A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DE TERESINA, UM … · Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina,...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO BRASIL MESTRADO EM HISTÓRIA DO BRASIL Eliane Rodrigues de Morais A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DE TERESINA, UM EXEMPLO DE PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES TERESINA 2010

Transcript of A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DE TERESINA, UM … · Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina,...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DO BRASIL

    MESTRADO EM HISTRIA DO BRASIL

    Eliane Rodrigues de Morais

    A COMEMORAO DO CENTENRIO DE TERESINA,

    UM EXEMPLO DE PRTICAS E REPRESENTAES

    TERESINA

    2010

  • ELIANE RODRIGUES DE MORAIS

    A COMEMORAO DO CENTENRIO DE TERESINA,

    UM EXEMPLO DE PRTICAS E REPRESENTAES

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria, do Centro de Cincias Humanas e

    Letras, da Universidade Federal do Piau, para obteno

    do grau de Mestre em Histria do Brasil.

    ORIENTADOR:

    Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento

    TERESINA

    2010

  • ELIANE RODRIGUES DE MORAIS

    A COMEMORAO DO CENTENRIO DE TERESINA,

    UM EXEMPLO DE PRTICAS E REPRESENTAES

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria, do Centro de Cincias Humanas e

    Letras, da Universidade Federal do Piau, para obteno

    do grau de Mestre em Histria do Brasil.

    Aprovada em, ___ de ______________/2010.

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento - UFPI

    Doutor em Histria Social

    Orientador

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Alcebades Costa Filho- UESPI

    Doutor em Histria do Brasil

    Examinador

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Pedro Vilarinho Castelo Branco - UFPI

    Doutor em Histria Cultural

    Examinador

  • AGRADECIMENTOS

    Este trabalho no apenas resultado do meu esforo pessoal. Ele produto to meu

    quanto de minhas relaes com todos: amigos e amigas, professores e instituies. Entretanto,

    reconheo a possibilidade de esquecer o nome de algum e tambm no conseguir

    demonstrar, com palavras, a minha gratido a todos que me ajudaram nessa jornada. Mesmo

    correndo esse risco, necessrio se faz agradecer.

    Em especial, queria expressar minha imensa gratido ao professor Francisco Alcides

    do Nascimento pela generosidade, pacincia e confiana nessa proposta de estudo. Mas,

    principalmente, agradeo as suas valiosas orientaes e companheirismo nesse percurso to

    rduo, mas compensador. Sempre vou guardar o exemplo de profissional dedicado,

    responsvel, sincero e muito generoso. Obrigada por tudo, principalmente por ter acreditado

    em mim.

    Agradeo tambm a minha famlia, em especial aos meus pais e irmos, por sempre

    me apoiar, incondicionalmente, em todos os momentos de minha vida acadmica. E esse

    mais um resultado do reflexo de suas apostas e incentivos.

    Ao meu noivo, Junho Silva, pela pacincia, pelo amor tranquilo, assim como pela

    compreenso nos momentos mais incompreensveis e insuportveis.

    Aos amigos que compartilharam comigo o cotidiano de alegria, angstia e descoberta

    em sala de aula: Ari, Gislane, Gustavo, Jarbas, Leda, Lindalva, Mara, Reginaldo, Rodrigo e,

    especialmente, Iara Guerra (pessoa imprescindvel na 5 turma. Voc demais!), Joo

    (amigo querido, inteligente e generoso que vai morar sempre no meu corao, independente

    da distncia) e Snia Mariah (prefiro a Mariah. Amiga, generosa e simples. Exemplo de

    dedicao).

    Aos professores do programa: Francisco Alcides do Nascimento, Pedro Vilarinho

    Castelo Branco, Edwar Castelo Branco, urea Paz, Teresinha Queiroz, pelo incentivo, ideias

    e ajuda ao longo das disciplinas ministradas.

    Aos professores da Banca de Qualificao: Alclia Afonso e Pedro Vilarinho Castelo

    Branco, pelas crticas pertinentes que muito me ajudaram e sugestes de leituras. Um

  • agradecimento especial ao Prof. Pedro Vilarinho, por fazer parte de mais uma etapa de minha

    vida acadmica como examinador dos meus trabalhos (monografia e dissertao). Alm da

    sua participao no lanamento do meu livro (De Papagaio a Francinpolis, 2008), na

    condio de cerimonialista e diretor do CCHL. Obrigada, pelo exemplo de simplicidade,

    inteligncia e dedicao.

    Aos funcionrios do Arquivo Pblico do Piau, do Conselho Estadual de Cultura, da

    Oficina da Palavra, da Academia Piauiense de Letras, pelas fontes, livros e materiais

    concedidos e imprescindveis a esta pesquisa.

    A Jonas Morais, pela gentileza em enviar de So Paulo, mais precisamente da

    Biblioteca da PUC-SP, a volumosa revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em

    Histria e do Departamento de Histria Projeto Histria, sentidos da comemorao, n. 20.

    Profa. da UESPI, Silvana Maria Pantoja dos Santos e sua ex-

    orientandaNayrlaPatrizia Crispiniano Mota, pela ateno e trabalho concedidos sobre H.

    Dobal.

    Aos amigos que ganhei na academia no ano de 2001 e que so parte de minha vida:

    Aline Kelly (sempre sorridente e generosa. Obrigada pela amizade, pacincia e materiais

    concedidos), Luciana, Nilsngela, Raquel, Emlia, Mairton Celestino (com sua inteligncia e

    calma, sempre nos faz acreditar que tudo muito simples. At fazer uma dissertao), Elson

    Rabelo (referncia de dedicao, inteligncia e competncia), Z Maria (amigo maravilhoso e

    exemplo de que com simplicidade e humildade chegamos aonde queremos), Ana Cristina

    (amiga at debaixo dgua. Exemplo de competncia, perseverana e pacincia. Admiro-a

    muito), Marylu Oliveira (Inspirou-me em tudo de melhor que fiz na universidade. Foi,

    juntamente com Aninha, Z e Elson meus maiores incentivadores e inspiradores para o

    ingresso no Mestrado. Mesmo sabendo que ela diz que amizade no se agradece, obrigada

    pela amizade, torcida, ideias sempre sensatas e por fazer parte de minha vida). Queria tambm

    agradecer torcida de uma pessoa que fui presenteada com sua amizade quando ingressei no

    mestrado, Warrington Veras.

    A Rosa Pereira, por ser sempre atenciosa e gentil quando o assunto reviso

    ortogrfica e ABNT na velocidade da luz. Obrigada por tudo e pela amizade tambm.

    CAPES e ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFPI, pelo apoio e

    financiamento.

  • RESUMO

    Perceber como foram construdas representaes sobre a cidade de Teresina observando

    projetos desejados, manifestaes da imprensa e de intelectuais no contexto da sociedade

    teresinense que marcaram o perodo das comemoraes do centenrio de sua fundao

    matria desta pesquisa. O objetivo central discutir a participao da sociedade teresinense

    nas comemoraes ocorridas em 1952, a partir de trs perspectivas. A primeira diz respeito

    maneira como o poder pblico se apropriou do centenrio de Teresina, ou seja, fala do ponto

    de vista inscrito no discurso poltico que desde dcadas anteriores j idealizava a

    comemorao dos 100 anos de sua fundao. Na segunda, analisamos a atuao da imprensa

    nas comemoraes, observando que, durante os preparativos das festividades, as pginas dos

    peridicos teresinenses expressaram vrias prticas e representaes voltadas para esta

    efemride. Na terceira, analisamos os modos de percorrer a cidade centenria a partir do livro

    Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina, de H. Dobal, no qual a inteno identificar um

    autor que lana mltiplos olhares sobre Teresina e recolhe cacos, traos de suas histrias,

    lembranas, costumes, tipos humanos, elementos sociais e signos da modernizao.

    Palavras-chave: Centenrio, Imprensa, Poder Pblico, Roteiro, Teresina.

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    SUMMARY

    Understand how representations were built on the city of Teresina observing projects desired,

    manifestations of the press and intellectuals in the context of the teresinense society that

    marked the period of the celebrations of the centenary of its foundation is the subject of this

    research. The central objective is to argue the participation of the teresinensesociety in the

    occurred commemorations in 1952, from three perspectives. The first one says respect to the

    way as the public power if it appropriated of the centenarian of Teresina, in the words, it says

    of the enrolled point of view in the speech politician who since previous decades already

    idealized the commemoration of the 100 years of its foundation. In second, we analyze the

    performance of the press in the commemorations, observing that, during the preparations of

    the festivities, the pages of the periodic teresinenses had expresses several practical and

    representations come back toward this event. In third, we analyze the ways to cover the

    centennial city from the book Sentimental and Colorful Script of Teresina, of H.Dobal, in

    which the intention is to identify an author who lauches multiples looks on Teresina and

    collectscacos,traces of its histories, souvenirs, customs, human types ,social elements and

    signs of the modernization.

    Keywords: Centennial, Press, Public Power, Roadmap, Teresina.

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    LISTA DE FOTOGRAFIAS

    Fotografia 01 Saraiva, o Fundador de Teresina ......................................................................13

    Fotografia 02 Placa Conselheiro Saraiva ................................................................................10

  • 12

    SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................................13

    CAPTULO I - OITO DIAS DENTRO DE CEM ANOS: A COMEMORAO DO

    CENTENRIO NA PERSPECTIVA DO PODER PBLICO ......................................22

    1.1 Teresina, 1952 ...............................................................................................................23

    1.2 Teresina vestida como bela aniversariante ....................................................................27

    1.3 Produo de uma festa apotetica .................................................................................35

    1.4 Centenrio, sucesso frgil ..........................................................................................................52

    CAPTULO II O CENTENRIO IMPRESSO NOS JORNAIS TERESINENSES...54

    2.1 Jornalismo e poltica se confundem ...............................................................................55

    2.2A imprensa que representou o centenrio .......................................................................58

    2.3Transio sutil, mas opinio tinha prioridade sobre informao ....................................64

    2.4 Espao de mltiplas expresses .................................................................................................69

    2.5 A imprensa atuando no centenrio .............................................................................................75

    2.5.1 O povo convocado a participar! ...........................................................................................76

    2.5.2 Fixando imagens do passado, disputando o presente .............................................................84

    2.6 Teresina uma ou vrias cidades? .............................................................................................88

    CAPTULO III TERESINA NO OLHAR DE H. DOBAL............................................102

    3.1 A cidade no poderia ganhar presente melhor em seu aniversrio............................105

    3.2 Itinerrios de H. Dobal, roteiros de uma cidade ..........................................................110

    3.3 Guia de Gilberto Freyre, uma tradio hbrida e sentimental ......................................122

    3.4 Esta cidade ardente, poucos homens a trazem na lembrana ou no corao ........................129

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 146

    FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 149

  • 13

    INTRODUO

    Pesquisar sobre o centenrio de Teresina foi um pretexto para falar sobre a Teresina

    centenria. O meu interesse por essa temtica surgiu em 2008, quando j estava no mestrado.

