A Centelha Da Vida

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A SENTELHA DA VIDAERICH-MARIA REMARQUEObras publicadas na coleco "Clssicos do Sculo XX":1 A Idade da Inocncia, Edith WharLon2 - Retrato do Artista Quando Jovem, nes @yce3 - O Grande Gaisby, F. Scott Fitzgerald4 -A Casa de Bernarda A Iba, Federico Garca Lorca5 -O Amante de Lady hatterley, U@w~ce6 - Gente de Dublin, Jame@Joyce7 - Trs Homens Num Bote, Jorome K. Jerome8 -A Caa da Felicidade, Edith Wharton9 - Filhos e A mames, D. H. La;k@ @ , 1 'f , ,1O -A Confisso de Lcio, Mrio de SA-Carneiro11 - 24 Horas da Vida de Uma Mulher, Stefan Zweig12 -A Me, Mximo Gorki I Ethan Frome, Edith Wharton14 Voo na Noite, Antoine de Saint-Exupry15 -O Principezinho, Antoine de Saint-Exupry16 - OLivro da Selva, Rudyard Kipling17 - Sonetos, Florbela Espanca18 - Mulheres Apaixonadas, D. H. Lawrence19 -A Viagem, Virginia Woolf2O - O Triunf dos Porcos, George Orwell21 - O Mundo Perdido, Arthur Conan Doyle22 -A Serpente Emplumada, D. H. Lawrence23 - Jovens Rebeldes, Edith Wharton24 - O Agente Secreto, Joseph Conrad25 - A Centelha da Vida, Erich-Maria RemarqueERICH-MARIA REMARQUEcA CENTELHADA VIDA ,Publicaes Europa-AmricaTtulo original: Der FLebenTraduo de Jos Saramago Traduo portuguesa O de P. E. A.Capa: estdios P. E. A.,@ 1997 The Estate of the late Mrs. Paulette RemarqueDireitos reservados por Publicaes Europa-Amrica, Lda.Nenhuma parte desta publicao pode ser produzida outransmitida por qualquer forma ou por qualquer processo,electrnico, mecnico ou fotogrfico, incluindo fotocpia,xerocpia ou gravao, sem autorizao prvia e escrita doeditor. Exceptua-se naturalmente a transcrio de pequenostextos ou passagens para apresentao ou crtica do livro.Esta excepo no deve de modo nenhum ser interpretada comosendo extensiva transcrio de textos em recolhasantolgicas ou similares donde resulte prejuzo para ointeresse pela obra. Os transgressores so passveis deprocedimentojudicialEditor: Francisco Lyon de CastroPUBLiCAESEUROPA-AMRICA,LDA. Apartado 82726 MEM MARTINS CODEX PORTUGALEdio n.*: 1,53125/6799 Junho de 1997Execuo tcnica: Grfica Europam, Lda., Mira-Sintra - MemMarfinsD~to legal a."; 11152O1OA iizeini-ia de ininba iii7i E!friede Nascdo na Vesfela em 1898, na cidade de Osnabruck,Erich-Maria Remarque tinha 16anos quando rebentou a primeira guerra mundial. Mobilizado, cinco vezes.ferdo, o seu lendriopacifismo nasceu nas trincheiras.- "V o meu melhor amigodeitado na lama, com uma enorne ferida no ventre. Esta imagemmarcou-me para sempre." Deste modo, a sua primeira obra.foi umrequisitrio qe incomparvel violncia contra os horrores e aestupidez da guerra. Conhece-se o sucesso, semprecedentes nosanais do lvro, queNada de Novo na Frente Ocidental alcanou.Esta obra, quefoi queimada em pblicopelos nazis, atingiu oitomilhes de exemplares.Ericb--Maria Remarque permaneceu fiel vocao que anima oseu primeiro romance. A Centelha da Vida pode ser consideradoa rplica para a segunda guerra mundial do que.foi para aprimeira Nada de Novo na Frente Ocidental. E assim como atllncbeirafoi o smbolo lamacento dagrande tragdia de1914-1918, o campo de concentrao o universo fechado esmplificado em que se agitam as espectrais personagens do seultimo romance.Remarque passou nos Estados Unidos os anos da guerra. Noconheceu, portanto, o horror dos campos de concentrao. Maspara escrever o seu: livro rodu-se duma documentao imensa,de tal maneira que nem um s dos factos relatados foiinventado por ele. o campo de concentrao que serve de quadroA Centelha da Vida, puramente imaginrio; constitui, dealgum modo, um tipo ideal que reune as caractersticas decampos que realmente existiram. Uma testemunha ocular spoderia contar o que viveu; apenas no plano abstracto dasideias e das teorias conservaria a liberdade criadora. Umromance concentracionrio no poderia sair se no dumareconstituio histrica. Remarque combinou imaginariamenteelementos autnticos. Pode, pois, dzer-se sem paradoxo que oseu livro o mais concreto de todos os que dizem respeito aoscampos de concentrao.O campo deMellen magnado pelo autor um campo deconcentrao mdio. O prprio horror moderado, e estrelativamente na verdade o coiizandaizteNetibaitei-,que,,@ccoiiipi-azein i-epetirqueoseu camp um dos maisbuinanos de toda a Alemanha. Sabe-se, alids, que os ltimosmeses de guerra - precisamente aqueles que o autor escolheitpara nos recoi-dai--.forain assnaladospor um cedoaj@Ouxamento do terror nos campos. Os carrascos, fatgados, oudizimadosERICH-MARIA REMARQUEpelas sucessivas remessaspara afrente de batalha,contentavam-se com mtodos masexpedtvosquea tortura.afomeimpessoaleomnipotente que ocupa opilmero lugarno campodeMellen.Ericb--Maria Remarque no nem um.filsqfo nem um terico. Oseu livro desenrola-se integralmente noplano dosfactos maisconcretos. No obstante, o prprio titulo anuncia a grandelio que se desprende destaspginas. E a daprecaridade dovalorbuinano. O espirito, f-lo Remarque dizer suapersonagem principal, no uma luz intangvel desprendida dasnecessidades materiais, Quem quer que seja pode liquid-lo,separa tanto tiver tempo e ocasio. A bumanidade estconstantemente ameaada, a possibilidade do seudesaparecimento est semprepresente. preciso saIn@-Ia ereconquis-Ok4 em cada momento,..E esse, sem dvida, o tema mais trgico deste livro, essacentelha espiritual sempre prestes a apagar-se, morrendo erenascendo em cada Pstante, protegida medrosamente por bomensencurralados, obrigadossem cessara recorrerastciaparapermanecerem homens.Oesqueleto 5O9 ergueu lentamente a cabea e abriu os olhos. Nopoderia dizer se desmaiara ou se, simplesmente, adormecera. Deresto, a diferena entre os dois estados no era grande; atome e o esgotamento h muito tempo j que haviam apagado asfronteiras entre eles. Era o mesmo deslizar em profundidadeslamacentIS donde lhe parecia no poder arrancar-se nunca mais.O 5O9 permaneceu agacliado uni momento e escutou.Tra um velhohbito de campo. Nunca se sabia de que lado o perigo iaprecipitar-se, e, enquanto se permanecesse imvel haviaprobabilidades de passar despercebido ou de ser consideradomorto siniples lei da natureza que nem sequer um besoiroignora.Nada ouviu de suspeito. Os serventes das metralhadorasdonwtavam nas suas torres. Mais longe reinava igualmente acania. Com prudncia, virou a cabea e olhou para detrs desi.O campo de concentrao de Mellen dormia, tranquilo, ao sol. Avasta praa de chamada, a que os SS chaniavam com humorismo, odancing, estava quase deserta. Apenas quatro prisioneiros, demos atadas atrs das costas, estavam suspensos dos fortespostes que se erguiam direita da porta de entrada.Tinhani~nos atado suficientemente alto para que os ps notocassem no solo. Os ossos das espduas saam dasarticulaes. Por uma pequena janela, dois fogueiros docrematrio divertiam-se a bombardear os corpos com pequenospedaos de carvo, mas nenhum deles se movia j. Estavampendurados h meia hora e tinham desmaiado.As barracas do campo de trabalho estavam desertas. As brigadasexteriores no tinham ainda regressado. Alguns homens emservio de camarata atravessavam furtivamente as ruas. O SSScbarfue~Breuer estava sentado esquerda do grande porto daentrada, diante dos bunkem Mandara trazer uma mesa redonda eunia cadeira de verga e preparava-se para beber unia chvenade caf. O verdadeiro caf era raro nessa Primavera de 1945,mas Bretier acabava de estrangular dois judeus queemboloreciam h seis semanas no bunkereconsiderava que estaaco filantrpica valia bem uma recompensa. O kapo da cozinhaacrescentara ao caf um prato de bolos. Breuer comia devagar,com um prazer consciencioso; apreciava muito, sobretudo,, asERICH-MARIA REMARQUEpassas de Corinto, sem grainhas, de que a massa estavarecheada. o judeu mais velho no fora muito divertido, mas omais novo mostrara ser mais resistente; debatera-se eestertorara durante um bom pedao. Bretier sorri,sonhadoramente, ouvindo, dispersos pelo vento, os estribilhosda orquestra do campo, que ensaiava atrs da horta. Tocava-sea valsa RosasdoSul, de que o Oben;itirmbann ebi-erNeubauertanto .fu gostava.O 5O9 estava estendido na outra extremidade do campo, perto deuni grupo de barracas de tbuas que unia ved,ao de aramefarpado separava do grande campo de trabalho. Chaniavani-lhe opequeno campo. Era l que se encontravam os prisioneiros jdemasiado fracos para poderem trabalhar. Mandavani-nos paraali para morrereni. Embora quase todos morressem rapidamente,as barracas estavam sempre sobrepovoadas porque, sem cessar,chegavam novos prisioneiros antes que, os outros tivessemmorrido. Frequentemente, os moribundos acumulavam-se at noscorredores ou eram arrastados para fora, para o seu ltimosuspiro, Mellen no tinha cmara de gs, do que bastante seorgulhava o comandante. Com muito gosto declarava que emMellen se morria de morte natural. Oficialmente, o pequenocampo era designado por seco de repouso, mas poucos eram ospresos que resistiam mais de uma ou duas semanas a este gnerode repouso. Tal era, contudo, o caso dos prisioneiros dabarraca 22: com um resto de humor negro, denominavani-se a siprprios os veteranos. O 5O9 fazia parte deste reduzido grupo.Havia seis meses que fora transferido para o pequeno campo:parecia-lhe uni milagre continuar vivo.O crematrio vomitava uma torrente de fumo negro, que o ventoachatava sobre o campo. As nuvens de fumo rasavam os tectosdas barracas, O ar estava cheio de uni odor gordo e adocicado,que provocava vontade de vomitar. O 5O9, apesar dos seus dezanos de campo, nunca pudera habituar-se a este cheiro. Osrestos de dois veteranos deviam estar a ser queimados: os dorelojoeirojan Sibeiski e do professor universitrio JoelBuchsl-)aum. Ambos haviam moi-rido na barraca22 e tinham sido entregues para o crematrio ao meio-dia. Afalar verdade, Bluchsbaum no fora entregue integralmente:faltavani-lhe trs dedos, dezassete dentes, as unhas dos ps euma parte do sexo. Perdera tudo isto no decorrer da-reeducao" que devia fazer dele uni homem aproveitvel. Ahistria do membro viril provocara muitas risadas nos seresculturais dados na caserna dos SS. A ideia pai-tira doScha@ffiehwrGnter Steinbrenner, recm-chegado ao campo.Simples corno todas as grandes invenes - uina injecb ao seu nervosismo. - Sujos! Porcos! Chores!, E voc? Quefazia @, "W a? P-1 Eu? Nada.2.--- Abandono do sei-vio, hem? Divulgao de mentiras e deatroci- >es? Tiraremos isso a limpo! Tomar-se-o providncias!Toinar-se- ?qui medidas dunia severidade teirivel! Em frente,marche, parazinhal w vA rapariga fugiu. Neul-)auer resfolegou e fechou ajanela. "Nada depsou. "E na cave que elas esto, evidentemente. Deveria t-loen ado logo." @irou um charuto e acendeu-o. Alisou o dloian,arqueou o torso, u uni olhar ao espelho e desceu.31ERICH-MARIA REMARQUEA mulher e a filha estavam apertadas uma contra a outra numdiv encostado parede. Por cima delas pendia um retratocolorido do F~.A cave fora transformada em abrigo antes da guerra. Tinhapilares de ao, uma cobertura de beto e paredes macias. Forapor razes de puro prestgio que Neubauer mandara executaresses trabalhos, uma vez que o patriotismo exigia que se desseo bom exemplo. Ningum pensara seriamente de que a Alemanhapudesse um dia ser bombardeada. A declarao do marechalGoering de que quereria passar a chamar-se Meier no dia em queos avies inimigos chegassem Alemanha, apesar da Luftwaffe,era suficiente garantia para todo o bom alemo. Infelizmente,acontecera coisa diferente. Um belo exemplo da-perfidia dosplutocratas e dos judeus: fazereni-se passar por mais fracosdo que na realidade eram.