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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia A doença como ponto de mutação: os processos de significação em mulheres portadoras de lúpus eritematoso sistêmico Adriana Dias Araújo Natal 2004

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A doença como ponto de mutação: os processos de significação em mulheres portadoras de lúpus eritematoso sistêmico

Adriana Dias Araújo

Natal 2004

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Adriana Dias Araújo

A doença como ponto de mutação: os processos de significação em mulheres

portadoras de lúpus eritematoso sistêmico

Dissertação de mestrado elaborada sob a orientação da Profª. Drª. Martha Traverso-Yépez e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Natal 2004

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação: “A doença como ponto de mutação: os processos de significação em

mulheres portadoras de lúpus eritematoso sistêmico, elaborada por Adriana Dias

Araújo, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita

pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do

título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, 16 de fevereiro de 2004

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Martha Traverso-Yépez ________________________________

Profª. Drª. Magda Dimenstein _______________________________

Profª. Drª. Isolda de Araújo Günther _______________________________

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O senso de significado que o paciente ganha ou perde é um fator tão crítico na reabilitação quanto a natureza do problema físico em si.

RACHEL NAOMI REMEN

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Dedico este trabalho à minha mãe Maria José e ao meu pai Sérgio (in memorian).

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Agradecimentos

A Deus por ter me dado força e perseverança para trilhar esse caminho que, nas circunstâncias que foram, exigiram muito de mim, uma vez que para sua conclusão foi preciso eu ficar por um ano longe da minha família.

À professora Dra. Martha Traverso-Yépez, pela dedicação e competência com que orientou este trabalho, bem como, por sempre me incentivar e acreditar no meu potencial.

Ás professoras Drª. Magda Dimenstein e Drª. Tereza Cristina Carriteiro pelas sugestões apresentadas nos seminários de dissertação.

Às professoras Drª. Magda Dimenstein e Drª. Isolda de Araújo Günther pela participação na banca examinadora.

À minha mãe, Maria José, que sempre me apoiou em todos os sentidos e, principalmente, com palavras de estímulo.

Ao meu pai, Sérgio (in memorian) que, apesar de ausente, permanece como um reflexo de tudo que sou e que ainda serei.

A minha amiga Indira Caldas que esteve sempre presente no meu percurso acadêmico me encorajando e tentando me tranqüilizar nos momentos de ansiedade e angústia inerentes a todo trabalho científico e, também, a seus pais, Lélia e Floriano, que me acolheram em sua casa, sendo por alguns meses a minha família.

Aos meus amigos Gerusa, Márcia e Eloi que sempre deram carinho e me acolheram nos momentos em que eu mais precisei.

A minha amiga Ana Maria que também foi meu vínculo familiar durante um tempo, dando atenção e carinho nesta jornada.

Aos professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela prazerosa convivência nesses anos de estudo.

A todas as mulheres portadoras de lúpus que colaboraram e permitiram a realização desse trabalho, pois sem o testemunho delas não seria possível esta produção.

Ao Hospital Universitário Onofre Lopes, na pessoa do Sr. Diretor Dr. Ricardo Lagreca, por autorizar a realização das entrevistas nessa instituição.

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A Dra. Maria José Villar, que contribuiu com o seu conhecimento sobre a doença (lúpus eritematoso sistêmico) e atuou como intermediária no contato com as mulheres que fizeram parte do estudo.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES pela concessão da bolsa de estudos.

A todos, muito obrigada.

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Sumário

Resumo ...................................................................................................................... Abstract ...................................................................................................................... Lista de figuras ......................................................................................................... Lista de tabelas ......................................................................................................... 1 - Introdução ............................................................................................................ 2 - Conhecendo o lúpus eritematoso sistêmico ..........................................................

2.1 - Definição e critérios de diagnóstico.............................................................2.2 - Implicações e tratamento do lúpus eritematoso sistêmico ..........................

2.3 - A gravidez em portadoras de lúpus eritematoso sistêmico .........................

3 - Implicações da doença crônica .............................................................................3.1- Convivendo com a doença crônica ..............................................................

3.2 - O apoio social como recurso para lidar com a doença ................................ 4 - Lúpus eritematoso sistêmico e os processos de significação ...............................

4.1- Subjetividade e doença ................................................................................. 4.2 - Trabalhando com os processos de significação ........................................... 5 - Métodos e estratégias de trabalho ........................................................................

5.1 - Aprofundando na subjetividade das pessoas portadoras de lúpus eritematoso sistêmico .........................................................................................

5.2 - Participantes ................................................................................................ 5.3 - Procedimento para a coleta e análise dos dados ..........................................

6 - Conhecendo os processos de significação e geração de sentidos em mulheres portadoras de lúpus eritematoso sistêmico ..........................................................6.1 - Conhecendo as participantes .......................................................................

6.2 - Experiência da doença ................................................................................. 6.2.1 - Surgimento dos primeiros sintomas até o momento do diagnóstico

e tempo de convivência com a doença ..................................................... 6.2.2 - Algumas atribuições que as mulheres fazem sobre o surgimento da doença...................................................................................................

6.2.3 - Mudanças e limitações decorrentes do lúpus eritematoso sistêmico . ...............................................................................................

6.3 - Conhecimento da doença ............................................................................ 6.3.1 - Leitura das recomendações médicas e dificuldades de adesão .................................................................................................

x

xi

xii

xiii

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6.3.2 - Observações sobre o que prejudica e o que ajuda no controle da

doença ....................................................................................................... 6.3.3 - Experiências influenciando na “visão” das mulheres acerca da

doença ...................................................................................................... 6.4 - Apoio social percebido ...............................................................................

6.4.1 - A impressão sobre as mudanças nas relações interpessoais ..............6.5 - Processos de significação e geração de sentidos em relação à doença ................................................................................................... 6.5.1 - Projetos de vida ...............................................................................

7 - Considerações finais .............................................................................................. 8 - Referências ...........................................................................................................

9 – Bibliografia ...........................................................................................................

Anexos

p Apêndices

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134136141

142148

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161 165

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Resumo

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença crônica e auto-imune, que pode atingir vários órgãos e sistemas do corpo, incluindo o sistema nervoso, gerando diversos quadros clínicos que se tornam uma ameaça à vida da pessoa. Embora a doença se manifeste em qualquer idade e sexo, estudos indicam maior incidência entre as mulheres. Sua etiologia aponta para a combinação de fatores genéticos, hormonais e ambientais. Devido à sua complexidade, fica explícito que afeta toda a vida da pessoa e não apenas a dimensão orgânica. Acredita-se que os sentidos atribuídos a todo o processo de adoecer, influenciam no tratamento do LES e na forma de lidar com as dificuldades e percalços implícitos nesse processo. Foram assim realizadas entrevistas em profundidade com oito mulheres portadoras de LES objetivando aprofundar nos processos de significação e geração de sentidos permeando o processo de adoecer dessas participantes. A análise dos discursos evidencia distintas formas de dar sentido ao adoecer, não sendo significativo o tempo de diagnóstico nesse processo. O fato da doença não ter cura foi um choque para todas as participantes, exigindo mudanças em suas vidas, a fim de manter um relativo controle da mesma. A maioria conseguiu lidar com essas modificações, criando estratégias para enfrentar as dificuldades e assim preservar sua vida social, sem trazer prejuízo a sua saúde. Entretanto, outras, não conseguem potencializar forças para conviver com a doença manifestando um constante estado depressivo. Observa-se assim que não é só o LES que tem inúmeras maneiras de se apresentar, mas a experiência da doença é algo muito subjetivo e dinâmico, tendo também diversas formas de expressão conforme as conseqüências advindas desse processo e suas implicações a partir do contexto social, cultural e econômico em que as participantes estão inseridas, ratificando assim, a necessidade de uma abordagem interdisciplinar que abarque essa complexidade. (300 palavras, 1.659 caracteres)

Palavras-chaves: lúpus eritematoso sistêmico; doença crônica; processos de significação.

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Abstract

Systemic lupus erythematous (SLE) is a chronic and auto-immune disease that can affect several systems of one´s body, including the nervous system, causing several clinical evidences, which can put in risk the person´s life. Although the illness could manifest itself at any age or sex, studies indicate higher incidence among women. Its etiology points to the combination of genetic, hormonal and environmental factors. Due to the disease´s complexity, it is evident that it affects all the person´s life as a whole and not only its organic dimension. It is believed that the signification attributed to all the process of sickening influences its treatment, as well as the person´s capacity to cope with the difficulties and implicit profits involved in the process.In this study, eight women who were affected by SLE were interviewed, with the aim of examining carefully the processes of signification as well as the generation of meanings which permeate these women´s sickening processes. The analysis of their speeches evidences distinct forms of giving meaning to the process, regardless of the time of the diagnosis. The fact that the disease is incurable was shocking to all the participants, and it demanded changes in their lives, in order to detain a relative control of their condition. The majority of the participants were able to deal with these modifications, since strategies have been created to face the difficulties and thus to preserve their social life, without damaging their health. However, some of the participants did not obtain strenght to cope with the disease, eventually developing a depressive state. It is observed that not only SLE has innumerable ways of manifestation, but the experience of the illness is very subjective and dynamic. There are also several ways of expressing this experience, according to the implications in the social, cultural and economic context where the participants are inserted. This ratifies the necessity of a interdisciplinary approach to embrace SLE complexity. (310 words, 1.610 characters) Key-words: systemic lupus erythematosus; chronic disease; process of signification.

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Lista de figuras

Nº Título Pág. 1 Fotossensibilidade 24 2 Lesão em vespertílio ou "asa de borboleta” 24 3 Erupção discóide 25 4 Lesões do lúpus cutâneo subagudo 25 5 Lesões bolhosas 26 6 Vasculite 26

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Lista de tabelas

Nº Título Pág. 1 Sintomas no lúpus em percentagem 23 2 Modos de enfrentamento 51 3 Identificação das participantes 100 4 Renda per capta 101 5 Situação profissional e ocupacional 103 6 Tempo de investigação, idade no diagnóstico e tempo de

diagnóstico

107 7 Principal sintomatologia apresentada no início e durante o curso

da doença

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1 - Introdução

É cada vez mais reconhecido que o processo de adoecer assume

diversas formas, tendo em vista, que cada indivíduo atribui um significado para esse

processo conforme características individuais, sócio-culturais, as peculiaridades da

doença e a rede de apoio que norteia a pessoa envolvida (Remen, 1993; Radley, 1994;

Edelmann, 2000). Esse fato também se aplica às pessoas portadoras de lúpus

eritematoso sistêmico (LES)1.

O LES caracteriza-se por ser uma doença crônica e auto-imune,

podendo atingir vários órgãos e múltiplas localizações2, gerando diversos quadros

clínicos cuja gravidade aumenta quando afeta os rins e conduz à insuficiência renal,

sendo uma ameaça à vida da pessoa (Moreira & Mello Filho, 1992). Tais implicações

requerem um cuidado constante e sistemático por parte da mesma, os quais

provavelmente alteram o seu cotidiano.

Estudos epidemiológicos apontam que o LES apresenta maior

incidência no sexo feminino, em mulheres jovens e, principalmente, em idade fértil,

podendo ocorrer em qualquer idade, numa proporção de nove a dez mulheres para cada

homem (Zerbini & Fidelix, 1989).

Não há na literatura uma uniformidade acerca da idade em que a

doença emerge, entretanto, os autores acima, mencionam a maior incidência em

mulheres entre os 16 e 30 anos, enquanto que Sato (1999) indica a incidência entre os

1 A partir deste trecho, será utilizada a abreviação LES para falar de lúpus eritematoso sistêmico. 2 Maiores informações acerca da sintomatologia e implicações serão aprofundadas no capítulo 2.

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15 e 45 anos. O fato é que a doença surge no período em que a mulher se encontra em

plena atividade, tanto em nível reprodutivo como profissional. Pode-se acrescentar,

ainda, que o LES não é uma doença específica de um determinado grupo étnico ou

social e que ocorre em qualquer parte do mundo (Sato et al, 2002).

No Brasil, de acordo com Sato (1999), não há estudos

epidemiológicos mostrando a incidência de LES na população3; enquanto que nos

Estados Unidos, estima-se que, uma pessoa em cada 2000 apresenta a doença (Zerbini

& Fidelix, 1989). Contudo, na cidade de Natal, em estudo realizado por Villar e Sato

(2001), a incidência de LES é de 8,7/100.000/ano que, de acordo com a literatura,

parece ser maior que em outras partes do mundo, podendo chegar ao dobro quando

comparada com outras pesquisas. Segundo as autoras, a permanente presença de luz

solar, com alto índice de raios ultravioleta nessa região de clima tropical, favorece o

elevado número de casos de pessoas portadoras de lúpus.

Foi também confirmada, na pesquisa citada, a elevada ocorrência do

LES no sexo feminino, a qual apresentou maior preponderância entre as mulheres

(14,1/100.000/ano) em comparação aos homens (2,2/100.000/ano)4. A visível

prevalência do LES em mulheres, tanto em Natal quanto em outros estudos, justifica a

escolha do sexo feminino para compor a amostra do presente trabalho.

O interesse em investigar pessoas portadoras de LES surgiu a partir de

uma experiência como colaboradora do projeto de extensão: “Assistência Psicológica no

3 Foi pesquisado na Sociedade Brasileira de Reumatologia e no site do Ministério da Saúde e não foram encontrados, até o momento, dados epidemiológicos no Brasil. O que vem a confirmar a informação de Sato (1999). 4 De acordo com a literatura, a elevada incidência em mulheres ocorre em virtude da presença do hormônio feminino (estrógeno), que alterado em seu metabolismo influencia o desenvolvimento da doença. Portanto, os estudos existentes, limita-se a aspectos biológicos, sem fazer qualquer alusão à categoria social de gênero. Um estudo que abarque essa possível relação entre LES e gênero é pertinente, contudo, este trabalho não fará menção a esse aspecto, uma vez que não é nosso objetivo.

