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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 31 – Oralidade no Português: possibilidades de investigação sobr a língua falada. 20 A CONVERSAÇÃO NO TEXTO LITERÁRIO Marise Adriana Mamede GALVÃO 1 RESUMO Neste trabalho focalizamos a conversação no texto ficcional, com o objetivo de descrever, analisar e interpretar de que forma as ocorrências da interação verbal face a face evidenciam-se nas falas dos personagens do conto “Missa do Galo”, escrito por Machado de Assis. Partimos do princípio de que a conversação literária é uma representação da conversação real, conforme mostram os resultados das reflexões realizadas por Urbano (2000) e Preti (2004 e 2005). Nas pesquisas que desenvolveram, esses autores reconhecem que fenômenos da interação face a face são transpostos para a literatura, daí encontramos, na ficção, estratégias conversacionais, informações trazidas da situação de comunicação, elementos pragmáticos que acompanham e precedem as falas dos personagens. Neste estudo, seguimos os postulados das pesquisas no âmbito da interação verbal, entre estas as de Marcuschi (1991), Kerbrat-Orecchioni (2006), Urbano (2000) e o conjunto de artigos publicados por de Preti (2004 e 2005) em Estudos da Língua Oral e Escrita e na série Projetos Paralelos (NURC-SP). Orientamo- nos, para tanto, por uma metodologia interpretativa, de natureza indutiva, buscando, inicialmente, seguir as evidências nos dados coletados. Os resultados da análise dos dados revelam que nas interações verbais instauradas no conto “Missa do Galo” há ocorrências de fenômenos da conversação real. Às vezes, eles se fazem presentes nas falas dos personagens: por meios de pausas, do sistema de organização de turnos, de interrupções; em outras, as evidências são materializadas nas descrições realizadas pelo narrador. PALAVRAS-CHAVE Conversação; texto literário; conto INTRODUÇÃO Este trabalho é uma análise linguístico/discursiva da narrativa ficcional, objetivando descrever, analisar e interpretar de que forma os postulados teóricos de perspectivas interacionais podem ser utilizados como base para a análise do texto 1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Departamento de Ciências Sociais e Humanas Rua José Ovídio do Vale, 1914, Apto. 202, Natal/RN – Brasil – CEP. 59.015.410 [email protected] [email protected]

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 31 – Oralidade no Português: possibilidades de investigação sobr a língua falada.

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A CONVERSAÇÃO NO TEXTO LITERÁRIO

Marise Adriana Mamede GALVÃO1

RESUMO Neste trabalho focalizamos a conversação no texto ficcional, com o objetivo de descrever, analisar e interpretar de que forma as ocorrências da interação verbal face a face evidenciam-se nas falas dos personagens do conto “Missa do Galo”, escrito por Machado de Assis. Partimos do princípio de que a conversação literária é uma representação da conversação real, conforme mostram os resultados das reflexões realizadas por Urbano (2000) e Preti (2004 e 2005). Nas pesquisas que desenvolveram, esses autores reconhecem que fenômenos da interação face a face são transpostos para a literatura, daí encontramos, na ficção, estratégias conversacionais, informações trazidas da situação de comunicação, elementos pragmáticos que acompanham e precedem as falas dos personagens. Neste estudo, seguimos os postulados das pesquisas no âmbito da interação verbal, entre estas as de Marcuschi (1991), Kerbrat-Orecchioni (2006), Urbano (2000) e o conjunto de artigos publicados por de Preti (2004 e 2005) em Estudos da Língua Oral e Escrita e na série Projetos Paralelos (NURC-SP). Orientamo-nos, para tanto, por uma metodologia interpretativa, de natureza indutiva, buscando, inicialmente, seguir as evidências nos dados coletados. Os resultados da análise dos dados revelam que nas interações verbais instauradas no conto “Missa do Galo” há ocorrências de fenômenos da conversação real. Às vezes, eles se fazem presentes nas falas dos personagens: por meios de pausas, do sistema de organização de turnos, de interrupções; em outras, as evidências são materializadas nas descrições realizadas pelo narrador. PALAVRAS-CHAVE Conversação; texto literário; conto INTRODUÇÃO Este trabalho é uma análise linguístico/discursiva da narrativa ficcional,

objetivando descrever, analisar e interpretar de que forma os postulados teóricos de

perspectivas interacionais podem ser utilizados como base para a análise do texto

1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Departamento de Ciências Sociais e Humanas Rua José Ovídio do Vale, 1914, Apto. 202, Natal/RN – Brasil – CEP. 59.015.410 [email protected][email protected]

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literário. Inspiramo-nos nas considerações de Urbano (2000) no que concerne à análise

da linguagem literária nos contos de Rubem Fonseca, como ponto de partida para a

efetivação de nossa proposta.