    Ao produzir o artigo Moderna e Provinciana para a disciplina Histria das Cidades

    Brasileiras, ministrada pelo prof. Francisco Alcides do Nascimento, tive contato com alguns

    textos que tratam do centenrio de Teresina1. Dessa aproximao, percebi o quanto a produo

    historiogrfica sobre o centenrio de Teresina era pequena dentro do conjunto de perspectivas e

    de fontes que a temtica prope, uma vez que a temtica escolhida anteriormente falava de

    Teresina numa perspectiva literria a partir de seu centenrio de fundao.2 Entretanto, as

    dificuldades em abord-la me fizeram observar as vrias possibilidades de diz-la a partir de

    um leque de possibilidades que no excluam a perspectiva anterior.

    Procurando mais informaes sobre trabalhos que tratam de comemoraes cvicas,

    observei que as discusses no Brasil crescem em nmero de produes, principalmente

    historiogrficas. E essa perspectiva uma tradio europeia que remonta ao sculo XIX. Para o

    historiador portugus Fernando Catroga3, as ritualizaes cvicas dos centenrios, propagadas

    pelos acontecimentos festivos, so, antes, produto de apropriaes de tradies religiosas

    adequadas s aparies modernas que foram inauguradas a partir da Revoluo Francesa.

    No Brasil, as discusses sobre comemoraes incorporaram essa tradio cultural

    europeia e ocupam uma posio central nos debates atuais, especificamente nos encontros de

    historiadores, a partir das badaladas comemoraes dos 500 anos de Brasil, evento que

    produziu muitas reflexes4, dentro de uma pluralidade de interesses e perspectivas

    1 Para produzir o artigo da disciplina Histria das Cidades Brasileiras, alm de outras leituras, li as

    monografias: A cidade centenria: o aniversrio da cidade como pretexto para a discusso do urbano, de Aline

    Kelly Brito; Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos teresinenses (1939

    1952), de Lenice Lima, e o artigo As comemoraes do centenrio de Teresina: novas sensibilidades do viver

    urbano, do historiador Francisco Alcides do Nascimento, apresentado no encontro de Histria e Patrimnio

    Cultural, em 2008. 2 A temtica anterior visava analisar a cidade de Teresina atravs do Roteiro sentimental e pitoresco de

    Teresina, de H. Dobal. O ttulo do projeto anterior era: A cidade da saudade: representaes sobre Teresina

    no livro Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina, de H. Dobal. O Roteiro, como veremos no terceiro

    captulo, foi produzido quando Teresina estava completando um sculo de fundao, ento ele diz de uma

    cidade de um sculo com suas tradies, com seu pitoresco e que tem o seu progresso. 3 CATROGA, Fernando. Ritualizaes da Histria. In: A histria da Histria em Portugal sculos XIX XX:

    da historiografia memria histrica. Temas e Debates. Coimbra, 1998. 4 Dentre os trabalhos mais divulgados destacam-se: Memria e (res)sentimento. So Paulo: Unicamp, 2001.

    Organizado por Maria Stella Bresciani e Mrcia Naxara, que contm 24 estudos que discutem memria,

    histria e identidades; Come, mora? Descobrimento, comemorao e nacionalidade nas Revistas Humorsticas

    Ilustradas. In: Sentidos da comemorao. So Paulo: Projeto Histria/PUC-SP, 2000, de Mnica Pimenta

    Velloso; Imaginrio histrico e poder cultural: as comemoraes do descobrimento. Estudos Histricos, v. 14,

    n. 26, 2000, de Lcia Lippi de Oliveira; IV Centenrio da cidade de So Paulo: uma cidade entre passado e

    futuro. So Paulo: Annablume, 2004, de Silvio Luiz Lofego. Existe uma extensa lista de trabalhos publicados

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    diferenciadas. Depois disso, tem sido difcil para os historiadores ignorar os festejos

    comemorativos como abordagem historiogrfica.

    As comemoraes do Centenrio de Teresina acompanharam essa vertente dominante

    de uma tradio cultural tpica do sculo XIX, marcada pelas ideias de progresso e

    modernidade que ainda prevalecem no sculo XXI. Hoje, esse evento pode ser lembrado

    como um feriado a mais no calendrio dos teresinenses, mas, o de 1952, foi organizado para

    ser um marco simblico, no s pela repercusso que teve, mas tambm pela pluralidade de

    reflexes que provocou na sociedade teresinense.5 Nesse sentido, o cenrio das

    comemoraes oferece condies histricas de conhecer mltiplos aspectos constitutivos de

    seu tempo.

    Teresina assistiu a esse acontecimento no incio da dcada de 1950, perodo em que os

    administradores estadual e municipal no economizaram esforos no sentido de

    transformar Teresina em uma cidade bonita e moderna, de acordo com os padres estticos

    das principais capitais brasileiras. Dentro desse contexto, esse momento valioso para

    observar como a sociedade teresinense percebeu e vivenciou o seu prprio tempo, assim como

    refletir sobre a atuao do poder pblico, da imprensa e de intelectuais como H. Dobal,6

    naquele momento histrico.

    Para alm dos discursos do poder pblico, da imprensa escrita ou da literatura, a

    cidade de Teresina figurou com destaque dentro de mltiplas representaes que expem um

    descompasso entre a narrativa do poder pblico, que desejou apresentar a imagem de uma

    cidade moderna; da mdia impressa, que mostrou os aspectos de uma cidade carente, com

    inmeros problemas e, da literatura, que reconstruiu a paisagem de uma Teresina buclica,

    simples e acolhedora, indiferente s mudanas pelas quais estava passando.

    Falar da Teresina centenria nos remete, portanto, a um conjunto de representaes de

    um passado que parecer ter-se conservado no presente, mas que conflitante. A Teresina da

    escrita mltipla. A cidade real permite que os atores sociais que atuavam no poder

    em anais de encontros de Histria. No Simpsio Nacional de Histria Cultural que ocorreu em Goinia em

    outubro de 2008, foi criado um minissimpsio intitulado A festa: expresso de sociabilidades e sensibilidades.

    Nele foi apresentado um grande nmero de trabalhos que discutiram a comemorao a partir de diversas

    perspectivas. Sobre a comemorao do centenrio de Teresina, existem as monografias do curso de Histria:

    BARBOSA, Aline Kelly Brito. A cidade centenria: o aniversrio da cidade como pretexto para a discusso

    do urbano [manuscrito]. Monografia (Graduao) Licenciatura Plena em Histria-UFPI. 2009; LIMA,

    Lenice. Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos teresinenses (1939 1952),

    2008 e o artigo As comemoraes do centenrio de Teresina: novas sensibilidades do viver urbano, do

    historiador Francisco Alcides do Nascimento, apresentado no encontro de Histria e Patrimnio Cultural, em

    2008. 5 O 16 de agosto de 1952 comemorado porque a data representa o ato de mudana da capital de Oeiras para a

    nova capital da Provncia do Piau. 6 Uma apresentao mais detalhada sobre H. Dobal est no terceiro captulo.

  • 15

    pblico, na imprensa local, construam cidades diferentes, e tais leituras esto diretamente

    relacionadas aos interesses de cada um que as escreveu. Os interesses podem ser poltico-

    partidrios, econmicos ou sociais. Teresina muitas cidades que convivem em uma mesma

    cidade, para utilizar a expresso de talo Calvino, no clssico Cidades invisveis7.

    Ela geralmente resulta da forma como diferentes sistemas de representaes e

    significados se entrelaam para dar lugar a uma cultura urbana que est em constante

    transformao. Por essa razo, uma mesma cidade pode ser representada das mais diversas

    maneiras, dependendo do ponto de vista daquele que a observa ou das prticas culturais que

    so realizadas. Esses discursos geralmente motivam um discurso identitrio e inventor de

    tradies que diz muito da relao da prpria cidade com a modernidade, sendo fundamentais

    para se entender as representaes culturais que foram institudas em momentos

    comemorativos.

    Analisar como a sociedade teresinense participou das festividades do Centenrio,

    perceber como foram construdas representaes sobre a Teresina centenria so alguns dos

    objetivos desta pesquisa. Trazer tona as discusses, os projetos, as manifestaes da

    imprensa, as divergncias, as especulaes e os sonhos que foram vivenciados, no contexto da

    sociedade teresinense e que tanto marcou esse momento histrico outra tarefa deste

    trabalho. Os caminhos escolhidos para a construo desta pesquisa, no sentido de discutir a

    participao da sociedade teresinense nas comemoraes do centenrio de Teresina, ocorridas

    em 1952, se do a partir de trs perspectivas.

    A primeira diz respeito maneira como o poder pblico atuou no centenrio de

    Teresina, ou seja, a perspectiva inscrita no discurso poltico que desde dcadas anteriores j

    idealizava a comemorao dos 100 anos de fundao. Na segunda, analisamos a atuao da

    imprensa nas comemoraes, observando que, durante os preparativos das festividades as

    pginas dos peridicos teresinenses expressaram vrias prticas e representaes voltadas

    para esta efemride. Na terceira, analisamos os modos de percorrer a cidade centenria a

    partir do Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina (1992), de H. Dobal, onde a inteno

    identificar autor que lana mltiplos olhares sobre Teresina e recolhe cacos, traos de suas

    histrias, lembranas, patrimnios, costumes, tipos humanos, elementos sociais e signos da

    modernizao.

    Teremos, ento, trs grupos documentais que sero empregados no desenvolvimento

    desta pesquisa, produzidos em momentos diferentes, dentro de um recorte temporal que vai do

    7 CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.

  • 16

    final da dcada de 1930 a meados da dcada de 1950. O primeiro diz respeito s ideias que

    giravam em torno de modernizar, sanear e comemorar a Teresina centenria. o que

    designamos como fonte oficial e se encontra no Arquivo Pblico do Piau Casa Ansio

    Brito. Trata-se de mensagens governamentais e Dirios Oficiais. Essas fontes no se

    constituem enquanto documentao indita, pois j foram utilizadas em estudos anteriores que

    abordaram as comemoraes do centenrio de Teresina. Nesse sentido, consideramos aqui a

    sugesto de Laura de Mello e Souza, quando afirma que o historiador s pode trabalhar com

    documentos que existem: no pode invent-los, mas pode reinvent-los, l-los com novos

    olhos8.

