de algum tipo de abuso deve levar em consideração essa consideração ideal e apriorística pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa.”55

Quadra advertir que, frente à vagueza da cláusula geral da boa-fé, exige-se maior rigor na

fundamentação das decisões judiciais em homenagem à segurança jurídica tendo sempre por

certo que as decisões judiciais não escapam ao controle por meio dos recursos adequadamente

previstos na ordem jurídica.

Clóvis do Couto e Silva salienta que não é tarefa das mais simples dizer o direito a ser

aplicado ou dar concreção às cláusulas gerais, exigindo um trabalho conjunto dos magistrados

na criação do direito e dos demais juristas no controle dessas decisões para que não haja

espaço para o arbítrio.56

Não obstante ser a boa-fé uma representação jurídica dotada de vasto conteúdo e,

independentemente da instituição jurídica em que esteja a atuar, o seu enunciado como

postulado básico tem fundamento constitucional e apresenta-se como uma das vias mais

fecundas para a efetivação do conteúdo ético-social na ordem jurídica ao estabelecer o

exercício dos direitos segundo esse padrão de conduta.

Mesmo que não estivesse expressamente positivada “[...] A conduta honesta é uma exigência

geral do sistema – o que não quer dizer que num ou noutro ponto, e além de uma orientação

geral, a lei não toque no instituto.”57

Nesse sentido, Clóvis do Couto e Silva já defendia a aplicação da boa-fé objetiva

independentemente da presença de norma legal que, expressamente, já positivasse o seu

conteúdo:

“No direito brasileiro poder-se-ia afirmar que, se não existe dispositivo legislativo que o consagre, não vigora o princípio da boa-fé no Direito das Obrigações. Observe-se, contudo, ser o aludido princípio considerado fundamental, ou essencial, cuja presença independe de sua recepção legislativa. [...]

55 RIZZATTO NUNES. A boa-fé objetiva como paradigma de conduta na sociedade contemporânea. Revista Jurídica. ano 52. nº 357. Porto Alegre: Notadez. jan. 2006, pp. 11-12. 56 COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 65. 57 LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 159.

119

Numa interpretação meramente gramatical, seria possível concluir, sem embargo de consagrar-se um absurdo, que, se o aludido princípio da boa-fé não integra o ordenamento legislativo, não pode exercer sua função limitadora do exercício abusivo dos direitos subjetivos. [...] Quando num código não se abre espaço para um princípio fundamental, como se fez com o da boa-fé, para que seja enunciado com a extensão que se pretende, ocorre ainda assim a sua aplicação por ser o resultado de necessidades éticas essenciais, que se impõem ainda quando falte disposição legislação expressa.”58

O fato de encontrar-se a cláusula da boa-fé objetiva expressamente positivada no Código de

Processo Civil facilita a sua captação e aplicação para resolução de litígios futuros, visto que

as soluções pretéritas servirão de pontos de partida. Com a positivação, a boa-fé objetiva atua

como ‘elemento de conexão’ na resolução do caso concreto.59, 60

Entretanto, não significa dizer que a boa-fé, vista como princípio geral do direito, não traga

consigo essa mesma importância. Ocorre que, como norma expressa, a sistematização

jurisprudencial torna-se facilitada, visto que as decisões se reportam ao dispositivo legal que a

veicula, ao passo que, como princípio geral, ter-se-ia que analisar toda a matéria que serviu de

base na construção da decisão judicial anterior, o que demanda, além de maior dispêndio de

tempo, maior dificuldade na identificação das decisões pretéritas que serviriam como ponto de

partida para o caso sub judice.61

A pretensão de reduzir o direito aos textos legais ou aos Códigos é questão ultrapassada pela

idéia dos sistemas abertos. A boa-fé, antes mesmo de positivada já tinha aplicação como

58 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera Maria Jacob (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, pp. 48-49. Idem em COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, pp. 60-62, passim. 59 COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 62. 60 Pedro de Albuquerque anota que “em outros ordenamentos muitas das dúvidas existentes acerca do real alcance do princípio da boa fé no âmbito do processo explicam-se em virtude da ausência de uma norma paralela à do art. 266º-A do Código de Processo Civil português.” Entretanto, ressalta o Autor português que “a invocação da ausência de uma expressa consagração processual do dever de actuar de boa fé como uma argumentação positivista, formal e conceptual insuscetível de convencer por não estar em causa uma limitação ao exercício de direitos materiais ou substantivos, mas, sim, um limite geral ao exercício de posições jurídicas, sejam elas quais forem, resultante da função social de todo e qualquer ordenamento jurídico.” ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 76, nota de rodapé nº 76. 61 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 342-344.

120

princípio geral do direito ou como comando jurídico a intervir nas relações jurídicas. “Certos

princípios, certos comandos jurídicos vivem antes mesmo que apareçam nos textos legais.”62

Nesse contexto, Judith Martins-Costa ressalta a importante função da cláusula geral da boa-fé

como fator de mobilidade interna do sistema ao permitir permanente “sistematização das

decisões e ressistematização dos valores levados em conta”.63

4.3. A Boa-Fé Objetiva como Elemento Estruturante na Construção de Modelos

Jurídicos Jurisprudenciais

A cláusula geral da boa-fé objetiva endereça o Direito Processual Civil a ser construído com

uma nova roupagem que assegura operabilidade e dinamicidade no desenvolvimento das

cardeais garantias processuais. A boa-fé, imperativo ético de um agir leal, honesto, probo,

encontra-se em consonância com os valores sociais vigentes, os quais, mesmo no campo

processual, imprimem aos seus participantes uma nova maneira de atuarem e de se

conduzirem.

Essa normatividade que advém da boa-fé, segundo Miguel Reale, “exige que a conduta

individual ou coletiva [...] seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada

caso” o que significa dizer que “a adoção da boa-fé como condição matriz do comportamento

humano” traz ínsita “[...] a exigência de uma ‘hermenêutica jurídica estrutural’, a qual se

distingue pelo exame da totalidade das normas pertinentes a determinada matéria.”64

A “Teoria dos Modelos” de Reale põe em relevo a importância do estudo aprofundado das

decisões judiciais e administrativas, elevando-o, inclusive, “ao plano da investigação

científica, sobretudo, quando, sem condenáveis receios, se aponta a desatualização ou o

desacerto do julgamento, ou se enaltece a sua força teórica criadora, contribuindo-se, desse

62 MILHOMENS, Jônatas. Da presunção de boa-fé no processo civil. Rio de Janeiro: Forense. 1961, p. 35. 63 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 344. 64 REALE, Miguel. A boa-fé no Código Civil in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem . São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 6, vol. 21, jul.-set. 2003, p.12. Texto inicialmente publicado em “O Estado de São Paulo”, de 16.08.2003.

121

modo, em ambos os casos, para que a jurisprudência e a doutrina avancem de maneira

sincrônica.”65

Não raras são as situações em que o modelo legal “faz remissão a comportamentos típicos,

confiando à prudente discrição do juiz a sua configuração in concreto.66 Nas situações em que

se remete a comportamentos típicos cabe à dogmática jurídica “determinar os ‘modelos de

conduta’ correlacionados com a previsão genérica do legislador. São os standards que põem

como ponte de passagem entre o modelo legal e o caso concreto, pela concepção de ‘um tipo

médio de conduta social correta’, em função da qual cabe ao juiz julgar a hipótese ocorrente.

Os standards são modelos instrumentais, fundamentalmente empíricos e plásticos, como os

que determinam, segundo variáveis de lugar e de tempo, o que se deve entender, em tais ou

quais circunstâncias, por ‘boa-fé”, [...], abuso de confiança [...]”67

Nesse mesmo sentido são as lições de Couto e Silva:

“Com a edição de conceitos abertos como o da boa-fé, a ordem jurídica atribui ao juiz a tarefa de adequar a aplicação judicial às modificações sociais, uma vez que os limites dos fatos previstos pelas aludidas cláusulas gerais são fugidios, móveis; de nenhum modo fixos.”68 [....] “O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte. A principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce atividade similar à do pretor romano, criando o ‘Direito do Caso’. O aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir valor autônomo, não relacionando com a vontade. Por ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se ‘construir’ objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes.”69 [...] “A concepção de sistema aberto permite que se componham valores opostos, vigorantes em campos próprios e adequados, embora dentro de uma mesma figura

65 REALE, Miguel. Jurisprudência e doutrina In Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 21. 66 REALE, Miguel.O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 184. 67 Ibidem, p. 184. 68 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera Maria Jacob (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, p. 39. 69 Ibidem, p. 42. Idem, O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, pp. 53-54.

122

jurídica, de molde a chegar-se a uma solução que atenda à diversidade de interesses resultantes de determinada situação.”70

A opção por modelos jurídicos põe em evidência os poderes dos juizes de darem efetividade

aos conceitos abertos, pois cabe a ele configurar o seu conteúdo no caso concreto. Judith

Martins-Costa destaca que a boa-fé “passou a conformar verdadeiro e próprio modelo

jurisprudencial”, pois “para a sua correta aplicação, não pode o juiz prescindir de articulação

coordenada, de outras normas integrantes do ordenamento, compondo-as numa unidade lógica

de sentido.”71

Ascarelli, citado por Reale, reconhece “a insuficiência dos processos puramente formais de

interpretação”72 , bem como a indispensável necessidade de “recorrer a outros esquemas de

conteúdo ético, tais como os correspondentes à idéia de boa-fé, [...].”73

Por sua vez, Kaufmann chama a atenção para os “os conceitos jurídicos ou relevantes (ou

conceitos jurídicos impróprios)”, que são conceitos “que derivam da realidade – é

precisamente porque são retirados da realidade, e não produzidos pelo direito, que se chamam

conceitos jurídicos ‘impróprios’”.74 E que são utilizados para a formulação da norma jurídica.

Entretanto, Kaufmann assevera “o direito não recolhe esses conceitos sem mais com o seu

predicado na linguagem corrente, pois o direito tem de, nas suas hipóteses normativas,

ordenar, decretar, valorar, tem de fundamentar um dever e, em vista disso, os conceitos legais

têm sempre um significado normativo mais ou menos marcado (residindo aí a sua relevância

jurídica).”75.

Sob essa perspectiva, Kaufmann ressalta a amplidão do conteúdo da boa-fé ao afirmar que

“[...] assim como boa-fé (§ 242 do Código Civil) também não é conceito nenhum, mas sim

um pensamento directivo ou princípio, cujo ‘comentário’ – que na verdade seria a

70 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. FRADERA, Vera Maria Jacob (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, p. 43 71 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p.356. 72 REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli In Questões de direito. São Paulo: Sugestões Literária. 1981, p. 14. 73 Ibidem, p. 14. 74 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, p. 143. 75 Ibidem, p. 141.

123

concretização dum princípio jurídico dirigida ao direito positivo – abarcará facilmente uma

mil páginas.”76

Ao tratar dos modelos jurisdicionais Reale destaca que:

“A jurisdição é, pois, antes de mais nada, um poder constitucional de explicitar normas jurídicas, e, entre elas, modelos jurídicos. Esse poder decisório se desenvolve de duas formas distintas: normalmente, como exercício da jurisdição enquanto realização das normas legais adequadamente aos casos concretos, isto é, em função das peculiaridades e conjunturas próprias da espécie de experiência social submetida a julgamento; e, excepcionalmente, no exercício da jurisdição enquanto poder de editar criadoramente regras de direito, em havendo lacuna no ordenamento.”77

Marcela Varejão, citando Vicenzo Ferrari, acrescenta que “no nível social geral o direito não

é simplesmente regra, mas direcionamento geral da conduta mediante modelos, mais ou

menos típicos, coordenados ou coordenáveis institucionalmente [...]. Isto implica, sem dúvida,

certa estabilidade dos modelos jurídicos e certa segurança pelo fato de os atores sociais os

considerarem existentes, não em sua forma efetiva [...]. Com uma metáfora já em uso pelos

juristas, pode-se dizer que o direito age antes de tudo, na intenção dos sujeitos, na modelação

social: denominação extraída não da mesma forma, onde também os preceitos têm um grau

variável de imperatividade.”78, 79

Reale denomina de “concreção jurídica” à idéia do direito que emana das exigências impostas

pelas experiências que afloram da multiciplicidade dos fatores que permeiam o dinamismo

social. Sob esse novo matiz, os juizes desempenham destacado papel, pois cabe a eles dar

efetividade a essa concreção com o alcance do sentido das normas legais às múltiplas e

particulares situações sociais.80 Segundo Reale:

76 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2004, pp. 143-144. 77 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva. 1994, p. 70. 78 FERRARI, Vicenzo. Funcione del diritto. Laterza, Bari, 1989, pp. 91.92 apud VAREJÃO, Marcela. I Modelli Giuridici e L’ermeneutica in Miguel Reale in Rivista internazionale de filosofia del diritto. Milão: Giuffrè editore, V. LXXII, série IV, out./dez. 1995, p. 841. 79 No original: “[...] a livello sociale generale della condotta attraverso l’influenza esercitata daí consociati, reciprocamente mediante modelli, più o meno tipizati, coordinati o coordinabili instituzionalmente [...]. Cio implica senza dubbio uma certa stabilità dei modelli giuridici e una certa sicurezza sul fatto che gli attori sociali li considerano esistenti, nonchè sulla loro portata effetiva [...]. Com uma metafora già in usso presso gli stessi giuristi, potremmo dire che il diritto funge anzitutto, nelle intenzioni dei soggeti, da modellistica sociale: termine tratto non per caso dalla moda stessa, ove pure i precetti hanno um grado variabile di cogenza [...].” 80 REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978, p. 56.

124

“O atual movimento da clamada concreção jurídica, que corresponde à idéia de direito como experiência, não só reconhece o papel criador do juiz, como aplicador dos preceitos normativos, mas também o valor dos princípios gerais de natureza ético-jurídica (como por exemplo, os de eqüidade, boa-fé, probidade contratual, due processo of law etc.) respeitados como diretivas e balizas na compreensão das regras jurídicas.”81

Não se pode perder de vista, entretanto, que “valores há que, uma vez revelados à consciência

popular, adquirem objetividade e força cogente, não obstante a sua originária fonte subjetiva e

individual. Tais valores atuam, então, sobre os comportamentos humanos como se fossem

modelos ideais, isto é, arquétipos inatos da conduta individual e coletiva.”82 Segundo Reale

“são parâmetros axiológicos considerados de validade universal.” A esses parâmetros Reale

denomina de “constantes ou invariantes axiológicas, recebidos e reconhecidos como se

fossem inatos quando, na realidade, representam pressupostos conjeturais necessários da

convivência humana.”83

Segundo Luciana Varejão “[...] na linha dessa afirmação realiana se poderia ler a idéia de

ordem como “invariante axiológica’, como limite: uma ordem que se poderia chamar também

‘engenharia social’”.84, 85

Pode-se, já nesse ponto, inferir que a boa-fé, no âmbito processual civil contemporâneo,

apresenta-se como uma diretiva para que os escopos processuais venham a ser efetivamente

alcançados. Constata-se a perfeita imbricação existente entre a boa-fé objetiva com o

princípio do devido processo legal que, num movimento harmônico, privilegia a visão

substantiva do processo.

Reale assevera que “[...] toda vez que os indivíduos constituírem, no calor da vida de todo o

dia, figuras jurídicas atípicas, indispensável que essa atipicidade pelo menos respeite a

tipicidade ética na experiência do Direito.”86 Nesse diapasão, a boa-fé objetiva estabelece as

81 REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança In Estudos de filosofia e ciência do direito . São Paulo: Saraiva. 1978, p. 56. 82 REALE, Miguel. Historicismo axiológico e direito natural In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 47. 83 Ibidem, p. 47. Todos os destaques no original. 84 VAREJÃO, Marcela. I modelli giuridici e l’ermeneutica in Miguel Reale In Rivista internazionale de filosofia del diritto. Milão: Giuffrè editore, V. LXXII, série IV, out./dez. 1995, pp. 831-832. 85 No Original: “Infatti, fra le linee delle affermazioni realine si potrebbe leggere l’idea dell’ordine come ‘incariante assiologica’, come limite: un ordine che si potrebbe chiamare anche ‘ingegneria sociale’.” 86 REALE, Miguel. A sociedade contemporânea, seus conflitos e a eficácia do Direito In Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva. 1978, p. 64.

125

balizas dos comportamentos de todos aqueles que participam do processo, delineando os

limites da ação e da reação que se desenvolve na dialeticidade do contraditório.

Para Reale, “a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que

condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos

legais e das cláusulas contratuais até suas últimas conseqüências. Daí a necessidade de ser ela

analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos

dispositivos emanados das fontes do Direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e

negocial.”87

Não sem razão Dworkin afirma:

“O que é o direito? [...] o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. [...] É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna o cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. [...] A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a sociedade que pretendemos ter.”88

Sob essa ótica, a boa-fé objetiva aparece como um modelo de comportamento desejado pela

sociedade e imposto pelo ordenamento jurídico de tal maneira que os delineamentos do

conteúdo da boa-fé no sistema jurídico, mais especificamente, na seara processual civil,

implicam investigação criteriosa e reclamam pela criação do Direito pelos magistrados na

solução do caso concreto.

Somente a par do trabalho jurisprudencial é que se torna possível aferir modelos jurídicos

concretos da boa-fé objetiva, possibilitando extrair o conteúdo que tem sido atribuído pelos

87 REALE, Miguel. A boa-fé no código civil in Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem . São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 6, vol. 21, jul.-set. 2003, p.12. Texto inicialmente publicado em “O Estado de São Paulo”, de 16.08.2003. 88 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 492.

126

Tribunais à cláusula geral da boa-fé objetiva estampada no art. 14, inciso II, do Código de

Processo Civil.

Miguel Reale realça que o estudo das estruturas e dos modelos vem sendo tratado de maneira

tímida pela doutrina e não se tem dada a devida dimensão que tais instrumentos trazem para

se compreender de maneira mais rigorosa a complexa experiência jurídica de nosso tempo.89

Com estupefação , o Autor afirma: “Passados tantos anos, o que causa estranheza é a demora

verificada, por parte de jusfilósofos e juristas, em aplicar a teoria dos modelos no campo do

Direito, quer sob uma perspectiva teórica, quer um função de sua aplicação prática.”90

No entanto, as aludidas constatações servem de força motriz a impulsionar o desenvolver da

presente pesquisa, cujo contributo está em apresentar à comunidade jurídica o conteúdo que

tem sido atribuído pelos Tribunais pátrios à cláusula geral da boa-fé objetiva nos domínios do

Direito Processual Civil.

89 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Saraiva. 1968, p. 147. 90 Idem, Vida e morte dos modelos jurídicos In Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 163.

127

PARTE II – A BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL, ESTUDO

DO MODELO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRO DE BOA-FÉ OBJE TIVA,

MODELOS CONCRETOS AFERÍVEIS DA JURISPRUDÊNCIA EM PR OCESSO

CIVIL

Capítulo V – A Boa-Fé Objetiva Processual na Constituição Federal

Sumário: 5.1. A Boa-Fé Objetiva como Instrumento de Ruptura da Dicotomia entre os

Ramos do Direito Público e do Direito Privado – 5.2. O Fundamento Constitucional da Boa-

Fé Objetiva Processual

5.1. A Boa-Fé Objetiva como Instrumento de Ruptura da Dicotomia entre os Ramos do

Direito Público e do Direito Privado

A distinção entre direito público e direito privado remonta ao direito romano e reputa-se a

Ulpiano1 a clássica diferenciação entre publicum ius e privatum ius2. Tal distinção trazia ínsita

a noção de supremacia dos interesses do Estado frente aos interesses privados mostrando

tratar-se de domínios nos quais o interesse público sobrepujava frente ao interesse privado.

Norberto Bobbio ao tratar da “grande dicotomia: público/privado”3 assinala que os termos

público e privado ao ingressarem no pensamento político e social ocidental tornou-se uma

daquelas “‘grandes dicotomias’ que servem para delimitar, representar, orientar o próprio

campo de investigação.” É importante ressaltar que, segundo Bobbio, quando se fala

corretamente em ‘dicotomia’ está a se referir a duas esferas ou universos estanques no sentido

de que um ente compreendido em uma delas não pode ser contemporaneamente

1 “Publicum just est quod ad statum rei romance spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem.” (O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas, o privado à utilidade dos particulares.). Digesto, 1.1.1.2 apud. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, pp. 130-131. 2 “Quando Ulpiano, pois, distinguia entre o jus publicum e jus privatum certamente tinha a distinção entre a esfera do público, enquanto lugar da ação, do encontro dos homens livres que governam, e a esfera do privado, enquanto lugar do labor, da casa, das atividades voltadas à sobrevivência.” FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 132. 3 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Terra e Paz. 1987, pp. 13-31.

128

compreendido na outra, além de estabelecer uma distinção que é ao mesmo tempo total e

principal.4,5 “Além do mais, pode-se dizer que os dois termos de uma dicotomia condicionam-

se reciprocamente, no sentido de que se reclamam continuamente um ao outro.”6

A concepção de duas esferas ou dois ramos do direito tem levado à indagação se a boa-fé

objetiva, instituto que ganhou extrema relevância no âmbito do direito privado, mais

especificamente na teoria das obrigações, ao criar deveres e mitigar o dogma da autonomia

privada, encontraria aplicação também nos meandros do direito público, especialmente no

bojo do Direito Processual Civil.

Afinal, o que se questiona é a valorização ou a supervalorização desse instituto que, tido como

princípio geral do direito ou, de forma positivada, como cláusula geral, teria ressonância tão

ampla a ponto de desbordar os limites das relações privadas e imprimir uma nova concepção

às relações onde o portentoso poder estatal ter-se-ia que encurvar.

Para o deslinde dessa questão torna-se imprescindível um rápido lampejo pelas concepções

firmadas ao longo do desenvolvimento da Ciência do Direito, onde essa ‘dicotomia’ foi

desenvolvida e enraizada e as mutações que advieram com o caminhar dessa história.

René David observa que em todos os países da família romano-germânica se deu esse

agrupamento das normas jurídicas nos dois grandes ramos. Essa divisão foi firmada na

concepção de as relações entre governantes e governados exigirem normas diversas daquelas

que regulavam as relações entre as pessoas privadas, bem como pelo fato de os interesses

público e privado não poderem ser pesados em uma mesma balança.7

Ainda, de acordo com Bobbio, a distinção entre direito público e direito privado direciona

para a teoria das fontes - do direito público, centrada na lei e, no direito privado – o contrato.

No direito público vige o império da lei, norma vinculatória reforçada pela coação. Já nos

4 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Terra e Paz. 1987, p. 13. 5 Segundo Bobbio, a divisão é total quando todos os entes a que a disciplina se refere devem ter nela lugar e é principal, porque tende a convergir em sua direção outras dicotomias. 6 Ibidem, p. 14. 7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes. 1996, p. 67.

129

domínios do direito privado, prevalecem as relações intersubjetivas reguladas pelo contrato

sob a égide da autonomia da vontade.8

Por sua vez, na visão de Almiro do Couto e Silva, Ius publicum e ius privatum têm sentidos

simétricos ao das expressões lex publica e lex privata. A lex publica no direito romano

exprimia a vinculação que, pela palavra, se estabelecia entre os indivíduos e entre os

indivíduos e o Estado. Já lex privata designava os laços jurídicos entre os particulares

firmados também pela palavra, que hoje conhecemos como autonomia da vontade.9

Pode-se observar que a dicotomia entre normas de direito público e normas de direito privado

é apontada10 levando-se em consideração: 1)o fim da destinação da norma; 2) os sujeitos

destinatários11 da norma e 3) o interesse ou utilidade da norma.

A concepção de diversos doutrinadores, sintetizada por Paulo Dourado de Gusmão,12 é feita

nos seguintes termos: o direito público tutela o interesse da sociedade como um todo; o

Estado aparece revestido do seu poder de império; é um direito de subordinação; é um direito

desprovido de patrimonialidade; a tutela dos interesses está confiada a órgãos estatais; é um

direito irrenunciável. Em contrapartida, o direito privado tutela o interesse individual; de

caráter patrimonial; prevalece uma relação de coordenação; a tutela do direito pertence a

particulares.13

8 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Terra e Paz. 1987, pp. 17-19. 9 COUTO E SILVA, Almiro. Os indivíduos e o Estado na realização das tarefas públicas. In Revista de Direito Administrativo . Rio de Janeiro: Renovar. n. 209, jul. – set. 1997, p. 44. 10 Nesse sentido LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Fritas Bastos. 1970, p. 100. 11 Para FERRARA o critério útil para delimitar os dois campos do direito positivo está na posição dos sujeitos na relação jurídica. “A distinção entre direito público e privado tem seu fundamento na posição diferente dos sujeitos nas relações jurídicas. Há relação de direito público quando o sujeito intervém como portador de prerrogativas supremas, investido de poder de império, enquanto que nas relações de direito privado os sujeitos se contrapõem em condições de paridade, em pé de igualdade.” Teoria das pessoas jurídicas. Madrid: Réus. 1929, p.692 apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. vol. 1. 3. ed. São Paulo: Martins. 1972, p. 137. 12 GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução à ciência do Direito. 3. ed. rev. refundida. Rio de Janeiro: Forense. 1965, p. 156. 13 Anacleto de Oliveira Faria critica o critério da patrimonialidade, pois, segundo o Autor, hoje é cada vez mais constante a presença do Estado em atividades industriais e, até mesmo, comerciais. FARIA, Anacleto de Oliveira. Direito público e direito privado In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 28. FRANÇA, R. Limonge (Coord.). São Paulo: Saraiva. 1977, p. 45. Igual teor em: FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1970, p. 20.

130

Tércio Sampaio, indo um pouco mais além, vai buscar na tópica a formulação para o seu

pensamento e destaca a importância da dicotomia entre público e privado como tópica de

segundo grau - “sistema de classificações ou critérios organizadores de critérios

classificatórios – vale-se de distinções amplas, desenvolvidas historicamente no trato

dogmático do direito. [...] Tratando-se de lugares comuns, essas noções também não são

logicamente rigorosas, são apenas pontos de orientação e organização coerente da matéria,

que envolvem, por isso mesmo, disputas permanentes, suscitando teorias dogmáticas diversas,

cujo intuito é conseguir o domínio mais abrangente e coerente possível dos problemas.”14

Anacleto de Oliveira Faria destaca que a distinção, em termos absolutos, de normas de direito

público e normas de direito privado é quase impossível, entretanto destaca a importância

dessa distinção já que, ao longo da história, a elaboração da ciência do direito se desenvolveu

em função dessa distinção. Tal distinção poderia ser justificada por razões de ordem histórica,

didática e, até mesmo, prática.15

A importância da distinção entre direito público e privado, na concepção de Tércio Sampaio

Ferraz Junior, é ressaltada não, apenas, para ordenar os tipos normativos, mas para

sistematizar os princípios que para operar as normas de um ou outro grupo. São os “princípios

diretores do trato com as normas, com as suas conseqüências, com as instituições a que elas se

referem, os elementos congregados em sua estrutura. Esses princípios decorrem, eles próprios,

do modo como a dogmática concebe o Direito Público e o Privado. E esse modo, não podendo

ter o rigor de definição, é, de novo, tópico, resulta de lugares comuns, de pontos de vista

formados historicamente e de aceitação geral.”16

Nessa esteira, o Autor exemplifica que, no direito privado vige o princípio da autonomia

privada. Mesmo não estando vinculados ao princípio da estrita legalidade, existem outros

princípios que limitam o campo de atuação desses particulares, como o princípio da boa-fé,

que exige a lealdade e a proteção de confiança no campo obrigacional. Significa dizer que,

mesmo estando no campo do direito privado há uma mitigação do princípio da autonomia

14 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 130. 15 FARIA, Anacleto de Oliveira. Direito público e direito privado In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 28. FRANÇA, R. Limonge (Coord.). São Paulo: saraiva. 1977, p. 46. 16 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, p. 135.

131

privada. Sob o ponto de vista da dogmática, não obstante as distinções do direito em público e

privado, ele é um só, e deve manifestar coerência e coesão.17

De acordo com Ruggiero, o critério da utilidade leva a pressupor uma separação estanque

entre os ramos do direito público e do direito privado, entretanto, nem mesmo no direito

romano essa separação existia de forma tão absoluta e em nossos dias tal se mostra

completamente inadmissível. A distinção não pode ser fundamentada na utilidade da

norma.18,19

Esse entendimento é compartilhado por Anacleto de Oliveira Faria ao assegurar que “se

encontram de tal modo misturados os interesses sociais e individuais, que se torna impossível

assinalar, com precisão, qual o interesse dominante, no que tange a qualquer norma.” 20

De Zan afirma que “a teoria das esferas do independente entre o público e o privado está em

crise, e há que se estabelecer uma relação entre elas.”21 Afirmação essa que é comungada por

Pietro Perlingieri entendendo que “a própria distinção entre direito público e direito privado

está em crise.”22 Segundo, Perlingieri, “[...] em uma sociedade como a atual, torna-se difícil

individuar um interesse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado

do interesse público. As dificuldades de traçar as linhas de fronteira entre público e privado

aumentam, também por causa da cada vez mais incisiva presença que assume a elaboração

dos interesses coletivos como categoria intermediária [...].”23

A concepção de direito público e direito privado, que tem por fundamento o interesse

envolvido, embora perpetre ainda hoje, precisa ser analisada com temperamento em razão das

17 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2001, pp. 137-138. 18 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. v. 1. tradução da 6ª edição italiana por Paolo Capitanio. São Paulo: Bookseller. 1999, p. 76. 19 No mesmo sentido: FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1970, p. 20. 20 FARIA, Anacleto de Oliveira. Direito público e direito privado In Enciclopédia Saraiva do Direito. v. 28. FRANÇA, R. Limonge (Coord.). São Paulo: Saraiva. 1977, p. 45. A mesma opinião vem expressa em FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1970, pp. 19-20. 21 DE ZAN, Júlio. Libertad, poder y discurso. Ross, Rosário, 1993, p.82 et seq apud LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob Fradera da edição espanhol do livro Las normas fundamentales de derecho privado. Editado em Santa Fé, Argentina, pela Rubinzal – Culzoni Editores. abril/1995, São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 224. 22 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 53. 23 Ibidem, p. 53.

132

influências axiológicas decorrentes da própria relação que se estabelece entre o Estado e a

sociedade.24

Sob essa perspectiva, Almiro do Couto e Silva adverte que, hoje, a noção de sistema jurídico é

conformada a partir da Constituição, “com toda a constelação ou ordem de valores que

abriga”. Por conseguinte, as normas infraconstitucionais são informadas ou orientadas por

esses valores.25

Sob essa ótica, Célia Barbosa Abreu Slawinski ressalta a necessidade de “relacionar a

reunificação do Direito Civil à luz da Constituição à summa divisio do direito público e do

direito privado, uma vez que a interpenetração dos dois ramos reproduz o profundo grau de

alteração ocorrido nas relações entre o cidadão e o Estado, através de autêntica redefinição

dos espaços públicos e privados.”26

Essa realidade conduz a uma conclusão inexorável, que rompe com essa rígida bipartição e

apresenta os dois grande ramos do Direito como duas realidades, que se auto-complementam

numa harmoniosa relação de reciprocidade representada sob a denominação de Estado

Democrático de Direito.

24 Menezes Cordeiro destaca que, apesar de ser possível considerar o direito sob esses dois prismas, não há que se falar em contraposição. “A intervenção do Estado em situações privadas e a utilização pelo Estado, de técnicas privadas de gestão, levantam, como tantas vezes é repetido, dificuldades a uma separação rígida entre Direito Privado e público. Esta deve ser entendida como uma caracterização global a nível de subsistemas, i.e., como uma coloração regulativa do subsistema privado, informado por vectores de liberdade e igualdade e do subsistema público, dominado por regras de competência e por ius imperium. A natureza aberta desses subsistemas permite, em cada um deles, a erupção de normas do outro, em obediência a fenômenos de absorção teleológica. Não deve ceder-se à tentação fácil de, [...] tirar o significado à contraposição entre Direito Privado e público. [...] Em ponderação cultural, o Direito privado assenta numa série de contributos romanísticos, fundidos no Direito comum europeu e ordenados, aquando das codificações, em obediência a leituras determinadas. O Direito público deriva do jusracionalismo, depois liberalizado e não apresenta uma sedimentação capaz de suportar uma codificação. A nível teórico, o Direito privado traduz aspectos funcionais estáveis das relações entre pessoas; sofre pouco com as intervenções legislativas e afirma-se mais por um modo de procurar soluções do que pelas próprias soluções em si. [...] O Direito público integra uma área organizatória de nível superior, bulindo com relações de submissão entre pessoas, de domínio do Estado e de controle directo sobre a produção e distribuição de riqueza. [...] A nível prático, o qualificar de uma situação como privada ou pública decide do seu domínio académico, literário, legal e judicial. A nível significativo-ideológico, há que assumir o facto de, na existência de um Direito comum, resistente ao arbítrio do contingente, residir a salvaguarda mais relevante do desenvolvimento livre da pessoa humana. Esse papel é desempenhado pelo Direito privado. [...] Nada disso deve, contudo, ser interpretado como ausência de permeabilidade entre os dois subsistemas ou como minimização do Direito público, decisivo, afinal, para a definição das sociedades e para a efectivação definitiva dos valores concebidos, no início a nível privado.” Menezes CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão.Coimbra: Almedina. 2007, pp. 374-375. notas de rodapé nº 427 e 429. 25 COUTO E SILVA, Almiro. Os indivíduos e o Estado na realização das tarefas públicas. In Revista de Direito Administrativo . Rio de Janeiro: Renovar. n. 209, jul. – set. 1997, p. 69. 26 SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu . Contornos dogmáticos e eficácia da boa-fé objetiva: o princípio da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002, pp. 117-118.

133

Conforme ressaltado por Menezes Cordeiro, antes da bipartição entre direito público e

privado “as normas ‘privadas’ e ‘públicas’ entrelaçavam-se, a todas interceptando a boa-fé.”27

Entretanto, mesmo apartando as normas privadas das públicas a boa-fé, que no direito privado

centrou-se no direito das obrigações como vetor a proporcionar a igualdade e a liberdade,

alcançou também os domínios do direito público, onde domina a competência e a soberania.28

Por mais que se queira sistematizar tal dicotomia a grande dificuldade está, exatamente, na

tênue linha divisória que demarca os dois domínios. Situações há em que, embora os

interesses envolvidos pareçam estar tão somente no campo do direito privado, no entanto, em

uma análise mais percuciente poderá ser verificado que existem interesses extremamente

caros ao Estado e que reclamam por sua proteção.

Cada vez mais se estreitam as relações entre direito público e o privado. Institutos antes

situados estritamente no ramo do direito privado são utilizados pelo direito público e vice-

versa, numa harmônica convivência que visa, precipuamente, a paz social. Nesse contexto,

Perlingieri põe em relevo que “[...] o Estado moderno não é caracterizado por uma relação

entre cidadão e Estado, onde um é subordinado ao poder, à soberania e, por vezes, ao arbítrio

do outro, mas por um compromisso constitucionalmente garantido de realizar o interesse de

cada pessoa. A sua tarefa não é tanto aquela de impor aos cidadãos um próprio interesse

superior, quanto àquela de realizar a tutela dos direitos fundamentais e de favorecer o pleno

desenvolvimento da pessoa.”29

Nesse sentido, colimam os apontamentos de Hermes Lima de que há um interesse recíproco

dos indivíduos na realização dos preceitos do direito público, bem como o Estado não se

mostra indiferente à aplicação dos direitos privados ou para que estes não sejam

transgredidos. “A ordem jurídica, couraça de proteção da ordem social [...]” representa um

grande sistema composto tanto por normas de direito público como de direito privado.”30

27 Menezes CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão.Coimbra: Almedina. 2007, p. 374. 28 Ibidem, p. 374. 29 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 54. 30 LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Fritas Bastos. 1970, p. 102.

134

Tanto é assim que, conforme salientado por Perlingieri, existe uma perfeita imbricação das

normas de direito privado no próprio texto constitucional, o que denota que, longe de haver

contraposição, há uma perfeita unidade no ordenamento.31

Percebe-se que há uma intercambialidade entre as normas de direito público e de direito

privado e, especialmente, no que tange à aplicação da boa-fé objetiva, a sua aplicação não se

restringe aos domínios das relações privadas, sendo princípio que paira sobre os dois grandes

ramos do direito, auxiliando inclusive na superação dessa divisão.

Ao estipular no art. 14, inciso II, do CPC, o “dever das partes e de todos que de qualquer

forma participam do processo de proceder com lealdade e boa-fé” o legislador deixou clara a

ideologia a nortear o Código. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira assegura que apesar do seu

aspecto formal, seria completamente inadequado conceber o processo como instrumento

exclusivamente técnico.32 Segundo o Autor, “mesmo as normas aparentemente reguladoras do

modo de ser do procedimento não resultam apenas de considerações de ordem prática,

constituindo fundamental expressão das concepções sociais, éticas, econômicas, ideológicas e

jurídicas, subjacentes a determinada sociedade e a ela características, [...].”33

Nesse sentido, Alvaro ressalta que o Direito Processual não pode ser visto nos estritos

quadros de realização do direito material, mas sob a ótica dos valores constitucionais e dos

valores culturais onde o mesmo encontra-se inserido como ferramenta de natureza pública

para a realização da justiça e da pacificação social. Há uma mudança de paradigma que

estabelece um procedimento mais dinâmico e flexível, sem se tornar arbitrário, no qual os

juristas precisam estar atentos às particularidades do caso concreto para a aplicação de

princípios e o preenchimento de cláusulas gerais que passam a dar um novo direcionamento

na prestação jurisdicional em oposição ao positivismo e ao formalismo que por longo tempo

conduziram ao raciocínio lógico-dedutivo.34

“Realmente, o processo de aplicação do direito mostra-se, necessariamente, obra de acomodação do geral ao concreto, a requerer incessante trabalho de adaptação e até de criação, mesmo porque o legislador não é onipotente na previsão de todas e

31 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil : introdução ao direito constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar. 1997, p. 55. 32 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo valorativo em confronto com o formalismo excessivo. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 137. ano 31. jul. – 2006, pp. 10-11. 33 Ibidem, p. 11. 34 Ibidem, pp. 12-17, passim.

135

inumeráveis possibilidades oferecidas pela inesgotável riqueza da vida. [...] A sua vez, o juiz não é uma máquina silogística, nem o processo como fenômeno cultural, presta-se a soluções de matemática exatidão. Impõe-se rejeitar as teses da mecanização da aplicação do direito.”35

Sob essa perspectiva, a Constituição dita as pautas a serem desenvolvidas no âmbito

processual ao estabelecer a projeção concretizadora do devido processo legal no qual “revela-

se inegável a importância do contraditório do processo justo, princípio essencial que se

encontra na base mesma do diálogo judicial e da cooperação. A sentença final só pode resultar

do trabalho conjunto de todos os sujeitos do processo. [...]. Esse objetivo impõe-se alcançado

pelo fortalecimento dos poderes das partes, por sua participação mais ativa e leal no processo

de formação da decisão [...].”36

Nessa moldura em que se encontra o Direito Processual, a boa-fé e a lealdade impedem que o

processo venha a sucumbir diante de exigências meramente formais, dissociado da verdadeira

finalidade da lei.37 Todos os sujeitos precisam atuar de forma cooperativa, sem quaisquer

armadilhas ou artimanhas procedimentais tendo por lastro o princípio da confiança a reger as

relações endoprocessuais.

Sob o rótulo de que o Direito Processual pertence ao ramo do direito público, não pode o

processo ficar preso às amarras de um formalismo cego ou, nas precisas palavras de Galeno

Lacerda “na radicalização do rito, como um valor em si mesmo, em nome de um pretenso e

abstrato interesse público, descarnado do verdadeiro objetivo do processo, que é sempre um

dado concreto de vida, e jamais um esqueleto de formas sem carne.”38

Galeno Lacerda já advertia que “[...] os valores e os interesses do mundo do direito não

pairam isolados no universo das abstrações; antes, atuam, no dinamismo e na dialética do real,

em permanente conflito com outros valores e interesses.”39

Não pode o processo caminhar dissociado de valores humanos envolvidos nas lides que o

materializam. Não há outro interesse público mais alto, para o processo, do que o de cumprir a

35 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo valorativo em confronto com o formalismo excessivo. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 137. ano 31. jul. – 2006, p. 19. 36 Idem, p. 17. 37 Ibidem, p. 28. 38 LACERDA, Galeno. O código e o formalismo processo. Revista da AJURIS. n. 28. ano X. Porto Alegre: AJURIS. jul. 1983, p. 8. 39 Ibidem, p. 10.

136

sua destinação de veículo, de instrumento de integração da ordem jurídica mediante a

concretização imperativa de direito material.40 Sobreleva o interesse de que “[...] o processo

sirva, como instrumento à justiça humana e concreta, a que se reduz, na verdade, sua única e

fundamental razão de ser.”41

É, exatamente, neste contexto, que a lealdade e a boa-fé dão uma conotação axiológica ao

regular desenvolvimento do processo numa conjugação harmoniosa da observância das

normas processuais plasmadas na dialética do contraditório informado pela cooperação leal e

proba daqueles que nele participam para o alcance da decisão que, retrate, simultaneamente, a

legitimidade da atuação estatal na prestação jurisdicional e a pacificação social com justiça.

O que se tem assistido hoje nas legislações são preceitos que primam pela lealdade e

probidade nas relações intersubjetivas. Tal não se verifica, apenas, no ramo do direito privado

que, especialmente no Brasil, com fundamento no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal,

traça como um dos objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e

solidária.

A exigência de comportamentos sob o enfoque da ética tem sido incorporada por todos os

ramos do direito e dele não se furta o Direito Processual. No Código de Processo Civil, além

da disposição expressa no art. 14, inciso II, a exigir de todos os que participam do processo

um comportamento afinado com a lealdade e a boa-fé, há um leque de disposições expressas

que sancionam as condutas que destoam desse padrão de comportamento.

No âmbito processual a boa-fé encontra lastro também no texto constitucional, no que

concerne aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa

insculpidos como garantias processuais constitucionais. Daí se denota o relevo da cláusula da

boa-fé nos meandros processuais.

A importância da boa-fé é de tal magnitude que tem sido apontada como “um autêntico

princípio geral do direito”42,43, que independe de positivação. Conforme salientado por

40 LACERDA, Galeno. O código e o formalismo processo. Revista da AJURIS. n. 28. ano X. Porto Alegre: AJURIS. jul. 1983, pp. 10-11. 41 Ibidem, p. 10. 42 GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 29. Tradução livre da autora.

137

González Pérez, a sua consagração expressa em uma norma legal não pode levar à conclusão

de que antes não existia, nem que por tal consagração possa perder a sua projeção de princípio

geral do direito, bem como não pode conduzir a uma conclusão apressada que negue a sua

aplicação geral. Pelo contrário, “o princípio da boa-fé é exigível em todos os atos jurídicos, no

exercício dos direitos e no cumprimento das obrigações.”44, 45

“A boa-fé domina todo o tráfico jurídico, não só na órbita estreita do direito privado, mas,

inclusive, no direito público. Beitzke, por exemplo, [...] assinala como no funcionamento e

nas vicissitudes dos negócios jurídicos celebrados pelos entes públicos tem de preponderar,

também, como norma fundamental, os postulados da lealdade e da boa-fé. A boa-fé é

exigível, portanto, não só nas relações de direito privado stricto sensu, mas também nas de

direito administrativo ou nas de Direito Processual.”46

De acordo com Larenz, “[...] A salvaguarda da boa-fé e a manutenção da confiança que é a

base das relações jurídicas e, em particular de toda vinculação jurídica individual, denotam

que a boa-fé não pode limitar-se às relações obrigacionais, mas é aplicável sempre que exista

uma vinculação jurídica, e nesse sentido pode concorrer, portanto, no Direito das coisas, no

Direito Processual e no Direito público.”47

Nesse sentido, Cossio aduz que a boa-fé não se aplica, apenas, em matéria contratual, mas se

estende a todos os demais direitos subjetivos, no sentido de que não se pode admitir o

exercício desses direitos de maneira contrária à boa-fé.48

43 No Original: “[…] pero no se puede negarse que el de la buena fe sea un auténtico principio general del Derecho.” 44 Ibidem, pp. 29-31, passim. 45 No original:“El hecho de su consagración en una norma legal no suponía que con anterioridad no existiera, ni que por tal consagración legislativa hubiera perdido tal carácter. Pues si los principios generales del Derecho, por su propia naturaleza, existen con independencia de sus consagración en una norma jurídica positiva, como tales subsistirán cuando en un Ordenamiento jurídico se recogen en un precepto positivo, con objeto de que no quepa duda su pleno reconocimiento.” “[…] El principio de la buena fe es exigible en los actos jurídicos, en el ejercicio de los derechos y en el cumplimiento de las obligaciones.” 46 BREITZKE, Treud und Glauben bei Privatrechtsgeschäften der öffentlichen Hand. Monatschrift für deutsches Recht, 7, 1º, 1953, apud DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 135, nota de rodapé nº 31. 47 LARENZ, Derecho de obligaciones. Ed. esp., Madrid, 1958, I, p. 144. apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 44. 48 COSSIO, Instituciones de derecho civil, cit. I, p. 144 apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 45.

138

Mesmo frente a tais apontamentos doutrinários, algumas razões têm sido sublinhadas em

oposição à aplicação da boa-fé no âmbito do direito público, em especial no direito

administrativo, fundadas na diferença entre as partes envolvidas, na distinção dos interesses

envolvidos e no princípio da legalidade que rege a atuação administrativa, o que justificaria

uma aplicação da boa-fé nesse âmbito diferente da boa-fé aplicável ao direito privado.49

Entretanto, tal não pode prevalecer. Exatamente por desempenhar uma atividade que tem por

fim último o bem comum é que, também no âmbito do direito público, o princípio da boa-fé

tem vigência ou, até mesmo, “sua máxima vigência” não existindo nenhum obstáculo para

criar dois mundos, duas esferas, com distinta submissão à boa-fé. Ademais, no que tange ao

imperativo da legalidade que rege a atuação no direito público, não exclui a ‘regulação íntegra

dessa atuação’. Tanto os poderes públicos quanto os administrados e jurisdicionados estão sob

o manto de uma mesma ordem jurídica que não pode compactuar nem tolerar atuações

desafinadas com os ditames de lealdade e probidade.50

A aplicação da boa-fé objetiva no Processo Civil transcende aos interesses das partes

envolvidas na relação jurídica processual. Toda a sociedade tem interesse no resultado

produzido pelo processo, não somente as partes. Não se trata, apenas, de identificar a vitória

de um e a derrota de outro. O processo, antes que um método de debate é uma garantia

fundamental do homem que, tem no bojo do devido processo legal um conjunto de regras e

princípios que repercutem na segurança do direito.51, 52

Para corroborar esse entendimento vale trazer à colação excertos de decisões proferidas pelo

Superior Tribunal de Justiça – STJ que demonstram de forma paradigmática a aplicação do

princípio da boa-fé objetiva no âmbito do direito público, bem como a ruptura da dicotomia

dos ramos do direito público e privado:

49 SAINZ MORENO, Fernando. La buena fe en las relaciones de la Administración con los administrados, p. 312. apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 45. 50 Ibidem, pp. 46-47, passim. 51 GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El principio de la buena fe en el proceso civil. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, pp.891-892. 52 No original: “En cambio, si el proceso se mide por su eficacia y trascendencia, no habrá que analizar únicamente la victoria de uno o el sinsabor de otro, porque la sociedad toda está interesada en eses resultado, y la buena entre as partes será un principio ético a cumplir; […]. No hay que perder de vista en ambas situaciones, que el proceso es antes que un método de debate, una garantía fundamental del hombre que, encolumna tras las condiciones del debido proceso, un conjunto de reglas y principios que acondicionan la seguridad del derecho.”

139

No julgamento do Recurso Especial - REsp 45522/SP - a Primeira Turma daquela Corte, sob

a relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, concluiu pela aplicabilidade da boa-fé

objetiva, nas relações envolvendo a administração pública, como instrumento de

harmonização da imperatividade do princípio da legalidade com os demais sustentáculos do

Estado Democrático de Direito, inclusive para segurança e proteção dos administrados nos

termos a seguir ementados:

ADMINISTRATIVO - ENSINO - FREQÜÊNCIA A AULAS - FALTAS -SUPRIMENTO - DL 1.044/69 - ESTUDANTE PRESO - ANALOGIA – ATO ADMINISTRATIVO - NULIDADE - SÚMULA 473 STE - TEMPERAMENTOS EM SUA APLICAÇÃO. 1. É lícita a extensão, por analogia, dos benefícios assegurados pelo DL 1.044/69, a estudante que deixou de freqüentar aulas, por se encontrar sob prisão preventiva, em razão de processo que resultou em absolvição. II. Na avaliação da nulidade do ato administrativo, é necessário temperar a rigidez do princípio da legalidade, para que se coloque em harmonia com os cânones da estabilidade das relações jurídicas, da boa—fé e outros valores necessários à perpetuação do Estado de Direito. III. A regra enunciada no verbete 473 da Súmula do STF deve ser entendida com algum temperamento. A Administração pode declarar a nulidade de seus atos, mas não deve transformar esta faculdade, no império do arbítrio.53

No voto do Ministro Relator pode-se extrair os trechos seguintes, que demonstram o

entendimento daquela Corte sobre o assunto em pauta, o qual pela precisão do seu teor

merece reprodução:

“Percebe-se, assim, que a supremacia do interesse público sobre o privado deixou de ser um valor absoluto. Tal princípio, muitas vezes prestou-se a deformações, servindo de justificativa para a implantação de regimes ditatoriais, tornou-se necessário temperá-lo com velhas regras do Direito Privado, que homenageiam a boa fé e a aparência jurídica. Em interessante monografia, a Professora Weida Zancaner traça fiel esboço do estágio em que se encontra, hoje, o processo de composição entre o princípio da legalidade e o da segurança jurídica: “O princípio da legalidade, fundamento do dever de invalidar, obriga a Administração Pública a fulminar seus atos viciados não passíveis de convalidação. Só que a invalidação não pode se1 efetuada sempre, com referência a todas as relações inválidas não convalidáveis que se apresentem ao administrador, em razão das barreiras ao dever de invalidar. Os limites ao dever de invalidar surgem do próprio sistema jurídico-positivo, pois, como todos sabemos, coexistem com o principio da legalidade outros princípios que devem ser levados em conta quando do estudo da invalidação. Claro está que o princípio da legalidade é basilar para autuação administrativa, mas como se disse, encartados no ordenamento jurídico estão outros princípios que devem ser respeitados, ou por se referirem ao Direito como um todo como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como, por exemplo, a boa-fé, principio que também visa protegê-los quando de suas relações com o Estado.

53 STJ: REsp 45522/SP. Primeira Turma. Relator Ministro Humberto Gomes de Barros. Julg. 14.09.94. DJ 17.10.94. Pág. 27.865.