Ao tratar a temática em foco, Urbano (2000, p. 13) questiona: “Oralidade na

Literatura (que é escrita) não é um paradoxo? Como pode a língua escrita incorporar a

falada? Como se pode pensar o oral no escrito ou o sonoro no visual?”

Seguindo-se essas questões, o autor ressalta que a linguagem é condicionada a

inúmeros fatores e variedades. Assim, varia no tempo, espaço, socialmente, em

situações de comunicações e na forma de sua realização. Isso significa que há, pelo

menos, as variedades culta e popular; as modalidades falada e escrita; situações formais

e informais que se relacionam entre si. Nesse sentido, podemos observar características

próprias das modalidades e variedades, passíveis de análises e investigações sob

diversos aspectos, porém, a exemplo de Urbano (2000), nosso interesse é a conversação,

a modalidade oral inscrita no texto literário.

Adotando essas considerações enquanto caminho inicial, nossa proposta busca

identificar traços da conversação real no conto “Missa do Galo”, escrito por Machado

de Assis (publicado pela primeira vez em 1893). Os pressupostos teóricos desta

investigação baseiam-se na tradição etnometodológica - na Análise da Conversação

(Marcuschi, 1991; Urbano, 2000; Preti, 2004 e 2005) e em estudos acerca da Interação

Verbal (Kerbrat-Orecchioni, 1980 e 2006).

Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa insere-se em uma abordagem

indutiva, de natureza qualitativa, inicialmente concretizada na observação de

ocorrências linguístico/discursivas nos dados em foco, a saber, nas interações

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constitutivas da ficção literária. Ressaltamos que nosso interesse é restrito aos aspectos

da conversação face a face, representados no conto machadiano.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

A evolução da tecnologia nos tem possibilitado realizar investigações de

interações face a face por meio de vídeos e equipamentos produzidos para finalidades

específicas. A partir da captação de sons da fala e imagens do que ocorre nos lugares

em que eventos se desenvolvem, podemos estudar fenômenos do discurso interacional,

desde os mais espontâneos até os mais formais. No entanto, Preti (2004, p. 151) nos

lembra:

sabemos que nem sempre dispomos de instrumentos tecnológicos para documentar características da conversação e, não raro, recorremos, à nossa memória para reproduzir estratégias discursivas ou a documentos escritos da mídia ou da literatura, para exemplificar nossas teorias.

Conforme menciona o autor, se fizermos um levantamento de textos que abordam

problemas interacionais na língua falada, teremos exemplos de diálogos escritos

publicados pela imprensa, entrevistas transcritas, crônicas, entre outros, além de análises

que têm como corpus a prosa de ficção. Nesse sentido, o pesquisador menciona:

“podemos entender essas fontes de estudo como repositórios de modelos falados, de

esquemas de diálogos, guardados na memória de quem escreve com indicação, não raro,

do que podemos chamar de estratégias conversacionais” (PRETI, 2004, p. 15).

Mencionando Urbano (2000), o autor ressalta a estância pragmática presente na

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modalidade escrita da língua, por meio de traços da enunciação, revelados no diálogo

de ficção e nem sempre percebidos pelos que participam de uma conversação natural.

Preti (2004) também salienta que as intervenções realizadas pelo autor/narrador

na prosa de ficção têm a função de tornar claro ao leitor a presença dos traços da

enunciação. Ademais, as estratégias conversacionais presentes no texto literário, nesse

caso “conversação literária”, nos permitem uma melhor compreensão do

posicionamento dos personagens nas interações realizadas pelas trocas dialógicas.