    O segundo grupo documental se constitui de notcias e opinies relacionadas atuao

    da imprensa nas festividades do centenrio que circularam poca. Dentre os peridicos

    pesquisados destacam-se: A Cidade, A Luta, Jornal do Comrcio, Jornal do Piau, O Dia, O

    Piau e O Pirralho. Nesse grupo de documentos, que tambm esto disponveis no Arquivo

    Pblico do Piau Casa Ansio Brito, encontramos uma imprensa que ora se apresenta

    divulgando as atividades do centenrio que estavam sendo planejadas, ora se apresentam nas

    disputas poltico-partidrias que permearam a organizao do evento, ou tambm mostrando

    os problemas que a cidade enfrentava. Nessa situao, a imprensa afirma-se como mediadora

    entre os cidados e o governo e ainda como pea fundamental do funcionamento das

    festividades.

    O terceiro grupo diz respeito ao livro Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina

    (1992), de Hindemburgo Dobal Teixeira, mais conhecido como H. Dobal. Livro de crnicas

    produzido numa poca em que Teresina estava passando por modificaes para as

    comemoraes do seu aniversrio de centenrio. As transformaes da cidade reforaram os

    laos de afetividades do escritor com a cidade natal. Nesse sentido, H. Dobal olha a cidade

    atentando para o que acredita que merece ser conservado ou reconstitudo na sua paisagem

    fsica e social. Assim, traa o roteiro de como se vive em uma cidade, a partir da

    rememorao de suas lembranas. A propsito, o gnero de escrita sentimental aqui proposto

    faz parte de uma tradio que foi introduzida no Brasil por Gilberto Freyre a partir do seu

    Guia prtico, histrico e sentimental da cidade do Recife, publicado em cinco edies. Ao

    prefaciar a 5, o historiador pernambucano Antnio Paulo Rezende ressalta que: Recife era a

    8 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no sculo XVIII. Rio de Janeiro:

    Graal, 2004, p. 28.

  • 17

    primeira cidade do Brasil a ter o seu guia e que nesta obra so traduzidas as saudades do

    passado, mas com uma forma leve de express-las.9

    As crnicas que compem o Roteiro formam um conjunto de textos que sero usados

    neste trabalho como testemunho de uma poca. Na anlise dessas crnicas, enquanto

    documento histrico, procuramos analisar as representaes construdas sobre a Teresina

    centenria. A crnica tem um formato de narrao muito particular, retratado pela relao

    fico e histria. Dessa forma, para Margarida de Souza Neves10

    , as crnicas se apresentam

    como imagens de um tempo social e como narrativas do cotidiano no como dados, mas como

    construes aqui consideradas documentos.

    Foram realizadas pesquisas em fontes primrias que tratam, principalmente, das ideias

    que giravam em torno da modernizao e comemorao do centenrio de Teresina, e

    hemerogrficas, que nos dessem subsdios para a discusso sobre a atuao da imprensa nessa

    efemride, encontradas no Arquivo Pblico do Piau, Casa Ansio Brito. Para a realizao

    desta pesquisa houve uma leitura prvia de documentos, seleo, registro e anlise de

    informaes nas diversas fontes encontradas. Alm da pesquisa documental, foi essencial a

    pesquisa bibliogrfica em obras pertinentes ao tema.

    Como o trabalho se apropria de diferentes prticas e representaes sobre Teresina,

    nesta pesquisa utilizamos tambm como metodologia uma estratgia conhecida como

    montagem por contraste e superposio11

    , na qual procuramos articular vrias representaes

    de Teresina, ou seja, as que falam da cidade moderna, problemtica, e a provinciana. Essa

    metodologia sugerida por Walter Benjamin, que oferece explicaes para a leitura do passado,

    nos d a possibilidade de articular peas em composio ou justaposio, cruzando-se em

    todas as combinaes possveis, de modo a revelar analogias e relaes de significado, ou

    ento se combinam por contraste, a expor oposies ou discrepncias.12

    Metodologicamente, tambm seguimos a indicao do historiador Roger Chartier

    (1990) para tentarmos compreender a potencialidade do discurso jornalstico na historicidade

    da sua produo e na intencionalidade da sua escrita.13

    O que nos permitiria ver como, alm

    de acompanhar o movimento da histria, a prpria imprensa tambm se faz sujeito do

    9 REZENDE, Antnio Paulo. As mltiplas cidades de Calvino e Freyre. In: FREYRE, Gilberto. Guia prtico,

    histrico e sentimental da cidade do Recife. So Paulo: Global, 2007, p. 15.

    10 NEVES, Margarida de Sousa. Uma escrita do tempo: memria, ordem e progresso nas crnicas cariocas. In:

    CNDIDO, Antnio (et al). A crnica: o gnero, sua fixao e suas transformaes no Brasil. Campinas:

    Unicamp, Rio de Janeiro: Fundao Casa Rui Barbosa, 1992, p. 76. 11

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito alm do espao: por uma histria cultural do urbano. In: Estudos

    histricos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995. 12

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria e Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2008, p. 64. 13

    CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 63.

  • 18

    processo histrico.14

    O primeiro passo foi ento investigar a historicidade daquela produo

    jornalstica, tentando compreender desde suas possibilidades tcnicas at, o reconhecimento

    social do jornalismo enquanto instncia legtima de leitura dos acontecimentos, at sua

    atuao na comemorao do centenrio de Teresina.

    Os conceitos que passam a ser centrais para esta dissertao so os de prtica e

    representao, formulados por Roger Chartier.15

    As representaes, para o historiador, so

    essas formas de pensar o mundo, fazer uma leitura da sociedade em que os indivduos

    vivenciam as suas prticas cotidianas. No incio da dcada de 1950, o poder pblico, a

    imprensa e H. Dobal apresentaram uma forma de ver o mundo, a partir das representaes

    sobre a cidade de Teresina. O centenrio de Teresina naquele perodo estimulou a expressar

    formas de ver, viver e fazer a cidade, tendo como suporte, representaes desejadas,

    negativas, melanclicas e positivas.

    Sabendo da infinidade de sentidos que a noo de representao evoca, Chartier

    (1990) a prope como a presentificao do ausente, a transformao em prximo daquilo que

    se encontra distante, que assume parcialmente poderes e efeitos referentes ao que est

    longe.16

    Em sntese, a noo de representao, para o referido autor, no s deixa ver uma

    ausncia, mas estabelece a diferena entre aquilo que representa (o representante) e o que

    representado. exatamente nesse sentido que a Teresina centenria ser analisada. A noo

    de prtica que Chartier (1990) prope est relacionada ao de representao, no sentido de que

    mesmo as representaes coletivas mais elevadas s tm existncia, na medida em que

    comandam atos.17

    Como exemplos de prticas relacionadas ao centenrio de Teresina,

    podemos citar a concretizao do poder pblico em comemorar o centenrio de Teresina a

    partir de uma prtica europeia de comemorar festa cvica. A materializao dessa prtica est

    representada nos documentos oficiais, como mensagens governamentais, na imprensa escrita

    e em livros como o Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina, de H. Dobal.

    Quando nos propusemos a discutir a participao da sociedade teresinense nas

    comemoraes do centenrio de Teresina, dialogamos, primeiramente, com trabalhos que

    leem a cidade a partir de olhares to mltiplos como reveladores. O clssico Tudo que slido

    14

    MARIANI, Bethania. Os primrdios da imprensa no Brasil (ou: de como o discurso jornalstico constri

    memria). Discurso fundador a formao do pas e a construo da identidade nacional. Campinas: Pontes,

    1993, p. 33-34. 15

    CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre as prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990. 16

    Ibid., p. 20. 17

    CHARTIER, Roger. O mundo como representao. In: Estudos avanados. Jan-abr. So Paulo: USP. 11 (5),

    1991, p. 173-191.

  • 19

    desmancha no ar, de Marshall Berman18

    , discute o termo modernidade atravs de sua

    concepo de mundo, tentando imprimir-lhe um carter crtico. Para Bermam (2007), a

    modernidade seria delimitada pelas novas experincias dos homens: o local onde vive o

    tempo que passa, a sua percepo totalmente nova de mundo. Essas caractersticas so

    paradoxais, visto que ao mesmo tempo em que une todos os homens, separa-os por um

    abismo inegvel e profundo. No existiria, ento, um termo pleno para modernidade, pois sua

    vivncia discrepante em todos os pontos do globo. A modernidade seria, portanto, um

    turbilho de permanente desintegrao de mudana.

    Em Cidades invisveis, talo Calvino19

    sugere que podemos estabelecer traos que

    desenham a cidade a partir de uma articulao entre literatura e histria, enquanto contedo e

    forma de construo de texto. Seja pelas suas memrias, seja como objeto, ou pelos seus

    smbolos. Para Calvino, as cidades possuem uma dimenso que vai muito alm dos limites de

    local de produo de mercadorias ou prestao de servios. Elas constituem um universo

    repleto de smbolos que do sentido sua existncia e a seus citadinos.

    Sandra Jatahy Pesavento20

    , ao se voltar para as representaes como forma de

    abordagem do real, nos sugere construir uma forma de acesso ao urbano, atravs da viso

    literria que d a ver como ideias e imagens reapropriadas em tempos e espaos diferentes, ou

    seja, de Paris a Porto Alegre, passando pelo Rio de Janeiro, as especificidades do local se

    articulam com a ressemantizao do mito da modernidade urbana. A partir de tais enfoques,

    esses autores constituram-se no ponto de partida de nossa busca por leituras que pudessem

    contribuir para a elaborao de uma nova possibilidade de narrar histria da cidade de

    Teresina. E essa uma proposta da histria cultural.

    Na leitura do Roteiro de Dobal, no terceiro captulo, tomamos por base pressupostos

    tericos de Walter Benjamin acerca da figura do narrador. Assim, nos referimos a Dobal

    como um cronista narrador, na perspectiva de Walter Benjamin. Para Benjamin, a figura do

    narrador s se torna plenamente tangvel a partir de dois grupos, que se interpenetram de

    mltiplas maneiras: aquele que viaja e tem muito a contar, e com isso imagina o narrador

    como algum que vem de longe e, aquele que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu

    pas e que conhece suas histrias e tradies.21

    Dobal, mesmo tendo sido uma pessoa que

    morou em muitos lugares, inclusive outros pases, na poca da produo do Roteiro, 1952,

    18

    BERMAN, Marshall. Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade. So Paulo: Companhia

    das Letras, 2007, p. 41. 19

    CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. 20

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginrio da cidade: verses literrias do urbano Paris, Rio de Janeiro,

    Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2002. 21

    BENJAMIN, 1994, p. 198.