140

Assim, em nome da segurança jurídica, simetricamente ao que referimos quanto à convalidação, o decurso de tempo pode ser, por si mesmo, causa bastante para estabilizar certas situações fazendo-as intocáveis. Isto sucede nos casos em que se costuma falar em prescrição, a qual obstara a invalidação do ato viciado. Esta é, pois, uma primeira barreira à invalidação. Por sua vez, o princípio da boa-fé assume importância capital no Direito Administrativo, em razão da presunção da legitimidade dos atos administrativos, presunção esta que só cessa quando esses atos são contestados, o que coloca a Administração Pública em posição sobranceira com relação aos administrados.” Ademais, a multiplicidade das áreas de intervenção do Estado moderno na vida dos cidadãos e a tecnicização da linguagem jurídica tornaram extremamente complexos o caráter regulador do Direito e a verificação da conformidade dos atos concretos e abstratos expedidos pela Administração Pública com o Direito posto. Portanto, a boa-fé dos administrados passou a ter importância imperativa no Estado Intervencionista, constituindo, juntamente com a segurança jurídica, expediente indispensável à distribuição da justiça material. É preciso tomá-lo em conta perante situações geradas por atos inválidos. Com efeito, atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois se não gerassem não haveria qualquer razão para nos preocuparmos com eles. Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra especifica, seja porque estarão abrigadas por algum principio de Direito. Estes fatos posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao tempo, podem transformar o contexto em que esta se originou, de modo a que fique vedado à Administração Pública o exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria ainda maiores agravos ao Direito, por afrontar à segurança jurídica e à boa-fé.” (Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos - Ed. RJ -1990 - págs. 58/9).”

No mesmo diapasão, colaciona-se trecho do voto do Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar

proferido no julgamento do STJ: REsp 141879/SP, no qual a boa-fé objetiva serviu de diretriz

a exigir da administração pública o dever lealdade de maneira a não frustrar a confiança

despertada nas relações com os cidadãos: “Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser

atendido também pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu

comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos

próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações

em cuja seriedade os cidadãos confiaram.”54

Ademais, inobstante tratar-se de julgamento envolvendo contratos administrativos, vale trazer

à colação a ementa do acórdão proferido, recentemente, no julgamento do REsp 914087/RJ,

Relator Ministro José Delgado, que demonstra o rompimento da dicotomia público/privado

tendo por esteio a boa-fé objetiva a reger as relações, ainda que em um dos pólos encontre o

Estado representado por seus mais diversos entes.

54 STJ: REsp 141879/SP. Quarta Turma. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julg. 17.03.98. DJ 22.06.98. Pág. 20.

141

“ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 87 DA LEI N. 8.666⁄93. 1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau assim ementado (fl. 186): DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666⁄93. MANDADO DE SEGURANÇA. RAZOABILIDADE. [...] 3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual. [...].”55

Por fim, concernente ao interesse envolvido, “o caráter público de certos interesses não

implica oposição ou desvinculação dos interesses privados. [...] Os interesses públicos e os

interesses privados estão de tal modo implicados, que qualquer interesse público é também

interesse privado. ”56 Ademais, há que se colocar de ressalto que “a proteção a boa-fé objetiva

também é manifestação do interesse público”57. Nesse sentido, Anderson Schreiber destaca

que “a mudança dos valores sociais e do próprio papel do direito privado veio [...] atrair para

a autonomia privada a incidência dos valores que compõem a ordem pública, eliminando as

fronteiras intransponíveis entre as duas noções”58.

Destarte, a boa-fé é exigível no exercício de qualquer ação e de qualquer direito. É um

princípio fundamental que tem sido enraizado nos ordenamentos jurídicos, tanto público

quanto privado, com as mais sólidas tradições éticas e sociais da cultura.59, 60

Nessa perspectiva, Aldemiro Rezende Dantas Júnior demonstra a transposição da boa-fé dos

limites do direito privado para todos os outros ramos do Direito.

55 STJ: REsp 914087/RJ. Primeira Turma. Relator Ministro José Delgado. Julg. 04.10.2007, DJ 29.10.2007, p. 190. 56 SAINZ MORENO, Fernando. La buena fe en las relaciones de la Administración con los administrados, p. 312. apud GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 4. ed. rev. atual. e ampl. Madri: Civitas. 2004, p. 48. 57 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. vol. I. Salvador: Juspodivm. 2008, p. 263. 58 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p 260. 59 GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El principio general de la buena fe en el proceso civil . In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 891. 60 No original: “La buena fe es exigible en el ejercicio de cualquier acción y de cualquier derecho. Este principio fundamental cualquier ordenamiento jurídico, tanto público como privado, al enraizarlo con las más sólidas tradiciones éticas y sociales de la cultura.”

142

“[...] boa-fé com destaque para o seu caráter normativo (ou seja, a boa-fé enquanto norma de conduta) e a sua tendência expansionista, de modo que a sua aplicação passa a se dar em todos os ramos do direito. É que essa boa-fé agora se apresenta como um princípio geral e fundamental, cujo assento pode ser encontrado diretamente no tecido constitucional, mais precisamente na solidariedade social, que se apresenta como um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa, conforme se encontra no art. 3º, I, da Constituição Federal. Ora, uma vez verificado que a boa-fé normativa tem fundamento constitucional e que se constitui em um princípio fundamental, fica fácil de ser explicado o seu caráter expansionista, ou seja, a sua extensão a todos os ramos do direito, ultrapassando não apenas as fronteiras do direito civil, mas, muito mais do que isso, indo além das fronteiras do direito privado, até se espraiar pelo direito público e pelo Direito Processual, campos onde um perfunctório exame poderia transmitir a errônea idéia de que o instituto da boa-fé não seria capaz de encontrar aplicação.”61,62

Conforme assinalado por Joan Picó I Junoy, “[...] O princípio da boa-fé processual é a

manifestação no âmbito jurisdicional do princípio geral da boa-fé. Este, como destaca a

melhor doutrina, não somente produz eficácia no campo do direito privado, mas também no

direito público, para uma mínima preservação de condutas éticas em todas as relações

jurídicas.”63, 64, 65

Na atualidade, sendo o processo instrumento necessário para o exercício da função

jurisdicional, as atuações maliciosas das partes tendentes a frustrar o seu correto fim não

podem ser legitimadas. A mudança do campo de percepção da natureza jurídica do processo,

ao assumir uma função pública em oposição à natureza privada que se dirigia apenas à defesa

dos interesses pessoais, impõe a atuação normativa da boa-fé objetiva também nos limites

processuais.66

Picó afirma que “o princípio geral da boa-fé é uma das vias mais eficazes para dotar o

ordenamento jurídico de um conteúdo ético-moral, demonstrando um avanço nas civilizações

61 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá. 2007, pp. 22 e 23. 62 A referência da boa-fé normativa feita pelo Autor concerne à “boa-fé como norma objetiva de conduta.” DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá. 2007, p. 28, nota de rodapé nº 3. 63 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 28. 64 No original: “El principio de la buena fe procesal es la manifestación en el ámbito jurisdiccional del principio de la buena fe. Éste, como destaca la mejor doctrina, no sólo despliega su eficacia en el campo del derecho privado sino también en el público, en orden a preservar un mínimo de conducta ética en todas las relaciones jurídicas.” 65 Montero Aroca e Lozano-Higuero são contrários à aplicação da boa-fé no âmbito processual, entendendo que tal princípio é característico dos regimes totalitários, fascistas ou comunistas, pois somente o juiz que atuasse nesses regimes para fazer justiça entre os homens. O juiz liberal e garantista se limita, mais modestamente, a pretender fazer efetivo o direito positivo entre os cidadãos e a aplicar a lei. PICÓ I JUNOY, El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 29-30. 66 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 30.

143

tendente a superar a concepção excessivamente formalista e positivista da lei, o que permite

aos juristas adequar as disposições normativas aos valores sociais de cada época.” 67, 68, 69

A positivação da boa-fé objetiva no Código de Processo Civil suprime toda e qualquer

discussão sobre sua aplicabilidade nos domínios do Direito Processual ficando, apenas, a

cargo da doutrina e da jurisprudência o preenchimento do seu conteúdo.

5.2. O Fundamento Constitucional da Boa-Fé Objetiva Processual

Sob as diretrizes do texto constitucional, que é onde o Direito Processual finca as suas raízes,

o processo emoldura-se numa relação dialética regida por princípios os quais, ao mesmo

tempo em que asseguram às partes garantias fundamentais, também impõem deveres a serem

observados no curso de toda relação jurídica. “Hoje acentua-se a ligação entre o processo e a

Constituição no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera

fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, foi

dito com muita autoridade, que transforma o processo, de simples instrumento de justiça, em

garantia de liberdade.”70

A preocupação com a efetividade do processo não pode relegar a plano secundário o dever de

lealdade de todos os seus participantes71, pelo contrário, lealdade e efetividade harmonizam-se

para o alcance dos escopos processuais. Todos os caminhos do processo são traçados por

balizas delimitadas pela lealdade processual e pela boa-fé objetiva as quais, uma vez

devidamente observadas, conduzem, inequivocamente, à efetividade da prestação da tutela

jurisdicional.

67 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 67. 68 No original: “El principio de la buena fe es una de las vías más eficaces para introducir un contenido ético-moral en el ordenamiento jurídico, y supone otro avance más en el desarrollo de la civilización, tendente a superar una concepción excesivamente formalista y positivista de la ley, que permite a los juristas adecuar las distintas instituciones normativas a los valores sociales propios de cada momento histórico.” 69 Nesse sentido, Picó destaca que “Couture ao estudar as tendências modernas do Direito Processual civil destacou a aparição de ‘uma corrente autônoma de pensamento no campo do Direito Processual’ caracterizada por ‘propugnar a efetividade de um princípio de moralidade, uma concepção ética do processo’, o que justifica que a idéia de um princípio moral deve reger a conduta a processual ‘constituindo uma etapa da civilização’”. COUTURE, E. J. Concepto, sistemas y tendencias del derecho procesal civil, en Revista del Colegiado de Abogados, Buenos Aires: T. XXXII, 1954, n. 3, set. – dez., p. 206. apud PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 67, nota de rodapé n. 108. 70 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros. 2001, p. 78. 71 IOCOHAMA, Celso Hiroshi. Litigância de má-fé e lealdade processual. Curitiba: Juruá. 2006, pp. 17-18.

144

O princípio da solidariedade e o dever de cooperação são apontados por Morello como sendo

as idéias fundamentais do novo edifício jurídico, que sustentam o conjunto em uma

reconstrução da ética e na conformação das estruturas já estabelecidas.72,73

A concepção do processo justo e équo, que permeia grande parte dos ordenamentos jurídicos

modernos, cuja matriz é desenhada nos textos constitucionais, e sob a qual as normas

infraconstitucionais precisam se amoldar, encontra-se refletida nos fundamentos éticos do

processo. “Da mesma maneira que a cláusula do devido processo legal transformou no tempo

a garantia de legalidade procedimental (ou garantia da justiça formal) na mais ampla garantia

de justiça substancial”, os textos constitucionais, ao conferirem aos valores éticos plena

legitimação e relevância jurídica, propiciam o constante ajustamento das formas de tutela

jurídica e da estrutura publicista do processo com os valores imperantes na sociedade ao

longo do tempo e, via de conseqüência, a sua aceitabilidade.74, 75

“Isso significa, em última análise, que o processo não é apenas instrumento técnico, mas sobretudo ético. E significa, ainda, que é profundamente influenciado por fatores históricos, sociológicos e políticos. Claro é que a história, a sociologia e a política hão de parar às portas da experiência processual, entendida como fenômeno jurídico. Mas é justamente a Constituição, como resultante do equilíbrio das forças políticas existentes em dado momento histórico, que se constitui no instrumento jurídico de que deve utilizar-se o processualista para o completo entendimento do fenômeno processo e de seus princípios.”76

A boa-fé objetiva tem matizes que são identificados quando da sua aplicação: a boa-fé reflete

lealdade, honestidade e fidelidade, quando no direito de fundo são exigidas ações positivas

72 MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos. Buenos Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 659. 73 No original: “Dos son las ideas-fuerza, verdaderos arbotantes del nuevo edificio jurídico: el principio de la solidariedad y el deber de colaboración (además de la búsqueda de la excelencia), que sustentan el conjunto en una reconstrucción de la ética. Ellas conforman, en nuestra opinión, las grandes avenidas superadoras de lo establecido e a las que tenemos que vivenciar, interiozándolas en la experiencia constante, pues únicamente a través de las mismas, afirmaremos una evolución más civilizada […]” 74 COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionale e “Gisuto Processo” (modelli a confronto). In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 23. n. 90. abr. – jun., 1988, p. 105. 75 No original: “Si tratta di un aproccio valorativo che – nell’ambito specifico della garanzie constitucionali attinenti alla giustizia – mira consacrare stabilmente determinati fondamenti etici del processo, conferendo loro una piena legittimazione e rilevanza giuridica nel dettare le scelte di civilità democratica che sono destinate a condizionare, nel tiempo, il massimo grado de accettabilità morale delle forme di tutela giudiziaria e della struture pubblicistiche, attraverso le quali la giustizia viene amministrata. Se ben si riflette, è il medesimo aproccio che, nell’evoluzione dell’ ‘adversari syztem’ e della ‘due process clause’ degli ordinamenti angloamericani, ha trsnformato, nel tempo, una garanzia di legalità procedurale (o di giustizia formale) in una più amplia garanzia di giustizia sostanziale.” 76 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros. 2001, p. 79.

145

para estabelecer a relação jurídica em pauta. No Processo Civil, a conduta leal, honesta, e fiel

representa um cláusula aberta que repousa um conteúdo ético no comportamento profissional

e como uma regra que governa a conduta das partes. A deslealdade, a desonestidade e a

infidelidade são sancionadas por normas processuais cujas penalidades são aplicadas no

provimento judicial.77, 78

De acordo com Diez-Picazo:

“A boa-fé é considerada pelo ordenamento jurídico com uma pluralidade de matizes e de conseqüências. Sem pretender fazer uma enumeração exaustiva das mesmas podemos destacar as seguintes: […] b) A boa-fé é considerada como uma causa ou uma fonte da criação de especiais deveres de conduta exigíveis em cada caso, de acordo com a natureza da relação jurídica e com a finalidade perseguida pelas partes através dela. As partes não se devem somente aquilo que elas mesmas estipulam ou o que determina o texto legal, mas a tudo o que em cada situação impõe a boa-fé. c) A boa- fé é, finalmente, uma causa da limitação do exercício de um direito subjetivo ou de qualquer outro poder jurídico. O princípio da boa-fé comporta, então, uma série de limitações ao exercício dos direitos subjetivos. Segundo Larenz, é inadmissível todo o exercício de direito subjetivo que contravenha, em cada caso concreto, as considerações que dentro da relação jurídica cada parte está obrigada a dotar em respeito da outra.”79, 80

De Los Mozos, ao trazer a concepção da boa-fé objetiva, embora o faça no campo

obrigacional, o cerne do seu conteúdo também aplica-se às relações jurídicas processuais:

77 GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El principio de la buena fe en el proceso civil. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 895. 78 No original: “La buena fe refleja lealtad, honestidad y fidelidad, cuando no derecho de fondo exige acciones positivas para establecer la relación jurídica de que se trate. […] En el proceso civil, la conducta leal, honesta y fiel se colige como un principio abierto que reposa un contenido deontológico, es decir, de ética en el comportamiento profesional y como una regla que gobierna la conducta de las partes. La deslealtad, la deshonestidad y la infidelidad encuentran normas procesales que las sancionan tomando cuerpo en multas particulares o para entender que esa conducta supone una prueba en contra de quien la practica, etc. De alguna manera, tiene consecuencias que se advierten en el resultado (la sentencia), al aplicar-se sanciones por temeridad y malicia, o por interpretar en contrario la prueba producida con argucias desleales, o sancionando al obstruccionista recalcitratante, etc.” 79 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 19. 80 No original: “La buena fe es tenida en cuenta por el ordenamiento jurídico con una pluralidad de matices y de consecuencias. Sin pretender hacer enumeración exhaustiva de las mismas podemos destacar las siguientes: […] b) La buena fe es tenida en cuenta en segundo lugar como una causa o una fuente de creación de especiales deberes de conducta exigibles en cada caso, de acuerdo con la naturaleza de la relación jurídica y con la finalidad perseguida por las partes a través de ella. Las partes no se den sólo a aquello que ellas mismas han estipulado o escuetamente a aquello que determine el texto legal, sino a todo aquello que en cada situación impone la buena fe. c) La buena fe es finalmente una causa de limitación del ejercicio de un derecho subjetivo o de cualquier otro poder jurídico. El principio de la buena fe comporta, pues, una serie de limitaciones al ejercicio de los derechos subjetivos. Es inadmisible, dice Larenz, todo ejercicio de un derecho subjetivo que contravenga en cada caso concreto las consideraciones que dentro de la relación jurídica cada parte está obligada a adoptar respecto de la otra.”

146

“Um dos aspectos mais intensos de aplicação do princípio da boa-fé encontra-se na expressão

da boa-fé objetiva [...]. Trata-se de um comportamento de fidelidade situado no mesmo plano

que o uso ou a lei que adquire função dispositiva. Daí sua natureza objetiva, que não se baseia

na vontade das partes, mas na adequação dessa vontade a um princípio que inspira e que

fundamenta o vínculo obrigacional[...].”81, 82

“A boa-fé objetiva é um standard jurídico, ou um modelo de conduta social, ou uma conduta

socialmente considerada como arquétipo, ou uma conduta que a consciência social exige

conforme a dado imperativo ético.”83

A boa-fé objetiva expressa um modelo de conduta social que se impõe nas relações jurídicas,

segundo o qual cada um deve ajustar suas condutas a um arquétipo imperante no meio social.

O comportamento segundo a boa-fé objetiva traduz-se não só em limitações ou vedações de

condutas violadoras desse padrão, como também, impõe deveres anexos de cooperação,

esmero e diligência.84, 85

De acordo com Couto e Silva, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, como fonte de

direitos e de obrigações, possui a aptidão de trazer, para os domínios do direito obrigacional,

elementos de cooperação importando em flexibilização do polêmico vínculo dialético entre os

contratantes.86

81 DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 45. 82 No original: “Uno de los aspectos más intensos de aplicación del principio de la buena fe se encuentra en lo que acotamos, con la expresión ‘buena fe objetiva’ […]. En este caso la buena fe, como comportamiento de fidelidad, se sitúa en el mismo plano que el uso o la ley, es decir, función dispositiva, de ahí su naturaleza objetiva que no se halla en la voluntad de las partes, sino en la adecuación de esa voluntad el principio que inspira y fundamenta el vínculo negocial.” 83 DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 138. 84 Ibidem, p. 139. 85 No original: “Si la buena fe, considerada objetivamente, en sí misma, es un modelo o un arquetipo de conducta social, hay una norma jurídica que impone a la persona el deber de comportarse de buena fe en el trafico jurídico. Cada persona debe ajustar su conducta al arquetipo de la conducta social reclamada por la idea ética imperante. El ordenamiento jurídico exige este comportamiento de buena fe, no sólo en lo que tiene de limitación o de veto de una conducta deshonesta (v. gr. No engañar, no defraudar, etc.), sino también en lo que tiene de exigencia positiva, prestando al prójimo todo aquello que exige una fraterna convivencia (v. gr. Deberes de diligencia, de esmero, de cooperación, etc.).” 86 COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 47.

147

Nesse mesmo passo, tal é a manifestação da boa-fé objetiva ao estabelecer um padrão de

probidade no desenvolvimento da relação jurídica processual, dialeticamente construída em

contraditório tendo por baliza a lealdade. “[...] a lealdade é um paradigma ético, que informa a

atividade no sentido do litigante agir de frente, sem chicanices, sem providências inesperadas,

mesmo que tais providências pudessem ser havidas como legítimas em circunstâncias

conjunturais outras.”87

O contraditório no desenvolvimento da relação jurídica processual não possui extensão

ilimitada, sendo certo que dele decorrem deveres a serem observados “na tela publicista em

que hoje é desenhado o processo. [...] a concepção do contraditório como fonte de deveres

processuais eleva ao patamar da Lei Maior a base normativa para justificar a boa-fé

processual objetiva no ordenamento brasileiro, um imperativo constitucional da conduta ética

dos sujeitos processuais.”88

Mesmo nos quadrantes de um processo norteado, por um lado pelo garantia do contraditório

e, de outro, pelo princípio dispositivo, a atividade dos sujeitos processuais há que ser pautada

por uma conduta leal animada pela boa-fé objetiva. Os princípios do contraditório e

dispositivo não podem servir de âncoras para manobras desleais, cabendo ao magistrado

aferir, objetivamente, no caso vertente a observância ao dever, ex lege, de agir com lealdade e

boa-fé.89

Sob esse enfoque, “[...] o contraditório legitimador da decisão final do processo impõe o

exercício das posições subjetivas processuais de forma dialética, mas exige o respeito aos

deveres de cooperação e colaboração decorrentes de sua contemporânea acepção jurídico-

política, que visa, acima de tudo, a tornar efetiva a garantia no Processo Civil.”90

A boa-fé objetiva processual está diretamente ligada ao uso adequado e racional do processo

devendo as partes agir de forma reta e leal frente aos seus deveres processuais buscando

87 ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual civil. 2. ed. ref. e ampl. do Código de Processo Civil comentado. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1996, p. 406. 88 CABRAL, Antonio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. Revista de Processo. ano 30. n. 126. São Paulo: Revista dos Tribunais. ago. 2005, p. 67. 89 ALVIM, Arruda. Resistência injustificada ao andamento do processo. Revista de Processo. n. 17. São Paulo: Revista dos Tribunais. jan. – mar. 1980, p. 16. 90 VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas. 2003, p. 44.

148

solucionar seus conflitos da melhor forma possível não se utilizando de mecanismos aéticos e

fraudulentos91.

Jônathas Milhomens, ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, portanto em

uma época que sequer se cogitava da aplicação da boa-fé objetiva no âmbito processual e

muito distante se encontrava dos horizontes descortinados pela Constituição de 1988, já

evocava o dever de lealdade no âmbito processual, como máxima da arte jurisprudencial a

nortear o “jogo limpo” nos meandros das relações jurídicas processuais. Jurista de visão

prospectiva, já antevia o que hoje tem se denominado de processo cooperativo, num esforço

conjunto de todos os envolvidos no desenvolvimento processual. Pela atualidade e precisão

do texto quadra trazê-lo à colação:

“Todos os sujeitos do processo – partes, juízes, serventuários, auxiliares – devem agir no sentido da consecução de um fim estrito: a realização do direito ou, como diz Pontes de Miranda, o ‘prevalecimento da verdade sobre a situação de direito deduzida em juízo’. O processo é meio, posto a serviço do homem, para esse fim social. O Estado, que promete a prestação jurisdicional, dá o instrumento, mas exige que se lhe dê precípua destinação. Pratiquem-se de boa-fé todos os atos processuais. Ajam as partes lealmente; colaborem todos com o órgão estatal, honestamente, sem abusos. Da relação processual surgem poderes e deveres. Para o Juiz e para as partes, entre si, e deveres de uma parte com a outra. Os códigos não são sistemas perfeitos. O direito não se contém nos textos legais. Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, nos quais o jurista descobre as máximas gerais, os princípios fundamentais. Não é mister que esteja escrito no texto legal, ad instar do que acontece com alguns códigos cantonais da Suíça, para se reconhecer que as partes e o advogados não devem incoar conscientemente processos injustos. Entre os profissionais do pano verde vigora a regra do ‘jogo limpo’. Como liberar os partícipes da relação processual desse liame ético-jurídico?92

A prestação de uma tutela jurisdicional efetiva se espelha em um “processo justo e équo”, no

qual as garantias constitucionais não são simples promessas, mas que são concretamente

realizadas.93 Tal desiderato importa uma atuação segundo balizas estabelecidas pela boa-fé

objetiva.

91 “Tanto as partes como terceiros que participam da lide têm o dever de firmar postura socialmente adequada, colaborando com o Poder Judiciário na busca da efetivação da Justiça. Tal concepção fundamenta-se na idéia fecunda de bem comum, a partir da eficácia do sistema jurídico-social empregado hodiernamente, sendo pressuposto exigível básico de uma sociedade que deseja ser justa e solidária.” CARPENA, Márcio Louzada. Da (des)lealdade no Processo Civil. Revista jurídica. Porto Alegre: Notadez , ano 53, n° 331. maio de 2005, p. 28. 92 MILHOMENS, Jônathas. Da presunção de boa-fé no processo civil. 1. ed. São Paulo: Forense. 1961, pp. 33-34. 93 De acordo com Brunela Vieira de Vincenzi “[...] Garantir um processo giusto e équo é assegurar o due process of law ou o fair procedure, em sua acepção concreta, mais ligada à realidade do que a seus aspectos meramente formais.” VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas. 2003, p. 45.

149

“O devido processo legal como fundamento do processo justo e équo”94 se concretiza por

meio de um contraditório no qual as partes têm efetiva participação, com paridade de armas,

sob a direção de um juiz que, ao mesmo que é imparcial, dirige, ativamente, o processo para

que este se desenvolva em tempo razoável. A conjugação e operacionalização dessas garantias

constitucionais processuais não chegam a bom termo sem o amálgama da boa-fé objetiva.

Os parâmetros da lealdade e da boa-fé objetiva conduzem a uma atuação processual que

imprime certa expectativa lógica na prática dos atos processuais, sem causar surpresas ou

manobras protelatórias ao bom desenvolvimento do feito. As condutas praticadas em

manifesta afronta a esses postulados têm sido veementemente reprovadas pelos Tribunais.

Uma das facetas mais destacadas da atuação da boa-fé objetiva encontra-se representada na

proteção da confiança que há de se estabelecer entre os litigantes. De acordo com Larenz essa

proteção da confiança é inspirada pelo próprio ordenamento jurídico e pela vida em

coletividade: “O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do

outro [...] porque poder confiar [...] é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e

uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto de paz jurídica.”95, 96

A tutela da confiança possui vinculação estrita com o princípio da igualdade das partes, visto

que, nas relações jurídicas, aquele que, legitimamente, confiou numa atuação não pode ser

tratado como se tal não tivesse ocorrido.97

No âmbito processual civil, pela própria dialeticidade, característica do procedimento em

contraditório, a boa-fé objetiva intervém no desenvolver desse procedimento norteando o agir

de todos os intervenientes dessa relação jurídica processual. Conforme apontado por Larenz, a

aplicação da proteção da confiança não se aplica somente nos estreitos limites das relações

94 COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e ‘giusto processo’( modelli a confronto). In Revista de Processo. n. 90, ano 23. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr. – jun. 1998, p. 148. 95 No original: “El ordenamiento jurídico protege la confianza suscitada por el comportamiento de otro y no tiene más remedio que protegerla, porque confiar poder confiar, como hemos visto, es condición fundamental para una pacífica vida colectiva y una conducta de cooperación entre los hombres y, por tanto, de la paz jurídica.” 96 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução e Apresentação de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2001, p. 91. 97 MENEZES CORDEIRO, António. Novas tendências da boa-fé in Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. N. 52. set.-dez., 1998, p. 26. No mesmo sentido em MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 51.

150

obrigacionais, encontrando vigência em todas as relações jurídicas e, até mesmo, naquelas de

direito público, conforme se infere do trecho que merece transcrição:

“[...] o comportamento ético-jurídico está em primeiro plano no princípio da boa-fé. Dito princípio consagra que uma confiança despertada de um modo imputável deve ser mantida quando se creu nela. A suscitação da confiança é ‘imputável’ quando aquele que suscita sabia ou tinha de saber que o outro ia confiar. Nesta medida é idêntico ao princípio da confiança. Entretanto, o sobrepõe e vai mais adiante. Demanda também um respeito recíproco diante de todas aquelas relações jurídicas que requerem uma larga e continuada colaboração, respeito ao outro também no exercício dos direitos e em geral o comportamento que pode esperar entre os sujeitos que intervêm honestamente no tráfico. Este princípio encontrou expressão no Código Civil alemão nos §§ 157 e 242 e no Código Civil suíço no artigo 2º. Apesar da estrita formulação do § 242 do BGB, no direito alemão o preceito possui o mesmo alcance que o suíço e não rege somente as relações obrigacionais. Segundo a opinião atual, se aplica nas relações jurídicas de direito público.”98, 99

“Lealdade é, pois, virtude do litigante que, embora não meça esforços para fazer prevalecer o

que entenda seja ser direito, assim age respeitando, mostrando a face, olhando nos olhos. Leal

é a parte que vê, no contrário, não o inimigo, mas o adversário circunstancial; é a que não

surpreende, a que mostra as armas de que dispõe, a que não atira pelas costas.”100

O dever de lealdade na atuação das partes na relação jurídica processual “concerne à

obrigação de respeitar as chamadas ‘regras do jogo’, e comporta numerosos desdobramentos,

que se traduzem em outros tantos preceitos, dificilmente redutíveis a uma enumeração

exaustiva, mas cujo denominador comum talvez se possa identificar no respeito aos direitos

processuais da parte contrária e na abstenção de embaraçar, perturbar ou frustrar a atividade

do órgão judicial, ordenada à apuração da verdade e à realização concreta da justiça.”101

98 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução e Apresentação de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2001, pp. 95-96. 99 “[...] el componente ético-jurídico está en primer plano en principio de buena fe. Dicho principio consagra que una confianza despertada de un modo imputable debe ser mantenida cuando efectivamente se ha creído en ella. La suscitación de la confianza ‘imputable’ cuando el que la suscita sabía o tenía que saber que el otro iba confiar. En esta medida es idéntico al principio de la confianza. Sin embargo, lo sobrepasa y va más allá. Demanda también un respecto recíproco ente todo en aquellas relaciones jurídicas que requieren una larga y continuada colaboración, respeto al otro también en el ejercicio de los derechos y en general el comportamiento que se puede esperar entre los sujetos que intervienen honestamente en el tráfico. Este principio ha encontrado expresión en el Código Civil alemán en los §§ 157 y 242 y en el Código Civil suizo en el artículo 2º. A pesar de la estricta formulación del § 242 BGB, en el Derecho alemán el precepto posee el mismo alcance que el suizo y no rige sólo en las relaciones obligatorias. Según la opinión actual, se aplica en las relaciones jurídicas de Derecho público.” 100 MILMAN, Fábio. Improbidade processual: comportamento das partes. Rio de Janeiro: Forense. 2007, p. 97. 101 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidade das partes por dano processual no direito brasileiro. In Temas de Direito Processual: primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 1988, p. 17.

151

A probidade processual é imperativo da atividade jurisdicional não estando cingida apenas

aos litigantes, mas a todos que participam do processo, exigindo uma conduta leal e proba

para que a prestação da tutela jurisdicional não venha ser fraudada por artimanhas que

deturpem fatos. Daí a necessidade de controle de todos os que intervêm no processo, visto que

o resultado final é obtido mediante o conjunto de atividades de todos.

Essa é a concepção do processo cooperativo: as partes coadjuvam na construção da solução

do caso objeto da lide. “Encara-se o processo como o produto de atividade cooperativa: cada

qual com suas funções, mas todos com o objetivo comum, que é a prolação do ato final

(decisão do magistrado sobre o objeto litigioso). Traz-se o magistrado ao debate processual:

prestigiam-se o diálogo e o equilíbrio. Trata-se de princípio que estrutura e qualifica o

contraditório.”102

No Código de Processo Civil português o princípio encontra-se expresso no art. 266.

Art. 266º do Código de Processo Civil de Portugal: “Princípio da Cooperação. 1 – Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.”

Destaque-se que a boa-fé objetiva aplica-se a todos os participantes do processo, daí não se

excluindo os magistrados e os tribunais. Sob esse enfoque é que se funda o processo

cooperativo, ao qual os magistrados e os Órgãos jurisdicionais também estão submetidos.

Portanto, a boa-fé objetiva impõe deveres de cooperação também a esses, relevando a

amplitude que o mesmo alcança frente aos magistrados, movendo-os da condição de meros

espectadores para uma posição de maestro da marcha processual. Didier destaca que o

princípio da cooperação “orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do

processo, de participante ativo do contraditório e não mais de um mero fiscal de regras”.103

“O que, na realidade das coisas, o princípio da cooperação – bem como outros que lhe são conexos, como o da direção do processo e o incremento da inquisitoriedade judicial – vem, de algum modo, restringir é a passividade do juiz, afastando-se claramente da velha idéia liberal do processo como uma ‘luta’ entre as partes, meramente arbitrada pelo julgador – concepção essa, na nossa óptica, dificilmente

102 DIDIER Jr., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 33. 103 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. vol. I. Salvador: Juspodivm. 2008, p. 59.

152

conciliável como uma Constituição que, como a nossa, institui um Estado social de direito. [...] O princípio da cooperação envolve duas vertentes: - a cooperação das partes com o tribunal; - a cooperação do tribunal com as partes.”104

A dialeticidade que advém do princípio da cooperação promove uma hermenêutica mais

afinada com o objetivo das normas, sem perder de vista o foco constitucional.

“Semelhante cooperação, além disso, mais ainda se justifica pela complexidade da vida atual, mormente porque a interpretação da regula iuris, no mundo moderno, só pode nascer de uma compreensão integrada entre o sujeito e a norma, geralmente não unívoca, com forte carga de subjetividade. Entendimento contrário padeceria de vício dogmático e positivista. Exatamente em face desta realidade, cada vez mais presente na rica e conturbada sociedade de nossos tempos, em permanente mudança, ostenta-se inadequada a investigação solitária do órgão judicial. Ainda mais que o monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e em contrapartida o diálogo, recomendado pelo método dialético, constrange à comparação, atenua o perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e ponderado.105

A tendência no direito processual atual é de acentuar os deveres éticos estabelecendo deveres

processuais não só para as partes e para todos os intervenientes no processo, mas estendendo-

os aos magistrados na condução do processo e aos órgãos jurisdicionais nas suas relações com

os jurisdicionados.106 Não se pode perder de vista que há, por parte dos jurisdicionados, uma

confiança legítima na atuação do poder judiciário, confiança essa ancorada na boa-fé objetiva.

“Partes e juízes devem cooperar entre si para que o processo realize a sua função em prazo razoável (‘para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio’: art. 266-1). O apelo à realização da função processual aponta para a cooperação dos intervenientes no processo no sentido de nele se apurar a verdade sobre a matéria de facto e, com base nela, se obter a adequada decisão de direito. O apelo ao prazo razoável aponta para a sua cooperação no sentido de, sem dilações inúteis, proporcionarem as condições para que essa decisão seja proferida no menor período de tempo compatível com as exigências do processo, ou, na ação executiva, para que tenham lugar com brevidade as providências executivas. No primeiro sentido poder-se-á falar numa cooperação sem sentido material; no segundo, duma cooperação em sentido formal.”107

104 REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Comentário ao Código de Processo Civil. vol. 1. 2. ed. Coimbra: Almedina. 2004, p. 266. 105 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Garantia do contraditório. In: Garantias constitucionais do processo civil . São Paulo: RT, 1999, p. 139. Ainda do mesmo autor, Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2003, n. 27, p. 27-28; Efetividade e Processo de Conhecimento. Revista de Processo. São Paulo: RT, 1999, n. 96, p. 64-68. 106 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editores. 2006, p. 163. 107 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editores. 2006, p. 164.

153

A jurisprudência tem acenado nesse mesmo sentido:

APELAÇÃO CÍVEL. BUSCA E APREENSÃO. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO PESSOAL. CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. A extinção do feito por falta de comprovação idônea da mora sem a concessão de prazo que oportunize a parte para complementar a ausência de requisito tido por essencial pelo julgador à procedibilidade da demanda, afronta a garantia do contraditório e impõe "decisão-surpresa", mormente quando existente decisão no processo, proferida em sede de controle de regularidade procedimental, que entendeu por existente todos os requisitos de admissibilidade do exame do mérito. Afronta à cooperação processual. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA POR DECISÃO MONOCRÁTICA DA RELATORA. (TJRS; AC 70020307039; Lajeado; Décima Quarta Câmara Cível; Relª Desª Judith dos Santos Mottecy; Julg. 14/12/2007; DOERS 08/01/2008; Pág. 48) PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. DANOS MORAIS. PRINCÍPIO D A COOPERAÇÃO. ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO. NÃO OCORRÊNCI A. 1. Não há abuso de direito de ação a dar ensejo à indenização por danos morais, quando o autor utiliza-se do Poder Judiciário, pleiteando legítimo direito. 2. Não só o magistrado, mas, principalmente, as partes, devem observar o princípio da cooperação, tendo como escopo o deslinde da prestação jurisdicional. 3. Apelo improvido. Sentença mantida. (TJDF; Rec 2006.01.1.039795-3; Ac. 319.588; Terceira Turma Cível; Rel. Des. Arnoldo Camanho; DJDFTE 09/09/2008; Pág. 93) AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO. REJEIÇÃO . MÁ-FÉ E PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. MÉRITO. EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. GARANTIA HIPOTECÁRIA. REGISTRO DA HIPOTECA. BEM IMÓVEL INEXISTENTE. BENS OFERTADOS À PENHORA DE DIFÍCIL LIQUIDAÇÃO. REJEIÇÃO PELO CREDOR . PENHORA ON LINE. PROVA DE POSSIBILIDADE DE BLOQUEAR O VALOR GLOBAL DA EXECUÇÃO NA CONTA DO PRINCIPAL DEVEDOR. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Não possui razão de ser a preliminar de intempestividade recursal se o recurso foi manejado, segundo alegações do próprio agravado, quem suscita a presente preliminar, no dies ad quem do prazo recursal, conforme faz certo o protocolo que consta na segunda folha do recurso. Deixa-se de aplicar pena por litigância de má-fé no caso, por aplicação do princípio da cooperação, que recomenda que o magistrado tome uma posição de agente-colaborador do processo e não a de um fiscal de regras. Preliminar rejeitada.” (TJES; AI 48079000237; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Carlos Henrique Rios do Amaral; Julg. 22/05/2007; DJES 04/07/2007; Pág. 34) AÇÃO DE DIVÓRCIO. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. OFENSA AO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. NULIDADE DA SENTENÇA. A cooperação processual, consagrado como princípio exponencial do Processo Civil, tem como norte propiciar que as partes e o juiz cooperem entre si, a fim de se alcançar uma prestação jurisdicional efetiva, com a justiça do caso concreto, sendo inconcebível o indeferimento da petição inicial por irregularidades constantes da petição inicial, das quais o autor sequer tomou conhecimento. (TJMG; AC 1.0009.05.006309-9/001; Águas Formosas; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Eduardo Guimarães Andrade; Julg. 21/08/2007; DJMG 04/09/2007)

A atuação conjunta das partes e do poder judiciário para a justa composição da lide tem

alcançado tamanha importância que a doutrina chega a denominar de “comunidade de

154

trabalho”, ou seja, o que antes parecia pertencer tão somente ao Órgão jurisdicional espraia-se

para os jurisdicionados denotando a prevalência da democracia participativa nos meandros

processuais como concretização do fundamento constitucional de “construção de uma

sociedade livre, justa e solidária.”

“A progressiva afirmação do princípio da cooperação, considerado já uma trave mestra do Processo Civil moderno, leva freqüentemente a falar duma comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft) entre as partes e o tribunal para a realização da função processual. Esta nova concepção do Processo Civil, bem afastada da velha idéia liberal duma luta arbitrada pelo juiz, revela bem a importância do princípio da cooperação. Embora se tenha revelado, na prática, difícil o período de adaptação a ela, a legislação portuguesa decorrente da revisão 1995-1996 constitui um passo importante da sua imposição.”108

O dever de lealdade e de boa-fé foi “concebido para refrear os impulsos [...] dos litigantes e

de seus procuradores, no sentido de obstar que transformassem o processo em meio de

entrechoques de interesses escusos, com o emprego de toda série de embustes, artifícios

atitudes maliciosas [...].”109

A boa-fé objetiva intervém para suprir as expectativas geradas nos membros da comunidade

de um agir fundado na honestidade, na retidão, na lealdade, expectativa essa especialmente

criada na contraparte da relação jurídica.110

Alcides Mendonça Lima já destacava que o atingimento dos escopos do processo somente

pode se verificar “quando o direito é alcançado em juízo, lisa e limpidamente, como

expressão da vontade do Estado e como emanação da Justiça. [...] Para ser alcançado este

objetivo, tão necessário à própria estabilidade social, é imprescindível que o ‘princípio da

probidade’111, em suas várias e imprevisíveis modalidades envolva todos quantos atuem em

juízo, sem desvirtuar ou macular o julgamento.”112

108 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editores. 2006, p. 168. 109 LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da probidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 27. 110 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 412. 111 O princípio da probidade não significa que esteja a se exigir que a “parte ofereça ao adversário as armas para que esse triunfe, mas, sim, obstar que, maliciosamente, use de meios que fraude a função jurisdicional.” LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da probidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 17. 112 LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da probidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 41.

155

Bedaque destaca a necessidade do “[...] retorno ao interior do sistema processual, com o

objetivo de rever conceitos e princípios, adequando-os à nova visão desse ramo da ciência

processual, a fim de conferir a eles nova feição, a partir das necessidades identificadas na fase

instrumentalista.”113

Entretanto, esse “retorno ao interior do sistema processual” não pode ser motivado para

alcançar uma nova feição oriunda do processo como instrumento de realização do direito

material, mas do processo preocupado com a realização da justiça do caso concreto. De nada

adianta um processo centrado em si mesmo sem qualquer preocupação com o ordenamento

jurídico e com a pacificação social. Para tal empreitada faz-se necessário desapegar das

questões eminentemente técnico-processuais para alcançar a tonalização decorrente da visão

axiológica do processo impressa pela boa-fé objetiva.

A prestação da tutela jurisdicional pelo Estado para a resolução dos conflitos de interesses

emergentes da sociedade exige que o processo se desenvolva dentro de normas pré-

estabelecidas e segundo padrões de comportamento daqueles que nele atuam. Trata-se de

garantia constitucional à prestação de uma tutela efetiva, segundo a qual o processo se

desenvolve sem dilações indevidas assegurando-se às partes todos os meios de defesa para a

justa composição da lide sob a garantia do devido processo legal. Isso implica uma atuação

alheia a manobras desleais, ou seja, com observância da lealdade e da boa-fé objetiva de

forma a que o processo seja instrumento apto a alcançar os propósitos para os quais foi

instituído.114

Para se conseguir uma conduta endoprocessual alinhada às finalidades de Justiça e do Direito

faz-se mister “o estabelecimento de uma série de regras entrosadas, mediante as quais se traça

o comportamento que as partes devem observar. Tais regras, em última análise, sintetizam-se

no princípio da lealdade processual.”115

113 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 15. 114 PICÓ apresenta a boa-fé processual como critério de proteção dos seguintes direitos fundamentais: da efetividade da prestação da tutela jurisdicional, do direito de defesa, da igualdade processual e a um processo sem dilações indevidas ou dentro de um prazo razoável. Nesse sentido ver PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, pp. 81-91. 115 ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual civil. 2. ed. ref. e ampl. do Código de Processo Civil comentado. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1996, p. 386.

156

Importa ressaltar que a boa-fé objetiva “é, incontroversamente, regra de caráter marcadamente

técnico-jurídico, porque enseja a solução de casos particulares no quadro dos demais modelos

jurídicos postos em cada ordenamento, à vista das suas particulares circunstâncias. Solução

jurídica, repito, e não de cunho moral, advindo a sua juridicidade do fato de remeter e

submeter a solução do caso concreto à estrutura, às normas e aos modelos do sistema,

considerado este de modo aberto.”116

Menezes Cordeiro também enfatiza que a boa-fé objetiva “revela por concretizar nos moldes

do direito e, máxime, por decisões dos tribunais. [...] Poderá haver uma ‘boa fé ética’; mas a

moral não faculta a concretização da boa fé jurídica.”117

A fidelidade à lealdade e à boa-fé traz como conseqüência para o âmbito processual o regular

exercício do amplo direito de defesa e do contraditório à medida que reprova a produção

extemporânea de provas, ou a ‘guarda de trunfos’, a produção manifestamente protelatória de

recursos. Ademais, sob a perspectiva do processo cooperativo, impõe-se um esforço conjunto

de todos os que participam do processo para que o provimento jurisdicional seja prestado em

tempo razoável e que espelhe a justa composição da lide.

O processo despe-se das vestes de instrumento meramente técnico e reveste-se de valores

socioculturais característicos de cada sociedade em cada momento histórico. As regras

formais são implementadas por meio de uma relação dialética entabulada entre as partes e o

órgão judicial numa construção que amplia o espectro de análise e conflui para o seio

processual todas as impressões relativas à lide contribuindo para a formação da prestação

jurisdicional. Os valores intrínsecos da democracia adquirem sua melhor expressão no âmbito

processual no princípio do contraditório – um contraditório renovado pela efetiva participação

dos litigantes num trabalho de cooperação e colaboração com o órgão judicial.118 Sob esse

prisma, a observância às regras do jogo não pode ficar limitada ao “aspecto procedimental

extrínseco” subtraindo-se do “controle o exercício exorbitante das faculdades processuais”.119

116 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 413. 117 Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. N. 52. set.-dez., 1998, p. 31. 118 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A garantia do contraditório. Revista Forense. N. 346. Rio de Janeiro: Forense. abr. – jun. 1999, pp. 9-19. 119 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como

157

Fernando Luso Soares destaca que “[...] a justa composição da lide implica o diálogo que o

processo é. E que este não dispensa a boa fé – ou seja, lealdade, verdade, respeito mútuo, e até

mesmo, obviamente, a cooperação entre os litigantes. Entenda-se, porém, que se trata de uma

cooperação no contraditório.”120

Nesse contexto, a igualdade ou paridade de armas reclama por uma atuação proba e leal, que,

sob a contínua vigilância do magistrado, há de se manter o perfeito equilíbrio na participação,

com as mesmas possibilidades de alegações, provas, impugnações para sustentar e

fundamentar as suas razões. Na hipótese de ocorrência de situações que comprometam a

harmonia ou que desestabilizem a participação, cabe ao juiz, como condutor do processo,

implementar mecanismos que restaure ou restabeleça a paridade exigida.121

“A volta ao interior do processo, para reconstruir conceitos, mostra-se imprescindível. [...] É

preciso conciliar a técnica processual com seu escopo. Não se pretende nem o tecnicismo

exagerado, nem o abandono total da técnica. Virtuoso é o processualista que consegue

harmonizar esses dois aspectos, o que implicará a construção de um sistema processual apto a

alcançar seus escopos, de maneira adequada.”122

Nesse contexto, a boa-fé objetiva atua como mecanismo de conciliação da técnica processual

com os escopos perseguidos pelo processo. Quando da análise das decisões judiciais pode-se

conferir que não basta observância estrita e cega à técnica. É imperioso que o uso da técnica

esteja afinado pelo diapasão da boa-fé objetiva.

Nos termos do art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil é dever das partes e de seus

procuradores comportar em juízo com lealdade e probidade. Calamandrei anota que, sob a

ótica do processo como um jogo, há que ressaltar que, além de ser um jogo com regras

requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 79. 120 LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 159. 121 Adroaldo Furtado Fabrício destaca que a enorme dificuldade na aplicação das normas repressivas das condutas processuais está na “identificação do ponto de equilíbrio entre a intrínseca e conceitual parcialidade dos litigantes (e, em alguma medida ao menos, de seus advogados) e o dever de lealdade processual e de colaboração com o Estado-juiz.”. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Relação entre as partes os juízes e os advogados: Brasil. In XII Congreso mundial de derecho procesal: relaciones entre las partes, los jueces y los abogados. Ma. Macarita Elizondo Gasperín (Relatora General). México: Instituto Nacional de Estudios Superiores en Derecho Penal, A.C. División Editorial. 2004, p. 257. 122 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 1997, pp. 44-45.

158

claramente estabelecidas, o dever de lealdade e da boa-fé objetiva norteia a aplicação dessas

regras, coibindo as atuações que frustrem a lealdade e a probidade.

“Este dever, tão vago e indeterminado, não teria sentido algum em um processo em que a atividade das partes e de seus defensores estivesse rigidamente vinculada por lei em todas suas manifestações; por outro lado, adquire um significado muito importante em um processo, como é o do tipo dispositivo, em que dentro dos limites estabelecidos pelo Direito Processual se permite às partes um amplo campo discricionário, dentro do qual cada uma delas é livre para escolher os movimentos que lhe pareçam mais apropriados para vencer seu contrário. A lealdade prescrita [...] é a lealdade do jogo: o jogo, ou seja, o torneio de habilidade é lícito, mas não se permitem artimanhas. O processo não é somente Ciência do Direito Processual, não é somente técnica de sua aplicação prática, mas também leal observância das regras do jogo, ou seja, fidelidade aos cânones não escritos de correção profissional que indicam o limite entre a elegante e louvável maestria do esgrimista perfeito e as torpes trapaças do vigarista. Destes cânones de lealdade e probidade, únicos que restam para regular a conduta dos competidores dentro do campo discricionário, em que não penetram as leis, o juiz é o fiscal: este, mesmo quando a violação a tais cânones não seja de tal relevância que repercuta no mérito da lide [...] fiscaliza ininterruptamente, [...] a conduta das partes no debate; e contra a que tenha faltado à lealdade do contraditório pode adotar providências sancionadoras [,,,], comparáveis às medidas de rigor que o árbitro inflige aos jogadores trapaceiros.”123

Não obstante a presença de interesses colidentes no processo, as atividades desenvolvidas em

seu curso não possuem um contorno preestabelecido de maneira rígida. Sob a vigência do

princípio dispositivo, as normas processuais indicam direções que permitem um amplo espaço

no qual as partes elegem o movimento que lhes pareça mais apropriado para alcançar a

vitória. Esses movimentos precisam ser marcados pela lealdade e boa-fé.124, 125

O dever de lealdade e boa-fé no marco da relação processual busca atender a um interesse que

não se restringe ao interesse das partes, mas o interesse público do Estado na prestação da

tutela jurisdicional. Para a proteção desses interesses conjuga-se a boa-fé objetiva como

princípio vetor de toda a atividade jurisdicional.

123 CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual civil segundo o novo código: estudos de direito civil. Traduzido por Douglas Dias Ferreira. 2. ed. v. 3. Campinas/SP: Bookseller. 2003, pp. 233-234. 124 SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 862. 125 No original: “[...] las actividades desplegadas por los sujetos participantes en el proceso no están todas preestablecidas ni deben ser realizadas de un solo modo. En realidad, las normas del derecho procesal marcan únicamente ciertas directivas muy elásticas, que dejan amplio margen a la iniciativa y a la elección individual. Las partes mantienen un espacio de actuación enmarcado en la lealtad, probidad e buena fe que, […] el juez debe vigilar. Este deber tan vago e indeterminado, no tendría sentido alguno en un proceso en que la actividad de las partes y de sus defensores estuviese por ley rígidamente vinculada en todas sus manifestaciones. Sin embargo, adquieren especial significado en u proceso de tipo dispositivo, en el cual se deja a las partes un amplio campo discrecional, dentro del cual cada una de ellas es libre para elegir los movimientos que le parezcan más apropiados para vencer a su contrario.”

159

O fato de a lide representar uma disputa de interesses contrapostos não autoriza a que o

processo venha a ser propício ao desenvolvimento de artimanhas e astúcias. Na relação

jurídica processual a presença do Estado, representado na pessoa do juiz, é traço característico

diferenciador das relações de direito privado. Essa conotação publicista não abdica da

vigência da boa-fé objetiva a impor limites na atuação das partes e de todos os que participam

do processo orientando-os a procederem de maneira leal e proba.