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Hospital Geral”, realizado no Hospital Universitário Onofre Lopes.5 Neste, fiquei

responsável em atender mulheres internadas na 13ª enfermaria, que contemplava

patologias da cardiologia, pneumologia, endocrinologia e nefrologia.

No decorrer do projeto, deparei-me com casos de lúpus. Algumas

mulheres que se internavam para realizar tratamento (pulsoterapia – altas doses de

cortisona aplicadas na veia por três dias consecutivos), outras ainda não tinham o

diagnóstico mas, sua sintomatologia, apontava para lúpus. Dentre essas, pude

acompanhar o caso de uma moça que vivia numa região praiana e turística, onde levava

uma vida muito agitada, trabalhando e divertindo-se, a ponto de negligenciar suas noites

de sono e descuidar da alimentação, no intuito de “não perder tempo” e viver ao

máximo, conforme o relato da mesma. Seu histórico médico, revelou que alguns dos

sintomas apresentados nessa internação, já eram reincidentes, ou seja, foram

manifestados em outro período e que nessa ocasião, ela não teve os devidos cuidados,

visto que não procurou por um especialista alegando que não gostava de ir ao médico.

Na recente hospitalização, sua rotina teve que ser interrompida com o

aparecimento de diversos sintomas, tais como inchaço, escurecimento e vermelhidão na

pele, diarréia crônica, derrame pleural, psicose, entre outros que conduziram ao

diagnóstico de LES. Conseqüentemente, a mesma, viu-se na necessidade de rever

comportamentos e hábitos, visando seu restabelecimento e controle da patologia.

Diante desse contexto, eminentemente psicossocial, com o qual me

deparei, surgiram algumas inquietações sobre o processo de adoecer de mulheres

portadoras de LES. Como seria para aquela mulher modificar o seu estilo de vida, já que

isso era condição básica para manter a doença sob controle? Quão difícil seria abdicar

de alguns comportamentos, como evitar exposição solar, considerando que essa nova 5 A patir desse trecho, sempre que for mencionado o Hospital Universitário Onofre Lopes, será utilizada a abreviação HUOL.

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condição estava diretamente relacionada com o seu trabalho no ramo de turismo e local

em que residia: Fernando de Noronha.

A mudança em sua vida, ou seja, o comportamento que a mesma teria

que assumir de agora em diante, como evitar exposição aos raios ultravioletas, fazer

dieta, evitar tabagismo, bebida alcoólica entre outros, de fato, dependeria dos processos

de significação e geração de sentido que ela assumiria com relação a forma de

manifesto da doença.

Acredita-se que os sentidos atribuídos pela pessoa, acometida pela

doença crônica, podem influenciar no tratamento da mesma e na forma de lidar com as

dificuldades e percalços implícitos nesse processo. Não basta, portanto, manter o foco

apenas na doença e em mantê-la controlada através de medicamentos. É preciso,

concomitantemente, considerar a subjetividade da pessoa portadora. Essa idéia

corrobora com a afirmação de Remem (1993) :

No esforço de aplicar a ciência nos cuidados com a saúde, o sistema tendeu a separar a doença dessa estrutura de referência e considerou-a isoladamente, sem levar em conta a pessoa que sofre com ela ou o ambiente que, em parte, a encorajou ou provocou. Basicamente, deve-se alcançar um equilíbrio entre as duas necessidades científicas: a necessidade de conhecer e compreender a situação específica e a pessoa específica como elas realmente são (p. 26).

A complexidade envolvida no processo de adoecer leva autores como

Rodríguez-Marín (1995), a apontar a importância de estudos psicossociais acerca da

doença crônica, os quais incorporam a perspectiva da pessoa, tentando compreender a

doença como um fenômeno em sua totalidade, ou seja, considerando não só o biológico

mas, também, o psicológico e o social. Reconhece-se que essas dimensões são afetadas

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pela doença e para que o biológico se regularize e/ou se equilibre é preciso observar a

permanente interdependência existente entre elas.

Diante do exposto, tem-se como objetivo aprofundar nos processos de

significação e produção de sentidos que as mulheres portadoras de lúpus eritematoso

sistêmico têm sobre a sua doença e estudar as diferentes formas como esses processos se

expressam na forma de lidar com as implicações da mesma. Considera-se importante

esse tipo de estudo, já que, se as pessoas afetadas não assumem os cuidados necessários

para manter a doença sob controle6, a tendência é que haja o desencadeamento das

crises (retorno dos sintomas); sendo relevante conhecer como compreendem a sua

doença e o seu adoecer.

Portanto, estar atento aos processos de significação e produção de

sentidos dessas pessoas, ajudará as possíveis intervenções que serão desenvolvidas tanto

pela equipe de saúde como por elas mesmas, para melhor enfrentar a condição de ter

uma doença crônica. Por exemplo, se uma portadora de LES acredita que ter doença

crônica representa tornar-se inútil, ou seja, incapaz de realizar suas tarefas cotidianas,

pode fazer com que esta tenha uma atitude negativa com relação à sua situação e

conseqüentemente não aceite as orientações médicas.

Assim sendo, cabe a equipe perceber e compreender esse processo para

que o tratamento possa ser efetivado. Está implícito que a pessoa deve aprender a “viver

com a doença em um mundo de saudáveis” como cita Radley (1994), ou melhor, de

pessoas consideradas sadias, no sentido de não ter o seu estado físico afetado por uma

patologia; sendo imprescindível os cuidados permanentes, pois ao negligenciar sua

situação, a doença pode se agravar a qualquer momento trazendo danos irreversíveis.

6 Esses cuidados serão explorados no capítulo 2.

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De acordo com Radley (1999), é importante considerar as diversas

dimensões que estão implícitas na dinâmica do adoecer, tendo em vista que o indivíduo

ocupa simultaneamente diferentes esferas da vida; isto é, a pessoa que passa a

experienciar a doença não anula outras condições pré-existentes, como por exemplo, ser

filha, mãe, esposa e trabalhadora. Ao contrário, a mesma inclui a essas funções, a

condição de ser também uma pessoa acometida por uma enfermidade.

Conseqüentemente, essa nova realidade refletirá nos demais campos da vida a partir dos

sentidos atribuídos à doença e suas implicações.

Certamente que o não assumir a condição de ser portadora de LES se

contrapõe à finalidade do tratamento da patologia, o qual consiste em permitir uma

longa e produtiva vida às pessoas, como assinala Sato (s/d). Entretanto, acredita-se que

a eficácia deste tratamento e conseqüente vida produtiva dependerão também do

contexto social, nível econômico, cultural e as relações interpessoais estabelecidas pela

pessoa.

Nas fases assintomáticas ou períodos de remissão, por exemplo, não

basta o médico dizer à pessoa que ela está bem, simplesmente porque os sintomas

desapareceram. Segundo Radley (1994), “isso nos dá uma visão não do ponto de vista

da paciente, mas, do ponto de vista do médico, o qual não pode explicar a variedade de

experiências que são tão importantes para a doença crônica” (p. 140). É preciso que a

mesma vivencie esse bem-estar e um relativo controle da situação. Portanto, é

importante considerar a subjetividade dela em função de toda a sua situação vivencial.

Como já exposto, os sentidos atribuídos pela pessoa podem interferir no tratamento e

evolução da doença, sendo esta investigação, necessária em virtude da gravidade

apresentada pelo LES, o qual pode atingir vários órgãos e ter múltiplas localizações,

além de ser fatal à pessoa.

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O fato do LES acarretar ainda problemas no sistema nervoso,

principalmente, a ocorrência de depressão e psicose, é outro aspecto que justifica o

interesse de um profissional de psicologia a ingressar nas especificidades desta doença.

Isto é, a própria sintomatologia, requer do psicólogo um maior conhecimento e

compreensão de como ocorre esse processo de adoecer.

Acredita-se que essa junção entre medicina e psicologia social, através

dos processos de significação e produção de sentidos, constitui uma abordagem possível

e, principalmente, necessária ao campo da saúde.

A fim de atingir o objetivo, esta produção está estruturada de forma

que o leitor possa, através do capítulo 2, (Conhecendo o lúpus eritematoso) saber um

pouco da sintomatologia da doença, critérios de diagnóstico, implicações e tratamento

da mesma e como o LES reflete na gravidez.

No capítulo 3 (Implicações da doença crônica) faz-se essa ponte

necessária entre conhecimento médico e psicologia social, abordando os aspectos

psicossociais oriundos da condição de ser acometida por uma doença crônica; bem

como, as possíveis formas como essas pessoas lidam com a doença. Ainda será

destacada a relevância do apoio social.

No capítulo 4 (Lúpus eritematoso sistêmico e os processos de

significação), ressalta-se a estreita relação entre a singularidade da pessoa portadora e a

doença. Além de discutir acerca dos processos de significação e produção de sentidos

que norteiam a dinâmica do adoecer.

No capítulo 5 (Método e estratégias de trabalho), será explicitada a

nossa amostra e como ocorreu a coleta dos dados, assim como, a estratégia de análise

aplicada.

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No capítulo 6 (Conhecendo os processos de significação e produção de

sentido das mulheres portadoras de lúpus eritematoso sistêmico), destaca-se os dados

que foram obtidos, articulando-os com todo o referencial teórico que embasou nosso

trabalho.

Finaliza-se com o capítulo 7 (Considerações finais), no qual enfatiza-se

alguns pontos relevantes encontrados na pesquisa, sem acreditar que esses sejam um

ponto final de discussão e reflexão, sendo apenas um recomeço e possibilidade para

novas descobertas e saberes.

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2 - Conhecendo o lúpus eritematoso sistêmico

2.1 - Definição e critérios de diagnóstico

Zerbini e Fidelix (1989) referem que por volta de 1851 o médico

francês Pierre Cazenave, constatou em várias pessoas a presença de lesões

avermelhadas na face que cobriam o nariz e as bochechas, causando “feridinhas”.

Comparou-as as mordidas de lobo, dando à doença o nome de lúpus eritematoso (lúpus

= lobo, eritematoso = vermelho).

O lúpus eritematoso é uma doença inflamatória, auto-imune, que

pode atingir múltiplas partes do corpo, principalmente a pele, as juntas, sangue e rins;

podendo causar sérios problemas ao longo da vida. O sistema imunológico produz

anticorpos para proteger o organismo de antígenos (corpos estranhos). Havendo uma

desorganização imunológica, o sistema defensivo perde sua capacidade de distinguir

entre os antígenos e as células e tecidos do próprio corpo. Desse modo, o sistema

imunológico direciona anticorpos, contra si mesmo, que reagem com antígenos próprios

formando complexos imunológicos que crescem nos tecidos e podem causar

inflamação, danos e dores (Zerbini & Fidelix;1989).

As doenças auto-imunes, como é o caso do LES, são essencialmente

multifatoriais; assim sendo, acredita-se ser importante considerar o estresse, o qual

“compreende um conjunto de reações e estímulos que causam distúrbios no equilíbrio

do organismo, freqüentemente com efeitos danosos” (p.121); bem como, os fatores

psicossociais (problemas conjugais, situações de perda, estados depressivos entre

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outros) no seu desencadeamento, evolução, agravamento e controle da doença (Moreira

& Mello Filho, 1992). Portanto, o estresse e os fatores psicossociais aumentam a

complexidade do desenvolvimento e exacerbação da doença, tornando imprescindível

uma intervenção interdisciplinar no atendimento às pessoas portadoras de LES.

Normalmente, a pessoa portadora de lúpus se queixa de cansaço, dores

e inchaço nas juntas, febre baixa, diminuição do apetite com perda de peso e depressão,

entre outros sintomas conforme ilustrado na tabela abaixo (Zerbini & Fidelix, 1989).

Tabela 1: Sintomas no lúpus em percentagem

Sintomas Percentagem Artrite 90 Febre 83 Pele 74 Vermelhidão em “asa de borboleta” 42 Fotossensibilidade 30 Queda de cabelo 27 Fenômeno de Raynaud (coloração de mãos e pés)7 17 Feridinhas no nariz e na boca 12 Outros 23 Perda de peso 74 Problemas renais 53 Problemas pulmonares 47 Problemas cardíacos 46 Aumento de gânglios 46 Problemas neurológicos 32

Psicose 17 Convulsão 15

Fonte: (Zerbini & Fidelix, 1989)

Os sintomas manifestados na pele apresentam-se de diversas formas

como mostra a tabela, os quais dependendo do tipo e da intensidade podem deixar

cicatrizes. No intuito de ficar mais claro essa sintomatologia, a seguir serão mostradas

algumas fotos para que o leitor possa compreender melhor o que essa doença pode vir a

representar na vida da pessoa portadora.

7 Esse fenômeno é explicado no decorrer desse capítulo quando fala das implicações e tratamento do LES.

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Foto 1: fotossenssibilidade8

Foto 2: lesão em vespertílio ou "asa de borboleta" 9.

8 Foto retirada do site: www.cerir.org.com.br 9 Foto retirada do site: http://ioh.medstudents.com.br/nefrite.html

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Foto 3: Erupção discóide 10

Foto 4: Lesões do lúpus cutâneo subagudo11.

10 Foto retirada do site: www.cerir.org.com.br 11 Foto retirada do site: www.cerir.org.com.br

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Foto 5: Lesões bolhosas12.