- Bruno! Selma Neubauer levantou-se, desfazendo-se emlgrimas. Era loura e gorda e trazia um roupo de sedafrancesa, de cor de salmo, com uma cercadura de renda.Neubauer trouxera-lho de Paris, onde estivera de licena em1941. As suas faces tremiam e a sua boca, pequena de mais, noconseguia articular as palavras.Acabou-se, Selma. Acalma-te. Acabou? Ela falava como semastigasse em seco.- Por quanto... quanto tempo?- Para sempre. Eles partiram. o ataque falhou. No voltaromais. Selma Neubauer cingia o roupo sobre o peito.- Quem o disse, Bruno? Donde o sabes tu?- Abatemos, pelo menos, metade. No se arriscaro mais.- Como sabes?- Sei. Desta vez apanharani-nos de -surpresa. Na prxima vezestaremos prevenidos.A mulher deixou de mastigar no vcuo. . tudo? - perguntouela. - tudo o que tens para nos dizer? Neubauer sabia queno tinha nada a dizer.- Isto no te chega? - perguntou com brusquido. A mulherfitou-o. Os seus olhos azui-claros estavam embaciados delgrimas.- N@o! - gritou de sbito. - No me chega! Isso so baleias!No significam absolutamente nada! Que que no nos disseramainda? Comearam por afinnar que ramos to fortes que nuncauni avio inimigo alcanaria a Alemanha e um belo dia ei-losque chegam. Depois di;serani-n'o's que no voltariam maisporque seriam todos abatidos nas fronteiras, e em vez dissoeles chegam dez vezes mais numerosos32A CENTELHA DA VIDAs alertas sucedem-se sem descanso. Agora vieram procurar-nosi, e tu fazes-te importante, declaras tranquilarnente que nose ar-aro outra vez, que ns os liquidaremos. Acharias razovel quete ditassem?- Selma! @Neubauer deitou um olhar involuntrio para o retratodo Fbrer.is precipitou-se para a porta, para fech-la.- Com mil diabos, domina-te! Queres perder-nos a todos, no?oideceste, para gritares dessa maneira? Estava perto dela. Porcima das gordas espduas de Selma o Fbreraltivamente o campo de Berchtesgaden. Neubauer no estava e deacreditar que ele ouvira ti-ido. Mas Selma no via o Fbrer.Doida? - soluava. - Quem aqui o doido? Eu no. Tnhamos idamaravilhosa antes da guerra, e agora? Agora? Queria saber m o doido aqui! eul:)auer agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a torudemente que ,bea dela tombava para todos os lados e osgritos cessaram. O ado desfez-se, alguns ganchos caram, elasufocou e comeou sir. Ele largou-a. Selma deixou-se cair nodiv.E tu, que tens tu? - perguntou Neubauer filha. Nada. A mamest muito impressionada, nada mais.@ Porqu? Nada se passou.Nada se passou? - recomeou a mulher. - Para ti, l em cima,h dvida. Mas ns... aqui sozinhas! @- Basta! Com mil diabos!No grites to alto. Pensas que trabalhei o um negro durantequinze anos para que destruas tudo, num ento, com os teusgritos? julgas que no h muitos que esperam me o meu posto?4.- Era o nosso primeiro bombardeamento, pap - disse Freya,qx,,l.i--lienle - At aqui s tivemos alertas. A mam acabarporO pi iiii(-iro? Sem dvida, o primeiro. Deverianiosregozijr-nos11,1WA lio- ier acontecido ainda, em vez de gritarmos tolices!est nervosa, mas acabar por habituar-se. , -Acalmada filhairritava Neubauer. -Quemque est nervoso? precisosabermo-nos dominar. Que aconteceria isso?A mesma coisa! mulher ria. Estava deitada no sof, com aspesadas pernas afasta-' inha nos ps umas pantufas de sedacor-de-rosa. Achava a seda cor-de-rosa muito elegantes.- Nervoso! Flabituarmo-nos! Tens uma grande lbia!cos do S. XX 25-333ERICH-MRIA REMARQUE- Eu? Que queres dizer?- O qu?- A ti nada acontece.- A ti nada pode acontecer, mas ns estamos apanhadas naamiadilha.- Isso pura loucura. Estamos todos no mesmo ponto. Comoqueres tu que nada me possa acontecer?- Tu ests em segurana l em cima no campo.- O qu? - Neubauer atirou o charuto ao cho e pisou-o. - Nsno temos abrigos como os vossos.Era falso.- Porque no tm necessidade deles. Esto fora da cidade.- Como se isso importasse! Quando unia bomba cai, cai mesmo.- O campo nunca ser bombardeado.- Sim? Grande novidade essa. Como soubeste tu isso? Osamericanos mandarani-te um boletim de informao? Ouprevenirani-te pela rdio?Neubauervoltou-se para a filha, esperando uma aprovao ao seugracejo. Mas Freya brincava silenciosamente com a franja dopano que cobria a mesa de cabeceira do div. Foi a mulher quemrespondeu:- Eles no vo bombardear os seus prprios homens!- Tolice! No temos um americano sequer no campo! Nem umingls. Nada mais do que russos, polacos e a gentalha dosBalcs. E tambm traidores alemes, judeus, assassinos.- Eles no vo bombardear russos, polacos nem judeus--declarou Selma, obstinada.Neubauer virou-se, irritado.- Ests muito bem informada - disse com um furor contido. -Mas eu vou dizer-te unia coisa. Eles no sabem que gnero decampo aquele, compreendes? Vem apenas barracas que podemperfeitamente tomar por barracas militares. Vem casernas; asnossas casernas SS. Vem edificiosonde trabalham os nossospresos. Para eles so fbricas, portanto objectivos militares.L em cima cem vezes mais perigoso do que aqui. por issoque eu no quis que habitassem l. Aqui no h casernas nemfbricas. Compreendeste, enfim?- No! Neubauer observou a mulher. Selma nunca procederaassim. Ele perguntava a si mesmo o que motivara isto. O medo,s por si, no explicava tudo, Neubauer sentiu-se, de sbito,abandonado pela famlia, no momento exacto em que era maisnecessrio ajudareni-se mutuamente. Virou-se, mal humorado,para a filha.- E tu, que pensas? Por que no abres a boca?34A CENTELHA DA VIDA"Freya Neubauer levantou-se. Tinha 2O anos, um rosto um poucoido, a testa arqueada, e no se assemelhava nem ao pai nem me.- Creio que a mam se acalmou agora,- O qu? Como isso?- Creio que ela se acalmou. Neubauer calou-se por uniinstante. Esperava que a mulher dise alguma coisa.Bem - disse ele. Podemos subir? - perguntou Freya. Neubauerdeitou uni olhar desconfiado a Selma. No tinha grande . na.Era preciso persuadi-Ia a no falar a ningum. Mesmo da dequarto. A filha antecipou-se.- L em cima isto ir melhor. Teremos ar. Me continuavaindeciso. "Est ali cada como uni saco de farinha", @ou. "Porque no se decide ela a dizer qualquer coisa de razovel?"Tenho de ir administrao s seis horas. Dietz convocou-nos.s de estudar a situao. No h perigo, pap. Tudo est emordem. Vamos preparar oVamos ento. ,Neubauer decidira-se. Pelo menos, a filha noperdera a cabea. ia ">wai coin ela. Era da sua carne e do seusangue. Aproximou-se-- \a[iiO% esquecer esta questo, Selma, hem? Socoisas queacon- ...m \() Imido no tm importncia. Ciffiava :i.sorrindo friamente. --- 1 repetiu. Deti Ilit-p,iiicadinhas nos gordos ombros.agora e fazer o jantar. E tu vais preparar-nos qualr coi-%abo;i para fazer passar o medo, hem? 'l:i r(lou, com indiferena.1,--l belil @-iu que a crise passara. A filha tinha razo.Selma no ia iii:ii-, !@,kiiL,,,jras. --- Al ]:i i @i"!i!,,Iualquer coisa boa, tudo, minha Selmazinha, ptimo ]e1(111! om uma cave segura, em lugar deviverem l em cima,daqueles vadios sujos. E, depois, eu passo vrias ile-: 1>,>j-,ciii.ina junto de vocs. Assim que est bem. Temos des;igid:ii iiii,:ios outros. Faam um petisco para o jantar.Confio em -@ l' Jk"p-i@, sirvam tambm unia garrafa deespumante francs, I.,1 K,iii, \in&t temos bastantes, hem?.pondeu a mulher -, ainda temos bastantes.35ERICH-MARIA REMARQUEUni ltimo ponto - declarou a voz cortante do GruppenfuehrerDietz. - Ouvi dizer que alguns dos senhores manifestaram ainteno de enviar as famlias para os campos. Que h deverdade nisto?Ningum respondeu.- No o consentirei. Ns, os oficiais SS, tenios o dever dedar oexemplo. Se as nossas famlias deixam a cidade antes que sejadada ordem de evacuao geral, os comentrios no faltaro. Osnialedicentes aproveitaro o ensejo. Exijo, por consequncia,que nada deste gnero acontea sem meu conhecimento.Delgado e esbelto no seu uniforme bem talhado fitava o grupode oficiais. Cada um deles suportava-lhe o olhar com um arresoluto e inocente. Quase todos tinham pensado em afastar afamlia, mas nem um olhar sequer traa este pensamento. Cadauni dizia consigo mesmo que Dietz podia falar como falava. Asua famlia no estava na cidade. Ele provinha do Saxe e a suanica preocupao era assemelhar-se a um oficial da GuardaPrussana. Assim era fcil. Executa-se sempre com a maiorcoragem o que nada custa.- Meus senhores, conclu - acrescentou Dietz. - E lembrem-se:as nossas ltimas armas secretas esto sendo produzidas, desdej, em grande escala. As V1 nada so ainda, por maior que sejaa sua eficcia. Londres est em cinzas. A Inglaterra bombardeada sem descanso, os arranha-cus de Nova lorque estoarrasados. Ocupamos os principais portos franceses. O avanodo exrcito de invaso choca com as piores dificuldades. Acontra-ofensiva vai atirar o inimigo ao mar. Ela iminente.Reunimos reservas considerveis, Quanto s nossas novasarmas... no posso dizer-lhes mais, rnas sei, de fonte segura,que a vitria ser nossa dentro de trs meses. Basta aguentar.Estendeu o brao.- Ao trabalho! HeilHfler!- Heil HtIer! - gritaram os oficiais. Neubauer deixou aadministrao. "Ele nada disse da Rssia", pensou. "Nem doReno. Do Muro do Oeste, que foi arronibado, nada tambm.Aguentar. Ele pode falar. Nada possui. um fantico. V-sebem que no tem uma loja perto da estao. No accionista doDirio deMellen. No tem um palmo de terra. Eu tenho tudoisto. E se me pulverizam o que tenho, que me daro em troca?"Forniou-se rapidamente um ajuntamento. O largo daadministrao estava negro de gente. instalava-se um microfoneno patamar da escadaria. Dietz ia falar. Do alto da fachada,os rostos de pedra de Caflos Magno e de Henrique, o Leo,inclinavam para a multido um sorriso impassvel. Neubauersubiu para o seu Mercedes,- Para a Herniann Goeringstrasse, Alfred.O imvel de Neubauer estava situado na esquina daGoefingstrasse36A CENTELHA DA VIDAFriedrichsallee. Era uni grande edificio, do qual ors-do-cho :>cupado por unia loja de confeces e os doisandares superio-r escritrios. ubauer desceu do carro e deu a volta ao prdio.Se no tivessem o duas vitrinas, tudo estaria intacto.Levantou os olhos para os rios; o fumo da estao rodeava-os,mas nada ardia. Talvez sse tambm ali alguns vidros pai-tidos,mas seria tudo. emorou-se um instante. "Duzentos mil marcos",pensou. A casa pelo menos isto e talvez valesse mais. Pagara-apor cinco mil ,os. Em 1933 pertencia ao judeu Max Blank. Esteexigira, primeiro, mil marcos, geniendo que por esse preo jperdia bastante e que baixaria. Depois de quinze dias de campode concentrao cedepor cinco mil marcos. "E ainda fuihonesto", pensou Neubauer. eria t-la tido de graa, Blankter-nia-ia dado de presente depois .assar pelas mos dos SS.Dei-lhe cinco mil marcos. Em bom dio. No a pronto, claro;estava longe de ter aquela importncia. paguei quando osprimeiros prazos se venceram. Blank estava deo. Uma venda em boa e devida forma. Livremente consentida.escritura no notrio. Se Max Blank dera, no campo, deconcentrauma queda desastrosa que lhe custou uni olho, umbrao partido tuses, fora por mera pouca sorte. Os que tm osps chatos caemnte". Neubauer nada vira, nem, alis, l estava, No deraqualordem. Mandara pr Blank ao abrigo para que alguns SSdernazelosos no lhe fizessem mal. Quanto ao resto, era daconta de r. oltou-se. Por que diabo ia pensar nesta velhahistria? Que que ocupava? H muito tempo que estavaesquecida. Era preciso Se no tivesse comprado a casa, outromembro do Partido a aria a si. Por menos dinheiro. Por nadaat. Ele agira legalmente. rido a lei. O prprio Fbrerdisseraque os seus fiis deviam ser mpensados. E que era estabagatela que lhe calhara a ele, muer, em comparaao com o quehaviam apanhado os grandes? .ng, por exemplo, ou Springer, oGauleiter, esse antigo porteiro otel que se tomara milionrio?Neubauer nada roubara. Conten-e em comprar barato. Estava defendido. Tinha os recibos. Tudoregistado oficialmente. ma labareda derramou-se na estao.Depois foi uma srie de exes. Provavelmente um vago demunies. Reflexos vermelhos rreran-i a casa. Dir-se-ia queela suava sangue. "Tolice", pensou auer. "Realmente estou umpouco nervoso. Os notrios judeus @e foram buscar l acimaesto esquecidos h muito tempo." Subiu o carro. Ali, toperto da estao, admiravelmente bem situada37ERICH-MRIA REMARQUEpara o comrcio mas perigosa como diabo em caso debombardeamento, havia motivo para estar um pouco nervoso.