Entretanto, a grande questão cinge-se à “conciliação entre a boa fé e a necessidade de certa

elasticidade de movimento das partes.”126

Nesse passo, a lealdade, como conseqüência imediata da boa-fé objetiva, apresenta-se como

limite das atuações no curso do processo conotando as normas processuais com vistas ao

alcance do fair play. Nesse sentido são as observações de Helena Najjar Abdo:

“Diz-se que a lealdade processual é um dos limites legais que constituem exceção à plena liberdade de atuação das partes. Considerando que, em tema de lealdade processual, é ainda mais recorrente a comparação do processo a um jogo, os referidos limites podem ser tidos como regras do jogo. Pois, se é certo que o processo é um jogo entre as partes, então é igualmente certo que, como em qualquer jogo, a atuação dos contendores deve estar disciplinada por regras de lealdade e honestidade, as quais constituem o fair play e legitimam o resultado.”127

A perspectiva pública do processo possui relação direta com a exigência da lealdade e da boa-

fé de todos aqueles que dele participam. O processo deixa de ser coisa das partes onde juiz

possuía uma função passiva de mero árbitro e passa a ser construído numa relação dialética,

dialogal, orientado pela lealdade e boa-fé cujo resultado transcende a solução do litígio do

caso concreto. O Estado e a sociedade têm interesse na solução dos conflitos e que, por fim, o

processo alcance o seu escopo de pacificação social.128

O processo se despe das vestes de um jogo ou de um duelo, onde havia lugar para toda a

espécie de estratagemas, e se reveste de um procedimento em contraditório segundo o qual 126 ALBANESE, Il dolo processuale, p. 2. apud LUSO SOARES. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 156. 127 ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 128. Destaques no original. 128 Alípio Silveira reproduz trecho de Eduardo Couture na exposição de motivos do Projeto do Código de Processo Civil uruguaio ao referir-se ao princípio da boa-fé: “No se puede olvidar que, en último término, el proceso es una lucha dialéctica. Como toda lucha, tiene algunas reglas que castigan la infracción, pero el luchador despliega todos los juegos de la habilidad para vencer sin violar las reglas.”COUTURE, J. Exposición de Motivos del Proyecto del Código de procedimiento civil. Montevideo, 1945, pág. 105 e ss. apud SILVEIRA, ALÍPIO. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 267.

160

existem regras para a atuação das partes.129 Sob a égide de tais regras, a atuação dos litigantes

deve estar em consonância com a boa-fé objetiva não havendo espaço para “surpreender o

adversário com lances que este não espera, como se aqui se tratasse de um jogo de xadrez

onde há pedras temporariamente escamoteadas”130. À luz da visão cooperativa do processo as

partes se coadjuvam numa relação dialética na qual o juiz participa ativamente na direção do

processo na busca permanente do equilíbrio das garantias constitucionais do devido processo

legal, do contraditório, da ampla defesa e da duração razoável do processo.

A vigência da boa-fé objetiva nos meandros do Direito Processual Civil requer o predomínio

do ‘jogo limpo’ (fair play) que não condena a habilidade, mas repudia as manobras desleais,

as trapaças e todo e qualquer artifício que impeça à contra-parte o exercício das suas

faculdades processuais ou que dificulte, ou torne mais gravosa, ou onerosa o exercício dessas

faculdades.131

A influência da boa-fé no âmbito processual tem “remissão delimitativa”, conforme

entendimento de Fernando Luso Soares, para quem “a remissão da boa fé, para a estrutura

geral do sistema processual, seria de ordem limitativa: às partes compete, sem dúvida, o

impulso oficial, mas elas não devem fazer pedidos ilegais, articular factos contrários à

verdade, requerer diligências meramente dilatórias.”132

Mas não é só. Segundo o Autor, no processo, a boa-fé resulta, também, impositiva a todo ele.

Nesse sentido, traz a concepção de Zani para quem “o problema da boa fé processual se

reconduz às questões fundamentais do conceito do processo e do seu fim.”133

Consoante ensina Alípio Silveira “[...] a noção fundamental da boa-fé, que já os romanos

relacionava com a lealdade, honestidade e justiça da própria conduta, há de atuar, ativamente,

129 Nesse sentido GARCEZ NETTO, Martinho. Despacho Saneador, Revista Forense, vol. CL, pág. 444. apud SILVEIRA, ALÍPIO. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 265. “[...] Los esgrimistas de las ordalías no pueden más ya vencer al adversario con las artimañas tan al estilo de la concepción duelística del proceso, exhibiendo la nulidad, que avaramente guardaran para la sentencia final, la fase de los articulados, con el hecho del despacho saneador, es la instancia única para la alegación de nulidades. El proceso moderno, en su concepción publicista, en que el estado interviene a través de los órganos jurisdiccional, exige absoluta lealtad de los litigantes ”. 130 LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 173. 131 PALACIO, Lino Enrique. Los deberes de lealtad, probidad e buena fe en el proceso civil. in Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 815. 132 LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, pp. 155-156. 133 ZANI, La mala fede nel proceso civile. pp. 8 e 13. apud LUSO SOARES, Fernando. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Almedina. 1987, p. 156.

161

no quadro das relações jurídicas processuais, modelando a estrutura e a mecânica das mesmas,

inspirando e animando o seu funcionamento. Nisto reside uma das grandes condições

indispensáveis para que a instrução possa se realizar de maneira plena a nobre missão que lhe

incumbe.”134, 135

A boa-fé objetiva como pauta de conduta a guiar os litigantes impõe que no curso do

processo, de forma cooperativa, todos os fatos e provas relevantes ao deslinde da questão

sejam apresentados integralmente para a justa solução do litígio. O processo não pode mais

ser visto como uma arena de gladiadores. Existem regras preestabelecidas para o exercício da

defesa, sendo essas limitadas pela lealdade e boa-fé, inclusive para assegurar a paridade de

armas. Desde a petição inaugural do feito, o objeto da lide e a pretensão que se busca

precisam ser traçadas com inteira precisão, sem nada ocultar, para que a contraparte tenha

condições plenas de desenvolver a sua defesa.136

De igual modo, a contestação deve espelhar fidedignamente as razões de defesa, sendo a

oportunidade para argüir questões relativas à legitimidade, competência do juízo,

litispendência ou até mesmo a coisa julgada do objeto posto em litígio em outro processo já

findo.

Questão sobremodo relevante respeita-se às nulidades processuais. Cabe aos litigantes em

homenagem à boa-fé objetiva argüi-las no momento oportuno, sob pena de preclusão.137

134 SILVEIRA, ALÍPIO. La buena fe en el proceso civil. Buenos Aires: Ediar. 1947, p. 271. 135 No Original: “La buena fe, esa noción fundamental que ya los romanos concebía como un sentimiento e íntimo convencimiento de lealtad, honestidad y justicia de la propia conducta, ha de actuar activamente en el cuadro de las relaciones jurídicas procesales, moldeando la estructura y la mecánica de las mismas, inspirando y animando su funcionamiento. En ella reside una de las grandes condiciones indispensables para que la instrucción pueda realizar de pleno la misión noble que le incumbe.” 136 Tal exigência também pode ser encontrada na legislação espanhola, conforme se pode inferir no texto de Joan Picó e I Junoy: "En cualquier caso, constituye una manifestación de la buena fe procesal que en la formulación fáctica del escrito (de la demanda -o la contestación en su caso-) se indique con precisión y claridad los hechos que configuran la causa petendi y las pretensiones que se formulan (arts. 399.1 y 405 LEC), pues sólo así se evitan situaciones confusas a la parte contraria, pudiendo ésta ejercer como es debido su derecho de defensa, a la vez que se garantiza al juez el pleno conocimiento de lo que debe resolver. La necesidad de definir desde un inicio el objeto del proceso comporta la imposibilidad de modificarlo con posterioridad, esto es, la prohibición de la mutatio libelli (art. 412.1 LEC). Junto a esta preclusión de alegación fáctica, el art. 286 LEC prevé expresamente la mala fe procesal como motivo para imponer una multa de hasta 600 euros para cuando se pretenda introducir hechos nuevos o de nueva noticia sin causa justificada". PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 141. 137 Conforme ressaltado por Aldemiro Rezende Dantas Júnior, o art. 243 do CPC “é norma que com muita clareza trata da aplicação concreta do princípio da boa-fé”. Nesse sentido, não pode a parte que deu causa à nulidade pretender, posteriormente, argüir tal nulidade, sob pena de manifesta violação à boa-fé objetiva.

162

Sob esse prisma, a boa-fé objetiva, manifestada na lealdade processual, impede o uso de

manobras e artifícios que venham a perturbar o regular desenvolvimento das garantias

processuais estampadas no texto constitucional, fazendo do processo instrumento legitimador

de solução de controvérsias materializada na entrega da prestação jurisdicional.138

Nesses termos, o dever de lealdade e boa-fé no âmbito processual impõe limites à conduta dos

participantes do processo como norma que estabelece o equilíbrio das outras garantias

constitucionais processuais.

O Direito Processual Civil como “atividade consistente em fazer justiça e assegurar a

integridade e vitalidade da ordem jurídica”139 não compactua com condutas desleais nem com

maquinações que levem a efeito, de maneira abusiva e distorcida, os mecanismos processuais

criados para a entrega da prestação jurisdicional. Os escopos do processo somente se

alcançam mediante condutas afinadas com as notas da lealdade e da boa-fé objetiva,

consistente no respeito mútuo das partes e na integridade da participação dos demais

intervenientes no processo.

Liebman já ressaltava que na estrutura contraditória, que é própria do Processo Civil, a

lealdade atua como um freio140 às habilidades e às perspicácias dos contendores, ou seja, a

participação no processo precisa estar acorde com a probidade. “Ela significa em substância

que, embora no processo se trave uma luta em que cada um se vale livremente das armas

disponíveis, essa liberdade encontra limite no dever de respeitar as regras do jogo – e estas

exigem que os adversários respeitem reciprocamente em sua qualidade de contraditores em

juízo, segundo o princípio da igualdade de suas respectivas posições.”141

DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá. 2007, p. 140. 138 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual civil. 3. ed. vol. I. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 167. 139 Ibidem, p. 58. 140 Alcides de Mendonça Lima comunga da idéia que o dever de probidade processual atua como um freio na conduta de todos os atuam no desenvolvimento do processo. LIMA, Alcides Mendonça. O princípio da probidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. ano 4. n. 16. São Paulo: Revista dos Tribunais. out. – dez. 1979, p. 19. 141 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual civil. 3. ed. vol. I. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 166. Destaques no original.

163

Picó assinala que “uma vez superada a visão bélica ou agonística do processo, este se

configura como um modo mais civilizado de resolução de conflitos onde a intervenção das

partes deve estar presidida pela boa-fé.”142

A conduta das partes no processo deve ser orientada pela lealdade e pela boa-fé objetiva. “[...]

o processo procura a satisfação do interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei

ao caso concreto; não basta a composição, qualquer que seja, contando que ponha termo à

lide, como sucedia nos tempos primitivos, na fase embrionária do processo; não se quer a paz

a qualquer custo, mas sim dar razão a quem efetivamente a tem, segundo os ideais de justiça

reconhecidos pela norma.”143

O Código de Processo Civil veicula no art. 14, inciso II, o dever de as partes e de todos

aqueles que de qualquer forma participem do processo procedam com lealdade e boa-fé.

Trata-se de cláusula geral que se aplica de forma ampla e irrestrita em todo o universo

processual e não apenas no processo de cognição144.

Segundo Arruda Alvim, a “lealdade e a boa-fé são princípios informativos do processo, de

caráter ético, abrangentes de toda atividade das partes, desde o início, durante todo o

procedimento, inclusive, no desdobramento recursal, como ainda, no processo executório145”.

Brunela Vieira de Vincenzi ao analisar os deveres processuais elencados no art. 14 do Código

de Processo Civil, conclui:

“[...] a melhor interpretação e aplicação para o art. 14, com efeito, está na aceitação efetiva de que ele contempla um feixe de deveres decorrentes da cláusula geral da boa-fé (objetiva) que arrimados nas garantias constitucionais do contraditório efetivo e do devido processo legal em seus postulados mínimos, [...], poderão dar ensejo à efetiva aplicação – prática, e não só teórica – dos postulados éticos do Processo Civil contemporâneo, que busca resultados e não somente o cumprimento de fórmulas estruturais preconcebidas em detrimento do direito material objeto do processo e dos escopos da jurisdição.”146

142 PICÓ I JUNOY, Joan. Aproximación al principio de la buena fe procesal en la nueva ley de enjuiciamiento civil. In Revista Jurídica de Catalunia. ANY c, n. 4. Barcelona: 2001, p. 953. 143 SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de Direito Processual: uma teoria pragmática. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 115. 144 OLIVEIRA, Ana Lúcia Lucker Meirelles de. Litigância de má-fé. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 55. 145 ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, v.2. p. 405. 146 VINCENZI, Brunela Vieira de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas. 2003, p. 98.

164

“De fato, a probidade processual se insere no quadro das garantias constitucionais, como

consectário do aludido processo legal e co-irmã do processo sem dilações indevidas, da

isonomia processual, entre outras diretrizes. A inércia judicial diante da má conduta de um

dos litigantes pode ser vergastada pela parte adversa, que possui direito à tutela justa e

tempestiva e, a fortiori, ao controle de probidade.”147

147 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 77.

165

Capítulo VI - A Boa-Fé Objetiva no Processo Civil Brasileiro

Sumário: 6.1. A Boa-Fé Objetiva como Diretiva Ordenadora do Comportamento Processual

– 6.2. A Boa-Fé Objetiva e o Abuso do Direito nos Domínios do Processo Civil –– 6.3. A

aplicação da Boa-Fé Objetiva pelo Juiz: Virtudes e Cautelas - 6.4. Referências sobre a Boa-Fé

Objetiva na Experiência Legislativa de Outros Povos

6.1. A Boa-Fé Objetiva como Diretiva Ordenadora do Comportamento Processual

A sociedade contemporânea tem assistido a uma contínua reformulação no âmbito processual

fundamentada, sobretudo, na busca da efetividade da prestação da tutela jurisdicional. Essa

tão almejada efetividade tem sido perseguida com a imposição de normas que estabelecem

uma conduta irrepreensível de todos os sujeitos que participam do processo.

Dentro deste contexto, a atenção se volta para a conduta dos atores processuais, que deve ser

pautada na lealdade, na improbidade e na cooperação não somente com a contraparte, mas

com o próprio Órgão jurisdicional, para que os provimentos emanados da relação jurídica

processual possam representar o justo e o équo.

Nesse diapasão Humberto Theodoro Júnior observa que “[...] A recuperação dos fundamentos

éticos no campo dominado pelo direito não se deu em apenas um ou outro segmento do

ordenamento jurídico. Todo o direito contemporâneo foi permeado pelos valores morais, a

começar, obviamente, da macroestrutura constitucional.”1

Essa diretriz ética se projeta desde o texto constitucional até o ordenamento

infraconstitucional, pondo em evidência que “[...] todo o ordenamento jurídico se acha

comprometido, a um só tempo, com uma dupla perspectiva (a) em primeiro lugar, a própria

ordem jurídica revela seus propósitos, suas metas, seu sistema; (b) em segundo lugar, a ordem

jurídica tem de relacionar-se com a perspectiva ética inafastável do comportamento humano

1 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé – Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, p. 639.

166

em sociedade.”2 Sob essa diretriz, a “[...] lealdade processual tem merecido cada vez mais

estar em foco, pois a sua eficácia tende a consolidar o processo como instrumento útil e

idôneo para seu objetivo de pacificação e educação.”3

Os valores éticos permeiam todos os ordenamentos jurídicos modernos e, especial atenção,

tem sido dedicada às normas processuais com vistas à realização da justiça que retrate um

processo efetivo. Falar de processo justo é falar de processo ético, no qual os sujeitos

processuais vinculam-se pelos princípios da lealdade e da boa-fé. “Não podem, em tal quadra

histórica, as leis processuais ser objeto de indiferença ética, nem muito menos hermenêutica e

aplicação que não correspondam aos propósitos ideológicos de acesso à justiça por meios e

com resultados efetivamente justos.”4

De acordo com a Ada Pellegrini “[...] Mais do que nunca, o processo deve ser informado por

princípios éticos. A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz, rege-se

por normas jurídicas e por normas de conduta. De há muito, o processo deixou de ser visto

como instrumento meramente técnico, para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a

pacificar com justiça.”5

Essa lição vem ao encontro do sentimento dominante na doutrina processualista, conformando

com os contornos de justiça substancial que deve imperar na prestação jurisdicional. “Esse

destaque ideológico de ‘justiça’ prestigiada como um dos valores supremos da nação visa, no

campo da prestação jurisdicional, a consagrar, de maneira estável e bem determinada, os

fundamentos éticos do processo. Não se permite mais, portanto, que os procedimentos

judiciais sejam tratados como simples instrumentos de justiça formal, mas, sim, como uma

garantia muito mais ampla de justiça substancial.”6

2 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé – Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 643. 3 IOCOHAMA, Celso Hiroshi. Litigância de má-fé e lealdade processual. Curitiba: Juruá. 2006, p. 17. 4 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé – Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 639. 5 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ética, Abuso do Processo e Resistência às Ordens Judiciárias: o Contempt of Court. Revista de Processo. Ano 26. N. 102. abr.-jun./2002, pp. 219-227. 6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé – Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 640.

167

A preocupação em coibir o comportamento desleal das partes no curso do processo por meio

do uso de manobras ardilosas, de longa data inquieta os legisladores, tendo por razão precípua

o fato de ser o processo um instrumento essencial no desempenho das funções estatais. Nesse

cenário, o juiz já não pode assistir, inerte, o “digladiar” das partes, estando munido de

mecanismos legais para combater as multiformes manifestações de improbidade.7

O Direito Processual é o caminho posto quando não há o acatamento da vontade da lei

espontaneamente pelos seus destinatários. Vedada a autotutela, há a necessidade da atuação

estatal por meio da prestação jurisdicional.

Bedaque ressalta que a “concepção axiológica de processo, como instrumento de garantia de

direitos, a visão puramente técnica não pode mais prevalecer, pois a ela se sobrepõem valores

éticos de liberdade e de justiça. Os princípios gerais de Direito Processual sofrem nítida

influência do “clima” institucional e político do país.”8

Nesse passo, Arruda Alvim destaca:

“Como decorrência da colocação definitiva do processo no campo do Direito Público (...) construiu-se toda uma teoria a respeito do problema da lealdade processual, decorrente dessa posição assumida, de que resultou a concepção do processo como um campo dialético, mas onde se deve observar princípios éticos. [...] O comportamento leal e de boa-fé deve conformar a conduta dos litigantes. [...] A alta finalidade pública do processo civil, que consiste na verificação de fatos ocorridos, como pressupostos da aplicação adequada da lei ao caso concreto (‘justa composição da lide’, no dizer expressivo, mas menos preciso, de Carnelutti), não pode, no direito positivo brasileiro, prescindir da colaboração ética das partes. Caso contrário, o juiz teria que ‘lutar’, em realidade, ‘contra’ os próprios litigantes que, por sua vez, lutariam violentamente, entre si, ao arrepio da mais elementar ética. [...] Para se conseguir, pois, numa medida satisfatória, no campo do processo, um comportamento compatível com as finalidades de justiça e do direito, fins dinamizadores da atividade jurisdicional, mas cuja atividade depende da conduta dos litigantes, necessário é o estabelecimento de série de regras entrosadas, mediante as quais se traçam limites socialmente aceitáveis de comportamento, que as partes devem observar. Tais regras, em última análise, sintetizam-se no chamado princípio da lealdade processual.”9

A maneira de ver o processo, de há muito, vem sendo modificada. Os olhares são postos sob

uma nova ótica segundo a qual o processo precisa responder de maneira efetiva aos anseios 7 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidades das partes por dano processual no direito brasileiro. In Temas de Direito Processual: primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 1988, p. 16. 8 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: influência do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 19. 9 ALVIM, Arruda. Deveres das Partes e dos Procuradores no Direito Processual Civil Brasileiro: A lealdade no Processo. Revista de Processo. Ano 18. N. 69. jan. – mar./93. Ed. Revista dos Tribunais. pp. 7 e 10.

168

daqueles que buscam a realização da justiça. O processo deixa de ser um instrumento em si

mesmo para ser instrumento legitimador da atuação estatal apto à realização da justiça.

“Fazendo eco às idéias plasmadas no campo do direito material, o Direito Processual Civil tratou de amoldar-se aos ditames éticos. O processo, de instrumento de realização da vontade concreta da lei, passou a ser visto como instrumento destinado a proporcionar a ‘justa composição dos litígios’, tendo os Códigos de maneira geral reforçado os poderes do juiz e sancionado as condutas processuais abusivas e antiéticas.”10

Na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, apresentada em 1972, pelo então

Ministro da justiça Alfredo Buzaid, sobreleva o interesse público a que deve servir o processo

de dar a razão a quem, efetivamente, tenha razão, conforme se depreende da leitura daquele

texto que, pela sua precisão, merece ser transcrito:

“O processo civil é um instrumento que o Estado põe à disposição dos litigantes, a fim da administração da justiça. Não se destina simples definição de direitos na luta privada entre os contendores. Atua como já observara BETTI11, não no interesse de uma ou de outra parte, mas por meio do interesse de ambos. O interesse das partes não é senão um meio, que serve para conseguir a finalidade do processo, na medida em que dá lugar àquele impulso destinado a satisfazer o interesse público da atuação da lei na composição dos conflitos. A aspiração de cada uma das partes é a de ter razão: a finalidade do processo é a de dar razão a quem efetivamente a tem. Ora, dar razão a quem a tem é, na realidade, não um interesse privado das partes, mas um interesse público de toda a sociedade.”

Esse interesse público não pode ser obstaculizado por condutas discrepantes com a ética e

com a lealdade processuais. Também na mesma Exposição de Motivos do diploma processual

de 1973, Buzaid acentua que:

“Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando tanto ao dever, da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos, porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça. Tendo em conta estas razões ético-jurídicas, definiu o projeto como dever das partes: a) expor os fatos em juízo conforme a verdade; b) proceder com lealdade e boa-fé; c) não formular pretensões nem, nem alegar defesa, cientes que são destituídas de fundamentos; d)

10 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé – Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, p. 643. 11 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva. Org. Vera Maria Jacob Fradera. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva ao escrever sobre “O Princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português” (pp. 33-58) destaca que “Seguramente, o primeiro jurista a mencionar, entre nós, a aplicação objetiva do princípio da boa-fé foi Emílio Betti. Efetivamente no seu magnífico curso proferido na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1958, salientava Betti a existência dos deveres de cooperação do devedor, resultantes da aplicação do princípio da boa-fé.”

169

não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (art. 17)”

Quadra pôr em relevo, no entanto, que essa concepção ética à qual se refere Buzaid não estava

à época – ou seja, em 1973 - afinada à boa-fé objetiva. O momento histórico-cultural e

ideológico era distinto do momento contemporâneo, vez que impregnado pela “filosofia

liberal e individualista” na qual o processo era visto como uma arena de gladiadores onde as

partes, na luta pelos seus direitos, utilizavam de toda a habilidade e da astúcia. Nesse cenário,

o processo apresentava-se refratário a uma normatização que impusesse comportamento de

probidade para os contendores, reforçado pela idéia de que a natureza dialética do processo,

guiado pelo princípio dispositivo que assegura às partes o agir livremente no desenvolvimento

processual, aliado ao fato de as partes sustentarem as suas próprias razões em defesa dos seus

interesses, favorecia essa luta irrefreada traduzindo essa concepção liberal e individualista.12

A ideologia do Estado liberal, que por longo tempo impregnou a ciência jurídica, canalizou

para uma visão individualista dando ao processo o caráter de instrumento privado. Marcelo

Abelha destaca:

“[...] o direito de liberdade, quase irrestritamente protegido pelo Estado liberal, também lançou seus tentáculos para o exercício dos direitos processuais. [...] num regime liberal, o processo era visto como uma arena de guerra, onde os direitos travavam uma batalha quase duelística. Nessa ‘guerra’ a interferência do Estado-juiz deveria ser mínima ou quase nenhuma, justamente para se manter na posição de frio espectador e assim não cometer nenhuma restrição à liberdade individual das pessoas. Portanto, pode-se dizer que na filosofia liberal era mínima a proteção legal contra os atos de má-fé e abusos praticados no exercício dos direitos processuais. [...] Enfim, justamente por causa desse caráter privado que sempre foi dado ao processo, não se tinha noção da exata separação e autonomia do ilícito civil em relação ao ilícito processual.”13

Conforme ressaltado por Francisco Antônio de Barros e Silva Neto, a tendência liberal

“esmaeceu por décadas o controle da improbidade processual e enalteceu a ampla liberdade

das partes.”14

12 BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo. ano 12, n. 47, São Paulo: Revista do Tribunais. jul. – set. 1987, p. 95. 13 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Processual Civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008, p. 255. 14 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 18.

170

Buzaid destaca que o art. 14, II do CPC “regula a atividade honesta da partes”. “A lealdade,

como o étimo da palavra indica a toda evidência, consiste em pautar os atos em

correspondência com a lei. [...] A boa fé é a consciência de que a parte está usando o processo

sem intenção de descumprir a lei. O elemento subjetivo entra em conta, sobretudo para

distinguir do erro a boa fé, porque como diz Pontes de Miranda, ‘se pode errar sem má fé’”.15

A afirmação de Buzaid é no sentido que o Código de Processo Civil “adota uma feição

nitidamente subjetivista, fundada na consciência de retidão, no desconhecimento de possíveis

vícios de atividade”.16

Resta inequívoco que esta disposição legislativa nasceu predestinada a dar suporte às atuações

fundadas na boa-fé subjetiva. Nasceu com a conotação da boa-fé crença, o agir segundo a lei,

segundo o direito. Naquele momento, os elaboradores do Código de Processo Civil não

anteviam o atuar segundo a boa-fé objetiva, concepção essa que projetou suas reminiscências

nas aplicações jurisprudenciais – a boa-fé aliada ao dolo, isto é boa-fé que se contrapõe à má-

fé. Tal concepção subjetivista é expressamente apontada por Buzaid ao afirmar:

“Entendeu, outrossim, o legislador brasileiro que não bastava estatuir deveres sem estabelecer correspondentemente as sanções pela sua inobservância, porque aquelas normas acabariam por ter caráter programático ou atuar como simples recomendação. Para dar real eficácia aos princípios enunciados no art.14, disciplinou o Código de Processo Civil a responsabilidade das partes pelo dano causado (art. 16 usque 18).17

Nesse sentido, a própria “expressão ‘litigância de má-fé’ já denotaria matriz subjetivista,

exigindo ‘malícia’, ‘dolo’ ou outros elementos indicadores da atuação predestinada à violação

da regra de conduta.”18

15 BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo. ano 12, n. 47, São Paulo: Revista do Tribunais. jul. – set. 1987, p. 96. 16 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 81. 17 BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo. ano 12, n. 47, São Paulo: Revista do Tribunais. jul. – set. 1987, p. 95. 18 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 14.

171

Dai advir a compreensão de que a positividade do dever de lealdade e boa-fé no inciso II, do

art. 14 do CPC, inserida na redação original do Código de 1973, ter sido concebida com cariz

eminentemente subjetivista. Esse cariz subjetivista ensejou uma aplicação acanhada do

dispositivo tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência. Francisco Antônio de Barros

e Silva Neto ressalta: “O Código de Processo Civil (CPC) estabelece o dever de boa-fé, mas

utiliza elementos de controle insuficientes e incoerentes entre si. A doutrina contribui para a

inefetividade do processo com teses herdadas das Ordenações, do positivismo, do liberalismo,

como o recurso à boa-fé subjetiva para a aferição do ilícito processual, a taxatividade do

elenco de condutas ímprobas, a negativa de poderes sancionatórios à jurisdição.”19

No entanto, não se permite mais interpretar os dispositivos do Código de Processo Civil como

se fazia há mais de vinte anos. A sociedade mudou, a ordem jurídica é nova. Tais dispositivos,

para que sejam eficazes, precisam ser interpretados à luz da nova Ordem constitucional,

impregnada pela ideologia do Estado Democrático de Direito. Há que se fazer uma releitura

desses dispositivos com os olhos postos no presente: na nova Ordem constitucional e na

realidade social que reclama por efetividade na prestação da tutela jurisdicional.

Marinoni chama a atenção para a necessidade de se ter uma visão crítica “às novidades

legislativas no campo do Processo Civil, percebendo que todas elas estão ligadas às

modificações da sociedade e do Estado, as quais impuseram o esgotamento do Processo Civil

clássico”. Há que se ter a percepção de que os influxos das “transformações sociais e do

estado incidiram sobre o ‘novo Processo Civil’”. Segundo o Autor, somente com essa visão

aclarada é que se pode dar efetividade às as mudanças legislativas para que estas tenham

efetiva repercussão sobre a realidade social. Se não se alcançar a perfeita correlação do texto

legal com os valores que o fundamentaram inevitavelmente cairá no equívoco da “aplicação

fria e descompassada, como ainda conduz a uma leitura ‘redutiva do novo’, pois tendente a

ver na nova lei o que existia na antiga.”20

19 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 8. 20 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de antecipada, julgamento antecipado, e execução imediata da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1998, p. 99.

172

Mitidiero trata da evolução do direito processual civil destacando três fases: praxismo,

processualismo e formalismo-valorativo. “Com efeito, desde nossas mais fundas raízes

experimentávamos o praxismo como modelo processual. Esse quadro só veio alterar-se com o

Código de Processo Civil de 1973, diploma normativo que inaugurou entre nós,

inequivocamente, o processualismo, impondo um método científico ao Processo Civil à força

de construções alimentadas pela lógica teórico-positiva, evadindo-o da realidade.”21

No modelo constitucional do Processo Civil o deslocamento da visão das normas processuais

a partir do texto Constitucional traz como decorrência lógica e inarredável a adequação dessas

normas ao panorama do Estado Democrático de Direito. Sob essa perspectiva, em paráfrase a

Teresa Negreiros22, o eixo legislativo desloca-se do campo processual para o campo

constitucional, segundo o qual a visão do jurista é ampliada para o sistema, aí compreendido

todas as irrupções axiológicas que dão um novo matiz às ordenações técnico-processuais.

Essa mudança de perspectiva que tem por eixo o texto constitucional descortina a fase

cunhada de “formalismo-valorativo” que dá uma nova diretriz as normas processuais.

Mitidiero destaca:

“O formalismo-valorativo no Brasil desembarca com a Constituição de 1988. É nela que devemos buscar as bases de um processo cooperativo, com preocupações éticas e sociais. Superado aquele estágio anterior de exacerbação da técnica, de vida breve entre nós, recobra-se a consciência de que o processo está aí para a concretização de valores, não sendo estranho à função do juiz a consecução do justo, tanto que passa a vislumbrar, no processo, o escopo de realizar a justiça do caso concreto, como bem preleciona Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, convocando-se uma racionalidade prática para condução do debate judiciário. Mais: a tomada de consciência de que a força normativa da Constituição deve alcançar todo o direito processual civil, não sendo esse outra coisa que não o próprio direito constitucional aplicado, fez acentuar poderes do juiz no processo, armando-o de técnicas capazes de proporcionar ao jurisdicionado o efetivo acesso à ordem jurídica justa, sem que, no entanto, essa incrementação de poderes redunde em arbítrio, porque esse deve agir lealmente no processo, observando e fazendo observar a garantia do contraditório, sobrando evidente que, nesse panorama, o próprio conceito de jurisdição transforma sobremaneira [...]”23

21 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, p. 38. 22 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1997, p. 91. 23 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006, pp. 38-39.

173

Galeno Lacerda destaca que: “A grande inovação, a marca trazida pela nova Constituição,

consiste na notável abertura para o social. [...] Na verdade, todos nós, em nosso sistema

jurídico nas inúmeras faculdades nesse país, recebemos uma visão eminentemente

individualista do direito.” Entretanto, “[...] essa própria revolução, que agora se espraia no

nosso Direito, por imposição da Constituição [...].”importa abandonar a visão individualista

para se ter a visão do social, do coletivo. “Dessa análise resulta que, efetivamente, o direito à

jurisdição, hoje consagrado pela Constituição atual, está totalmente aberto para o social, para

o coletivo, através da legitimação dos entes coletivos. Essa é a grande revolução. [...] Isso

obriga a que se reescreva, que se repensem todas as categorias fundamentais do Direito

Processual. Tudo deve ser reescrito.”24

Sob o esteio da Ordem constitucional a atuação das partes, dos procuradores e do juiz se

conjuga pela dialeticidade do processo que deve ter como moldura um prevalente

comportamento ético. Theodoro Júnior assevera que “[...] No âmbito do direito brasileiro,

essa esfera ética e política do Processo Civil já se encontra plenamente consagrada pelo

direito positivo, não só quanto aos deveres de lealdade e correção das partes, como também

em relação aos poderes de comando e as responsabilidades institucionais do juiz, para

reprimir a litigância de má-fé e assegurar a igualdade, a eqüidade e a economia processual, em

busca da justa prestação jurisdicional.”25

A boa-fé objetiva, surge assim como um standard de comportamento, como um modelo de

conduta a ser seguido pelas partes, procuradores e juizes no processo. Esse modelo vai além

do texto da norma, pois como bem observado por Rizzato Nunes:

“Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório lingüístico do sistema normativo escrito. Por vezes faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições das normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução do problema.”26

24 LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense. 2008, pp. 245-254 passim. 25 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-Fé e Processo: princípios éticos na repressão de litigância de má-fé – Papel do Juiz in Estudos de Direito Processual civil. MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006, p. 642. 26 NUNES, Rizatto. A Boa-Fé Objetiva Como Paradigma da Conduta na Sociedade Contemporânea. Revista Jurídica. Ano 52. N. 357. Porto Alegre: Editora Notadez. Jan. 2006, p. 10.

174

A boa-fé objetiva expressa um comportamento de fidelidade e situa-se no mesmo plano da lei,

adquirindo uma função dispositiva, que independe da vontade dos agentes, mas da adequação

dessa vontade ao princípio que inspira e que fundamenta a relação jurídica.27 A aplicação da

boa-fé objetiva desborda, assim, os limites das relações obrigacionais sendo aplicável em

todas as relações jurídicas, por pressupor um comportamento fundado na coerência recíproca,

em um comportamento devido e esperado que serve para modelar os vínculos jurídicos.28

Menezes Cordeiro demonstra de forma lapidar a transposição da aplicação da boa-fé objetiva

do campo do direito civil para os domínios do Direito Processual: 29

“Do Direito público, o primeiro sector atingido pela boa-fé foi o do Processo Civil. A sua natureza instrumental perante o Direito Civil e certa tradição literária de escrita sobre a boa-fé em processo terão facilitado a transposição. A jurisprudência foi receptiva ao movimento, fazendo, desde cedo, aplicação da boa-fé no campo processual. A doutrina, [...] aceitaria a recepção da boa-fé, tal como emergia do §242 BGB, ao Processo civil. Perante tentativas de transposição pura e simples e sublinhado a necessidade de adaptar a regra da boa-fé à realidade processual, que requereria, no campo deixado aberto pela lei, uma liberdade especial dos litigantes, pronunciar-se-ia BAUMGÄRTEL30. Na doutrina processual, tomou, entretanto, proporções translativas um agrupamento de quatro tipos dos casos de aplicação da boa-fé: a proibição de consubstanciar dolosamente posições processuais, a proibição de ‘venire contra factum proprium, a proibição de abuso de poderes processuais e a ‘supressio’.”31

Pedro Albuquerque anota a resistência da jurisprudência tedesca à aplicação da boa-fé

objetiva e da lealdade nos domínios do Direito Processual, em razão da rigidez da estrutura

27 DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 45. 28 Ibidem, pp. 46-51, passim. 29 Menezes Cordeiro aponta que, antes da codificação alemã, o livro de Josef Trutter, Bona fides em Civilprozesse Ein Beitrag zur Lehre com der Urteilsgrunde, de 1892, seguido do livro de Kaonrad Scheneider, Treu und Glauben im Civilprozess, em 1903, embora defendendo teses opostas, introduziram, na literatura processualista, o hábito de referir e tratar a boa-fé. MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 375, nota de rodapé nº. 431. Destaca-se, ainda: “BENKENDORF, TREUD UND Glauben im Zivil process, JW 1933, 2870-2872 (2872) – foca o relevo da boa fé no processo, mas chama a atenção para a sua indeterminabilidade, que tem por semelhança à que reinaria no Direito Civil; WILHELM BELTZ, Treud und Glauben und die guten Sitten nach neuer Rechtsauffassung und ihre Geltung in der ZPO (1937) – defende a aplicação da boa fé no processo – ob. cit., 22 ss.; [...]” apud MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 84, nota de rodapé nº 217. 30 De acordo com Menezes Cordeiro, BAUMGÄRTEL “reconhece a aplicação da boa fé no Direito Processual Civil, mas reclama que se proceda às adaptações necessárias, dado o espírito específico desse ramo jurídico”. Da boa-fé..., p. 377. nota de rodapé 438. 31 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, pp. 375-378.

175

processual. A doutrina, por outro lado, manifestaria acolhimento à idéia de um “dever geral de

honestidade processual” de onde emanaria diversos deveres processuais.32

A boa-fé objetiva no processo tem sido vista como “um dever geral de honestidade

processual, de onde retira deveres processuais de relevo”.33 Entretanto, tal como no direito

civil, a boa-fé objetiva, como cláusula geral, não possui um conteúdo definido, cabendo à

jurisprudência papel de relevo para o delineamento desse conteúdo no campo processual, ou

seja, a boa-fé precisa ser aferida no caso concreto. Destarte, significa dizer que a boa-fé não

pode ser definida ou averiguada com uma rígida conformação, conforme apontado por

Menezes Cordeiro:

“Sendo criação do direito, a boa fé não opera como um conceito comum. [...] face ao alcance e riqueza reais da noção. A boa fé traduz um estádio juscultural, manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de certa ordem sócio-jurídica. [...] A cientificidade da boa fé, tratando-se da Ciência do Direito, corresponde à possibilidade efectiva de, com ela, resolver questões concretas. Há que partir destas para determinar a regulação em jogo. Em tal desempenho, vai propor-se com auxílio nas fontes, na doutrina e, em especial, na jurisprudência, o regime actual da boa-fé, nas suas aplicações variadas.” 34

“A exigência da boa-fé é um caminho para que, mediante uma normatividade indeterminada,

se desenvolva a flexibilidade das soluções. A referência à boa-fé pode ser feita como

princípios ou como standards. Em geral, a boa-fé é vista como uma norma em branco que

permite a introdução de novos pensamentos jurídicos na ordem jurídica posta. Por sua vez, a

boa-fé pode servir como um conteúdo básico para a aceitação e a elaboração de normas.

[...].”35,36

32 ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 69. 33 TRUTTER. Bona fides im civilprozesse. p. 155 e ss. apud MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão.Coimbra: Almedina. 2007, p. 376. nota de rodapé nº 435. 34 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 18. 35 CALDANI, Miguel Angel Ciuro. Aspectos filosóficos de la buena fe. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, pp. 14-15. 36 No original: “La exigencia de la buena fe es un camino para que, mediante una normatividad indeterminada, se desarrolle la flexibilidad de las soluciones. La referencia a la buena fe pude hacerse en los sentidos de principios o de ‘estándares’ a desarrollar. En general, la buena suela ser pensada como una ‘norma en blanco’ para la introducción de nuevos pensamientos jurídicos. A su vez, la buena fe puede servir como contenido básico para a aceptación y la elaboración de normas. […].”

176

Há que se por em relevo que o foco do presente estudo é a aplicação da boa-fé objetiva no

Processo Civil, ou seja, a boa-fé dissociada do estado das pessoas – “a boa-fé como algo

exterior ao sujeito, que se lhe impõe. É a boa fé objectiva, que a lei nunca define”37

6.2. A Boa-Fé Objetiva e o Abuso do Direito nos Domínios do Processo Civil

A grande questão que se coloca é compreender e definir o abuso do direito e a boa-fé objetiva.

Seriam duas figuras jurídicas ou institutos jurídicos distintos? Um seria decorrência ou

conseqüência do outro? Seriam duas figuras jurídicas distintas com uma zona de intercessão à

medida que ambas têm como finalidade comum limitar o exercício de direitos subjetivos?

A boa-fé processual é compreendida como retidão de ânimo, probidade, integridade e

honradez no atuar processual. É uma conduta exigida pela sociedade. No que tange ao abuso

do direito, tal se verifica quando há o exercício anormal de um direito, quer seja porque a ação

excede os limites do direito ou porque se tenta burlar uma norma para lograr um resultado

proibido pelo ordenamento ou contrário ao mesmo. O abuso do direito, em uma ou em outra

hipótese, é, manifestamente, contrário à boa-fé objetiva .38

No que tange ao abuso do direito, os seus limites com a violação da boa-fé objetiva são muito

tênues, o que somente poderia ser verificado na análise do caso concreto. A doutrina e a

jurisprudência têm formulado uma dupla concepção para o abuso do direito: o objetivo –

anormalidade no exercício do direito - e o subjetivo – atuação com o fim de prejudicar ou

desprovida de um fim legítimo. Entretanto, no que tange à diferenciação do abuso do direito

da violação à boa-fé tem-se afirmado que a boa-fé marca uma relação entre as partes na qual

se impõe uma lealdade recíproca, enquanto no abuso do direito há uma violação dos limites

formais dos direitos subjetivos, ou seja, são direitos legitimamente assegurados pelo

ordenamento os quais são atuados de forma abusiva.39

37 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 24. 38 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, pp. 91-93, passim. 39 Ibidem, pp. 93-96, passim.

177

A grande questão do abuso dos direitos processuais é saber se há a presença de algum fator

subjetivo ou uma intencionalidade de provocar o dano, entretanto, na concepção de Peyrano,

o abuso dos direitos processuais deve ser aferido objetivamente. Segundo o Autor argentino

não é necessária a presença de dolo ou culpa para a ocorrência do abuso do direito, há

necessidade, tão somente da ocorrência de dano. Esse dano não necessariamente há de ser de

natureza patrimonial, visto que o simples retardamento ou demora nos trâmites processuais ou

a demora na execução da sentença como, por exemplo, pelo uso inadequado dos meios de

impugnação, caracterizam como danos processuais.40 Nesse sentido, Menezes Cordeiro

afirma que “o abuso do direito, em suas múltiplas manifestações é um instituto puramente

objetivo”.41

A boa-fé, por expressar os valores fundamentais do sistema jurídico, propugna que o exercício

dos direitos esteja afinado com os vetores fundamentais do próprio sistema. Essa sintonia

advém do manuseio da própria boa-fé. A boa-fé atua como diapasão. Significa dizer a boa-fé,

por não possuir um conteúdo abstratamente definido, exige, frente a vagueza desse postulado,

que seja mantida a necessária atenção ao “círculo sistema/problema”, e dentro desse círculo

não se esgotam as infindáveis “possibilidades criativas do sistema nem, conseqüentemente, as

possibilidades do abuso do direito.”42

Para Diez-Picazo: “O exercício de um direito subjetivo está em oposição à boa-fé não

somente quando é usado para uma finalidade objetiva ou com uma função econômico-social

diferente daquela para a qual foi atribuída a seu titular pelo ordenamento jurídico, mas

também quando for exercitado de uma maneira ou nas circunstâncias que o fazem desleal, de

acordo com as regras que a consciência social impõe nas relações.”43, 44

40 PEYRANO, Jorge W. Abuso de los derechos procesales. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 73. 41 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 77. 42 Ibidem, p. 76. 43 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 19-20. Em igual sentido: La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch. 1963, p. 141. 44 No original: “El ejercicio de un derecho subjetivo es contrario a la buena fe no sólo cuando se utiliza para una finalidad objetiva o con una función económico-social distinta de aquella para la cual ha sido atribuido a su titular por el ordenamiento jurídico, sino también cuando se ejercita de una manera o en unas circunstancias que lo hacen desleal, según la reglas que la conciencia social impone al tráfico.”

178

A aplicação do abuso do direito pela jurisprudência, basicamente, tem sido caracterizada no

uso das impugnações das decisões judiciais, bem como no uso da via jurisdicional.

Concernente à interposição dos recursos, os Tribunais têm sido firmes em reprovar as

pretensões que objetivam tão somente procrastinar a entrega da prestação jurisdicional, uma

vez que completamente desprovidas de fundamento. Ressalta-se que, mesmo quando se trata

de parte pública, se esta maneja recursos em frontal oposição ao postulado da probidade

processual, tais condutas têm sido repelidas pelos Órgãos Judiciais.45

O apelo à boa-fé objetiva veda o abuso do direito ou o exercício inadmissível de posições

jurídicas, direcionando o agir dentro de bitolas estabelecidas pelo sistema. São contrárias à

boa-fé objetiva as atuações que respeitem a exterioridade apenas formal, sem observar os

valores nucleares. Não são acolhidas condutas que frustrem expectativas legitimamente

geradas.46

Na América Latina, conforme salientado por Eduardo Oteiza, vige “o respeito ao princípio da

boa-fé e lealdade processual, como pauta ética a qual devem adequar os comportamentos de

todos os intervenientes no debate processual. [...] O bem protegido é a finalidade do processo,

consistente em fazer justiça em cada caso concreto, procurando que a decisão se ajuste aos

fatos e ao direito vigente. Os obstáculos que alterem esse objetivo, mesmo que lícitos

juridicamente, alteram a noção de “devido processo”, consagrada como direito

fundamental.”47, 48

45 Helena Najjar Abdo assinala que: “Segundo a experiência prática e a doutrina especializada, o terreno mais fértil para a ocorrência de abusos no processo civil é a atuação das partes. [...] a qualidade de parte confere ao sujeito processual a titularidade de diversas situações jurídicas subjetivas (ativas e passivas), consistentes em faculdades, poderes, deveres e ônus, cujo exercício irregular pode configurar – dentro de determinadas circunstâncias – abuso do processo.” ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 21. Destaques no original. 46 MENEZES CORDEIRO, António. Novas tendências da boa-fé in Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. N. 52. set.-dez., 1998, pp. 25-26, passim. 47 OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 11. 48 No original: “La iniciativa del Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal refleja la preocupación compartida por los procesalistas con respecto al principio de buena fe y lealtad procesal, que supone una pauta ética a la cual deben adecuar su comportamiento los sujetos intervinientes en el debate procesal, entendiendo por tales al órgano jurisdiccional, las partes, y los protagonistas circunstanciales. El bien protegido mediante la instauración de un determinado parámetro ético es la finalidad del proceso, consistente en hacer justicia en cada caso concreto, procurando que la decisión se ajuste a los hechos y al derecho vigente. Los obstáculos que alteren ese objetivo, aunque lícitos jurídicamente, alteran la noción de ‘debido proceso’, consagrada como derecho humano en la región […].”

179

Menezes Cordeiro destaca que “apelar à boa fé implica sempre uma ponderação material da

solução existente, na sua globalidade. Isso não impede que a boa fé seja usada para

(re)confirmar decisões assentes em outros institutos: trata de uma sindicância salutar do

sistema sobre o problema.”49

A importância da concretização da boa-fé objetiva e do abuso do direito levada a efeito pelos

Tribunais, conforme assinalado por Menezes Cordeiro, é um dos acontecimentos jurídico-

científico mais importantes dos dois últimos séculos. A boa-fé objetiva surge “como uma via

para permitir, ao sistema, reproduzir, melhorar, corrigir e completar as suas soluções.”50

Segundo o Autor português “[...] O instituto do abuso do direito traduz a aplicação, nas

diversas situações jurídicas, do princípio da boa fé. E o princípio da boa fé equivale à

capacidade que o sistema jurídico tem de, mesmo nas decisões mais periféricas, reproduzir os

seus valores fundamentais.”51

Nesse mesmo passo Eduardo Jordão traz uma nova concepção do abuso do direito ao afirmar

que “abuso de direito é um ato ilícito porque contraria o dever de boa-fé imposto por uma

norma do sistema jurídico, o princípio da boa-fé.”52

Jordão filia-se à idéia de que não há necessidade de dispositivo expresso a determinar a

proibição de atos contrários à boa-fé. A ausência de expressa disposição legal não implica

dizer que os mesmos sejam aceitos pelo ordenamento. Tal entendimento pode ser fundamento

na concepção de Castanheiras Neves para quem “não precisa o abuso de direito, para valer, de

qualquer prescrição positiva, uma vez ser um princípio normativo. E os princípios

normativos, ‘como expressões que são da própria idéia de Direito’, como ‘postulados

axiológico-normativos do direito positivo’ não têm que ser traduzidos em leis para

vigorarem.”53

49 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 79. 50 Ibidem, p. 78. 51 Ibidem, p. 91. 52 FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p. 102. 53 CASTANHEIRAS NEVES, Antonio. Questões-de-facto – Questões-de-direito: ou o problema metodológico da juridicidade. Coimbra: Almedina, 1967. p. 529. apud FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p. 101.

180

Jordão ressalta que nos países onde não há previsão expressa ao abuso do direito costumam

fundamentá-la no princípio da boa-fé, o que vem demonstrar “a estreita relação entre

ambos”.54, 55

Pode-se mesmo dizer que existe uma relação biunívoca entre a boa-fé e o abuso do direito: a

repressão ao abuso do direito advém do dever de agir de boa-fé. Os atos abusivos são atos que

contrariam ao dever jurídico da boa-fé.

Com efeito, a boa-fé apresenta-se como relevante valor jurídico a nortear o exercício dos

direitos subjetivos num trabalho de modelação das relações intersubjetivas que, conforme

assinalado por Jordão, independe de positivação visto que se encontra entranhado em todo o

ordenamento jurídico.56

A aplicação do abuso do direito e da boa-fé objetiva nos domínios processuais é indubitável.

“Nenhuma posição jurídico-subjectiva está imune a uma sindicância, no momento do seu

exercício, feita à luz de valores fundamentais do ordenamento em causa.”57

Nesse sentido, Pedro Albuquerque ressalta que o direito de ação e de estar no processo,

embora sejam garantias constitucionalmente asseguradas, não é ilimitado: o Direito

Processual Civil encontra-se, também, subordinado ao princípio da boa-fé objetiva.58

A figura do abuso do direito tem sido transplantada, com as necessárias adequações, do

direito civil para os domínios do processo.59, 60 O império da lealdade e da probidade para o

54 FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p. 103. 55 Jordão traz à colação a observação feita por Pascal Ancel: “a maioria dos autores estão hoje convictos do liame muito estrito entre a noção de abuso de direito e aquela da boa-fé”. ANCEL, Pascal; AUBERT, Gabriel. “L’abus de droit en droit français et en droit suisse: deux approches. Dialogue”, L’abus de droit comparaisons franco-suisses. Saint-Ettiene : Université de Saint-Etienne. 2000, p. 02, apud FERREIRA JORDÃO, Eduardo. Repensando a Teoria do Abuso do Direito. Salvador: Juspodium. 2006, p. 103. 56 Ibidem, p. 105. 57 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 85. 58 ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 68. 59 PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, p. 69. 60 No original: “[...] estimo que el ejercicio abusivo del derecho tiene vigencia en el proceso como principio general legislado por el Código Civil. Claro está que, como siempre sucede cuando se debe trasplantar una noción nacida en otros ámbitos jurídicos, la teoría del abuso del derecho puede y debe ser objeto de algunos ajustes cuando se pretende otorgale vigencia en el campo del proceso civil.”