Foto 6: Vasculite13.

12 Foto retirada do site: www.cerir.org.com.br 13 Foto retirada do site: www.cerir.org.com.br

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Tendo em vista que esses sintomas também fazem parte da

sintomatologia de outras doenças, torna-se difícil para o médico concluir o diagnóstico

de lúpus.

O lúpus é uma doença de etiologia pouco esclarecida, cujo

desenvolvimento está relacionado à predisposição genética, sendo desencadeada por

fatores hormonais e ambientais como infecções, uso de antibióticos, exposição aos raios

ultravioleta, estresse excessivo e alguns medicamentos (Zerbini & Fidelix,1989; Sato et

al, 2002).

Segundo Sato (1999), é a combinação desses fatores em pessoas

geneticamente predispostas que pode gerar um desequilíbrio no sistema imunológico,

favorecendo assim o surgimento do lúpus. Assim sendo, vários pesquisadores acreditam

na possibilidade do LES ser herdado. Desse modo, a constatação da doença nos pais ou

avós, não quer dizer que a criança terá a doença, entretanto, há uma probabilidade de

que a mesma seja mais propensa a manifestar o LES. Familiares de pessoas portadoras

de LES podem ter a doença numa freqüência de até 5%, isto é, a cada 100 parentes 5

apresentam elevada tendência a ter a doença. E entre os filhos de pessoas portadoras de

LES cerca de 4% desenvolvem a doença (Zerbini & Fidelix, 1989).

O lúpus pode ocorrer em qualquer idade e sexo; ou seja, pode acometer

homens, mulheres, crianças e idosos. Contudo, Sato (1999) assinala que 90% dos casos

ocorrem em mulheres. Esta maior incidência nas mulheres sugere que o hormônio

feminino (estrógeno) tem um papel no aparecimento do LES, entretanto, faz-se

necessário mais estudos nessa área no intuito de estabelecer qual o real papel

desempenhado por esta substância (Zerbini & Fidelix, 1989).

O diagnóstico do LES é feito através da avaliação das características

clínicas da pessoa e de exames como o hemograma e análise da urina, além de exames

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especializados que avaliam o sistema imunológico, dentre eles: o Fator Antinúcleo-

FAN, células LE14, anticorpo anti-DNA, anticorpo anti-Sm15, dosagem de

imunocomplexos e dosagem do complemento. Contudo, o resultado positivo desses

exames especializados não significa que a pessoa tenha LES, uma vez que em outras

doenças o resultado pode ser também positivo. Há casos em que é necessária a

realização de biópsia, na qual consiste a análise de um fragmento do órgão que foi

afetado pela doença (Zerbini & Fidelix, 1989).

Diante das dificuldades já colocadas para diagnosticar o LES, a

Sociedade Americana de Reumatologia (1982, citada por Zerbini & Fidelix, 1989)

listou 11 critérios, ou seja, sinais e sintomas que auxiliam a diferenciar o LES de outras

doenças. São os seguintes:

1) Vermelhidão em “asa de borboleta”;

2) Lúpus discóide;

3) Fotossensibilidade: lesão de pele devido à exposição a luz solar ou luz ultravioleta;

4) Úlceras orais: feridas na boca e nariz, normalmente indolor;

5) Artrite: inflamação de duas ou mais juntas;

6) Serosite: inflamação da pleura ou pericárdio;

7) Alterações renais: elevado nível de proteína na urina ou de cilindros no exame de

urina;

8) Alterações neurológicas: convulsão ou psicose;

9) Alterações hematológicas: anemia hemolítica (causada por anticorpos contra as

células vermelhas) ou leucopenia (redução de células brancas) ou linfopenia

14 Células LE são células brancas presentes no sangue e chamadas de neutrófilos. 15 Sm foi o nome dado a uma proteína encontrada em uma pessoa portadora de LES de sobrenome Smith, constatando-se que apenas em portadores de LES era possível a presença desse anticorpo.

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(redução de linfócitos que participam do sistema imunológico) ou trombocitopenia

(diminuição das plaquetas);

10) Alterações imunológicas: células LE positivas; ou anticorpos anti-DNA positivos;

ou anticorpos anti-Sm positivos ou presença de teste falso-positivo16 para sífilis

(VDRL);

11) Fator antinúcleo positivo.

A pessoa terá o diagnóstico de LES caso apresente pelo menos quatro

destes sintomas, os quais podem ocorrer simultaneamente ou separadamente no decorrer

da doença. Contudo, embora pouco freqüente, há pessoas portadoras de LES que não se

enquadram nesse padrão estabelecido (Sato et al, 2002).

Existem basicamente três tipos de lúpus: lúpus discóide, lúpus

induzido por drogas e o lúpus sistêmico. Segundo Provost (2001), o termo discóide quer

dizer forma circular e estas lesões normalmente surgem em áreas da pele expostas ao

sol, aparecendo sobre a parte central da face e nariz, produzindo a característica lesão

em forma de “asa de borboleta”. Ocasionalmente, podem ocorrer no couro cabeludo,

gerando uma calvície localizada (alopecia). Essas lesões discóides podem desenvolver

crostas grossas e escamosas que também ocorrem na presença de espessamento

(enduração profunda) das camadas da derme, a que chamamos lupus profundus.

O lúpus induzido por drogas ocorre devido ao uso de medicamentos,

mais comumente a hidralazina (controle da hipertensão arterial) e procainamida

(controle do ritmo cardíaco). Contudo, isso não significa que o uso dessas drogas

necessariamente conduz ao surgimento deste tipo de lúpus.

16 O teste falso-positivo significa que apesar do resultado positivo, a pessoa não tem e nunca teve sífilis.

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O tipo sistêmico caracteriza-se pela gravidade em que geralmente são

afetados os órgãos (rins, fígado, coração, pulmões) e sistemas do corpo, fato que exige

maior controle da pessoa portadora de LES para manter as funções normais e evitar a

recorrência dos sintomas.

2.2 - Implicações e tratamento do lúpus eritematoso sistêmico

Os sintomas e as implicações decorrentes do LES são inúmeros.

Conforme assinala Stevens (2001) dentre os sintomas mais comuns estão as dores nas

juntas (artralgia) e nos músculos (mialgia), ocorrendo em 90% dos casos. Normalmente,

as dores nas juntas e nos músculos podem parecer com outras doenças viróticas ou

como se fosse uma gripe. Há pessoas que podem apresentar sintomas característicos da

artrite, isto é, as juntas além de ficarem doloridas também ficam inchadas (artrite),

quentes e sensíveis. E no caso dos músculos, podem manifestar ainda inflamação

(miosite) gerando uma fraqueza progressiva.

A artralgia pode ocorrer em qualquer período durante o

desenvolvimento do LES e durando vários dias ou semanas e depois cessam, retornando

tempos depois. As juntas mais atingidas são aquelas que estão mais distantes do tronco

como dedos, punhos, cotovelos, joelhos e tornozelos; e, geralmente, são afetadas

simultaneamente.

A artrite lúpica caracteriza-se por apresentar rigidez e dores pela

manhã que tendem a melhorar no decorrer do dia; entretanto, no final do dia, devido ao

cansaço, as dores voltam. Dores nas costas ou no pescoço não são decorrentes da artrite

lúpica, tendo em vista que a espinha não é acometida pelo lúpus. Ademais, normalmente

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essa inflamação não causa deformidades ou destruição das juntas como ocorre na

ósteoartrite.

O tratamento da artrite lúpica é feito, usualmente, com medicamentos

anti-inflamatórios (ex.: aspirina, ibuprofen) e não-esteróides. Geralmente essas

medicações são suficientes; contudo, pode-se adicionar, também, os antimaláricos como

a hidroxicloroquina (Plaquinol) e os corticosteróides (Prednisona), mas, somente nos

casos em que as juntas permanecem inchadas e doloridas apesar do uso de outros

tratamentos (Stevens, 2001).

O mesmo autor afirma que os músculos da pessoa portadora de LES

podem ser gravemente danificados pela doença, podendo resultar em fraqueza e perda

da resistência, caso não seja dado um tratamento adequado no início da doença.

Normalmente são afetados o pescoço, pélvis, coxas, ombros e membros superiores.

O corticóide (Prednisona) é a medicação mais adequada para o

tratamento da miosite lúpica. São prescritas altas doses (50mg ou mais por dia) para

suprimir e controlar a inflamação, quando esta cessa, a dosagem é gradualmente

reduzida. Quando a fase inflamatória aguda passa, a pessoa portadora de LES deve

elaborar um programa de exercícios a fim de auxiliá-la na recuperação da resistência

muscular normal e suas funções.

O lúpus também afeta os vasos sanguíneos, dando origem às chamadas

vasculites: cutânea e de mucosas. A primeira, ocorre geralmente na ponta dos dedos;

porém, também pode aparecer na face e no couro cabeludo. Enquanto que a segunda

(mucosa), tende a limitar-se à mucosa oral e, normalmente, apresenta-se como pequenas

úlceras indolores no palato (Meinão, Assis & Sato, 1999).

Há também, o fenômeno de Raynaud em que os vasos sangüíneos

respondem com maior intensidade a estímulos como o frio ou as emoções. Essa resposta

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aumentada dos vasos sangüíneos (vasoconstrição ou vasodilatação), provoca mudanças

temporárias na coloração de mãos e pés. Um exemplo disso é o frio, o qual gera

vasoconstrição, ou seja, diminuição do volume sanguíneo que chega a uma determinada

região, produzindo uma coloração branca. Esse fenômeno não é específico do lúpus,

tendo maior ocorrência em outras doenças reumáticas como a esclerodermia (Meinão,

Assis & Sato, 1999).

A inflamação dos rins em virtude do lúpus é chamada de nefrite

lúpica e ocorre em cerca de 50% dos casos, segundo dados apontados por Meinão, Assis

e Sato (1999). Klippel e Glunz (2001), afirmam que existem poucos sinais ou sintomas

da nefrite lúpica, pois a mesma não causa dor no abdômen ou nas costas e nem dor ou

ardor ao urinar. Porém, a perda de proteína na urina pode conduzir a retenção de fluidos

gerando ganho de peso e inchaço nas pernas, tornozelos e/ou dedos, os quais

freqüentemente caracterizam o primeiro sintoma da nefrite lúpica que é comum e,

normalmente, não exige uma avaliação ou tratamentos especiais. Entretanto, há casos

em que as alterações na urina permanecem e podem piorar correndo o risco de

apresentar falência renal, fato que requer o suporte da função renal através da diálise

artificial (hemodiálise) ou diálise peritoneal.

De acordo com Meinão, Assis e Sato (1999), quando ocorre

insuficiência renal, a pessoa portadora necessita fazer dieta sem sal, bem como,

restrição de líquidos no intuito de diminuir o inchaço. Ademais, deve diminuir a

ingestão de proteína e potássio, uma vez que elevam a presença de substâncias tóxicas

no organismo.

É importante esclarecer que os medicamentos utilizados no controle

do lúpus podem gerar sinais e sintomas de problemas renais que se confundem com a

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nefrite lúpica, nesses casos, a suspensão da medicação permite o desaparecimento dos

sintomas.

De acordo com Chartash (2001), o lúpus pode atingir todas as partes

do coração (pericárdio, miocárdio, endocárdio e artérias coronárias). A inflamação no

pericárdio (pericardite) é a doença mais comum em pessoas afetadas pelo lúpus,

podendo ou não gerar dores no peito. Entretanto, como essa inflamação pode ser

causada por outras doenças, é importante que o causador seja identificado antes que o

tratamento seja iniciado, em virtude do mesmo ser diferente quando a pericardite é

causada pelo lúpus. Quanto ao miocárdio, não há registro de sérios problemas em

pessoas portadoras de lúpus, a miocardite normalmente está associada a inflamações em

outros músculos do corpo. No caso do endocárdio, pode haver prejuízo nas válvulas

cardíacas (engrossamento da superfície ou desenvolvimento de protuberâncias)

causando sopro no coração, porém dificilmente interfere na capacidade de bombear

sangue. Caso haja alojamento de bactérias nas protuberâncias, ocorre uma endocardite

bacteriana, que também é rara, mas, séria e requer hospitalização. Importante ressaltar

que a inflamação e danos nas válvulas geralmente não conduzem a transplantes.

No caso da pessoa portadora de lúpus, as artérias coronárias que

conduzem sangue e oxigênio para o músculo cardíaco, podem ficar estreitas devido à

inflamação (artrite), depósito de colesterol nas paredes arteriais (arteriosclerose) ou por

coágulos sangüíneos. Entretanto, a arteriosclerose é a causa mais freqüente de

problemas coronários no lúpus. Esse estreitamento pode causar dores no tórax e ataque

cardíaco. Tais prejuízos no coração podem ser oriundos da inflamação causada pelo

lúpus ativo (doença em atividade) ou, também, pelo uso de medicamentos.

O lúpus pode causar anemia, tendo em vista que diminui a produção

de células vermelhas do sangue. De acordo com Meinão, Assis e Sato (1999),

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normalmente não é por falta de ferro que ocorre a anemia em pessoas portadoras de

lúpus; além disso, a anemia tende a regredir quando o LES não está em atividade. A

anemia gera na pessoa cansaço, sonolência e indisposição; e caso seja intensa, poderá

causar falta de ar e palpitações.