- Para a Grossenstrasse, Alfred.O imvel do Didi@o de Mellen estava absolutamente intacto.Neubauer soubera-o j pelo telefone. Lanava-se uma edioespecial. Os primeiros exemplares eram disputados. Neubauervia os fardos desaparecerem. Cada exemplar rendia-lhe umpfenng. Novos vendedores chegavam com outros pacotes edesapareciam em bicicleta. Uma edio especial representava umlucro suplementar. Cada vendedor levava, pelo,menos, duzentosexemplares. Neubauer contou dezassete vendedores. Logo, trintae quatro marcos ganhos. O bombardearnento tinha, pelo menos,este lado bom. Com isto poderia pagar uma parte das vitrinasdestrudas. Tolice... elas estavam no seguro. Sim, se o seguropagasse. Se o seguro pudesse pagar com todos estes prejuzos.O_seguro pagaria! Pelo menos a ele, Neubauer. Os trinta equatro marcos eram lucro puro.Comprou um jornal. Um breve apelo de Dietz aparecia j.Trabalho rpido. Depois, a notcia de que dois avies tinhamsido abatidos sobre a cidade, a metade dos outros sobreMinden, Osnabruck e Hanver. Um artigo de GoebbeIs sobre adesumana'barbaria destes bombardeamentos de pacficas cidadesalems. Algumas frases lapidares do Fbrer. A juventudeHitleriana partira em busca de aviadores que tinham saltado depra-quedas. Neubauer atirou fora o jornal e entrou numatabacaria.- Trs Guardas Alems - pediu.O lojista apresentou-lhe a caixa. Neubauer serviu-se ao acaso.Os charutos eram maus. Verdadeiras folhas de rvore. Tinha demelhor qualidade em casa. Importados de Paris e da Holanda. Sepedia Guarda Alem, era porque a loja lhe pertencia. Antes dasubida do Partido ao poder pertencera a uma sociedade decomerciantes judeus. Cara ento nas mos doSturmfuebrerFreiberg, que a conservou at 1936. Uma mina deouro. Neubauer cortou, com uma dentada, a ponta dum GuardaAlem. Fora por culpa sua que Freiberg se entregara amurmuraoes altamente injuriosas para o Fhrer?Denunciando-o,no fizera mais do que o seu dever, de membro fiel do Partido.Pouco depois, Freiberg desapareceu e Neubauer comprou onegcio viva. Prestala-lhe, com isso, um verdadeiro serviode amigo. Tinha-a aconselhado vivamente a vender. Segundocertas informaes que lhe haviam chegado, os bens de Freibergiam ser requisitados. Ora mais fcil esconder dinheiro doque uma loja. Ela niostrou-se reconhecida e vendeu. Pelaquarta parte do valor, naturalmente. Neubauer explicara-lheque, de momento, no podia pagar mais, e era necessrioresolver a questo depressa. Ela compreendeu bem. A requisionunca se38A CENTELHA DA VIDAeubauer explicou-lhe tambm porqu. Fizera intervir as suas esem favor dela. Desta maneira, ela pudera conservar o di- .Quanto a ele, agira honestamente. Com o dever no se discute mde que a loja poderia perfeitamente ter sido requisitada. Semque a viva teria sido incapaz de mant-la. T-la-iani expulsonos dinheiro. ubauer tirou o charuto da boca. No fumegava.Unia verdadeira .a. Contudo, as pessoas compravam. Lanavam-sesobre tudo e podia fumar-se. Era pena que fosse racionado.Poder-se-ia er dez vezes mais. Deitou um ltimo olhar loja.Tivera sorte. partido, Escarrou. Sentira, de repente, unigosto desagradvel naO charuto, sem dvida. Ou o qu, ento? Escapara de boa. so?Por que diabo ia ele pensar em todas essas velhas histrias? uo charuto fora, enquanto subia para o carro, e deu os outrosao motorista.Toma, Alfred, aqui tens unia boa coisa para esta noite. Eagora mar. pomar era o orgulho de Neubauer. Era um vastoterreno sadade, ocupando os legumes e as rvores frutferas a maior parte;ainda um jardim e um ptio com criao. Vrios prisioneirosa quem se podia vontade exigir o mximo de trabalho, avamtudo em boa ordem. Nada custavam. Eles prprios que riampagar a Neubauer. Em vez de se cansarem doze ou quinzena fbrica, encontravam ali ar puro e um trabalho fcil.crepsculo caa sobre o pomar. O cu estava'claro e a Luaerguiaa crista das macieiras. A terra revolvida soltava umcheiro intenso. olo brotavam os primeiros legumes e as rvoresfrutferas jos seus botes pegajosos e inchados. Unia pequenacerejeiraapo, que passara o Inverno na estufa, estava jcoberta por unia elina branca e rsea de ptalas timidas. srussos trabalhavam na vertente oposta do terreno. Neubauer Viaus dorsos negros e curvados e o vulto do homem que os vigiava,do duma espingarda, cuja baioneta, apontava para o cu. Oregunto exigia um guarda, mas os russos no poderiam fugir.Onde com o seu uniforme e sem conhecerem a lingua? Dum grandede papel tiravam cinza do fomo crematrio e espalhavam-na noss. Ocupavam-se dos canteiros de espargos e de morangos, de4cubauer era pai ticularniente guloso. Nunca comia quantodese-O saco continha a cinza de sessenta pessoas, doze das quaisas. a obscuridade fresca e azulada brilhavam as primaveras eos @iros narcisos, plantados ao longo do muro sul e protegidospor s de vidro. Neul-)auer baixou-se e fez deslizar uma delas.Os nar-39ERICH-MRIA REMARQUEcisos no deitavam cheiro, mas o ar enibalsamava-se do perfumeda violeta. Havia violetas invisveis no crepsculo.Respirou profundamente. Era o seu pomar. Pagara-o ele mesmo. moda antiga, honestamente. Por preo elevado. No, o tirara aningum. Aqui, sim, estava no seu lugar. No lugar onde tinha odireito de se tomar hun 'iano, depois de servir duramente aptria e acautelar o futuro da famlia. Profundamentesatisfeito, olhou em redor. Viu o ca-ramancho coberto de madressilvas e de roseiras de trepar, asebe de buxo, a gruta artificial, viu as moitas de lilazes,aspirou o ar ainda uni pouco spero, mas em que j se sentia aPrimavera, passou uma mo enternecida pelos revestimentos depalha que protegiam os troncos dos pessegueiros e daspereiras, cujas espadeiras se dispunham emandares ao longo do muro, e abriu, finalmente, a porta dapequena casa que abrigava a criao. _ No foi para asgalinhas, agachadas nos poleiros como velhas comadres, que sedirigiu, nem para os leites, que dormiani na palha; foi paraos coelhos.Eram dois angors brancos e cinzentos de longo e sedoso plo.Dormiam. Quando acendeu a luz elctrica, comearam a agitar-sedocemente, Meteu um dedo pela rede para cocar-lhes brandamenteo plo. No havia no mundo nada mais macio. Tirou dum cestoalgumas folhas de couve e rodelas de beterraba e introduziu-asnas gaiolas. Os coelhos aproximarani-se e puseram-se a roerdelicadamente, lentamente, com o seu pequeno focinhocor-de-rosa.- Mucki - murmurou -, vem aqui, Mucki...O calor dos animais envolvia-o num vago torpor, como um sonolonginquo. O cheiro animal fazia pensar numa inocnciaesquecida. Era um pequeno mundo fechado, animado dunia vidaquase vegetativa, muito longe das bombas, das intrigas e daluta pela existncia -um mundo de folhas de couve, de beterrabas, de plos quecrescem e se tosquiam, de animaizinhos que nascem. Neubauervendia o leite, mas ali jamais se matava uni animal.- Mucki - murmurou outra vez. Uni grande macho brancotomou-lhe delicadamente uma folha da mo. Os seus olhosrosados brilhavam como claras safiras. Neubauer coou-lhe anuca. As botas rangeram quando se baixou. "Que tinha ditoSelma ento? Em segurana? Vocs esto em segurana no campode concentrao? Quem que estava em segurana? Quandoestivera ele realmente no campo?"Empurrou ainda unia folha decouve atravs das malhas de rede."Doze anos", pensou. "Antes da subida do Partido ao Poder euera um empregado dos correios e, telgrafos, com duzentosmarcos por ms.4OA CENTELHA DA VIDAisto no podia viver nem morrer. Agora, que tenho algumacoisa, estou para perder tudo." bservou os olhos rosados docoelho. Tudo correra bem hoje. O bardeaniento devia ter sidoconsequncia dum erro. So coisas acontecem com tripulaes umpouco jovens. A cidade no tinha rtncia militar; a no serassim, j a teriam tentado destruir. bauer sentiu-setranquilizado. "Mucki ... ", disse, e pensou: "Em rana? Sim,com certeza. Quem quereria arruinar-se no ltirrionto?"41IValdita cambada de porcos! Repetir a chamada! As brigadas de _Mtrabalho do grande campo, imobilizadas em sentido, estavarnalinhadas dez a dez para a charnada por bloco. A noite caa je os presos, nos seus fatos riscados, tinham, na penumbra, oaspecto dum imenso rebanho de zebras esgotadas de fadiga.A chamada durava j h mais de uma hora, mas ainda no setinha chegado conta. A causa estava no bombardeamento. Asbrigadas que trabalhavam na fbrica de cobre tinham sofridoperdas. Um bomba explodira na seco e causara um certo nmerode mortos e feridos. Por outro lado, os SS encarregados davigilncia tinham, nos primeiros momentos de pnico, paraevitar evases, aberto fogo contra os presos que procuravamabrigar-se. Da resultara uma meia dzia de vtimassuplementares.Depois do bombardeamento os presos puserani-se procura dosseus mortos, ou do que deles restava, no meio dos escombros edos niontes de entulho. Isso era fundamental para a chamada.Por pouca que fosse a importncia que os SS davam vida dumprisioneiro e por maior que fosse a indiferena com que atratavam, era preciso que todos os presos, mortos ou vivos, seencontrassem na chamada. A burocracia estendia-se at aoscadveres.As brigadas tinham trazido, cuidadosamente, tudo o que haviampodido encontrar. Uns transportavam um brao, outros pernasou, ainda, uma cabea arrancada. As poucas padiolas que tinhasido possvel reunir foram utilizadas pelos feridos que haviamperdido um membro ou cujo ventre fora retalhado. Os outrosferidos tinhani-se arrastado, melhor ou pior, auxiliados peloscamaradas. No se puderam fazer muitos pensos, porque de quasenada se dispunha para isso. Com arames e barbantesjugularam-se a custo as hemorragias. Sobre as padiolas, osferidos no ventre retinham as entranhas com as prprias mos.O cortejo regressara laboriosamente ao campo. Dois feridos quetinham morrido no caminho foram conduzidos quase de rastos.Daqui resultara um incidente donde o Schaifuebrer Steinbrennersaiu sofrivelmente ridicularizado. entrada do campo, aorquestra tocara, como de costume, a marcha Fre~cus Rex. Aordem de passo de pa-42A CENTELHA DA VIDA.tessoara e as brigadas desfilaram diante do chefe de campoSS, r, e do seu estado-maior, em passo de ganso, a cabeavirada ' direita. Os feridos graves, nas suas padiolas,tinham tambm vi- 'a cabea para a direita, tentando, na suaagonia, uma espcie de o de sentido. 