A Categoria de Experiência Na Teoria Feminista

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Estudos Feministas, Florianópolis, 20(3): 955-972, setembro-dezembro/2012 967 A categoria de experiência na teoria A categoria de experiência na teoria A categoria de experiência na teoria A categoria de experiência na teoria A categoria de experiência na teoria feminista feminista feminista feminista feminista Las voces de la experiencia: el viraje de la filosofía feminista. BACH, Ana María. Buenos Aires: Biblos, 2010. 174 p. O conceito de experiência tem sido um tema polêmico nos estudos filosóficos desde a Antiguidade e problemático dentro de uma concepção positivista de ciência. Na contempo- raneidade, o papel das experiências começa a ser valorizado tanto pelas Ciências Sociais como pela filosofia feminista nos processos de compre- ensão da produção do conhecimento e da ação social, cujos estudos se contrapõem à ideia de objetividade pura e de sujeito universal. No entanto, é o feminismo como movimento social e intelec- tual que mais valorizou a centralidade das “experi- ências das mulheres”. Nesse sentido, o feminismo como teoria permitiu distinguir conhe-cimentos situados por meio de uma proposta epistemo- lógica alternativa que trouxe para o cenário acadêmico novos sentidos sobre o que se consi- dera conhecimento e um processo de ressignifi- cação da objetividade e de outras categorias centrais nas ciências humanas e sociais, como é o caso da categoria de experiência (p. 9). O estudo de Ana María Bach coloca em cena o conceito de experiência, que é ao mesmo tempo tão reivindicado quanto questio- nado dentro do debate acadêmico, sobretudo, em contextos dos estudos culturais. Nos estudos feministas, em geral, a noção de experiência tem sido utilizada para fins de produção do conhecimento e para a compreensão de processos de subjetivação, porém, na visão da autora, ela é, ainda, pouco problematizada teoricamente. As mulheres passaram a valorizar o modo de pensar contextual e narrativo em lugar do formal e abstrato, preferido pelos homens, e, com isso, mostraram como a posição de sujeito e as experiências distintas interferem significativamente na produção do conhecimen- to. Na década de 1970 até o final do século passado houve uma explosão da teorização acadêmica e política dentro do campo feminista, com a consequente institucionalização dos estudos feministas nos anos 1980, que se solidificaram por meio da criação de programas e departamentos dedicados aos “Estudos das Mulheres” (p. 10). Levando em conta essa situação e a centralidade da categoria “expe- riência das mulheres”, reivindicada nos estudos feministas, a autora se propõe a reconstruir a valorização da experiência como categoria epistemológica, por meio de um minucioso trabalho de sistematização teórica, a partir da produção das principais feministas norte- americanas, no período de 1980-2000. Desse modo, o livro Las voces de la experiencia é resultado de uma investigação teórica que integra parte da tese de doutorado

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A categoria de experiência na teoriaA categoria de experiência na teoriaA categoria de experiência na teoriaA categoria de experiência na teoriaA categoria de experiência na teoriafeministafeministafeministafeministafeministaLas voces de la experiencia: elviraje de la filosofía feminista.

BACH, Ana María.

Buenos Aires: Biblos, 2010. 174 p.

O conceito de experiência tem sido umtema polêmico nos estudos filosóficos desde aAntiguidade e problemático dentro de umaconcepção positivista de ciência. Na contempo-raneidade, o papel das experiências começa aser valorizado tanto pelas Ciências Sociais comopela filosofia feminista nos processos de compre-ensão da produção do conhecimento e da açãosocial, cujos estudos se contrapõem à ideia deobjetividade pura e de sujeito universal. No entanto,é o feminismo como movimento social e intelec-tual que mais valorizou a centralidade das “experi-ências das mulheres”. Nesse sentido, o feminismocomo teoria permitiu distinguir conhe-cimentossituados por meio de uma proposta epistemo-lógica alternativa que trouxe para o cenárioacadêmico novos sentidos sobre o que se consi-dera conhecimento e um processo de ressignifi-cação da objetividade e de outras categoriascentrais nas ciências humanas e sociais, como éo caso da categoria de experiência (p. 9).