Refletindo sobre a “conversação literária” Preti (2004, p. 153) nos lembra: “em

momento algum queremos afirmar que os diálogos de ficção podem representar

exatamente a conversação natural [...]”. Nesse sentido, ele atenta para as marcas

autênticas da conversação, a saber, os marcadores interacionais, pausas, hesitações,

sobreposições de falas, entre outras, as quais nem sempre são possíveis de representação

nos textos literários, carecendo de informações contextuais do narrador. Nessa mesma

perspectiva, ao fazer referências às modalidades falada e escrita da língua Urbano

(2000) menciona os elementos linguísticos, paralinguísticos e extralinguísticos que são

considerados na língua falada e que podem ser evocados descritivamente na modalidade

escrita.

Esse pesquisador também faz reflexões em torno da oralidade na literatura e

menciona que a linguagem pode ser criada e recriada parcialmente dentro do texto

literário. Urbano (2000) também realiza discussão acerca de língua falada – língua

literária, a partir do pensamento de alguns autores, entre estes Granger (1974) e Preti

(1994). Conforme sugere Preti (1994), apud Urbano (2000, p. 129), “a língua literária,

em função dos seus objetivos estéticos pode ser considerada uma variante em nível

superior da língua escrita”, o mesmo ocorrendo com relação à língua popular, à língua

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culta, etc. Nesse sentido, as várias modalidades linguísticas podem ser transpostas para

o texto literário, de modo a cumprir a intenção artística e estética do autor, no dizer de

Urbano (2000).

Interação verbal

Ao situar as questões de ordem teórico/metodológicas para análise da oralidade

na literatura, Urbano (2000) realiza uma reflexão, a partir dos resultados das pesquisas

de Kerbrat-Orecchioni (1980), no que concerne à interação. Ele salienta que a interação

verbal é uma atividade de cooperação entre pessoas que realizam ações coordenadas,

complexas, sociais. Assim, situações de interação podem ser variadas, podendo

acontecer em ocasiões espontâneas, casuais, formais, informais, com objetivos diversos,

dependendo dos participantes, do grau de envolvimento, conhecimento partilhado, entre

outras questões.

Seguindo esse postulado, Urbano (2000, p. 88) nos lembra que a interação é a

“realidade fundamental da linguagem”, tanto na modalidade falada quanto na escrita, e

ressalta que interagir, do ponto de vista da conversação natural, pode ser mais

importante do que o tema/tópico/assunto. Entendemos, igualmente ao autor, que a

interação, independentemente do canal utilizado (oral ou escrito), é uma condição para o

desenvolvimento de qualquer discurso.

Para cumprirmos o nosso propósito, subsidiamo-nos, também, em trabalho

posterior de Kerbrat-Orecchioni (2006, p.8), a fim de discutir sobre a interação verbal.

Na discussão acerca da temática em questão a autora afirma:

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para que haja troca comunicativa, não basta que dois falantes (ou mais) falem alternadamente; é ainda preciso que eles se falem, ou seja, que estejam”engajados” na troca e que dêem sinais desse engajamento mútuo, recorrendo a diversos procedimentos de validação interlocutória.

Dessa forma, no processo da interação verbal devemos considerar os papéis

intercambiáveis dos participantes e a sincronização interacional. Os participantes, dessa

forma, devem deixar claro que estão falando um com o outro por meio do olhar, das

posturas orientadas, das formas de tratamento, dos marcadores conversacionais. Nesse

processo, atentamos também para as eventuais correções que acontecem no transcurso

da interação, motivadas por falhas de compreensão, materializadas por retomadas,

reformulações, reparos, etc., ou por necessidade de refazer o estilo e polir o texto,

conforme sugere Marcuschi (1991).

Na interação, portanto, os participantes influenciam e são influenciados pelos

comportamentos uns dos outros desde a postura, os gestos, as mímicas, até às escolhas

dos temas, do vocabulário, do registro da língua. Ou seja, na interação, o discurso é co-

produzido, partilhado.

Conversação

Kerbrat-Orecchioni (2006) menciona que são muitas as famílias das interações

verbais e cita como exemplos as conversas (familiares e de outros gêneros), entrevistas,

debates, transações comerciais, encontros científicos, entre outros. A autora sugere que

a primeira tarefa do analista é realizar o inventário e a tipologia das interações; para

tanto, ressalta os seguintes critérios como definidores: a natureza do lugar; o número de

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participantes, seus estatutos e papéis; o objetivo da interação; seu o grau de formalidade

e estilo. Assim, a conversação normalmente tem um número relativamente restrito de

participantes; os papéis que eles exercem não são pré-determinados; nem sempre há um

objetivo “a priori”, o que implica uma organização realizada passo a passo durante o

intercâmbio.