56 os mortos no tinhamsaudado. Foi ento que renner descobriu, sustentado por doiscamaradas, um homem ixara pender a cabea para o cho. Noreparou que os ps dele stavam pela terra; precipitou-se nomeio das fileiras e assestou ado, entre os olhos, umacoronhada com o revlver. Steinbrenjovem e cheio de ardor; nasua precipitao supusera que o tinha simplesmente perdido ossentidos. O choque projectou a para trs e o maxilar descaiu;dir-se-ia que a boca sangrenta um ltimo esforo grotesco paraabocar a coronha do revlver. ,riram a bom rir. Steinbrennerestava furioso; sentira que acabavaer uma parte da considerao que a cura de cido clordrico1 Buchsbaum lhe valera. Prometeu a si mesmo resgatar-se na aocasio. regresso da fbrica fora demorado e era j mais tardedo que oe quando a chamada comeou. Os mortos e os feridos estavam,sempre, dispostos segundo uma ordem rigorosamente militar,iras, perto dos grupos de blocos a que pertenciam. Os feridosno foram transportados ao hospital, nem mesmo pensados. A daantes de tudo.Vamos! Repetir! Se desta vez no der o nmero certo, seroajua encontr-lo! ber, o chefe de campo SS, estavaescarranchado numa cadeira deira que lhe tinham trazido para olocal da chamada. Tinha 35 era de altura mdia e muito forte.o rosto, largo e bronzeado, uma cicatriz profunda, que desciada comissura direita dos lbios ava o queixo. Era a recordaoduma escaramua de cervejaria membros da Bandera do Rech, em1929. Com os cotovelos dos no espaldar da cadeira, olhava comtdio os presos, no meio uais SS, responsveis de blocos ekapos exasperados corriam em os sentidos, distribuindoinjrias e pancadas. s responsveis dos blocos suavam sangue egua e faziam rear uma vez mais a contagem. As vozeselevavam-se montonas. Uni, dois, trs... um os cadveresdespedaados que atrapalhavam tudo. Os s tinham reunido omelhor possvel as cabeas, os braos e os os, mas no sepudera encontrar tudo. Por mais que se fizesse, am doishomens.43ERICH-MARJA REMARQUEAs brigadas disputavam na sombra os restos humanos; sobretudoas cabeas, bem entendido. Cada bloco queria apresentar-se tocompleto quanto possvel, para evitar os castigos severos quepuniam os desaparecimentos. Havia j brigas por causa dequalquer resto sangrento quando ressoou a ordem "Firmes!". Naprecipitao, os responsveis de bloco nada tinham podidoreorganizar; o resultado que faltavam dois corpos. Abom]-,)a despedaara-os provavelmente em pequenos bocados eestes tinham voado por cima das paredes ou juncavam ostelhados da fbrica.O Rappoi-tfueb;-er apresentou-se a Weber.- Agora s falta um homem e meio. Os russos tinham trs pernaspara um s homem e os polacos um brao a mais.Weber bocejou.- Mande fazer a chamada nominal, para saber quem falta. Ummovimento quase imperceptvel percorreu as filas dosprisioneiros. A chamada por nomes significava uma esperasuplementar de, pelo menos, uma ou duas horas - com os russose os polacos, que no compreendiam o alemo, havia errosconstantes.A chamada recomeou. Elevavam~se vozes; ouviani--se entopragas e pancadas. Os SS batiam furiosamente porque iam perderduas horas de liberdade. Os kapos e os responsveis dos blocosbatiam por medo. Aqui e alm tombavam homens, e sob os feridosalargavani-se lentamente poas de sangue negro. Os seus rostosde cera diminuam na sombra e brilhavam com um reflexo deagonia.'Levantavam uni olhar resignado para os camaradas que,imobilizados, mos sobre a costura das calas, no podiamsocorrer aqueles que se esvaam em sangue. Esta floresta depernas zebradas era, para muitos, a ltima viso deste mundo.A Lua elevou-se por detrs do fomo crematrio. O ar estavapesado; a Lua rodeava-se dum largo halo. Por um momento,escondeu-se atrs da chamin, nimbando~a dum plido reflexo,como se nos fornos tivessem queimado espritos e deles seescapassem labaredas sem calor. Subindo sempre, ela tornou-selentamente visvel, e a curta chamin asseinelhou-se ento goela dum morteiro escarrando uma bola incandescente em plenocu.O prisioneiro Goldstein encontrava-se na primeira fila doshomens do bloco 13. Era o ltimo da extrema esquerda e a seusps jaziam os feridos e os mortos do bloco. Um dos feridos erao seu amigo Scheller. Era o homem mais prximo dele. GoIdsteinobservava a furto que a mancha negra sob a perna triturada deScheller aumentava a unia velocidade subitamente acelerada. Openso de urgncia desfizera-se e44A CENTELHA DA VIDAIler perdia todo o seu sangue. Gold,stein tocou com o cotovelono izinho Muenzer e deixou-se resvalar para o lado, como seperos sentidos, de maneira a cair, em parte sobre Scheller. 'que ele fazia no era isento de perigo. O chefe de bloco SSperas filas de prisioneiros como uni co-pastor enraivecido.Com ntap numa tmpora teria podido liquidar GoIdstein. Osprisios mais prximos observavam, imveis, o que se passava.chefe de bloco encontrava-se, nesse momento, na outra extrededa fileira com o responsvel do bloco. Este comunicava-lhe uercoisa. Tambm ele compreendera a manobra de Goldstein tavareter o Schaj@ebrer durante alguns instantes.1ldstein procurava, debaixo de si, s apalpadelas, o barbanteque a perna de Scheller fora garrotada. Sentia junto do rostoo san-a carne palpitante. Deixa isso - murmurou Scheller. ldsteinencontrou, por fim, o n que escorregara e desatou-o.e jorrou mais forte. De qualquer maneira, com a perna neste@estado, eles voa injeco - murinurou Scheller. 1perna apenas estava ligada ao corpo por um ou dois tendes e- farrapos de pele. A queda de Gold,stein deslocara-a,Encontra~ agora bizarramente oblqua, o p revirado, como setivesse uniaarticulao. As mos de Goldstein estavam ensopadas em e.Apertou o n, mas o barbante escorregou outra vez. Scheflerceu. Deixa isso... oldstein foi obrigado a desfazer de novo on. ntia debaixo dos dedos esqurolas sseas. O seu estmagoteve nusea. Dominou-se e rebuscou novamente na carne viscosa.u o garrote, subiu e teve de imobilizar-se. Muenzer acabava deter no p. Era unia advertncia. As pragas do chefe de blocoSS imavam~se. Mais um desses porcalhes! Que se passa agora?Ele caiu, chefe. responsvel do bloco acorrera. De p, carcaapodre! - gritou ele a Goldstein, atirando--lhe um p scostelas. golpe fora muito menos violento do que parecera. Oresponsvel oco travara-o no ltimo momento. Bateu mais.Evitava, assim, chefe de bloco se encarregasse disso.Gold,4teiri no se mexeu. gue de Scheller inundava-lhe orosto, Est bem, deixa-o!45ERICH-MARIA REMARQUEO chefe de bloco afastou~se.- Meu Deus, quando que isto acabar?O responsvel do bloco seguiu-o. Goldstein esperou um mo-mento. Depois agarrou a mos ambas a perna de Scheller,apertou olao, atou-o e fez girar a cavilha de madeira, que saltara. Osangue parou de jorrar'e passou a correr apenas gota a gota.GoIdstein afastou as mos com cuidado. O garrote resistia. ,A chamada terininara. Conclura-se que faltavam trs quartosde um russo e a metade superior do preso Sibolski, da barraca5, o que no era perfeitamente exacto. Os braos de Sibolskitinham sido en~ contrados. certo que fora a barraca 17 quese apoderara deles e que os fizera passar pelos restos deBinswanger, de quem nada pudera ser encontrado. Emcompensao, dois homens da barraca 5 tinham-se apoderado dametade inferior do russo e apresentarani-na comotendo pertencido a Sibolski, j que as pernas eram sempredifceis de identificar. Por felicidade, dispunha-se ainda dealguns restos, que puderam ser atribudos aohomeni-e-um-quarto desaparecido. Tornava-se, deste modo,evidente que nenhum dos presos fugira, aproveita,ndo obombardeamento. Mas todos podiam muito bem ter de ficar napraa de chamada at de manh para, em seguida, descerem fbrica para continuarem as pesquisas - algumas semanas anteso campo ficara de p durante dois dias a fio at que fosseencontrado o corpo dum preso que se enforcara nas pocilgas.Weber permanecia impassvel na cadeira, com o queixo pousadonas mos cruzadas. Quase no se mexera desde o princpio.Levantou-se devagar e fez estalar as articulaes.- Os homens devem estar entorpecidos. Tm necessidade dumpouco de movimento. Exerccio no cho! As ordens soaram.- Mos nuca! Flexo dos joelhos! Ateno para o salto de r!Em frente, saltar!As longas filas obedecerani. Saltavam lentarnente, de joelhosdobrados. Entretanto, a Lua elevara-se no cu e brilhava commais intensidade. Unia pai-te da praa de chamada estavailuminada. O resto do terreno mergulhava na sombra projectadapelos edifcios. Os contornos do crematrio, da porta e mesmoda fora desenhavani-se nitidamente no solo.- Saltar recuando! As filas mergulharam de novo na zonaobscura. Alguns homens caram. Os SS, os kapos e osresponsveis de bloco levantavani-nos a46A CENTELHA DA VIDAps. Os gritos eram quase abafados pelo raspar de inumerveisEm frente! retaguarda! Em frente! retaguarda! Descansar!ora comeav o exerccio no solo propriamente dito. Consistia,ps prisioneiros, em atirarem-se ao cho, rastejarem, levantae,atirareni-se outra vez, rastejarem de novo. Desta maneira,@ani, dolorosamente, conhecimento com a terra do dancng. Aodum momento o terreno no era mais do que uni fervilhar dezebradas, onde dificilmente se teriam reconhecido seres hus.Eles protegiam os feridos o melhor que podiam, mas isso, natao e no niedo, nem sempre era possvel. fim de um quarto dehora Weber deu ordem para cessar o .o. A verdade que estesimples quarto de hora fizera estragos os presos esgotados. Ocho estava juncado de corpos no limiteS. inhar por blocos! homens reunrani-se penosamente elevantaram do cho osam tombado. Aqueles que ainda podiam manter-se de p ni-se aosseus camaradas. Os outros foram arrumados entre osz-se silncio sobre o campo. Weber avanou. Foi no vossoprprio interesse que fizeram este exerccio. Saora como seho-de proteger em caso de ataque areo.s SS riram. Weber lanou-lhes um olhar e continuou: Aprenderamhoje vossa custa com que desumano inimigo noss. A Alemanha, que sempre quis a paz, foi vitima dum ataqueO inimigo, batido em todas as frentes, recorreu, no seudesesao ltimo nicio: desprezando as leis internacionais daguerra, rdeia pacficas cidades alems abertas. Destriigrejas e hosAssassina inulheres e crianas sem defesa. Nadamais se podiade feras desumanas. A resposta no tardar. As brigadas dofaro, a partir de amanh, um esforo suplementar. Partida umais cedo para os trabalhos de desentulho, At nova ordeni, nodescanso ao domingo. Os judeus no tero po durante doisradeani-no aos incendirios inhinigos. r calou-se. O campono se mexia. Ouviu-se subir o roin- @otente de um carro quese aproximava. Cantem - ordenou Weber. - Detascbland.Deutscbland ber.blocos hesitaram uni instante, surpreendidos. Nestes ltimospoucas vezes fora dada ordem de cantar - e sempre se tratavaes populares. Era quase sempre durante a aplicao de casti-47-Soprw11P ',,Ojod ap ',eluazui-,) ajad r aql-iiiA ap-'OqIvurei Op saAcile'ulaisplog atil-noi!.2 i-c,)oq erli3D -janbImb nopuodsoi joli,)q3S11,L -@,.irueiiu os a13 oilaltuojua O,jvq osotuaL --noitittijntt - sriausp sozip nL --notluiAjp-e osopujix)iwas soillo so @>tll-uA uiti 'rTzipalo anb o.i,)pu2ojdttjo@) ripod opu uT;)Isplog -Qs-tticxQttijall@)q3S Qp soi(-1p1 So Op OU OPPISODUOCAUlS,.)UTaISPIO9 op OIOJ O'O1@ @) ONM Jol SOUTUA o,-eu a" 'odui-e@) ap ajaq3 o opu,eqlo'.iauj@>AxnosuDd'"-ep7eu ap ueja:m;;duas ovuiaqQX@, @juxO" 'OssT WWJ,@)A anb usio,) utunSpe tuassoAil srJAulud sr, anb tu,.)9'aiucDoAoid uuoji riun tuw a @>ijoj sicK -sosaidso,)iuouil-emiquT4 turpej o owoj OprlU-C,) EJ,? OM OUTI1 O'Plap L'TJUZ)l@)SUOJ J;?1 TUIeTAap SS soidoid soonb'tUleAriu,,)tuijadxa e soiino sollnui anb'wa um u uasu'uloip-edq .1 uns eu 'jajj;@>q-)S anb ap '.iz>zuanK iod@upuqjTljrd uja Pla anb ap'o:>iun o rio o-eu anb Dp oussoiduiir 'ojjq@is ap 'oAala or5u117exa m4um4so um is tua jiqns nllUaSJOUJaAN, 'W-eAI31U7C3 sosaid so 'omj juiqlo a(i ... nossrd osonb op siodQp'szpu soiu-e@) sou -e5uuUuo@) iurqual ou r(z,.)Alul --OmO o noD,;id jaujaAX @yajjv -aqtz puvIq3sima 'pupIq_vima oanbjOd --jouiag, niiad;)j - @;@nb o --o@q7cq STrw imuiu5oww sos-,.jd so-aliou r upoi inbu oru aS -oidi3uild oopsop Tua:)Quio3ou _"Odu.j7u@)z)p opun2os o nT@@iu o rurmod an --Osaqj OlirIU1 turquil OEU sosaid so anbgp tuaiv -IvuIj opo1!zo@@aj o turAwim anb-seprAola sulou s-e ip'@upr turTpod oruSoZOA SC z) OlIE OPU!SPUTop OPE@5a1UO3 UJEIACH 'a]U'epJO3SIp aopt@cajqos oio3 iiinu n@>jjotti ripolaui v @@?nb o --r5aqrz) r jaxatu mos 'jawaA\ oqu -jZIA nas o ujrd 'siodopo,)nod 'jazu;)t-iK noiun2j,9d - @.