O estudo de Ana María Bach coloca emcena o conceito de experiência, que é ao

mesmo tempo tão reivindicado quanto questio-nado dentro do debate acadêmico, sobretudo,em contextos dos estudos culturais. Nos estudosfeministas, em geral, a noção de experiênciatem sido utilizada para fins de produção doconhecimento e para a compreensão deprocessos de subjetivação, porém, na visão daautora, ela é, ainda, pouco problematizadateoricamente. As mulheres passaram a valorizaro modo de pensar contextual e narrativo emlugar do formal e abstrato, preferido peloshomens, e, com isso, mostraram como a posiçãode sujeito e as experiências distintas interferemsignificativamente na produção do conhecimen-to. Na década de 1970 até o final do séculopassado houve uma explosão da teorizaçãoacadêmica e política dentro do campofeminista, com a consequente institucionalizaçãodos estudos feministas nos anos 1980, que sesolidificaram por meio da criação de programase departamentos dedicados aos “Estudos dasMulheres” (p. 10). Levando em conta essasituação e a centralidade da categoria “expe-riência das mulheres”, reivindicada nos estudosfeministas, a autora se propõe a reconstruir avalorização da experiência como categoriaepistemológica, por meio de um minuciosotrabalho de sistematização teórica, a partir daprodução das principais feministas norte-americanas, no período de 1980-2000.

Desse modo, o livro Las voces de laexperiencia é resultado de uma investigaçãoteórica que integra parte da tese de doutorado

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em Ciências Sociais de Ana María Bach, pelaUniversidade de Buenos Aires, na qual a autora sededica à análise das contribuições feministaspara pensar a experiência como categoriateórica. Utiliza-se de uma produção acadêmicaproveniente, sobretudo, da área da Filosofia edas Ciências Sociais e, praticamente, toda emlíngua inglesa. Ela analisa produções acadêmicasde diferentes autoras que se utilizam de perspec-tivas da filosofia analítica, do pós-estruturalismo,da fenomenologia, da teoria crítica e do prag-matismo, entre outras. Nesse processo de análise,procura sempre conectar a produção e suasdistinções teóricas com a situação de cadaautora, isto é, com a sua condição de classe, deorientação sexual, de raça e com o seu processode formação acadêmica e de trânsito migrató-rio, evidenciando concretamente como oconhecimento se vincula com a biografia e aexperiência pessoal de vida, que é sempresexuada, encarnada e situada. Bach estrutura olivro em quatro capítulos e um apêndice final, noqual retoma uma série de temas complementaresà discussão que realiza ao longo de sua obra.

No primeiro capítulo a autora aborda arelação entre experiência e subjetividade.Primeiramente, apresenta um recorrido históricoacerca da noção de experiência, ascontribuições que vêm da fenomenologia e dopragmatismo e a sua ressignificação por parteda teoria feminista. Nesse sentido, a experiênciasexualizada e situada passa a ser valorizada nosprocessos de formação da subjetividade e naprodução do conhecimento, recordando queessa experiência é constituída de três dimensões– psicológica, política e cognitiva – que estãointrinsecamente unidas. Em seguida, Bachapresenta a relação entre a construção mútuada subjetividade e da experiência, na qual aautoconsciência feminista exerce um papelfundamental. Em função disso, constrói umaespécie de genealogia da história do movimentofeminista sobre as práticas dos grupos deautoconsciência, analisando-os a partir daperspectiva fenomenológica de Sandra Barly. Porfim, a autora destaca a contribuição original deTeresa de Lauretis, justamente por essa introduziro papel da semiótica e articular experiência,sexualidade e diferença nos processos desubjetivação. A definição de experiênciaconstruída por De Lauretis, que leva em conta ainteração semiótica do sujeito com a realidadesocial (p. 37), tem sido de grande importânciapara os estudos feministas, que consideram acentralidade da experiência das mulheres nosprocessos de produção do conhecimento.

No segundo capítulo Ana María Bachdiscute a relação experiência e política. Paraisso, destaca as vozes das experiências demulheres latinas/hispanas, negras, lesbianas etrabalhadoras, as quais, por meio da relaçãomargens e centro, criticam a parcialidade dopensamento teórico das feministas da White,Anglo-Saxon and Protestant (WASP). Isso por serum pensamento pautado em uma experiênciaúnica e universal, cujos pressupostos teóricos eanalíticos se tornavam insuficientes para darconta da variedade das experiências humanas.Nessa perspectiva de crítica, a autora analisa acontribuição que vem do pensamento de bellhooks, Gloria Evangelina Anzaldúa, Maria CristinaLugones e Chandra Talpade Mohanty, cujasfeministas produziram suas teorias a partir daexperiência de estar nas margens. Elas fazemnotar a existência de uma tríplice opressão entreraça, classe e sexo, ou a que se produz pormeio de fronteiras específicas. Com suasespecificidades, propõem alternativas que vãodesde as margens, passando pela produçãode uma linguagem própria até a construçãopolítica de um feminismo sem fronteiras.