O envolvimento do sistema nervoso, como assinala Hanly (1991),

ocorre em cerca de 75% das pessoas portadoras de LES, apresentando várias

manifestações clínicas, entre elas: convulsões, perda de sensibilidade, disfunção de

habilidades motoras, depressão, psicose (alucinações e ilusões) e síndrome orgânica do

cérebro. Esta se caracteriza por uma deterioração abrupta ou gradual da memória, da

orientação e da concentração, as quais não são necessariamente permanentes, ocorrendo

em algum momento do curso da doença em até 50% das pessoas portadoras; contudo,

estas alterações podem não afetar a habilidade das pessoas portadoras de LES de manter

um estilo de vida relativamente normal.

De acordo com Zerbini e Fidelix (1989), tanto a psicose como a

depressão são anormalidades neuropsiquiátricas mais freqüentes, que podem ou não

acompanhar outros sintomas do LES. Segundo os autores, existem dois tipos de psicose:

a orgânica e a não-orgânica. A primeira é proveniente de algum prejuízo cerebral, sendo

caracterizada por distúrbios de orientação, percepção, memória, função intelectual e

julgamento. Normalmente, a psicose orgânica está associada a outros problemas

neurológicos, enquanto que a não-orgânica caracteriza-se por alterações afetivas como

profunda depressão, freqüente e grave em pessoas portadoras de LES e a ansiedade.

Em virtude desta classificação (psicose orgânica e não-orgânica),

geralmente, torna-se difícil para o médico distinguir quando o problema é orgânico ou

afetivo (Zerbini & Fidelix, 1989).

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Ressalta-se ainda que, apesar do uso dos corticosteróides no tratamento

do LES possa provocar psicose, tal ocorrência é pouco freqüente e a presença desse

sintoma evidencia, na maioria dos casos, que o LES está em atividade. Diante da

dificuldade em diferenciar atividade da doença (psicose lúpica) e o efeito colateral do

corticosteróide (psicose induzida), sugere-se duplicar a dosagem da medicação durante

três dias e observar. Caso a psicose se mantenha ou piore, isso indica que ela pode estar

sendo causada pelo remédio (Zerbini & Fidelix, 1989, Sato, 2001).

Além dos sintomas neuropsiquiátricos, as pessoas portadoras de LES

também são acometidas de sofrimento psicológico. De acordo com Dobkin et al (1999),

em estudo realizado com 129 mulheres, concluiu-se que pessoas portadoras de LES

mais ativo mostraram maior sofrimento psicológico. Igualmente, os autores em um

outro estudo realizado por Adams et al (1994, citados por Dobkin et al, 2001), revelou

que estresse, depressão e ansiedade prediziam dores articulares; enquanto que estresse,

depressão e raiva prediziam dor abdominal e elevação da temperatura; e estresse

predizia sérias erupções cutâneas.

Portanto, fica clara a interdependência tanto de sintomas físicos como

psicológicos nas pessoas portadoras de LES, sugerindo a necessidade de uma assistência

multi e interdisciplinar no tratamento da doença.

Shapiro (2001) destaca a importância de se fazer uma distinção entre

depressão clínica e pequenas alterações de humor experimentadas diariamente por

todos. A doença depressiva clínica constitui-se como um prolongado e desagradável

estado de incapacidade, a qual pode apresentar uma gama de sintomas físicos e

psicológicos como tristeza, melancolia, ansiedade, irritabilidade, sentimentos de culpa,

baixa auto-estima, incapacidade de concentração, déficit de memória, falta de interesse

pelas coisas que gostava e pessoas com quem convivia, dor de cabeça, inapetência,

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indigestão, diminuição na performance sexual dentre outros. Isto não significa que toda

pessoa que tem depressão manifeste todos os sintomas.

As pessoas são consideradas clinicamente deprimidas quando

apresentam mau humor, distúrbios do sono e inapetência e, pelo menos, cerca de um ou

dois dos sintomas citados acima durante várias semanas ou intensas o bastante de modo

a alterar o cotidiano das pessoas. O grau de depressão pode ser observado a partir dos

seguintes aspectos: sensação de fracasso, perda do interesse social, sentimento de

punição, pensamentos suicidas, insatisfação, indecisão e choro.

Segundo Shapiro (2001) o fato das pessoas serem portadoras de

doença crônica tende a criar uma noção distorcida de que essas pessoas têm razões para

se sentirem deprimidas em virtude da doença. Essa crença impede a realização de um

diagnóstico precoce, num tratamento iniciado o mais rápido possível e num alívio da

depressão clínica.

Estudos realizados por médicos e psiquiatras, afirma Shapiro (2001),

indicam que 15% das pessoas com doenças crônicas são acometidas de depressão

clínica. Outros estudos aumentam essa porcentagem para 60%. Efetivamente, a

depressão muitas vezes passa despercebida, uma vez que a mesma apresenta uma

sintomatologia que pode fazer parte de diversas doenças, como acontece no caso do

LES, em que a pessoa portadora se queixa de insônia, aumento nas dores, redução do

apetite, dentre outros, os quais podem ser atribuídos ao próprio LES e não à depressão

clínica. Essa similaridade de sintomas, por vezes, torna-se difícil identificar e tratá-la

adequadamente.

Segui et al (2000) desenvolveram um estudo com o objetivo de

analisar desordens psiquiátricas e disfunções psicossociais em 20 mulheres portadoras

de lúpus durante o período de atividade da doença e subseqüente inatividade da mesma.

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As portadoras eram tratadas com corticóides e nenhuma delas tinha história de

desordens psiquiátricas. Nesse estudo, observou-se que o nível de depressão era o

mesmo, ou seja, não havendo diferenças significativas durante o período agudo da

doença e um ano depois quando o lúpus estava inativo.

Esse dado revela que outros fatores podem estar contribuindo para o

surgimento da depressão, não sendo preponderante o fato dela estar em atividade.

Shapiro (2001) já havia feito menção sobre esse aspecto, salientando ainda que a causa

mais freqüente é o impacto emocional causado pelo estresse associado à adaptação a

doença crônica e à condição médica. Não esquecendo ainda que o envolvimento de

certos órgãos como o cérebro, o coração e os rins também podem levar à depressão;

bem como, o uso de medicamentos utilizados no tratamento do LES. O que aponta a

dificuldade de definir uma etiologia específica com relação aos sintomas.

As desordens psiquiátricas não são específicas de pessoas portadoras

de LES, uma vez que a ocorrência dessas desordens também emerge de outras

patologias que se configuram para a pessoa como sendo um evento estressante (Segui et

al, 2000).

Portanto, se a depressão fosse exclusivamente um efeito do remédio, a

pessoa portadora poderia apresentar um quadro depressivo desde o início da doença, já

que na maioria dos casos, estas iniciam seu tratamento medicamentoso a partir da

constatação do diagnóstico, no intuito de controlar a doença, isto é, para que os

sintomas não retornem ou a doença evolua.

Grande parte das crises depressivas em pessoas portadoras de LES tem

curta duração, desaparecendo por alguns meses; entretanto, devem ser tratadas com a

mesma agressividade e persistência com que se trata uma crise lúpica ou qualquer outra

patologia. Normalmente, a recuperação da depressão é gradual; por isso, quando os

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sinais e sintomas da depressão parecem desaparecer, o medicamento não deve ser

interrompido por cerca de seis meses ou mais e a dosagem deve ser reduzida

gradualmente por três a quatro semanas, quando o tratamento é suspenso.

Segui et al (2000) indicam ainda em seu estudo que desordens

psiquiátricas como sofrimento psicológico, ansiedade, depressão, deterioração cognitiva

e outros sintomas como dor e incapacidade física, encontram-se em níveis maiores

durante a fase aguda da doença e que normalmente são amenizados quando o LES fica

inativo. No período de atividade da doença ocorre também um funcionamento geral

mais baixo que envolve cuidado pessoal, locomoção, destreza, comunicação e

disposição do corpo, bem como, menor atividade ocupacional. Havendo diferença

pouco significativa quando se trata da incapacidade física.

Steim et al (1986, citados por Segui et al, 2000) revelam que 17%

das pessoas portadoras de lúpus recebem uma pensão por inaptidão ocupacional, 52%

trabalham em regime parcial, tendo uma moderada mudança no estilo de vida e 32%

trabalhou em tempo integral e não alterou suas atividades durante as fases agudas da

doença.17 Conforme Segui et al (2000), a dor parece ser o sintoma mais importante nos

episódios agudos, prejudicando assim tanto o funcionamento geral como a atividade

ocupacional.

O tratamento do LES deve ser personalizado e dependerá, além da

gravidade, dos órgãos ou sistemas acometidos. No caso de pessoas com envolvimento

multisistêmico, o tratamento deverá ser orientado para o de maior gravidade (Sato et al,

2002).

Para Zerbini e Fidelix (1989) a medicação mais potente para tratar o

LES é o corticóide, uma vez que a inflamação constitui uma das características da

17 Os autores (Segui et al, 2000) não informam onde o estudo foi desenvolvido.

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doença. Essa substância é um hormônio artificial que funciona como uma cópia do

hormônio cortisona produzido pelas glândulas supra-renais existentes em nosso corpo.

O papel desse remédio, também chamado de esteróides, é regredir a inflamação,

diminuir ou acabar com as dores e a febre.

Apesar da grande importância desse medicamento no tratamento do

LES, ele também provoca diversos efeitos colaterais, incluindo enfraquecimento dos

ossos, diabetes, catarata, inchaço do rosto e do corpo. Portanto, a medicação deve ser

utilizada na dose efetiva no intuito de controlar a atividade da doença, e assim que o

controle seja alcançado, deve-se reduzir gradualmente a dosagem (Sato et al, 2002).

Além dos corticóides, outros medicamentos são utilizados no

tratamento de LES, entre eles pode-se destacar os antiinflamatórios não-esteróides (ou

antiinflamatórios não-hormonais), os antimaláricos e os imunossupressores.

Os antiinflamatórios não-esteróides são administrados para o

tratamento da fadiga, febre e artrite e apesar de serem menos potente que os corticóides

são eficientes para controlar a inflamação moderada e têm a vantagem de não apresentar

os efeitos colaterais dos esteróides (Zerbini & Fidelix, 1989).

Os autores acima salientam que os antimaláricos são substâncias

usadas para controlar a malária, a artrite e os problemas de pele em pessoas portadoras

de LES. Há casos em que seu uso permite reduzir a dosagem de corticosteróide. Sato et

al (2002) referem que há outros benefícios na utilização desse medicamento que são a

melhora do perfil lipídico e a redução do risco de trombose.

Os imunossupressores são usados principalmente para diminuir a

ação do sistema imune que se encontra desequilibrado e muito ativo. Geralmente essas

drogas são prescritas no caso de vasculite intensa, nefrite progressiva e problemas do

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sistema nervoso central, os quais não melhoram ou são difíceis de serem controlados

com os corticóides (Zerbini & Fidelix, 1989).

Sato et al (2002) afirmam ainda que quando um sintoma não

responde satisfatoriamente a um determinado medicamento, faz-se necessário a

combinação de várias drogas.

Diante dessa complexidade algumas orientações são essenciais para

as pessoas portadoras de LES como mencionam Sato et al (2002) e Krauthamer, Coelho

e Sato (1999):

a) Educação: o portador e seus familiares devem estar bem informados acerca do que

é a doença, sua evolução, seus riscos, bem como, os recursos disponíveis para o

diagnóstico.

b) O sol: a radiação ultravioleta presente nos raios solares (e nas lâmpadas

fluorescentes), deve ser evitada, fazendo uso de filtros solares e, se não for possível

evitar a exposição solar, utilizar boné, chapéus, guarda-sol. De fato, o sol pode piorar as

lesões na pele oriundas do lúpus, bem como, agravar outras manifestações da doença.

c) Apoio psicológico: é importante transmitir otimismo e tentar buscar algo que

motive a pessoa, enfatizando a necessidade do tratamento e a elaboração de projetos de

vida.

d) Atividade física: é recomendável repouso nos momentos em que a doença está em

atividade e quando a mesma estiver controlada, deve-se praticar atividade física

(caminhada, hidroginástica, natação, entre outros), regularmente, respeitando as

limitações de cada pessoa.

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e) Dieta: recomenda-se que a pessoa portadora de LES adote uma dieta balanceada,

evitando-se excessos de sal, carboidratos e lipídios.

f) Tabagismo: deve-se evitar o fumo, uma vez que constitui um fator de risco para

pessoas que têm doença cardiovascular, pulmonar ou Raynaud (coloração dos dedos)

como afirmam Zerbini e Fidelix (1989).

g) Pílulas anticoncepcionais: não é recomendável o uso de anticoncepcionais que

tenham estrógeno, já que este, conforme apontam alguns estudos, é um dos

desencadeadores da doença. Pode-se evitar a gravidez utilizando os que são à base de

progesterona, pois não são contra-indicados no LES, bem como, os métodos de barreira

como a camisinha. Importante que qualquer escolha deve passar por uma avaliação

conjunta entre o reumatologista e o ginecologista.

h) Infecções: pessoas portadoras de lúpus que estão em tratamento à base de altas

doses de cortisona ou outros imunossupressores devem ficar atentas, pois essas

medicações diminuem as defesas e as infecções devem ser estritamente controladas, a

fim de evitar que se agravem.

i) Diferenciando as queixas: nem todas as queixas devem ser atribuídas ao LES, uma

vez que a pessoa pode manifestar outras doenças ou até mesmo apresentar sintomas

comuns que não tem relação com o lúpus. Nesse caso, aconselha-se procurar o médico.