@nbjOd -'IUaRS,';)AOIU as su3oq su sepoi anb @> jrpuosso o 'U-l-eT5UljSrJAUlud sie w-eiqr-.; oEu anb so Ou:-iuujTffl@as soi@no so-.imuuj e os--sod'j o3olq op'jazuanKiso@>.od ap eprquiu3 'soTii-eA -SOU73 OPEJU-C3.loS ap ti73xi.-4p'!zuu u:)od,.) VJoliajur,lumpru OUTI1 OQOpu7e o s-eN -soprinjjol SOP SOl!A@ SOSODI.@fT solua3r wo,) juiqurditio3r 7cjrd mapio uuiquilsosaid so -speiodio3 so@5'masmimA CENTELHA DA VIDA@,YN- te daro a injeco - gritou Goldstein maneira de asltimas notas. -Temos o kapo enfermeiro, ele gra-il (e interrompeu-se. O comandante do campo aparecera. We-'2!N" i, '-'WOZ@- O Seu relatrio.um pequeno sermo e apliquei-lhes uma hora de suplementar.estava distrado. Fungou e levantou os olhos para o cu. Iw.que esses porcos vo voltar esta noite? riu.asltimas notcias da rdio, abatemos nove dcimos @@u(4 noachou graa. Janibm este nada tem a perder", - um pequenoDietz, um antigo moo de herdade, nadase j acabou - declarou, de sbito, mal humo-em direco s barracas, levando os seus os seus feridos. Orosto de Scheller estava emaciado como @(#,Werner, MuenzereGoIdsteino levantaram. Pro-no passaria dessa noite. Durante o exerccio no cho nariz.Os choques da marchaprovocaram a hemorragia.o sangue formava unia mancha escura sobrepara a rua que conduzia sua barraca. O vento que su- _,74#,iMca. aumentara e bateu-lhes de frente quando dobraram aTrazia consigo o fumo da cidade sinistrada.dos prisioneiro-se. s transformaram (A o, o cheiro? - perguntou Werner aocabo de um instante. Wlevantou a cabea.MrM(As, tinha nos lbios o gosto adocicado do sangue. Cuspiu e@,@i aspirar o furno pela boca. ##T4- confirmou.Quase parece que tambm arde aqui. Sim. ZoNN- ver-se agora ofunio. Subia do vale, enchia as ruas como umIfz;-w*iAs e depressa se espalhou entre as barracas. DuranteuniWerner.,achou estranho e quase incompreensvel que o."#T# -T4 tivesse sido retido pelos arames farpados - como seo"I TnW11V+1,*] IR49ERICH-MARIA REMARQUEcampo estivesse agora menos defendido, menos. inacessivel doque antes.Desceram a rua, avanando atravs do fumo. Os seus pa~stinham. mais finneza e caminhavam de ombros erguidos,Cond,44ram Scheller com cuidado. GoIdstein curvou-se para ele, '.- Cheira! Cheira tu, tambm! - pronunciou baixinho, con@o u,masplica desesperada, para o rosto emaciado.Mas Scheller perdera os sentidos h muito tempo.5OVma obscuridade ftida enchia a barraca. H muito tempo j queno tinham luz noite.5O9 - murmurou Berger -, Loffinann quer falar-te. o fim?Ainda no.O 5O9 avanou s apalpadedas pelo estreito corredor pai a orectn-bao da janela que dominava o catre de tbuas de Lohi-nann. uum leve rumor.Berger est a tambm? - perguntou Lohmann. No. Vai busc-lo.Para qu? Vai busc~lo.O 5O9 voltou, apalpando na escurido. Ouvirani-se pragas.Esmacorpos estendidos no corredor. Urna mandbula fechou-sesobretornozelo. Bateu numa cabea desconhecida at que os dentesdescerraram. @Alguns minutos mais tarde regressou com Berger.- Aqui estamos. Que queres tu agora?- Toma. Lohmann estendeu o brao.O qu? - perguntou o 5O9. Estende a tua mo sob a minha. Bemaberta. Ateno.O 5O9 sentiu o magro punho de Lohmann, seco como uma pele derto, abrir-se lentamente. Unia coisa pequena e pesada caiu-lhenaO.- Apanhaste-o?Sim. Que isto? E ... ? Sim - murmurou Lohniann -, o meudente.O qu? - Berger apro,ximou-se.. - Quem fez isto? Loffinannps-se a rir. Era uni riso quase silencioso, descarnado.- Eu.-Tu? Como? A satisfao do moribundo era vigvel. Estava cheioduni orgulho ntil.51ERICH-MARIA REMARQUEUm prego... duas horas. Uni pequeno prego de ferro. Achei-o edescarnei o dente com ele.- Onde est o prego? Lohmann apalpou sua volta e deuqualquer coisa a Berger. Berger levantou o prego para a janelae depois apalpou-o.- Sujo e ferrugento. Isso sangrou? Lohmann riu outra vez.- Berger - disse -, eu posso bem pennitir-me o risco, dumainfeco.Espera ai. Berger rebuscou nos bolsos.- Algum tem uni fsforo? > Osfsforos eram preciosos.Eu no tenho - respondeu o 5O9. A vai - disse algum da camado meio. Berger riscou o fsforo, que se inflamou. Berger e o5O9 tinham fechado os olhos para no serem deslumbrados.Ganhay~ assim alguns segundos de viso.Abre a boca - disse Berger. Lohmann olhou-o fixamente.- No sejam ridculos - murmurou vendam o our-- Abre a -boca. Qualquer coisa que podia ser tomada por um 5O~Pamou no rosto de Lohmann.- Deixa-me tranquilo. Estou contente por t-los vistof,aosdois pela ltima vez luz.- Vou pr a uni pouco de iodo. vou buscar o frasMI. Bergerdeu o fsforo ao 5O9 e afastou-se, apalpando nadUeco da suacama.-.Apaguem! - chiou algum. -.Cala o bico! - respondeu o homemque dera o f~.1,- Apaguem! - repetiu a voz. - Querem que as &,-ntibelas wsabatam a todos?O 5O9 colocara~se de maneira que o seu corpo, cutvad>'@~, afrente, se interpusesse entre a parede e o fsforo.Oprisioneiro da cama do meio tinha aplicado a sua cobertacontra a janela;_e o 5O9 mantnha o casaco aberto por cima dapequena chama: O5 ~ de Lohmann estavam claros, demasiadoclaros. O 5O9 olhoua@ potira do f foro que no tinha aindaardido, depois fitou Lohwann e4>ensou que o conhecia h dezanos. Sabia que o via vivo pela ltimavez,-Demasiadas vezesvira rostos como o seu para no o saber. --- .Sentiu a ipordedura da chama, mas aguentou o fiWoro a"52A CENTELHA DA VIDAto mais. Ouviu Berger, queregressava. Depois a obscuridadebruscamente como se ele tivesse cegado. Tens ainda outrofsforo? - perguntou ao homem da cama dooma. homem deu-lhe uni. o ltimo. ltimo", pensou o 5O9."Quinze segundos de luz. Quinze ses de luz para os quarenta ecinco anos que ainda se chamam nn, Os ltimos segundos." Opequeno circulo trmulo for-se outra vez. ?-@-Apagueni, commil raios! Faam-no largar o fsforo!"O 5O9 baixou a luz. Berger estava perto dele, com o frasco deiodo mo. -Abre aVarou. Por sua vez, via agora, nitidamente, orosto de Liohmann. Erado ter ido buscar o iodo. Alis, fora s para fazer algumacoisaido buscar o frasco. Meteu-o lentamente na algibera.Lohobservava-o, tranquilo, sem bater as plpebras. O 5O9desviou os. Abriu a mo e olhou o pequeno bloco de ouro quebrilhava. is olhou de novo Lohmann, A chama queimava-lhe osdedos. sombra abateu-se sobre o seu brao. A luz desapareceu.- Boa noite, Lohmann - disse o 5O9.- Volto j - disse Berger.- Deixa, deixa - murmurou Lohmann. - Agora fcil.- Talvez encontrenios ainda alguns fsforos. Lohmann norespondeu.O 5O9 sentia na mo a coroa de ouro, pesada e dura.Vamos l para fora - disse ele a Berger, - Estaremos melhorsozinhos para conversar.Alcanaram a porta e acocoraram-se do lado da barraca abrigadovento. Estava escuro. A cidade estava carnufiada e apagadosquase todos os incndios. Apenas a torre da igreja de SantaCatarina ardia ainda como um archote gigantesco. Era muitoantiga e toda de traves secas, Como as niangueiras dosbombeiros eram impotentes para apagar o Incndio,deixavarti-na. arder,Que vamos faze1@? - perguntou o 5O9. Berger esfregou os olhosavernielhados,- Se a coroa foi lanada no registo da barraca, estarnosperdidos. Vo investigar e enforcar alguns, de ns, A comearpor mim.ERICH-MARIA REMARQUEEle disse que a coroa no est registada. Quando Veio para cainda isso no existia, H sete anos que ele est no campo.Nessa altura arrancavam os dentes de ouro, tuas no osregistavam. Mais tarde que comearam a faz-lo,- Tens a certeza?O 5O9 encolheu os ombros. Calarani-s por um instante.- claro que podemos dizer a verdade e entregar o dente. Outor-nar a p-lo na boca dele quando morrer - declarou, enfim, o5O9, A sua mo cerrou-se sobre o pequeno bloco de metal.- isso que tu queres? Berger abanou a cabea. Este ourosignificava a vida por alguns dias. Ambos sabiam bem que,agora que o tinham, no o entregariam.- No podia ele mesmo ter arrancado este dente e vend-lo jh anos?- Achas que os SS iro nisso?- No. Sobretudo se descobrem a chaga recente na boca.,- Isso o menos. Se ele se aguentar ainda um bocado, a chagafechar. Alm disso, uni molar do fundo. A verificao mais dificil, sobretudo quando o cadver se torna rgido. Seele morrer esta noite, amanh de manh estar inteiriado. Semorrer amanh,de manh, teremos de conserv-lo aqui algumashoras. Isto h-de, uxarchar@, Poderemos proceder de maneiraque Handke no se aperceba de nada na chamada da manh.O 5O9 olhou Berger.- Temos de arriscar o golpe. Precisamos de dinheiro.,Sobretudo agora.- Sim. Alis, agora j no podemos escolher. Quemvai'vender odente?- Lebenthal. o nico que pode encarregar-se disso. A portada barraca abriu-se atrs deles. Alguns hon~ puxaram um corpopelos braos e pelas pernas para fora da, [email protected] para unia massa sombria perto da rua. Era alique seacumulavam os corpos dos presos que morriam depois dachamad2.J o Lohiliann? No. No so dos nossos. So muulmanos.,,Os homens que tinham abandonado o cadver regres@aram ,barraca cainhaleando.- Algum deles ter notado que tnhanios o dente? perguntou Berger.