O terceiro capítulo é dedicado à reflexãosobre a dimensão epistemológica da experiên-cia. Para isso, Ana Bach parte de uma posiçãocrítica em relação à epistemologia tradicional,evidenciando que a característica que distinguea epistemologia feminista é o fato de essa valorizara experiência feminina do cotidiano, no processoda produção do conhecimento científico.Baseada na distinção feita por Sandra Harding, aautora comenta as três abordagens daepistemologia feminista, as pesquisadoras queintegram cada uma das correntes e suas distintasposturas teóricas no que se refere à importânciada dimensão cognitiva da experiência. Com isso,Bach ressalta que a grande contribuição dasepistemologias feministas tem sido o fato de essasmostrarem que a situação, a posição e acircunstância em que se encontra determinadosujeito do conhecimento refletem fortemente emsua produção acadêmica.

No último capítulo, Bach analisa a relaçãoentre experiência e linguagem a partir daspropostas do pós-estruturalismo e da fenome-nologia, cujo tema segue sendo polêmico.Comenta o impacto do ensaio “A experiênciacomo prova”, da historiadora norte-americanaJoan W. Scott, que trata da experiência comoum evento linguístico, cujo arcabouço teórico semostra insuficiente para dar conta dasexperiências que não são articuladas emdiscursos, como as de grupos subalternos, inclusive

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mulheres. Em seguida, retoma as contribuiçõesde Iris Marion Young e Linda Martin Alcoff, que,inspiradas em Maurice Merleau-Ponty, indicamoutras possibilidades para pensar e teorizar aexperiência diante da redução das formaçõesdiscursivo-linguísticas. A importância deste capítuloestá nos argumentos que a autora desenvolvepara mostrar como a teoria feminista podeoferecer explicações mais integrais adotandoferramentas metodológicas da fenomenologiaque, antes de se oporem, complementam asexplicações pós-estruturalistas.

O livro apresenta, ainda, quatro apêndices,como uma espécie de ensaio acadêmico, nosquais a autora expõe sua opinião sobre diversostemas que perpassam a sua obra. No primeiro –“Do ativismo à universidade: os feminismos nocontexto estadunidense” –, menciona o processode institucionalização do feminismo nos EstadosUnidos, seus desafios, desdobramentos eimpactos em diferentes áreas acadêmicas. Nosegundo – “Razões e não razões dos ‘pós’” –, aautora se acerca da conflitante aliança entrefeminismo e pós-modernismo e as concepçõesde algumas feministas sobre essa relação.Distingue e esclarece termos como pós-estruturalismo e pós-modernismo que, usual-mente, são confundidos. No terceiro apêndice –“Isso que chamamos patriarcado” –, abordasobre a dinamicidade da estrutura patriarcal e acompreensão da noção de patriarcadopresente nos distintos desdobramentos teóricosdo feminismo, e, levando em conta as críticasfeitas ao patriarcado, tenta uma nova definição,em cujo núcleo característico está a opressãodas mulheres; opressão essa que assumeroupagens específicas em cada cultura. E, porfim, em “Biobibliografias; vidas e teorias”, a autoradescreve a relação entre a biografia e aprodução teórica das autoras que foramabordadas, completando dados e comentários

que aparecem no decurso dos capítulos do livro.Enfim, pode-se afirmar que o estudo de Ana

María Bach, centrado na categoria deexperiência, se apresenta como uma obraimportante dentro dos estudos feministas pordiferentes fatores, tais como por seu carátertransdisciplinar; por colocar em evidência anecessidade de problematizar e teorizar aexperiência como uma categoria epistemo-lógica para a produção do conhecimento,seguindo a mesma insistência de De Lauretis1 eAlcoff;2 por oferecer uma síntese das diferentesautoras norte-americanas que em suas teoriasestabeleceram certa relação entre experiência,subjetividade, conhecimento, política elinguagem; por mostrar concretamente que aexperiência e a consciência da opressão, desdeuma posição de classe, raça, etnia e da posturaconsciente de estar nas margens, têm sidofrutíferas para o pensamento feminista, permitindoque esse fosse incorporando novas abordagensteóricas e alternativas de libertação, seja por meiodos processos de construção de saberes, sejapela ação política.

NotasNotasNotasNotasNotas1 Teresa de LAURETIS, 1984. 2 Linda M. ALCOFF, 1999.

Referênc iasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ALCOFF, Linda M. “ “ “ “ “Merleau-Ponty y la teoríafeminista sobre la experiencia”. MORA -Revista del Instituto Interdisciplinario deEstudios de Género, Buenos Aires, Facultadde Filosofía y Letras, n. 5, p. 122-138, 1999.

DE LAURETIS, Teresa. “Semiótica y experiencia”.In:______. Alicia ya no: feminismo, semiótica,cine. Madrid: Ediciones Cátedra, 1984. p. 251-294.

Neiva Furlin Universidade Federal do Paraná