  • 20

    ainda no havia sado do pas. Ausentou-se de Teresina por pouco tempo, no ano de 1948,

    para ir a So Lus devido aprovao em concurso pblico para o cargo de Oficial

    Administrativo, assumido na Estrada de Ferro So Luiz-Teresina, onde tomou posse no dia

    primeiro de setembro de 1948.22

    Em So Luiz do Maranho, ficou s o tempo necessrio

    para ser chamado para assumir o cargo de Oficial Administrativo no Fomento Agrcola, na

    cidade de Teresina.23

    Com isso, Dobal se enquadra no segundo grupo proposto por Benjamin,

    ou seja, o que narra com propriedade sobre uma cidade centenria observando as

    modificaes pelas quais estava passando sua fisionomia urbana, assim como suas histrias e

    tradies sem ter sado de sua terra natal ou pas. Dobal, na poca, ainda estava enraizado a

    sua terra natal Teresina.

    Outras leituras que apresentam trabalhos abordando as temticas das comemoraes

    tambm foram sendo incorporados na pesquisa, dentre eles destaca-se o livro IV Centenrio

    da cidade de So Paulo: uma cidade entre passado e futuro, de Slvio Luiz Lofego, que

    apresenta uma discusso sobre os diferentes sentidos e interesses que envolvem as

    festividades sobre o IV Centenrio da cidade de So Paulo, que ocorreu em 1954. O autor

    entende que a comemorao adquire historicidade prpria, tal como se pode falar em histria

    poltica, econmica ou social, e conquanto elas no se excluam do universo comemorativo,

    assim pode-se falar tambm numa histria das comemoraes.24

    A comemorao no implica

    apenas em hinos, feiras, exposies e outras manifestaes festivas, mas h tambm o lugar

    da histria na sociedade que quer, assim, ser celebrada.25

    O contato com o artigo de Mnica

    Pimenta Velloso, Com, mor? Descobrimento, comemorao e nacionalidade nas revistas

    humorsticas ilustradas26

    , foi importante para observarmos que a ideia de comemorao pode

    ser compreendida dentro do contexto das festas comemorativas da nacionalidade, que muitas

    vezes revelam os conflitos da prpria sociedade que comemora.

    Diante do exposto, a estrutura do trabalho esta organizada em trs captulos. No

    primeiro captulo, Oito dias dentro de cem anos: a comemorao do centenrio de Teresina

    na perspectiva do poder pblico, analisaremos as ideias de modernizao pensadas pelo poder

    pblico assim como para a produo da festa comemorativa do Centenrio de Teresina. Para

    22

    SILVA, Halan Kardeck F. As formas incompletas: apontamentos para uma biografia. Teresina: Oficina da

    Palavra/Instituto Dom Barreto, 2005, p. 21. 23

    Ibid., p. 54. 24

    LOFEGO, Silvio Luiz. IV Centenrio da cidade de So Paulo: uma cidade entre passado e futuro. So Paulo:

    Annablume, 2004, p. 18. 25

    Ibid., p. 19. 26

    VELLOSO. Mnica Pimenta. Com, mor? Descobrimento, comemorao e nacionalidade nas revistas

    humorsticas ilustradas. In: Projeto Histria. Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e

    do Departamento de Histria da PUC So Paulo. So Paulo: EDUC, 1981, p. 129.

  • 21

    esta comemorao, o poder pblico, em sua instncia estadual e municipal, mobilizou um

    esforo nada comum para o conjunto de atividades que pretendia desenvolver. A cidade de

    Teresina experimentou modificaes significativas no seu espao fsico, onde foram alteradas

    e reformadas ruas, construdos novos espaos pblicos, prdios e monumentos. As mudanas

    se estenderam aos teresinenses no que diz respeito ao seu modo de ser, se divertir, se

    comportar e tratar a cidade. Entretanto, ao se debruar no passado para nele buscar as fontes

    simblicas capazes de construir uma inteligibilidade para o presente,27

    o poder pblico

    acabou revelando os conflitos da cidade e da prpria sociedade que ora se comemorava.

    No segundo captulo, O centenrio impresso nos jornais teresinenses, traamos um

    panorama da atuao da imprensa teresinense na comemorao do Centenrio de Teresina,

    com o objetivo de analisar suas potencialidades, que de um lado divulgou as atividades que

    estavam sendo planejadas e, de outro se divulgaram as disputas poltico-ideolgicas que

    permearam a organizao do evento, ou, ainda, mostrando os problemas que a cidade

    enfrentava. A imprensa afirma-se como mediadora entre os cidados e o governo e tambm

    como pea fundamental do funcionamento das festividades.

    No terceiro captulo, Teresina no olhar de H. Dobal, refletiremos sobre os modos de

    percorrer a cidade centenria, com o objetivo de analisar as representaes construdas sobre

    Teresina no Roteiro de Dobal. A inteno identificar um Dobal que lana mltiplos olhares

    sobre Teresina e recolhe cacos, traos de suas histrias, lembranas, patrimnios, costumes,

    tipos humanos, elementos sociais, signos da modernizao, enfim, um Dobal que identifica

    uma Teresina, que, de um lado, resiste s exigncias que esto nas decises do poder e, de

    outro, se mostra tentando acompanhar as modernizaes das grandes capitais.

    27

    VELLOSO. Mnica Pimenta. Com, mor? Descobrimento, comemorao e nacionalidade nas revistas

    humorsticas ilustradas. In: Projeto Histria. Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e

    do Departamento de Histria da PUC So Paulo. So Paulo: EDUC, 1981, p. 129.

  • 22

    CAPTULO I. OITO DIAS DENTRO DE CEM ANOS: A COMEMORAO DO

    CENTENRIO DE TERESINA NA PERSPECTIVA DO PODER PBLICO

    Para a comemorao do Centenrio de Teresina o poder pblico, em sua instncia

    estadual e municipal, mobilizou um esforo nada comum para o conjunto de atividades que

    pretendia desenvolver. A cidade de Teresina experimentou modificaes significativas no seu

    espao fsico, onde foram alteradas e reformadas ruas, construdos novos espaos pblicos,

    prdios e monumentos. Mas, as mudanas se estenderam aos teresinenses no que diz respeito

    ao seu modo de ser, se divertir, se comportar e tratar a cidade. Entretanto, ao se debruar no

    passado para nele buscar as fontes simblicas capazes de construir uma inteligibilidade para o

    presente,28

    o poder pblico acabou revelando os conflitos da cidade e da prpria sociedade

    que se comemora.

    A atuao do poder pblico desde dcadas anteriores para a comemorao do centenrio

    de Teresina nos d a dimenso da sua marca fundamental: a tentativa de construir uma

    tradio de forte contedo simblico. E o trabalho do grupo dirigente, como poder

    constitudo, ser o anunciador dessa festa, numa poca em que Teresina vivia num tempo de

    controvrsias e de tmido desenvolvimento econmico.29

    Nesse sentido, o poder pblico tem

    a o seu lugar como emissor autorizado30

    na construo de um marco simblico da histria

    de Teresina.

    Os documentos que utilizaremos neste captulo, como Mensagens governamentais,

    relatrios publicados no Dirio Oficial e jornais, revelam caminhos de investigao da

    histria da cidade que possibilita a anlise das aes e projetos imaginados ou implementados

    pelos representantes do poder constitudo para a cidade que estava completando um sculo de

    fundao. Apresentam, assim, os problemas que assolavam a cidade, as solues por vezes

    apresentadas. Fornece-nos, ento, mais do que um reflexo dessas aes ou argumentos do

    poder pblico, podem ser vistos como representaes construdas sobre a cidade do passado.

    Como o plano volta-se sempre para o futuro, podemos inferir, atravs da anlise desses

    documentos, trs imagens fundamentais: em primeiro lugar, identifica-se a cidade desejada e

    28

    VELLOSO. Mnica Pimenta. Com, Mor? Descobrimento, comemorao e nacionalidade nas revistas

    humorsticas ilustradas. In: Projeto Histria. Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do

    Departamento de Histria da PUC So Paulo. So Paulo: EDUC, 1981, p. 129. 29

    MENDES, Felipe. Economia e desenvolvimento no Piau. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves. 30

    De acordo com Michel de Certeau, a modernidade, atravs da instituio de mltiplos locutores, apaga a figura

    do locutor nico, Deus, que pela palavra divina determinava o lugar dos homens na terra. No caso do poder

    pblico, utilizamos essa expresso dado ao seu lugar, socialmente institudo, como lugar privilegiado de fala.

    (1994, p. 229/230)

  • 23

    sonhada, a projeo de um futuro que deve dar conta das mudanas almejadas; em segundo,

    podemos localizar a cidade do presente, que percebida por especialistas como uma cidade

    que precisa ser modernizada, saneada; por ltimo, revela uma cidade que precisa ser

    destruda, que no deve permanecer no tempo.31

    nossa inteno analisar, neste captulo, a atuao do poder pblico na comemorao

    do centenrio de Teresina. Para isso, refletiremos, num primeiro momento, como estava a

    cidade que se queria comemorar. Em seguida, trataremos da Teresina que se queria para as

    festividades de seu centenrio e, os conflitos que viriam a gerar tais pretenses. E, finalmente,

    analisaremos de que forma ocorreu a produo da grande festa e seus desdobramentos dentro

    do contexto da poca.

    1.1 Teresina, 1952

    Agosto de 1952. Documentos, edies comemorativas, chamadas na imprensa escrita,

    produes de obras histricas e a grande festa confirmam: a cidade de Teresina, capital do

    Estado do Piau, completa 100 anos de fundao. Mas, que cidade essa que se quer

    comemorar? uma cidade mltipla e essa multiplicidade pode ser considerada histrica. Dos

    primeiros traados da cidade planejada por Jos Antnio Saraiva, ainda no sculo XIX, que

    viria como que contrapor antiga capital, Oeiras, at o ano de 1952, a cidade centenria

    cresceu entre dois rios Parnaba e Poti e se estendeu em vrias direes que a destacava

    como a mais importante do Estado do Piau.