181

terreno do Direito Processual, por meio de normas expressas, vem reafirmar a posição de

atribuir aos magistrados maiores poderes para reprochar as condutas abusivas perpetradas no

debate judicial.61, 62

Oteiza observa que, na linha evolutiva do Direito Processual, a idéia absoluta dos direitos e o

processo visto como cenário de uma luta entre as partes na busca da satisfação de seus

próprios interesses foi superada pela publicização do Direito Processual, que passou a

reconhecer que sua missão excedia o mero interesse das partes. Tal fato foi determinante para

a imperatividade de standards de condutas definidas pela lealdade, probidade e pela boa-fé,

de acordo com as quais os participantes do processo devem pautar suas atuações. As

legislações atuais, ao veicular o princípio da probidade, destacam essa orientação publicista

do processo, nas quais a idéia de abuso do direito junto com o standard da boa-fé dão uma

nova orientação, o direito material e o instrumental são norteados pela idéia do bem comum.

Nesse novo cenário, o papel do juiz é realçado pelos poderes para sancionar todas as

manobras que intentem violar dito imperativo. 63, 64

Não se pode olvidar que o fim último do processo está diretamente relacionado à dignidade da

justiça, que sobreleva frente aos interesses particulares dos litigantes. Portanto, todos os

61 PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, p. 71. 62 No original: “Hoy es innegable el imperio del principio de moralidad en el proceso civil, y también que cuando el legislador se refiere a los deberes procesales de obrar con lealtad, probidad e buena fe no está haciendo otra cosa que materializar el susodicho principio de moralidad. Y ya tampoco hay duda respecto de que el tenor de las normas legales que consagran dichos deberes es revelador de que se está reconociendo a los jueces y tribunales el poder-deber de prevenir y sancionar los actos abusivos perpetrados dentro del debate judicial.” 63 OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales em America Latina. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, pp. 17-18. 64 No original: “Es posible a esta altura establecer una línea de evolución entre aquella idea absoluta de los derechos y el proceso visto como el escenario de una contienda entre dos partes que buscan la satisfación de su propio interés, en el cual el órgano judicial funciona como un espectador al que sólo se le exige equidistancia e imparcialidad. Del mismo modo que el factor ético y moral penetró con mayor intensidad en el ámbito propio del ordenamiento civil relativisando el ejercicio de los derechos y obligando a guardar coherencia con su finalidad, la publicización del derecho procesal al reconocer que su misión excedía el mero interés de las partes, determinó que se adoptaran estándares de conducta debida definidos como principios de lealtad, buena fe y probidad, que descubren verdaderas normas de justicia procesal de acuerdo con las cuales la actividad de as participantes del proceso, en su más amplio sentido, encuentran un cauce a su conducta. El papel del juez como director del proceso, con capacidad para controlar que el debate procesal no resulte entorpecido por conductas que impidan u obstaculicen lograr una resolución justa del conflicto, va acompañado de poderes para sancionar las actitudes reticentes, que tiendan a quebrantar dicho imperativo. El principio de probidad el los códigos procesales de los países de la región que hemos comparado subraya la orientación publicística del proceso en Latinoamérica, como norma propia y al mismo tiempo concordante con la idea de abuso del derecho que, junto con el estandar de buena fe también reconocido en el derecho privado, importa dar un marco social de comportamiento, en que la legislación de fondo y la instrumental resultan nítidamente emparentadas y orientadas por la idea del bien comun.”

182

sujeitos que participam do processo, de maneira direta ou indireta, submetem-se ao dever de

lealdade e boa-fé. Tal dever impõe o ajustamento das condutas a esse standard de

comportamento no desenvolvimento da dialética processual.65

As atuações caracterizadas por abuso dos direitos processuais redundam no comprometimento

de uma prestação de uma tutela jurisdicional pronta e efetiva. Nesse sentido, Peyrano destaca

que muitas vezes o dano processual não é facilmente identificável. Entretanto “o ato abusivo

redunda em uma demora e alongamento dos trâmites que, de per si, pode invocar-se como um

prejuízo processual computável.” Desse modo, “[...] o prejuízo processual que deve estar

presente para que possa qualificar o ato processual como abusivo, nem sempre e, fatalmente,

deve possuir natureza patrimonial.”66

Menezes Cordeiro ressalta que, hoje, qualquer processo é submetido a uma sindicância do

sistema feita pelo crivo do abuso do direito e a expectativa é de que não haja retrocessos, pois

trata-se de um dos mais significativos avanços jurídico-científicos.67

O abuso do direito, na concepção formulada por Menezes Cordeiro, “apresenta-se, afinal,

como uma constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema,

entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria legítima.”68

De acordo com Peyrano, o abuso do direito consiste em um princípio geral do Processo Civil

que proíbe o atuar processual abusivo que, habitualmente redunda em uma demora e um

alongamento no trâmite da lide, retardando a solução do conflito.69

O ato abusivo, consoante Helena Najjar Abdo “pressupõe a existência de dum direito

subjetivo, de titularidade do agente, que é exercido (a irregularidade está no exercício do

65 OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, pp. 9-10. 66 PEYRANO, Jorge W. Abuso de los derechos procesales. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 76. 67 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 49. 68 Ibidem, p. 49. 69 PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, pp 72 e 76, passim.

183

direito) de maneira anormal, com desvio de finalidade. [...] o ato abusivo reveste –se da

chamada aparência de legalidade.”70

Menezes Cordeiro anota que o “abuso de direito é [...] uma mera designação tradicional, para

o que se poderia dizer ‘exercício disfuncional de posições jurídicas. Por isso ele pode

reportar-se ao exercício de quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjetivos.”71

Especificamente no campo processual civil, “a noção de abuso do direito trabalha sobre

distintos aspectos nos quais os instrumentos processuais são empregados de forma

disfuncional. O processo não logra cumprir sua finalidade por múltiplas manifestações nas

quais, em substância, se obstrui, dificulta ou altera seu objetivo de organizar um debate amplo

no qual o órgão jurisdicional possa brindar com uma solução justa.”72, 73

Para Peyrano, a figura do ‘abuso dos direitos processuais’ é uma figura mais ampla que a

figura do abuso do direito no seio do Processo Civil. Para o Autor, o abuso dos direitos

processuais implica não somente um exercício disfuncional, mas, também, um exercício

inadequado de poderes e também de deveres funcionais. “Numa descrição aproximativa de

dito instituto, pode-se dizer que é um inadequado exercício objetivo de poderes, deveres

funcionais, atribuições, direitos e faculdades em que pode incorrer qualquer dos sujeitos –

principais ou eventuais – intervenientes em dado Processo Civil, e que gera conseqüências

desfavoráveis para o autor do abuso.”74, 75

70 ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 19. Destaques no original. 71 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 76. 72 OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales em America Latina. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 31. 73 No original: “La noción del abuso trabaja sobre distintos aspectos en los cuales los instrumentos procesales son empleados en su forma disfuncional. El proceso no logra cumplir su finalidad por múltiplas manifestaciones en donde, en sustancia, se obstruye, dificulta o altera su objetivo de organizar un debate amplio en el que el órgano jurisdiccional pueda brindar una solución justa.” 74 PEYRANO, Jorge W. Abuso de los derechos procesales. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, pp. 69 e 71. 75 No original: “De todos modos, considero importante examinar atentamente qué es lo que entiendo encubre el rótulo ‘abuso de derechos procesales” (ADP) porque, insisto, es una figura más amplia que la del abuso del derecho en el seno del proceso civil. Es que aquélla implica no sólo un ejercicio antifuncional sino también un inadecuado ejercicio de poderes y aún de deberes funcionales. Como fuere, por tratarse de género y especie median entre ambos varios puntos de contacto. […] Si bien – como ya lo expresara – aparece como dificultoso pergeñar una definición ideal de ADP, quizás se pueda, en cambio, proponer una descripción aproximativa de dicho instituto, diciendo que es un inadecuado ejercicio objetivo de poderes, deberes funcionales, atribuciones, derechos y facultades en que puede incurrir

184

Conforme assegura Menezes Cordeiro, “[...] Essa figura é um tanto residual, abrangendo

hipóteses de chicana e de arrastamento injustificado do processo.”76 A boa-fé objetiva

intervém para reduzir ou aniquilar o abuso do direito, por se tratar de figura estranha ao

sistema.

“Quando um dos sujeitos atua sem motivo legítimo, viola o princípio da boa-fé [...]. A relação

processual impõe aos partícipes do processo a obrigação de conduzir-se de acordo com a

finalidade própria de um debate dirigido para a resolução do conflito com justiça.”77, 78

O abuso de direitos processuais é configurado pelo uso das estruturas processuais para

satisfazer interesses que, embora lícitos, são manifestamente abusivos ou para a realização de

procedimento mais oneroso quando havia, à disposição, outro mais simples e que atenderia

aos mesmos fins. Esse agir denota transgressão à boa-fé objetiva e violadora da lealdade

processual.79

Uma idéia inicial do abuso do direito pode ser traduzida como “mau uso ou uso irregular,

excessivo, de uma determinada prerrogativa ou faculdade conferida pela lei.”80

Ao analisar a figura do abuso do direito Menezes Cordeiro observa que se trata de limitações

jurídico-subjetivas que somente são aferidas no caso concreto e que “equivale, em termos

jurídico-positivos, a uma regra segundo a boa fé”.81

O direito, sob a ótica de um sistema, que harmonicamente rege a convivência social, tem

exigências que lhe são inerentes para a manutenção do próprio sistema. O agir em

desconformidades com essa pauta de exigências dá azo ao abuso do direito, que importa em

disfuncionalidade. Dessa forma anota Menezes Cordeiro: “Um sistema jurídico postula um

cualquiera de los sujetos – principales o eventuales – intervinientes en un proceso civil dado, y que genera consecuencias desfavorables para el autor del abuso.” 76 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 378, nota de rodapé nº 442. 77 OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. In Abuso dos direitos processuais. BARBOSA MOREIRA, José Carlos (Coord.). Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 22. 78 No original: “[...] Cuando uno de los sujetos obra sin motivo legítimo (en palabras de Josserand), quiebra el principio de buena fe […]. La relación procesal impone a los partícipes del proceso la obligación de conducirse de acuerdo con la finalidad propia de un debate dirigido a resolver un conflicto con justicia.” 79 PEYRANO, Jorge W. Abuso del proceso e conducta procesal abusiva. Revista de derecho privado e comunitário. Buenos Aires: Rubinzal – Culzioni Editores. 1998, pp. 77-78, passim. 80 ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 31. 81 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 71.

185

conjunto de normas e princípios de Direito, ordenados em função de um ou mais pontos de

vista. Esse conjunto, projecta um sistema de acções jurídicas – portanto de comportamentos

que, por se colocarem como actuações juridicamente permitidas ou impostas, relevam para o

sistema. O não-acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às permissões

contraria o sistema: há disfunção.”82

Nesse diapasão, “[...] O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos

jurídico-subjetivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas

concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integrem.”83

Conforme destacado por Pedro Albuquerque, com escólio em Menezes Cordeiro “o abuso do

direito de modo amplo e cientificamente mais apurado, como exercício inadmissível ou

ilegítimo de posições jurídicas quando elas se apresentam no caso concreto como contrários

aos vectores do sistema, assente na concretização da boa fé.”84

Em resumo, a boa-fé objetiva retrata uma norma ético-jurídica que estabelece as balizas de

atuação de todos os que participam da relação jurídica processual. A boa-fé objetiva

estabelece um padrão de comportamento baseado na lealdade e na probidade e visa

precipuamente à proteção da confiança despertada na contraparte. Por sua vez, o abuso do

direito processual caracteriza-se pelo exercício de um direito que contraria a boa-fé objetiva.

O abuso do direito caracteriza-se pelo uso de um direito legitimamente assegurado, entretanto

exercido de maneira disfuncional, de maneira anormal, promovendo um retardamento no

desenvolvimento do processo e, por conseguinte, na solução da lide.

6.3. A aplicação boa-fé objetiva pelo Juiz: Virtudes e Cautelas

82 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 72. 83 Ibidem, p. 73. 84 ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 89.

186

A aplicação da boa-fé objetiva nos diversos domínios do Direito tem sido reconhecida pela

doutrina e pela jurisprudência. Solimine vê a atuação da boa-fé como fundamento de todo o

sistema jurídico independentemente de encontrar-se expresso ou não:

“A boa-fé se caracteriza por outorgar ao sistema jurídico uma nota de distinção que aparece tanto na base ou fundamento do todo como das instituições ou normas isoladas. Prova disto é que esse princípio tem aplicação não só no direito codificado, mas também nos sistemas da common law, onde muitas instituições próprias do sistema anglo-norteamericano constituem aplicações fundadas no princípio da boa-fé como modo de incorporar ao campo do direito, valores ético-sociais, tais como o respeito mútuo e a correção nas relações. [...] O aludido princípio pode aparecer codificado ou não, entretanto isso não obsta a sua existência.”85, 86

Revela-se a importância desse instituto que, que por possuiu conteúdo elástico, possibilita

uma criação normativa não restrita aos textos legais sobrepujando o papel da jurisprudência

como vetor de adequação da legislação ao contexto social. É à luz dos casos concretos que a

boa-fé objetiva ganha conteúdo próprio numa conjugação de valores e de argumentos que

corporificam as decisões e que, por conseguinte, permitirão a formulação de modelos

jurídicos.

Nesse sentido concorrem os apontamentos de Francisco Amaral, exaltando a influência dos

juristas romanos, com a sua “excepcional vocação para extrair [...] princípios e construções

jurídicas que afirmavam como universais. Sua função e seu mérito foi terem procurado

princípios e soluções para problemas sociais e casos concretos, atendendo às exigências da

vida e ao seu sentido de justiça. E, dentre esses princípios, que atuavam difusamente, sem

positividade jurídica, o da boa-fé.”87

A concretização da cláusula geral da boa-fé objetiva, segundo Menezes Cordeiro, deu lugar à

criação de diversos institutos jurídicos que, hoje, já têm autonomia própria reduzindo o campo

85 SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 861. 86 No original: “El referido principio se caracteriza por otorgar al sistema jurídico una nota de distinción que aparece en la base o fundamento del todo como de las instituciones o normas aisladas. Prueba de ello es que dicho principio es de aplicación no solo a los derechos codificados sino también en sistemas como el Common Law donde muchas instituciones propias del sistema anglo-norteamericano constituyen aplicaciones fundadas en el principio de buena fe como modo de incorporar al campo del derecho valores éticos-sociales tales como el respecto mutuo y la corrección en el trato.[…] Es decir, que el principio aludido puede aparecer codificado o no, pelo ello no obsta a considerar su existencia, ya sea a través de normas aisladas o como base o fundamento de las instituciones.” 87 AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UFRJ, 1995, pp. 38-39.

187

de aplicação da boa-fé no sentido de não mais ser necessário reportar-se a ela para decidir o

caso concreto. Essa opinião do Autor português leva-o a concluir que “[...] A boa fé originou

uma série de novos institutos jurídicos: provavelmente, as mais estimulantes e avançadas

criações jurídicas dos últimos dois séculos. Consumada essa criação, os institutos novos

agrupam-se e ordenam-se, no sistema, de acordo com as realidades a que respeitam,

adquirindo um tratamento cada vez mais próximo do Direito estrito. A boa fé mantém-se,

apenas, num núcleo apertado, onde ainda não foi possível uma intervenção normalizadora da

Ciência do Direito.”88

Entretanto, não significa dizer que houve uma redução no campo de operatividade da boa-fé

objetiva. O próprio Menezes Cordeiro ressalta que “os institutos autônomos retornam a ela

para efeito de apuramento dogmático. A Ciência do direito, na base dum tratamento

sistemático, corrige assimetrias, apura soluções, completa enquadramentos e alcança decisões

as mais diferenciadas e melhor justificadas. A boa fé mantém, assim, um importante papel

dogmático, mesmo perante questões já conhecidas.”89

A capacidade de intervir frente a problemas novos, não contemplados pelos textos

normativos, dá à boa-fé objetiva um status de ‘regra de ouro’, pois legitima soluções que são

construídas numa reflexão que tem por base o problema e que se encaixam dentro de um

sistema aberto e móvel. Essa realidade permite aferir que não se pode abdicar desse conteúdo

móvel e fluido da boa-fé objetiva para a atualização legislativa sem a intervenção do

legislador.

No trabalho de formulação de modelos jurídicos construídos sob o esteio da boa-fé objetiva

fundamental se torna a identificação dos problemas para os quais as soluções são formuladas.

Nesse sentido, há que se considerar que não se trata de problemas abstratos, mas de situações

concretas para as quais há que se delimitar os seus contornos, e extrair a essência nele

representada. A partir dessa identificação é que se perquire a atuação da boa-fé objetiva como

solução do problema identificado e que possibilitará a utilização desse conteúdo em situações

futuras.

88 Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. N. 52. set.-dez., 1998, p. 29. 89 Ibidem, p. 32.

188

Quadra destacar que não se trata de um conteúdo fixo visto que para as novas situações há que

se adequar esse conteúdo às suas peculiaridades num trabalho dinâmico de construção e de

reconstrução do modelo. Nesse cenário, a boa-fé objetiva assume contornos que são

apreendidos em função do momento social, cultural e histórico, o que permite uma dinâmica

atualização normativa sem que se requeira qualquer alteração legislativa.

O Código de Processo Civil ao estipular o “dever de todos aqueles que dele participam de

proceder com lealdade e boa-fé” veicula uma norma que, por ter natureza de cláusula geral, é

uma norma cuja ‘nuance’ é definida jurisprudencialmente à vista das controvérsias a serem

solucionadas. Essas soluções não estão previamente estabelecidas, antes precisam ser

construídas buscando no sistema o conteúdo da boa-fé objetiva a ser aplicado naquela

situação.

Menezes Cordeiro ressalta o valor da boa-fé objetiva nos sistemas abertos e móveis como

instrumento de integração de soluções não encontradas no próprio sistema. A plenitude da

boa-fé objetiva encontra guarida exatamente, na abertura externa do sistema, “porquanto

admitindo a relevância jurídica de questões a ele estranhas, e que a boa fé, de resto,

historicamente, tem contribuído para localizar, solucionar e depois integrar no sistema [...].”90

Conforme sintetizado por Menezes Cordeiro “[...] A boa fé apresenta de novo, excelentes

condições, para retornar o seu incansável – e bem eficaz – papel de perpetuação do sistema,

renovando-o, logo que necessário. O seu futuro está assegurado. De resto: já começou.”91

No entanto, há que se ter cautela na aplicação da boa-fé, visto que, face “ao seu caráter

indeterminado e potencialmente expansivo, corre-se o risco de que se converta em uma

espécie de ordenamento alternativo”92 à ordem jurídica posta, apresentando-se como remédio

para todos os males, passando a ser invocado sem qualquer critério.

Anderson Schereiber alerta para a “superutilização da boa-fé objetiva” refletida em um

“processo de invocação arbitrária da boa-fé como justificativa ética de uma série de decisões

90 Anais do Seminário Luso-Brasileiro sobre as Novas Tendências do Direito Civil. Revista Paraná Judiciário. n. 52. set.-dez., 1998, p. 34. 91 Ibidem, p. 36. 92 CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de documentación judicial. 2006, p. 219.

189

judiciais e arbitrais, que nada dizem tecnicamente com o seu conteúdo e suas funções.” Nesse

passo, segundo o Autor, “a boa-fé objetiva aparece hoje, não obstante os propósitos meritórios

de sua aplicação, como fundamento de soluções que se chegaria, de forma mais eficaz e mais

adequada à luz do próprio sistema jurídico, pela aplicação direta de princípios constitucionais

[...].”93

Corroborando o seu entendimento Schereiber evoca as lições de Menezes Cordeiro sobre as

críticas ao uso atécnico da boa-fé face ao desconhecimento do seu significado e do seu

alcance:

“[....] Mas porque a boa-fé mantém-se a nível juscientífico, como fonte efectiva de soluções novas, a impossibilidade científica de captar o fenómeno, num retrocesso gnoseológico surpreendente, ocorreu a mitificação do conceito. Na falta de um captar da noção, procedeu-se ao seu arvorar lingüístico em princípio todo poderoso, em regra fundamental que tudo domina, em teor ético-social do Direito ou em cerne imanente de limitações internas de posições jurídicas. Esta linguagem grandiloqüente, pitoresca, que domina a literatura e os espíritos dos juristas quando da boa-fé se trate e, quanto ao conteúdo, profundamente vazia. A sua própria ilimitação descaracteriza-o de tal modo que impossibilita o retirar de quaisquer soluções reais. As remissões para ordens ou remissões ou sentimentos extra-jurídicos mais acentuam o mito, rematado pela idéia comum, de que, por inomeáveis implicações jusfilosóficas, a boa fé, de aplicações múltiplas e incomportáveis, se torna de estudo difícil ou impossível. E entretanto, num remate do divórcio, os tribunais progridem, encontrando soluções bem reais, com base na boa fé. Destas há que partir para transcender o irrealismo metodológico, cientificar, a nível superior, as conquistas mais recentes do Direito civil e pôr termo ao anacronismo da mitificação da boa fé.”94

Quadra destacar que o uso da boa-fé objetiva não pode ser tratado como um ‘slogan’, o que

redundaria no que há de mais pernicioso, tal qual uma erva daninha, pois esvaziaria o seu

conteúdo. Torna-se urgente e imperiosa a “necessidade de se precisar, com algum grau de

segurança, o conteúdo da cláusula geral da boa-fé objetiva.”95 “O princípio da boa fé tem de

ser algo mais, muito mais do idílico verbalismo jurídico.”96

O “acesso a uma ordem jurídica justa” e o direito a um “processo justo e équo” somente se

concretizam à medida que todos os participam da relação jurídica processual atuem segundo

as balizas da boa-fé objetiva. A concretização dos princípios constitucionais, que veiculam as 93 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 121, 122. 94 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, pp. 402-403. 95 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 125. 96 A firmação é do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, Cardona Ferreira, apud MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 79.

190

garantias processuais, encontra seu pleno funcionamento sob a atuação da boa-fé objetiva.

Trata-se do “devido processo leal”, expressão cunhada por Joan Picó I Junoy para descrever o

processo no qual as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da

ampla defesa e da duração razoável do processo são atingidas com a intervenção da boa-fé

objetiva.97

A “tutela constitucional é o tema do nosso tempo”98. Juristas e doutrinadores inquietam-se em

alcançar modelos processuais que transformem a promessa da prestação de uma tutela

jurisdicional efetiva em concreta “justa composição da lide”. “O desafio dos processualistas é

frontal e inescusável. A encruzilhada se polariza em duas alternativas incompatíveis: a do

processo formal [...] e a do processo justo.”99

“A defesa em juízo não é alcançada simplesmente pela explicação e pela interpretação da lei e

das circunstâncias em causa, mas, além disso, e principalmente, é necessário ter muito

presente que os operadores têm de protagonizar um trabalho de cooperação eticamente

ajustado à boa-fé e no que respeita à sua repercussão, de um ângulo social, que derive

resultados mais tangíveis.”100, 101

A concepção do “processo justo” demanda um permanente trabalho de todos os que atuam na

seara jurídica, trabalho esse que deve estar afinado às expectativas que afloram do seio social.

“Cada geração deve definir o que entende por processo justo, reinventando-o ou ajustando,

sucessivamente, aos novos reclamos da sociedade. A ambição de um melhor processo é

universal e inacabável.”102, 103

97 PICÓ Y JUNOI, Joan. El debido proceso leal: reflexiones en torno al fundamento constitucional del principio de la buena fe procesal. In Justicia: Revista de derecho procesal. n. 34. 2004, 98 MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos. Buenos Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 619. 99 Ibidem, p. 634. 100 MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos. Buenos Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 650. 101 No original: “Para alcanzar los adecuados fines que se persigue asegurar la defensa en juicio según la Constitución Nacional, no es bastante en estas horas explicar e interpretar la ley y las circunstancias de la causa, sino además, y principalmente, tener muy presente que los operadores tienen que protagonizar una labor de cooperación éticamente ajustada a la buena fe, u en lo que respecta a su repercusión, desde un ángulo fuertemente social, que derive en resultados más tangibles.” 102 MORELLO, Augusto M. El proceso justo: del garantismo formal a la tutela efectiva de los derechos. Buenos Aires: Librería Editora Platense S.R.L - Abeledo-Perrot. 1994, p. 655. 103 No Original: “Cada generación debe definir qué entiende por proceso justo, reinventándolo o ajustándolo – sucesivamente – a los nuevos reclamos de la sociedad. La ambición de un mejor proceso es universal e inacabable.”

191

6.4. Referências sobre a boa-fé objetiva processual na experiência legislativa de outros

povos

A boa-fé já era conhecida no Direito Romano, tendo atuação difusa, visto não encontrar-se

positividade jurídica, consoante demonstra Francisco Amaral em sua tese para professor

titular daquela matéria, sendo, na época, aplicado tanto no direito material quanto no Direito

Processual.104

Sob a ótica do direito privado, visualizamos que no direito estrangeiro, o Código Civil

Alemão de 1896 (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch), em seu parágrafo 242, positivou o

princípio da boa-fé objetiva, fortalecendo a importância de se estabelecer um comportamento

ético nas relações jurídico-sociais. Porém, somente após a Constituição de Weimar de 1919

foi que aquele dispositivo do BGB passou a ser aplicado pelos tribunais alemães tornando-se

conhecido como parágrafo de ouro e, portanto, tornando-se referência na doutrina e

jurisprudência alemãs105, 106.

A partir de então vários sistemas estrangeiros recepcionaram a teoria da boa-fé objetiva em

seus ordenamentos jurídicos, podendo destacar o Código Civil português, em seu art. 227 e o

código civil italiano, em seus artigos 1337 e 1375.

No que tange ao Direito Processual de outros povos, a análise dos textos normativos revela

que, impor um padrão ético de conduta nas relações processuais, é ação comum do legislador

estrangeiro, conforme se verifica no atual Código de Processo Civil da Itália, que adota o

Princípio de Lealdade não apenas em relação aos litigantes, mas também em relação ao juiz

da causa, consoante prescrevem o §1º do art. 88, art.96 e o art. 175.107

“Art.88- Dovere di lealtà e di probità. Le parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio con lealtà e probità. In caso di mancanza dei defensori a tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il potere disciplinare su di essi.

104 AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UFRJ, 1995, pp. 34 e 38. 105 CRUZ e TUCCI, Cibele Pinheiro Marçal. Teoria geral da boa-fé objetiva. Revista do Advogado. São Paulo. ano 22. nº 68. dez. 2002, p. 106. 106 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 375. 107 RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, p. 74.

192

Art.96- Responsabilità aggravata. Se risulta che la parte soccombente ha agito o resistito in giudizio com mala fede o colpa grave, il giudice, su istanza dell'altra parte, la condanna, oltre che alle spese, al risarcimento dei danni, che liquida, anche di ufficio, nella sentenza. Art.175-Direzione del procedimento. Il giudice istruttore esercita tutti i poteri intesi al più sollecito e leale svolgimento del procedimento.”

A relevância da positivação da boa-fé processual no ordenamento jurídico espanhol resta

evidenciada, visto que o princípio encontra-se citado de forma indireta no art. 118 da

Constituição Espanhola e, de forma mais direta, no art. 247, apartado 1º da Ley de

Enjuiciamiento Civil e nos artigos 11 e 437 da Ley Orgánica del Poder Judicial - LOPJ.

“Art.118- Es obligado cumplir las sentencias y demás resoluciones firmes de los jueces y tribunales, así como prestar la colaboración requerida por éstos en el curso del proceso y en la colaboración requerida por éstos en el curso del proceso y en la ejecución de lo resuelto. Artículo 247. Respeto a las reglas de la buena fe procesal. Multas por su incumplimiento. 1. Los intervinientes en todo tipo de procesos deberán ajustarse en sus actuaciones a las reglas de la buena fe. 2. Los tribunales rechazarán fundadamente las peticiones e incidentes que se formulen con manifiesto abuso de derecho o entrañen fraude de ley o procesal. 3. Si los tribunales estimaren que alguna de las partes ha actuado conculcando las reglas de la buena fe procesal, podrá imponerle, de forma motivada, y respetando el principio de proporcionalidad, una multa que podrá oscilar de treinta mil a un millón de pesetas, sin que en ningún caso pueda superar la tercera parte de la cuantía del litigio. Para determinar la cuantía de la multa el tribunal deberá tener en cuenta las circunstancias del hecho de que se trate, así como los perjuicios que al procedimiento o a la otra parte se hubieren podido causar. 4. Si los tribunales entendieren que la actuación contraria a las reglas de la buena fe podría ser imputable a alguno de los profesionales intervinientes en el proceso, sin perjuicio de lo dispuesto en el artículo anterior, darán traslado de tal circunstancia a los Colegios profesionales respectivos por si pudiera proceder la imposición de algún tipo de sanción disciplinaria. Artículo 11 1. En todo tipo de procedimiento se respetarán las reglas de la buena fe. […]. Artículo 437 En su actuación ante los Juzgados y Tribunales, los Abogados son libres e independientes, su sujetarán al principio de la buena fe […].”

A Argentina também apresenta a lealdade processual como o elemento essencial para a

constituição da justiça, que no caso pode-se subtrair esse entendimento no art. 34, 5º, do

Código de Processo Civil e Comercial da Nação Argentina:

“Art. 34- Son deberes de los jueces: (...)

193

5º- Dirigir el procedimiento, debiendo, dentro de los límites expresamente establecidos en este Código: d) Prevenir y sancionar todo acto contrario al deber de lealtad, probidad y buena fe.”

O Código de Processo Civil de Portugal, expressamente, veicula o dever de boa-fé processual

no art. 266º-A e no art. 456º traz a noção de má-fé, conforme se infere, verbis:

“ARTIGO 266.º-A (Dever de boa fé processual) As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior. ARTIGO 456.º (Responsabilidade no caso de má fé - Noção de má fé) 1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. 3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.”

Na Alemanha, com a reforma de 1933, surge no § 1º do § 138 da ZPO o dever das partes de

dizer a verdade, o qual é fortalecido pelo § 826 do BGB, dispositivo que prevê uma obrigação

de indenizar danos causados por condutas maliciosas e falsidades, o que reafirma a presença

da boa-fé tanto no Código Processual Civil quanto no Código Civil alemão108.

Dessa forma, no direito alemão, conforme ensinamento de Menezes Cordeiro, conclui-se que

houve uma transposição da boa-fé do direito civil para o Direito Processual de forma que, a

natureza instrumental109 do processo, foi o fator facilitador de aplicação da boa-fé no campo

processual. Partilhando do mesmo pensamento Benkendorf, Wilhelm Beltz, Bernhardt,

108 RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, p. 74. 109 “O processo em seu sentido social ou, como querem alguns, instrumental, é um instrumento público eficaz, legítimo e verdadeiro de realização da justiça que foi colocado à disposição das partes pelo Estado, para que elas possam buscar a prestação da tutela jurisdicional, e nenhum instrumento de justiça pode sobreviver fundado em mentira, em conduta ímproba, em má-fé, motivo pelo qual o comportamento da parte influenciará a convicção do juiz.” RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista da AJURIS. vol. 31. n. 95 Porto Alegre: Ajuris. Set. 2004, p. 76-77.

194

doutrinadores alemães, também reconheciam a recepção da boa-fé do § 242 do BGB no

processo 110.

Ao analisar a aplicação da boa-fé objetiva processual no direito comparado pode-se verificar,

a título exemplificativo, que a preclusão lógica também enquadra-se na figura do venire

contra factum proprium como exigência do respeito ao agir leal e probo imposto pela boa-fé

objetiva.

Nesse sentido, Picó afirma: “O exercício livre de um direito pode ver-se limitado quando vai

de encontro à própria conduta do seu titular, agindo de forma incoerente, isto é, da má-fé.

Conseqüentemente, a conduta observada por uma pessoa em um determinado momento pode

vincular-lhe, restringindo possíveis atuações posteriores, que serão inadmissíveis quando

pretenda fazer valer um direito contrário à sua própria conduta praticada anteriormente,

frustrando a confiança daqueles confiaram naquele agir”.111, 112

No direito comparado, tem sido vasta a aplicação jurisprudencial da boa-fé objetiva

processual conotando o seu riquíssimo conteúdo.

A doutrina dos atos próprios, admitida no ordenamento espanhol como norma que impede

comportamentos contraditórios, portanto violadores da boa-fé objetiva, tem sido expressa

pelos Tribunais nos seguintes termos: “Tanto a doutrina do Tribunal Constitucional como a

doutrina deste Tribunal considera que o princípio da boa fé protege a confiança que,

fundadamente, foi depositada no comportamento alheio e impõe o dever de coerência no

próprio comportamento. Dito princípio implica a exigência de um dever de comportamento

que consiste na observância, no futuro, dos atos anteriormente praticados e aceitar as

conseqüências vinculadas que advêm dos próprios atos.”113, 114

110 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 375. 111 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113. 112 No original: "El libre ejercicio de un derecho puede verse limitado cuando va en contra de la propia conducta de su titular, actuando de forma incoherente, esto es, de mala fe. En consecuencia, la conducta observada por una persona en un determinado momento puede vincularle, restringiendo sus posibles actuaciones posteriores, que serán inadmisibles cuando pretenda hacer valer un derecho en contra de su propia conducta previamente realizada, traicionando así la confianza que los terceros hayan podido depositar en él.". 113 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113, nota de rodapé nº 227. Sentença do Tribunal Supremo (STS) – sala 3ª. 114 No original: “Así, la STS (Sala 3ª) de 5 de junio de 2001 [...] destaca em su f.j.16º que ‘tanto la doctrina del Tribunal Constitucional como la Jurisprudencia de este Tribunal considera que el principio de buena fe protege

195

A concepção da boa-fé objetiva no campo processual também pode ver-se formulada pelo

Tribunal Supremo espanhol nos seguintes termos:

“Efetivamente esta sala vem reiterando que a exigência de ajustar o exercício dos direitos às pautas da boa fé constitui um princípio informador de todo o ordenamento jurídico, que exige reprovar as atitudes que não se ajustam ao comportamento honrado e justo [...] equivale a sujeitar-se em seu exercício aos imperativos imanentes do ordenamento positivo [...], é dizer os imperativos éticos que a consciência social exige. [...] Finalmente, [...] é numerosa a jurisprudência desta Sala o atraso desleal ou exercício tardio desleal como conduta contrária à boa fé.”115, 116

Da mesma forma, a jurisprudência portuguesa recorre à boa-fé objetiva para reprovar as

condutas processuais desleais, conforme pode-se inferir dos julgados colacionados:

“Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa fé processual.:- O primeiro obriga os sujeitos processuais a "reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes dar-se na sua própria negligência no acompanhamento... não podendo naturalmente escudas diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiverem presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber";- O segundo impede que os sujeitos processuais possam "aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um "trunfo, para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado". (confrontar Ac.nº. 429/95 do Tribunal Constitucional).

la confianza que fundadamente se puede haber depositado en el comportamiento ajeno e impone el deber de coherencia en el comportamiento propio. Lo que es tanto como decir que diche principio implica la exigencia de un deber de comportamiento que consiste en la necesidad de observar de cara al futuro la conducta que los actos anteriores hacían prever y aceptar las consecuencias vinculantes que se desprenden de los propios actos’”. 115 Disponível em http://www.poderjudicial.es/jurisprudencia/. Acesso em 29.01.2008, Id Cendoj: 28079110002001100679; Órgano: Tribunal Supremo. Sala de lo Civil; Sede: Madrid; Nº de Recurso: 378/1996; Nº de Resolución: 189/2001; Procedimiento: RECURSO DE CASACIÓN; Ponente: JESUS CORBAL FERNANDEZ; Tipo de Resolución: Sentencia. Citado por PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 78, nota de rodapé nº 144 e por CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de documentación judicial. 2006, p. 217. 116 No original: “Efectivamente esta Sala viene reiterando que la exigencia de ajustar el ejercicio de los derechos a las pautas de buena fe constituye un principio informador de todo el ordenamiento jurídico que exige rechazar aquellas actitudes que no se ajustan al comportamiento honrado y justo (S. 11 de diciembre de 1.989). El ejercicio de los derechos conforme a las reglas o exigencias de la buena fe (art. 7.1 del Código Civil; y para procesal arts. 11.2 LOPJ y 247 de la Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000) equivale a sujetarse en su ejercicio a los imperativos éticos exigidos por la conciencia social y jurídica de un momento histórico determinado, imperativo inmanente en el ordenamiento positivo (Sentencias 4 marzo 1.985, 5 julio 1.989, 6 junio 1.991). Implica la necesidad de tomar en cuenta los valores éticos de la honradez y la lealtad (Sentencias 21 septiembre de 1987, 8 marzo 1991, 11 mayo 1992, 29 febrero 2000), es decir los imperativos éticos que la conciencia social exige (Sentencia 11 mayo 1.988). […] Y finalmente, la alusión al art. 1.961 carece de razón de ser porque no se da ningún planteamiento de prescripción extintiva en el caso, a lo que solo cabe añadir (a los meros efectos dialécticos) que es numerosa la jurisprudencia de esta Sala sobre el retraso desleal o ejercicio tardío desleal como conducta contraria a la buena fe (entre otras, sentencias de 21 mayo 1.982, 6 junio 1.992 y 4 julio 1.997). […] ”

196

Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique no final da respectiva audiência, ou no prazo de argüição da irregularidade, se existiu alguma deficiência. E nem sequer se argumente com razões gongóricas de impossibilidade burocrática uma vez que realizada a respectiva diligência impende sobre o tribunal que efectuou o registro a obrigação de facultar cópia no prazo máximo de oito dias após a realização daquele-artigo 7º do citado D.L.”117 “2.2. [...] É que sobre as partes faz a lei impender o dever de cooperação, prescrevendo o artigo 266º do CPC que "na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio". A consagração expressa do dever de boa fé processual (artigo 266º-A), apresenta-se como reflexo e corolário desse princípio da cooperação. Boa fé não observada nos presentes autos, revelando-se fundada a condenação dos réus.”118 “O recurso integrará um abuso do direito de acção quando se recorra apenas por se recorrer sabendo-se que assim se atrasa a definição do problema. Nesse caso o abuso integrará, ainda, a má fé por se estar a fazer uso manifestamente reprovável de um meio processual e a entorpecer a justiça.”119 “Quando o titular de um direito se deixou cair em uma longa inércia sem proceder ao respectivo exercício, de modo susceptível de criar na contraparte a convicção de que a posição jurídica substantiva se encontra consolidada, nela tendo investido a confiança, as suas expectativas e o seu capital, é ilegítimo e abusivo o exercício do direito, que, por isso, não deve ser reconhecido, independentemente da consciência abusiva. Litiga de má fé nos termos do artigo 456º/2 e 3 do Código de Processo Civil, aquele que deduz pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, ou altera conscientemente a verdade dos factos, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, de entorpecer a acção da justiça, ou de impedir a descoberta da verdade. A litigância de má fé pressupõe a parte tenha procedido com intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico).”120 “As reclamações e outros meios previstos na lei processual, embora não tipificados como incidentes, podem ser tributados se qualificados como abuso processual. Assim, a argüição de nulidades da decisão recorrida, que deve ser apreciada pelo tribunal a quo pode ser tributada como incidente quando se traduzir em abuso processual ou expediente dilatório.”121

À vista do exposto, conclui-se que o riquíssimo conteúdo da boa-fé objetiva no campo

processual transcende as fronteiras territoriais, numa clara demonstração que a justiça

117 STJ: Process nº 06P1934 Relator Santos Cabral Data do acórdão: 13/09/2006, 118 STJ: Processo nº 02A2185, Relator: Ferreira Ramos , Data do Acórdão: 15/10/2002. 119 STJ: Data do acórdão: 21/09/1993, Relator Costa Raposo. apud ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 78. 120 STJ: Data do acórdão: 01/06/2001, Relator Ferreira de Almeida. apud ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 78. 121 RP: Data do acórdão: 30/04/2001, Relator Fonseca Ramos. apud ALBUQUERQUE, Pedro. Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo. Coimbra: Almedina. 2006, p. 78.

197

encontra-se comprometida com os valores ético-jurídicos evidenciando o apogeu do

paradigma da concreção jurídica a descortinar a jurisprudência como fonte do direito.

198

Capítulo VII - A Boa-Fé Objetiva na Jurisprudência Brasileira: Tentativa de

Visualização de um Modelo

Sumário: 7.1. O Trabalho da Jurisprudência na “Concreção Jurídica” da Boa-Fé Objetiva –

7.2. As Manifestações da Boa-Fé Objetiva nas Figuras: Supressio, Surrectio, Tu Quoque e

Venire Contra Factum Proprium – 7.2.1. Supressio e Surrectio – 7.2.2. A Proibição de

Consubstanciar Dolosamente Posições Processuais – Tu Quoque – 7.2.3. Venire Contra

Factum Proprium – 7.3. A Preclusão Lógica e a Boa-Fé Objetiva.

7.1. O Trabalho da Jurisprudência na “Concreção Jurídica” da Boa-Fé Objetiva

O papel criador da jurisprudência, muita vezes negado sob o assombro da discricionariedade,

“torna-se cada vez mais necessário e acentuado nas sociedades contemporâneas [...] como

fator de adaptação do direito às profundas transformações da nossa realidade social.”1

A superação da idéia do direito codificado, com a introdução das cláusulas gerais, traz ínsita a

necessidade da concreção jurídica, visto que a interpretação axiomática já não se torna

possível.

Nesse contexto, o juiz é instado a desenvolver um trabalho de criação2 à luz do caso concreto

frente à variedade ou à amplitude dos potenciais conteúdos que podem advir do

preenchimento das cláusulas gerais. Conforme anotado por Judith Martins-Costa “atuando aí

as cláusulas gerais como elemento ao mesmo tempo unificador e vivificador dos

ordenamentos.”3

1 CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris. 1993, reimpressão, 1999, p. 7. 2 Conforme ressaltado por Mauro Cappelletti, Jeremy Benthan utilizou, há mais de um século e meio, a expressão direito judiciário (‘judiciary law’) para expressar que no ordenamento inglês o juiz não apenas declarava o direito o existente, mas era, na realidade, o “criador do direito”. CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris. 1993, reimpressão, 1999, pp. 17-18. 3 MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. Revista dos Tribunais . São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 680. jun. 1992, p. 54.

199

Com o superamento do positivismo, “há uma viragem metodológica no campo da

interpretação jurídica, passando-se do ‘paradigma da aplicação’ para o paradigma da

construção jurisprudencial.”4, 5

A subsunção “[...] é, via de regra, meio apto para a interpretação das normas que encerram

tipos fechados, estanques, compostos por estatuições diretas, que não demandem qualquer, ou

quase nenhuma, integração valorativa.”6

“A revolta contra o formalismo” é apontada por Cappelletti como uma das causas da

crescente e inevitável criação do direito pelos tribunais. “Em todas as suas expressões, o

formalismo tendia a acentuar o elemento da lógica pura e mecânica no processo

jurisdicional.” A nova concepção do Estado, abarcando as mais diversas áreas a intervir

impunha uma nova abordagem do direito legislado por meio de técnicas que permitissem a

constante aderência dos catálogos normativos à realidade social.7

A mudança de perspectiva implica o abandono do raciocínio lógico-subsuntivo para

sobrelevar o pensamento sistemático, no qual, sem soluções pré-elaboradas, apresenta

induvidosa necessidade de criação do direito. Essa mudança paradigmática, conforme

ressaltado por Francisco Amaral, importa o superamento “do paradigma da aplicação, próprio

4 AMARAL, Francisco. O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. v. 32. n. 100. p. 120. 5 “O primeiro paradigma do direito posterior à Revolução Francesa se baseava inteiramente na lei e na segurança da lei – naquela idéia de que a lei deve ser universal, geral, prever tudo com precisão e ser, tanto quanto possível, completa. O papel do Juiz nesse paradigma era o de um autômato. É o famoso juiz ‘boca da lei’, la bouche de la loi, na linguagem de Montesquieu. Esse paradigma, no começo do século XX foi alterado, foi substituído pelo segundo paradigma, que hoje alguns estão chamando de ‘sistema aberto’. Nesse sistema, o ponto central deixou de ser a lei e passou a ser o Juiz. Para isso, o direito passou a utilizar conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, que são ‘noções-quadros’, nas quais o juiz tem maior liberdade de decisão.” AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto do Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais. ano 89, v. 775. São Paulo: Revista dos Tribunais. maio de 2000, p. 11. Entretanto, na concepção formulada por Junqueira, “[...] O paradigma, que antes era o da lei, passou a ser o do juiz e, agora, é o da solução rápida do caso concreto. Hoje, estamos fugindo do juiz. Essa fuga não é um problema do judiciário; ele deve decidir o que é da sua missão, da sua vocação, que é o conflito real, o ‘caso difícil’, que exige ponderação. Mas o juiz é um julgador e, quando não há necessidade de julgador, não é preciso o juiz. Nesse sentido há uma fuga do juiz.” Idem, p. 16. 6 MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. ano XXXIII. n. 103. set.-2006, p. 78. 7 CAPPELLETTI, Mauro. Juizes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris. 1993, reimpressão, 1999, p. 31-34, passim.

200

do normativismo-positivista sempre cultivado, para uma outra perspectiva, a do paradigma

jurisprudencialista [...].”8

As cláusulas gerais, dada a sua vagueza e fluidez de conteúdo, são normas que demandam a

construção e a especificação do seu conteúdo pelo trabalho laborioso do jurista diante do caso

concreto.

A boa-fé objetiva situa-se nesse espectro, sendo certo que somente na análise das

particularidades da situação que está a reclamar o deslinde é que o juiz poderá desenvolver

um trabalho de conjugação tópico-sistemático para construir a solução que reflita perfeita

adaptabilidade da ordem jurídica aos valores imperantes na sociedade.

Ao tratar do standard ético traçado pelo princípio da boa-fé Diez-Picazo deixa claro que não

se trata de “uma ética material-normativa, de validade universal e de caráter atemporal”9.

“[…] a definição desta ética não é um assunto das convicções ou concepções imperantes ou

generalizantes de uma comunidade histórica. É um assunto da classe ou do estamento dos

juristas como únicos intérpretes possíveis. É uma ética jurídica.”10, 11

Nesse diapasão Menezes Cordeiro assegura que “a boa-fé objetiva é entendida como do

domínio do direito jurisprudencial: o seu conteúdo adviria não da lei, mas da sua aplicação

pelo juiz.”12

A concreção da boa-fé, ou suas manifestações, advém das ‘máximas da arte jurisprudencial’,

isto é, dos modelos jurídicos criados por meio das decisões judiciais na análise individual e

particular de cada caso levado à apreciação jurisdicional.13 Destarte, a atuação jurisprudencial

8 AMARAL, Francisco. O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS. v. 32. n. 100. p. 137. 9 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 15 10 Ibidem, p. 15. 11 No original: “[…] la definición de esta ética no es un asunto de las convicciones o concepciones imperantes o generalizadas en una comunidad histórica. Es un asunto de la clase o del estamento de los juristas, como únicos intérpretes posibles. Es una ética jurídica.” 12 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 43. 13 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 44 e 47, passim.

201

manterá o conteúdo da boa-fé sempre atualizado sem que seja necessária qualquer alteração

legislativa.

Aldemiro Rezende Dantas Júnior observa:

“[...] a boa-fé é buscada em virtude da determinação legal, mas o seu conteúdo não está [...] nem poderia estar na lei, mas sim, na própria decisão judicial, que deverá buscar-lhe o melhor preenchimento para as circunstâncias do caso concreto, em exame. Em outras palavras, a compreensão da boa-fé objetiva decorre muito mais da atividade jurisprudencial do que da análise teórico-doutrinária dos textos legais. É evidente que, com a evolução da jurisprudência, torna-se possível que os estudos se encaminhem para uma sistematização da matéria, o que facilita sobremaneira a análise dos casos futuros, que se torna cada vez mais segura, uma vez que, em sua maioria, tais casos tenderão a ser enquadrados nas situações já organizadas de modo científico. [...] [...] no entanto, não se pode perder de vista que as decisões judiciais jamais se consolidarão até o ponto de esgotar todas as novas hipóteses que poderão surgir, vale dizer, sempre surgirão situações que até então não haviam sido abordadas, com nuances e características próprias, o que faz com o estudo de fenômenos como o da boa-fé esteja em evolução permanente e contínua, sempre havendo espaço para novas construções e, ao mesmo tempo, sempre havendo uma necessária e insuperável indefinição conceitual.”14, 15

Diez-Picazo apresenta a idéia do princípio da boa fé como uma via de introdução de um

Direito Judicial, que supõe um desvio ou uma ruptura com o direito legislado.16

Segundo Esser, a boa-fé “não representa nenhuma regra de direito legislado, mas pontos de

partida para a formação concreta de normas jurídicas. Os comentários dizem a verdade: que a

norma aqui não é encontrada interpretativamente através do princípio, mas sim obtida por

síntese judicial.”17

Trata-se de um trabalho engenhoso realizado pelos tribunais, que é o de construir um

arcabouço normativo a partir da concretização das cláusulas gerais, tais quais a boa-fé

objetiva que, para a aplicação no caso concreto sob análise, tem como ponto de partida as

soluções formuladas em casos anteriormente decididos.

14 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá. 2007, pp. 37-38. 15 Essa organização científica do conteúdo da boa-fé a que se refere o Autor enquadra-se na concepção da “construção dos modelos jurídicos jurisprudenciais” concebida por Miguel Reale. É importante ressaltar que a dinamicidade na construção jurisprudencial do conteúdo da boa-fé objetiva é refletida no que Reale define como “vida e morte dos modelos jurídicos.” 16 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 17. 17 ESSER, Grundsatz u. Norm cit., 150-151 apud MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 43. nota de rodapé nº 69.