Marcuschi (1991 p. 15) explicita cinco características básicas constitutivas da

organização da conversação:

(a) a interação entre pelo menos dois falantes; (b) ocorrência de pelo menos uma troca de falantes; (c) presença de uma seqüência de ações coordenadas; (d) execução numa identidade temporal (e) envolvimento numa “interação centrada”.

Percebemos, dessa forma, o caráter interacional inerente aos intercâmbios

conversacionais: a alternância dos interactantes aos exercerem papéis intercambiáveis

em determinado evento, por meio da centração em um foco, posto em relevância

durante o processo desenvolvido por ações mutuamente partilhadas.

Um outro aspecto importante nos estudos das interações, sejam elas

conversações espontâneas ou eventos formais, é a necessidade de preservação da face.

Preti (2004) faz referências à questão da preservação da face nos estudos

conversacionais, a partir das orientações de Brown e Levinson (1978), a fim de ressaltar

que usamos certas estratégias discursivas nas interações face a face, para evitar

conflitos. Podemos, assim, elogiar inicialmente, com objetivo de pedir um favor;

usarmos enunciados de duplo sentido, para não revelarmos um sentimento diretamente;

alteramos determinados comportamentos, para continuarmos um diálogo de forma mais

harmoniosa.

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Conversação literária

Ao analisar a “conversação literária”, Preti (2004, p 152) torna claro o objetivo

de seu trabalho, a saber:

mostrar caminhos pra descobrir, no diálogo literário, possíveis esquemas conversacionais, que se revelam na construção de textos de ficcionistas brasileiros, em certos momentos de sua obra, considerando o contexto histórico-cultural que os autores descrevem e os modelos de competência comunicativa que interiorizam e atribuem a suas personagens.

Nessa discussão, o autor enfatiza que a conversação literária nem sempre apresenta as

marcas exatas da conversação natural como, por exemplo, as hesitações, os marcadores

conversacionais, as frases incompletas, as repetições, as sobreposições. Porém, mesmo

tratando-se de transcrição da fala, as personagens literárias podem mostrar estratégias

comunicativas ideais, no modo como evidenciam suas intenções, como mostram

aproximação e distanciamento com o interlocutor, por diferentes meios verbais.

No percurso de seu trabalho, Preti (2004) faz referências aos aspectos da língua

falada transpostos para a literatura, o que ocorre por meio das falas dos personagens e

do narrador. Conforme ressalta, o diálogo entre personagens é uma forma de evidenciar

a realidade “falada” de determinada época, seus hábitos e costumes.

Ao discorrer sobre a fala de personagens literárias, Preti (2004) realiza uma

macroanálise do comportamento linguístico dos falantes, o que significa considerar a

faixa-etária dos falantes, sexo (gênero), profissão, escolaridade, etc.; as variáveis

psicológicas, que esclarecem sobre o tipo de pessoa (exemplificado no ritmo de voz).

Além disso, a situação de comunicação, ou condição em que a comunicação ocorre, no

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que se refere ao local, tema, grau de intimidade dos interactantes, possibilita reconhecer

a linguagem como sendo culta, comum, popular, etc.

Na análise desses aspectos, na literatura, Preti (2004, p. 140) menciona:

num romance como Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida, o autor constrói uma cena de constrangimento entre os interlocutores, descrita com o auxílio de abundantes reticências e das explicações do narrador para as frases entrecortadas, que causam um efeito de disfluência na fala de Leonardo [...].

Outro fator que influencia a interação diz respeito aos aspectos cognitivos,

conforme o autor, concernente às expectativas do ouvinte em relação ao que é dito pelo

falante e à linguagem que este utiliza. Ou seja, na interação, o ouvinte vai interpretar

os implícitos produzidos pelo falante, as frases inacabadas, as estruturas partidas, os

vocábulos soltos, a partir de sua visão de mundo e experiências anteriores. No diálogo

literário, tendo em vista que o narrador pode descrever a forma como as personagens

interagem, temos condições de avaliar “até que ponto suas falas correspondem a uma

realidade linguística” (PRETI, 2004, p. 146). Ou seja, os estados de tristeza, dúvida,

alegria, apreensão, entre outros, são reconhecidos pelo leitor, mediante recursos de

pontuação, ou outros, fornecidos pelo narrador sob forma de descrição.