Segundo Zerbini e Fidelix (1989), atualmente, observa-se um

aumento no número de pessoas portadoras de LES, contudo, isto não representa que a

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doença seja mais freqüente que no passado ou esteja se difundindo. Acredita-se,

também, que esse aumento ocorre devido às facilidades de diagnóstico decorrentes das

modernas técnicas de laboratório e o maior conhecimento e habilidade dos médicos para

identificar a doença. Contudo, Sato (1999) destaca que a industrialização, alterações nos

hábitos de vida como a alimentação, além da urbanização têm contribuído para elevar os

índices do LES.

Fica explícito que o LES configura-se como uma doença composta

pela imprevisibilidade de exacerbações orgânicas e sintomatológicas, incluindo também

os efeitos colaterais que surgem com o tratamento medicamentoso; os quais para muitos

portadores geram uma considerável incapacidade física e sofrimento psicológico

provenientes do adoecer (Dobkin et al, 2001).

2.3 - A gravidez em portadoras de lúpus eritematoso sistêmico

Tendo em vista que o LES atinge principalmente mulheres em período

reprodutivo, a gravidez torna-se um aspecto importante que gera uma série de dúvidas

para a mulher portadora.

Segundo Lockshin (2001), 50% de todas as gestações com lúpus são

completamente normais, 25% geram bebês prematuros e 25% correspondem à perda do

feto, por aborto espontâneo ou morte do bebê. Zerbini e Fidelix (1989) revelam que a

mortalidade perinatal será essencialmente mais elevada em portadoras cujo LES é

severo e mal controlado.

O fato da gravidez transcorrer sem ocorrência de abortos não implica

que a doença não se exacerbe neste período, pois as exacerbações podem ocorrer em

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qualquer trimestre da gravidez. Contudo, próximo ao momento do parto e,

principalmente, até 8 semanas após, o risco do LES se exacerbar é sete vezes maior do

que no período pré-gestacional. Portanto, é fundamental que o médico e a portadora

estejam atentos, uma vez que o acompanhamento sistemático pode minimizar a

exacerbação da doença (Zerbini e Fidelix, 1989).

O melhor momento para a portadora de LES engravidar é quando ela

estiver saudável, ou seja, quando a doença está inativa. Todas as gestações devem ser

consideradas de alto risco devido à severidade da patologia. Diante disto, as gestantes

devem ser acompanhadas por um obstetra especializado em gravidez de alto risco e que

atue em parceria com o médico que acompanha o LES. Além disso, o parto deve ser

realizado em um hospital que disponha de uma unidade para cuidar de recém-nascidos

prematuros (Lockshin, 2001).

De acordo com Lockshin (2001), estudos indicam que a possibilidade

da gravidez ativar a doença é pouco freqüente e na maioria dos casos são facilmente

tratadas. As crises normalmente ocorrem durante o primeiro ou segundo trimestre, ou

ainda, dois meses após o parto. A sintomatologia apresentada nesse período de crise é

artrite, erupções cutâneas e fadiga. As mulheres que engravidam depois de cinco a seis

meses de remissão da doença são menos suscetíveis a uma crise do que aquelas que

ficam gestantes quando o lúpus está em atividade.

Um aspecto importantíssimo nesse período de gestação, afirma

Lockshin (2001), é saber distinguir os sintomas provenientes do lúpus daqueles

oriundos da própria gravidez. Apesar da queda de cabelo ser um sintoma característico

da atividade do lúpus, tal ocorrência, trata-se de um resultado das alterações que se dão

também durante uma gravidez normal.

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A mulher que apresenta nefrite ou hipertensão é melhor evitar a

gravidez, pois nos casos de nefrite de grau moderada, a gravidez pode agravar a lesão

renal (Zerbini & Fidelix ,1989; Sato, 1999).

No caso de mulheres que não desejam engravidar, a escolha do

método contraceptivo deve ser feita em acordo com o médico e o marido. O uso de

pílulas anticoncepcionais é uma opção que deve ser discutida e avaliada com o

ginecologista, tendo em vista que esses medicamentos normalmente são compostos por

estrógeno, podendo assim ativar a doença, bem como, provocar a elevação da pressão

arterial, tromboses e inflamação nos vasos sangüíneos (Zerbini & Fidelix, 1989).

Os autores acima, salientam ainda que mulheres que estão grávidas e

se sentem inseguras com a gravidez não devem provocar o aborto, uma vez que isto fará

com que a doença se exacerbe.

Outro ponto de grande dúvida é a ingestão de medicamentos durante a

gravidez. Os medicamentos utilizados no tratamento do lúpus como Prednisona e

Prednisolona provavelmente não ultrapassam a placenta, visto que é metabolizada pela

mesma (Lockshin, 2001; Araneda, Poblete & Carvajal, 2002). Portanto, os remédios

necessários para manter a doença controlada não devem ser descontinuados, a não ser

sob a orientação do médico que acompanha o lúpus.

Se ocorrer atividade da doença durante a gestação, as doses de

corticóides devem ser aumentadas para tratar os sintomas, e acredita-se que isso pode

ser feito sem prejuízo para o feto (Zerbini & Fidelix, 1989).

Quanto ao bebê, o maior perigo para o mesmo é a prematuridade, pois

aproximadamente 50% das gestações com lúpus terminam antes dos nove meses. Outra

ocorrência nos bebês é o surgimento de uma síndrome denominada de lúpus neonatal,

que não é o LES propriamente dito e sim uma erupção cutânea e anormalidades na

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contagem sangüínea que são passageiras. Pode também apresentar um tipo de

anormalidade no batimento cardíaco, que é tratável e que não afeta o crescimento do

bebê, porém é permanente (Lockshin, 2001).

O aleitamento materno é possível em mulheres portadoras de LES;

entretanto, caso esta esteja ingerindo alguma medicação é aconselhável não amamentar,

a não ser que o médico permita. Ademais, o uso de Prednisona pode bloquear a

produção de leite, bem como, provocar conseqüências à criança (Lockshin, 2001 & Sato

et al, 2002).

O importante é que a portadora de lúpus esteja ciente que o fato de ter

a doença não a impede de engravidar e gerar bebês saudáveis como qualquer outra

mulher. Cabe a mesma saber que a gravidez pode não ser fácil, mas, possível e que toda

intervenção durante a gestação deve ser desenvolvida sob o acompanhamento conjunto

entre o médico do lúpus (reumatologista) e o ginecologista.

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3 - Implicações da doença crônica 3.1 - Convivendo com a doença crônica

Como já fora esclarecido, as doenças crônicas e, especialmente,

aquelas auto-imunes, como é o caso do LES, são essencialmente multifatoriais, sendo

proeminente considerar a permanente interdependência entre os aspectos orgânicos e os

aspectos psicossociais relacionados com as diferentes esferas da vida pessoal, familiar,

de trabalho, etc. Importante considerar a forma peculiar da doença crônica se expressar

na vida concreta de cada pessoa, já que todos os aspectos psicossociais envolvidos

contribuem à complexidade do desenvolvimento e exacerbação dos sintomas, sendo

necessária uma intervenção interdisciplinar na qual a Psicologia Social, através dos

processos de significação, deve ter um papel relevante.

Enquanto que as doenças agudas são esporádicas e exigem assistência

imediata em virtude da presença repentina de sintomas, o caso das doenças crônicas

pode ser bem mais complicado. A doença crônica é definida por Radley (1994), como

intratável ao tratamento médico, havendo casos em que a cura não é disponível. Assim,

quando constatada, acompanha a pessoa pelo resto de sua vida e pode, inicialmente,

apresentar-se apenas com ausência de sintomas, mas podendo estes surgir a qualquer

momento.

No Brasil, estima-se a existência de 25.000.000 (vinte e cinco

milhões) de pessoas com diferentes tipos de doença crônica, as quais se submetem a um

tratamento paliativo e tendem a ser marginalizadas pela sociedade ou por elas mesmas,

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em virtude da dependência familiar e condição de improdutivas que podem vir a exercer

devido à doença crônica (Santos & Sebastiani,1996).

Segundo Radley (1994) e Edelmann (2000), normalmente, a doença

crônica pode provocar dor, incapacidade e deterioração física, os quais são classificados

como sintomas físicos. Além destes, face à constatação da irreversibilidade da doença,

geralmente os sintomas físicos são acompanhados de problemas emocionais como a

ansiedade e a depressão. Estes, podem aparecer em virtude da incerteza do prognóstico

e das mudanças que serão necessárias decorrentes desse adoecer ou, inclusive, devido

aos efeitos colaterais de uma medicação que geralmente é agressiva.

Ademais, há os casos em que não há diagnóstico, ou seja, ainda estão

investigando qual é a patologia. Fato que vai impedir e adiar o início do tratamento

necessário e mais adequado. Isso também gera ansiedade e até mesmo medo na pessoa,

sendo o diagnóstico um alívio para a mesma, pois sua doença passa a ter um nome

(Murray, 1999; Remen, 1993). Essa situação pode ser observada nas pessoas portadoras

de lúpus, uma vez que, a sintomatologia da doença se manifesta de várias formas e são

semelhantes a outras enfermidades dificultando assim o diagnóstico.

É importante ressaltar que mesmo quando a doença é identificada,

dúvidas ainda persistem, pois diante do impacto do diagnóstico, a pessoa tende a

procurar outros médicos na esperança de obter um resultado mais favorável.

Incerteza na esfera social e psicológica são permanentes, pois a

pessoa, por vezes, teme a reação das outras que a cercam e como a mesma reagirá.

Concomitantemente há uma preocupação acerca do futuro. Como será sua convivência

com aqueles que não compartilham a mesma condição que a sua: ser portador de uma

doença crônica (Radley, 1994; Edelmann, 2000).

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A doença se configura como um momento de crise, podendo se

estender por toda a vida dependendo da forma como a pessoa lida com ela ou ser

passageira, oriunda somente do impacto inicial. No entanto, a ruptura proveniente do

estabelecimento da doença é inevitável, uma vez que interrompe os padrões cotidianos

da pessoa, exigindo desta uma reflexão acerca dos seus valores, prioridades e condutas

(Remen, 1993).

Desse modo, a condição de ser portador de uma doença crônica e ter

que conviver com ela, revela as implicações já citadas norteadas sempre por um

sentimento de perda, especialmente em seus momentos iniciais. Charmaz (1983, citado

por Radley, 1994) refere que este sofrimento em torno das perdas oriundas da doença,

aumenta em virtude de quatro condições sócio-psicológicas:

1) Viver uma vida restrita – considerando que o indivíduo passa a ter limitações

devido a incapacidade produzida pela doença.

2) Isolamento social – em função que a pessoa tende a se isolar por dois motivos: a

própria doença gera esse afastamento, impedindo-a de realizar algumas atividades

ou o próprio doente que teme a reação daqueles que não compartilham a mesma

condição que a sua, ou seja, como estes irão tratá-lo.

3) Visões estigmatizadas – ocorre quando as pessoas mostram curiosidade,

hostilidade ou desconforto em relação à situação do doente, principalmente quando

os sintomas são visíveis e permitem várias interpretações por parte dos ditos

saudáveis.

4) Tornar-se um fardo – os temores diante das limitações e impossibilidade de

cumprir suas obrigações devido às incapacidades produzidas pela doença, pode

atingir a identidade social da pessoa, podendo se sentir inútil para si e para os

outros.

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Diante do exposto, percebe-se que a doença crônica também

repercutirá nas relações interpessoais dessas pessoas, que passam a conviver com

limitações, sendo algumas delas imprescindíveis para manter a doença sob controle e

evitar a volta dos sintomas e/ou agravamento desta, como por exemplo, evitar exposição

solar no caso do LES. Conseqüentemente, todas essas alterações no estilo de vida, por

vezes, impede a pessoa de realizar atividades de lazer e trabalho; seja porque teme a

reação dos outros ou porque estes, por desconhecerem a patologia, temem um possível

contágio ou não se encontram preparados para suprir as demandas da pessoa portadora.

O fato é que as restrições impostas pela doença, a fim de proteger a pessoa, impedindo a

reincidência dos sintomas e/ou sua exacerbação na maioria das vezes, a conduz ao

isolamento social.

Após o estabelecimento da doença, esta se constitui em uma realidade

que deve ser encarada para que a pessoa possa conviver com a mesma da melhor forma

possível. Esta pode ser uma oportunidade para a pessoa viver de forma mais consciente,

dando maior atenção às suas escolhas e necessidades (Remen, 1993). O surgimento da

doença pode ocorrer porque a pessoa encontra-se, segundo a autora, desatenta quanto as

suas próprias necessidades, o que tende a produzir uma ação insensata, gerando dor e

sofrimento, fazendo com que ela possa manifestar alguns sintomas e mesmo assim

desconsiderá-los para não interromper suas atividades.

No entanto, com o passar do tempo, a permanência dessa situação,

pode desencadear uma patologia mais séria. A partir disso, ela concentra sua atenção

visando compreender as causas que propiciaram esse desequilíbrio. Tendo esse

entendimento, a mesma faz uma reavaliação de suas escolhas e ações, permitindo assim

que estas estejam mais condizentes com as suas demandas, o que pode possibilitar uma

melhora na sua saúde.

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Conforme assinala Radley (1994), isso demanda diferentes situações

de enfrentamento que, por sua vez, requer da pessoa um processo de “adaptação” que

estará sempre perpassado por sua subjetividade e experiência de vida, bem como, pela

situação socioeconômica e cultural. Assim, um dos aspectos mais estudados sobre a

doença crônica, refere-se às diferentes formas de como as pessoas se deparam com essa

realidade. Edelmann (2000), aponta três formas ou momentos de enfrentar a doença:

♦ Negação - sendo uma reação esperada que exerce uma função protetora mas, caso

esta persista, pode impedir o processo de aceitação da doença; além disso, a pessoa

portadora pode se recusar a não seguir as orientações médicas, conseqüentemente

agravando sua condição.