    Em sua arquitetura centenria esto expostos casares neoclssicos, Greco-romanos,

    cinemas art-dco, igrejas com traados do sculo XIX que diz de uma cidade que se quer

    preservar apesar das prticas da modernidade e do capitalismo que elegem o novo como

    fundamental. Os traados dessas e outras construes antigas da cidade tambm representam a

    marca do tempo. Tempo este que resiste s mudanas socioculturais que coloca a cidade

    perante a modernidade e seus novos padres exigentes e excludentes, num cenrio em que

    tradio e modernizao se chocam. Tambm pode ser traduzido como atravessando o sentido

    das permanncias que a velocidade do tempo faz dissolver diante de um presente que anuncia

    o progresso, mas tambm de incertezas, crises e contradies.

    Teresina uma cidade que nasceu obedecendo a alguma convenincia, mais

    precisamente, a de atender necessidades comerciais de controle da economia, para evitar

    31

    GIOVANAZ, Marlise. Em busca da cidade ideal: o planejamento urbanstico como objeto da histria cultural.

    Porto Alegre: Anos 90, n. 14, dezembro de 2000, p. 43-44.

  • 24

    incurses das provncias vizinhas, como Caxias do Maranho, assim como oportunizar

    incentivos pblicos32

    . Em cem anos de existncia, foi produto de um conjunto de prticas que

    desde sua criao se consolidou no interior do seu espao urbano.

    Foi nas primeiras dcadas do sculo XX, quando a principal fonte econmica do Estado

    entra em crise a atividade pecuria que o fluxo do comrcio exterior a partir das atividades

    do extrativismo vegetal da manioba carnaba e ao babau que algumas cidades do

    Estado do Piau ganharam um certo desenvolvimento. O ciclo extrativista, especificamente da

    manioba, produziu um significativo aumento da receita oramentria, permitindo ao Estado

    ampliar o aparelho burocrtico, oferecer mais servios, realizar obras de infraestrutura

    econmica e social que foram bases para o fortalecimento de alguns ncleos urbanos de

    regies do centro-norte do Estado. Alm de provocar o aumento populacional nas reas de

    explorao e reorientar a localizao de centros comerciais, como a cidade de Floriano.33

    Entre os ncleos urbanos, a capital, Teresina, afirma-se como um polo aglutinador das

    atividades produtivas do Estado, apesar de apresentar queda no seu crescimento demogrfico.

    Nessa perspectiva, o comrcio, a atividade pecuria, as prestaes de servios, a incipiente

    indstria, os interesses da Igreja e do Estado acabaram por aglomerar demandas de criadores,

    proprietrios, religiosos, polticos, funcionrios pblicos que no espao urbano passaram a

    concorrer diferentes interesses. Mas, o promissor ciclo extrativista teve vida efmera. Durou

    15 anos, uma vez que os principais produtos de exportao extrativa estavam em baixa nos

    mercados nacional e internacional. De acordo com o economista Felipe Mendes:

    A economia piauiense viveu, no incio da segunda metade do sculo XX,

    uma de suas piores crises. Chegara ao fim o ciclo do extrativismo vegetal

    associado ao comrcio exterior, atividades que proporcionaram, desde o final

    do sculo XIX, um perodo de prosperidade singular na histria do Estado.34

    A contribuio da explorao do ltex da manioba em trazer para o centro das

    discusses a ideia de modernizao, j bastante conhecida. De acordo com o historiador

    Francisco Alcides do Nascimento35

    , os primeiros smbolos de modernidade so desse perodo.

    A chegada da energia eltrica, em 1914, do telefone, em 1907, e do bonde com motor de

    exploso, em 1914, so sem dvida marcos importantes na histria da cidade de Teresina.

    32

    BRANDO, Wilson de Andrade. Formao social. In: Piau: Formao Desenvolvimento Perspectivas.

    SANTANA, R. N. Monteiro de. (Org.). Teresina: Halley, 1995, p. 35. 33

    NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernizao e violncia policial (1937-1945).

    Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 2002, p. 124. 34

    MENDES, Felipe. Economia e desenvolvimento no Piau. Teresina: FCMC, 2003, p. 177. 35

    NASCIMENTO, op. cit., p. 124.

  • 25

    Esses smbolos da modernidade juntamente com outros que viriam a surgir vo, ao longo dos

    anos, trazer uma dinmica diferente s prticas culturais no conjunto da cidade.

    Assim, o desenvolvimento do espao urbano no s na capital, mas tambm no interior

    do Estado do Piau, gerado a partir desses smbolos de modernidade e aliados a outros

    melhoramentos modernos, vo transformar no somente os espaos, mas os costumes dos

    teresinenses. As mquinas, a energia eltrica, o automvel, o cinema, o carnaval, o passeio

    pblico, enfim, uma infinidade de novidades passariam a fazer parte do cotidiano da

    populao urbana.

    Novas ruas, redesenhando a cidade, praas, casas comerciais, cabars, ensino, alm de

    arborizao, cdigo de posturas, associados a um conjunto de prticas urbanas diversas, vo

    compondo a materialidade e os valores do tecido urbano de tal maneira que, no incio da

    dcada de 1950, Teresina j desponta como a maior cidade no cenrio do Estado do Piau.

    O exerccio da imprensa e da poltica acompanhou a urbanizao da cidade. A edio de

    jornais, revistas ou outras formas de comunicao escrita constituem uma mudana

    substancial na vida de uma seleta parcela da sociedade, assim como na maneira da

    transmisso da memria social. Na imprensa escrita, pode-se encontrar a edio de notcias

    que expressavam a voz, principalmente, de grupos polticos. O que no uma contradio,

    uma vez que muitos surgiram patrocinados por partidos polticos e, com efeito, para exercer

    essa funo, como veremos no segundo captulo que trata do papel da imprensa na

    comemorao do centenrio de Teresina. Esse ambiente se tornaria um espao pblico de

    enfrentamento de lutas polticas, envolvendo diversos interesses pelo poder e privilgios na

    cidade. A poltica se tornaria uma questo central para um seleto grupo de comerciantes,

    intelectuais, mdicos que se afirmavam no espao urbano de acordo com o interesse e o poder

    que exerciam. Muitos grupos polticos travavam batalhas pelo controle do voto e se

    constituam em grupos de disputas pelo poder pblico que lhes dava a segurana para

    defender seus interesses.

    A ttulo de exemplo, em meados do sculo XX, mais precisamente no ano de 1950, a

    cidade havia assistido a um pleito eleitoral que tinha posto o governador eleito, Pedro de

    Almendra Freitas, pertencente aos quadros do Partido Social Democrtico (PSD), de um lado,

    e o prefeito Olmpio de Melo, filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mas que j

    pertenceu aos quadros da Unio Democrtica Nacional (UDN), do outro. Na ocasio, esse

    fato significou muitos desentendimentos que de certa forma tiveram reflexos no centenrio de

    Teresina. Mas, como os interesses de ambos prevaleceram, esses desentendimentos foram

    bem administrados em prol do centenrio de Teresina, como veremos aqui.

  • 26

    Do ponto de vista cultural, desde as primeiras dcadas do sculo XX, diversas prticas

    foram envolvendo personagens sociais na cidade. Para o historiador Pedro Vilarinho Castelo

    Branco:

    As cidades brasileiras, mesmo as que no figuravam entre as mais ricas e

    prsperas, queriam, de alguma forma tambm participar das mudanas que

    estavam em curso no mundo. Ignorar a onda de novos costumes e hbitos

    urbanos que chegavam, seria dar um atestado de povo atrasado e inimigo do

    progresso, e assim, condenar-se a viver no passado.36

    Nesse aspecto, o historiador registra a valorizao dos espaos pblicos associada a

    outras formas de lazer j existentes como responsveis por essa dinmica. Na cidade de

    Teresina no poderia ser diferente, aos poucos, vai ganhando cinema, dando novas aparncias

    ao carnaval, passeios pblicos para o footing elegante das famlias so construdos. O teatro

    passa a ser mais valorizado, assim como as competies esportivas como corridas pedestres,

    ciclsticas e o futebol37

    , observa o historiador. No menos atraes exerceram, animando as

    mais variadas festas, bailes, desfiles, retretas, comemoraes cvicas e religiosas.

    Dados populacionais tambm ajudam a explicar as modificaes ocorridas no cenrio

    da cidade. De uma populao que nos anos quarenta chegava aos 67.641 habitantes, dos quais

    34.695 vivem nas zonas urbanas e suburbanas38

    , dados do IBGE nos mostram uma populao

    de 90.723 habitantes, pelo censo de 1950.39

    H um aumento substancial na populao de

    Teresina. Entretanto, o aumento da populao, nesse perodo, proporcional ao dos

    problemas da cidade. Ao longo da dcada, a gua, a energia eltrica, enfim, a infraestrutura da

    cidade no supria mais as necessidades da populao, que muitas vezes utilizou a imprensa

    escrita como forma de chamar a ateno dos problemas que se multiplicavam.

    Para se ter uma ideia, do ponto de vista da infraestrutura bsica, a Teresina centenria

    pouco se distinguia das demais cidades do Estado e da cidade das primeiras dcadas do sculo

    XX, descrita pela historiadora Teresinha Queiroz, no livro Os literatos e a repblica (1994).

    Os moradores da capital conviviam normalmente, em plena rea central, com animais soltos

    nas ruas, com a lama, a poeira40

    , o que demonstrava a carncia de ruas caladas; com casas de

    palhas espalhadas pela capital, casas essas que de um lado, se tornaram o pesadelo dos

    36

    CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres plurais. Teresina: Bagao, 2005, p. 40. 37

    Ibid. 38

    NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernizao e violncia policial (1937-1945).

    Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 2002, p. 123. 39

    Conselho Nacional de Estatstica. Servio Nacional de Recenseamento. IBGE. Srie Regional, v. XIII. Estado

    do Piau. Censos Demogrficos e Econmicos, p. 64. 40

    QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a repblica: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo.

    Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1994.

  • 27

    gestores que a desejava moderna e, de outro, deixou a cidade sob o fogo41

    devido

    modernizao autoritria e excludente do incio da dcada de 1940; assim como as epidemias,

    o precrio abastecimento de energia eltrica e gua tratada. Como se v, os festejos do

    centenrio se inseriram num contexto muito mais composto de problemas que se

    multiplicavam do que de solues.

    Nesse sentido, refletir a cidade de Teresina no incio da dcada de 1950 destacar as

    condies histricas de possibilidades, mudanas e permanncias que emergiram no decorrer

    de sua constituio e que fizeram com que, em 1952, se festejasse, com alarde, a chegada de

    seu centenrio. A comemorao do centenrio de Teresina parecia anunciar mais que uma

    simples comemorao; tratava-se de adentrar um novo tempo, que tentaria deixar para trs o

    passado atrasado e provinciano. As mudanas no material e no sensvel eram necessrias e

    foram anunciadas em dcadas anteriores. Essas mudanas, como veremos posteriormente,

    foram regadas com a ajuda dos teresinenses e com o invisvel emprstimo do governo federal.