202

Nesse sentido, as cláusulas gerais rompem “o dogma da separação dos poderes estatais, que

interdita ao Judiciário atuar, em regra, como legislador positivo”18. “O alcance para além do

caso concreto ocorre porque, pela reiteração dos casos e pela reafirmação, no tempo, da ratio

decidendi dos julgados, se especificará não só o sentido da cláusula geral mas a exata

dimensão da sua normatividade. Nessa perspectiva o juiz é, efetivamente, a boca da lei – não

porque reproduza, como um ventríloquo, a fala do legislador, como gostaria a Escola da

Exegese – mas porque atribui a sua voz à dicção legislativa, tornando-a, enfim e então,

audível em todo o seu múltiplo e variável alcance.”19

Menezes Cordeiro adverte que a boa-fé objetiva não comporta uma interpretação-aplicação

clássica subordinada a um simples processo subsuntivo.20 Nessa esteira, Diez-Picazo destaca

“a necessidade de dotar de unidade ou homogeneidade o direito que irrompe por meio do

princípio da boa-fé, obriga por uma parte um trabalho da doutrina, que é um trabalho de

classificação e de tipificação das linhas de atuação da jurisprudência e que exige, também, um

trabalho de uniformidade dos critérios de onde dimana esse direito que advém do trabalho

jurisprudencial.”21, 22

Aliado a essa idéia, De Los Mozos destaca que a aplicação da boa-fé remete a um processo

valorativo “análogo ao que tem lugar na criação do Direito, e que comporta a função criadora

do jurista.”23

Na aplicação da boa-fé objetiva, “deve-se levar em consideração os fatores do caso concreto,

tais como status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica

do standard, de tipo meramente subsuntivo.”24

18 STJ: AgRg no MANDADO DE SEGURANÇA Nº 13.505 - DF (2008/0082984-5), Relator Min.Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 22.04.2008, 19 HENRIQUES FILHO, Ruy Alves. As cláusulas gerais no processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. ano 33. jan. 2008, p. 345. 20 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 42. 21 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 17-18. 22 No original: “La necesidad de dotar de unidad u homogeneidad al Derecho judicial que irrumpe por la vía del principio de la buena fe, obliga por un parte a una labor doctrinal, que es una labor de clasificación y de tipificación de las líneas de actuación de la jurisprudencia, que en el libro se lleva a cabo muy adecuadamente, y exige también una labor de uniformidad en los criterios (creencias, convicciones etc.) de donde dimana ese Derecho judicial.” 23 DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, p. 17.

203

Para Menezes Cordeiro “[...] A boa-fé objetiva, embora jurídica, parece escapar à lei. Na fase

anterior à formação de um direito jurisprudencial seguro, ela implica uma atividade judicante

que, sem mediações normativas, deixa face a face o sistema global e o caso a resolver. E

como o Direito jurisprudencial, a formar-se, é sempre parcelar, deixando, em crescimento

permanente, áreas por cobrir, o fenômeno se mantém.” 25

O significado da boa-fé tem caráter essencialmente tópico, porque seu conteúdo se nutre da

tópica pelo intérprete no processo de aplicação do direito, que se desenvolve no caso

concreto, sendo o problema, e não o sistema, o centro do pensamento jurídico. Torna-se

impossível estabelecer um conceito geral da boa-fé, visto que da mesma emana uma série de

orientações que, em cada caso, tem-se uma conotação distinta de acordo com as normas e com

as instituições com as quais se relaciona.26

A importância da jurisprudência para a concreção da cláusula geral da boa-fé é destacada por

Larenz nos seguintes termos:

A densidade da jurisprudência em torno do §242 BGB é inabarcável. Basta para convencer-se olhar a qualquer comentário do Código Civil. [...] No entanto, faz-se necessário verificar o problema de como tem avançado a jurisprudência da concreção de uma ‘cláusula geral’ tão amplamente concebida e como continua avançando. Para isso há que sublinhar duas coisas: a cláusula geral não é uma ‘fórmula vazia’, na qual cada um pode introduzir o que nesse momento lhe venha na mente. Tem um conteúdo, ainda que não esteja precisamente delimitada e não possua uma definição. Há numerosas constelações de casos nos quais todos diriam que uma conduta nas circunstâncias dadas é inconciliável com a boa-fé. [...] Por outro lado: cabalmente porque não há uma definição, não se pode levar a cabo uma subsunção. A boa-fé não é um conceito, mas um princípio, formulado como a forma exterior de uma regra de direito, que não é adequado para que se realize uma aplicação imediata em cada caso particular, porque necessita de uma concreção. A concreção se realiza, como sabemos, passo a passo, e para isso há alguns fatores de orientação que servem como elos e são necessárias valorações adicionais que, no entanto, se tem que manter dentro do marco previamente estabelecido. A um desses fatores de orientação a própria lei invoca: os usos do tráfico.27, 28

24 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 411. 25 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 43. 26 DE LOS MOZOS, José Luis. El principio de la buena fe: sus aplicaciones prácticas en el Derecho Civil Español. Barcelona: Bosch. 1965, pp. 20-21. 27 No Original: “mediante la invocación de la buena fe pude considerarse inadmisible el ejercicio de un derecho (por ejemplo, la excepción de prescripción) por existir una ‘conducta contradictoria’, cuando el ejercicio del derecho es contradictorio con el anterior comportamiento del interesado (es llamado venire contra factum proprium) y la otra parte se ha adaptado al sentido de ese comportamiento anterior. Aquí, es de nuevo muy clara la conexión con el principio de la confianza. El grosor de la jurisprudencia en torno al §242 BGB es inabarcable. Basta para convencerse echar una ojeada a cualquier comentario del Código Civil. […] Sin embargo, hay que plantear el problema de como ha avanzado

204

Para Wieacker: “Na medida em que da aplicação que da norma se faz na decisão judicial -

considerada como a realização daquela eleição - contém elementos volitivos ao lado do ato de

juízo lógico, cada decisão constitui um elemento de uma nova criação do direito, que é dizer,

em determinada maneira - e também em nosso continente – law in making (construir a

norma). E é tanto mais assim quanto mais indeterminada seja a prescrição do legislador. […]

Conseqüentemente, a aplicação de uma cláusula geral - isto é, toda a sentença baseada no

parágrafo 242 - contribui para criação do direito futuro, da mesma maneira que cada batida da

agulha à formação do tecido: traça uma linha cujo sentido não pode ser estabelecido

previamente.”29, 30

Clóvis do Couto e Silva observa “as cláusulas gerais liberam os legisladores e atribuem a

faculdade de especificar ou individualizar o seu conteúdo aos juízes, para que restabeleça,

com o tempo, o processo através do qual do ‘Direito do Caso’ chega-se à formulação de

‘normas novas’, extraindo-se dele as ratione decidendi.”31

Concorrem nesse sentido as lições de Wieacker: “[...] O problema fundamental de uma

cláusula geral como a do parágrafo 242 concerne à relação do juiz com o Direito escrito.

la jurisprudencia en la concreción de una ‘cláusula general’ tan ampliamente concebida y cómo continúa avanzando. Para ello hay que subrayar dos cosas. Primero: la cláusula general no es una ‘fórmula vacia’, en la cual cada uno pueda introducir lo que en ese momento le venga en gana. Tiene un contenido, aunque no esté precisamente perfilada y no posea la forma de una definición. Hay numerosas constelaciones de casos en los cuales todos dirían ahora mismo que una conducta en las circunstancias dadas es inconciliable con la buena fe. […] Por otra parte: cabalmente porque no hay una definición, no se pueda llevar a cabo una subsunción. La buena fe no es un concepto, sino un principio, formulado con la forma exterior de una regla de derecho, que no es adecuado para que se realice una aplicación inmediata en cada caso particular, porque está necesitado de concreción. La concreción se realiza, como sabemos, paso a paso, y para ello hay algunos factores de orientación que sirven como eslabones y son necesarias valoraciones adicionales que, sin embargo, se tienen que mantener dentro del marco previamente establecido. A uno de estos factores de orientación lo invoca la misma ley: los usos del tráfico.” 28 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução e Apresentação de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2001, p. 97. 29 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 39-40. 30 No original: “En la medida en que la aplicación que de la norma se hace en la decisión judicial – considerada como realización de aquella elección – contiene elementos volitivos al lado del acto de juicio lógico, cada decisión constituye un elemento de una nueva creación de Derecho, es decir, en cierto modo – y también en nuestro Continente – ‘law in making’. Y ello es tanto más así cuanto más indeterminada sea la prescripción del legislador. […] Por esta razón, la aplicación de una cláusula general - esto es, toda sentencia basada en el parágrafo 242 – contribuye a la creación del Derecho futuro, de la misma manera que cada golpe de aguja a la formación del tejido: traza una línea cuya dirección no puede establecerse previamente.” 31 COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, p. 66.

205

Conseqüentemente, a classificação do material deve fundar-se na relação correspondente entre

a aplicação do direito baseada no parágrafo 242 e o restante da regulação legal.”32, 33

Ao tratar do parágrafo 242 como “concreção de um plano legal de ordenação (officium

iudicis)” Wieacker destaca que “[...] o parágrafo 242 é simplesmente a via para uma adequada

realização pelo juiz do plano de valoração do legislador”.34

Clóvis do Couto e Silva ressalta que, a concepção da boa-fé objetiva veiculada no parágrafo

242 do Código Civil alemão não foi, originalmente, de conferir ao juiz os extraordinários

poderes de criação jurisprudencial. “Não se pensou de nenhum modo em atribuir ao juiz a

função fundamental de criar o direito. [...] Não era um dispositivo posto dentro do

ordenamento com a finalidade de legitimar a criação jurisprudencial, sobretudo para reduzir

os rigores da aplicação do direito estrito.”.35 O § 242, no pensamento dos autores do Código,

veio, tão-somente, como um reforço ao §157, na interpretação dos contratos segundo a boa-fé.

Entretanto, em que pese não ter sido vislumbrada pelos legisladores a criação jurisprudencial

advinda da aplicação da boa-fé objetiva, o certo é que a boa-fé objetiva transcendeu os limites

do direito material alcançando os demais ramos de direito, rompendo com os paradigmas até

então vigentes e descortinando um novo horizonte normativo a reger a relações

intersubjetivas.

A operacionalização da boa-fé objetiva por meio dos tribunais permitiu o estabelecimento do

“paradigma da concreção jurídica” atribuindo aos magistrados o papel inovador de criar o

direito.

Esse processo de criação é sintetizado por Wieacker ao perceber a tensão existente entre a

estrutura normativa legal do direito escrito e a aplicação judicial do direito baseado nas

32 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 50. 33 No original: “El problema fundamental de una cláusula general como la del parágrafo 242 concierne a la relación del juez con el Derecho escrito. Por consiguiente, la clasificación del material debe fundarse en la correspondiente relación entre la aplicación del Derecho basada en el parágrafo 242 y el resto de la regulación legal.” 34 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 52. 35 COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In Estudos de direito civil brasileiro e português. (I Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil). São Paulo: Revista dos Tribunais. 1980, pp. 46 e 47.

206

cláusulas gerais tal como a da boa-fé objetiva. Conforme observado pelo Autor, esse

processo de criação pode ser sintetizado nos seguintes termos:

“[…]a tensão entre a estrutura normativa legal e a aplicação judicial do direito também ocorre em nosso caso e faz necessária uma classificação similar: a) O juiz atua no cumprimento estrito do ordenamento jurídico escrito e em virtude de seu do ‘officium iudicis’ se limita a concretizar o projeto previamente estabelecido e idealizado na regulação legal. b) O juiz atua com maior liberdade e ‘praeter legem”, quando exige às partes que no exercício ou na defesa de seus direitos se comportem de maneira justa. […] c) Finalmente, a aplicação do §242 se realiza “contra legem”, por meio da ruptura que a jurisprudência empreende tanto em um novo direito judicial, de que vai além da realização de um projeto legislativo, como da salvaguarda do direito e da justiça no comportamento concreto das partes.”36, 37

Nesse passo, sobreleva o estudo dos precedentes jurisprudenciais quer como fonte de direito,

quer para analisar a coerência com o ordenamento, mas, mais do que isso, deve servir como

“substrato a partir da qual se constrói ou se reconstrói a teoria afirmada”38. “É importante

frisar que toda decisão judicial encerra uma operação complexa de raciocínio, não podendo

ser considerada como um fim último, mas, sim, como um destacado elemento no processo

contínuo de resolver pendências no foro do direito. O Judiciário não se presta exclusivamente

para decidir conflitos concretos, mais ainda deve cuidar para que as suas decisões possam

servir de orientação para casos futuros”.39

Deve-se ter presente que as normas que contêm cláusulas gerais, por serem dotadas de uma

vagueza semântica que lhes é ínsita, permite ao intérprete utilizá-las nos mais variados e

imprevistos casos, com variadas interpretações, fazendo com que essas normas jurídicas se

mantenham sempre atuais correspondendo aos anseios da sociedade durante vários momentos

históricos.

36 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 51. 37 No original: “[…] Con todo, la tensión entre la estructura normativa legal y la aplicación judicial del Derecho se da también en nuestro caso y hace necesaria una clasificación semejante: a) El juez actúa en cumplimiento estricto del ordenamiento jurídico escrito y en virtud de su ‘officium iudicis’ se limita a concretar el proyecto previamente establecido y planificado en la regulación legal. b) El juez actúa con mayor libertad y ‘praeter legem’, cuando exige a las partes que en ele ejercicio o defensa de sus derechos se comporten de manera justa. […] c) Finalmente, la aplicación del 242 se realiza ‘contra legem’, mediante la ruptura que la jurisprudencia acomete hacia un nuevo Derecho judicial, que va más allá, tanto de la realización de un proyecto legislativo como de la salvaguardia del Derecho e la justicia en el comportamiento concreto de las partes.” 38 PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras parcelares da Boa-fé objetiva e venire contra factum proprium. Revista de direito privado, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 252-278, 2006, 39 CRUZ E TUCCI, José Rogério, Precedente judicial como fonte do direito, São Paulo, RT, 2004, p. 25.

207

Dessa maneira, um dispositivo legal que prescreva que as partes devem respeitar a boa-fé no

curso da relação processual seguramente se manterá atual por séculos, pois o que variará ao

longo do tempo será apenas o significado a ser atribuído à boa-fé.

A boa-fé objetiva apresenta-se como “verdadeira pauta orientadora da aplicação e da criação

do direito” ocupando “renovado interesse na temática metodológica da realização das normas

jurídicas como atividade institucional de decisão dos problemas jurídicos”. “A discussão

metodológica atual enfatiza a busca da solução justa para o caso concreto, ressaltando a

importância dos valores, princípios, conceitos indeterminados e cláusulas gerais na aplicação

e na realização do direito.” Aí é que está a importância da atividade jurisprudencial na

transformação da cláusula geral da boa-fé em proposição jurídica positiva cujo conteúdo é

construído e reconstruído diante das diversas manifestações dos casos concretos.40

7.2. As Manifestações da Boa-Fé Objetiva nas Figuras: Supressio, Surrectio, Tu Quoque e

Venire Contra Factum Proprium.

7.2.1. Supressio e Surrectio

Como manifestação típica do abuso do direito, a supressio importa a impossibilidade de não

mais poder ser exercida uma posição jurídica em razão de certas circunstâncias e por já ter

transcorrido certo lapso temporal, e por contrariar a boa fé.41

“Supressio é a expressão proposta para traduzir Verwirkung, isto é, a situação em que incorre

a pessoa que, tendo suscitado noutra, por força de um não-exercício prolongado, a confiança

de que a posição em causa não seria actuada, não pode mais fazê-lo, por imposição da boa-fé.

A sua aceitação no Processo é pacífica, levantando apenas dúvidas quando, através dela, se

tente flexibilizar a presença dos prazos rígidos, típicos do direito não-adjectivo. A

problemática real escondida pela supressio não aconselha uma transposição simples do

Direito Civil para o processo, neste domínio.”42

40 AMARAL, Francisco. A boa-fé no processo romano. Revista Jurídica. vol. 1 n. 1. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UFRJ, 1995, pp. 33 e 35. 41 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 56. 42 Idem, Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 378. nota de rodapé nº 443.

208

Caracteriza-se a supressio o não exercício de um direito por um determinado lapso de tempo,

situação na qual esse direito não mais pode ser exercido, pois, do contrário, frustraria a

confiança da contraparte violando a boa-fé. Seria “uma demora desleal no exercício de um

direito.”43

No campo processual, conforme assinalado por Menezes Cordeiro, a aplicação da supressio é

limitada em razão das rígidas disposições sobre os prazos processuais, sendo que, o exercício

do direito, extemporaneamente, é alcançado pela preclusão ante a dinamicidade do caminhar

do processo.44

Segundo Menezes Cordeiro, a utilização da “supressio como dispositivo destinado a

complementar as regulações legais sobre a influência do tempo nas relações jurídicas foi

preconizada por Jünger Schmidt.” 45

No Tribunal do Rio Grande do Sul restou configurada a surrectio em ação de prestação de

alimentos. Ajuizada ação de alimentos do neto em face do avô, a mesma foi julgada

procedente. Em sede de apelação, a sentença foi reformada desonerando o avô da prestação de

alimentos. Entretanto, mesmo com decisão favorável, por meio de embargos de declaração o

avô renunciou à exoneração obtida judicialmente afirmando que não fora assistido por

advogado e que não seria sua a assinatura. No julgamento dos embargos, o Desembargador-

Relator afirmou que a sentença já havia transitado em julgado, entretanto havendo interesse, o

avô poderia entabular um acordo e submetê-lo à homologação judicial.

O fato é que o avô continuou prestando alimentos por um período de vinte meses, quando,

então, aviou ação de exoneração de prestação de alimentos, tendo o processo sido extinto sem

julgamento do mérito, por entender que, no julgamento dos embargos já havia sido exonerada

a prestação da pensão e que, portanto, faltava interesse processual ao autor. Contudo, por

economia processual, autorizou que fosse determinado ao órgão pagador o cancelamento do

desconto em folha da pensão alimentícia.

43 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 779. 44 Ibidem, p. 803. nota de rodapé nº 571. 45 Ibidem, p. 816.

209

Essa sentença foi objeto de apelação interposta pelo neto. O apelado (o avô), em contra-

razões, alegou que havia sido exonerado da prestação de alimentos quando do julgamento dos

embargos infringentes (da outra ação).

No julgamento dessa apelação, verificou o Tribunal que estava diante de uma situação fática

(a prestação de alimentos perdurou por mais vinte meses, com desconto em folha) e de uma

situação jurídica (provimento judicial exonerando a prestação alimentar). A situação jurídica

transitou em julgado em 12.2001, a ação de exoneração da prestação alimentícia foi proposta

em 08.2003.

Ademais, o Tribunal ressaltou que a renúncia do avô foi expressa nos seguintes termos

“Declaro, para os devidos fins de direito, que renuncio aos direitos emanados da decisão

exarada em sede de embargos Infringentes (processo nº. 70003114832), comprometendo-se a

continuar pensionando o meu neto PATRICK H. A., conforme estabelecido na sentença.”

À vista das situações de fato e jurídica, o Tribunal entendeu que, após a decisão na ação de

prestação de alimentos, que transitou em julgado, foi criada uma nova relação jurídica,

distinta da anterior, concluindo pela presença da surrectio, nos seguintes termos:

“A surrectio expressa a circunstância do surgimento, de forma complementar ao direito legislado, contratado ou judicial, de um direito não existente antes (em termos jurídicos). Direito este que, na efetividade social, já vinha sendo considerado como presente. [...] Para haver surrectio, o que se requer, portanto, é uma previsão de confiança, pois a repetição sistemática, constante e continuada de um determinado comportamento cria direito, de modo a imputar ao prejudicado a boa-fé subjetiva do beneficiário. Direito esse que se consubstancia na expectativa, a ser mantida pelo menos como probabilidade, da regularidade e continuidade da situação fática subjacente, ou, por outro lado, da ausência de qualquer outra solução ou resolução diferente. Essa é exatamente a situação dos autos. Por fim, o apelado sequer trouxe na sua inicial explicação acerca da permanência do pensionamento, mesmo passado 1 (um) ano e meio da exoneração. Bem de ver ainda que poderia ter simplesmente requerido o cancelamento do desconto nos próprios autos da ação de alimentos. O fato do apelado não ter requerido nos autos da ação de alimentos a cessação dos descontos reforça a idéia de que criou-se uma nova obrigação, decorrente de uma nova relação jurídica baseada na boa-fé objetiva, que deve nortear os contatos sociais da vida de relação. Essa nova relação deve ser enfrentada pelo juiz a quo, examinando o trinômio alimentar, trazido pelo próprio apelado na inicial. Assim, o feito comporta julgamento de mérito, com o exame do trinômio alimentar (necessidade, possibilidade e proporcionalidade).”

210

Destarte, foi dado provimento à apelação para desconstituir a sentença.

Na concepção de Schmidt, “as regras codificadas quanto ao influxo da efectividade sobre a

regulação jurídica constituem, até pela sua diversidade, leges speciales. Sobre elas, como

complementação do Direito legislado, ergue-se a lex generalis, suscetível de revestir dois

aspectos: ora faz desaparecer um direito que não corresponda à efectividade social – é a

supressio – ora faz surgir um direito não existente antes, juridicamente, mas que, na

efectividade social, era tido como presente – é a surrectio.”46

A supressio e a surrectio, conforme observado por Schmidt, são figuras diretamente ligadas à

“repercussão do tempo nas situações jurídicas.”

No que tange à surrectio, para que a mesma reste configurada “[...] exige-se um certo lapso de

tempo, por excelência variável, durante o qual se actua uma situação jurídica em tudo

semelhante ao direito subjectivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objectiva de factores

que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de

previsões negativas que impeçam a surrectio.”47

Para Diez-Picazo a figura da supressio é caracterizada como ‘atraso desleal’:

“Segundo tem estabelecido a doutrina e a jurisprudência alemãs, um direito subjetivo ou uma pretensão não pode ser exercitada quando o titular não só não se preocupou durante muito tempo de fazer valer esse direito ou essa pretensão, mas que, inclusive, deu lugar com sua atitude omissiva a que o adversário de pretensão pudesse esperar, objetivamente, que o direito não mais seria exercitado. O exercício do direito em tais casos se torna inadmissível. Três são os elementos da figura que examinamos: a omissão no exercício do direito, o transcurso de um período de tempo e a objetiva deslealdade e intolerabilidade do posterior exercício atrasado.”48,

49

46 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 816. 47 Ibidem, pp. 821-822. 48 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 21-22 49 No original: “[…] El retraso desleal. Según han establecido la doctrina y la jurisprudencia alemanas un derecho subjetivo o una pretensión no puede ejercitarse cuando el titular no sólo no se ha preocupado durante mucho tiempo de hacerlos valer, sino que incluso ha dado lugar con su actitud omisiva a que el adversario de la pretensión pueda esperar objetivamente que el derecho ya no se ejercitará. El ejercicio del derecho en tales casos se torna inadmisible. Tres son los elementos de la figura que examinamos: la omisión del ejercicio del derecho; el transcurso de un periodo de tiempo y la objetiva deslealtad e intolerabilidad del posterior ejercicio retrasado.”

211

Conforme ressaltado por Menezes Cordeiro, a supressio não se confunde com caducidade,

decadência, preclusão, pois esses institutos assumem outros significados técnicos que

traduzem efeitos e não causas.50

7.2.2. A Proibição de Consubstanciar Dolosamente Posições Processuais – Tu Quoque

Menezes Cordeiro aponta que a Proibição de Consubstanciar Dolosamente Posições

Processuais “tem sido aprofundada no Direito civil em torno da locução tu quoque e que se

trata de uma via que poderia ser aproveitada com mérito no processo.”51

Tal regra é aflorada quando uma “pessoa viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso,

exercer situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído.”52 Uma pessoa que

desrespeita uma orientação ou um comando não pode, a seguir, exigir que outro venha

observá-la. Conforme observado por Menezes Cordeiro, a contradição não está no

comportamento, mas no padrão ou ‘bitolas’ utilizadas no julgamento de si mesmo e de

outros.53

No Código Civil, em matéria contratual, o tu quoque encontra-se expressamente previsto no

art. 476 do CCB, que estabelece a exceptio non adimpleti contractus, ou exceção de contrato

não cumprido. A disciplina veiculada no aludido dispositivo é que uma parte que não cumpriu

com a sua obrigação não pode exigir que a outra cumpra.

Wieacker ao tratar da figura do tu quoque ressalta que:

“[...] somente a fidelidade jurídica pode exigir fidelidade jurídica. [...] O tu quoque impede que a outra parte, especialmente na defesa, recorra a normas jurídicas que ela mesma não cumpriu. A exceção de aquisição de um direito de má-fé tem seu

50 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 56. 51 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 377. final da nota de rodapé nº 440. Exemplificando esse tipo de concretização, Menezes Cordeiro traz à colação decisão na qual “por força de comportamento honesto no processo, derivado da prescrição da boa fé - §242 BGB – uma parte não pode beneficiar do não decurso de um prazo cuja notificação, que produziria a interrupção, foi dolosamente impedida.” Idem op. cit. 52 Ibidem, p. 837. Idem, Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 60. 53 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 843.

212

fundamento na conhecida ‘regra de ouro’ de tradição ética: ‘o que não queres que te façam, não o faças a outro’. [...] Essa regra se baseia em uma lei estrutural das comunidades jurídicas, segundo a qual, os sujeitos jurídicos criam, eles mesmos, os critérios segundo os quais eles devem ser julgados. As comunidades jurídicas se vêem, pois, permanentemente integradas, isto é, criadas e mantidas pela conduta de seus membros. E determinam, portanto, o standard que um pode reclamar enquanto sujeito jurídico. [...] Em outras palavras: a exigência de reciprocidade é um elemento da exigência de igualdade.”54, 55

Ao analisar a figura do tu quoque Aldemiro Rezende Dantas Júnior destaca:

“[...] está ligado ao mesmo vetor axiológico que orienta o brocardo segundo o qual ninguém será ouvido quando invocar em seu favor a própria torpeza. De modo mais específico, se um sujeito violou uma determinada norma jurídica (que pode ser legal ou contratual), não lhe será possível que, posteriormente, venha a pretender exercer a mesma situação jurídica que essa norma lhe havia atribuído, pois é intuitivo que fere de morte a ética que uma pessoa possa desrespeitar um comando normativo e, ao depois, vir a pretender exigir que terceiros acatem esse mesmo comando por ela desrespeitado.”56

Conforme ressaltado pelo Autor, “a expressão significa, literalmente, algo como ‘até tu’,

indicando surpresa pelo fato de que alguém tente se beneficiar de sua própria irregularidade

no agir”57, reportando-se à célebre frase de Júlio César: “Tu quoque, Brutus, fili mi!”

Menezes Cordeiro observa que “o venire contra factum proprium poderia, em leitura

apressada, integrar o tu quoque.” Entretanto, analisando as bases de um e de outro instituto e

ainda que se alargassem as bases do venire o Autor demonstra a impossibilidade dessa

integração: “Recorde-se que o vcfp é proibido em homenagem à proteção de confiança da

pessoa que se fiou no factum proprium. [...] Embora no tu quoque seja de valorar – o que não

tem sido feito – a posição da contraparte que prevarica em segundo lugar, não há que lhe

inserir uma situação de confiança similar ou paralela à que informa o vcfp.”58

54 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 66-67 55 No original: “[…] solamente la propia fidelidad jurídica pode exigir fidelidad jurídica. […] Un caso de aplicación más concreto es la fórmula ‘tu quoque’, que impide a la otra parte, especialmente en la defensa, recurrir a normas jurídicas que ella misma no cumplió. La excepción de adquisición del derecho de mala fe tiene su fundamento en la conocida regla de oro de tradición ética: ‘lo que tu no quieras que te hagan no se lo hagas tu a otro’. […] Esta regla se basa en una ley estructural de las comunidades jurídicas, según la cual los sujetos jurídicos se ven, pues, permanentemente integradas – esto es, creadas e mantenidas – por la conducta de sus miembros. Y determinan por tanto el standard que uno puede reclamar en cuanto sujeto jurídico. […] Con otras palabras: la exigencia de reciprocidad es un elemento de la exigencia de igualdad”. 56 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: 2007, p. 378. 57 Ibidem, p. 379. 58 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 843.

213

Nesse mesmo sentido, Aldemiro Rezende Dantas Júnior defende a impossibilidade dessa

integração das figuras do tu quoque e do venire contra factum proprium. Segundo o Autor, “a

essência do venire repousa na proteção à boa-fé, enquanto o cerne do tu quoque se encontra

na repressão à má-fé.”59 Para melhor compreensão o Autor faz a seguinte esquematização:

“[...] as situações que levam ao venire contra factum proprium têm por escopo a proteção à boa-fé do outro sujeito, ou seja, da contraparte, podendo ser assim esquematizada: a) um dos sujeitos adotou um determinado comportamento; b) em virtude desse comportamento, surgiu no outro uma confiança sobre qual seria o comportamento posterior; c) esse comportamento posterior, no entanto, veio a contrariar o primeiro, de modo a ser quebrada a confiança da contraparte; d) a proibição ao venire, então, terá a finalidade de proteger essa confiança que foi quebrada, e que em última análise, [...], concretiza a proteção à boa-fé. [...] Na figura do tu quoque, no entanto, não se mostra indispensável o surgimento dessa confiança na contraparte, pois o que se busca reprimir é a má-fé, a malícia do sujeito que adotou valorações diferentes para uma mesma situação jurídica.”60

A figura do tu quoque estabelece um padrão de convivência em sociedade norteado pela

observância das normas que exigem reciprocidade de todos os seus membros. Nesses termos,

todos estão sujeitos às situações jurídicas decorrentes dessas normas. Aquele que viola a

norma jurídica não pode pretender que o outro a observe. As ‘bitolas’ de comportamento são

aplicáveis a todos, indistintamente, por veicular esse padrão ou standard jurídico.

No que tange à manifestação da boa-fé objetiva na figura do tu quoque, o STJ negou

provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança nº. 14.908/Ba no qual restou

configurado o comportamento contraditório do recorrente consistente no tu quoque.

A situação em pauta refere-se a oficial de registro de imóveis afastado de suas funções porque

teria cometido diversos crimes em razão de sua função. O acusado impetrou mandado de

segurança contra seu afastamento, sob a alegação de violação ao às garantias constitucionais

processuais, mas não obteve sucesso. Inconformado, interpôs Recurso Ordinário.

Entretanto, aquela Corte entendeu que a pretensão do recorrente “contraria a lógica jurídica e

a razoabilidade”, visto que, dentro do devido processo legal, restaram apurados indícios

veementes da prática de condutas ilegais no exercício de funções, bem como, da quebra do

sigilo bancário, por ordem judicial, foram apurados fortes indícios do cometimento dos crimes

59 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: 2007, p. 388. 60 Ibidem, p. 388.

214

a ele imputados, o que configuraria comportamento contraditório, conforme trecho da ementa:

“Alegar o recorrente que o afastamento de suas funções, bem como a devida apuração dos

fatos em face a fortes indícios de cometimento de crimes contra a administração, inclusive já

com a quebra do sigilo bancária decretada, fere a direito líquido e certo, é contrariar a lógica

jurídica e a razoabilidade. A bem da verdade, essa postura do recorrente equivale a

comportamento contraditório – expressão particular da teoria dos atos próprios -, sintetizado

no anexim tu quoque, reconhecido nessa corte nas relações privadas, mas incidente, também,

nos vínculos processuais, seja no âmbito administrativo ou judicial.”61

Na situação sob análise fica patente a contrariedade da conduta exigida pelo Recorrente ao

exigir a observância de normas processuais as quais ele mesmo não observou. Invocar direito

líquido e certo de permanecer no cargo é contrariar a fidelidade jurídica exigida de todos os

membros da comunidade, visto que, dentro do devido processo legal, foram apurados diversos

indícios de crimes que o mesmo teria cometido, o que redunda em clara manifestação do tu

quoque.

7.2.3. O Venire Contra Factum Proprium

No ordenamento espanhol o venire contra factum proprium encontra o seu equivalente na

Teoria dos Atos Próprios, a revelar que ninguém pode colocar-se em contradição com seus

próprios atos, exercendo conduta com outra anteriormente deliberada e juridicamente eficaz.

Derivada do princípio da boa-fé, e da exigência de observar nas relações jurídicas um

comportamento coerente, constitui um limite ao exercício de direitos subjetivos. O princípio

da boa-fé não tem sua aplicação restringida na relação jurídica que mediará entre as partes,

mas também ao processo no qual se desenvolve a controvérsia com a finalidade de preservar a

segurança jurídica. O ordenamento jurídico impõe aos sujeitos o dever de proceder com

retidão e honradez, resultando daí inadmissível que os litigantes contravenham seus próprios

atos, assumindo uma atitude contraditória com uma conduta anterior juridicamente

relevante.62

61 STJ: RMS 14.908, Proc. 2002/0063237-1/BA, Segunda Turma, Decisão Unânime, Relator Ministro Humberto Martins, Julg. 06.03.2007, DJU 20.03.2007, Pág. 256. 62 SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 860-861, passim.

215

O venire contra factum proprium é uma manifestação do abuso do direito, o qual postula

estruturalmente “duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só

que a primeira – o factum proprium – é contraditada pela segunda – venire. O óbice que

justificaria a intervenção do sistema residiria na relação de oposição que, entre ambas, se

possa verificar.”63

De acordo com Diez-Picazo:

“A doutrina moderna, sobretudo a doutrina alemã, elaborou, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de supostos típicos aos quais parece aplicável a idéia de que a boa-fé opera um limite ao exercício dos direitos subjetivos. Estes casos podem ser enumerados do seguinte modo: 1º) Venire contra factum proprium: [...] ninguém pode vir contra seus próprios atos. Com isso se quer dizer que o ato de exercício de um direito subjetivo ou de uma faculdade é inadmissível quando com ele a pessoa se coloca em contradição com o sentido que, objetivamente, e de acordo a boa-fé havia que dar a sua conduta anterior. A regra veda uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior. [...]” 64, 65

Segundo Menezes Cordeiro, o venire pode se configurar de maneira positiva por uma ação

contrária àquilo que o factum proprium faria esperar e será negativo quando o factum

proprium é contrariado por uma omissão.66

“O fundamento da regra segundo a qual ninguém pode ir contra seus próprios atos, reside

precisamente no princípio da boa-fé, como assim admite unanimemente a doutrina

jurisprudencial.”67, 68, 69

63 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 50. 64 DIEZ-PICAZO, Luiz. Prólogo in WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 21-22. 65 No original: “La doctrina moderna, sobre todo la doctrina alemana, ha elaborado, con base en la jurisprudencia de los tribunales, una serie de supuestos típicos a los cuales parece aplicable la idea de que la buena fe opera como un límite del ejercicio de los derechos subjetivos. Estos casos pueden enumerarse del siguiente modo: 1º ‘Venire contra factum proprium’. [...] nadie pude venir contra sus propios actos. Con ello se quiere decir que el acto de ejercicio de un derecho subjetivo o de una facultad es inadmisible cunado con él la persona se pone en contradicción con el sentido que objetivamente y de acuerdo con la buena fe había que dar a su conducta anterior. La regla veda una pretensión incompatible o contradictoria con la conducta anterior. […]” 66 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 50. 67 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113 68 No original: “[...] el fundamento de la regla según la cual nadie puede ir contra sus propios actos, reside precisamente en el principio general de la buena fe, como así lo admite unánimemente la doctrina jurisprudencial”

216

Para Diez-Picazo a atuação de acordo com a boa-fé é uma exigência de um comportamento

coerente. Significa dizer que, dentro de uma relação jurídica a confiança suscitada deve ser

honrada ou, não deve ser frustrada com um comportamento incompatível com ela. Daí advir

que, a exigência de um comportamento coerente está estreitamente relacionada à boa-fé e à

proteção da confiança.”70, 71, 72

Por outro lado, Wieacker apresenta “o parágrafo 242 como máxima de conduta ético-

jurídica”. O § 242 do BGB veicula a cláusula geral da boa-fé objetiva, conhecido como

“parágrafo de ouro” por estabelecer um padrão de comportamento ético.

Nesse contexto, são inadmissíveis as condutas que não se coadunam com a boa-fé ou que

sejam com ela contrárias.73 “Há que incluir nesse contexto, todas aquelas máximas em virtude

das quais se exige judicialmente a uma parte processual uma conduta condizente com uma

ético-jurídica, embora essa exigência não esteja vinculada a uma censura ético-jurídica.”74, 75

Dentre essas máximas destaca-se “venire contra factum proprium” e “tu quoque”.

Concernente ao ‘venire contra factum proprium’ Wieacker destaca:

“Esta máxima expressa de forma a essência da obrigação de comportar-se de acordo com a boa-fé que, a partir dela, ilumina a totalidade do princípio. A inadmissão da contradição com uma própria conduta prévia se baseia na exigência da ‘fides’ – confiança – que, fundamentalmente, impõe a manutenção da palavra, o ‘pacta sunt servanda’, e a restrição do dever de prestação iníqua através do princípio da boa-fé foi levada a cabo pelo antigo conceito romano da ‘fides’, através

69 Picó refere-se à doutrina de DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch, 1963, pp. 143 e 229 e PUIG BRUTAU, J. La doctrina de los actos propios. Barcelona: Ariel, 1951, pp. 102, 103, 112 e 115. 70 DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de lo propios actos. Barcelona: Bosch, 1963, p. 142. 71 No original: “Una de las consecuencias de obrar de buena fe y de la necesidad de ejercitar los derechos de buena fe, es la exigencia de un comportamiento coherente. La exigencia de un comportamiento coherente significa que, cuando una persona, dentro de una relación jurídica, ha suscitado en otra con su conducta una confianza fundada, conforme a la buena fe, en una determinada conducta futura, según el sentido objetivamente deducido de la conducta anterior, no debe defraudar la confianza suscitada y es inadmisible tota actuación incompatible con ella. La exigencia jurídica del comportamiento coherente está de esta manera estrechamente vinculada a la buena fe y a la protección de la confianza.” 72 “A idéia de ‘coerência do comportamento’ e da ‘exigência de comportamento coerente’, como derivação da boa-fé, adveio de BETTI, ‘Obbligazioni’, p. 91, também ‘Teoria generale del negozio giuridico’, 2. ed. Torino, 1950, p. 480 e segs, apud DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los propios actos. Barcelona: Bosch, 1963, p. 142, nota de rodapé nº 51. 73 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, p. 59. 74 Ibidem, p. 60. 75 No original: “Hay que incluir en este apartado todas aquellas máximas en virtud de las cuales se exige judicialmente a una parte procesal una conducta personal ético-jurídica, aunque esta exigencia no se vincula con una censura ético-jurídica (‘dolus praesens’).”

217

do elementar entendimento de que a concepção textual do vínculo devia ser substituída por uma concepção leal do mesmo. Resumindo: em lugar da letra, o espírito da obrigação. O elemento duradouro nesse processo de mudança ético-jurídico vinha constituído pela virtude jurídica da ‘constantia’, da lealdade, que torna incompatível a contradição própria com a responsabilidade jurídica. O princípio ‘venire contra factum proprium’ está profundamente arraigado na justiça pessoal, a cujo elemento mais interno pertence à verdade.”76, 77

“O venire contra factum proprium opera [...] por força da situação de confiança suscitada na

contraparte, que o Direito entende dever proteger.”78

O livre exercício de um direito pode ser limitado quando contrarie conduta anterior de seu

titular, atuando de forma incoerente. Significa dizer que, uma conduta realizada por alguém

pode limitar futuras atuações se com estas forem incompatíveis por frustrar a confiança

depositada por terceiros naquele primeiro agir.79, 80

Menezes Cordeiro assinala que a fundamentação dogmática da proibição do venire assentada

na doutrina da confiança importa tornar inadmissível a conduta contrária à legítima confiança

depositada no factum proprium. “[...] o princípio da confiança surge como uma mediação

entre a boa fé e o caso concreto.”81

Diez-Picazo anota que:

76 WIEACKER, Franz. El principio general de la buena fe. Tradução de Jose Luis Carro. Prólogo de Luiz Diez-Picazo. Madri: Civitas. 2. ed. 2. reimpr. 1986, pp. 60-61. 77 No original: “Esta máxima expresa de forma tan inmediata la esencia de la obligación de comportar-se de acuerdo con la buena fe que a partir de ella se alumbra la totalidad del principio. La inadmisión de la contradicción con una propia conducta previa se basa en la misma exigencia de ‘fides’ que fundamentalmente impone el mantenimiento de la palabra, el ‘pacta sunt servanda’, y la restricción del deber de prestación inicua a través del principio de buena fe, fue llevada a cabo por el antiguo concepto romano de la ‘fides’ a través del elemental entendimiento de que la concepción textual del vínculo debía ser sustituida por una concepción leal del mismo. Dicho más concisamente: en lugar de la letra, el espirito de la obligación. El elemento duradero en este proceso de cambio ético-jurídico venía constituido por la virtud jurídica de la ‘constantia’, de la lealtad, que hace incompatible a la contradicción propia con la responsabilidad jurídica. El principio ‘venire contra factum proprium’ esta profundamente arraigado en la justicia personal, a cuyo elemento más interno pertenece la veracidad.” 78 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 813. 79 PICÓ I JUNOY, Joan. El principio de la buena fe procesal. Barcelona: J.M. Bosch Editor. 2003, p. 113. 80 No original: “El libre ejercicio de un derecho puede verse limitado cuando va en contra de la propia conducta de su titular, actuando de forma incoherente, esto es, de mala fe. En consecuencia, la conducta observada por una persona en un determinado momento puede vincularle, restringiendo sus posibles actuaciones posteriores, que serán inadmisibles cuando pretenda hacer valer un derecho en contra de su propia conducta previamente realizada, traicionando así la confianza que los terceros hayan podido depositar en él.” 81 MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa ‘in agendo”. Coimbra: Almedina. 2006, p. 51.

218

“[...] o fato de que uma pessoa trate, em uma determinada situação jurídica de obter a vitória em um litígio agindo contraditoriamente com uma conduta anterior, constitui um proceder injusto e desleal. A pretensão assim defendida não pode prosperar, nem pode ser acolhida, devendo ser sancionada, visto que a falta de lealdade com tenha sido formulada deve ser desestimulada. A inadmissibilidade do ‘venire contra factum proprium’ é viável por derivação necessária e imediata de um princípio universalmente reconhecido que impõe o dever de proceder lealmente nas relações jurídicas: a boa-fé.”82, 83

O venire contra factum proprium na acepção dada por Alejandro Borda significa que “[...] A

ninguém é lícito ir contra seus próprios atos quando estes são expressão do consentimento de

quem os executa e obedecem ao desígnio de criar, modificar ou extinguir relações de

direito.”84, 85

O alcance da boa-fé objetiva permeia todos os sistemas jurídicos. Conforme destacado por

Solimine o seu campo de aplicação não se restringe ao do direito codificado podendo ser

encontradas manifestações da boa-fé objetiva fundamentando institutos até mesmo da

common law como ocorre com a figura do estoppel, versão inglesa da ‘doutrina dos próprios

atos’ aplicável “para impedir que uma pessoa negue suas próprias condutas quando o outro se

guiou nas mesmas e adaptou àquelas o seu modo de proceder.”86, 87

82 DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los actos propios. Barcelona: Bosch. 1963, p. 133. 83 No original: “[...] el hecho de que una persona trate, en una determinada situación jurídica, de obtener la victoria en un litigio, poniéndose en contradicción con su conducta anterior, constituye un proceder injusto y falto de lealtad, y que, en un caso semejante, la pretensión así defendida no debe prosperar, ni ser acogida, sino que la falta de lealtad con que ha sido formulada debe ser sancionada con la desestimación. Así se comprende que la inadmisibilidad de ‘venire contra factum proprium’, que no es sostenible como un autónomo principio general del Derecho, sea fácilmente viable como derivación necesaria e inmediata de un principio general universalmente reconocido: el principio que impone un deber de proceder lealmente en las relaciones de derecho (buena fe0.” 84 BORDA, Alejandro. La teoría de los propios actos. Buenos Aires: Abeledo-Perrot. P. 52. apud SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 861. 85 No original:”A nadie le es lícito ir contra sus propios actos cuando estos son expresión del consentimiento de quien los ejecuta y obedecen al designio de crear, modificar o extinguir relaciones de derecho.” 86 RUBISNTEIN, R. Iniciación al derecho inglés. (trad. Jardí) apud SOLIMINE, Omar Luis. La buena fe en la estructura procesal. In Tratado de la buena fe en el derecho. Tomo I. CÓRDOBA, Marcos (Dir.). 1. ed. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 861. 87 No original: “El referido principio se caracteriza por otorgar al sistema jurídico una nota de distinción que aparece tanto en la base o fundamento del todo como de las instituciones o normas aisladas. Prueba de ello es que dicho principio es de aplicación no solo a los derechos codificados sino también en sistemas como el Common Law donde muchas instituciones propias del sistema anglo-norteamericano constituyen aplicaciones fundadas en el principio de buena fe como modo de incorporar al campo del derecho valores ético-sociales tales como el respeto mutuo y la corrección en el trato. […] Otro caso típico es el estoppel o ‘stoppel’, versión inglesa de la denominada doctrina de los actos propios, aplicable ‘para impedir que una persona repudie sus propios actos o conductas cuando otra persona se ha guiado en los mismos y ha adaptado a aquéllos su modo de proceder. En tales casos, la ley no admite una repudiación, pusto que de lo contrario, no sería justo y equitativo.”

219

De acordo com Judith Martins-Costa, na common law o instituto do estoppel “cujo campo de

aplicação primordial é o processo e cuja função é flexibilizar o formalismo processual

vedando à parte, que, por suas declarações, atitudes, atos, enfim, conduziu a outra parte a

modificar a sua posição em seu próprio detrimento, respondendo à idéia de inadmissibilidade,

de, no processo, alegar e provar fatos contraditórios com a aparência que a mesma parte que

produz tais alegações e provas havia criado.”88

Judith Martins-Costa, com amparo em Alejandro Borda e Moisset de Espanés, explica que a

proibição de comportamento contraditório no processo, consagrada através do instituto anglo-

saxão do estoppel, funciona como um freio à atuação manifestamente contrária a uma posição

anteriormente assumida, impedindo a negativa ou a afirmação de um fato oposta ao praticado

em momento anterior. Pelo instituto do estoppel “entende-se estabelecida uma presunção iure

et de iure que impede juridicamente que uma pessoa afirme ou negue a existência de um fato

determinado, em virtude de haver anteriormente executado um ato, feito uma afirmação ou

formulado uma negativa em sentido precisamente oposto [...].” 89 Esse entendimento é

comungado por Aldemiro Rezende Dantas Júnior, ressalvando que o estoppel não se confunde

com o venire “ainda que com ele guarde algumas semelhanças, uma vez que a eficácia do

estoppel é similar a algumas das funções desempenhadas pelo venire.” Ressalta que, como

apontado por Judith Martins-Costa, “o estoppel é de uso processual, ligado às provas (em

virtude de presunção juris et de jure) [...]”90

Diez-Picazo explica que a figura anglo-saxônica do estoppel, surge da Teoria dos Atos

Próprios que impede ao litigante atuar em contradição com sua conduta anterior,

configurando-se como uma das regras do fair play processual.91

As aludidas posições doutrinárias vêm denotar que a figura do venire contra factum proprium

tem plena aplicação não só no âmbito das relações privadas, mas também no âmbito

processual.

88 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, pp. 462-463. 89 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 369. 90 DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé. Curitiba: Juruá. 2007, p.297. 91 DIEZ-PICAZO, Luis. La doctrina de los actos propios. Barcelona: Bosch. 1963, p. 67.

220

7.3. A Preclusão Lógica e a Boa-Fé Objetiva

Situações há, no âmbito processual, nas quais o venire contra factum proprium assume a

denominação de preclusão lógica, consoante entendimento sustentado por balizada doutrina92

e jurisprudência.

De fato, a análise da jurisprudência levou a concluir que muitas decisões resolvidas sob o

fundamento da preclusão lógica, na verdade, prestigiam a boa-fé objetiva no âmbito

processual manifestada na figura do venire contra factum proprium.

Para melhor compreender o instituto da preclusão lógica não se pode olvidar que o processo

se desenvolve segundo uma sucessão de atos que são praticados dentro de uma ordem pré-

estabelecida com vistas a assegurar a duração razoável, a segurança e privilegiar a não-

surpresa. “Justifica-se, pois a preclusão pela aspiração de certeza e segurança que em matéria

de processo, muitas vezes prevalece sobre o ideal de justiça pura e absoluta. Trata-se, porém,

de um fenômeno interno, que só diz respeito ao processo em curso e às suas partes.”93

O Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 219435/MG e declarar a ocorrência da preclusão

lógica colocou em relevo a ordem que há de reinar nos meandros processuais. O entendimento

daquela Corte Constitucional pode ser sintetizado na seguinte expressão: “O Direito é

orgânico e dinâmico, não se podendo, sem autorização normativa, voltar a fase ultrapassada”.

O Relatório daquele julgado dá conta de que em ação de execução fiscal que tramitou no

Estado de Minas Gerais o Tribunal de Justiça mineiro julgou “improcedente o pedido

formulado nos embargos à execução fiscal, sufragando tese no sentido da inexistência de

direito à imunidade tributária pleiteada” tendo ficado assentado que se tratava de empresa de

previdência privada. Contra essa decisão foram interpostos embargos declaratórios, que não

foram conhecidos. A empresa, então, manejou o Recurso Extraordinário buscando demonstrar

que se enquadrava como entidade de assistência social.

92 Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. Rio de Janeiro: Forense. 2002; JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense. 2003; SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, 93 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense. 2001, p. 468.

221

O julgamento do Extraordinário que teve início no dia 30.09.1998, sob a relatoria do Ministro

Marco Aurélio, que conhecia do recurso e dava-lhe provimento, foi interrompido frente a

pedido de vistas formulado pelo Ministro Maurício Correa. Entretanto, em 16.12.1998, O

Município recorrido protocolou petição revelando que a Empresa havia quitado o débito

objeto da execução fiscal e requereu a Intimação da Recorrente para que se manifestasse

sobre a perda do objeto do recurso e a desistência da ação. A decisão prolatada nessa decisão

foi nos seguintes termos: “1 - Uma vez prolatada sentença, ainda que concorra a vontade do

réu, descabe agasalhar desistência da ação. A manifestação de vontade das partes não se

sobrepõe à prestação jurisdicional, a ponto de simplesmente fulminá-la. 2 – Indefiro o pedido

de extinção do processo. 3 – Diga à Recorrente – ré na execução fiscal – sobre a perda do

objeto extraordinário, ante a notícia do pagamento do tributo alvo do conflito de interesses. 4

– Publique-se.”

Inconformada a Recorrente aduziu que a questão de fundo não estava no débito em si, mas na

controvérsia da imunidade tributária requerendo, por conseguinte, o julgamento do Recurso

Extraordinário oportunidade em que o Ministro Relator, Marco Aurélio, reafirmou “saltar aos

olhos a preclusão lógica a obstacular a seqüência do julgamento”.

A decisão ficou assim ementada:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PREJUÍZO. LIQUIDAÇÃO DO DÉBITO ENVOLVIDO NA DEMANDA. PRECLUSÃO LÓGICA. Uma vez liquidado pelo contribuinte o débito que motivara a execução fiscal e o ajuizamento dos embargos à execução que, decididos, geraram a interposição do recurso extraordinário, impõe-se a declaração de prejuízo deste último. Descabe transmudar a ação de embargos à execução em ação simplesmente declaratória objetivando elucidar questão referente à imunidade tributária. O Direito é orgânico e dinâmico, não se podendo, sem autorização normativa, voltar a fase ultrapassada.”94

Sob esse espeque, são traçados “limites ao exercício de determinadas faculdades processuais,

com a conseqüência de que, além de tais limites, não se pode usar delas”. A essa

conseqüência Chiovenda atribui o nome de “preclusão”, cuja essência está na “perda, ou

extinção, ou consumação ou, como quer que se diga, de uma faculdade processual pelo só fato

de se haverem atingido os limites prescritos ao seu exercício”.95, 96

94 STF: RE 219435/MG. Tribunal Pleno. Relator Min. Marco Aurélio. Julg. 06.05.1999, DJU 13081999; p. 00019. 95 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. III. Tradução do original italiano Instituzione di diritto procesuale civile. 2. ed. por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 2002, p. 184.