♦ Esquiva - o indivíduo pode evitar qualquer contato que o faça lembrar ou ter

consciência de que é portador de uma patologia.

♦ Confronto - a pessoa se encontra presente no adoecer, procurando informações em

relação a doença ou na busca de apoio social.

Em contrapartida, Radley e Green (1985, 1987, citados por Radley,

1994) mostram um modo de adaptação à doença crônica baseado em duas dimensões: 1)

corresponde ao indivíduo conservar ou perder sua participação na vida social (ver

primeira coluna) e, 2) refere-se ao relacionamento que a pessoa estabelece com a doença

(ver primeira linha), podendo ser de aceitação (em que a doença passa a fazer parte da

vida do indivíduo) ou de oposição (em que a doença é vista como uma adversária que

deve ser derrotada). Essas dimensões podem ser visualizadas da seguinte forma:

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Tabela 2: Modos de enfrentamento Relacionamento

com a doença

Participação social

Aceitação

Oposição

Conservação Adaptação Negação-ativa

Perda Ganho secundário

Resignação

Fonte: Radley e Green (1985, 1987, citados por Radley, 1994)

A partir da combinação dessas dimensões, os autores apresentam

quatro formas ou expressões de enfrentamento, as quais revelam as diferentes tentativas

do indivíduo para lidar tanto com os sintomas quanto com as demandas da sociedade:

Conservação-Aceitação: adaptação - a pessoa aceita a doença e a partir das

limitações impostas pela mesma, busca alternativas para conservar sua vida social.

Perda-Aceitação: ganho secundário - a doença também é aceita e, inclusive, vista

positivamente pelo portador da mesma, pois este consegue obter benefícios (ganhos)

oriundos do seu adoecer, tentando tirar vantagem em relação às pessoas a sua volta em

função da perda de autonomia.

Conservação-Oposição: negação-ativa - o indivíduo procura resistir à doença, não

quer falar sobre o assunto e não dá muita importância à mesma, mantendo sua

participação na vida social até onde é possível, correndo riscos de agravar seu quadro

clínico.

Perda-Oposição: resignação - a pessoa percebe a doença como algo aniquilador e

definitivo, sente-se abalada em virtude da perda do seu papel social e adota uma

situação de passividade diante da mesma.

Pode-se verificar algumas diferenças entre os autores no tocante as

formas como as pessoas lidam com a sua doença. Edelmann (2000) restringe-se a

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oposição, esquiva e confronto, enfatizando o fato da pessoa não assumir o seu papel de

portador de doença crônica. Enquanto que, Radley (1994) procura dar conta da

complexidade, ampliando os modos de relacionamento com a doença e expondo como a

pessoa administra sua participação social, o que se acredita ser mais condizente e/ou

necessário nesses casos, uma vez que assumir apenas o papel de oposição tende a

repercutir negativamente no modo de enfrentá-la.

É importante ressaltar que cada indivíduo vai se relacionar com a

situação de doença de acordo com a sua biografia, contexto social, econômico, cultural

e as relações interpessoais estabelecidas. De fato, os tipos de enfrentamentos não

seguem uma linearidade fixa, sua duração é variável, podendo retornar e ocorrer

simultaneamente (por exemplo, manifestar resignação e ganho secundário).

Edelmann (2000) destaca ainda que as pessoas acometidas de alguma

doença e que acreditam ter um relativo controle da mesma, têm maior adaptação

psicológica do que aquelas que não crê. Isso é parte de um processo que deve ser

trabalhado a partir do momento do diagnóstico. De acordo com Rodríguez-Marín

(1995), o controle de sintomas físicos, um relativo bem-estar subjetivo e as

possibilidades de se manter ativo são indicadores de qualidade de vida em pessoas

portadoras de doenças crônicas.

Por outro lado, aqueles que buscam o controle, mas não conseguem

efetuá-lo, possivelmente, sentem-se angustiados. Certamente que seguir as orientações

médicas, dispor de recursos financeiros para medicação e realização de dieta adequada,

não se afastar totalmente de suas atividades, além de contar com o apoio social,

facilitam esse relativo “controle” sobre a doença e promove sentimentos positivos.

Observa-se que a adaptação e o enfrentamento do indivíduo frente à

doença dependerá sobremaneira dessa rede de apoio (familiar e social) que o

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acompanha. O engajamento da pessoa em atividades cotidianas, o respeito dos que não

compartilham da mesma condição, não discriminando a pessoa portadora, possibilitam

uma melhor integração nas relações interpessoais. Destaca-se, ainda, que o apoio social

deve contemplar tanto a pessoa acometida pela doença como os seus familiares, tendo

em vista, que quando esta se instala, não afeta apenas a pessoa doente mas, toda a

família, podendo modificar até a rotina diária, planos futuros e sentimentos em relação

ao doente. Portanto, como assinala Edelmann (2000), pode existir uma série de

alterações na estrutura familiar decorrentes da presença da enfermidade.

3.2 - O apoio social como recurso para lidar com a doença.

A relevância dos vínculos sociais na vida das pessoas, bem como, o

tipo e qualidade das relações que os configuram, tem sido amplamente reconhecida na

Psicologia Social (Traverso, 1999). Doenças e problemas de saúde fazem parte da vida

e, nesses momentos, precisamos mais ainda dos vínculos sociais que gerem diferentes

formas de solidariedade, conforto e bem-estar. Considera-se que, nesses casos, a pessoa

não está apenas fragilizada pelos sintomas, mas, concomitantemente podem surgir

complicações adicionais como perda de emprego, conseqüentemente falta de recursos e,

rupturas e/ou incompreensões familiares, entre outros.

Andrade e Vaitsman (2002) referem que a condição de ser portador

de alguma doença, por vezes, coloca a pessoa diante de algumas limitações que alteram

sua vida cotidiana, afetando também sua identidade. Assim sendo, talvez isso reforce a

maior preocupação em estudos referentes ao apoio social destinados ao processo de

adoecer. Segundo esses autores:

O apoio social atuaria amenizando os efeitos patogênicos do estresse no organismo, incrementando a capacidade das pessoas em lidarem com situações difíceis. Outro efeito do

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apoio social seria a sua contribuição no sentido de criar uma sensação de coerência e controle da vida, o que beneficiaria o estado de saúde das pessoas (p. 928).

Nas últimas décadas tem sido cada vez mais reconhecida a

importância das relações sociais positivas enquanto influencia na saúde e bem-estar das

pessoas. Cohen e Syme (1985, citados por Barrón,1996) destacam três razões concretas

que evidenciam o auge de pesquisas voltadas para esse tema:

1) Sua possível importância etiológica em distintos transtornos e enfermidades;

2) Sua relevância nos programas de tratamento e reabilitação; e 3) A partir de um ponto de vista teórico, sua utilidade na

integração conceitual da literatura sobre fatores psicossociais e transtornos, já que grande parte de tais fatores influencia na saúde devido às rupturas que produzem nas redes sociais (p. 8).

Quando se fala em apoio social surge também a expressão de rede

social, muitas vezes sendo representada como sinônimo de apoio social (Rodríguez-

Marín, 1995). Diante disso, faz-se mister distinguir apoio social de rede social.

Contudo, estabelecer o que seja apoio social constitui uma tarefa

complexa, tendo em vista as várias definições existentes, as numerosas relações e

avaliações implicadas, bem como, as diversas atividades que o termo abrange, como:

escutar, demonstrar carinho ou interesse, emprestar objetos, ajudar financeiramente,

visitar amigos, fazer parte de associações comunitárias, sentir-se amado, aconselhar ou

orientar a pessoa acerca das ações mais adequadas entre outros (Barrón, 1996).

Cohen e Syme (1985, citados por Andrade e Vaitsman, 2002)

afirmam que apoio social é um conceito que abarca diversas dimensões; no intuito de

incluir todas elas, estes a define como a totalidade de recursos fornecidos por outras

pessoas. Mas quais seriam essas dimensões que devem ser consideradas? Tardy (1985,

citado por Castro, Campero e Hernández, 1997), sugere as seguintes:

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Direção: se o apoio foi recebido ou fornecido;

Disposição: disponibilidade ou realização do apoio;

Forma de mensurar: descrevendo ou avaliando;

Conteúdo: emocional, instrumental, informativo e avaliativo;

Rede social: família, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, comunidade e outros.

Observa-se a presença da rede social como uma das dimensões, o que

já sinaliza que apoio e rede apresentam diferenças, porém se complementam.

Outras dimensões também citadas por Castro, Campero e Hernández,

(1997) na definição e operacionalização de apoio social são:

Grau de integração social: analisa as redes sociais existentes;

Apoio social percebido: mede a confiança das pessoas acerca da existência do

apoio caso as mesmas necessitem dele;

Apoio social recebido: são ações que as outras pessoas realizam para fornecer ajuda

a uma determinada pessoa.

Embora esses autores assinalem a impossibilidade de mensurar o

apoio social, identificam, contudo, alguns conceitos relacionados com o apoio que

poderiam ser medidos. São eles:

a) Recursos da rede social de apoio: conjunto de pessoas que cotidianamente

auxiliam outras em caso de necessidade;

b) Condutas de apoio: atos específicos de apoio;

c) Valorização de apoio: avaliação subjetiva acerca da quantidade e conteúdo dos

recursos de apoio disponíveis;

d) Orientação do apoio: percepção sobre a utilidade e os riscos de buscar e encontrar

ajuda em uma rede social.

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Diante do exposto, nota-se como é difícil chegar a um consenso

acerca das dimensões. Contudo, fica evidente a relevância das redes sociais, podendo

inferir que as ações tanto de receber como de fornecer apoio social, seja ela a que nível

for (emocional, material ou informativo) dependerá da existência das mesmas. De

acordo com Rodríguez-Marín (1995), rede social é um conjunto de pessoas que se inter-

relacionam, ou seja, são pessoas com as quais se mantém contato e que constituem uma

forma de corpo social, como exemplo: a família, vizinhos, amigos, colegas de trabalho,

associações, entre outros.

O mesmo autor salienta ainda que a rede social pode ser dividida em

organizada e pessoal. Na primeira, o conjunto de pessoas é mais amplo, tendo objetivos

comuns e papéis independentes. Enquanto que no segundo tipo, nem todas as pessoas

tem relações entre si e os papéis podem ser diferentes.

Dentro desse mesmo conceito de rede social, o autor apresenta as

seguintes características:

1. Densidade: corresponde ao número de relações diárias existentes entre os membros

da rede;

2. Tamanho: número de pessoas que compõe a rede.

3. Homogeneidade: características comuns, demográficas, sociais e pessoais entre os

membros da rede;

4. Intensidade: quantidade de tempo destinado às pessoas, grau de intensidade e

intimidade e o grau de reciprocidade;

5. Conteúdo: assistência (buscar ajuda para suprir necessidades pessoais) e confiança

(as pessoas tornam-se confidentes para compartilhar assuntos privados);

6. Dispersão: facilidade ou dificuldade com que os membros da rede manifestam no

contato com os demais participantes da rede;

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7. Direcionalidade: importância que as pessoas dão às metas que são comuns ao

grupo.

Esses aspectos apontados revelam que o conceito de rede social

descrito pelo autor enfatiza a quantidade (densidade, tamanho e intensidade) em

detrimento da qualidade das relações estabelecidas.

Estudos indicam que as redes maiores trazem mais benefícios às

pessoas porque oferecem mais possibilidades de ações. Dentre as vantagens destaca-

se: a) Maior acesso e disponibilidade de apoio; b) Maior probabilidade de que na

rede exista uma pessoa que compartilhe a mesma experiência, possibilitando assim

uma ajuda mais adequada e direcionada, além de mais informações disponíveis entre

elas.

Algumas das funções das redes sociais seriam (Rodríguez-Marín,

1995):

Ajuda: ajudar a pessoa para que a mesma tenha condições de cumprir suas metas

pessoais ou para que possa fazer frente às exigências de uma determinada situação;

Conselho: proporcionar informação ou conselhos;

Retro-informação: realizar avaliações acerca de como a pessoa tem cumprido as

expectativas ou as solicitações de suas próprias metas.

Ainda no tocante às funções atribuídas ao apoio social, Barrón

(1996) classifica três funções:

Apoio emocional dispor de alguém para conversar, em que a pessoa demonstra

carinho, amor, afeto, empatia, estima e fazer com que a mesma sinta-se pertencendo a

um grupo.

Apoio material ou instrumental fornecer ajuda seja através de ações do

cotidiano (cuidar das crianças, fazer tarefas do lar) ou colaborando economicamente.

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Apoio informacional receber informações e conselhos que auxiliam a pessoa a

compreender seu mundo.

Percebe-se certa semelhança entre as funções definidas pelos autores

no que diz respeito a aconselhar e dar informações. Rodríguez-Marín (1985) acrescenta

a retro-informação, apontando a necessidade de se fazer avaliações acerca de nossas

condutas, o que tende a ser ainda mais imprescindível em situações relativas à saúde,

embora muitas vezes não a façamos. Em contrapartida, Barrón (1996) contribui

trazendo a questão do apoio material ou instrumental que não pode ser negligenciado,

uma vez que constitui necessidades práticas e reais que podem dificultar ou mesmo

agravar a vida das pessoas, como por exemplo, uma pessoa que precisa ir a uma

consulta médica, mas encontra-se muito debilitada, não conseguindo se locomover. Se

esta não dispõe de alguém com que possa contar para auxiliá-la até o médico, seu

quadro pode se tornar ainda mais sério se ficar esperando até o dia em que alguém possa

acompanhá-la.