Na análise um capítulo do romance Angústia, de Graciliano Ramos, publicado

em 1936, Preti (2004, p. 169) sugere que atentemos para os seguintes aspectos, ao

examinarmos um diálogo construído:

1. contexto histórico em que se realiza o diálogo [...]; e o contexto geográfico [...].

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2. os fatores extralinguísticos e sua possível ação sobre os personagens, considerando suas características socioculturais [...] ou psico-biológicas [...]. 3. as informações trazidas pela situação de comunicação. São os elementos pragmáticos que precedem e acompanham a fala, mas também os traços de interatividade, durante o diálogo, como tratamentos gramaticais, expressões formulaicas, repetições, sequências, interrupções sintáticas, sucessão de turnos, marcadores conversacionais, silêncios, etc, utilizados pelos ‘falantes’; 4. as estratégias conversacionais empregadas pelos interlocutores, visando à obtenção de certos fins, e seus resultados ao longo do diálogo construído.

A partir dessa discussão, a proposta de análise do conto “Missa do Galo” irá

considerar: o contexto histórico e geográfico dos personagens, suas características, a

situação de comunicação da qual fazem parte e as estratégias conversacionais usadas

para desenvolver a interação. Nesse sentido, serão observados os seguintes aspectos: o

modo como ocorre o diálogo entre os interlocutores; quem gerencia a interação (turnos

e tópicos); as marcas de interatividade, a saber, os gestos, os olhares, as posturas dos

participantes, as interrupções e silêncios, os marcadores conversacionais.

A CONVERSAÇÃO EM “MISSA DO GALO”

Neste estudo, fomos motivados pela conversação inscrita nas palavras sugestivas

de Machado de Assis: “nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora,

há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”.

Seguindo os caminhos de Urbano (2000) e Preti (2004), atentamos para o fato de

que a conversação identificada em “Missa do Galo” é uma representação da interação

verbal falada, fruto da criação de Machado de Assis. Por meio das falas das

personagens literárias, vislumbramos aspectos da conversação natural, por exemplo, a

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organização de turnos, tópicos, hesitações, pausas, silêncios, além de sequências de

abertura, desenvolvimento e fechamento do intercâmbio verbal.

A conversação no corpus em estudo ocorre em uma noite de Natal, notadamente

entre uma senhora, de trinta anos, e um jovem, de dezessete. Nos três primeiros

parágrafos, o autor fornece o contexto do diálogo, informando sobre o local em que os

interlocutores se encontram - Rio de Janeiro; a motivação da conversação - Missa do

Galo; e sobre os personagens - o escrivão, a sogra, Nogueira, Conceição e as escravas.

Percebemos, pela descrição, algumas características das personagens, que certamente

definem suas posturas enquanto participantes dos intercâmbios verbais. Menezes – o

escrivão, embora não participe da conversação, influencia por meio de ações descritas

na ficção. Sua condição de homem que possui uma amante motiva risos entre as

escravas que moram com a família e provoca expressões faciais de D. Inácia (mãe do

escrivão), conotativas de quem conhece a real situação de traição na qual o filho se

envolve. D. Conceição - chamada “a santa”, esposa do escrivão, é uma personagem que

demonstra comportamento discreto e moderado; ela sabe e aceita o comportamento

irregular do marido, envolvido em romance com uma mulher casada. Nogueira – rapaz

de 17 anos - é um estudante em fase de exames preparatórios, hóspede da casa no

escrivão.

Seguindo-se essas informações, identificamos (exemplo 1) a forma como a

conversa entre os interlocutores no conto é iniciada: no parágrafo 4, a pergunta da mãe

de D. Conceição e a resposta de Nogueira podem ser entendidas como sequência de

abertura da interação, embora não tenhamos registro da efetivação de sua continuidade

por estes personagens. Provavelmente, D. Inácia, como era costume na família, por

volta das 10 horas retira-se da sala, a fim de recolher-se e dormir. Estabelece-se uma

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troca interacional breve, por meio da qual foi possível identificar a forma de tratamento

utilizada pelos dois interactantes: Nogueira refere-se à mãe do escrivão,

respeitosamente, por “Dona Inácia”, o que é comum, haja vista a idade e,

provavelmente, a posição dela na casa; esta, por sua vez, dirige-se à Nogueira, rapaz de

dezessete anos, tratando-o como “Senhor”, o que deixa transparecer os costumes da

época.