- julgo que no. So quase todos muulmanos oestecanto. Quando muito, talvez aquele que nos deu os fsforos,- Ele disse alguma coisa?54A CENTELHA DA VIDANo. Ainda no. Mas possvel que venha a pedir a sua parte.Isso no tem importncia. A questo est em saber se ele nomais vantajoso denuncar~nos. k@O 5O9 reflectiu. Sabia quehavia pessoas capazes de tudo por umO de po.No tinha aspecto disso -respondeu por fim, - A ser assim, quenos teria dado os fsforos?No tem nada a ver unia coisa coma outra. Devemos ser pruntes.Se no, seremos ambos liquidados. E Lebenthal connosco.O 5O9 sabia-o bem. Vira enforcar homens por menos. preciso observ-lo, - declarou. - Pelo menos enquanto -iannno for queimado e Lebenthal no tiver vendido o dente. istarde no lhe serviria de nada.Volto para dentro. Talvez j possa saber alguma coisa. Estbem. Eu fico aqui espera de Lo. Ele deve estar ainda no ode trabalho. Berger levantou-se e dirigiu-se para a barraca. O5O9 e ele no te-hesitado em arriscar a vida se isso pudesse servir no que querque sse para salvar a de Lohmann. Mas nada havia a fazer. Porisso que lavam do seu camarada como de uma coisa. Anos eanos de campoiu-nos levado a este estado.O 5O9 agachou-se ao abrigo das latrinas, Era um bom lugar,@'p!ngum reparava nele. O pequeno campo tinha apenas umalatrina, ,onium a todas as barracas... Estava crigida nolimite dos dois campos1 @' J uma fila ininterrupta de esqueletos arrastavam-se paral sem ces- '.sar gernendo, para regressarem em seguida sbarracas. Quase todos tin@am diarreia ou coisa pior, Aqui ealm jaziam,corpos esgotados es perando que as forasvoltassem outra vez para prosseguirem o seu ,,caminho. Avedao de arame farpado que separava os dois camposf,,@eorria direita e esquerda das latrinas.O 5O9 instalara-se de maneira a poder observar a entrada quefora preparada no arame farpado. Era destinada aos chefes deblocos SS, aos responsveis de blocos, aos homens encarregadosde transportar os vveres e aos camies que abasteciam osfomos crematrios, Da barraca 22 s Berger tinha o direito deservir-se dela quando ia para o crematrio. Para todos osoutros havia interdio folinal. O polaco Silber denominara-aa porta dos rebentados, porque os prisioneiros relegados parao pequeno campo s a atravessavam com os ps para diante. Assentinelas tinham ordem para fazer fogo sobre qualqueresqueleto que tentasse penetrar no grande campo. Quase ningumse55ERICH-MARIA REMARQUEarriscava. Tambm no vinha ningum do grande campo, almdaqueles a quem o sei-vio chamava ao pequeno campo.Seria pouco dizer que este era mantido de quarentena: osoutros prisioneiros tinham-no, de certo modo, condenado econsideravam-no simplesmente uma espcie de cemitrio onde osmortos erravam ainda uni pouco antes de desaparecerem.O 5O9 podia distinguir, atravs dos arames, uma parte das ruasdo grande campo, que fervilhavam de prisioneiros aproveitand 'o o resto do seu tempo de repouso. Via-os falarem uns comos outros, formareni pequenos grupos, irem e virem nas ruas.E, se bem que, em suma, se no tratasse se no de uma outraparte do campo de concentrao, parecia-lhe que um abismo oseparava deles como duma ptria perdida, onde eram conhecidasainda, apesar de tudo, a vida e a fratemidade. Ouvia atrs desi os passos moles dos presos que se arrastavam para aslatrinas e no precisava de virar a cabea para ver osseusolhos sem vida. Era a custo que ainda falavam - por vezesestertoravani, ou ento havia entre eles discusses fatigadas;j no pensavam. O calo do campo denominava-os de muulmanospor causa da resignao total com que se abandonavam suasorte. Os seus movimentos eram de autmatos sem vontade; tudose extinguira neles, a no ser alguinas funes orgnicas;eram mortos-vivos que caam como moscas durante o frio.Povoavam o pequeno camp. Estavam despedaados, perdidos,nada j podia salv-los - nem mesmo a liberdade.O 5O9 sentiu a frescura da noite penetr-lo at aos ossos. Osmurmrios e os gemidos ergulan-i--se atrs dele como uma marcinzenta que ameaava submergi-lo. Era a perptua tentao dodesespero e do abandono, contra a qual os veteranos lutavamcom todas as suas foras. O 5O9 teve um movimento involuntrioe virou a cabea para sentir que vivia ainda e que fruta detoda a sua vontade. Depois ouviu o toque de recolher no campode trabalho. Cada uma das barracas dali tinha latrinasinteriores e era fechada durante toda a noite. Os gruposdispersarani-se nas ruas. Os homens desapareceram. Em menos deuni minuto tudo ficou deserto, e nada mais restou alm dolamentvel cortejo do pequeno campo - esquecido peloscamaradas para l dos arames farpados, proscrito, isolado, umltimo ilhu de trmula vida no pas da morte certa.Lebenthal no veio pela porta. O 5O9 viu-o, de subito,atravessar a praa diante dele. Devia ter entrado por qualquerparte atrs das latrinas. Ningum sabia como ele se arranjava.Era bem capaz de ter utilizado a braadeira dum chefe deseco ou mesmo dum kapo.- Lo! Lebenflial estacou.56A CENTELHA DA VIDA- Que h? Cuidado! Ainda h SS l em baixo. Vem por aqui,dessa. Alcanaram as barracas.Arranjaste alguma coisa? - perguntou o 5O9. - Para comer, ro.Lebenthal encolheu os ombros.Para comer, claro! - repetiu de mau humor. - Por quem me9tomas tu? Serei eu kapo de cozinha?- No.- Ento? Que queres tu que eu te d?- Nada. Apenas te perguntei se tinhas arranjado alguma coisapara omer.Lebenthal parou,Para comer - disse, com amargura. - Tu sabes que os judeussto privados de po durante dois dias em todo o campo? Ordemde .,Wel->er.O 5O9 olhou-o. verdade? No inventei--o agora mesmo. Tenho sempre ideiasdestas! Sou .to espirituoso!- Meu Deus! Vai haver mortos!- Sim, em massa. E querias tu saber agora se eu achei algumacoisa para comer!Acalma-te, Leo. Senta-te aqui ao p de mirri, E uma espiga!Precisaniente agora, que ternos, mais do que nunca,necessidade de comer!- Ah, sim? por minha causa, se calhar, hem? Lebenthalcomecou a tremer. Tremia sempre que se perturbava -e a comoo dominava-o facilmente. Isto no significava paraele mais que, para outro, o tamborilar com os dedos numa mesa.Era a fome perptua. Ela diminua e exagerava todas asemoes. A apatia e ahisteria nunca andavam longe unia da outra no campo de,concentrao.- Fiz o que pude - gemia Lebenthal numa voz sobreaguda eprxima das lgrimas. - Arranjei tudo, arrisquei tudo, previtudo, e tu vens dizer-nie agora que precisamos...A voz i-norreu-lhe de sbito num gargarejo ininteligvel.Dr~se-ia que um dos alto-falantes do campo acabava de cair.Lebenthal. explorava o cho com as duas mos. No tinha j asua expresso de caveira ultrajada; no era mais do que uniatesta, 'um nariz, olhos de batrquco, tudo isto dominandouma trouxa de carne mole com um buraco ao meio. Encontrou, porfim, a dentadura e meteu~a na boca,57ERICH-MARIA REMARQUEdepois de a limpar ao casaco. O alto-falante estava outra vezpendurado e a voz reapareceu, sobreaguda e indignada.O 5O9 deixava-o falar sem o ouvir. Leberiffial deu conta dissoe calou-se.- j fornos privados de po e por mais de dois dias - disse,finalmente, com calma. - Por que fazer hoje to grandequesto?O 5O9 fitou-o por uni inomento. Depois, @ mostrando a cidade ea igreja em chamas:- Olha, aquilo, no ?- O qu?- L em baixo. Que est escrito no Antigo Testamento?- Que queres tu ao Antigo Testamento?- No havia qualquer coisa deste gnero com Moiss? Uniacoluna de fogo que dirigia o povo para fora do cativeiro?Lebenthal franziu as sobrancelhas.1Urna nuvem de fumo durante o dia e uma coluna de fogo durantea noite - recitou ele numa voz firme. - isto que queresdizer?- Sim. E no era uni sinal de Deus?- De Jeov.- Sim, de Jeov. E aquilo no vale, sabes o que ? Esperou uminstante.- alguma coisa de semelhante - disse finalmente. a esperana, Lo, a esperana para todos ns. Mas que tmvocs para no quererem compreender?Lebenthal no respondeu. Dobrara-se sobre si mesmo, coni osolhos fitos na cidade. O 5O9 deixou-se cair ao lado dele.Enfim, conseguira falar! "Mal se pode pronunciar", pensou,"quase nos mata, urna palavra de tal maneira terrivel! Fugidela, cautelosamente, durante anos; ter-me-ia devorado se adeixasse subir; mas ei-la que volta, ningum se atreve ainda amedir-lhe todo o sentido, mas ela est aqui, e no h se nouma alternativa; ou ela me esmagar, ou, ento, h--derealizar-se.@- Lo - disse -, o que se passa l em baixo significa quetambm aqui haver um fim,Lebenthal sacudiu-se.- Se eles perderem a guerra - murmurou. - S nessa condio.Mas quem sabe?Instintivamente, deitou um olhar amendrontado em volta de si.Durante os primeiros anos o campo estivera bastante beminformado acerca do desenrolar da guerra. Mas, mais tarde,quando as vitrias se tornaram raras, Neubauer proibira aentrada de jornais e a difx-iso das notcias pela rdio docampo. Depois os boatos mais extravagantes tinham circuladopelas barracas, e, finalmente, ningum58A CENTELHA DA VIDAia j a que se ater. A guerra corria inal, sabia-se; irias arevoluo ije muitos esperavam havia anos nunca viera.- Lo - disse o 5O9 -, eles vo perder. o fim. Se o que sepas- 'pou l em baixo tivesse acontecido no primeiro ano deguerra, nada ria significado. Mas depois de cinco anos de luta a prova de queo prestes a ganhar. deitou um novo olhar circi-iiar. Por quefalas nisso?O 5O9 conhecia a superstio das barracas. O que era exprimidoperdia por isso mesmo a sua certeza e a sua fora - e uniaesperana enganada representava sempre uma pesada perda deenergia. Dai ,provinha tambm a prudncia dos outros.Falo - disse - porque preciso falar agora. O momento chegou.O que sucedeu nos ajudar agora a resistir. Desta vez j no unia fase para garatujar nas latrinas. isto no pode durarmuito tempo, preciso que ns.---calou-se.O qu? - perguntou Lebenthal. Nem o 5O9 sabia bem o qu.-Safarmo--nos", pensou. "Safrmo~nos e ainda outra coisa." uma corrida - disse por fim. - Uma corrida, Lo, corri...-Com a morte-, pensou. Mas no pronunciou a palavra. Pez unigesto na direco das casernas dos SS.- Corri aqueles. No temos o direito de perder. A meta est vista, Lo.Ag@rrou Lebenthal pelo brao.- E preciso que utilizenios tudo...- Que podemos ns utilizar?O 5O9 sentiu a cabea esvaziar-se-lhe, como se tivesse bebido.Perdera o hbito de pensar tanto e de tanto falar.Olha, tenho aqui urna coisa - disse, tirando do bolso a coroade ouro. - Isto vem de Lohn-iann. provvel que no estejaregistada. Pode-se vend-la?Lebenthal sopesou o bloco de ouro. No manifestava qualquersurpresa.- Perigoso. 56 possvel com algum que possa sair do campoou entrar em contacto com o exterior.- Pouco importa corno. Que poderemos ns tirar disso? Temos denos despachar. 1- Isso no pode ir assim to depressa. E preciso dedo. Exigereflexo, se no arriscanio-nos a ir parar forca, ou ento odente vai-se embora sem nos deixar uni tosto.-No podes arranjar isso esta noite?59ERICH-MARIA REMARQUELebenthal deixou cair a mo que segurava o dente.- 5O9 - disse -, tu ainda ontem eras unia pessoa sensata.- Ontem foi h muito tempo. Uni estrondo violento veio dacidade, logo seguido de um claro badalar de sino. O fogo roerao madeiramento do campanrio e o sino acabava de tombar.Lebenthal achatara-se contra o cho.- Que foi (@uilo? - perguntou.- Uni sinaO 5O9 teve uni sorriso que parecia uma careta.- O sinal, Leo, de que ontem foi j h muito tempo.- Era um sino. Como era possvel que a igreja tivesse aindaunisino? Por que no o mandaram para a fundio?- Sei l. Talvez o tivessem esquecido. Mas que pensas tu destanoite? Precisamos de qualquer coisa, durante os dias sem po.Lebenthal abanou a cabea.- Hoje impossvel - disse. - Estanios em quinta-feira. odia de festa da caserna SS.- Ah! Ento as gajas vm esta noite?! Lebendial ergueu osolhos.- Tu sabes isso? Quem to disse?- Pouco importa. Eu sei, Berger sabe, Bucher sabe e Ahasversabe.- Quem mais?- Mais ningum.- Com que ento, vocs sabem! No notei que me observavam.Tenho de tomar mais precaues. Bem, realmente esta noite.- Lo - disse o 5O9 -, experimenta vender o dente esta noite. o mais importante. Eu posso encarregar-me do que h a fazeraqui. D-me o dinheiro, eu me arranjarei. No complicado.- Sabes como se faz?- Sei. Tenho de meter-ine na vala. Lebendial reflectiu.- H um kapo que vigia a coluna de camies - disse - e que vai cidade amanh. Posso experimentar. Talvez ele morda no isco.No fundo, -iiie indiferente. Talvez eu venha a tempo detratar disto aqui.Estendeu o dente ao 5O9.- Que queres tu que eu faa disso? - perguntou este,espantado.