    O certo que era preciso criar e incorporar, no cotidiano da cidade, novos padres. E a

    atrao principal, a cidade centenria, deveria ganhar uma nova paisagem esttica. Assunto

    que discutiremos a seguir.

    1.2 Teresina vestida como bela aniversariante

    Vivemos, Senhores Deputados, o ano do centenrio de Teresina. A cidade se

    prepara para comemorar o acontecimento da maior significao para a

    histria do Piau.42

    O discurso proferido pelo Governador do Estado do Piau, Pedro de Almendra Freitas,

    no dia 21 de abril de 1952, sugere o quanto a comemorao do centenrio de Teresina, que

    ocorreu em agosto de 1952, foi preparada com o objetivo de se tornar um marco histrico.

    Colocar a capital, Teresina, no fluxo da cidade moderna, irradiada de outros pases e,

    principais capitais brasileiras, como Recife, Rio de Janeiro e So Paulo, era o que se queria.

    Tratava-se de um esforo do poder pblico para vestir Teresina como bela aniversariante. A

    mudana no material e no sensvel proporcionaria isso. Pelo menos, era o que o poder pblico

    pretendia. Afinal, a cidade simboliza o poder criador do homem, no dizer de Maria Stella

    41

    Ttulo do livro do historiador Francisco Alcides do Nascimento que aborda o processo de modernizao da

    capital do Piau tendo como base de sustentao o carter dessa modernizao. Nesse aspecto, ao construir

    uma narrativa sobre os incndios que ocorreram na capital, na dcada de 1940, o autor os coloca como parte

    desse processo de modernizao da cidade. Cf.: NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo:

    modernizao e violncia policial (1937-1945). Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 2002. 42

    PIAU. Governador (1952-1956). Mensagem apresentada Assembleia Legislativa, 21 de abril de 1952, p. 4.

  • 28

    Bresciani43

    e, Teresina, nesse momento histrico, na medida em que atrairia olhares de

    visitantes e os projetaria Brasil afora, simbolizaria e forjaria tambm uma imagem para si

    mesmo e para sua difuso44

    .

    A inteno era mudar a forma fsica da cidade, alterando ou reformando ruas,

    construindo novos espaos pblicos, prdios, monumentos. A partir da rea central, local

    onde ocorreriam os eventos do centenrio, as intervenes urbanas seriam realizadas. Assim,

    a prtica do planejamento urbano tinha como objetivo produzir um espao ordenado,

    moderno, limpo e bonito. Estas aes e argumentos, j tendo o centenrio como pretexto,

    eram constantes nos projetos de interveno urbana desde dcadas anteriores. E isso

    demonstra o quanto o poder pblico estava fazendo um investimento em longo prazo, uma

    vez que preparar a cidade para o futuro tambm era sinnimo de enaltecer os feitos dos

    administradores vigentes.

    Mas, as mudanas tambm se estendiam aos teresinenses, no que diz respeito aos seus

    modos de ser, de se comportar, de se expressar, de tratar a cidade e se divertir, enfim, de viver

    a cidade, tanto nas ruas como nos espaos de sociabilidades. Atravs da tcnica e

    conhecimentos racionais, so apresentados instrumentos que buscam modernizar e sanear

    Teresina, assim como civilizar45

    seus cidados pensando nas comemoraes do seu

    centenrio.

    Clvis Gruner46

    , em pesquisa sobre a revolta da vacina, que ocorreu no Rio de Janeiro

    em 1823, a partir da obra de Lima Barreto, contemporneo ao conflito e que dele colheu

    impresses que aparecem em diferentes momentos de sua escrita, afirma que a construo

    desse projeto de modernizar a cidade e civilizar o cidado faz parte do imaginrio moderno no

    Brasil, que tecido na contextura dessas aes que reformam, ou pelo menos pretende

    reformar, o mundo material e sensvel.

    Estas prticas polticas correspondem a investimentos na composio do novo. A

    evocao do novo compe o quadro do que designamos, nesta pesquisa, de modernidade.47

    43

    BRESCIANI, Maria Stella. Cidade, cidadania e imaginrio. In: PESAVENTO; SOUZA. Imagens urbanas: os

    diversos olhares na formao do imaginrio urbano. Porto Alegre: UFRGS, 1997, p. 14. 44

    ARRAIS, Raimundo. O corpo e a alma da cidade. Natal: EDUFRN, 2008, p. 16. 45

    No livro O processo de uma civilizao o socilogo Norbert Elias explica que a forma de atuar, pensar e sentir

    prprias do homem civilizado surgiu de um desenvolvimento que compreende muitos sculos da histria da

    humanidade. nesse contexto que as mudanas no comportamento dos homens, orientadas para o controle

    cada vez maior das emoes um aspecto caracterstico do processo civilizador. Cf.: ELIAS, Norbert. O

    processo civilizador: formao do estado e civilizao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. I 46

    GRUNER, Clvis. De uma revolta a outra: memria, histria e ressentimento em Lima Barreto. In: Revista

    ArtCultura, v. 8, n. 13. Uberlndia, 2006, p. 88. 47

    A modernidade lida aqui com a noo de um tempo progressivo, linear, capaz de ser cronometrado, e que

    valoriza o presente e a expectativa do futuro. Entretanto, a modernidade tambm se ocupa do passado ao

  • 29

    De acordo com Arrais48

    , a experincia do moderno envolve a entrega do indivduo a um

    mundo regido pela velocidade, tendo em volta de si uma grande variedade de equipamentos

    mecnicos, integrado a um mundo em que se modifica o sentido de tempo e espao,

    assimilando entusiasmos, tenses, esperanas e incerteza em relao ao presente e ao futuro.

    Entusiasmos, esperanas, tenses e incertezas e o desejo do novo so experincias

    vivenciadas na cidade de Teresina, desde sua fundao, em 1852. Perodo em que a capital foi

    transferida de Oeiras para a Vila do Poti. Teresina nasce marcada pelo signo da mudana e do

    planejamento. Quando foi exposta em planos, plantas e depois moldada e finalmente

    construda49

    , provavelmente o empreendedor do projeto, Jos Antnio Saraiva, tinha a

    inteno de prever as necessidades de seus habitantes e problemas que viessem a ocorrer na

    infraestrutura da cidade. Alm disso, deveria se tornar referncia de progresso para o Estado

    do Piau.

    Entretanto, de acordo com a historiografia que aborda o assunto50

    , Teresina, ainda no

    incio do sculo XX, no apresentava nenhum sinal urbano que a identificasse como uma

    cidade moderna. Era minimamente habitada, tinha ruas muito estreitas. A sujeira e a presena

    de animais, no espao urbano, eram constantes. A maioria da populao ocupava construes

    inadequadas. As residncias nobres e os prdios oficiais opulentos davam a dimenso do

    contraste com as casas dos moradores pobres. Ausncia completa de calamento, gua tratada

    e canalizada, esgoto, telefone, transporte pblico, energia eltrica, entre outros.

    As mudanas que ocorreriam em Teresina inscrevem-se em um processo mais amplo de

    transformaes, que vinham se desenvolvendo, desde a dcada de 1930. As duas dcadas que

    antecedem a comemorao do centenrio de Teresina so, por assim dizer, de preparao

    para o advento de uma srie de mudanas, remodelaes que viriam a ser implementadas. De

    acordo com o historiador Francisco Alcides do Nascimento, desde o final da dcada de 1930,

    marcar eventos fundadores que devem ser conhecidos e reconhecidos pelos habitantes do territrio e que

    fazem parte da memria nacional. Cf.: OLIVEIRA, Lcia Lippi de. Imaginrio histrico e poder central: as

    comemoraes do descobrimento. Rio de Janeiro: 2000. Revista Estudos Histricos, v. 14, n. 26, p. 20. 48

    ARRAIS, Raimundo. O corpo e a alma da cidade. Natal: EDUFRN, 2008, p. 11. 49

    De acordo com Regina Helena Alves da Silva, as cidades planejadas nascem de uma concepo global de

    como devem ser distribudos seus espaos e de como o homem deve habit-lo. Cf.: SILVA, Regina Helena

    Alves da. Belo Horizonte e a comemorao do Centenrio. In: Belo Horizonte, 100 anos depois: as novas

    condies de experincia Projeto Integrado de Pesquisa. Relatrio final de pesquisa. Universidade Federal de

    Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Departamento de Comunicao Social. Maro,

    1999, p. 62. 50

    Cf.: BARBOSA, Aline Kelly Brito. A cidade centenria: o aniversrio da cidade como pretexto para a

    discusso do urbano. Monografia (Graduao em Histria). Teresina: Universidade Federal do Piau, 2009;

    NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernizao e violncia policial em Teresina

    (1937-1945). Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 2002; QUEIROZ, Teresinha de Jesus

    Mesquita. Os literatos e a repblica: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo. Teresina:

    Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1994.

  • 30

    que a administrao municipal de Teresina vinha desenvolvendo vrias estratgias para

    transformar as comemoraes do centenrio em um smbolo de sentimento patritico51

    , numa

    tentativa de romper com o estigma de Teresina como cidade atrasada e consagrar a

    emergncia de uma sociedade civilizada e moderna.

    A criao de um novo Cdigo de Posturas, publicado no Dirio Oficial em 16 de maio

    de 1939, foi uma estratgia emblemtica desse processo de constituio e consolidao de

    novos valores polticos, sociais e culturais, pois visava modernizar uma cidade que em pouco

    mais de uma dcada estaria completando um sculo de fundao. O Cdigo de Posturas

    definiu as intervenes no espao urbano e tambm nos corpos dos moradores da cidade,

    especialmente aqueles que moravam na rea central. De acordo com a historiadora Aline

    Kelly Brito Barbosa52

    , a euforia em torno das ideias de progresso e modernidade associado

    ao crescimento da populao fez com que aumentasse a preocupao do Poder Pblico

    municipal em controlar, ordenar e equipar melhor o espao citadino.