Vale salientar que o apoio das pessoas que compõem uma rede social

pode ou não existir, bem como, variar (dentro das características apontadas) conforme

as demandas da pessoa que necessita desse apoio social.

Igualmente, ao se falar em apoio social deve-se considerar também o

contexto em que o mesmo acontece. Barrón (1996) menciona alguns aspectos

contextuais:

Características dos participantes: em virtude de quem realiza, o mesmo tipo de

apoio pode ou não ser efetivo. Por exemplo, o apoio de amigos parece ser mais útil para

administrar conflitos relacionados com a família; enquanto que ao se tratar de

problemas relativos à saúde, a família parece ser a mais apropriada. E para ajudar as

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dificuldades vinculadas às questões profissionais, os colegas de trabalho são os que

melhor podem auxiliar;

Momento em que é fornecido o apoio: as necessidades de ajuda e o tipo desta

variam conforme a situação;

Duração: a habilidade daqueles que oferece ajuda para manter e ou modificar o tipo

de apoio durante um certo tempo, principalmente quando a pessoa que precisa do

mesmo apresenta um problema crônico;

Finalidade: adequação entre o apoio oferecido e as reais demandas da pessoa que o

recebe.

Diante da tradicional e histórica precariedade dos serviços

institucionais de saúde, as redes de apoio social constituem, na maioria das vezes, a

única possibilidade de ajuda que as famílias de baixa renda podem contar; ademais, a

mesma tende a ser o único suporte para ajudar a aliviar as tensões oriundas da vida

cotidiana (Andrade & Vaitsman, 2002).

Outro aspecto positivo referente às redes sociais é que os indivíduos

que compõem esses grupos (familiar, comunitário, colegas de trabalho), exercem um

papel importante no tocante aos cuidados que as mesmas têm que ter para consigo

quanto à rotina de dieta, exercícios, adesão ao tratamento medicamentoso e cuidado

com a saúde em geral, bem como, a busca de ajuda profissional (Rodríguez-Marín,

1995; Andrade & Vaistman, 2002). Rodríguez-Marín (1995) denomina esses grupos de

"sistema de referência leigo", os quais exercem o papel sobre a pessoa tanto na fase de

tomada de decisão como também durante a fase de ação. Salienta ainda, que até mesmo

a presença ou falta do apoio social pode influenciar em menor ou maior grau ao uso dos

serviços de cuidado da saúde.

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Reconhece-se que a sua influência varia em virtude das necessidades

diferenciadas dos indivíduos, ou seja, a presença ou falta deste como recurso para lidar

com a doença e a subjetividade que perpassa todo processo de adoecer. Contudo, a

partir de uma perspectiva positivista, tem-se tentado definir modelos, visando explicar

uma relação linear entre apoio social e saúde. Assim, Cohen e Syme (1985, citados por

Castro, Campero e Hernández, 1997) propõem dois modelos:

Modelo de efeito direto: no qual o apoio social favorece os níveis de saúde,

independentemente da tensão sentida pela pessoa; isto é, o mesmo traz benefícios à

saúde mesmo na ausência de eventos estressantes;

Modelo de efeito protetor: o apoio social protege a pessoa dos efeitos patogênicos

produzidos pelas tensões. Ou seja, nesse modelo, já existe a presença do estresse, sendo

o apoio, um recurso utilizado para amenizar os efeitos advindos da situação estressante.

Entretanto, concorda-se com Vaux (1988, citado por Barrón, 1996)

na dificuldade de identificar um ou outro modelo tentando definir padrões fixos,

considerando que nosso dia-a-dia é sempre permeado por diferentes episódios que

geram tensão. De forma geral, quando a pessoa dispõe de recursos materiais e

emocionais, isso pode evitar que a mesma defina como sendo estressante o que

normalmente, outras pessoas apontariam como fonte de tensão. Esta não definição evita

que se produza uma resposta psicopatológica que por sua vez repercute na saúde

(Castro, Campero & Hernández, 1997).

Igualmente, a determinação de um evento ser ou não estressante está

relacionado com a subjetividade de cada pessoa, ou seja, o que é estressor para uma

pessoa pode não ser para a outra. Assim, o apoio social não deve ser compreendido

somente em nível objetivo, ou seja, de fato recebê-lo ou não; tendo em vista que por

vezes a pessoa até pode estar recebendo-o de familiares e amigos, todavia, não consegue

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percebê-lo. Por outro lado, há aquelas que de fato não recebem qualquer tipo de apoio,

porém acredita recebê-lo.

Portanto, a idéia de contar ou não com o apoio das pessoas que nos

cercam dependerá também de como a pessoa visualiza a mesma, como afirmam Castro,

Campero e Hernández, (1997):

... la disponibilidade de apoyo para un individuo ante una situación dada puede medirse en téminos reales (cuantificando el número de amigos que podrían prestar ayuda en una situación de emergencia), como en términos virtuales (esto es, caracterizando el apoyo del que el próprio actor cree que dispone, independentemente de la realidad 'objetiva'). El apoyo virtual puede tener efectos tan importantes en la salud como el apoyo real (p. 432).

Pode acontecer que, a mesma pode tê-lo, entretanto, este pode estar

sendo considerado insuficiente para a pessoa que o recebe. Ou ainda, ela pode não ter

apoio e mesmo assim consegue administrar sua vida, isto é, o fato de não tê-lo pode

gerar uma energia pessoal que impulsiona a mesma a lutar, ainda que lhe falte o apoio.

Assim sendo, é melhor falar-se em apoio percebido ao invés de

apoio recebido, até pelo fato que o apoio social é uma atitude por parte dos outros que

nem sempre pode ser avaliada positivamente pela pessoa que a recebe. Depende dos

processos de significação e da subjetividade da pessoa que precisa de ajuda.

Castro, Campero e Hernández (1997) referem que diferentes formas

de apoio trarão distintos efeitos nas condições de saúde da pessoa conforme o contexto

social de cada situação, bem como, o significado que o mesmo terá para aquelas que

compõem um determinado grupo. Uma pessoa ativa pode não aceitar as limitações

impostas pela doença e manter inalterada suas atividades, ao sentir que a doença está

sob controle. Todavia, ela pode estar sendo poupada pelos colegas e estes acreditarem

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que a estão ajudando; entretanto, essa atitude pode ser mal interpretada pela mesma que

não aceita esse auxílio, pois acredita que a estejam vendo como uma doente.

Existem ainda situações em que o apoio social nem sempre tem uma

conotação positiva. Há casos em que determinado tipo de apoio, como exemplo, a

tendência a superproteção, manifestada pelas pessoas que integram a rede social pode

gerar efeitos negativo (Rodríguez-Marín, 1995; Barrón, 1996).

Igualmente, as pessoas que se encontram gravemente doentes podem

ter o apoio social negado ao estabelecer aos outros exigências excessivas ou a

sintomatologia gerar nos outros sentimentos de rejeição (Rodríguez-Marín, 1995). É o

caso do LES que produz sintomas visíveis no corpo do indivíduo como a

fotossensibilidade, em que os outros ao verem a manifestação do sintoma, temem o

contágio em virtude do impacto causado pela vermelhidão da pele e até pelo fato de

desconhecê-la.

Conforme menciona Rodríguez-Marín (1995), existem vários

processos que estão relacionados ao apoio social e a saúde física no transcorrer dos

diferentes estágios dos ciclos de saúde e doença: bem-estar e saúde relativa, surgimento

da doença, utilização dos serviços de saúde, cumprimento das orientações médicas,

adaptação à doença crônica ou regresso da saúde e/ou bem-estar. Além disso, há ainda

a quantidade (número de pessoas que formam a rede de apoio), tipo (material,

emocional, informativo) e fonte (família, amigos, comunidade) que podem diferir.

Segundo o autor, em distintos momentos, esse ciclo pode se tornar mais difícil devido a

outras variáveis como as características pessoais ou os fatores sociais e ambientais, os

quais devem ser considerados.

Quanto às particularidades de cada pessoa, pode-se destacar a

dificuldade que algumas delas têm em fazer amigos ou que preferem se isolar do

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mundo, ressaltando que problemas de relacionamento podem se agravar num contexto

permeado pela doença. O estado de doença pode também contribuir para uma visão

negativa da vida por parte da pessoa, levando por sua vez a um julgamento pessimista

das relações sociais, pois as considera como prejudiciais a si mesma (Rodríguez-Marín,

1995).

Em decorrência dessa postura, ou no caso do mesmo negar a sua

condição de ser portador de uma doença, isto é, não deixar que os outros saibam da sua

patologia, provavelmente sua rede de apoio será mais restrita e talvez tenha pouca coisa

a fazer pelo indivíduo, já que este não compartilha suas necessidades. Embora isso

possa estar relacionado também ao fato do mesmo temer a reação dos demais frente a

sua situação; o que talvez possa ser atribuído ao ambiente e não às características

pessoais, tendo em vista que sua atitude constitui uma resposta ao ambiente que rejeita

e/ou teme o que é desconhecido.

Diante do exposto, pode-se afirmar que a dificuldade em definir o

que seja apoio social reside no fato de ser sempre uma avaliação subjetiva de cada ser

humano. Por outro lado, não podendo negar sua relevância e possíveis benefícios, no

sentido de reconhecer que o apoio social pode ajudar as pessoas a redefinir e/ou

amenizar a situação de sofrimento pela qual passam, é importante estar atento ao

contexto em que esse apoio está inserido, assim como as pessoas envolvidas. Ou seja, é

sempre relevante considerar os processos de significação e geração de sentido com

relação às relações interpessoais e sociais das pessoas afetadas pela doença.

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4 - Lúpus eritematoso sistêmico e os processos de significação 4.1 - Subjetividade e doença

Por se tratar de uma doença crônica e, perante as características

inerentes ao LES, já expostas, fica evidente que tal doença requer um cuidado

permanente por parte da pessoa. Como já fora apontado, isso representa em alguns

casos mudanças no próprio estilo de vida como: não fumar, não ingerir bebidas

alcóolicas em excesso, fazer exercícios regulares, elaborar e seguir uma alimentação

mais adequada, evitar exposição ao sol, entre outros.

Mas, será que a pessoa se encontra preparada para essas mudanças?

Que informações ela tem acerca da doença? Que sentido ela atribui à doença? E este

sentido, como influencia na forma como lida com a doença, evolução e tratamento, ou

melhor, no relativo controle da doença? Que recursos ou estratégias ela terá que dispor

para se adaptar e aprender a lidar com esta nova condição?

Acredita-se que a resposta para esses questionamentos pode ser

encontrada, somente, conhecendo-se o sentido que a doença, no caso lúpus, tem para a

pessoa portadora. Isso é possível através do foco nos processos de significação e

produção de sentidos, ou seja, cada pessoa processa os diversos significados nas

relações sociais inseridas num determinado contexto, de acordo a sua história de vida e

experiências vivenciais.

Alves e Rabelo (1999) mencionam que as respostas aos problemas

gerados pela doença, compõem-se através das relações sociais, conduzindo a um mundo

de práticas, crenças e valores compartilhados entre os indivíduos. A pessoa acometida

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por uma patologia e os demais que se encontram envolvidos na situação formulam, (re)

produzem e enviam um conjunto de posicionamentos de acordo com o espaço sócio-

cultural do qual fazem parte.

Dessa forma, os cuidados que a pessoa terá acerca da sua saúde,

perpassa por trocas de experiências que são vivenciadas no seu grupo de referência

social, cultural e econômico, independente destes terem passado ou não pela mesma

situação de doença.

Remen (1993) enfatiza a importância de substituir o atual modelo de

doença, o qual prioriza a compreensão dos fenômenos em nível físico para aquele que

busca não só a causa dos sintomas mas, também, ao processo de geração de sentido.

Ao falar em sentido e significado é necessário fazer uma distinção

entre esses dois termos. Vygotsky (1934/1985, citado por Traverso-Yépez, 1999)

aponta que o significado (significado referencial), corresponde ao sistema de relações

semânticas, em que a construção ocorre objetivamente no processo histórico; enquanto

que o sentido (significado individual) corresponde aos aspectos subjetivos do

significado, o qual é construído pelo indivíduo ao longo dos seus processos de

socialização. Portanto, somente a pessoa poderá definir através dos processos de

significação próprios do seu contexto, o sentido que a doença tem para ela e quais as

implicações desta em sua vida.

Observa-se que para alcançar um tratamento satisfatório de qualquer

patologia é necessário compreender o sentido que esta doença tem para a pessoa; uma

vez que a mesma pode estar contribuindo para a sua manutenção. Isto é, a forma como

ela enfrenta e lida com o seu adoecer pode favorecer a volta e/ou exacerbação dos

sintomas. Por exemplo, no caso de uma pessoa portadora de lúpus, esta necessita (na

maioria dos casos) por alguns meses tomar remédios diariamente no intuito de manter a

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doença em inatividade. Se a mesma, não aceita a condição de ter que conviver com uma

doença crônica e não segue o tratamento medicamentoso, bem como, as demais

orientações médicas já explicitadas no capítulo 2, as chances da doença se agravar,

tornam-se mais altas.

De acordo com Campos (1992): ...há que se estudar e discutir uma das contribuições da saúde mental, que poderíamos chamar de VONTADE DE CURA. Ou seja, da relação do paciente com sua própria doença e com os meios supostamente capazes de detê-la ou controlá-la. Mesmo conhecendo-se que essa relação pode assumir características paradoxais, predominando algumas vezes até uma vontade de adoecer ou até morrer (p. 45).