222

A preclusão lógica tem sido entendida como “incompatibilidade lógica” a significar a

realização de “atividade incompatível com o exercício da faculdade”.97

“Diz-se lógica a preclusão quando um ato não pode mais ser praticado, pelo fato de se ter

praticado outro ato que, pela lei, é definido como incompatível com o já realizado, ou que esta

circunstância deflua inequivocamente do sistema.”98

Corrobora esse entendimento a jurisprudência colhida no âmbito dos Tribunais:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INTENÇÃO DE REJULGAMENTO DE DEMANDA ONDE SE DECIDIU PELA IMPOSSIBILIDADE DE RECORRER APÓS HOMOLOGAÇÃO DE PEDIDO DE DESISTÊNCIA DA EXECUÇÃO FISCAL FORMULADO PELO EXEQÜENTE POR OCORRÊNCIA DA PRECLUSÃO LÓGICA. INEXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. NÃO-CONHECIMENTO. APLICAÇÃO DE MULTA. 1. O Estado embargante não logrou apontar omissão, contradição ou obscuridade no decisório embargado, ressaltando-se que, contrariamente ao entendido pelo ilustre Procurador subscritor dos embargos ora em exame, a contradição a autorizar o uso desta via recursal é aquela existente entre um fundamento e outro do julgado ou entre a fundamentação e a parte dispositiva do julgado e não contradição "entre a manifestação do Estado feito em todo o iter dos autos e o contido no acórdão". 2. Embargos declaratórios opostos numa tentativa indisfarçada de rejulgamento da causa, repisando o embargante todos os fundamentos aduzidos na Apelação e no Recurso Especial. 3. Embargos de declaração não conhecidos com aplicação da multa do art. 538, parágrafo único, de 1% (um por cento) sobre o valor da causa, a ser paga ao embargado.”99

“PROCESSUAL CÍVEL. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO. PRECLUSÃO LÓGICA. RECURSO NÃO CONHECIDO. I - A preclusão lógica decorre da incompatibilidade entre a vontade de recorrer e os atos do processo, como o acordo extrajudicial firmado pelas partes. II - Autocomposição já homologada pelo

96 Chiovenda classifica a preclusão em temporal, lógica e consumativa. A preclusão temporal ocorre quando um ato não pode mais praticado em razão de já ter fluido o prazo determinado para tal prática; a preclusão consumativa ocorre com a prática do ato cabível naquele momento, obstando que o ato seja praticado novamente. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. III. Tradução do original italiano Instituzione di diritto procesuale civile. 2. ed. por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 2002, p. 184. Nesse mesmo sentido, dentre outros: ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil . vol. II. Rio de Janeiro: Forense. 1989; ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. Vol. I. 7. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 507; GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 2. vol. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 23. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense. 2001, p. 468. 97 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. III. Tradução do original italiano Instituzione di diritto procesuale civile. 2. ed. por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller. 2002, p. 184. 98 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. vol. I. 7. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 507. 99 STJ: EDcl-RESP 618642/MT. Primeira Turma. Relator Min. José Augusto Delgado. Julgamento em 08.03.2006, DJU 18.04.2006, Pág. 218.

223

magistrado de primeiro grau, falta de pressuposto processual reconhecido. III - Apelação não conhecida.”100

“PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. ACORDO. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO FEITO. PRECLUSÃO LÓGICA. A parte que realiza acordo nos autos pratica ato incompatível com a pretensão de anulação do feito. Operada a preclusão lógica a decisão é no sentido de negar seguimento ao recurso. Agravo de Instrumento. Decisão Monocrática negando seguimento.”101

“PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. INTEMPESTIVIDADE. QUESTÃO APRECIADA. PRECLUSÃO TEMPORAL E LÓGICA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. Ao ter vista dos autos e nenhuma insurgência deduzir sobre a decisão que reconhece a intempestividade do recurso, a parte deixa consumar-se a preclusão temporal, ou seja, deixa de praticar o ato no momento processual cabível, demonstrando, com sua omissão, conformidade com a decisão de intempestividade recursal. 2. Verifica-se a preclusão lógica quando, após o julgamento do recurso de apelação interposto pela segunda ré, a primeira ré, cujo recurso de apelação foi tido como intempestivo ainda em primeiro grau, interpõe Agravo Interno, onde se insurge exclusivamente com relação ao mérito da causa, sem nada argüir, novamente, acerca da tempestividade do recurso de apelação. 3. Recurso conhecido e desprovido.”102

“PROCESSO CIVIL. PETIÇÃO DE DESISTÊNCIA DA AÇÃO. HOMOLOGAÇÃO PELO RELATOR. AGRAVO REGIMENTAL, DO PRÓPRIO AUTOR QUE REQUEREU A DESISTÊNCIA, SUSCITANDO INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA PARA HOMOLOGAÇÃO DA DESISTÊNCIA. FALTA DE INTERESSE RECURSAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO CONHECIDO. I - Não se reconhece interesse recursal àquele que requer a homologação de desistência de pedido rescisório, e depois se insurge contra aludida homologação, ainda que por motivo de competência absoluta, pois lhe foi prestada a jurisdição requerida, qual seja, a extinção do feito sem julgamento de mérito (art. 267, VIII do CPC). II - Há incompatibilidade entre a desistência voluntária, por procurador com poderes específicos e a vontade recursal, em decorrência da preclusão lógica; ainda mais que, ao invés de abreviar o curso do processo, estaria se admitindo uma dilação, implicitamente não pretendida pela parte.”103

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRELIMINAR DE PRECLUSÃO LÓGICA. ACOLHIMENTO. RECURSO NÃO CONHECIDO. A parte que expressamente concorda com a decisão, dela não pode ulteriormente recorrer, em face da preclusão lógica.”104

“PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. PRELIMINAR EX. OFFICIO DE AUSÊNCIA DE PREPARO. DESERÇÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 511, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PARTE SOB O PÁLIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. PAGAMENTO DAS CUSTAS RECURSAIS APÓS INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. PRECLUSÃO LÓGICA. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. O recorrente deve juntar à petição de interposição do recurso,

100 TJES: AC 024.04.900755-2, Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Subst. Samuel Meira Brasil Junior, Julgamento em 15.10.2004, DJES 10.02.2006, 101 TJRS: AI 70007277254/Agudo, Décima Segunda Câmara Cível, Relator Des. Marcelo Cézar Müller, Julgamento em 02.10.2003. 102 TJES: AgRg-EDcl-AC 024.00.001326-8. Segunda Câmara Cível. Relator. Des. Subst. Izaias Eduardo da Silva. Julg. 28.11.2006; DJES 15.12.2006. 103 STJ: AGRAR 1131/DF. Segunda Seção. Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi; Julgamento em 08.11.2000; DJU 05.02.2001; pág. 00069. 104 TJES: AI 024.03.900250-6; Primeira Câmara Cível; Relator Des. Arnaldo Santos Souza; Julg. 07.10,2003; DJES 15/12/2003

224

pena de não conhecimento do apelo, por deserção, comprovante de que providenciou o respectivo preparo, nos termos do art. 511, do Código de Processo Civil. 2. Se o recorrente, estando sob o pálio da Assistência Judiciária Gratuita, efetua o pagamento das custas recursais extemporaneamente, configura preclusão lógica, a ensejar a aplicação do art. 511, do Código de Processo Civil.”105, 106

O STJ no julgamento do Recurso Especial nº. 624.836/Pr enfrentou a questão da preclusão

lógica. No caso levado à apreciação daquela Corte, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e

dos Recursos Naturais e Renováveis - IBAMA – que figurava como ré em ação de

desapropriação, peticionou, em 06.11.2002, com fulcro no art. 46 do Código Processo Civil,

que dispõe sobre o litisconsórcio facultativo, “o desdobramento do litígio em processos

distintos para cada autor” e em 08.11.2002 contestou a referida demanda. “O juízo de

primeira instância, por sua vez, considerou prejudicado o pedido de interrupção do prazo para

contestação apresentado naquela ocasião.” Inconformado, o IBAMA manejou agravo de

instrumento, o qual foi improvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, nos seguintes

termos:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. LITISCONSÓRCIO ATIVO FACULTATIVO. LIMITAÇÃO PELO JULGADOR. IMPOSSIBILIDADE. PRECLUSÃO. A opção para a formação de litisconsórcio facultativo é da parte, não podendo o juiz, pela própria característica de facultativo, determinar que o autor componha com litisconsortes no pólo ativo. Contudo, correta a decisão que reconheceu ter ocorrido a preclusão da oportunidade de impugnar a formação de litisconsortes ativos, porquanto o réu deveria tê-lo feito antes de apresentar a defesa, consoante art. 46, parágrafo único, do Código de Processo Civil.”

Buscando a reforma do aludido acórdão, o IBAMA interpôs o Recurso especial. O voto do

Ministro Relator Franciulli Netto consignou expressamente:

“Nos termos da primeira parte do parágrafo único do artigo 46 do Estatuto Processual Civil, "o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa". Verifica-se que o magistrado possui a prerrogativa de limitar o litisconsórcio facultativo com enfoque na célere solução da lide e, bem assim, para facilitar a defesa. Na mesma linha, no que alude à segunda parte do parágrafo único do artigo 46 do Código de Processo Civil, o réu, com o fito de facilitar sua defesa, poderá formular

105 TJES: AC 024.00.010521-3; Primeira Câmara Cível; Relator Des. Annibal de Rezende Lima; Julg. 01/04/2003; DJES 12/06/2003. 106 No mesmo sentido: TJRS: AG-Int 70008200370/Cachoeira do Sul, Décima Oitava Câmara Cível, Relator Des. Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, Julgamento em 17.06.2004, TJRS: AI 70007362833/Tramandaí, Décima Nona Câmara Cível, Relator Des. Mário José Gomes Pereira, Julgamento em 16.10.2003. TJRS: AI 70007915531/Novo Hamburgo, Décima Nona Câmara Cível, Relator Des. Mário José Gomes Pereira, Julgamento em 26.12.2003. TJRS: AgRg 70007411812/Porto Alegre, Décima Nona Câmara Cível, Relator Des. Mário José Gomes Pereira, Julg. 18.11.2003. TJRS: AG-Int 70007453673/Tramandaí, Décima Nona Câmara Cível, Relator Des. Mário José Gomes Pereira, Julgamento em 09.11.2003.

225

pedido ao magistrado, a fim de que seja limitado o litisconsórcio facultativo. O pleito formulado pelo réu, segundo a dicção do dispositivo legal mencionado, "interrompe o prazo para a resposta, que recomeça da intimação da decisão". Constata-se, sem maiores esforços, que o pedido do réu ao Juízo, no sentido de limitar os litisconsortes facultativos, tem em mira, exclusivamente, facilitar a defesa a ser apresentada por ocasião dos meios processuais colocados à sua disposição. No caso particular dos autos, observa-se que o proceder do réu ao oferecer a contestação está a configurar uma nítida incompatibilidade com o objetivo da norma legal, o qual, repita-se, é facilitar a defesa do réu. Ora, se o réu pede a limitação do litisconsórcio facultativo e, em seguida, apresenta sua contestação; não há falar em dificuldade da defesa, pois, à evidência, esta restou validamente exercida. A questão trazida pelo recorrente está a demonstrar a figura da denominada preclusão lógica, a qual, segundo o magistério do mestre José Frederico Marques, "é a que decorre de incompatibilidade da prática de um ato processual com outro já praticado. Se o inquilino, na ação de despejo, purga a mora, dá-se a preclusão de seu direito processual de contestar a ação" (cf. "Instituições de Direito Processual Civil", 1ª edição, Campinas – S.P. revista, atualizada e complementada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, Millennium Editora, p. 347, 2000).”107

A conduta adotada pelo IBAMA foi manifestamente contraditória e afigura-se em total

descompasso com a boa-fé objetiva que deve nortear os atos das partes.

Na seara recursal, Barbosa Moreira alerta para a ocorrência do venire contra factum proprium

em situações nas quais a impugnação à decisão é, manifestamente contraditória, com ato

anteriormente praticado. Explica o Autor:

“Não se configura renúncia (tácita) ao direito de recorrer a prática, pela parte, de qualquer ato do qual diretamente resulte, no processo, em verdadeira relação de causa e efeito, a decisão a ela desfavorável: v.g., a desistência da ação, a renúncia ao direito postulado, o reconhecimento do pedido. Em regra, nesses casos, será inadmissível o recurso porventura interposto por aquele que a provocou: seria logicamente contraditório admitir-se a impugnação da decisão por quem tenha agido com o fito de fazê-la surgir. A ninguém é dado usar as vias recursais para perseguir determinado fim, se o obstáculo ao atingimento desse fim, representado pela decisão impugnada, se originou de ato praticado por aquele mesmo que pretende impugná-la; no fundo trata-se de aspecto peculiar do princípio que proíbe o venire contra factum proprium, e o impedimento ao recurso, em perspectiva dogmática, subsume-se na figura denominada preclusão lógica, que consiste, como é sabido, na perda de um direito ou de uma faculdade processual pelo fato de se haver realizado atividade incompatível com o respectivo exercício. Trata-se aqui, no entanto, de fatos impeditivos do direito de recorrer, já a renúncia é fato extintivo desse direito.”108

Flávio Cheim Jorge109, ao investigar o chamado interesse de recorrer, analisa a questão sob o

ângulo dos atos praticados pelas partes ou dos pedidos por elas formulados, constando-se que

107 STJ: REsp 624836/PR. Segunda Turma. Relator Ministro Domingos Franciulli Netto. Julgamento em 21.06.2006, DJU 08/08/2006, 108 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. V. Rio de Janeiro: Forense. 2002, p. 340. 109 JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense. 2003, pp. 115-117.

226

impera como solução para esses atos a aplicação, na esfera recursal, do princípio da proibição

do venire contra factum proprium, cuja incidência é indiscutível no Direito Processual Civil.

“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL INEXISTENTE. INTERESSE RECURSAL. AUSÊNCIA. PRECLUSÃO LÓGICA. NÃO CONHECIMENTO. Não se conhece de agravo de instrumento interposto com base no art. 544 do CPC, quando inexistente o Recurso Especial. Tendo a UNIÃO, na instância ordinária, concordado expressamente com a decisão da Corte, não pode reviver a questão controvertida no grau extraordinário, por força da preclusão lógica, a teor do artigo 503 do CPC. Agravo regimental a que se nega provimento.”110 “AGRAVO DE INSTRUMENTO. 1) preliminar de ausência da certidão de intimação da decisão agravada, rejeitada. 2) preliminar de preclusão lógica. Falta de interesse recursal. Acolhimento. Recurso não conhecido. A juntada da certidão de intimação da decisão agravada permite que se afira a tempestividade ou não do recurso. À falta dela, entretanto, é lícito ao agravante demonstrar a tempestividade por outros meios. A prática de ato incompatível com o propósito de recorrer, a exemplo do pedido de prazo para o cumprimento da decisão que se deseja impugnar, implica em falta de interesse e, conseqüentemente, na falta de interesse recursal.”111

Dessa forma, o mencionado princípio coloca-se como integrante do próprio sentido da

segurança do direito devendo ser tratado como preceito que estabelece limitações ao exercício

dos direitos em particular que, em sede recursal, adota a figura da preclusão lógica

(Incompatibilidade Lógica): “que consiste na perda de uma faculdade processual pelo fato de

se haver realizado uma atividade incompatível com o exercício da faculdade”.112

Anderson Schreiber, ao analisar o chamado comportamento contraditório no processo, leciona

que em geral essas situações de venire contra factum proprium se resolvem com institutos já

positivados do Direito Processual Civil como a preclusão lógica, a falta do interesse de agir e

a exigência de celeridade processual. Contudo, observa-se que o fundamento teórico desses

institutos se justifica pela aplicação direta do princípio da proibição ao comportamento

contraditório, ou da boa-fé objetiva em seu perfil processual.113

Didier, por sua vez, destaca que “a preclusão lógica está intimamente ligada à vedação ao

venire contra factum proprium (regra que proíbe o comportamento contraditório), inerente à

cláusula geral de proteção da boa-fé. Considera-se ilícito o comportamento contraditório, por

110 STJ: AGA 442218/MG. Segunda Turma. Relator Ministro Paulo Geraldo de Oliveira Medina. Julgamento em 21.11.2002; DJU 16.12.2002, pág. 00303. 111 TJES: AI 015.03.900043-3; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Arnaldo Santos Souza; Julg. 17/11/2004; DJES 15.02.2006, 112 JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. Rio de Janeiro: Forense. 2003, p. 117. 113 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. ver. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 228.

227

ofender os princípios da lealdade processual (princípio da confiança ou proteção) e da boa-fé

objetiva. [...] A preclusão não é efeito do comportamento contraditório (ilícito); a preclusão

incide sobre o comportamento contraditório, impedindo que ele produza qualquer efeito”.114

Há verdadeira identidade entre a preclusão lógica e o venire contra factum proprium. Nesse

sentido, Didier afirma que “a idéia de preclusão lógica é a tradução, no campo do direito

processual, do princípio da boa-fé objetiva, mais especificamente do vetusto brocardo nemoo

potest venire contra factum proprium”115. A preclusão lógica no bojo do direito processual é

sempre situação de venire contra factum proprium, entretanto o campo de configuração do

venire contra factum no campo processual desborda as situações nas quais se configura a

preclusão lógica.

114 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. vol. I. Salvador: Juspodivm. 2008, p. 275. 115 Ibidem, p. 275.

228

Capítulo VIII - Modelos Concretos da Boa-fé Objetiva Aferíveis da Jurisprudência no

âmbito Processual Civil

Sumário: 8.1. Introdução – 8.2. A Boa-Fé Objetiva como Norma que Veda a Atuação Dolosa

de Posições Processuais – 8.3. A Boa-Fé Objetiva Como Norma Otimizadora das Garantias

Constitucionais Processuais – 8.4. A Boa-fé Objetiva como Norma que Veda o Venire Contra

Factum Proprium no Campo Processual Civil – 8.5. A Boa-Fé Objetiva como Norma a

Assegurar a Prestação da Tutela Jurisdicional em Tempo Razoável – 8.6. A Boa-fé Objetiva

como Norma Orientadora da Atuação do Poder Judiciário Frente aos Jurisdicionados -

8.1. Introdução

Com propriedade, Judith Martins-Costa assegura que a boa-fé objetiva “constitui uma norma

proteifórmica, que convive em um sistema necessariamente aberto, isto é, o que enseja a sua

própria permanente construção e controle.”1 É, justamente, na análise jurisprudencial que

pode-se constatar essa assertiva, à medida que fica hialina “a extensão da sua proteiformidade,

das suas nuanças e do seus campos de atuação.”2

A tentativa de visualizar a formação de modelos jurídicos que pudessem ser construídos com

base nas decisões jurisprudenciais na seara do direito obrigacional, embasados nas funções

para as quais a boa-fé objetiva era invocada a operar, permitiu que Judith Martins-Costa

identificasse e sistematizasse três funções de atuação da boa-fé: a) função de otimização do

comportamento contratual; b) função de reequilíbrio do contrato e c) função de limite no

exercício de direitos subjetivos.3

No campo do direito processual, por sua vez, Menezes Cordeiro assegura que seria possível

agrupar a atuação da boa-fé objetiva em quatro tipos de casos: 1) A proibição de

1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 413. 2 Ibidem, p. 413. 3 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé como Modelo (uma aplicação da Teoria dos Modelos, de Miguel Reale) in Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. vol. II, n. IV, jun./2004, p. 357 e seguintes.

229

consubstanciar dolosamente posições processuais; 2) A proibição de venire contra factum

proprium; 3) A proibição de abuso de poderes processuais e a 4) supressio.

Na análise da jurisprudência dos tribunais-alvo da presente pesquisa, pode-se constatar a

aplicação da boa-fé objetiva como norma que visa precipuamente à estruturação de um

processo justo e équo. Na realidade, trata-se de por em evidência a nova moldura do Processo

Civil fincado nas premissas constitucionais de um contraditório que se estabelece na

dialeticidade das partes e do juiz, que comungam esforços para a construção da justiça do

caso concreto.

Os modelos jurisprudenciais da boa-fé objetiva refletem os ideais do processo cooperativo,

quais sejam garantir os direitos fundamentais da efetividade e da segurança na prestação da

tutela jurisdicional. A boa-fé objetiva como “norma-principial” irradia o seu conteúdo em

todos os espectros do Processo Civil regendo as relações inter-partes (autor e réu); as relações

entre o poder judiciário e os jurisdicionados; otimizando a aplicação das garantias

constitucionais processuais expressas pelo devido processo legal, pelo contraditório e pela

ampla defesa com vistas ao alcance da efetividade da prestação da tutela jurisdicional.

Da análise jurisprudencial levada a efeito pode-se constatar que a boa-fé objetiva no âmbito

do Processo Civil desempenha funções correlatas àquelas desempenhadas no campo direito

privado, quais sejam, de otimização, de equilíbrio e de limitação. Os institutos processuais

mais influenciados pela boa-fé objetiva estão diretamente ligados à atuação das partes no

exercício das garantias constitucionais materializadas na ampla defesa e no contraditório,

como corolários do devido processo legal.

Foi possível identificar que os meios de impugnação das decisões judiciais é terreno fértil

para a atuação da boa-fé objetiva com a finalidade precípua de resguardar a garantia da

efetividade na prestação da tutela jurisprudencial. Também como evidente manifestação da

construção do processo como uma “comunidade de trabalho” a boa-fé objetiva atua

eficazmente para assegurar a confiança legítima no poder judiciário, bem como para

estabelecer o dever de cooperação. Nesse diapasão, a boa-fé objetiva, como metanorma,

estrutura o a aplicação das demais normas processuais conforme se demonstra nos tópicos

seguintes.

230

8.2 A Boa-Fé Objetiva como Norma que Veda a Atuação Dolosa de Posições Processuais

O comportamento doloso de posições processuais é delineado nas situações em que as partes

alteram a verdade dos fatos ou que usam de manobras desleais na tentativa de alcançar o êxito

na demanda. Tais condutas são veementemente vedadas pela boa-fé objetiva que deve imperar

no âmbito processual.

Tal comportamento restou evidenciado no julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça do

Rio Grande Sul nos autos da apelação interposta em ação de execução.4 Inconformado com a

sentença que extinguiu a execução de título extrajudicial o exeqüente interpôs recurso de

apelação sem, contudo, informar que, em Ação de Indenização, cumulada com Resolução

Contratual, anteriormente julgada, o pedido de resolução do contrato havia sido acolhido.

A matéria lá decidida se erigia em questão prejudicial, uma vez que possuía intima relação

com o título em que se fundava a Ação de Execução, pois este era originário do pacto

mencionado. O prosseguimento do feito viria afrontar a coisa julgada impondo-se que, se o

outro processo ainda estivesse em andamento, caberia, inclusive, que fosse ordenada a

suspensão da execução, pois aquele feito equivaleria aos embargos do devedor.

Como a matéria já havia sido julgada, inclusive com a resolução do contrato, acarretou a

extinção da execução.

Nesses moldes, restou caracterizada a violação ao dever de lealdade do apelante, com

aplicação de multa em razão de manifesta litigância de má-fé, nos termos do julgado:

“A atitude do apelante ao intentar a execução sem informar o resultado da ação contra si ajuizada consagrou manobra desleal, acarretando prejuízo real aos apelados. -“O dever de lealdade ou probidade, destacado por Frederico Marques (ob. e v. atrás cits, p. 374), abrange todas violações de caráter ético-jurídico, constituindo a atuação franca, ação honesta, o fair-dealing, o fair-play, consoante, observa Barbi (ob. , v e t., cits., p. 173, nº. 154), o “dever de veracidade” (art. 14, I); o “dever de boa-fé” (art. 14, II, final) e o dever de não se formularem pretensões cientificamente despidas de fundamento (art. 14, III) são particularizações daquele princípio básico de lealdade (ou “princípio de probidade”, na preferência de Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 1ª ed. V. II, pp. 77/78, anterior ao atual CPC, que se refere a “proceder com lealdade”, art. 14,

4 TJRS: AC 70006942197; Porto Alegre; 13ª Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julg. 14.09.2004.

231

II).” , conforme restou assentado no v. acórdão da colenda 6ª Câmara do 1(Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, quando do julgamento dos EI 376.861 (in CPC NOS TRIBUNAIS, Darcy Arruda Miranda Junior e Outros, dezembro de 1992, artigos 1 a 103, fls. 194/195). - No “dever de veracidade”, que compõe o princípio básico de lealdade ou de probidade, “... compreende-se não só a proibição de falsear a verdade, comissivamente, como também, a mera omissão de fatos, pois que esta configura também a infringência daquele dever (Arruda Alvim, cit., v.II do Código de Processo Civil Comentado, p.156); destarte, desdobra-se esse dever: “dever de dizer a verdade” (Wahrheitspflicht) e o “dever de nada omitir” (Vollstanding-heitspflicht) (v. Tornaghi, ob. e v. cits, p. 143).” (trecho do acórdão acima mencionado).”5

Essa mesma fundamentação foi utilizada no julgamento da apelação6 interposta em sentença

que julgou extinta ação de execução que objetivava o recebimento de quantia relativa a

honorários advocatícios e custas processuais. A devedora, utilizando-se de manobras desleais,

apresentou comprovante de depósito, que além de divergente do valor da quantia devida, não

se referia à ação de cumprimento contratual, numa clara manifestação de litigância de má-fé.

O juiz relator fez consignar em seu voto que a probidade processual trata-se de dever e não de

ônus, na ideologia que norteou a elaboração do Código:

“[...].Com efeito, a executada não agiu com lealdade, dever que lhe é imposto pela legislação processual. Do magistério de ARAKEN DE ASSIS (Manual do Processo de Execução, Editora Revista dos Tribunais, 5ª edição, 1998, fls.358/359), retiro a seguinte passagem: “Entre os abundantes propósitos moralistas do vigente Código de Processo Civil, inçado de sanções e de advertências inúteis, ressalta-se o que programou o comportamento desleal do executado. Foi bem apreendido por Mendonça Lima o diagnóstico do legislador: “a execução é campo fértil para as chicanas, por via de procrastinações e formulação de incidentes infundados”. A terapêutica alvitrada chega ao excesso de proibir manifestações do devedor nos autos, agora se materializando na aplicação de uma pena pecuniária, fixada pelo juiz, “em montante não superior a 20% do valor atualizado do débito em execução”(art.601) Este esquema, de resto desdobramento lógico das regras dos arts. 14 a 18, ostenta a inegável vantagem de instruir um dever de lealdade. Eliminando dúvidas, e a possibilidade de tratar-se de simples ônus, o texto consagrou a idéia de “dever, bem conforme, aliás, com a deliberada intenção de Alfredo Buzaid”. A atitude da devedora, buscando impedir a penhora, consagrou manobra protelatória. Acarretou não só protelação ao término do processo, mas real prejuízo para o credor, que, inclusive, teve interpor recurso, antecipando despesas processuais, para possibilitar a continuação da execução.”7

5 TJRS: AC 70006942197, Porto Alegre, Décima Terceira Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator. Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa; Julg. 14.09.2004. 6 TJRS: AC 70006947386, Caxias do Sul, Décima Terceira Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julg. 13.04.2004. 7 TJRS: AC 70006947386, Caxias do Sul, Décima Terceira Câmara Cível (Reg. Exceção); Relator Desembargador Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julg. 13.04.2004.

232

O direito à percepção da tutela jurisdicional, escopo jurídico do processo, não coaduna com

condutas desleais em clara afronta à boa-fé objetiva que deve nortear a atuação de todos que

participam do processo.

Em decisão paradigmática o STJ não conheceu do Resp nº. 65.9068 no qual a parte quedou-se

silente sobre matéria que ensejaria a nulidade da publicação da sentença que lhe tinha sido

desfavorável com o fito de que lhe fosse reaberto o prazo para interpor o recurso de apelação

e, por conseguinte, retardar a execução.

No acórdão, sob a relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, restou consignado que

“O processo não é um jogo de espertezas, mas instrumento ético da jurisdição para a

efetivação dos direitos da cidadania”. Aquela Corte, em decisão unânime, reafirmou o

entendimento do Tribunal a quo no sentido de que a publicação dos atos processuais é

dirigida a todos os litigantes, que se encontrem em qualquer dos pólos processuais, com vistas

a dar-lhes ciência do andamento processual.

Tal entendimento impunha à parte o dever de alegar a nulidade no primeiro momento em que

dela tomou conhecimento. Não o fazendo, ocorreu o fenômeno da preclusão, conforme

preconizado no art. 245 do CPC. O STJ trouxe à colação as lições de Moniz Aragão que ao

comentar esse dispositivo e esclarecer a finalidade da norma, realça: “A disposição contida no

texto firma o princípio da preclusão como corolário do dever de lealdade. A parte deve alegar

a nulidade na primeira ocasião em que, dela ciente, tiver de falar nos autos; não o fazendo,

preclui-lhe a faculdade e o ato se convalida”9

Sob essa linha de fundamentação o Acórdão ficou assim ementado:

I - O processo não é um jogo de espertezas, mas instrumento ético da jurisdição para a efetivação dos direitos da cidadania. II — Nos termos da lei processual vigente, nos casos de intimação pela imprensa “é indispensável, sob pena de nulidade, que da publicação constem os nomes das partes e de seus advogados, suficientes para sua identificação” (art. 236 - § 10). III — Não se tratando de nulidade absoluta, é necessário que a parte interessada a denuncie na primeira oportunidade ao juiz da causa, a fim de que seja sanada sem maiores prejuízos para o andamento do processo.

8 STJ: Resp. nº 65.906/DF, 4ª Turma. Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Julgamento em 25.11.97, DJU de 02.03.98, p.93. 9 Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, Forense, 1983, 4 edição, n° 357, p. 359 apud .

233

IV — Se a parte toma conhecimento da nulidade, tendo havido quatro intimações, das quais, embora endereçadas à outra parte, constaram os nomes corretos da recorrente e do seu patrono, não viola o disposto no art. 245, CPC, o acórdão que afirma consumada a preclusão quando argüido o vício apenas na ocasião em que publicada intimação comum ás duas partes.

Conforme realçado por Moniz Aragão o princípio da preclusão apresenta-se como corolário

do dever de lealdade das partes em sua atuação processual, pondo em evidência a frustração

de qualquer intento procrastinatório da parte a quem aproveita a nulidade. Significa dizer que,

nos domínios do Direito Processual é imperioso o agir segundo as diretivas da lealdade e da

boa-fé objetiva para que o processo alcance o seu escopo precípuo da prestação da tutela

jurisdicional efetiva.

Nesse mesmo sentido, foi o acórdão10 proferido no julgamento de embargos de execução no

qual as embargantes alegaram haver a presença de diversas outras empresas que integrariam o

litisconsórcio ativo, postulando direitos na cautelar, com as quais deveria, por conseguinte, ser

distribuído o ônus sucumbencial. Tal alegação não persistiu em razão de o embargado – o

Estado do Rio do Grande do Sul – ter apresentado documentos, integrantes do restante do

processo, por meio dos quais o juízo verificou que apenas as apelantes figuravam em

litisconsórcio ativo naquela ação.

A postura das apelantes colocou em evidência o dolo processual consistente na alteração da

verdade dos fatos, que pode se caracterizar por afirmações de fato inexistentes, negativa de

fatos existentes ou dar versão mentirosa a fato verdadeiro. Em razão da presença do dolo

processual ficou caracterizada a litigância de má-fé das apelantes numa clara violação ao

postulado da boa-fé objetiva.

O dever de proceder com lealdade norteou o julgamento de embargos de execução11 no qual a

sentença exarada no processo principal, que não fixou aplicação de multa, uma vez que não

estipulou prazo para cumprimento da obrigação, já havia sido executada, tendo ocorrido,

inclusive, o trânsito em julgado.

10 TJRS: APL-RN 70005782685, Uruguaiana; Primeira Câmara Cível, Relator Desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal, Julg. 22.10.2003. 11 TJRS: RInom 71000534537, Porto Alegre, Primeira Turma Recursal Cível, Relatora Desembargadora Marta Lúcia Ramos, Julg. 08.07.2004.

234

Diante dessa situação, tendo a obrigação sido cumprida, não cabia ao recorrido postular a

cobrança de multa, pois completamente indevida. Restou “evidenciado que o recorrido houve-

se com má conduta processual, deixando de observar o dever de proceder com lealdade e boa-

fé (art.14, II. CPC), formulando pretensão que sabia destituída de fundamento (art.14, III,

CPC), contra fato incontroverso (CPC, 17, I) eis que contra si pesava decisivamente a

sentença supra mencionada, tenho que deva sujeitar-se à penalidade fixada na lei.”12

Situação análoga foi decidida pelo Tribunal do Rio grande Sul no julgamento de agravo de

instrumento interposto nos autos de execução fiscal que indeferiu liminarmente exceção de

incompetência. A Agravante alegou conexão e continência com ações declaratórias e

consignatórias já julgadas, até mesmo no segundo, grau.13

Ao suscitar o incidente de exceção de incompetência, argüindo conexão e continência,

ocultando a informação de que a matéria já havia sido decidida com a improcedência das

demandas, que já haviam sido julgadas até em segundo grau, o Tribunal entendeu estar diante

de conduta violadora da lealdade processual prevista no art. 14, inciso II, do CPC a qual deve

ser “reprimida porque em total desalinho com a seriedade que se espera e pressupõe nos

processos”.14

O Tribunal do Espírito Santo, também, tem reprovado as condutas que afrontam a probidade e

a boa-fé processual, conforme se infere da seguinte ementa:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA APELAÇÃO CÍVEL. EMBOLIZAÇÃO. PRÓTESE. LEI Nº 9656/98. ADITIVO CONTRATUAL Nº 13. MÁ-FÉ DA EMBARGADA. RECURSO PROVIDO. (DO RECURSO ADESIVO INTERPOSTO POR WALTER SANT ANA JÚNIOR). DANOS MORAIS. RECURSO PROVIDO. 1 - Em que pese a segurada afirmar que o plano de saúde contratado pelo autor não está sob a égide da Lei nº. 9.656/98, relevância não apresenta, pois, o tratamento de que carece o autor encontra-se incluído na especialidade neurocirurgia, que é prevista no contrato firmado. 2 - A empresa embargada, ao não carrear aos autos o aditivo contratual nº. 13, e ainda, asseverar a total ausência de previsão contratual, faltou indubitavelmente com probidade e boa fé processual. 3 - Desta forma, restou claro que o dito serviço estava realmente previsto por minuta contratual, devendo por óbvio ser prestado nos limites de seu pacto. 4 - Em virtude da manifesta litigância de má-fé por parte da recorrida, deve esta ser condenada nos moldes do art. 18 do CPC. 5 - Recurso provido. 6 - Em decorrência do voto anterior, deve ser analisado o recurso de apelação adesiva

12 TJRS: RInom 71000534537, Porto Alegre, Primeira Turma Recursal Cível, Relatora Desembargadora Marta Lúcia Ramos, Julg. 08.07.2004. 13 TJRS: Agravo de Instrumento 70006978233, Porto Alegre, Primeira Câmara Cível, Decisão Unânime Relator Desembargador Irineu Mariani, Julg. 10.12.2003. 14 TJRS: Agravo de Instrumento 70006978233, Porto Alegre, Primeira Câmara Cível, Decisão Unânime Relator Desembargador Irineu Mariani, Julg. 10.12.2003.

235

interposto pelo Sr. Walter Santana Júnior, que, no primeiro momento fora considerado prejudicado. 7 - In casu, não há qualquer possibilidade de se negar o efeito negativo à subjetividade do apelante. 8 - Assim, restou caracterizado devidamente a turbação, mormente psicológica, experimentada pelo ora recorrente, o que por si só representa o dano moral in ré ipsa. 9 - Recurso provido.15

A conduta da empresa seguradora de plano de saúde não coaduna com a probidade e com a

boa-fé que devem estar presentes nos limites processuais, pois faltou com verdade ao afirmar

que o tratamento de que carecia o segurado não possuía cobertura no plano de saúde

pactuado, bem como não trouxe aos autos o aditivo contratual, que seria prova inequívoca da

obrigatoriedade de prestar o serviço, eis que pactuado.

Seguindo esse mesmo entendimento o Tribunal do Rio Grande do Sul negou provimento à

apelação interposta com o intuito de reformar a sentença que, em ação cautelar de exibição de

documentos, determinou ao apelante a apresentação de contratos de bancários firmados com o

apelado.16

Segundo aquela Corte, a negativa em fornecer as cópias dos contratos, sendo certo que a parte

os possuía, caracteriza, no mínimo, litigância de má-fé processual, afigurando-se como

sonegação de provas para instruir futura demanda. Tal postura não pode ser albergada pelo

Poder Judiciário, cabendo ao juiz zelar pela boa-fé processual para uma prestação

jurisdicional efetiva.

8.3 A Boa-Fé Objetiva Como Norma Otimizadora das Garantias Constitucionais

Processuais

Alçadas à categoria de direitos fundamentais a efetividade da prestação da tutela jurisdicional

e a segurança jurídica são, forçosamente, o resultado que se espera do processo. Entretanto,

parecem ser grandezas antagônicas ou um dilema indissociável.

15 TJES: EDcl-AC 24050171420, Terceira Câmara Cível, Relatora Desembargadora Substituta Elisabeth Lordes, Julg. 18.09.2007, DJES 31.10.2007, Pág. 113. 16 TJRS: AC 70006130835, Passo Fundo, Vigésima Câmara Cível, Relator Desembargador Rubem Duarte, Julg. 24/09/2003.

236

A segurança no Processo Civil demanda uma cognição exauriente e, via de conseqüência,

ampla defesa e contraditório plenos. A efetividade, por sua vez, implica prestação da tutela

jurisdicional em tempo razoável. Eis o grande dilema.

A identificação da “fórmula” ou da “solução eleita” para conciliar e, ao mesmo tempo,

assegurar esses dois direitos fundamentais foi encontrada na boa-fé objetiva como norma que

baliza o comportamento de todos aqueles que participam do processo. Conforme já apontado

por Menezes Cordeiro, a boa-fé objetiva atua como bitola a calibrar o comportamento dos

atores processuais. Ademais, não se pode olvidar que se trata de verdadeira “sindicância”

operada pela boa-fé objetiva nas posições jurídico-subjetivas desses atores processuais.

Diversas foram as condutas identificadas como violadoras da boa-fé objetiva no Direito

Processual Civil as quais guardam direta pertinência com o exercício irregular das garantias

processuais constitucionais conforme podem ser inferidas nas decisões que ora são relatadas.

Violam a boa-fé objetiva as condutas procrastinatórias que atentam aos deveres de probidade

e lealdade processual. Nesse sentido foi o posicionamento do Tribunal do Rio Grande do Sul

ao negar provimento à apelação interposta em face de sentença que havia julgado procedente

revisão de contrato de financiamento, garantido por alienação fiduciária. O apelante, em sede

recursal, fora intimado a juntar aos autos cópia do contrato entabulado entre as partes sendo-

lhe estipulado o prazo de dez dias, tendo ele solicitado a dilação do prazo por mais trinta dias,

pedido esse deferido. Entretanto, transcorreu in albis o aludido prazo sem qualquer

manifestação do recorrente, em manifesta conduta violadora da lealdade e da probidade

processual além de obstar o exercício célere da prestação jurisdicional nos termos do art. 14,

II e V do CPC, sendo-lhe imposta multa com fundamento nos arts. 17, incisos IV e V e 18 do

Código de Processo Civil.17

Nesses mesmos termos, decidiu a Corte gaúcha no julgamento do recurso de apelação contra

sentença que em ação de despejo foi julgada procedente a demanda, bem como houve a

condenação do procurador do réu por litigância de má-fé por entender que este provocou

injusto retardamento do feito em não devolver os autos retirados em carga, quando o processo

17 TJRS: AC 70017998337, Comarca de Guaíba, Décima Quarta Câmara Cível, Decisão Unânime, Relatora Desembargadora Isabel de Borba Lucas, Julg. 04.10.2007.

237

estava prestes a ser julgado, ficando em seu poder por cinqüenta e um dias, sendo devolvidos

após intimação e sem qualquer justificativa.18

Foi negado provimento ao recurso, mantida a aplicação da multa por litigância de má-fé, sob

o escólio das lições de Humberto Theodoro Júnior que, tratando do tema referente ao abuso

de Direito Processual, destacou o alargamento do dever de probidade no processo ao

pormenorizar as situações vetadas e cominar sanções genéricas e específicas.19 De acordo

com o acórdão “o referido princípio da probidade em relação às partes engloba não só o dever

genérico de lealdade boa-fé que engloba as variantes do art. 14, mas também os

comportamentos enumerados no art. 17 do CPC, configuradores da litigância de má-fé.”20

O Tribunal do Rio Grande do Sul reputou, também, como violadora da boa-fé objetiva a

postura adotada por empresa que, em sede de apelação, invocando o direito constitucional da

ampla defesa, viu o seu recurso ser provido, com a desconstituição da sentença para

possibilitar a realização da prova pericial por ela postulada. Entretanto, com o retorno dos

autos à origem, a autora, ora apelante, foi intimada por duas vezes (inclusive pessoalmente)

para depositar os honorários do perito, sem que houvesse qualquer manifestação, silenciando

em ambas as ocasiões.

Nos termos daquela decisão a “atitude da autora, silenciando sobre o pagamento da perícia

por ela postulada e que, inclusive, deu causa a desconstituição da primeira sentença proferida

nos autos, por acolhimento de preliminar de cerceamento de defesa, mostra-se temerária e

protelatória, afrontando a boa-fé objetiva que deve circundar a relação processual.”21

Em consonância com esse entendimento o STF reprovou o uso abusivo de prerrogativas

processuais, em nítida manifestação da deslealdade processual, ao julgar embargos de

declaração opostos contra decisão colegiada que negou provimento a agravo regimental e

aplicou multa ao agravante.22

18 TJRS: AC 70000348631, Porto Alegre, Décima Sexta Câmara Cível, Decisão Unânime, Relatora Desembargadora Genacéia da Silva Alberton, Julg. 08.11.2000. 19 Abuso de Direitos Processuais. Barbosa Moreira (Coord.). São Paulo: Forense. 2000, p. 98. 20 TJRS: AC 70000348631, Porto Alegre, Décima Sexta Câmara Cível, Decisão Unânime, Relatora Desembargadora Genacéia da Silva Alberton, Julg. 08.11.2000. 21 TJRS: AC 70007789647, Horizontina, Décima Oitava Câmara Cível, Relator Desembargador Pedro Celso Dal Pra, Julg. 30.06/.004. 22 STF: EDcl-AgReg. 532.506-7. Segunda Turma. Relator Ministro Cezar Peluso. Decisão Unânime. Julg. 05.06.2007, DJU 22.06.2007, p. 61.

238

Entendeu aquele Tribunal que o caráter abusivo da agravante se materializou na interposição

reiterada de recursos desprovidos de fundamentação jurídica: no Tribunal de Minas Gerais

manejou três embargos de declaração, sendo condenada ao pagamento de 1%, nos termos do

art. 538, § único, do CPC; no STJ foi derrotada em mais três ocasiões: agravo de instrumento,

agravo regimental e embargos de declaração. Dessa forma, o STF concluiu que “A

condenação imposta no julgamento do regimental, portanto deve ser interpretada à luz desse

contexto de nítido abuso de prerrogativas processuais.”23

Nos julgados analisados verifica-se, também, uma intrínseca relação entre o princípio do

devido processo legal e a boa-fé objetiva, podendo mesmo afirmar que esta se apresenta como

limite no desenvolvimento da ampla defesa e do contraditório, corolários daquele. “A

‘liberdade’ atribuída ao litigante ímprobo colide com as prerrogativas constitucionais da parte

adversa. [...] Logo, não se deve interpretar isoladamente o princípio do contraditório e da

ampla defesa, legitimando-se qualquer conduta processual realizada a pretexto de exercê-lo. O

marco de equilíbrio entre a probidade e a liberdade há de ser alcançado mediante a visão

coordenada dos princípios constitucionais do processo.”24 Tal afirmativa encontra respaldo na

decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial aviado

pelo Banco do Brasil.

O Banco do Brasil havia sido condenado em litigância de má-fé em acórdão que julgou

agravo interposto em ação de execução fiscal, em razão de citar de maneira reiterada

jurisprudência minoritária, ultrapassada ou firmada em casos de outra natureza com o firme

intuito de induzir o julgador em erro.

O STJ considerou correta a aplicação da multa ressaltando que “o direito à ampla defesa não é

irrestrito, visualizando-se má-fé na utilização de expedientes procrastinatórios e em atos que

visam a induzir o julgador em erro”.25

23 STF: EDcl-AgReg. 532.506-7. Segunda Turma. Relator Ministro Cezar Peluso. Decisão Unânime. Julg. 05.06.2007, DJU. 22.06.2007, p. 61. 24 SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Recife – Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito – Área de Concentração – Direito Público. Data da defesa 05/11/2007, Disponível em www.bdtd.ufpe.br/simplificado. Acesso em 22/09/2008, Recife. 2007, p. 35. 25 STJ: Resp. nº 383.883/SP. STJ, 2ª Turma. Relatora Ministra Eliana Calmon Alves. Julgamento em 17.12.2002, DJU de 31.03.2003, p. 193. Destacamos.

239

Nesse diapasão o Tribunal de Justiça do Espírito Santo negou provimento a agravo interno em

razão da negativa de seguimento do recurso de apelação fazendo consignar expressamente

que:

“A ampla defesa, constitucionalmente assegurada a todos, não pode servir de escudo para a falta de ética e o abuso de direito, em flagrante ofensa à inúmeros valores também erigidos à categoria de princípios e garantias constitucionais. Na medida em que nosso CPC, em seu artigo 14, consagra a boa-fé no processo, é de concluir que todo o exercício de direito, ao menos no processo, depende da observância da regra moral da boa-fé. 5) O recorrente, ao construir todos os argumentos de sua apelação em premissa inverídica, incorreu na conduta descrita no inciso II, do artigo 17 do CPC, de modo que é plenamente adequada a imposição da pena de multa, de 1% (um por cento) sobre o valor da causa, nos termos do artigo 18, do Estatuto Processual.”26

Tal decisão foi firmada em razão de o apelante alegar tardiamente vício que teria ocorrido na

intimação. Os defeitos na intimação ocorreram no juízo a quo. Na intimação da decisão que

indeferiu o pedido liminar formulado nos embargos de terceiros, por ele manejado, foi

omitido o nome do seu advogado tendo constado apenas o nome do próprio recorrente.

Mesmo assim ele tomou conhecimento da decisão e interpôs agravo de instrumento não

trazendo qualquer alegação sobre o vício da intimação. Ademais, interpôs recurso de apelação

contra a sentença não tendo, novamente, suscitado qualquer irregularidade na intimação.

Dessa forma, o agravante teve duas oportunidades para argüir o vício na intimação,

entretanto, optou por tornar silente deixando para argüir somente nesta fase processual.

Ressalta-se que, o vício na intimação não trouxe qualquer prejuízo para o agravante, tendo

tomado ciência da decisão, tanto assim que apresentou recurso por se insurgir contra ela.

Destarte, o agravante deixou-se guiar por conduta desleal, firmada em argumentos inverídicos

e, buscando encontrar abrigo sob o manto do princípio da ampla defesa, violou as normas

processuais no que tange à boa-fé objetiva, com comportamento processual reprovável pela

ordem jurídica.27

26 TJES: AGIn-AC 026.04.002786-9 4ª Câmara Cível; Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 20.06.2006, DJES 08.08.2006, Destacamos. 27 Nesse mesmo sentido: TJES: EDcl-AC 012.04.005608-2; 2ª Câmara Cível, Decisão Unânime, Relator Desembargador Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon, Julg. 16.05.2006, DJES 14/06/2006, “Com base na teoria da aparência, no respeito aos princípios da lealdade, da boa-fé e do prejuízo, e, ainda, conforme as peculiaridades do caso concreto, há de se considerar válido o ato citatório quando restar, inequivocadamente, demonstrado que o representante legal da pessoa jurídica tomou conhecimento da existência da lide e do inteiro teor de seu conteúdo.”

240

Nesse mesmo sentido é o teor do acórdão proferido pela Corte capixaba, que negou

provimento a agravo interposto em apelação, nos seguintes termos:

lV - É totalmente inconsistente a alegação de que a dívida inadimplida estaria garantida por penhora, já que não é corroborada por nenhuma prova sequer. Além disso, trata-se de fundamento novo, não ventilado nas razões de apelação. O que pretende o agravante, às escâncaras, é inovar na seara recursal, deduzindo nova alegação, o que é vedado, face à preclusão consumativa. V - A ampla defesa, constitucionalmente assegurada a todos, não pode servir de escudo para o abuso de direito, em ofensa a inúmeros valores também erigidos à categoria de princípios e garantias constitucionais. VI - Ficou claro que o agravante, ao interpor recursos e mais recursos, sempre com a mesma tese já dita infundada, abusa de seu direito de defesa, chegando a inovar na esfera recursal, ao arrepio da preclusão consumativa, o que justifica a manutenção da multa aplicada na decisão impugnada, na razão de 1% (um por cento) sobre o valor da causa, com base no artigo 17 inciso VII, c/c artigo 18, caput, ambos do Código de Processo Civil. VII - Sendo manifestamente infundado o agravo interno, que traz alegação inovadora, não ventilada nas razões de apelação, há de se aplicar a sanção prevista no § 2º, do artigo 557, do Código de Processo Civil, multa que se fixa em 5% (cinco por cento) do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito prévio da penalidade. VIII - Recurso desprovido.28

Em recente decisão o Tribunal de Justiça do Espírito reafirmou a sua posição relativamente

aos limites das garantias processuais constitucionais nos seguintes termos constantes da

ementa: “[...] VI. Não há garantias e direitos absolutos, podendo-se dizer com firmeza que

nem mesmo aqueles catalogados como fundamentais representam exceção à regra. VII. A

garantia insculpida no art. 5º, inc. LV, deve ser encarada dentro de sua função social, sob pena

de ser consagrado o abuso de direito e até mesmo a chicana processual. VIII. A oposição de

resistência injustificada ao andamento do processo demonstra o acerto da condenação à multa

e à indenização por litigância de má-fé, merecendo reparo apenas o percentual relativo a esta

última, que deve ser reduzido de 10 (dez) para 5% (cinco por cento) do valor da causa, haja

vista o elevado valor desta.[...]”29

Manuel Cachón Cadenas manifesta-se contrariamente à aplicação da boa-fé processual como

limite das garantias constitucionais do processo. Nessa linha, o Autor afirma que o ‘caráter

omnicompreensivo’30 da boa fé processual é, também, aplicável às garantias constitucionais

28 TJES: AGInt-AC 56050004102, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 12.06.2007, DJES 16.07.2007; Pág. 42. 29 TJES: AC 11030751041, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos; Julg. 20.03.2007, DJES 24.04.2007, Pág. 28. 30 Segundo o Autor, “o ‘caráter omnicompreensivo’ significa que não vem circunscrito a uma determinada fase processual, ou a uma determinada classe de atos processuais, mas que, teoricamente, pode referir-se a qualquer atuação processual das partes e dos demais intervenientes no processo.” CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ

241

do processo. Entretanto, a supremacia das garantias constitucionais do processo sobre

quaisquer outros critérios ou pautas de atuação processual traz como conseqüência que a

aplicação da boa-fé processual deve ser subordinada, sempre e absolutamente, às exigências

dessas garantias constitucionais o que leva a concluir que “nenhuma garantia constitucional

do processo pode ser limitada ao abrigo da boa-fé processual.”31

A boa-fé objetiva tem servido de diretriz interpretativa das normas processuais. Nesses

termos, é a exegese dada pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo:

49064016 - PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. ABANDONO DE CAUSA. ART. 267, III DO CPC. INTIMAÇÃO PESSOAL. ART. 267, § 1º DO CPC. MUDANÇA DE ENDEREÇO SEM COMUNICAR O JUÍZO. ÔNUS DA PARTE. RECURSO DESPROVIDO. 1 - Em havendo abandono da causa, o § 1º do art. 267 do CPC determina que, antes de se declarar a extinção do processo (art. 267, III do CPC), a parte seja intimada pessoalmente para suprir a falta em 48 (quarenta e oito horas). 2 - A regra, entretanto, deve ser interpretada sistematicamente, submetendo-se aos ditames do princípio da boa-fé processual. 3 - Se o autor promove mudança de endereço sem comunicar ao Juízo, induzindo os serviços judiciários a trabalhar inutilmente, não é razoável permitir que se proceda sua intimação por edital, numa espécie de justificativa da própria desídia. 4 - Recurso desprovido.32

Assim como o autor foi diligente em propor a ação, com a qual busca a proteção jurisdicional

para suposto direito violado, da mesma forma precisaria ser diligente em informar a mudança

de endereço para o perfeito prosseguimento do feito. A conduta por ele adotada em nada

informar ao judiciário sobre a sua mudança de endereço caracteriza violação à boa-fé objetiva

processual que impõe a todos o dever de agir de maneira leal.