    Ainda na primeira metade da dcada de 1930, durante a interventoria de Landri Sales,

    iniciada a construo do edifcio que iria sediar o Liceu Piauiense, inaugurada na gesto de

    Lenidas de Castro Melo. No mesmo perodo, foi construda a sede dos Correios e

    Telgrafos, localizada na Avenida Antonino Freire. Na segunda metade da dcada de 1930,

    construda a sede da Escola de Aprendizes e Artfices.53

    As aes da administrao municipal, amparadas no Cdigo de Posturas de 1939,

    visavam retirar da rea central foco das intervenes modernizadoras tudo o que simbolizasse

    atraso e pobreza, ou seja, o que no estivesse de acordo com o projeto modernizador. Toda

    mudana urbanstica autoritria, em maior ou menor escala. Por melhor que seja, sempre uma

    parcela de pessoas ver seu mundo descaracterizado e ter de usufru-lo como deseja o autor

    das mudanas.54

    nessa perspectiva que Francisco Alcides do Nascimento, no livro Cidade sob fogo,

    analisa a modernizao da cidade de Teresina entre as dcadas de 1930 e 1940. Em suas

    pesquisas, afirma que o poder pblico empreendia sua ao no sentido de afastar da zona

    central da cidade, os smbolos de pobreza, como os mendigos, as casas de palha, comuns

    naquela poca, pois quebravam a beleza do cenrio urbano. Ao analisar o Cdigo de Posturas 51

    NASCIMENTO, Francisco Alcides do. As comemoraes do centenrio de Teresina: novas sensibilidades do

    viver urbano. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTRIA E PATRIMNIO CULTURAL. Anais...

    Teresina: 2008, p. 2. ISSN n. 1983-3385, 52

    BARBOSA, Aline Kelly Brito. A cidade centenria: o aniversrio de Teresina como pretexto para a discusso

    do urbano. Monografia (Graduao em Histria). Teresina: UFPI, 2009, p. 36. 53

    LIMA, Maria Lenice de Barros. Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos

    teresinenses (1939-1952). Monografia (Graduao em Histria). Teresina: UFPI, 2008, p. 19. 54

    DUDEQUE, Ir. Cidades sem vus: doenas, poder e desenhos urbanos. Curitiba: Champagnat, 1995, p. 68.

  • 31

    publicado em 1939, o pesquisador observa a determinao de que na cobertura dos edifcios

    fossem empregados materiais permeveis, imputrescveis, maus condutores de calor,

    incombustveis e capazes de resistir aos agentes atmosfricos.55

    Certamente, a medida garantiria mais beleza cidade, mas impunha aos mais carentes a

    compra de um material mais durvel e caro, que fatalmente no poderiam custear. E, como

    uma grande parcela da populao que morava em casas de palhas no tinha condies de

    atender as exigncias do poder pblico, foram excludas da rea central. Muitas tiveram suas

    casas incendiadas.

    O desejo dos gestores era que a cidade de Teresina se tornasse bonita, moderna e limpa,

    e o povo civilizado. A construo dessa concepo, no incio da dcada de 1950, implicou

    mudanas no espao pblico, a partir de construes, reurbanizaes e remodelamentos. As

    necessidades da vida moderna no podiam mais se adaptar aos antigos traados.56

    Assim,

    houve uma verdadeira reconstruo do centro da cidade, j que foi o local onde se

    concentraram os eventos das festividades do Centenrio.

    Incluem-se a, remodelamento da Igreja N. S, do Amparo; construo, s pressas, de

    uma esttua do Conselheiro Saraiva, na Praa Saraiva, que seria a primeira da capital; a

    reforma do Theatro 4 de Setembro, para as solenidades pblicas; ao lado, construiu-se um bar

    tpico, feito de material nativo57

    , que foi denominado Bar Carnaba; alinhamento e

    nivelamento das ruas; reformas das praas centrais, como a Pedro II, Rio Branco e Saraiva,

    com ateno especial jardinagem; construo de uma avenida na zona norte, batizada com o

    nome de avenida Centenrio, que mantm o nome at os dias atuais, e a tentativa de

    concluso do Hotel do Estado para receber os convidados ilustres.

    A concluso do hotel do Estado gerou muitas expectativas nos teresinenses, at porque

    a cidade no tinha um lugar adequado para receber os visitantes ilustres. Entretanto, a obra de

    construo do hotel, comeou na Interventoria Federal de Lenidas de Castro Melo (1937-

    1945), perodo em que circulavam as ideias de um pas moderno, incentivada principalmente

    pela administrao de Getlio Dorneles Vargas.

    O certo que o hotel do Estado no foi concludo a tempo para receber os visitantes que

    viriam s festividades do centenrio, pois s ocorreu algum tempo depois. Os visitantes foram

    hospedados no Sanatrio Meduna, administrado pelo mdico Clidenor de Freitas. E que foi

    55

    NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernizao e violncia policial em Teresina

    (1937-1945). Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 2002, 145. 56

    NASCIMENTO, Francisco Alcides do. Cidade e memria: o processo de modernizao de Teresina nos anos

    de 1930 e 1940. In: EUGNIO, Joo Kennedy. Histrias de vrio feitio e circunstncia. Teresina: Instituto

    Dom Barreto, 2001, p. 136. 57

    FERRAZ, Wall. 45 anos depois: tudo que vi, li e ouvi. Teresina, 1992, p. 70.

  • 32

    inaugurado s vsperas do centenrio. A rapidez da construo do Sanatrio Meduna chamou

    a ateno da imprensa, que de um lado elogiou a iniciativa de Clidenor de Freitas e, de outro,

    criticou a demora na concluso do hotel:

    Que a concluso do edifcio do SANATORIO MEDUNA, est sendo

    ultimada, pelo dr. Freitas Santos, numa rapidez incrvel [...]. Um jornalista

    carioca, visitando o Meduna, to impressionado ficou, com a marcha

    rpida do servio, que, no Caf Avenida, declarou: se vocs quizerem hotel

    para o centenrio, bastante [sic] entregar a direo das obras ao dr. Freitas

    Santos, porque, embora sendo ele mdico, est passando quinal nos

    engenheiros e matria de rapidez.58

    Observamos at aqui algumas mudanas implementadas pelo poder pblico para buscar

    destacar a esttica da cidade. Mas as construes, como a do hotel do Estado, era um dos mais

    festejados. Para Ir Dudeque 59

    , a certeza de que a arquitetura permanece, mesmo quando o

    poder que a gerou j estiver defunto, que faz dela o melhor ndice para se conhecer os

    anseios da sociedade que a produziu.

    A percepo de que as cidades precisavam de um cuidado especial criou as condies

    bsicas para que mdicos, engenheiros sanitrios, polticos e autoridades governamentais se

    debruassem na busca de solues para o enfrentamento da questo da sade pblica.60

    Essas

    configuraes correspondem tentativa de controle e imposio de planejamento, a partir de

    polticas de higienizao do espao pblico, que representam, no s um quadro de combate

    sujeira na cidade ou investimento na constituio de hbitos e sensibilidades da populao,

    tida como provinciana,61

    mas tambm de excluso social. Assunto que discutiremos a seguir.

    Partindo desse princpio, as aes voltadas para sanear a cidade e civilizar os cidados

    so executadas a partir da criao de dispositivos. Um desses foi a criao, em 1939, da

    Delegacia de Sade Pblica, que esteve presente em quase todos os municpios do Estado,

    dotadas com aparelhamento e remdio para combater a tuberculose, impaludismo e sfilis.

    Teresina, nessa poca, ainda no contava com um hospital. O que havia eram casas de sade

    que funcionavam como postos, mas sem aparelhamento necessrio para o atendimento dos

    doentes.62

    A Delegacia deveria no s organizar o atendimento aos doentes, mas tambm

    fiscalizar estabelecimentos, atravs de visitas de inspeo de casas, bares e estabelecimentos

    58

    VERDADE. Jornal do Comrcio. Teresina, Ano 6, n. 933, 13 de maro de 1952, p. 4. 59

    DUDEQUE, Ir. Cidades sem vus: doenas, poder e desenhos urbanos. Curitiba: Champagnat, 1995, p. 135. 60

    REZENDE, Antnio Paulo. Desencantos modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de XX. Recife:

    Fundarpe, 1997, p. 44. 61

    LIMA, Maria Lenice de Barros. Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos

    teresinenses (1939-1952). Monografia (Graduao em Histria). Teresina: UFPI, 2008, p. 17. 62

    LIMA, Maria Lenice de Barros. Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos

    teresinenses (1939-1952). Monografia (Graduao em Histria). Teresina: UFPI, 2008, p. 34.

  • 33

    de venda de gneros alimentcios. Desenvolve, assim, aes para promover a educao da

    populao, preparando-a para o novo momento em que a cidade deve viver o discurso

    mdico-sanitarista e influencia na construo da cidade interferindo no cotidiano da

    populao.

    Esta idealizao ainda pode ser percebida, autoritariamente, atravs da imprensa escrita

    local. O jornal O Piau destaca que a Sade Pblica est exigindo dos proprietrios,

    restaurantes, etc., o cumprimento de disposies relativas higiene dos estabelecimentos.63

    Uma das principais aes no sentido de sanear a cidade foi a proibio de criao de animais

    soltos nas ruas, comercializao de gneros alimentcios e carne nas ruas e matana de

    animais em locais no apropriados, como nas vias pblicas.64

    O curioso que ainda na dcada

    de 1950, essa prtica era comum na capital e era realizada pela prpria Prefeitura. O Jornal do

    Comrcio de maro de 1952 afirma que,

    a Prefeitura no pode continuar a fazer matana de porcos na Praa Padre

    Marcos, porque as casas situadas nas imediaes do depsito da correio

    esto sendo danificadas pelos urubus que acorrem todas as tardes quele

    local. Persistir continuar a cometer um grave erro.65

    Essas medidas foram executadas com o objetivo de eliminar as atividades consideradas

    provincianas. Mas tambm encontramos manifestaes de descrdito na imprensa. O jornal O

    Piau, de junho de 1952, faz crticas aos trabalhos feitos pelo Departamento de Sade Pblica,

    mais precisamente, ao prazo dado aos comerciantes de hotis e bares: chamamos a ateno

    dos poderes pblicos para a grave comoo que o curto prazo estabelecido pode causar vida

    da cidade, notadamente agora, nas vsperas das comemoraes do Centenrio.66

    A reao da

    populao aos programas de higiene existe em todas as cidades, sobretudo, quando as

    medidas, quase sempre ditatoriais, contrariam os seus hbitos cotidianos. O caso mais clssico

    ocorreu no Rio de Janeiro no incio do sculo XX, quando o bota-abaixo, do Engenheiro

    Pereira Passos, destruiu o maior cortio da cidade, para abrir uma avenida, e as medidas do

    mdico sanitarista Oswaldo Cruz com suas brigadas sanitrias percorreu ruas, visitando e

    desinfetando casas, limpando, interditando prdios e removendo doentes.67

    63

    HOTIS e penses. O Piau. Teresina. Ano LXII, n. 786, 29 de maio de 1952, p. 04. 64

    LIMA, Op. cit. p. 17. 65

    VERDADE. Jornal do Comrcio. Teresina, Ano I, n. 932, 09 de maro de 1952, p. 01. 66

    HOTIS e penses. O Piau. Teresina. Ano LXII, n. 787, 01 de junho de 1952, p. 01. 67

    CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a repblica que no foi. So Paulo:

    Companhia das Letras, 1991, p. 94.