- Leva-o tu.Lebendial abanou a cabea com desprezo.A est o que tu percebes de comrcio. Imaginas queconseguiria alguma coisa depois de ele ter cado nas patasde,,uni desses ca-6OA CENTELHA DA VIDAlheiros? A coisa faz-se doutra maneira. Se tudo correr bem,virei usc-lo. Entretanto, guarda-o. E presta ateno.O 5O9 estava deitado numa depresso do terreno, prximo dosara--nies farpados, mais perto do que era permitido. A vedaofazia ali umigia, sobretudo ,,I,ngulo e o canto era dificilmente visveldas torres de v de noite e durante o nevoeiro. Os veteranostinham-no notado h muito tempo j, mas s h algumas semanasLebenthal pudera aproveitar-se da circunstncia.O sector estava abrangido num raio de uns cem metros em voltado campo, declarado zona proibida, e nele s se podia penetrarcom autorizao especial dos SS. Uma larga faixa de terrenotinha sido intei-ramente limpa de vegetao e podia servarrida pelas metralhadoras das torres.Lebenthal, que parecia possuir um,sexto, sentido para tudo oque dissesse respeito comida, observara que, h algunsmeses, o largo caminho que ladeava por breve espao o pequenocampo era utilizado por duas raparigas todas as quinta-feiras noite, Dirigiam-se elas ao Morcego, um cabaret ruidososituado perto da cidade, onde eram o ornamento dos seresculturais SS. Os SS.tinharw-1hes, ca- @valheirescamente,permitido atravessar a zona interdita, o que lhes evitava umdesvio de quase duas horas. Tomava-se a precauo- de cortar,durante o curto espao de tempo de que precisavani@ a correntenaquele lado do pequeno campo. A administrao ignorava tudo.Os SS agiam por sua prpria conta no relaxamento geral dosltimos meses. Eles nada arriscavam; nenhum preso do pequenocampo estava em condies de se evadir.Uma das prostitutas, num acesso de generosidade, tinha um diaatirado um bocado de po por cima dos arames farpados, numaaltura em que Lebenthal se encontrava perto. Algumas palavrastrocadas na obscuridade e a oferta de pagamento tinham bastado- as raparigas traziam agora, frequentemente, alguma coisa.Atiravam-na por cima dos arames, fingindo que ajustavam a ligaou que esvaziavam os sapatos da areia. O campo estava numaobscuridade completa e as sentinelas que tinham a seu cargo avigilncia deste lado do campo dormiam; mas, mesmo que fossedado alarme, ningum faria fogo sobre as raparigas e todos ossinais teriam desaparecido antes que algum viesse.O 5O9 ouviu, proveniente da cidade, o rudo surdo queanunciava que a torre acabava de desabar definitivamente, Umjacto de fogo estendeu-se no cu. Depois foram os longnquossinais dos bombeiros.No sabia h quanto tempo esperava; a noo do tempo perderatoda a importncia no campo. Mas, de repente, atravs daobscundade61ERICH-MARIA REMARQUEinquieta, ouviu vozes e logo a seguir passos ligeiros quevinham da esquerda. Deitou uni olhar para trs de si; o campoestava muito escuro; os prprios muulmanos que se arrastavampara as latrinas no se viam. Em compensao, ouviu uma dassentinelas gritar qualquer coisa s raparigas.- Vou ser rendido rneia-noite. Encontramo-nos depois, hem?- De acordo, Arthur, Os passos aproxiniavani-se, Passou aindaum momento antes que o 5O9 pudesse distinguir vagamente osvultos das raparigas recortando-se contra o cu. Observou astorres de vigia, Nada podia ver das sentinelas e estas tambmno o viam, por consequncia. Comecou a assobiar baixinho. Asraparigas pararam.- Onde ests tu? - murmurou urna delas.O 5O9 levantou uni brao e fez-lhes um sinal.- Ah, l est! Tens o dnheiro?- Sim. Que trazem vocs ail?- Primeiro a massa,--,Trs mareos.O dinheiro estava num saquinho atado na ponta de uma longavara que Lebenthal fizera deslizar at ao caminho, por baixodos arames. Uma das raparigas baixou-se, tirou o dinheiro econtou--o rapidamente, Depois disse:- Ateno agora, tu! Ambas tiraram do casaco batatas elanaram---nas por cima dos arames. O 5O9 esforava-se porcolh-las na capa de Lebenthal.- E agora o po - disse a mais gorda das duas.O 5O9 viu as fatias de po voarem. Apanhou-as rapidamente.- E no h mais nada. As raparigas dispunham-se a prosseguir ocaminho. O 5O9 assobiou.- Que h? - perguntou a gorda, inclinando-se para a frente.- Vocs podero trazer mais?- Na semana que vem.- No, quando voltarern da caserna. Eles do--lhes o que vocsquerem, no ?-Tu s o mesmo do costume?- perguntou a gorda, perscrutando aobscuridade.- Bem sabes que eles se parecem todos uns com os outros,Fritzi- disse a outra.- Posso esperar aqui - murmurou o 5O9, - Ainda tenho dnheiro.- Quanto?- Trs.- Tem os de ir, Frtzi! - disse a outra rapariga.62A CENTELHA DA VIDAElas andavam de um lado para o outro, para que as sentinelasno ebessem que tinham parado,- Posso esperar toda a noite. Cinco marcos.- Tu s novo, hein? - perguntou FritzL - Onde est o outro?orto?- Doente. Foi ele quem me mandou. Cinco marcos. Talvez mais,- Vamos, Frtz, no podemos ficar aqui muito tempo.- Est bem veremos. Podes ficar a, tanto se me faz. As duasraparigas afastaran-i-se. O 5O9 ouvia o rumor dos seus tidos.Regressou ao campo arrastando a capa de;Lebenthal eestendeu-se no cho, extenuado. Tinha a impresso de quetranspirava, mas a pele mantinha-se inteiramente seca.Ao voltar-se viu Lebenthal.- Isso pegou? - perguntou Lo.- Sita. Aqui esto as batatas; o po, ali. Lebenthalagachou-se.Sanguessugas! quase o preo que teria pago aqui. Um marco ecinquenta teria bastado vontade. Por trs marcos d@,,veamo&ter salsichas com isto. Ora aqui est o resultado de no sereu a fazer as :'coisas.O 5O9 no ouvia.Vamos repartir, Lo - disse, Foram para detrs das barracas edispuseram no cho o po e as batatas.- Tenho necessidade das batatas para vend-las amanh - disseLebenthal.- No. Agora devemos guardar tudo parans. Lebenthal levantouos olhos.- Ah, sim? E quem que me dar dinheiro para a @prxinia vez@- Ainda tens.- Ests bem informado. Puserani-se de gatas, frente a frente,como ces que vo lutar.- Elas voltaro esta noite com mercadorla - disse o 5O9. -Coisas que tu poders trocar mais facilmente. Disse-lhes queainda tnhamos cinco marcos.- Ouve - disse Lebentixal. Depois encolheu os ombros. - Setens dinheiro, faz tu o negcio.O 5O9 olhava--o fixamente. Por fini, Lebenthal desviou osolhos e deixou-se escorregar sobre os cotovelos.- Tu levas-me ti-ido - gemeu docemente. - Onde queres tuchegar? Que ideia essa de quereres, de repente, metet-te emtudo?O 5O9 lutava contra o desejo de enfiar urna batata na boca,depois outra, todas, depressa, antes que o fizessern parar.63ERICH-MARIA REMARQUEEm que pensas tu? - continuava Lebenthal. - Comer tudo egastar o dinheiro como idiotas. Como queres tu que oarranjemos?As batatas... O 5O9 cheirava-as. O po... As suas mos iam, desbito, escapar ao domnio da vontade. O estmago no era maisdo que um grito esfomeado. Comer! Comer! Engolir! Depressa!Depressa!- Temos o dente de ouro - disse a custo, desviando a cara. -Ou j esqueceste? Vamos com certeza tirar alguma. coisa dele.- No se pode fazer grande coisa hoje. preciso tempo. Nada garantido. S se pode contar hoje com o que se tem naalgibeira."No ter ele fonie?", pensava o 5O9. "Para que est ele afalar? Isto no lhe atormenta o estmago?".- Lo - disse com a boca pastosa -, pensa em Lohmann. Quandoestivermos com ele, ento ser demasiado tarde. Cada dia,agora, preciso. j no temos necessidade de prever paradaqui a meses.Do lado do campo das mulheres ouviu-se um grito agudo epenetrante, como o de um pssaro assustado. L em baixo unimuulmano, de p sobre unia perna, erguia os braos ao cu. Umoutro vulto esforava-se por ret~lo. Dir-se-ia que os doishomens danavam no horzonte@um grotesco bailado. Um instantemais tarde tombaram os dois no cho como uma rvore seca e ogritou cessou.O 5O9 virou~se de novo. para Lebenthal.- Quando estivermos como aqueles, no haver mais nada a fazer-disse. - Estaremos perdidos para sempre. precisodefendermo-nos, Lo.- Defendermo~nos? Como? -Defendermo-nos - repetiu o 5O9 maiscalmo. A crise passara. Voltara a estar lcido. O cheiro dopo deixara de ceg-lo. Aproximou-se do ouvido de Lebenthal,- Para depois - disse num sopro. - Para nos vingarmos...Lebenthal atirou-se para trs.- Eu no quero saber disso!O 5O9 sorriu debilmente.- No vale a pena. Basta que te arranjes de maneira quepossamos comer, .Lebenthal ficou calado uni momento. Depoismergulhou a mo na algibeira, contou moedas com os olhos mesmoem cima delas e deu-as ao 5O9,- Torna, aqui tens trs marcos. Os ltimos. Ests contenteagora?O 5O9 recebeu o dinheiro sem responder. Lebenthal dividiu opo e as Katatas,- Doze pores. pouco corno diabo. Ps-se a contar.64A CENTELHA DA VIDAOnze, Lohmann j no quer nada. No tem necessidade de da.- Est bem, onze.- Vai levar isto a Berger, Lo. Eles esperam.- Sim, aqui tens a tua parte. Ficas aqui at que as raparigaspassem?- Fico.- Tens tempo. Elas nunca voltam antes da uma ou das duashoras.- No tem importncia, eu fico aqui. Lel-)enthal encolheu osombros.tw Se nc> trouxeren ais do que h bocado, no te vale apena esperafes. Por este preo o mesmo que nos entendermoscom o @gratide campo. Sanguessugas!- Sim, Lo. Tentarei arranjar uni pouco mais.O 5O9 deslizou outra vez para debaixo da capa. Tinha frici,Conservava na mo as batatas e o bocado de po. Meteu o po nobolso. -No como nada esta noite", pensou. -Esperarei atamanhh de manh. Se chegar at l, ento ... ". No sabia oque se passaria se conseguisse aguentar at de manh. Algurwacoisa de importante. Tentou descobrir o qu. Impossvel. Tinhaainda as batatas na mo. Uma grande e outra pequena. Era demais. A batata pequena foi-se duma dentada; a maiofinastigou-a lentamente. No previra que a fome, depois disto,ia tornar-se mais intolervel ainda. Deveria esper-lo. Erasempre assim, mas nunca conseguia acreditar que assim fosse.Lambeu os dedos, depois cravou os dentes na mo para que elano fosse ao bolso tirar o po. "No quero devorar o poiniediatamente, como da outra vez", pensou. "Esperarei atamanh. Esta noite venci Lebenthal. Ficou meio convencido. Noqueria, mas deu-me trs fnarcos. No sou um homem acabado.Tenho uni resto de vontade. Se eu aguentar at arrianh sen,comer o po (ele tinha a impresso de que sobre a sua cabeachoviam grossas gotas negras), ento (estendeu o punho para aigreja em chamas, achou finalmente as palavras), ento porque no sou uni animal, um muulmano, uma simples mquinade mastigar.O que preciso (uma nova fraqueza o invadiu), o que preciso(outra vez o desejo viera), eu disse a Lebentlial h pouco,mas ento no tinha eu este po na algibeira, fcil falar,mas resistir... , o que preciso voltar a ser uni serhumano, recomear.-G. Clssicos cioSc. XX 25 - 565viNcubauer estava no seu gabinete. Tinha na sua frente o majorWiese, uni homenzinho simesco, coberto de sardas, com unibigode arruivado e em franja.Ncubauer estava de mau humor. Encontrava-se num daqueles diasem que tudo parecia conjum-se contra ele. As notcias dojornal eram mais do que circunspectas; em casa, Selma tinhasilncios cheios de subentendidos; Freya atravessava as salasem silncio, com os olhos aven-nelhados; dois advogados tinhamresndido os seus arrendamentos do prdio - e eis que chegavaagora este sinistro medicastro, com as suas pretenses.- Quantos homens pretende? - perguntou bruscamente.