Ademais, a boa-fé objetiva apresenta-se como limite ao exercício da ampla defesa no que

tange à juntada de documento novo. “Com efeito, o documento novo pode ser utilizado

mesmo em fase recursal, para que seja preservada a função instrumental do processo e desde

que não sejam feridos os princípios da lealdade e da boa-fé, e ausente a chamada guarda de

CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de documentación judicial. 2006, p. 216. 31 CACHÓN CADENAS, Manuel. La buena fe en el proceso civil. in El abuso del proceso: mala fe y fraude de ley procesal. GUTIÉRREZ-ALVIZ CONRADI, Faustino (Org.). Madri: Consejo General del poder judicial. Centro de documentación judicial. 2006, p. 220. 32 TJES: AC 021.98.017237-9, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon, Julg. 14.05.2003, DJES 23.06.2003.

242

trunfos, vale dizer, o espírito de ocultação premeditada e o propósito de surpreender o juízo,

sendo sempre ouvida a parte contrária.”33, 34

Seguindo essa trilha o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no julgamento de apelação

assim se manifestou sobre a juntada de documentos novos: “[...] não pode subverter o

princípio da lealdade processual [...]”35, 36

A boa-fé objetiva apresenta-se, assim, com função otimizadora da ampla defesa sempre que

os participantes da relação jurídica processual fizerem uso de expedientes manifestamente

protelatórios ou que intentarem produzir provas ficando caracterizada a “guarda de trunfos”.

O contraditório e a ampla defesa alinhados com a lealdade e a boa-fé objetiva processual

impõem que o caráter dialético e cooperador do processo ocorram sem sobressaltos, e exige

que a participação de todos visem à tempestiva prestação da tutela jurisdicional.

Nesse passo, diversos são os julgados no âmbito do STJ que demonstram violar a boa-fé

processual os recursos que traduzem o mero inconformismo da parte com a decisão que lhe

foi desfavorável e se sustentam em teses já superadas por aquela Corte e pelas instâncias

ordinárias.37

33 STJ: AgRg-Ag 540217/SP, Quarta Turma, Relator Ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, Julg. 08.11.2005, DJU 03.04.2006; Pág. 347. 34 Trecho do voto do Ministro Cesar Asfor Rocha, que foi acompanhado pela maioria. 35 TJRS: Apelação Cível nº 070020600094. 9ª Câmara Cível. Relator Desembargador Odone Sanguiné. Julg. 12.09.2007, DJ 19.09.2007. 36 Nesse mesmo sentido a jurisprudência daquela Corte: - Apelação Cível Nº 70020251138, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Desembargador Odone Sanguiné, Julgado em 08.08.2007, esse mesmo Tribunal registrou que a juntada de documentos novos com a apelação “[...] atenta contra o princípio da estabilidade da demanda e da lealdade processual, surpreendendo a parte contrária com a juntada de prova em que não oportunizado o contraditório e a ampla defesa.” - Apelação Cível Nº 70017659871, 12ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Desembargador Orlando Heemann Júnior, Julgado em 05.07.2007: “A produção de prova após a sentença, sem que haja a devida justificativa, escorada em motivo de caso fortuito ou de força maior, não pode ser admitida, sob pena de subverter-se o procedimento e premiar-se quem não obedeceu as suas regras com a possibilidade de surpreender o adversário.” 37 Os acórdãos proferidos pelo STJ, 1ª Turma, no julgamento dos recursos adiante identificados, sob a Relatoria da Ministra Denise Martins Arruda ficaram assim ementados: “[...] O mero inconformismo da parte não configura vício (omissão, contradição ou obscuridade) tampouco constitui hipótese de cabimento de embargos de declaração. Os embargantes insistem – de maneira censurável e contrária à boa-fé processual – em tese já superada por esta Corte Superior. [...]” EDcl-EDcl-Resp 923.208, Proc. 2007/0026872-0/RS, Julg. 13.11.2007, DJU 10.12.2007, p. 330; EDcl-EDcl-REsp 657-958, Proc. 2004/0064399-3/Pe, Julg. 06.11.2007, DJU 29.11.2007, p. 213; EDcl-AgRg-EDcl-Resp 628.327, Proc. 2003/0238479-7/Se, Julg. 05.06.2007, DJU 02.08.2007, p. 333; EDcl-EDcl-REsp 645.192, Proc. 2004/0017910-9/SC, Julg. 21.06.2007, DJU 02.08.2007, p. 335; EDcl-EDcl-REsp 621.540, Proc. 2003/0231625-0/MG, Julg. 05.06.2007, DJU 29.06.2007, p. 491; EDcl-EDcl-AgRg-REsp 554.533, Proc. 2003/0108373-3/RS, Julg. 05.06.2007, DJU 29.06.2007, p. 489; EDcl-AgRg-Ag 764.409, Proc. 2006/0080013-1/SP, Julg. 15.02.2007, DJU 19.03.2007, p. 287; EDcl-EDcl-REsp 576.926, Proc. 2003/0131274-5/Pe, Julg. 12.12.1006, DJU 01.02.2007, p. 394; EDcl-EDcl-REsp 813.368, Proc.

243

É importante destacar que tal se aplica até mesmo à Fazenda Pública. No julgamento de

agravo regimental em agravo de instrumento que manteve o entendimento de a Fazenda

Pública não estar dispensada do recolhimento da multa prevista no art. 557, §2º, do CPC.

“Com efeito, evidenciada a finalidade procrastinatória do recurso, seja em razão de manifesta inadmissibilidade , seja pela ausência de fundamentação, é correta a imposição de penalidade pecuniária prevista no Estatuto Processual. Note-se, o fato de a Fazenda Pública incorrer em tal prática, não pode afastar o cumprimento de um princípio de direito maior, qual seja, a preservação da boa-fé e o desestímulo a atos processuais que obstruem e prejudicam a entrega da jurisdição da forma melhor possível.”38

Ainda no espectro da ampla defesa, os Tribunais têm invocado a boa-fé objetiva para reprimir

as pretensões e alegações destituídas de fundamento, uma vez que a conduta dos litigantes,

além de violar o dever de lealdade processual, decorrência imediata da boa-fé, compromete a

entrega da prestação jurisdicional de forma tempestiva. Tal foi o entendimento esposado pelo

STJ ao negar provimento ao agravo regimental no qual o agravante pretendia ver republicada

a decisão proferida no julgamento de embargos de declaração, com os nomes completos das

partes e de seus procuradores. Ocorre que, intimação foi efetuada em nome de advogado

regularmente constituído nos autos e sem que houvesse qualquer pedido expresso de

intimação exclusiva em sentido contrário. Ademais, esse mesmo advogado que constou da

intimação praticou todos os atos processuais desde a origem. Dessa forma, a conduta do

agravante, que por motivos de ordem administrativa do escritório, formulou tal pretensão

incorreu em violação ao dever de proceder com lealdade e boa-fé nos termos do art. 14, inciso

II, do CPC.39

2006/0018673-0/RS, Julg. 14.11.2006, DJU 30.11.2006, p. 160; EDcl-EDcl-REsp 625.791, Proc. 2003/0231594-7/MG, Julg. 24.10.2006, DJU 20.11.2006, p. 274; EDcl-EDcl-REsp 828.898, Proc. 2006/0054855-4/RS, Julg. 17.10.2006, DJU 07.11.2006, p. 262; STJ; EDcl-EDcl-REsp 800.271, Proc. 2005/0196721-8/SP, Julg. 19.09.2006, DJU 05.10.2006, p. 260; EDcl-REsp 920.491, Proc. 2007/0017986-7/RS, Julg. 13.11.2007, DJU 10.12.2007, p. 327; EEARES 509179, SP, Julg. 07.03.2006, DJU 27.03.2006, p. 157. No mesmo sentido: STJ: AGP 837, Corte Especial, Relator Ministro Antônio Pádua Ribeiro, Julg. 01.07.99, DJU 18.10.99, p. 0197. “A persistência na utilização de procedimentos tendentes a aviventar questão reclusa é incompatível com a boa-fé processual”. STJ: EDcl-AgRg-Ag 421626, 6ª Turma. Relator Ministro Nilson Vital Naves, Julg. 23.11.2004, DJU 07.03.2005, p. 352. “[...] 2. Quando de todo sem cabimento os embargos, donde a conclusão de que pretendem retardar se faça, de uma vez por todas, a coisa julgada, ou que não seja ela cumprida a bom tempo e a boa hora (modalidade, tempo, lugar, etc.), os embargos têm caráter protelatório; nesse caso, o embargante está sujeito a sanção processual. 3. É lícito que a sanção alcance não só a parte (o litigante), mas também o seu procurador, uma vez que a ambos compete proceder com lealdade e boa-fé. [...]” 38 Trecho do voto do Ministro Relator José Augusto Delgado no AgRg-Ag 703.632, Proc. 2005/0142875-7/MS, Julg. 06.04.2006, DJU 02.05.2006, p. 253. 39 AgRg-EDcl-AgRg-Ag 580.449, Proc. 2004⁄0033120-8/MG, STJ, 2ª Turma. Relator Ministro Francisco Peçanha Martins, Julg. 28.03.2006, DJU 27.04.2006, p. 142.

244

O Tribunal do Espírito de Justiça do Espírito Santo no julgamento de embargos de declaração

verificou que haviam sido ajuizadas duas demandas com as mesmas partes, o mesmo pedido e

mesma causa de pedir, que versavam sobre cobrança de seguro obrigatório em razão de

acidente automobilístico, sendo que a primeira demanda já havia transitado em julgado. Tal

conduta da parte autora caracteriza flagrante afronta à lealdade e à boa-fé processual com que

deve proceder todos os participantes do processo.40

Também o Tribunal de Justiça Grande do Sul com fundamento na boa-fé objetiva negou

provimento à apelação interposta à vista de o recorrente ter inovado na lide. É que, de acordo

com a inicial dos embargos, alegaram a inépcia da inicial do feito executivo, uma vez que o

título, representado por contrato de abertura de crédito rotativo em conta corrente firmado

com a instituição bancária seria ilíquido. Afirmaram, ainda, que houve a perda da lavoura

acrescentando a cobrança de encargos ilegais pelo Banco. A sentença julgou parcialmente

procedente os embargos, acolhendo, apenas, a alegação da cobrança de comissão de

permanência. Já no recurso de apelação a alegação versou sobre a “contratação de seguro com

a instituição bancária, que com a perda da colheita iria implicar na não-exigibilidade do título

em execução.”

Destarte, aquela Corte entendeu ter havido “inovação processual – muito embora o fato da

perda da lavoura ter sido ventilada quando do ajuizamento dos embargos, mas não

relacionado ao fato da contratação de seguro -, não sendo cabível, como é cediço, no sistema

processual e recursal estatuído pelo CPC, pois em evidente afronta ao disposto no art. 515 do

CPC.” Por conseguinte, concluiu que “o princípio da boa-fé que deve reger o processo é a

boa-fé objetiva, a ser detectada tão-somente a partir do comportamento processual. Recorrer

inovando na lide configura, neste universo, infração ao disposto no art. 14, incisos II e III, do

CPC, daí porque, de ofício, nos termos do art. 18 do predito diploma legal, condeno o

apelante ao pagamento de multa fixada em 1% sobre o valor da causa, por incidir na prática

da litigância de má-fé”.41

40 TJES: EDcl-AC 35050130992, 3ª Câmara Cível, Relator Desembargador Rômulo Taddei, Julg. 17.07,2007, DJES 31.07.2007, p. 22. 41 TJRS: Apelação Cível Nº 70006334411, Décima Sétima Câmara Cível, Relatora Desembargadora Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 24.06.2003.

245

8.4 A Boa-fé Objetiva como Norma que Veda o Venire Contra Factum Proprium no

Campo Processual Civil

A proibição do venire contra factum proprium encontra-se inserida na vedação de

comportamentos contraditórios tendo por lastro a boa-fé concretizada na confiança que se

estabelece nas relações intersubjetivas. O exercício inadmissível de posições jurídicas,

consubstanciado no venire contra factum proprium, tem sido reprovado pelos Tribunais

pátrios conforme se denota das decisões colacionadas.

Inicialmente, quadra trazer à colação decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que

alicerçado no venire contra factum proprium, não conheceu do agravo interno aviado contra

decisão que homologou pedido de desistência de ação de mandado de segurança. O agravante,

expressamente, desistiu do processo de mandado de segurança por quatro vezes. Homologada

a desistência, manejou o agravo sob a alegação de que havia mudado de opinião. Ou seja,

insurgiu “contra atos por ele mesmo praticados, de forma reiterada e clara”. Entretanto, aquela

Corte decidiu por não agasalhar tal pretensão por violar a proibição de venire contra factum

proprium surpreendendo a outra parte da causa. Tendo desistido do processo, faltava ao

agravante o interesse para recorrer – um dos requisitos para admissibilidade do recurso.42

Nos termos assentados pelo STF, o princípio da confiança é inerente ao venire contra factum

proprium e é “uma das dimensões fundamentais do justo processo da lei (due processo of

law)”. 43

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça – STJ, no julgamento do REsp Nº 605.687 – AM,

sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foi dado “provimento ao recurso, para,

reformando o acórdão recorrido, julgar improcedente a ação movida pelo recorrido contra a

recorrente.” Trata-se de ação de conhecimento, com pedido condenatório de indenização por

danos morais, ajuizada em face de Telemazon Celular S/A Amazônia Celular.44

42 STF: MS-AgR-ED 25742 / DF, Tribunal Pleno. Decisão por maioria. Relator Ministro César Peluzzo. Julg. 29.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 0074. 43 STF: MS 24927 / RO, Tribunal Pleno. Relator Ministro Cezar Peluzzo. Decisão por maioria. Julg. 28.09.2006, DJU 25.08.2006, Pág. 0018. 44 STJ: REsp 605687 / AM, 3ª Turma. Decisão Unânime. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 02.06.2006, DJU 20.06.2006, p. 273.

246

O Autor não concordando com o valor cobrado em sua conta de telefone celular, ingressou

perante o Juizado Especial de Manaus com ação de inexigibilidade de débito em face à

empresa de telefonia. Na audiência realizada naquele processo a empresa de telefonia

solicitou ao juiz a juntada do detalhamento do registro das ligações telefônicas do celular do

ora recorrido, tendo sido deferido pelo juiz, com autorização do autor. Posteriormente,

ingressou com a ação condenatória sob a alegação de danos morais, pois, em razão do

detalhamento das ligações levada aos autos do processo que tramitou junto ao Juizado

Especial, havia passado por constrangimentos frente a clientes e amigos, uma vez que o fato

havia sido divulgado nos jornais. Ademais, alegou quebra de sigilo telefônico.

A sentença foi de improcedência, “primeiro porque a juntada do detalhamento do registro das

ligações telefônicas do celular do ora recorrido na audiência do outro processo foi autorizada

pelo juiz daquele feito e pelo próprio recorrido; segundo, porque apenas as partes e seus

advogados tiveram acesso ao detalhamento do registro das ligações; e terceiro, porque foi o

próprio recorrido quem noticiou o fato para a imprensa, não havendo, portanto, que se falar

em dano moral.”45

Tal decisão ensejou recurso de apelação tendo a mesma sido reformada com o provimento do

recurso condenando a empresa de telefonia ao pagamento de indenização no valor de R$

70.000,00 (setenta mil reais).

Em sede de recurso especial, o STJ entendeu ter havido comportamento contraditório do

recorrido, visto que a postura por ele adotada ao ajuizar a ação de indenização por danos

morais era incompatível com os atos por ele praticados no curso do processo no Juizado

Especial, pois tinha havido a concordância do recorrido para que fosse carreado àqueles autos

o detalhamento das ligações telefônicas.

Conforme constou, expressamente, do voto da Ministra Relatora: “Se isso não bastasse, como

se sabe, não estava o recorrido obrigado a fornecer prova contra si mesmo e, portanto, não

estava obrigado a autorizar a juntada, pela parte contrária, do detalhamento do registro das

ligações telefônicas do seu celular, não sendo lícito que se insurgisse contra tal fato após tê-lo

45 STJ: REsp 605687 / AM, 3ª Turma. Decisão Unânime. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 02.06.2006, DJU 20.06.2006, p. 273.

247

autorizado. Trata-se de aplicação do sábio ensinamento consagrado entre os romanos,

segundo o qual “nemo potest venire contra factum proprium ”.” 46

A conduta do “recorrido em vir a juízo, imputando a prática de ato ilícito à recorrente, pelo

fato de esta ter usado em processo anterior o detalhamento do registro de suas ligações

telefônicas com a sua autorização” caracteriza clara violação à boa-fé objetiva

consubstanciada no venire contra factum proprium. Tal conduta não pode ser albergada pelo

Poder Judiciário frente ao dever das partes de proceder com lealdade e boa-fé no curso das

relações processuais.

Neste universo particular do Direito Processual Civil, destaca-se o caso decidido pelo

Superior Tribunal de Justiça em 1999 envolvendo matéria de contrato de seguro de vida e

danos pessoais. Ocorrido o acidente que vitimara o segurado, a seguradora se recusara a

aceitar os laudos que ele lhe apresentara na via administrativa, pois o seu departamento

médico não os considerou suficientes para provar a incapacidade do segurado.

Diante dessa decisão, a vítima propôs uma ação judicial e instruiu a inicial com os mesmos

laudos, documentos que na Contestação não foram aceitos pela seguradora, que requereu

produção de prova pericial ao juiz. Ultimada a perícia judicial e constatada a incapacidade

laboral do autor da ação, seu pedido foi julgado procedente.

A seguradora, contraditoriamente, em recurso de Embargos de Declaração suscita a

ocorrência de prescrição da pretensão do autor, cujo termo inicial do prazo seria a data

daqueles laudos que o autor apresentara a ela na esfera extrajudicial, antes de ingressar em

juízo.

O Tribunal rejeitou essa alegação, pois considerou que a seguradora não poderia argüir a

prescrição extintiva invocando a data dos laudos não-aceitos, pois não estaria agindo de boa-

fé. Decidiu o STJ: “a boa-fé objetiva, que também está presente no processo, não permite que

46 STJ: REsp 605687 / AM, 3ª Turma. Decisão Unânime. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 02.06.2006, DJU 20.06.2006, p. 273.

248

uma parte alegue contra a outra um fato que ela não aceita e para o qual exige prova

judicializada”47.

Vale dizer, o STJ considerou que, se para a seguradora aqueles laudos produzidos pelo

médico particular da vítima não eram documentos hábeis a provar o dano, da mesma forma o

dia em que haviam sido elaborados não poderia servir de marco inicial da contagem do prazo

de prescrição da pretensão do segurado. Se permitida essa postura contraditória da seguradora

– de em um primeiro momento não aceitar os laudos como prova e depois pugnar pela sua

validade como elemento produtor de efeitos jurídicos contra a outra parte - haveria violação

da boa-fé objetiva na esfera processual.

Situação similar merece ser trazida à colação refere-se à execução de título executivo

extrajudicial materializado em contrato de compra e venda de direitos federativos de atleta de

futebol profissional, que foi objeto de análise pelo STJ em sede de recurso especial.

Em ação de execução movida pelo Sport Club Corinthians Paulista em face do Grêmio Foot

Ball Porto Alegrense, relacionada a dívida proveniente de operação de compra e venda dos

direitos federativos de atleta profissional de futebol, o Grêmio opôs embargos à execução

tendo sido julgados improcedentes.

Em recurso de apelação junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, inovando nas

razões recursais, o Grêmio alegou, em preliminar, a nulidade da execução por vício formal do

título executivo, visto que o contrato havia sido firmado apenas pelo presidente do clube.

No acórdão conduzido pelo voto do Relator, Desembargador Vicente Barroco de

Vasconcellos, que não deu provimento à apelação, constou expressamente:

“[...] em que pese se tratar de inovação recursal, cabe conhecer da matéria com base no § 3° do art. 267 do CPC, cumprindo apenas salientar que não se trata de pressuposto previsto no inciso IV do art. 267 do CPC, mas sim de questão relativa à impossibilidade jurídica do pedido, hipótese do inciso VI do mesmo artigo. Não merece prosperar a prefacial de nulidade da execução em razão de o contrato que a embasa ter sido subscrito somente pelo então presidente do clube embargante, pois a alínea “b” do inciso X do art. 76 do seu estatuto dispõe que compete ao presidente assinar juntamente com o vice-presidente de finanças os “cheques, cauções, ordens de pagamento, letras de câmbio, notas promissórias, duplicatas de

47 STJ: REsp nº 184.573/SP, 4ª Turma, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julg. 19.11.1998; DJU 15.03.1999; pág. 00241.

249

fatura e título de crédito em geral”. Ou seja, inexiste em mencionado dispositivo qualquer vedação ao presidente subscrever isoladamente em nome do clube instrumento particular de compra e venda de jogadores, título executivo extrajudicial. Não se pode confundir os títulos de crédito, inciso I do art. 585 do CPC, com um instrumento particular assinado pelo devedor e duas testemunhas, inciso II do mesmo artigo, como pretende o embargante, ora apelante. Outrossim, não poderia o clube embargante se valer da própria torpeza, tentando afastar a força executiva de um título executivo extrajudicial através de um suposto vício que ele mesmo deu causa.”48

A matéria ao ser analisada no recurso especial não teve deslinde diferente. O STJ chancelou o

acórdão proferido pelo TJRS com amparo na boa-fé objetiva que alicerçou a conduta do

recorrido. Não poderia o recorrente venire contra factum proprium, uma vez que a negociação

foi empreendida tendo por lastro a legitimidade do presidente do clube para a formalização do

contrato, portanto não poderia, agora, em ação de execução pretender desconstituir o título

executivo sob o fundamento de vício formal. Segundo o STJ, reconhecer a nulidade do

contrato entabulado pelas partes por vício formal, implicaria afronta à boa-fé objetiva que

deve nortear os negócios jurídicos desde o ajuste até o seu cumprimento.49

No campo do Processo Civil, mais precisamente no processo de execução, outra decisão que

se refere à figura do venire merece realce pelo conteúdo do voto do Ministro Ruy Rosado de

Aguiar. Na hipótese, o Ministro da Fazenda expedira um “Memorando de Entendimento”

comunicando que os devedores do Banco do Brasil que se apresentassem para negociar a

dívida bancária teriam seu processo de execução judicial suspenso. Ocorre que um devedor se

apresentou e o Banco não requereu a suspensão do feito, mas o juiz, a pedido do executado, a

determinou, o que levou o banco a recorrer.

O Ministro manteve a decisão judicial da instância inferior que determinara a suspensão da

execução sob o fundamento de que, diante da expectativa legítima criada nos devedores pelo

documento do Ministro da Fazenda, o Banco teria assumido comportamento contraditório e

ilícito, que constituía “venire contra factum proprium50”.

Nesse caso entende-se que, embora o “Memorando de Entendimento” verse sobre matéria

administrativa, o Banco do Brasil ao se comprometer a suspender temporariamente a

48 TJRS: Apelação Cível 70008041204, Porto Alegre, 15ª Câmara Cível, Relator Desembargador Vicente Barroco de Vasconcellos, Julg. 31.03.2004. 49 STJ: REsp 681.856/RS; 4ª Turma; Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Julg. 12.06.2007, DJU 06.08.2007; p. 497. 50 STJ: REMS n° 6183/MG, 4ª turma; Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julg. 14.11.1995, DJU 18.12. 1995, p. 44573.

250

execução dos devedores que se apresentassem e renegociassem o débito, não poderia

prosseguir com a ação de execução e negar o caráter obrigacional do “Memorando de

Entendimento”, agindo com deslealdade no âmbito processual e contrariando a boa-fé

objetiva que deve disciplinar as relações processuais.

Verifica-se, pois, que a proibição do venire contra factum proprium encontra-se inserida no

Processo como vedação de comportamentos contraditórios tendo por lastro a boa fé

concretizada na confiança que se estabelece entre as relações intersubjetivas. Menezes

Cordeiro51 destaca que o venire contra factum próprio é defeso em homenagem à proteção da

confiança daquele que se fiou no factum próprio.

No Tribunal do Rio Grande do Sul inúmeras são as decisões nas quais o venire contra factum

proprium foi a base da fundamentação para o deslinde da questão. Em tais decisões a boa-fé

objetiva foi concretizada obstando a prevalência de condutas que são reprováveis no âmbito

processual por frustrar a confiança da contraparte.

Sob esse espectro, aquele Tribunal tem dado proteção à lealdade processual sob o seguinte fundamento:

“O ‘venire contra factum proprium’ é uma das modalidades de exercício inadmissível de posições jurídicas institucionalizadas na moderna doutrina européia, em especial a alemã, apresentando-se, na literatura mais recente, como uma das formas de concretização do princípio geral da boa-fé, formulado no § 242 do Código Civil germânico e acolhido expressamente no direito positivo brasileiro (Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, III), e Código Civil, arts. 113 e 187). Com base nesse princípio, protege-se a confiança de quem, por conduta da contraparte, ainda que omissiva e não-intencional, seja levado a ter uma representação dos fatos ou de suas conseqüências diversa da que realmente existe. Prescinde-se, inclusive, para tal fim, da comprovação de que o responsável pelo surgimento da confiança tenha agido com má-fé ou mesmo com culpa: é suficiente que sua conduta, independentemente de qualquer consideração de ordem subjetiva, tenha dado causa à representação de situação diversa da realidade.”52

O trecho colacionado refere-se à decisão proferida no julgamento de agravo de instrumento,

no qual o agravado, três dias após a intimação da homologação da desistência por ele

formalizada, em ação revisional de contrato, por não ter mais interesse na lide, intentou ação

idêntica só que em outra comarca.

51 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 3. reimpressão. Coimbra: Almedina. 2007, p. 843. 52 TJRS: AI Nº 70009039488, 13ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 25.06.2004.

251

Aquele Tribunal assentou que “[...] O comportamento do agravado, ao ajuizar a segunda ação,

configura caso típico de ‘venire contra factum proprium’, que consiste no exercício de uma

pretensão incompatível com o comportamento ou conduta concludente anterior, e que não

pode ser sancionada pelo direito por se configurar como atentatória à boa-fé de que, de forma

justificada, confiou na situação jurídica configurada primeiramente. Quem desiste de uma

ação, afirmando não ter mais interesse nesta, está autorizando a crença de que efetivamente

não mais lhe interessa a discussão que inicialmente pretendia travar.”53, 54, 55

Verifica-se a aplicação do venire contra factum proprium para obstar a revisitação de matéria

já decidida, quer por ter havido a anuência expressa da parte quer por inércia da mesma. Em

que pese a decisão ter por lastro o venire contra factum proprium como concretização do

princípio da boa-fé, é importante notar que o acórdão não faz nenhuma menção ao art. 14,

inciso II do CPC, numa clara demonstração da relutância ou da timidez da jurisprudência em

atribuir a validade dogmática própria ao dispositivo, qual seja, a feição objetiva da boa-fé.

O Tribunal do Rio Grande do Sul teve oportunidade de julgar apelação de sentença que havia

julgado improcedente embargos opostos em ação de execução fundada em instrumento de

confissão de dívida, uma vez que na ação de busca e apreensão, já transitada em julgado, tais

cláusulas já haviam sido analisadas.56

53 TJRS: AI Nº 70009039488, 13ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 25.06.2004. 54 Acórdão de igual teor foi proferido no julgamento de agravo interno TJRS: AI Nº 70012607651, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 01.09.2006, “Trata-se de agravo interno interposto [...] contra decisão monocrática [...] que deu provimento ao agravo de instrumento. Informa a agravante [...] que a decisão deve ser reformada, porquanto o presente recurso foi interposto nos autos de ação revisional que meramente reproduz postulação veiculada na Comarca de Porto Alegre, extinto em face de desistência apresentada pelo contratante após indeferido o pedido de tutela cautelar.” A ação revisional de contrato onde proferida a decisão agravada, foi extinta, de ofício, com base no art. 267, VI, do CPC, uma vez configurado o venire contra factum proprium nos exatos termos do excerto citado. No mesmo sentido: TJRS: Apelação Cível Nº 70009365958, 2ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Arno Werlang. Julg. 02.03.2006, Na situação sob exame a apelante havia requerido explicitamente a desistência da ação, pedido que restou acolhido na sentença. Em sede de apelação alegou a recorrente que a desistência havia sido requerida por equívoco do seu procurador. O Tribunal entendeu configurada a preclusão lógica face à absoluta incompatibilidade entre a conduta anterior e o recurso interposto. 55 Em sentido idêntico TJRS: AI Nº 70015731029, 13ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 22.06.2006, no qual o agravante, após interpor agravo retido onde consignou, expressamente, que o mesmo deveria “permanecer retido nos autos para que seja conhecido como preliminar de eventual recurso de apelação”. Tendo o recurso sido recebido como agravo retido, exatamente como postulado pelo recorrente, agora ele interpõe agravo de instrumento contra tal decisão, tendo restado configurado o venire contra factum proprium. 56 TJRS: Apelação Cível Nº 70013136379, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 19.01.2006.

252

A apelante, em suas razões recursais, alegou que a decisão que julgou ação de busca e

apreensão foi omissa quanto à redução da multa de mora. Ocorre que, naquela ocasião não

foram interpostos embargos, o que levou o Tribunal a negar provimento à apelação, pois

configurado o venire contra factum proprium. O tribunal assentou que a inércia da apelante

criou uma legítima situação de confiança no demandado levando-o a crer que “aceitava a

dívida nos termos em que fora redimensionada em juízo de revisão.”57

Na análise jurisprudencial também pode ser verificada a estreita relação entre o venire contra

factum proprium e o instituto da preclusão lógica. Em alguns dos julgados foi utilizada a falta

de interesse para agir ou a preclusão lógica quando, na realidade, poderia ter sido utilizada,

expressamente, a teoria dos atos próprios, pois os comportamentos das partes eram

completamente incompatíveis com posturas processuais anteriormente assumidas. Para se ter

uma idéia do afirmado, em decisão na qual restou configurado o venire contra factum

proprium foi colacionado o seguinte embasamento teórico-doutrinário :

“Neste rumo, a lição de Aguiar Júnior, ao ministrar que “a teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com a surpresa e prejuízo à contraparte.” (Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. A Extinção do Contratos por Incumprimento do Devedor, 1ª ed. Rio de Janeiro, Aide, 1991) Segundo Renan Lotufo, “a locução venire contra factum proprium, significa o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, ou seja, dois comportamento da mesma pessoa, que são lícitos entre si, e diferidos no tempo. O primeiro comportamento, o factum proprium, é contrariado pelo segundo. O princípio do venire contra factum proprium tem fundamento na confiança despertada na outra parte, que crê na veracidade da primeira manifestação, confiança que não pode ser desfeita por um comportamento contraditório. Pode-se dizer que a inadmissibilidade do venire contra factum proprium evidencia a boa-fé presente na confiança, que há de ser preservada. Daí o dizer de Franz Wieacker (El principio general de la buena fe, p. 62): “...el principio del venire es una aplicación del principio de la ‘confianza en el tráfico jurídico’ y no una específica prohibición de la mala fe y de la mentira”. (Código Civil Comentado, vol. I, Parte Geral, ed. Saraiva, 2003, pág. 501/502). Para Anderson Schreiber “O nemo potest venire contra factum proprium representa, desta forma, instrumento de proteção a razoáveis expectativas alheias e de consideração dos interesses de todos aqueles sobre quem um comportamento de fato possa vir repercutir. Neste sentido, o princípio de proibição ao comportamento contraditório insere-se no núcleo de uma reformulação da autonomia privada e vincula-se diretamente ao princípio constitucional da solidariedade social, que consiste em seu fundamento normativo mais elevado.” (A proibição de

57 TJRS: Apelação Cível Nº 70013136379, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Carlos Alberto Etcheverry. Julg. 19.01.2006.

253

comportamento contraditório: tutela da confiança venire contra factum proprium, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pág. 269/270) “Nestes termos, como já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, para se ter um comportamento por relevante, há de ser lembrada a importância da doutrina sobre os atos próprios. Assim, “o direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742).”58

Já a preclusão lógica encontra-se ancorada em base teórico-doutrinária a seguir transcrita:

“Preclusão lógica diz-se a impossibilidade em que se encontra a parte de praticar determinado ato, ou postular certa providência judicial em razão da incompatibilidade existente entre aquilo que agora a parte pretende e sua própria conduta processual anterior. Por exemplo, o réu condenado pela sentença comparece a cartório e paga o valor da condenação. Depois de praticar este ato, estando ainda a fluir o prazo para recurso, volta a cartório para apelar da mesma sentença.a aceitação da sentença, expressa pela conduta da parte de comparecer espontaneamente ao cartório e cumprir a condenação, importa em ter-se por preclusa a oportunidade para o recurso (art. 503).” (BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de Processo Civil. Volume I, 3a edição, Sergio Antonio Fabris Editor, p. 173).59, 60

58 TJRS: Agravo Interno Nº 70013531694, 19ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Mário José Gomes Pereira. Julg. 13.12.2006. Todos os destaques no original. 59 TJRS: Agravo de Instrumento Nº 70021573191, 10ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relator Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana. Julg. 01.10.2007, Todos os destaques no original. 60 Nesse julgado foi reconhecida a preclusão lógica da agravante que recorreu da decisão que indeferiu o pedido de gratuidade da justiça e determinou o recolhimento das custas judiciais depois de ter cumprido a ordem antes mesmo de recorrer. “No caso sub judice, tem-se que o cumprimento da ordem judicial se apresenta como conduta incompatível com a intenção de demonstrar inconformidade contra mencionado provimento.” Com igual teor o acórdão proferido no julgamento TJRS: Apelação Cível Nº 70013025473, 10ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana. Julg. 10.11.2006, Desta feita, em “Ação Cautelar de Exibição de Documento” foi proferida sentença julgando procedente a ação e determinando a ré, agora apelante, que fornecesse os dados cadastrais referentes a titulares das linhas telefônicas indicadas na inicial. Ao ser intimada da sentença “a demandada veio aos autos e referiu que em atenção à ordem da sentença acostava documentos os quais atendiam ao pedido formulado pela demandante.” Logo, o cumprimento da ordem veiculada na sentença é incompatível com a apelação interposta. O fundamento da decisão está na teoria dos atos próprios, pois o cumprimento da ordem (fornecimento das informações pela demandada), primeiro comportamento, – factum proprium é contrariado pelo segundo comportamento – a apelação. No mesmo sentido: - TJRS: Apelação Cível Nº 70003065901, 13ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Sérgio Luiz Grassi Beck. Julg. 28.03.2006, Em ação cautelar de exibição de documentos, cuja sentença foi pela procedência da ação, a apelante trouxe aos autos, junto com o recurso, os documentos reclamados pelo autor da ação da cautelar. O Tribunal reconheceu ter ocorrido a preclusão lógica. A apresentação dos documentos implicou cumprimento da decisão da qual pretendia se insurgir. - TJRS: Apelação Cível Nº 70016632085, 9ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relatora Desembargadora Íris Helena Medeiros Nogueira. Julg. 27.09.2006, Em ação cautelar de exibição de documentos a demandada apresentou os documentos e recolheu os valores sucumbenciais, cumprindo integralmente a condenação imposta na sentença. Tal conduta afigura incompatível com o ato processual do recurso. - TJRS: Agravo de Instrumento Nº 70020961124, 14ª Câmara Cível. Decisão Monocrática. Relatora Desembargadora Judith dos Santos Mottecy. Julg. 23.08.2007, O agravo de instrumento objetivou modificar decisão interlocutória proferida em ação de busca e apreensão e reconvenção, que indeferiu a apresentação de documentos de documentos pelo agravado para elaboração do cálculo do débito deste. O agravante, entretanto, havia requerido no “juízo a quo o procedimento de cumprimento da sentença com a intimação do agravado para pagar valor certo e determinado, inclusive com detalhamento do respectivo cálculo em anexo, tudo com base no art. 475-J, do Código de Processo Civil.” Tal postura, demonstrou a resignação do agravante com a decisão que, contraditoriamente, pretendeu, agora, combater. A apresentação da petição para cumprimento da sentença e a

254

Para corroborar o afirmado, vale trazer à colação ementa de acórdão proferido pelo Tribunal

de Justiça do Espírito Santo, no qual restou configurado o comportamento contraditório do

recorrente que, após entabular acordo de prestação de alimentos, homologado por sentença,

postulou em sede de apelação a anulação da sentença. Conforme assentado, “o direito

moderno não compactua com o venire contra factum proprium que se traduz como óbice ao

exercício de uma posição jurídica, em contradição com o comportamento assumido

anteriormente.” Cabe ressaltar que o julgado não se limitou a fundamentar a decisão com base

na falta do requisito de admissibilidade do recurso - interesse em recorrer – trazendo à

evidência a teoria dos atos próprios.

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. ACORDO HOMOLOGADO POR SENTENÇA. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL ACOLHIDA. 1) Caso a sentença seja meramente homologatória do acordo firmado entre as partes, inexiste interesse em recorrer, porque não houve sucumbência, na medida em que se concedeu exatamente o que foi requerido pelo autor e pelo réu. 2) Também inexiste interesse recursal, pois a extinção do processo veio em decorrência natural da atitude tomada pela própria parte recorrente, não podendo ser acolhida a pretensão de anular a referida sentença, posto que o Direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como no óbice ao exercício de uma posição jurídica, em contradição com o comportamento assumido anteriormente. 3) Recurso não conhecido.”61

Nesse mesmo sentido:

“PROCESSO CIVIL/CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DE ALIMENTOS. ACORDO FIRMADO ENTRE AS PARTES HOMOLOGADO POR SENTENÇA. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE EM RECORRER ACOLHIDA. AUSÊNCIA DE SUCUMBÊNCIA. RECURSO NÃO CONHECIDO. I- Apelação cível em Ação de Alimentos. II- Para que se verifique a existência do interesse recursal, faz-se necessário considerar a existência e a aplicação do princípio da proibição do "venire contra factum proprium". De acordo com esse princípio, o indivíduo que na sociedade adota uma certa conduta, e que por sua vez proporciona o surgimento de efeitos fáticos, jurídicos e econômicos, carece de interesse processual de ir ao Judiciário e adotar uma postura completamente diferente daquela até então assumida. Na realidade, essa discrepância entre os comportamentos das partes no processo, gera uma incompatibilidade lógica, ou seja, opera-se uma preclusão lógica, em virtude da qual a parte perda a faculdade processual devido ao fato de haver realizado atividade incompatível com o exercício daquela. III- Tendo em vista que o apelante aquiesceu com o pactuado e, conforme exposto, fora proferida sentença homologatória, não pode, posteriormente aos seus atos, adotar uma conduta em sentido completamente oposto e recorrer da referida sentença homologatória, afirmando, que fora completamente exonerado da obrigação alimentícia em virtude de acordo anteriormente celebrado entre as partes na Ação de Investigação de Paternidade c/c Alimentos. IV- Preliminar acolhida. Recurso não conhecido.62, 63

interposição do agravo são atos logicamente incompatíveis entre si, o que vem denotar a ocorrência da preclusão lógica. 61 TJES: AC 048.04.009276-8, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 10.05.2005, DJES 10.08.2006. 62 TJES: AC 019.02.000414-9, Segunda Câmara Cível, Relator. Desembargador Substituto Fernando Estevan Bravin Ruy, Julg. 19.09.2006, DJES 09.10.2006. Destacamos.

255

Como se verifica, a base teórica da preclusão lógica é a mesma da teoria dos atos próprios:

impossibilidade da prática do ato face à incompatibilidade existente com ato praticado

anteriormente.

Diante desse quadro, a investigação levada a cabo revela que nas decisões pesquisadas as

hipóteses de preclusão lógica no Direito Processual estão na verdade sustentadas no dever de

observar a boa-fé objetiva, conforme se passa a demonstrar.

Em recente decisão o Tribunal do Rio Grande do Sul negou provimento à apelação interposta

por Brasil Telecom S/A em face de sentença que extinguiu, por falta de interesse recursal,

embargos de execução, uma vez que na ação de execução a empresa, agora apelante, efetuou

o pagamento da dívida nos moldes do cálculo apresentado.64 Diante de tal situação aquele

Tribunal concluiu ser incompatível com a vontade de embargar a quitação da dívida objeto da

execução. Portanto, faltara ao embargante o interesse em recorrer.

Quadra destacar que no texto do acórdão constou, expressamente, “[...] a ausência de interesse

da ré que ao quitar os valores executados praticou ato incompatível com a vontade de

embargar [...]”65. Em que pese, no texto do acórdão não ter sido feita qualquer referência

expressa à teoria dos atos próprios, é notório que é uma situação típica da figura do venire

contra factum proprium, em homenagem à boa-fé objetiva que deve nortear o agir de todos

aqueles que participam do processo.

Em outra oportunidade, aquele Tribunal negou provimento à apelação que pretendia ver

reformada sentença que havia homologado laudo pericial realizada em ação cautelar de

produção antecipada de provas. De acordo com o que constou dos autos, o apelante, nos

63 Firmando apenas na falta de interesse em recorrer, o TJES no julgamento de apelação interposta, sendo que, anteriormente, as partes haviam celebrado acordo, ainda que não homologado. O acórdão ficou assim ementado: Celebrado acordo entre as partes, mesmo que ainda não homologado pelo juízo, não pode ser suscetível de arrependimento unilateral, cabendo à parte que se sentir prejudicada a utilização dos instrumentos processuais cabíveis para desconstituir o ato negocial Falece interesse recursal à parte que, tendo celebrado acordo extinguindo o feito na forma do art. 269, III, do CPC, pretende questioná-lo por meio de recurso de apelação. Sentença mantida. Recurso não conhecido. TJES: AC 024.99.011389-6, Quarta Câmara Cível, Relator Desembargador Manoel Alves Rabelo, Julg. 24.11.2003, DJES 08.03.2004. 64 TJRS: Apelação Cível Nº 70019817725, 17ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Marcos Aurélio dos Santos Caminha. Julg. 08.11.2007. 65 TJRS: Apelação Cível Nº 70019817725, 17ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Marcos Aurélio dos Santos Caminha. Julg. 08.11.2007.

256

memoriais apresentados antes da prolação da sentença, havia requerido a homologação de dita

prova. Ademais, o apelante foi regularmente cientificado da nomeação do perito, tendo pleno

conhecimento da sua identificação, da sua qualificação e, inclusive, formulou quesitos para a

perícia técnica, “sem externar qualquer inconformismo com a referida nomeação.” Dessa

forma, o Tribunal entendeu ter ocorrido a preclusão lógica para, somente após a confecção do

laudo, insurgir no que respeita à qualificação técnica do perito, mesmo porque não foram

carreados aos autos qualquer prova que pudesse demonstrar a falta de capacidade técnica do

profissional para a realização da prova.66

Na realidade está-se diante de situação caracterizadora do venire contra factum proprium,

ante a incompatibilidade lógica do comportamento apelante, que após praticar todos os atos

concordantes com a indicação do perito e para a realização da perícia, vem pôr em xeque a

qualificação do profissional. O que conflita frontalmente com a boa-fé objetiva

consubstanciada na lealdade processual.

Conforme já afirmado, há verdadeira identidade entre a preclusão lógica e o venire contra

factum proprium. A preclusão lógica no bojo do direito processual é sempre situação de

venire contra factum proprium – incompatibilidade lógica entre os atos processuais praticados

- entretanto o campo de configuração do venire contra factum no campo processual não se

restringe às situações nas quais se configura a preclusão lógica.

Os julgados trazidos à colação, que demonstram a aplicação da boa-fé objetiva como norma

na qual se funda o venire contra factum proprium e a preclusão lógica, impendem observar o

traço característico diferenciador das duas figuras: venire contra factum proprium e preclusão

lógica. A preclusão lógica é um “fenômeno interno, que só diz respeito ao processo em curso

e às suas partes.”67 Já o venire contra factum proprium pode manifestar-se em condutas cuja

contrariedade pode desbordar os limites processuais, ou seja, comporta a prática de atos

extraprocessuais cuja contrariedade será manifesta no interior do processo. Poder-se-ia

afirmar que o “venire contra factum proprium interno” é denominado, no campo processual,

como “preclusão lógica” e o “venire contra factum proprium externo”, para o qual não há

uma figura processual específica equivalente.

66 TJRS: Apelação Cível Nº 70018560284, 6ª Câmara Cível. Decisão Unânime. Relator Desembargador Artur Arnildo Ludwig. Julg. 18.10.2007. 67 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. v. I. Rio de Janeiro: Forense. 2001,. p. 468.

257

8.5 A Boa-Fé Objetiva como Norma a Assegurar a Prestação da Tutela Jurisdicional em

Tempo Razoável

A boa-fé objetiva, em sua feição dada pela lealdade processual, tem sido fundamento para

imprimir efetividade à prestação da tutela jurisdicional reprovando todas as manobras

recursais protelatórias, que possuem o nítido intuito de retardar e/ou obstar a efetividade do

provimento jurisdicional.

O §2º, do art. 557 do CPC assim dispõe:

Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. [...] §2º. Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre 1% (um por cento) e 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor.

No entendimento dominante no âmbito do STF a aplicação desse dispositivo visa a privilegiar

o postulado da lealdade processual conforme se pode inferir do trecho do voto do Ministro

Celso de Mello no julgamento AI-AgR 682.930/MG, verbis:

“Torna-se importante enfatizar que o disposto no §2º do art. 557 do CPC, além de encontrar fundamento em razões de caráter ético-jurídico (privilegiando, desse modo, o postulado da lealdade processual), também busca imprimir celeridade ao processo de administração da justiça, atribuindo-lhe um coeficiente de maior racionalidade, em ordem a conferir efetividade à resposta jurisdicional do Estado. Esse entendimento – que destaca a ratio subjacente à norma inscrita no art. 557, §2º, do CPC – põe em evidência a função inibitória da sanção processual prevista no preceito em causa, que visa a impedir, na hipótese nele referida, o exercício irresponsável do direito de recorrer, neutralizando, dessa maneira, a atuação processual do “improbus litigator”. Concluindo: o abuso do direito de recorrer – por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual – constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos caos em que a parte interpuser recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que legitimará a imposição de multa.”68, 69

68 STF: AI-AgR 682.930-2, MG; Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, Julg. 13.11.2007, DJU 19.12.2007, Pág. 69. 69 Nesse mesmo sentido: STF: AI-AgR 680.165-5/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 16.10.2007, DJU 30.11.2007, Pág. 107; STF: AI-AgR-ED-ED 629.794-9/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello. Julg. 09.10.2007, DJU 09.11.2007, Pág. 73; STF: RE-AgR-ED-ED 478.951-5/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 18.09.2007, DJU 11.10.2007, Pág. 56; STF: RE-AgR-ED-ED 478.243-0/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 14.08.2007, DJU 14.09.2007, Pág. 84; STF: RE-AgR-ED-ED 255.235-6/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 26.06.2007, DJU

258

A via recursal é direito posto à disposição das partes da relação jurídica para expressar a sua

inconformidade e se insurgir com as decisões que lhes são desfavoráveis, entretanto o dever

de lealdade processual impõe limites a essa autuação quando conflitante com o ideal de

justiça perseguido pelo deslinde processual.70 Nesses termos, na precisão interpretação dada

pelo STF no que tange à aplicação das multas previstas nos arts. 538, parágrafo único e 557,

§2º, ambos do CPC, as mesmas possuem “[...] função inibitória, pois visa a impedir o

17.08.2007, Pág. 90; STF: RE-AgR-ED-ED 406.432-4/PI, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 27.03.2007, DJU 27.04.2007, Pág. 105; STF: AI-AgR-ED-ED 548.117-7/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 04.09.2007, DJU 21.09.2007, Pág. 43; STF: RE-AgR-ED-ED 497.493-2/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 14.08.2007, DJU 14.09.2007, Pág. 85; STF: AI-AgR-ED-ED 582.280-3/RJ, Segunda Turma, Relator. Ministro Celso de Mello, Julg. 17.04.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 562.668-3/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 27.03.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 476.262-7/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 20.03.2007, DJU 29.06.2007; Pág. 142; STF: RE-AgR-ED-ED 469.882-0/PE, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 06.03.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 422.464-6/DF, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 22.05.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: RE-AgR-ED-ED 383.962-4/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 27.03.2007, DJU 29.06.2007, Pág. 142; STF: AI-AgR-ED-ED 599.521-4/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 06.03.2007, DJU 22.06.2007, Pág. 62; STF: AI-AgR-ED-ED 541.424-6/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 20.03.2007, DJU 22.06.2007, Pág. 62, STF: AI-AgR-ED-ED 352.907-5/BA, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 18.12.2006, DJU 23.02.2007, Pág. 39; STF: RE-AgR-ED-ED 230.728-6, SP; Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 18.12.2006, DJU 23.02.2007, Pág. 40; STF: AI-AgR 615.073-9/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 136; STF: AI-AgR 614.629-9/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 136; STF: AI-AgR 613.046-2/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 28.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 135; STF: AI-AgR 612.714-2/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 28.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 135; STF: AI-AgR 612.379-5/MG; Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 28.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 135; STF: AI-AgR 610.329-4/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 134; STF: AI-AgR 609.723-0/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 133; STF: AI-AgR 609.606-3/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 133; STF: AI-AgR-ED-ED 587.285-2/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: AI-AgR-ED-ED 586.710-4/RJ, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: AI-AgR-ED 567.794-1/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 21.11.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 152; STF: AI-AgR-ED-ED 552.406-6/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: AI-AgR-ED-ED 460.016-2/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: RE-AgR-ED-ED 459.685-7/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 12.12.2006, DJU 02.02.2007; Pág. 158; STF: RE-AgR-ED-ED 445.253-7/AC, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 158; STF: AI-AgR-ED-ED 251.931-3/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 31.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 157; STF: RE-AgR-ED-ED 222.227-1/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 158; STF: RE-AgR-ED-ED 220.344-1/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 03.10.2006, DJU 02.02.2007, Pág. 158; 70 Nesse sentido os seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Espírito Santo: TJES: AGInt-EDcl 24069003630, Primeira Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 19.06.2007, DJES 23.07.2007, Pág. 24; TJES: AGInt-AC 12079000118, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 12.06.2007, DJES 16.07.2007, Pág. 37, cujo trecho da ementa colacionamos: “[...]4. É certo que a parte pode utilizar-se do meio de impugnação próprio para demonstrar o seu inconformismo e buscar a modificação da sentença que lhe seja desfavorável. Contudo, a partir do momento em que o uso dessa faculdade carece de fundamento apto a ensejar a alteração do julgado, revelando a intenção deliberada de retardar indevidamente a finalização do litígio e tornar efetiva a prestação jurisdicional, em detrimento do interesse público e privado, sobressai o desvio de finalidade da via eleita e o inequívoco abuso do direito de recorrer, conduta merecedora de sanção por litigância de má-fé prevista em Lei.”