  • 34

    No ano de 1940, a regulao dos espaos e dos corpos feita atravs de um rgo

    especial, chamado Polcia Sanitria.68

    Esse rgo fiscalizador chega ao Centenrio na forma

    de Comandos Sanitrios. A ideia de constituir os Comandos Sanitrios foi lanada pelo jornal

    O Pirralho, para auxiliar a Comisso Organizadora das festividades do Centenrio de

    Teresina na campanha de higienizao da cidade. Segundo Daniel Solon, o peridico criticava

    a ineficincia da Comisso do Centenrio, que no resolvia os problemas do centro da

    cidade.69

    Em maro de 1952, o Jornal do Comrcio anuncia na coluna intitulada

    VERDADE,

    que os proprietrios de bares, botequins, restaurantes, hotis, e penses, que

    no tratarem da higienizao completa dos seus estabelecimentos, vo se v

    (sic) apertados, com as exigncias dos Comandos Sanitrios, que

    idealizados pelo jornalista Fabrcio de Area Leo, devem ser organizados

    pela Comisso do Centenrio, para visita aos ditos estabelecimentos,

    interditando os que no se acharem preenchendo as exigncias da Sade

    Pblica.

    A fiscalizao feita pelos Comandos Sanitrios vai desde o vesturio das pessoas que

    trabalham com venda de gneros alimentcios, at utenslios. Tudo deveria estar dentro dos

    padres estabelecidos pelo rgo fiscalizador, caso contrrio os infratores estariam sujeitos a

    punies.70

    No entanto, a imprensa cobrava dos Comandos Sanitrios fiscalizao aos

    estabelecimentos ao noticiar infraes cometidas pelos comerciantes dos estabelecimentos

    coletivos. Em abril de 1952, o Jornal do Comrcio alega:

    Que em nossos cafs, bares e restaurantes a sujeira grande. Centenas de

    pessoas bebem em copos servidos; respiram a poeira do piso imundo e

    tomam caf em xcaras mal esterilizadas, velhas e encardidas. Em suma,

    nossos bares so uma fonte de bacilos de Kock onde diariamente dezenas de

    pessoas so afetadas inconscientemente e ao preo de cinqenta centavos por

    cada cafezinho que tomam. Cumpre as autoridades sanitrias fiscalisarem

    (sic) estes ambientes coletivos em que reina a imundcie e no se conhecem

    as normas da Higiene.71

    O teor de vrias notas publicadas nos jornais do perodo parecia desvendar resqucios de

    um pensamento autoritrio vivenciado durante o Estado Novo. Inocentes brincadeiras de

    crianas, por exemplo, estavam na mira dos que planejavam a festa do centenrio e eram

    tratadas com rigidez, a ponto de se transformarem em caso de interveno das foras de

    68

    LIMA, Maria Lenice de Barros. Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos

    teresinenses (1939-1952). Monografia (Graduao em Histria). Teresina: UFPI, 2008, p. 42. 69

    SOLON, Daniel Vasconcelos. O eco dos alto-falantes: memria das amplificadoras e sociabilidade na

    Teresina de meados do sculo XX. Teresina UFPI, 2006. Dissertao (Mestrado em Histria). UFPI, p. 97. 70

    LIMA, Maria Lenice de Barros, op. cit., p. 43. 71

    VERDADE. Jornal do Comrcio. Teresina, Ano 6, n. 938, 12 de abril de 1952, p. 01.

  • 35

    segurana. Para se ter uma ideia, at a maneira de falar dos teresinenses estava tambm se

    tornando alvo de censuras. O jornal O Pirralho ao demonstrar uma preocupao com o olhar

    do outro que viria visitar Teresina assim se manifesta:

    Quando os turistas aqui chegarem, em agosto, ficaro deslumbrados com

    nosso amor lngua que falamos. E quase todas as baixezas gramaticais so

    apoiadas pela Prefeitura, que permite a todo mundo pegar a sua placa, sua

    taboleta (sic), seu pedao de lata velha com gritante portugus de porta de

    bodega.72

    Um novo tempo deveria ser adentrado. Para isso, era preciso criar novos padres para

    que as quinquilharias modernas fossem incorporadas ao cotidiano. Assim, foram utilizados

    muitos dispositivos de poder, pois havia uma grande preocupao em operacionalizar modos

    para que a cidade centenria ganhasse uma roupagem mais moderna. Desse modo, para

    ilustrar o carter apotetico foi projetada uma grande festa que barrou em muitos empecilhos,

    mas que aconteceu. Assunto que veremos a seguir.

    1.3 Produo de uma festa apotetica

    A festa, uma cerimnia pblica que, segundo Lcia Lippi de Oliveira73

    , possui as funes

    pedaggicas e unificadoras, capazes de reduzir as distncias existentes e agregar pessoas de

    diferentes classes sociais, quando realizada em momentos de crise ou de mudanas pode

    permitir o surgimento de novas tradies. Assim, a festa de comemorao do centenrio de

    fundao de Teresina pode ser considerada como exemplar de um momento marcado pela

    inveno de uma nova tradio, na medida em que foi palco de concentrao de pessoas de

    vrias classes sociais, da definio de quais eventos e pessoas deveriam ser lembrados ou

    esquecidos e de tenses de uma poca.

    Pensar essa Teresina centenria nos d a oportunidade de analisar o trabalho de produo

    da comemorao do seu centenrio de fundao, pois se acredita que o resultado da festa

    dependeu muito de sua produo, bem como de sua divulgao. O papel do poder pblico

    piauiense foi essencial na conduo das atividades, na medida em que, sendo o organizador da

    festa, selecionou uma comisso, planejou e implementou medidas, bem como fiscalizou as

    aes da comisso.

    72

    3 TPICOS. O Pirralho. Teresina, Ano XVI, n. 100, 17 de maio de 1952, p. 01. 73

    OLIVEIRA, Lcia Lippi de. As festas que a Repblica manda guardar. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v.

    2, n4, 1989, p. 172.

  • 36

    Os trmites burocrticos relacionados organizao do evento expressam um esforo

    nada comum feito pelo poder pblico piauiense em torno dos preparativos. Teresina se

    propunha a ser uma espcie de bandeira capaz de levantar a imagem de uma cidade que, de

    um lado, padecia da falta de discursos que o dessem a conhecer e experimentar

    nacionalmente74

    , e de outro, que acompanhava as prticas culturais tpicas de uma tradio do

    sculo XX, marcada pelas ideias de progresso e modernidade. De acordo com o historiador

    paulista Silvio Luiz Lofego75

    , essa autoimagem necessitava de um campo simblico para

    fomentar a memria que se pretendia forjar. O Centenrio de Teresina, a ser comemorado em

    agosto de 1952, demonstrava ser o momento ideal para esse processo de construo

    simblica. Nesse sentido, centramos ento, nossa anlise, em algumas documentaes

    produzidas nos marcos da comemorao de 1952, com o objetivo de encontrar subsdios para

    examinar tal procedimento.

    O primeiro deles est relacionado estruturao da Comisso Organizadora das

    festividades do Centenrio. E o segundo diz respeito a algumas estratgias para que o evento

    ocorresse como o almejado pelos idealizadores, como alocar recursos financeiros, abrir

    espao na imprensa, publicar livros considerados relevantes para a construo da histria

    oficial da cidade centenria e, finalmente, a produo da grande festa, que teve durao de

    oito dias.

    As festividades de comemorao do Centenrio de Teresina no fugiram regra das

    comemoraes que ocorrem em outros lugares. Constituiu-se, primeiramente, uma comisso

    com nomes de pessoas ilustres que tentou levar adiante seus objetivos. A Comisso,

    denominada Comisso Pr-Festividade do Centenrio de Teresina, trazia em uma de suas

    composies os seguintes nomes:

    Presidente, Joo Mendes Olmpio de Melo, Prefeito; Presidente de Honra,

    Getlio Vargas, Presidente da Repblica; Pedro de Almendra Freitas,

    Governador do Estado; Vereador, Artur Passos, Vice-Presidente;76

    Secretariados por Raimundo Portela Baslio; Jusselino de Souza Lima;

    membros: vereadores Edson Pires e Jos Patrcio Franco; Jos Maria Soares

    Ribeiro; Drs. Mrio Jos Batista; Walter Alencar; Padre Hermnio Davis;

    Jornalista Fabrcio Ara Leo; Bento Clarindo Bastos e representando o

    Jornal O Piau o sr. Paulo Carneiro da Cunha; Artur Dias de Paiva.

    74

    Sobre a busca de reconhecimento de uma identidade espacial, Cf:. RABELO, Elson de Assis. A Histria entre

    Tempos e contratempos: Fontes Ibiapina e a obscura inveno do Piau. 2008. 200 fs. Dissertao (Mestrado

    em Histria) Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008. 75

    LOFEGO, Slvio Luiz. IV Centenrio da Cidade de So Paulo: uma cidade entre passado e futuro. So Paulo:

    Annablume, 2004, p. 38. 76

    LIMA, Maria Lenice de Barros. Centenrio de Teresina: mudanas no espao urbano e no cotidiano dos

    teresinenses (1939 1952). Monografia (Graduao em Histria). Teresina: UFPI, 2008, p. 52.

  • 37

    Deputados Jos Ribamar de Castro Lima; Alberto de Moura Monteiro; Joo

    Clmaco de Almeida e Incio Soares da Silva.77

    Como se v, a lista da comisso organizadora era extensa e envolveu membros

    representativos do poder em suas vrias instncias. Como os planos da comisso eram

    ambiciosos, concentraram instituies e atores sociais representados pelo governo estadual e

    municipal empresas, alm daqueles nomes ligados classe intelectual, artstica e religiosa.

    Com a preocupao de que fossem tomadas todas as medidas teis e necessrias para uma

    comemorao que se transformasse num marco da histria, foram compostas subcomisses

    encarregadas das atividades que deveriam ocorrer. Nela, observamos os setores da sociedade

    envolvidos e as propostas a serem realizadas.

    O Jornal do Comrcio, de 29 de junho de 1952, divulgou uma extensa diviso das

    subcomisses com suas devidas funes.78

    sua composio estenderam-se os diver