Exemplo 1.

- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? - Leio, D. Inácia

Após esse momento, Nogueira executa uma ação, explicitada na resposta à D.

Inácia, ou seja, lê “Os três mosqueteiros”, livro que portava na ocasião. Porém, um

“pequeno rumor”, uma ocorrência do contexto externo, tira-o da concentração e fornece

a motivação para que uma nova conversação se desenvolva no conto, desta vez entre ele

e Conceição, conforme o excerto do exemplo 2, no parágrafo 5.

Exemplo 2

- Ainda não foi? - Não fui, parece que ainda não é meia-noite. - Que paciência!

Compreendemos que se trata de uma comunicação que marca uma sequência

cujos objetivos vão sendo estabelecidos. Já que não há um assunto definido, a priori, as

estratégias que mantém os interactantes no local são de ordem imediata, construídas

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para mantê-los em contato. Assim como nos dados analisados por Preti (2004), no

conto em foco o que é dito pelos falantes de Machado tem a função puramente

interacional, explicitado em linguagem comum e por meio de algumas expressões,

conforme verificamos no primeiro e terceiro turnos da fala de Conceição: “ainda não

foi?”, “Que paciência!”

Na sequência do conto, há a indicação de que a conversação prossegue. No

parágrafo 6, o narrador descreve as ações de Conceição: entrando na sala arrastando os

chinelos, indo sentar-se defronte à Nogueira. Essa sequência também é essencialmente

interacional, marcada pela presença dos pares conversacionais. No excerto (exemplo 3),

o primeiro par do diálogo é formado pela pergunta de Nogueira, descrita pelo narrador:

“como se eu lhe perguntasse”. No mesmo excerto, a segunda parte do par, a resposta, é

explicitada por Conceição: “Não! Qual! Acordei por acordar”.

Exemplo 3

Como se eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

- Não! Qual! Acordei por acordar.

Ao analisar esse momento da conversação literária, observamos algumas considerações

do narrador acerca de aspectos não verbais que são importantes para o entendimento do

diálogo: Nogueira fita Conceição e duvida se ela tinha dormido há pouco tempo, porém

não verbaliza, evitando ameaçar a face desta. Por um momento, Nogueira pensa que

Conceição estaria acordada por causa dele, embora tenha evitado qualquer comentário

nesse sentido, a fim de não aborrecê-la.

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O diálogo que se desenrola a partir do comentário de Nogueira, exemplo 4,

parágrafo 7, é entendido como uma estratégia para manter a conversação. As trocas

ocorrem por meio de comentários a cerca da espera do horário da missa na corte: “Mas

a hora já deve estar próxima”. Novamente, a fala de Conceição “Não tem medo de

almas de outro mundo”, no segundo turno, fornece uma pista relevante, entendida como

interesse em colaborar com diálogo, que naquele momento parece ser o fato mais

importante.

Exemplo 4

- Mas a hora já deve estar próxima – disse eu -Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E

esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? - Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.

Uma nova sequência conversacional prossegue. No exemplo 5 (parágrafo 7),

observamos que D. Conceição demonstra um interesse que revela a sincronia das ações

verbais entre os interlocutores. Ou seja, a pergunta “que é que estava lendo?” fornece

uma pista linguística de atenção às ações do interlocutor e, ao mesmo tempo, busca um

assunto que pode ser de interesse naquele momento. Observamos, também, que se trata

de algo relevante no contexto imediato, já que Nogueira lia, enquanto aguardava a

missa. Nesse instante, identificamos o conhecimento partilhado por Nogueira e

Conceição: o romance “Os Três Mosqueteiros” fazia parte do universo literário dos dois

parceiros conversacionais, conforme fica explicitado por meio do enunciado “Não diga,

já sei, é o romance dos Mosqueteiros”.