259

exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como

instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses”.71

Diante de recursos manifestamente protelatórios, desprovidos de fundamentos jurídicos que

lhe venham dar sustentação, ou seja, quando manifestamente descabidos ante a ordem

processual vigente, torna-se imperiosa a atuação do órgão jurisdicional para coibir tais

práticas.

Em consonância com esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça – STJ tem asseverado

que “[...] direito de acesso à via judicial não é ilimitado, exigindo-se da parte que mantenha

dentro do âmbito da razoabilidade a sua irresignação. Inibindo o abuso do direito de recorrer,

o atual Código de Processo Civil municia o órgão julgador de mecanismos aptos a coibir, por

exemplo, a interposição de recurso manifestamente protelatório (art. 17, VII). No caso

específico, destaca-se a previsão do art. 538, parágrafo único, que permite a incidência de

multa entre 1% e 10% do valor corrigido da causa, quando "manifestamente inadmissível ou

infundado" o recurso.”72, 73

É importante ressaltar que a boa-fé objetiva, além de servir de escudo de proteção das partes

envolvidas na relação jurídica processual primando pela lealdade que deve reger as suas

atuações, visa a salvaguarda da efetividade da prestação da tutela jurisdicional. Nesse passo, o

STJ teve oportunidade de se manifestar em julgamento de diversos recursos interpostos em

razão de não conhecimento de recurso especial, face à sua extemporaneidade. Tratava-se de

recurso especial no qual o recorrente, advogando em causa própria, buscava o pagamento de

honorários advocatícios, que no seu entender seriam devidos em decorrência de ação popular

por ele movida para deslocar monumento histórico no Município de Saquarema. Não tendo

sido conhecido o recurso, este interpôs, seguidamente, agravo de instrumento, agravo interno,

embargos de declaração e reiterados pedidos de reconsideração, além de diversas outras

petições, totalmente descabidas, no afã de ver acolhida a sua pretensão. Tais movimentações

71 STF: AI-AgR-ED-ED 619.821-4/RS, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julg. 23.10.2007, DJU 30.11.2007, Pág. 127. 72 STJ: EDcl-AgRg-Ag 612.373, Proc. 2004/0081834-0/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, Julg. 27.11.2007, DJU 17.12.2007, Pág. 176. 73 Nesse mesmo sentido: STJ: EDcl-AgRg-Ag 650.921, Proc. 2005/0000559-2/SP, Quarta Turma, Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Julg. 21.08.2007, DJU 03.09.2007, Pág. 180; STJ: AgRg-AgRg-Ag 712.419, Proc. 2005/0164485-2/MG, Quarta Turma, Relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Julg. 17.05.2007, DJU 0406.2007, Pág. 358; STJ: AgRg-Ag 740.181, Proc. 2006/0015243-2/MG, Primeira Turma; Relatora Ministra Denise Martins Arruda, Julg. 21.09.2006, DJU 23.10.2006, Pág. 265.

260

processuais ocorreram de 06.2002 a 10.2005, desde o julgamento do agravo de instrumento

até o julgamento do último recurso pelo STJ, o que por si só denota o comprometimento da

duração razoável do processo, o que levou aquela corte, no último julgamento, a expressar:

“III - Resta evidenciado que o agravante busca prolongar indefinidamente o exercício jurisdicional, olvidando por certo, que tal atividade é desenvolvida de acordo com as regras e os princípios processuais cogentes, que devem nortear a todos os operadores do direito. Não havendo previsão legal para a interposição de tais petições, deve-se impor a declaração do trânsito em julgado, em virtude do transcurso do prazo para a interposição do recurso próprio. lV - Evidenciado o caráter manifestamente protelatório dos petitórios, bem como configurada a má-fé, condena-se o recorrente a indenizar a parte contrária em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa (CPC, art. 18, § 2º). V - Notifique-se a OAB/RJ, com cópias das decisões desta Corte Superior.”74, 75

Essa orientação tem sido seguida pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, conforme excerto

do julgamento de agravo interno interposto em apelação cível:

“É certo que a parte pode utilizar-se do meio de impugnação próprio para demonstrar o seu inconformismo e buscar a alteração da decisão que lhe seja desfavorável. Contudo, a partir do momento em que o uso dessa faculdade carece

74 STJ: RCDESP-RCDESP-RCDESP-AgRg-AgRg-AgRg-AgRg-EDcl-AgRg-Ag 428788/RJ, Primeira Turma, Decisão Unânime, Relator Ministro Francisco Cândido de Melo Falcão Neto, Julg. 20.10.2005, DJU 28.11.2005, Pág. 190. 75 Nesse mesmo sentido: - STJ: AgRg-Pet 3696/MG, Corte Especial, Relator Ministro Edson Carvalho Vidigal, Julg. 29.06.2005, DJU 29.08.2006, Pág. 133, que restou assim ementado: 1. A Quinta Turma desta Corte determinou a baixa imediata do RESP nº 378.450 e aplicou multa à Embargante pelo intuito procrastinatório do feito, tendo em vista a oposição sucessiva de quatro embargos de declaração. 2. A incessante interposição de petições com vistas a prolongar o exercício da prestação jurisdicional, impedindo o trânsito em julgado, não pode ser acobertado pelo Judiciário. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal. 3. Agravo Regimental não provido.” - STJ: EAERAG 387730/SP, Corte Especial, Decisão Unânime, Relator Ministro Edson Carvalho Vidigal, Julg. 12.02.2004, DJU 01.03.2004, pág. 00118, cuja ementa transcrevemos: “A interposição de recurso incabível não suspende ou interrompe o prazo para a apresentação do recurso próprio, nem tem o poder de impedir o trânsito em julgado do acórdão (ou decisão) inadequadamente impugnado. Extinta a prestação jurisdicional e determinada a baixa dos autos, independentemente da publicação do acórdão e de eventual interposição de qualquer outro recurso. Evidenciado o caráter manifestamente protelatório da insurgência, bem como configurada a má-fé, condena-se o recorrente a indenizar a parte contrária em 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa (CPC, art. 18, § 2º). O inusitado e manifesto desrespeito do advogado subscritor das petições a esta Casa de Justiça, utilizando-se de meios manifestamente incabíveis, transformando o processo civil em panacéia jurídica, atravancando o regular andamento processual, retardando o deslinde da controvérsia de forma inexplicável e sem precedentes, a par de configurada a inépcia, leva-se a que se oficie a OAB/SP, com cópia desta.” - STJ: EEARMS 2331/SP, Quinta Turma, Relator Ministro Gilson Langaro Dipp, Julg. 02.10.2001; DJU 29,10.2001, pág. 00216. “III - Os embargos de declaração, também denominados de "recurso integrativo", devem calcar-se nos seus pressupostos, quais sejam: Omissão, contradição ou obscuridade. A sua utilização não pode servir para achincalhar o rito processual. A sucessiva oposição do recurso, com o fito protelatório, onde o Embargante pretende reapreciar matéria exaustivamente apreciada anteriormente, só que desfavorável à sua pretensão, autoriza a produção dos efeitos do julgado, independentemente da publicação do acórdão embargado, pois a jurisprudência do Pretório Excelso encontra-se sensível quanto a este pormenor. Precedentes: EREEDA 247.416/SP, AGAEDE 260.266/PB, REEDED 244.161/MG, EREEAE 167.787/PR E EDEXT 761-EU. lV - Embargos de declaração rejeitados, determinando-se a imediata inclusão do recurso ordinário em pauta, independentemente de publicação do acórdão, bem como da interposição de qualquer outro recurso.”

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de fundamento apto a ensejar a modificação do julgado, revelando a intenção deliberada de retardar indevidamente a finalização do litígio e tornar efetiva a prestação jurisdicional, em detrimento do interesse público e privado, sobressai o desvio de finalidade da via eleita e o inequívoco abuso do direito de recorrer, conduta merecedora da sanção por litigância de má-fé prevista em Lei. 10. Agravo interno desprovido, com multa de 5% (cinco por cento) sobre o valor dado à causa atualizado, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito da respectiva importância (art. 557, § 2º, CPC).”76

Nesse mesmo sentido foi a decisão proferida no julgamento de embargos declaratórios

interpostos em acórdão que julgou apelação cível. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo se

manifestou nos seguintes termos:

“[...] 4. Os embargos declaratórios destinam-se a aclarar obscuridade, sanar contradição ou suprir eventual omissão no julgado (art. 535, I e II, CPC). Ainda que para fins de prequestionamento, os embargos de declaração somente são cabíveis quando houver omissão, obscuridade ou contradição na decisão embargada. Desse modo, quando manifestamente infundados, seja porque ventilam temas já expressamente decididos, seja porque levantam argumentos totalmente irrelevantes ou desinfluentes, seja porque lançam a esmo dispositivos legais inócuos, ditos violados, cujo exame o caso concreto não obrigava, evidencia-se o caráter procrastinatório dos embargos de declaração. 5. No presente caso, à evidência, não se justificava a oposição dos embargos declaratórios, nem mesmo para fins de prequestionamento (Súmula nº 98 do STJ), pois já havia pronunciamento claro e explícito sobre a questão jurídica aventada, revelando-se manifesta a intenção protelatória da embargante, provocando o retardamento indevido da marcha processual, em detrimento do interesse público na finalização do litígio, atitude merecedora da sanção prevista no art. 538, par. Único, do CPC, até mesmo em caráter pedagógico. Precedentes do STJ. 6. Embargos desprovidos, com multa de 1% sobre o valor da causa atualizado.”77

Corroborando esse entendimento a Corte capixaba aplicou a multa prevista no §2º, do art.

557, do CPC, face a agravo regimental interposto contra decisão prolatada no julgamento em

agravo de instrumento que não conheceu do recurso por não constar nos autos peça

comprobatória do substabelecimento do advogado que firmou a peça recursal. Ante tal

situação, não foi dado provimento ao agravo regimental, restando configurado o abuso do

direito de recorrer, nos seguintes termos da ementa:

“II . Se, a despeito das alegações veementes da Recorrente no agravo interno, está ausente a peça de juntada obrigatória no bojo do recurso primitivo, está delineado o abuso do direito de recorrer, mormente quando a parte sequer consigna o número da página na qual estaria acostado o suposto substabelecimento. III. Sendo flagrantemente infundado o agravo, está caracterizado o cenário perfeito para a aplicação da multa prevista no § 2º do art. 557 do CPC que, por critério de

76 TJES: AInt-AC 24020136966, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 06.11.2007, DJES 07.12.2007, Pág. 33. 77 TJES: EDcl-AC 35020009367; Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 13.11.2007, DJES 07.12.2007; Pág. 30.

262

razoabilidade, na hipótese deve ser fixada em 1% (um por cento) do valor corrigido da causa.”78

O STF ao analisar o cabimento do instrumento constitucional da reclamação colocou em

evidência a importância do processo como instrumento para acesso à ordem jurídica justa

impondo às partes, inclusive o poder público quando figura como parte na relação jurídico-

processual, o dever de agir norteado pelas balizas da lealdade e da probidade processuais

advindas da boa-fé objetiva.

“[...] PODER PÚBLICO E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - O processo não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé ("improbus litigator")- trate-se de parte pública ou de parte privada - deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática descaracterizadora da essência ética do processo. O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. O processo, em sua expressão instrumental, deve ser visto como um importante meio destinado a viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, achando-se impregnado, por isso mesmo, de valores básicos que lhe ressaltam os fins eminentes a que se acha vinculado. - Hipótese dos autos que não revela dolo processual, embora evidencie precipitação, por parte da União Federal, quanto à utilização do instrumento constitucional da reclamação, eis que a decisão do STF, supostamente desrespeitada, somente veio a ser pronunciada em momento posterior ao da prolação do ato judicial reclamado.79

Para corroborar esse entendimento, merece trazer à colação a seguinte ementa:

E M E N T A: RECURSO MANIFESTAMENTE INFUNDADO - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA À PARTE RECORRENTE (CPC, ART. 557, § 2º, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 9.756/98) - PRÉVIO DEPÓSITO DO VALOR DA MULTA COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DE NOVOS RECURSOS - VALOR DA MULTA NÃO DEPOSITADO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO CONHECIDOS. MULTA E ABUSO DO DIREITO DE RECORRER. - A possibilidade de imposição de multa, quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, encontra fundamento em razões de caráter ético-jurídico, pois, além de privilegiar o postulado da lealdade processual, busca imprimir maior celeridade ao processo de administração da justiça, atribuindo-lhe um coeficiente de maior racionalidade, em ordem a conferir efetividade à resposta jurisdicional do Estado. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC, possui inquestionável função inibitória, eis que visa a impedir, nas hipóteses referidas nesse preceito legal, o exercício irresponsável do direito de recorrer, neutralizando, dessa maneira, a atuação processual do improbus litigator. O EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER E A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. - O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. O processo

78 TJES: AgRg-AI 012.05.900148-2, Quarta Câmara Cível, Relatora Desembargadora Catharina Maria Novaes Barcellos, Julg. 29.11.2005, DJES 24.01.2006. 79 Rcl-AgR-QO 1723 / CE – CEARÁ, QUEST. ORD. NO AG. REG. NA RECLAMAÇÃO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 08/02/2001, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 06-04-2001, PP-00071.

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não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé - trate-se de parte pública ou de parte privada - deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática descaracterizadora da essência ética do processo. O DEPÓSITO PRÉVIO DA MULTA CONSTITUI PRESSUPOSTO OBJETIVO DE ADMISSIBILIDADE DE NOVOS RECURSOS. - O agravante - quando condenado pelo Tribunal a pagar, à parte contrária, a multa a que se refere o § 2º do art. 557 do CPC - somente poderá interpor "qualquer outro recurso", se efetuar o depósito prévio do valor correspondente à sanção pecuniária que lhe foi imposta. A ausência de comprovado recolhimento do valor da multa importará em não-conhecimento do recurso interposto, eis que a efetivação desse depósito prévio atua como pressuposto objetivo de recorribilidade. Doutrina. Precedente. - A exigência pertinente ao depósito prévio do valor da multa, longe de inviabilizar o acesso à tutela jurisdicional do Estado, visa a conferir real efetividade ao postulado da lealdade processual, em ordem a impedir que o processo judicial se transforme em instrumento de ilícita manipulação pela parte que atua em desconformidade com os padrões e critérios normativos que repelem atos atentatórios à dignidade da justiça (CPC, art. 600) e que repudiam comportamentos caracterizadores de litigância maliciosa, como aqueles que se traduzem na interposição de recurso com intuito manifestamente protelatório (CPC, art. 17, VII). A norma inscrita no art. 557, § 2º, do CPC, na redação dada pela Lei nº 9.756/98, especialmente quando analisada na perspectiva dos recursos manifestados perante o Supremo Tribunal Federal, não importa em frustração do direito de acesso ao Poder Judiciário, mesmo porque a exigência de depósito prévio tem por única finalidade coibir os excessos, os abusos e os desvios de caráter ético-jurídico nos quais incidiu o improbus litigator. Precedentes.80, 81

O Superior Tribunal de Justiça reconheceu abuso do direito de ação ao julgar Recurso

Especial, que ficou assim ementado:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. MEDIDA CAUTELAR. LITÍGIO ENTRE VIZINHOS, EM FACE DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA QUE RECONHECEU EXISTÊNCIA DE SERVIDÃO DE PASSAGEM EM FAVOR DO IMÓVEL DE UM DELES. OBRAS ORNAMENTAIS REALIZADAS POR ESTE, NO CURSO DA SERVIDÃO, QUE FORAM APONTADAS COMO TENDO MERO CARÁTER DE PROVOCAÇÃO À OUTRA PARTE, EM FACE DA ANTERIOR VITÓRIA JUDICIAL. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO EM SEDE DE APELAÇÃO. RECONHECIMENTO, PELO TRIBUNAL DE ORIGEM, DA PRÁTICA DE MÚTUA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, SEM QUE SE TENHA, CONTUDO, APLICADO A RESPECTIVA MULTA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE CONDENAÇÃO, A ESSE TÍTULO, DO ORA RECORRIDO. NECESSIDADE, CONTUDO, DE IGUAL CONDENAÇÃO DOS RECORRENTES, DE OFÍCIO, SOB RISCO DE DESPRESTÍGIO DA JUSTIÇA. Não se reconhece violação ao art. 535 do CPC quando ausentes omissão, contradição ou obscuridade na decisão recorrida. - Não se reconhece interesse de recorrer à parte que já obteve o provimento jurisdicional desejado. - Não se conhece de Recurso Especial na específica parte em que este se encontra deficientemente fundamentado. - O Tribunal de origem reconheceu que o motivo da propositura da presente medida cautelar foi uma 'conduta revanchista' que representava verdadeiro

80 AI-AgR-ED 193779 / PR – PARANÁ, EMB.DECL. NO AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 13/06/2000, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação DJ 08-06-2001, PP-00014. 81 Nesse mesmo sentido: STF: RE-AgR-ED 244893 / PR, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, Julgamento: 09.11.1999, DJ 03.03.2000, Pág. 00080.

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‘abuso de direito’; nesses termos, não é causa excludente da condenação por litigância de má-fé a invocação do direito de acesso à justiça, pois não há como reconhecer que a proteção a um direito chegue ao ponto de justificar seu próprio abuso. - Verifica-se, contudo, que o Tribunal de origem reconheceu a ocorrência de litigância de má-fé também pelos ora recorrentes, deixando de aplicar a respectiva multa em face daquele argumento já afastado em relação à conduta do recorrido. Nesses termos, e sob pena de descrédito da justiça, é de se aplicar, de ofício, igual multa àqueles, retirando-se, assim, o benefício financeiro que teriam se não tivessem adotado o mesmo tipo de postura que criticaram em seu oponente. Recurso Especial parcialmente provido; aplicação, de ofício, de multa por litigância de má-fé.82

Pela precisão dos termos do voto da Relatora Ministra Nancy Andrighi, vale ressaltar:

A respeito da real intenção do ora recorrido, ao interpor a presente medida cautelar, assim se manifestou o acórdão: “O que se depreende da simples leitura das peças processuais é que a questão está atrelada muito mais à indignação do apelado do que propriamente à suposta turbação; entendo que o Poder Judiciário não deve ser invocado para agasalhar conduta revanchista como a que moveu o apelado a intentar a presente medida. As obras realizadas pelos apelantes enquadram-se no permissivo legal aplicável à espécie e não representam qualquer abuso de direito; ao contrário, o apelado sim ao intentar a presente demanda” ( fls. 346). Contudo, negou-se aplicação à pena de litigância de má-fé, conforme os seguintes fundamentos, expostos nos embargos de declaração: “(...) restou declarado no acórdão recorrido que a interposição da medida, totalmente improcedente, não deveria ser assim considerada, por ser um absurdo punir-se pecuniariamente, um cidadão de acessar à Justiça. Ora, mesmo considerando a medida infundada, não vislumbro qualquer contradição em não considerá-la ato de turbação a impor a cobrança de multa nem, tampouco, como litigância de má-fé, eis que o embargado não praticou nenhuma das hipóteses do artigo 17 do Código de Processo Civil. Nenhuma multa será aplicada, neste grau de jurisdição, à parte que, achando que detém um direito, mesmo que infundada a pretensão, ou mal formulada, ou absurda, ajuíze uma ação perante o Poder Judiciário” (fls. 376 - sem grifos no original). No julgamento do Resp nº 334.259⁄RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ de 10.03.2003, ficou estabelecido, nos termos da ementa, que “Entende o Superior Tribunal de Justiça que o artigo 17 do Código de Processo Civil, ao definir os contornos dos atos que justificam a aplicação de pena pecuniária por litigância de má-fé, pressupõe o dolo da parte no entravamento do trâmite processual, manifestado por conduta intencionalmente maliciosa e temerária, inobservado o dever de proceder com lealdade”, ao que se soma a necessidade de existência de prejuízo à outra parte. Dos trechos supra citados, especialmente do primeiro, verifica-se que o TA⁄PR reconheceu, efetivamente, que o motivo da propositura da presente medida cautelar era uma 'conduta revanchista' que representava verdadeiro 'abuso de direito', deixando apenas de aplicar a multa do art. 17 do CPC em face da previsão constitucional do direito de acesso ao Judiciário. Mas o direito mal utilizado ao qual o acórdão se refere, na medida em que tal se deu com abuso, só pode ser, à evidência, esse mesmo direito de ação, sendo impossível reconhecer-se que a previsão do art. 5º, XXXV da CF chegue ao ponto de justificar sua própria violação, conquanto não há, mesmo no plano dos direitos e garantias fundamentais, direitos que sejam absolutos.

82 STJ: REsp 816.453, Proc. 2006/0024235-4/PR, Terceira Turma; Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi, Julg. 22.08.2006, DJU 04.09.2006, p. 270.

265

Nesse sentido, já se manifestou o STF, em precedente relatado pelo i. Min. Celso de Mello, que "O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. O processo não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé - trate-se de parte pública ou de parte privada - deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática descaracterizadora da essência ética do processo" (Ed no Ag no RE nº 244.893-1⁄PR, 2ª Turma, j. Em 09.11.1999). Uma vez afastada a justificativa do acórdão para a não incidência da multa do art. 17 do CPC, pois a previsão constitucional de um direito não pode se erigir em justificativa para que esse mesmo direito seja utilizado com abuso, e não sendo possível ao STJ rever a conclusão do acórdão a respeito da má-fé do ora recorrido, que se tem por configurada, assim como o prejuízo sofrido pelos ora recorrentes, que é evidente em face da constatação de que foram demandados apenas em face de desejo revanchista do autor, é de se reformar o acórdão neste ponto, fazendo incidir a multa por litigância de má-fé ao recorrido, com fundamento no art. 17, V, do CPC. IV-b) Análise da conduta dos recorrentes. Conclusões do acórdão recorrido. Esta é, contudo, apenas uma face da questão. Proposta a ação, empenharam-se os ora recorrentes na contenda com nada menos do que quatro embargos de declaração, dois deles de simples despachos do juiz, um agravo de instrumento, uma apelação e um mandado de segurança contra a mesma sentença e todos com o mesmo conteúdo, três reclamações sobre o que entenderam serem atitudes prejudiciais tomadas pelo Cartório onde tramitou o processo e pelo Tribunal a quo, uma questão de ordem e incontáveis petições, além do presente recurso especial, no qual, como visto, insiste-se em obter provimento jurisdicional já existente desde o julgamento da apelação, que lhes foi favorável no mérito, repisando-se incansavelmente acusações não só contra o oponente, mas também contra o próprio Poder Judiciário. Nesse contexto, em que se verifica a interposição pelos ora recorrentes, até o momento, de quase uma dezena de recursos absolutamente incabíveis e desnecessários, chama a atenção o fato de que, em todas as petições por estes oferecidas, faz-se longa exposição sobre a necessidade de respeito irrestrito à Lei nº 10.173⁄01, que confere preferência à tramitação dos processos envolvendo interesses de idosos. Há, inclusive, petição a fls. 311⁄314, que reclama de 'atos inexplicáveis praticados pela Escrivania' no presente processo, configurados no que seria uma estranha demora para o processamento da apelação dos ora recorrentes, no qual consta o seguinte trecho: “Tendo sido interposta a apelação (fls. 253⁄287), em outubro de 2003, os autos foram conclusos ao E. Juízo 20 (vinte) dias após, contrariamente ao que prescreve a Lei nº 10.173⁄01, gerando a inconformidade dos ora apelantes” (fls. 311). A resposta do servidor responsável pelo Cartório, a fls. 316, dá conta, porém, de que tramitavam pela Vara nada menos do que vinte e cinco mil processos. A insistência dos ora recorrentes em ver suas irresignações - repita-se, na grande maioria, absolutamente incabíveis de acordo com a técnica processual - analisadas com extrema eficiência é tanta que levou o i. Relator dos embargos de declaração julgados no TA⁄PR a se manifestar, em uma página inteira, sobre o modo como aquele Tribunal procura respeitar o privilégio legal concedido aos idosos (fls. 374⁄375). Em resumo, verifica-se nítido contraste na postura dos ora recorrentes, pois estes, ao mesmo tempo em que exigem celeridade ímpar na tramitação dos processos de que são partes, atuam no sentido de atulhar o Poder Judiciário com vários recursos e petições absolutamente despropositadas, contribuindo, assim, para a morosidade do sistema como um todo.

266

Sobre a conduta dos ora recorrentes, igualmente se manifestou o acórdão, durante o julgamento dos últimos embargos de declaração interpostos por estes, nos seguintes termos: “Também, e pela mesma linha de raciocínio, não vislumbro qualquer ato de má-fé processual a ensejar seu reconhecimento nos moldes do artigo 17 da Lei adjetiva, vez que, se o abuso de direito pelo acesso à Justiça pudessem ensejar a aplicação de multa como pretendem os embargantes, por certo que aos mesmos esta penalidade já teria sido imposta por mais de uma vez” (fls. 377). Portanto, e nos termos do próprio acórdão, as duas partes agem de má-fé desde o início da ação, e a ambas deixou-se de aplicar multa pelo mesmo motivo, qual seja, apenas em respeito ao direito de acesso ao Judiciário. Contudo, a revisão desse fundamento em relação ao recorrido, conforme realizado no item anterior, faz com que se afaste tal justificativa também em relação aos ora recorrentes. Mais uma vez, portanto, a partir da configuração da má-fé processual dos ora recorrentes, nos termos do próprio acórdão recorrido, há que se superar o argumento no sentido de que o direito de acesso à justiça permite condutas como as já relatadas nestes autos para reconhecer, de ofício, nos termos do art. 18 do CPC, a necessidade de condenar igualmente os recorrentes às penas da litigância de má-fé, com fundamento no art. 17, VI, do CPC, pois estes vêm se notabilizando em propor, um após outro e conforme já relatado, incidentes manifestamente infundados no curso da causa, sendo de se ressaltar que, segundo Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, "(...) o termo incidente deve ser entendido em sentido amplo, significando incidente processual (exceção, impugnação do valor da causa etc.), ação incidente (ADI, reconvenção, incidente de falsidade, embargos do devedor, embargos de terceiro, denunciação da lide, chamamento ao processo etc.) e interposição de recursos" (Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 6ª edição, 2002, pág. 303 - sem grifos no original).83

8.6 A Boa-fé Objetiva como Norma Orientadora da Atuação do Poder Judiciário Frente

aos Jurisdicionados

É importante destacar que a boa-fé objetiva estabelece um padrão de comportamento leal,

probo, de todos os envolvidos no desenvolvimento do processo.

Em alguns julgados pode-se aferir a atuação da boa-fé objetiva a exigir esse comportamento

por parte do órgão jurisdicional em relação às partes (autor e réu) da relação jurídica

processual.

Nesses termos, tem-se a atuação da boa-fé objetiva como norma apta a restabelecer o padrão

escorreito de aplicação das normas processuais que versam sobre o desenvolvimento do

contraditório e da ampla defesa e dos requisitos de admissibilidade de recursos.

83 STJ: REsp 816.453, Proc. 2006/0024235-4/PR, Terceira Turma; Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi, Julg. 22.08.2006, DJU 04.09.2006, p. 270.

267

Com fulcro na boa-fé objetiva das partes o Tribunal do Rio Grande do Sul entendeu ser

tempestivo os embargos de execução de sentença protocolizados trinta dias após a juntada aos

autos do mandado de penhora, embora nos termos do art. 738, inciso I, do CPC, na redação

vigente à época, tal prazo era de dez dias. Como no mandado, incorretamente, constou o prazo

de trinta dias, entendeu o magistrado que “[...] uma vez que é obrigatório constar no mandado

prazo para resposta [...] Se o prazo constou errado, deve-se proteger a boa-fé da parte que

confiou na aparência gerada por um documento oficial, vindo do próprio poder judiciário.”84

O STF85 já teve oportunidade de se manifestar no sentido de que a atuação segundo a boa-fé

processual aplica-se “não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que

atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional”86

Destarte, ao Órgão Jurisdicional impõe conduta norteada pela boa-fé objetiva nas suas

relações com os administrados para que o processo se revista dos adjetivos de “justo” e

“équo”.

Terreno fértil para irrupção da aplicação da boa-fé objetiva diz respeito aos prazos

processuais. O art. 183, do CPC, dispõe:

Decorrido o prazo, extingue-se independentemente de declaração judicial, o direito de praticar o ato, ficando salvo, porém, à parte provar que o não realizou por justa causa. §1º. Reputa-se justa causa o evento imprevisto, alheio à vontade da parte, e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário. 2º. Verificada a justa causa o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo que lhe assinar.

Em alguns julgados restou demonstrado que o justo impedimento adveio, exatamente, de

condutas adotadas pelo próprio poder judiciário, situações nas quais a boa-fé objetiva emergiu

para restaurar a lealdade nos meandros processuais. Esse entendimento é corroborado pelo

Superior Tribunal de Justiça que já esposou o entendimento no sentido de que a parte não

84 TJRS: APL-RN 70005782685; Uruguaiana; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal; Julg. 22.10.2003. 85 AI 529.733-1/RS. STF. 2ª Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. Julg. 17.10.2006, DJU 01.12.2006, p. 097. e STF: RE 464.963-2/Go, 2ª Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. Decisão unânime. Julgamento em 14.02.2006, Publicação DJ 30.06.2006. 86 RE 464.963-2/Go, 2ª Turma. Rel. Min. Gilmar Mentes. Decisão unânime. Julgamento em 14.02.2006, Publicação DJ 30.06.2006.

268

pode sofrer prejuízos em razão de uma confiança depositada na regularidade de atos baixados

pela magistratura e normas expedidas pelo Poder Judiciário.

No julgamento do REsp 432.603, a 4ª Turma do STJ deu provimento ao recurso para

reconhecer a tempestividade da apelação interposta dentro de período em que, por Provimento

emanado do Conselho Superior da Magistratura, se achavam suspensos os prazos recursais,

dentro do princípio da boa-fé da parte, que, em assim agindo, não pode ser surpreendida por

contradições oriundas dos próprios órgãos do Poder Judiciário.”87

Na situação examinada a sentença havia sido publicada no dia 13.12.99, por conseguinte, o

prazo recursal teve sua contagem iniciada em 14.12.99. Ocorre que, de acordo com norma

expedida pelo Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, não haveria a

fluição dos prazos processuais a partir de 21.12.99, sendo retomados a contar de 01.02.2000.

A recorrente protocolizou a apelação em 29.01.2000, que não foi recebida por ser considerada

como intempestiva, não obstante o Provimento do Conselho Superior da Magistratura dispor

sobre a suspensão dos prazos processuais.

No julgamento do Recurso Especial a 4ª Turma daquela Corte ressaltou que “se há norma

suspendendo a fluição dos prazos, não se pode atribuir à parte, em absoluto, qualquer ônus,

justamente por haver confiado na regularidade dos atos baixados pelos órgãos da magistratura

local. A presunção é, em princípio, pela sua validade, e, dessa forma, a parte que age de

conformidade com os mesmos está coberta pela boa-fé, constituindo justo impedimento se,

porventura, deixa de agir de outra forma, iludida de que seu posicionamento, por estar em

consonância com tais regras, era o correto. [...] É o princípio da boa-fé processual, e do

respeito ao direito dos litigantes que, sobretudo, não podem ser surpreendidos por

contradições oriundas dos próprios órgãos do Poder Judiciário, data máxima vênia.”88

Ainda sob o enfoque da ‘justa causa’ ou ‘justo impedimento’ relativamente aos prazos

processuais, o STJ no julgamento do REsp. 41.497 deu provimento ao recurso para

reconhecer a tempestividade de apelação interposta.

87 STJ: RESP 432603/SP, Quarta Turma; Rel. Min. Aldir Guimarães Passarinho Junior; Julg. 07.08.2003, DJU 15/09/2003, pág. 0032. 88 STJ: RESP 432603; SP; Quarta Turma; Rel. Min. Aldir Guimarães Passarinho Junior; Julg. 07.08.2003, DJU 15.09.2003, pág. 0032.

269

A apelação havia sido interposta junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 02.04.99, a

qual não foi conhecida por ter sido considerada intempestiva. Entretanto, conforme razões

recursais veiculadas no REsp, havia sido publicado aviso da Corregedoria-Geral de Justiça

daquele Estado constando explicitamente: “os prazos judiciais não correrão na Semana Santa,

recomeçando a contar a partir de 1º de abril de 1991.” A 4ª Turma do STJ, embora

ressaltando a atecnia na utilização da ‘suspensão’, uma vez que, de prorrogação se tratava,

reconheceu a competência concorrente dos Estados para legislar sobre procedimentos em

matéria processual, nos termos do art. 24, inciso XI, da CF/88.

Em assim sendo, e tendo o próprio Tribunal reconhecido “válido o ato do Corregedor-Geral,

reputando-o assim ajustado à ordem jurídica estadual vigente quando da sua edição, concluiu

operada a suspensão dos prazos no interregno em apreço.”89

Logo, a parte não poderia ser surpreendida na confiança depositada na disposição expressa em

norma válida, expedida pela Corregedoria-Geral de Justiça, sob pena de o próprio órgão do

Poder Judiciário incorrer em violação da boa-fé objetiva com os integrantes da relação

jurídica.90

Em consonância com esse posicionamento adotado pelo STJ, a boa-fé objetiva tem norteado

decisões no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com vistas à proteção da confiança dos

jurisdicionados em atuações do Poder Judiciário.

89 STJ: RESP 41.497/RJ, Quarta Turma; Rel. Min. Sálvio de Figueira Teixeira; Julg. 13.09.94, DJU 24.10.94, pág. 28762. 90 Ressaltamos que, na ementa do acórdão, constou expressamente: “Se, diante da previsão expressa estabelecida em aviso da Corregedoria-Geral de Justiça, a parte age na convicção de que suspensos os prazos durante o interregno da semana santa, resta evidenciada a sua boa-fé, cumprindo, caso atestada a incompetência de referido órgão judiciário para dispor acerca da matéria, reconhecer a justa causa a que alude o art. 183.CPC.” Ora, não se trata de boa-fé subjetiva, calcada em erro escusável. Está-se diante de aplicação da boa-fé objetiva expressa no art. 14, inciso II do CPC, que impõe o dever de lealdade processual como conseqüência imediata, dela não podendo se furtar nem mesmo o Poder Judiciário. No acórdão sob exame restou assentado pelo STJ, inclusive até exaltando a iniciativa do legislador local, “[...] em dar vida ao comando constitucional sediado no inciso XI do art. 24 da Lei Maior, contribuindo eficazmente para o aprimoramento da tutela jurisdicional”, que a norma expedida pela Corregedoria-Geral era norma válida decorrente da competência concorrente para legislar sobre procedimentos em matéria processual. Logo, não poderia o próprio Poder Judiciário negar eficácia a essa norma, sob pena, até mesmo, de comprometer a segurança dos jurisdicionados.

270

Conforme acórdão proferido no julgamento de agravo de instrumento foi dado provimento ao

recurso de agravo para devolver ao agravante o prazo para apresentação de embargos em ação

de execução.91

Trata-se de ação de execução na qual o executado foi citado por carta precatória para opor

embargos à execução que lhe fora proposta. Entretanto, o executado não ajuizou tais

embargos no prazo definido no CPC sob a alegação de não ter sido lançado no sistema

informatizado a juntada aos autos da carta precatória de citação.

Para o deslinde da questão o Tribunal entendeu que o sistema informatizado de consulta

processual desenvolvido pelo Estado e por ele utilizado para melhor desempenho da

administração da justiça, em que pese não substituir a publicação no Diário Oficial de Justiça,

de acordo com a legislação processual, “impõe-lhe deveres perante os jurisdicionados,

decorrente dos princípios gerais do direito, tais como a boa-fé objetiva e a proteção de

confiança gerada pela aparência criada pela introdução do sistema, já que, a par do uso

obrigatório para o atendimento constitui em atividade essencial à administração da justiça.”92,

93, 94

Ressalte-se que, nos termos do voto da Desembargadora Relatora, o sistema informatizado

conferiu eficiência ao serviço judiciário com sensível redução no movimento em busca de

informações sobre o andamento processual, sendo obrigatória, para o atendimento nos

cartórios, a apresentação do extrato das informações do andamento processual emitido no dia.

91 TJRS: AI 70009424623, Tenente Portela, Vigésima Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Isabel de Azevedo Souza; Julg. 05/10/2004. 92 TJRS: AI 70009424623, Tenente Portela, Vigésima Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Isabel de Azevedo Souza; Julg. 05/10/2004. 93 Nesse mesmo sentido: TJRS: AI Nº 70009425976, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 05/10/2004, que ficou assim ementado: “A adoção pelo Poder Judiciário do sistema informatizado no qual são registradas todas as movimentações do processo para atender à eficiência e à boa administração da justiça gera no jurisdicionado uma expectativa legítima de que estes dados são verdadeiros e retratam a realidade do processo. Confiança protegida pelos princípios da boa-fé objetiva e da proteção da confiança resultante da aparência criada que acarreta o dever de manter atualizados os registros que devem refletir a realidade do processo, respondendo pela veracidade das informações. 2. A falta de registro da juntada aos autos do processo da carta precatória de citação no sistema informatizado configura justa causa para fins de restituição do prazo processual à parte por força dos princípios da proteção da confiança e da boa-fé objetiva. Art. 183, § 1°, do CPC. Recurso provido.” 94 No julgamento do REsp 390.561/Pr, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJU 26.08.2002, p. 175, o STJ reconhece que as informações prestadas por meio da internet são oficiais e merecem a confiança. O Acórdão ficou assim ementado: “Informações prestadas pela rede de computadores operada pelo Poder Judiciário são oficiais e merecem confiança. Bem por isso, eventual erro nelas cometido constitui "evento imprevisto, alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato.". Reputa-se, assim, justa causa (CPC, Art. 183, § 1º), fazendo com que o juiz permita a prática do ato, no prazo que assinar. (Art. 183, § 2º).”

271

Ao implantar o sistema informatizado, revestindo-o de importância tal para a boa

administração da justiça, de uso obrigatório para o atendimento nas serventias, o Estado

avocou para si o dever de manter atualizado, diuturnamente, todos os seus registros, de modo

a retratar a realidade do processo, respondendo pela veracidade das informações.

Destarte, “o erro ou a omissão no registro de dados, no sistema informatizado, produz efeitos

jurídicos fundados nos princípios gerais da boa-fé objetiva e na proteção de confiança.”,

fundamentando a decisão daquele Colegiado em dar provimento ao recurso com a devolução

do prazo ao Agravante para oferecimento dos embargos.

O Agravo de Instrumento nº 70008674285, interposto naquele mesmo Tribunal, também

versou sobre prazo processo e das implicações decorrentes das informações prestadas por via

eletrônica. A agravante se insurgiu contra a decisão que considerou extemporânea a defesa

por ela apresentada, uma vez que no site oficial do Tribunal do Rio Grande do Sul constou a

data de 23.09.2003 para abertura do prazo para contestação. Sendo assim, o termo final seria

08.10.2003, data na qual foi protocolada a contestação.

No julgamento o Desembargador Relator, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, em decisão

monocrática, decidiu por conhecer do recurso e dar-lhe provimento, pois “a falha apontada na

petição de agravo decorre do próprio Estado, por defeito nos registros eletrônicos do feito no

próprio serviço judiciário. Nessas circunstâncias, interfere em prol do jurisdicionado o

princípio da proteção da confiança legítima. Princípio esse que, consoante a melhor doutrina

permite o reconhecimento da proteção da boa-fé no direito público, na medida em que o

cidadão deve presumir que os órgãos públicos agem de maneira regular, circunstância que o

leva legitimamente a confiar na aparência de direito, suscitada pelo Estado, conforme a teoria

do direito privado da aparência. [...]”95

Situação análoga à dos prazos processuais diz respeito aos requisitos de admissibilidade dos

recursos. Especificamente, no que tange ao requisito do preparo o STJ, no julgamento do

REsp nº 347.860/SP, teve oportunidade de analisar a questão.

95 TJRS: AI 70008674285, Porto Alegre, Sexta Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira; Julg. 18/05/2004.

272

No Estado de São Paulo foi expedido o Provimento Conjunto nº 01/95, dos Tribunais de

Justiça e Alçada Civis, que trazia disposição expressa no sentido de que, no ato de intimação

da sentença ou do acórdão, deveria constar o valor do preparo recursal. Em que pese tal

disposição, a recorrente teve seu recurso não conhecido por ter sido caracterizada a deserção.

Na decisão da qual fora intimada não havia consignado o valor do preparo, tendo ela

requerido uma nova publicação da decisão, com a indicação do valor, posto que a anterior era

omissa. Tal pretensão foi acolhida, fato esse comprovado nos autos, oportunidade em que foi

efetuado o preparo.

A 4ª Turma do STJ deu provimento ao recurso especial afastando a preclusão consumativa e

determinando prosseguimento do exame da apelação pelo Tribunal, uma vez não fazer sentido

serem editados atos pelos Tribunais determinando normas para, posteriormente, serem as

mesmas desconsideradas pelos próprios órgãos julgadores, surpreendendo partes e advogados.

A exigência imposta no Estado de São Paulo, em que ser “desnecessária ou não em face da

Lei Federal processual, o certo é que as partes e os advogados não devem ser surpreendidos

por decisões judiciais emanadas dos próprios Pretórios que editaram a norma, afastando-a, em

prejuízo daqueles que a seguiram de boa-fé.”96

Quadra destacar que, também neste julgado o STJ põe em relevo a confiança criada pelos

jurisdicionados frente aos atos emanados pelo Poder Judiciário. A vingar a decisão do

Tribunal do Estado de São Paulo, que considerou o recurso deserto, estar-se-ia jogando por

terra os deveres de lealdade e boa-fé com que devem agir todos os que participam do

processo.

Vê-se, pois, que a Corte Superior restabeleceu no âmbito daquela lide os valores éticos que

devem permear as condutas dos atores no âmbito processual.

96 STJ: RESP 347860, SP; Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Guimarães Passarinho Junior; Julg. 20/02/2003, DJU 07/04/2003, pág. 00291.

273

Conclusão 1) Os modelos jurídicos jurisprudenciais na Teoria de Miguel Reale são estruturas dinâmicas

que veiculam o conteúdo das fontes e expressam a relação que se estabelece entre o conteúdo

normativo e a realidade social, numa relação dinâmica que alberga as mutações axiológicas e

hermenêuticas que emergem da realidade social. São pontos de partida para futuros juízos,

podendo manter-se na estrutural inicialmente construída ou ser reformulada para adequar aos

imperativos vigentes.

2) A concepção advinda do Estado liberal, traduzida na visão do processo como um jogo ou

um duelo irrefreado entre as partes, onde o juiz atuava como mero árbitro, deixou como

reminiscências a higidez das garantias constitucionais processuais traduzindo uma concepção

individualista e refratária a uma normatização que impusesse comportamentos de probidade

para os contendores. Sob esse panorama, o art. 14, inciso II do CPC foi concebido numa

perspectiva estritamente subjetivista. Na expressa menção de Buzaid, a boa-fé nos meandros

do direito processual significava agir conforme o direito, de acordo com a lei. Esse dispositivo

do CPC não foi concebido para veicular a boa-fé objetiva, mas, sim, a boa-fé subjetiva – a

boa-fé que se contrapõe à má-fé. Entretanto, o Processo Civil, sob uma perspectiva

constitucional, com as suas raízes estruturadas no Texto constitucional, permite transmudar

essa aplicação subjetivista da boa-fé, que estava afinada com aquele momento histórico-

cultural, para dar-lhe uma conotação objetivista a reger os comportamentos dos participantes

do Processo.

3) O inciso II do art. 14 do CPC possui a feição de cláusula geral, destituída de conteúdo

apriorístico, remetendo o juiz a um trabalho tópico de construção do seu conteúdo. Na

jurisprudência da concreção a boa-fé objetiva o art. 14, inciso II do CPC desempenha papel de

metanorma, estruturando a aplicação de outras normas (princípios e regras), revelando-se

como uma própria garantia para os jurisdicionados de que os outros direitos e garantias

constitucionais serão respeitados. A boa-fé objetiva é norma cogente, é norma de ordem

pública, atuando como postulado normativo aplicativo, na concepção cunhada por Humberto

Ávila, que transmuda a concepção do processo como uma arena de gladiadores para

sobrelevar a sua natureza pública, onde mesmo havendo interesses contrapostos, esses

interesses são defendidos com a observância da máxima do comportamento correto.

274

4) A boa-fé objetiva atua no Direito Processual Civil vinculada à idéia de pretensão de

correção no comportamento não só das partes, mas, também, do juiz, estabelecendo deveres

de cooperação que fazem do processo uma ‘comunidade de trabalho’ onde impera os deveres

de lealdade entre estes e a confiança legítima no poder judiciário. Nesse passo, a boa-fé

objetiva no campo processual civil desempenha importantíssima função corretiva.

5) O magistrado, rompendo com o antigo e profundo viés que separa o legislador do aplicador

da lei, passa a criar o direito do caso concreto. Direito esse que, pelas reiteradas aplicações

constrói e reconstrói a norma, numa modelação que é delineada na estrutura dinâmica dos

modelos jurídicos jurisprudenciais, que dão vida e conteúdo às cláusulas gerais ou ‘pautas

carecidas de preenchimento’ dentre as quais se destaca a boa-fé objetiva prevista no art. 14,

inciso II, do CPC. Essa mudança paradigmática favoreceu o florescimento da jurisprudência

da concreção, que veio atender à necessidade de recomposição fático-axiológico-normativa

rompendo com o pensamento lógico-dedutivo, no qual o juiz desenvolvia mero trabalho de

subsunção do fato à norma. Ademais, desmistificou a pretensão de completude dos catálogos

normativos e cedeu espaço aos sistemas abertos que têm por característica marcante a técnica

legislativa permeada por princípios, conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais

denominados de “janelas do direito”.

6) Neste contexto, a boa-fé objetiva no âmbito do Direito Processual Civil com o seu

multissignificativo conteúdo possibilita a concretização do fair trial , do fair play. Norteia o

agir segundo as ‘regras do jogo’ estabelecendo balizas para que o desenvolvimento dialético

da relação jurídica processual culmine com a construção da solução para o caso concreto.

Nesse contexto, a boa-fé objetiva tem um aspecto importantíssimo de função de correção

traduzida na máxima do comportamento correto.

7) A lealdade e a boa-fé dão uma conotação axiológica ao regular desenvolvimento do

processo numa conjugação harmoniosa da observância das normas processuais plasmadas na

dialética do contraditório informado pela cooperação leal e proba daqueles que nele

participam para o alcance da decisão que, retrate, simultaneamente, a legitimidade da atuação

estatal na prestação jurisdicional e a pacificação social com justiça.

8) A pesquisa realizada nos acórdãos dos Tribunais alvo da presente investigação permitiu

visualizar modelos jurisprudenciais construídos sob o fundamento da boa-fé objetiva que

275

podem ser catalogados da seguinte forma: a boa-fé objetiva como norma que veda a atuação

dolosa de posições processuais; a boa-fé objetiva como norma otimizadora das garantias

constitucionais processuais; a boa-fé objetiva como norma que veda o venire contra factum

proprium no campo processual civil; a boa-fé objetiva como norma a assegurar a prestação da

tutela jurisdicional em tempo razoável; a boa-fé objetiva como norma orientadora da atuação

do poder judiciário frente aos jurisdicionados.

8.1) A boa-fé objetiva como “norma-principial” irradia o seu conteúdo em todos os espectros

do Processo Civil regendo as relações inter-partes (autor e réu); as relações entre o poder

judiciário e os jurisdicionados; otimizando a aplicação das garantias constitucionais

processuais expressas no devido processo legal, no contraditório e na ampla defesa com o fim

precípuo da efetividade da prestação da tutela jurisdicional.

8.2) Foi possível identificar uma linha comum nas decisões analisadas da formulação da

concepção da boa-fé objetiva por aquelas Cortes permitindo mesmo afirmar que a boa-fé

objetiva estabelece linhas mestras de estruturação do Processo Civil para que este se revista

dos predicados de “justo e équo”.

8.3) Sob um novo ângulo, constatou-se que os Tribunais têm aplicado medidas punitivas tão-

somente para as condutas dolosas não tendo sido identificados julgados nos quais houvesse

aplicação de penalidade pela prática de atos não dolosos, mas violadores da boa-fé objetiva. A

constatação da aplicação de medidas punitivas somente diante da prática de condutas dolosas

revela que perdura um vício de compreensão da norma. Entretanto, o olhar do processo a

partir das diretrizes constitucionais transmuda o contéudo da norma expressa no art. 14, inciso

II do CPC para alcançar uma nova validade dogmática destituída de qualquer caráter

subjetivo. A constatação da utilização da boa-fé objetiva aliada ao dolo reafirma que os

magistrados ainda fazem uma aplicação acanhada desse instituto relutando em aplicá-la em

toda a grandeza do seu conteúdo.

8.4) Há verdadeira identidade entre a preclusão lógica e o venire contra factum proprium. A

preclusão lógica no bojo do direito processual é sempre situação de venire contra factum

proprium, entretanto o campo de configuração do venire contra factum proprium no campo

processual desborda as situações nas quais se configura a preclusão lógica. Impende observar

o traço característico diferenciador das duas figuras: venire contra factum proprium e

276

preclusão lógica. A preclusão lógica ocorre no interior do processo com a realização de atos

processuais incompatíveis entre si, portanto está diretamente vinculado ao processo em curso

e os que dele participam. Já o venire contra factum proprium pode manifestar-se em condutas

cuja contrariedade pode desbordar os limites processuais, ou seja, comporta a prática de atos

extraprocessuais cuja contrariedade será manifesta no interior do processo. Poder-se-ia

afirmar que o “venire contra factum proprium interno” é denominado, no campo processual,

como “preclusão lógica” e o “venire contra factum proprium externo”, para o qual não há

uma figura processual específica equivalente.

9) Pode-se concluir que a boa-fé objetiva processual desempenha relevante papel

aproximativo do direito à realidade, consolidando suas regras através da jurisprudência,

potencializando a sua aplicação e construindo modelos jurídicos próprios deste “fenômeno

espantoso” que é a boa-fé objetiva.

277

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