- Por agora bastaro seis. Fisicamente muito em baixo. Wieseno fazia parte do pessoal do campo. Possua unia pequenaclnica peito da cidade e tinha a ambio de ser um homem decincia. Fazia, como muitos mdicos, experincias em homensvivos, e por vrias vezes o campo pusera prisioneiros suadisposio. Como estava em boas relaes com o antigoGauleiter da provncia, ningum se preocupava em saber o queele fazia com os presos, Os cadveres eram sempre regularmenteentregues no cremat6rio; nada mais se exigia.- E tem necessidade desses homens para experincias clnicas?- Sim. Fao investigaes para o Exrcito. De momento,secretas, claro.Wiese sorria. Debaixo do bigode viani-se-lhe os dentesextremamente grandes.- Sim.? Secretas? Neubauer resmungou. No podia suportar esteshomens que afluam das universidades. Invadiam todos osdomnios e anteptinhani-se aos velhos combatentes,- Ter quantos quiser. Agrada-nos sempre que os nossos homenssirvam ainda para alguma coisa, A nica coisa de quenecessitamos para isso de uma ordem de transferncia.- Unia ordem de transferncia? Wiese levantou para ele tiniolhar sitirpreendido.66A CENTELHA DA VIDAEvidentemente. Unia ordem dos meus superiores em como seshomens devem ser-lhe entregues.Mas como? No compreendo... Neuhauer dissimulou a suasatisfao, Esperava a surpresa de lese,Na verdade, no conipreendo - repetiu o major. - At agoranunca me pediram nada desse gnero.Neubauer bem o sabia. Wiese pudera dispensar-se da ordemficial porque conhecia o Gauleiter. Mas, depois,o Gauleiterfora enviado para a frente, em seguida a um caso escuro.Excelente ocasio para Neubauer levantar dificuldades aomajor.- urria simples formalidade - declarou com ar jovial. - Se oExrcito pedir essa transferncia, os homens sero entreguessem mais embaraos.Wiese no pensava em tal. O Exrcito no fora mais do que umpretexto. Ncubauer, alis, sabia~o perfeitamente. Wieserepuxava nervosamente o bigode.- No percebo nada, At agora sempre tive homens sem a menordificuldade.- Para experincias? Graas a mim?- Graas s autoridades do campo,- Deve haver a engano. Ncubauer pegou no telefone.- Preciso de ficar com o corao tranquilo, Neubauer no tinhanecessidade de telefonar; o seu corao estava sempretranquilo. Fez algumas perguntas e desligou o telefone.- exactamente o que eu pensava, doutor. At agora pediuhomens para pequenos trabalhos e foram~lhe concedidos. umacoisa que o nosso servio de trabalhos exteriores faz semqualquer formalidade. Diariamente, enviamo-los s dzias paraoficinas. Os homens continuam sob a autoridade do campo. Noque lhe diz respeito, o caso completamente diferente. Pedehomens para experincias clnicas. Isso constitui umadeslocao. Estes homens vo deixar o campo oficialinente.Para tanto, preciso de um ordem.Wiese abanou a cabea.- Vem a dar na mesma - declaroi i, mai humorado, - Os homens4e me enviavam eram sempre utilizados em experinciasclnicas.- No devo tornar conhecimento dessa informao. Neiabauerenteirou-se na poltrona.- Apenas sei o que est nos seus relatrios. E julgo que prefervel ficarmos por ai. Com certeza no teai interesse emchamar a ateno das autoridades para o engano cornetido.Wese calou-se um instante. Compreendeu que se comprometera.67ERICH-MARIA REMARQUETeria obtido esses homens se os tivesse pedido para pequenostrabalhos?- Com certeza, o nosso sei-vio de trabalhos exteriores noest a para outra coisa.- Muito bem. Nesse caso, peo seis homens para pequenostrabalhos.- Mas vejamos, doutor!... Neul)auer triunfava do seuadversrio e fingia-se assombrado.- Confesso que no vejo o que significa to brusca mudana! Hpouco queria homens fisicamente to em baixo quanto possvel;agora pede-nos para pequenos trabalhos. contraditrio! Aqui,quando um. homem est fsicartiente muito em baixo, nem sequerj pode passajar meias, acredite! O nosso campo de trabalho ede regenerao est subinetido, a unia disciplina prussiana,bem sabe...Wiese engoliu a saliva, levantou-se bruscarnente e agarrou noqupi. Neubauer levantou~se, por sua vez. Era suficiente terexasperado Wiese. No queria fazer dele uni inimigoirreconcilivel, Nunca se sabia o que o futuro traria. Talvezo antigo Gatileiter voltasse unidia superficie.- Tenho outra proposta a fazer-lhe, doutor - declarou. Wiesevoltou-se. Estava plido. As sardas destacavani-se fortementena tez amarelada.- Que diz?- Se tem unia necessidade to urgente desses homens, podiapedir voluntrios. Evitaremos assim todas as formalidades. Seum, preso quer sacrificar-se pela cincia, ns nada temos aobjectar. No absolutaniente regular, mas eu tomo isso minha conta, sobretudo se se tratar das bocas inteis dopequeno campo. Os homens assinaro unia declarao e pronto.Wiese no respondeu logo.- Nestas condies, nem mesmo ter de pagar pelo trabalhoassegurado - acrescentou Nleubauer, cordialmente. -oficialmente, os homens perrnanecern no campo. Como v, fao oque posso.Wiese continuava desconfiado,- No sei porque, de repente, me levanta tantas@ dificuldades?Eu Silvo o pas.-Todos ns o servimos, e, de resto, eu no levantodificuldades. Mas o regulamento. A uni gnio cientifico comoo senhor isto pode parecer intil; para ns inetade da nossavida.Terei, portanto, seis voluntrios? Seis ou mais, se elesquiserem. Vou pr o nosso primeiro chefe de campo suadisposio;, ele o levar ao pequeno campo. O Sturin-,ffiehrer Weber. Uni homem de mrito,68A CENTELHA DA VIDA- Muito bem. Obrigado.- No agradea; foi para mini um prazer < Wiese saiu.Ncubauer pegou no telefone e deu as suas instrues @a Weber.Deixem-no chafurdar sozinho! Ordens, nenhumas! Voluntrios-nim, pode ele arranjar unia rouquido. Se ningum ,:e nadamais. Por i quiser ir, nada podemos fazer.Desligou, sorrindo, o mau hurrior desaparecera. Estavasatisfeito por ter mostrado a uni desses pedantes que tambmtinha alguma coisa a dizer. A ideia dos voluntrios era uniachado. Wiese ver-se-la 'aflito para caar um s. O pr6priomdico do campo, que tambm prestimia de investigador, eraobrigado a correr atrs das suas vitimas quando precisava dehomens para as suas experincias. Netibauer riu e prometeu asi niesmo indagar mais tarde o desfecho do caso.- Pode-se ver a ferida? - perguntou Lebenthal.- Mal - respondeu Betger, - Em todo o caso, no os SS. Era openltimo niolar. O maxilar est gido, agora.Tinhain estendido o cadver de Lohmann diante da barraca. Achamada da manh @ fora feita. Esperava-se o carro dcrematrio.Ahasver estava ao lado do 5O9. Os seus lbios mexi:@,m-se.- Para este no tens necessidade de recitar o kaddiscb, velho-declarou o 5O9. - Ele era protestante.Ahasver levantou os olhos.- Isto no pode fazer-lhe mal - disse tranquilamente, erecome-ou a resmungar.Bucher chegou. Atrs dele, Karel, o rapaz checosicvaco. Assuaspernas eram niagras corno ponteiros e o rosto, no maior doque uni punho, era dominado por um crnio desproporcionado.Cambaleava.- Vai-te embora, Kafel. Faz muito frio aqui para ti - disse o5O9. A criana abanou a cabea e aproximou-se. O 5O9 sabia porque que ele queria ficar. Lol-in-iann dera-lhefrequentemente um pouco do seu po. E era o enterro de Lohmannque se realizava diante da barraca, e era a partida para ocemitrio, eram os coroas e as flores de perfume amargo, eramas oraes e as lgrimas, era tudo o que podiarn fazer porele: ficar ali, fitar o corpo corn os olhos secos, ao sol elamanh.- Ai veni o carro - disse Berger, No pincpio, os cadveresdo campo eram transsportados por honiens. Quando se tornaramiiyais numerosos, recorreu~se a kulia carroa puxada por unicavalo cinzento, Depois, morto o cavalo, repusera-se aoservio uivi velho camio, adaptado como os dosERICH-MARIA. REMARQUEesquartejadores de gado. Todas as manhs ia ele de barraca embarraca para levar os mortos.- H carregadores?- No.- Ento, temos de o carregar ns. vo procurar Westhof eMeyer.- Os sapatos! - murmurou, de sbito, Leben~, muito agitado.- Com mil raios! Esquecemo-4os. Ainda podem servir.- Sim, mas preciso que ele tenha qualquer coisa nos ps.- Ainda est na barraca o par de sapatos esfarrapados deBuchsbauin. Vou busc-los.- Ponham-se minha volta - disse o 5O9. - Depressa! Demaneira que no vejam.Ajoelhou-se junto de Lohmann. Os outros dispuseram-se em voltadele, de modo a escond@4o das sentinelas da torre maisprxima do camio que acabava de parar diante da barraca 17.Tirou facilmente os sapatos; tnhani-se tornado demasiadograndes, Os ps de Lohmann estavam reduzidos aos ossos.- Onde esto os outros? Depressa, Lo!- Toma. Lebenthal, que saa da barraca, trazia os sapatosrasgados debaixo do casaco. Meteu-se entre os camaradas edeixou cair os sapatos diante do 5O9. Este deu-lhe os sapatosde Lohmann. Lebenthal introduziu-os debaixo do casaco,bastante acima para segur-los sob os sovacos, O 5O9 calou aLohmann os velhos sapatos de Buchsbaum e levantou-se,cambaleando. O carro acabava de parar diante da barraca 18.- Quem vem ao volante?- O pffiprio kapo, 5"hschneider. Lebenthal regressou.- Como foi possvel esquecermo-nos! As solas ainda esto boas,- Podemos vend-4os? - perguntou o 5O9.- Troc-los.- Bem,O camio aproximava-se. Lohmann jazia ao sol. A sua bocaestava deformada por um esgar e um dos olhos brilhava como umboto de osso verde. Ningum falava. Todos o olhavam. Eleestava infinitamente longe.Os cadveres das seces B e C estavam carregados.- Vamos! - gritou Strohschneider. - Talvez queiram um sermo?!Mandem os rebentados!- Venham - disse, Berger. A seco D, nesse dia, s tinhaquatro cadveres. Ainda se encontrou lugar para os trsprimeiros. Agora o camio estava cheio. Os7OA CENTELHA DA VIDAranos j no sabiam onde meter Lohmann. Os outros cadveresvam amontoados uns sobre os outros. A maior parte deles,rgidos.- Por cima! - gritou Strohschneider. - Querem que lhesempreste as minhas pernas? Subam alguns para o camio,madraos! o 'nico trabalho que ainda se lhes pede: rebentare carregar!Eles no conseguiam carregar Lohmann de baixo.Bucher! WesthoP. Venham! - gritou o 5O9. Deitaram o cadver nocho. Lebenthal, o 5O9, Ahasver e Berger ajudaram Bucher eWesthof a subir para o camio. Bucher j estava quase em cimaquando escorregou e perdeu o equiIII)rio. Procurou um ponto deapoio, mas o cadver a que se aferrou no estava ainda rgido.Cedeu e seguiu Bucher na queda, escorregando para o cho comurna passividade que incomodava. Dir-se-ia que s tinhaarticulaes.- Meu Deus! - gritou Strohschneider. - Para que serve esteesterco?- Depressa, Bucher, outra vez! - murmurou Berger. Iaramnovamente Bucher, ofegando. Desta vez ele conseguiu permanecerno cimo.- Primeiro o outro, ainda est mole, pode-se empurrar. Era ocorpo duma mulher. Era mais pesada do que os habituaiscadveres do campo. Ainda tinha os lbios. No fora de fomeque mor@ rera. Tinha seios, e no odres de pele vazia. Novinha da seco das mulheres contigua ao pequeno campo;estaria mais magra se viesse de l. Devia pertencer ao campode troca de judeus munidos de documentos sul-americanos. Aindahavia l famfias inteiras.Strohschrieider descera do assento e olhava a mulher.- Vocs arregalam o olho, hem, seus bodes velhos! Sacudiu-o umriso enorme, provocado pelo seu prprio gracejo. Como kapo dabrigada do crematrio no tinha de conduzir o camio; se ofazia, era para estar dentro do carro. Era um antigo motoristae nunca perdia uma ocasio de guiar. Nunca estava de mauhumor.Reunidos oito, conseguiram, enfim iar o cadver mole. Tremiamde esgotamento. Depois levantaram Lohmann, a quemStfohschneider saudou com um jacto de suco de tabaco. Depoisda mulher, Lohmann era muito leve.- Segurem-no bem - murmurou Berger. - Prendam-lhe um brao aodum