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 31 – Oralidade no Português: possibilidades de investigação sobr a língua falada.

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Exemplo 5

- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. - Justamente: é muito bonito. - Gosta de romances? - Gosto. - Já leu A Moreninha? - Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. - Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que

romances é que você tem lido?

Outra questão de relevância é identificada na fala de Conceição, também no

exemplo 5, no turno em que faz uma afirmação a fim de explicitar seu gosto pelos

romances, embora o tempo para a prática da leitura seja pouco. Interpretamos que há

uma tentativa de preservação da face, haja vista a boa impressão que poderia causar ao

interlocutor, no caso Nogueira, o fato de apreciar a leitura de romances.

Além de representações de diálogos, há, no texto, explicitação de que a interação

se desenvolve por meio de turnos e tópicos ou assuntos que são conectados,

modificados, retomados, reciclados. O exemplo 6, constituído por excertos localizados

em algumas partes do conto (parágrafos 10, 12 e 17), nos possibilita a compreensão da

forma que o autor traz para a conversação literária, descrições que deixam transparecer

a modalidade falada da língua, a partir dos enunciados: “continuei a dizer [...]”, “quando

eu acabava uma narração [...]. Falava emendando os assuntos”, “queria e não queria

acabar a conversação”, “a conversação ia morrendo”. Ademais, o autor deixa evidente

o processo interacional na conversação literária, no tocante ao engajamento dos falantes

que se alternam, “emendando” os assuntos, inventando, tomando a palavra, encerrando

a conversa.

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Exemplo 6

continuei a dizer o que pensava das festas e da cidade e de outras coisas que me iam vindo a boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros[...]

quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra

pergunta ou outra matéria e eu pegava novamente na palavra [...] queria e não queria acabar a conversação [..] a conversação ia morrendo

Outra observação que fazemos a partir do excerto do exemplo 7 (parágrafo 11),

considera os indícios de que Nogueira desempenha o papel de falante em posição de

destaque, daquele que falava mais, fato atribuído, no nosso entendimento, à sua

condição de homem, embora muito jovem. Além disso, interpretamos por meio da voz

do narrador, que Conceição apresentava condição intelectual inferior “estreito era o

círculo das suas idéias”.

Exemplo 7

Realmente não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os

dous, eu mais que ela, porque falava mais [...]

As representações da atenção centrada dos participantes da interação, por meio

de gestos, olhares, alteração da postura corporal são ocorrências que deixam entrever

uma intimidade que vai sendo compartilhada por Nogueira e Conceição na conversação

literária, conforme os excertos que formam o exemplo 8 (parágrafos 8 e 13). Na

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descrição do narrador, Conceição não tirava os olhos de Nogueira; tinha os olhos

espertos; cerrava os olhos como se fosse para observá-lo melhor.

Exemplo 8

Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim.

Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o

queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

Duas ou outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, [...]

As ocorrências de correções no momento da interação revelam, por um lado, a

evidência da quase simultaneidade entre o processamento do discurso conversacional e

sua execução, além da reorientação dos participantes acerca do que é dito; por outro, a

habilidade do falante na construção do discurso. Nesse caso específico, a fala de

Conceição, no segundo e terceiro turnos do exemplo 9 (parágrafo 11), pode ser

interpretada como uma forma sutil de dizer a Nogueira que estava acordada por motivos

outros que não eram insônia.

Exemplo 9

- Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.

- Foi o que lhe aconteceu hoje - Não, não, atalhou ela.

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As interrupções que comumente precedem e acompanham a fala em situações de

interação face a face são os elementos pragmáticos, também transpostos para a

conversação literária. Em “Missa do Galo”, de Machado de Assis (exemplo 10,

parágrafos 8, 10 e 12), essas ocorrências favorecem e revelam a presença da

interatividade. Ademais, imprimem um tom mais real às vozes dos

personagens/interactantes, tornando explícita a forma de planejamento localizado, como

também ocorre na conversação face a face. Observamos nesses excertos que as

interrupções são realizadas por Conceição, primeiramente para manter o intercâmbio

com Nogueira, conforme sugere o enunciado “não, não ainda é cedo”. Em seguida,

Conceição interrompe Nogueira, solicitando-lhe que fale mais baixo, a fim de que D.

Inácia não seja despertada por suas vozes: “Mais baixo! Mamãe pode acordar” e “mais

baixo mais baixo”.

Exemplo 10

- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu ... - Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo no relógio são onze e meia [...]

Quando eu alteava um pouco a voz ela reprimia-me:

-Mais baixo! Mamãe pode acordar.

- De quando em quando reprimia-me: -mais baixo mais baixo ...

Igualmente às interrupções, as pausas e silêncios na conversação são indícios da

habilidade do autor, com referência aos traços da enunciação. Podem indicar

proximidade ou afastamento, dissimulação, poder e outras informações da situação da

qual os interactantes participam. Os excertos exemplificados em 11 (parágrafos 08, 13,

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18) são descrições de pausas que podem ser entendidas como traços de interatividade na

conversação em análise, com conotação de proximidade entre Conceição e Nogueira.

Exemplo 11

Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Havia também umas pausas. Duas ou três vezes pareceu-me que a via

dormir [...] Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto – inteiramente

calados.

No que se refere aos marcadores conversacionais, há evidências apenas nos

excertos que compõem o exemplo 12 (parágrafo 4 e 9). O primeiro exemplo trata-se de

um introdutor da conversação “mas”, indicativo do processo em tempo real; o segundo,

“olhe”, chama atenção, igualmente, para a relevância do assunto e para o momento da

interlocução.

Exemplo 12

- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo?

- Olhe, a semana santa na corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio ...

Constatamos, assim, que a conversação idealizada por Machado de Assis no

conto “Missa do Galo” apresenta grande parte de ocorrências comuns da interação face

a face. Nesse sentido, identificamos a principal marca da interatividade, o diálogo entre

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os interactantes, nesse caso entre os personagens de ficção, que mostraram indícios de

suas experiências, ações, conhecimentos de mundo, seus contextos específicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A “análise conversacional” do conto “Missa do Galo” revela uma possibilidade

de reflexão, identificando o processo interacional habilmente transposto para o texto

literário. Não se trata apenas de observar a conversação em si mesma, mas, a partir daí,

interpretar como os autores de textos literários deixam vir à tona em seus escritos,

aspectos da vida que são sondados a partir das vozes dos próprios personagens e de

contextos que servem de pano de fundo a essas interações. Essas semelhanças com a

interação face a face ressaltam aspectos relacionados à forma de organização dos

participantes, relativos aos elementos da oralidade trazidos para o texto ficcional

(pausas, interrupções, marcadores interacionais, etc.) e às estratégias da conversação

que são usadas com fins específicos.

Algumas ocorrências de sequências de conversação, embora presentes no texto

sob forma de interação breve entre os interlocutores, tiveram a função de deixar

explícito para o leitor os contextos em que acontecem e algumas características dos

personagens.

Com referência aos diálogos organizadores da conversação literária, observamos

que explicitaram uma função mais direcionada ao intercâmbio em si, à manutenção do

envolvimento entre os pares do que dirigida a algum tipo de conteúdo informacional

que possa ter sido efetivado.

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Em suma, a conversação em “Missa do Galo” evidenciou elementos de ordem

pragmática que revelaram ao leitor fatores extra-linguísticos, marcas linguístico-

discursivas e estratégias conversacionais de personagens de ficção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cambridge: Cambridge University Press, 1978.

GRANGER, G. G. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974.

KERBRAT-ORECCHIONI. C. L´énunciacton – de la subjectivité dans le langage.

Paris: Armand Coli, 1980.

_____. C. Análise da conversação: princípios e métodos. Tradução de Carlos

Piovezani Filho. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

MARCUSCHI, L. A. Análise da Conversação. São Paulo: Ática,1991.

PRETI, D. Sociolingüística – os níveis da fala.São Paulo: Nacional, 1994.

______. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

______. O diálogo num confessionário. In. PRETI, D. (org) Diálogos: na fala e na

escrita. Projetos Paralelos – NURC/SP, vol 7. São Paulo: Humanitas, 2005.p. 255-276.

URBANO. U. Oralidade na literatura (O caso Rubem Fonseca). São Paulo: Cortez,

2000.

TEXTO DE APOIO

ASSIS, Machado de. Missa do Galo. In. ASSIS, Machado e al. Missa do Galo:

variações sobre o mesmo tema. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p.11-21.