Isto não significa que conscientemente a pessoa quis adoecer, porém,

esta pode ter feito escolhas em sua vida que favoreceram o surgimento da doença. É

indispensável que a mesma compreenda que o objetivo dessa reflexão acerca da sua

responsabilidade no desenvolvimento da enfermidade, não é apontar um culpado, mas,

identificar se de alguma forma suas atitudes e comportamentos realçaram o

desencadeamento da doença, e caso tais atitudes ainda permeiem sua vida, estas possam

ser transformadas em benefício de sua atual situação. Portanto, é importante que ela

compreenda como assinala Remen (1993) que “ser responsável também implica a

capacidade de modificar as coisas – de assumir o controle” (p.111).

Desse modo, faz-se necessário que a pessoa portadora de qualquer

patologia amplie sua visão acerca da doença; no intuito de contribuir para o seu

restabelecimento; pois, segundo Remen (1993):

Se aceitarmos que cada um de nós é potencialmente um transformador de experiência, pode haver uma maneira “saudável” de se enfrentar uma crise. Pode haver uma maneira de se utilizar esses eventos comuns da vida como uma indicação para identificar o que foi superado, para encontrar novas e melhores maneiras de ser e realizar. As

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tragédias e dificuldades da vida cotidiana podem se tornar uma maneira de saber quem somos e como desejamos viver (p. 102).

A pessoa acometida por uma doença, inicialmente, até pode negá-la,

pois é uma reação natural. Entretanto, a reincidência dos sintomas a coloca sempre

frente a uma realidade com a qual ela não poderá mais fugir. Logo, a enfermidade não é

somente uma mudança física, mas, uma quebra no curso normal que modifica o ritmo e

a direção pessoal (Remen, 1993).

Sendo a doença crônica uma forma de ruptura, ou seja, um evento

que se configura como um rompimento no curso normal da existência da pessoa, conduz

a mesma a buscar um novo sentido para a sua situação. Ou seja, ela é levada a rever

todos os seus valores anteriores e definir prioridades em função das suas atuais

limitações e possibilidades. Além disso, a pessoa deve refletir também sobre a visão que

tem de si mesma e superar a tendência a julgar-se vítima da situação (ser uma doente),

que depende única e exclusivamente da medicina para manter-se ativa e conviver com a

doença, esquecendo-se do seu poder pessoal.

Sabe-se que algumas pessoas não têm consciência do seu potencial

quando se deparam com situações de crise e tensão, uma vez que, normalmente esta é

vista como algo a ser tolerado, experimentado e esquecido, tão rápido quando possível

(Remen, 1993).

A experiência de muitas pessoas nessa situação mostra que é possível

lidar com esses momentos de crises de forma diferente, como uma oportunidade de

descobrir suas capacidades para superá-la, bem como, começar a viver de maneira mais

consciente e determinada acerca de suas escolhas. Como destacado por Taylor (1983,

citado por Edelmann, 2000), as pessoas lidam melhor com a cronicidade da doença

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através dos momentos de re-significação que a vida processa a partir da nova realidade e

de suas limitações, mas, também, consciência de suas potencialidades e o

desenvolvimento de auto-estima nesse processo.

Destaca-se ainda que mesmo quando a doença é a mesma, cada

pessoa constrói um sentido diferenciado. Uma pessoa pode inferir que a partir da doença

sua vida tornou-se sem rumo e direção, enquanto outra, a percebe como algo que lhe

deu um senso de ordem e propósito (Remen, 1993). A mesma autora, salienta ainda que

o sentido atribuído pela pessoa portadora é mutável, ou seja, normalmente sofre

alterações com o passar do tempo. Provavelmente, o sentido construído no momento do

diagnóstico e em que a doença está em atividade é distinto daquele em que a pessoa

convive com a patologia em um prazo mais longo e com poucas ou nenhuma

reincidivas.

Esse processo de significar a nós mesmos e ao mundo, também

permite que os sentidos sejam modificados. De acordo com Grandesso (2000): “ a rede

de significados do indivíduo pode ser reconstruída em razão do caráter performativo da

linguagem, matéria-prima do diálogo entre pessoas, sejam elas comuns na práxis do

viver, ou pessoas comuns em práticas coordenadas...” (p. 194).

Deve ficar claro que reconstrução de significado, segundo a autora,

quer dizer a mudança de um sentido já existente por outro a partir de uma nova narrativa

que ordena tanto a experiência presente como, também, a passada, vislumbrando ainda

as possibilidades futuras.

A autora explicita ainda que essa resignificação, normalmente, ocorre

a partir de um acontecimento que abala os sentidos já construídos. Esse evento que se

configura como um rompimento no curso normal da existência da pessoa, causando-lhe

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estranheza e inquietações é que conduz a mesma a buscar esse novo significado

individual.

Como fora destacado, essa ruptura é uma das características inerentes

a uma doença crônica, a qual a patologia surge como algo que não é familiar, exigindo

da pessoa portadora uma nova forma de viver visando o controle da doença. Entretanto,

este só será possível mediante o processo de resignificação que não será construído

apenas pela pessoa acometida pela enfermidade, isto é, ela é quem irá significar, porém

isso perpassará pelas inter-relações sociais através do processo de intersubjetivação, ou

seja, aponta para a teia de influências e interdependências geradas no convívio social.

Grandesso (2000) afirma que ao invés de um “eu” interno, estável e

único, sugere a existência de um processo em aberto, o qual é gerado no campo das

relações. Ela destaca a impossibilidade da pessoa manter uma estabilidade e

singularidade em todos os momentos, uma vez que esta vive num universo permeado

pelas relações. Assim sendo, a cada situação, o indivíduo é levado a agir de uma forma

específica, já que, o contexto no qual ele se insere exige ações diferenciadas que não

significam que este perdeu a sua identidade, e sim que teve que se reestruturar diante da

nova situação.

No caso da pessoa portadora de LES, seu sentido será construído e

permanentemente processado através das peculiaridades da doença e da rede de

significados (de médicos, outros portadores de lúpus, vizinhos, amigos, familiares e

outros) que fazem parte do seu cotidiano. Por isso, é importante conhecer o sentido dado

por essas mulheres, pois isso constitui o primeiro passo para intervenções que permitam

uma abordagem mais criteriosa à portadora da doença.

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4.2 - Trabalhando com os processos de significação

Segundo Sato (s/d), o objetivo do tratamento em pessoas portadoras

de LES é permitir o controle da atividade da doença, a minimização dos efeitos

colaterais dos medicamentos e uma boa qualidade de vida.

No tocante à qualidade de vida das pessoas afetadas por uma

patologia crônica, esta é compreendida como sendo o controle de sintomas físicos,

adaptação psicológica e a capacidade de executar suas atividades cotidianas. Além

disso, a pessoa enferma é a única capaz de avaliar tanto as satisfações como as

insatisfações advindas de sua doença conforme aponta Rodríguez-Marín (1995).

Portanto, a qualidade de vida destas depende do nível de bem-estar subjetivo e

satisfação pessoal acerca da sua vida considerando os efeitos do LES e do tratamento

deste.

Contudo, para atingir a eficácia desse tratamento, este não deve ser

exclusivamente a base de medicação, tendo em vista que o desencadeamento do LES

ocorre também pelo estresse e fatores psicossociais, portanto, não podendo ser

desconsiderados durante a terapêutica. Deste modo, deve haver um tratamento que

busque atuar nas três dimensões para que aumente as chances da doença ser controlada.

Ademais, parece ser pertinente responder as questões citadas, no momento que a pessoa

se depara com o diagnóstico, no intuito de auxiliar tanto a mesma como a equipe médica

no controle do LES, pois, de acordo com Remen (1993):

Profissional e paciente trazem dois diferentes tipos de informação, que é importante para a tarefa que têm pela frente. Ambos devem estar dispostos a educar e a ser educado pelo outro, pois nenhum deles pode assumir a responsabilidade de desempenhar a sua parte na recuperação da saúde sem a informação fornecida pelo outro (p. 208).

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De um lado tem-se os médicos com todas as informações científicas

acerca da doença: o que é, sua sintomatologia, medicação para detê-la ou controlá-la,

limites impostos pela mesma e prognóstico. Do outro lado, encontra-se a pessoa, leiga

no aspecto técnico, porém sendo a melhor conhecedora da patologia em termos dos

sintomas e das implicações que esta provoca em sua vida, uma vez que ela os vivencia

diariamente.

Normalmente, trabalhando dentro do modelo biomédico

hegemônico, os médicos tendem a desconsiderar o sentido que as pessoas atribuem à

sua doença, seja no momento de receber o diagnóstico ou no desencadeamento desta.

Segundo Castiel (1994), a medicina vigente ao invés de se deter nos fatos para chegar

ao diagnóstico, deveria ter também uma visão hermenêutica na qual a interpretação

seria valorizada. Isto é, buscaria compreender o processo de adoecer e não apenas

identificá-lo.

Esse sentido é construído a partir das idéias propagadas pelo

imaginário social, incluindo as idéias difundidas pela mídia (sociogênese); pela

construção do conhecimento a partir dos estágios do desenvolvimento do indivíduo

(ontogênese) e através da interação entre os indivíduos (microgênese), ou seja, da troca

de versões compartilhadas (Spink & Gimenes, 1994). Essas perspectivas possibilitam

uma elaboração pessoal a respeito de um dado fenômeno, ressaltando que este elaborar

é mutável, não se mantendo estático, uma vez que se insere num contexto histórico,

econômico e social claramente definidos, que é permanentemente dinâmico.

Ferreira (1994) lembra, ainda, que tanto a noção de saúde como a de

doença são construções sociais, já que, o indivíduo adquire a condição de doente a

partir de uma classificação desenvolvida por uma sociedade, conforme os critérios e

modalidades estabelecidos pela mesma. Por conseguinte, o saber médico está

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diretamente relacionado com o social, visto que o diagnóstico construído por ele,

acontece com base nas sensações desagradáveis (sintomas) descritos pela pessoa, como

também, pelos indícios objetivos (sinais) constatados pelo médico. A autora destaca

que:

Quando o médico observa, com todos os seus sentidos, há uma especificidade do olhar que lhe confere um saber distinto. No entanto, este saber não é absoluto nem universal. A anatomia e a fisiologia do corpo só se tornam significativas a partir das regras e códigos dos grupos (p. 104).

Nestas duas fontes de informação, o médico e o leigo, é similar à

distinção feita por Cornwell (1984, citado por Marks, Murray, Evans & Willig, 2000)

durante uma pesquisa participante, ao se referir ao relato público e ao relato privado.

Este revela a experiência da pessoa como doente e de seus familiares e amigos que

compartilham esta situação. Enquanto que o outro constitui as versões aceitas

socialmente, as quais fazem referência aos termos médicos. Entretanto, neste último

não nos deparamos apenas com a informação médica como assinalado acima, mas da

população em geral que reproduz essa linguagem biomédica, cientificamente aceitável.

É imprescindível ressaltar que o sentido que os indivíduos dão à sua

doença, também é determinado pela função ou modo como o mesmo percebe seu

corpo. Todavia, essa percepção está permeada pela classe social na qual se insere. De

acordo com Boltanski (1989), os membros de cada classe manifestam de formas

diferenciadas suas percepções e sensações referentes ao processo saúde-doença. Isto é,

um trabalhador rural, membro das classes populares, cujo corpo constitui sua

ferramenta de trabalho, tende a não prestar atenção aos sinais expressos pelo corpo

quando sente dores, ao contrário do trabalhador das classes superiores, que estão

atentas as manifestações corporais.

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De fato, para as classes populares, adoecer pode representar o

abandono do trabalho e, conseqüentemente, põe em risco a única fonte de

sobrevivência de sua família. Portanto, o trabalhador operário tende a inibir as

sensações físicas, uma vez que percebê-la pode contrapor-se à idéia vigente de que o

corpo deve funcionar e ser utilizado em sua capacidade máxima, no maior tempo

possível, como se fosse apenas uma máquina (Boltanski, 1989).

Apesar da equipe médica reconhecer que o aspecto psicossocial pode

interferir no tratamento e evolução da doença, sabe-se da limitação do sistema médico

para trabalhar com a subjetividade de uma pessoa acometida pela doença e com as

possibilidades e/ou limitações decorrentes do seu contexto social (Traverso-Yépez,

2001). Deste modo, a experiência do adoecer do ponto de vista da pessoa é pouco

considerado no contexto da saúde. A equipe médica sabe que a mesma precisa de uma

medicação e dieta específicas, mas, por vezes, desconhece que esta não dispõe de

recursos materiais e/ou simbólicos para realizar o que foi prescrito.

Pode acontecer ainda que independente da disponibilidade

econômica da pessoa, esta pode negligenciar o tratamento porque a sua doença pode ser

um canal de comunicação com o mundo. Isto corrobora a afirmação de Remen (1993),

ao referir que a enfermidade pode representar uma manifestação de necessidades não

supridas e que não podem ser verbalizadas, sendo esta uma espécie de linguagem

corporal, muito particular.

Portanto, faz-se necessário conhecer e compreender a função que a

doença exerce na vida da pessoa, ou seja, identificar o sentido atribuído por ela acerca

da sua enfermidade, e considerar que não se trata apenas de um processamento de

informações mas, implica principalmente, num processo de tomada de posição da

pessoa perante o conhecimento médico (Spink & Gimenes, 1994).

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Spink e Medrado (2000), assinalam que o sentido:

... é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas - na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas - constróem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta (p. 41).

Na verdade, o que possibilita compreender esse conhecimento,

enquanto produção de sentido são as práticas discursiva que, de acordo com Davies e

Harré (1990, citados por Spink & Gimenes, 1994) constituem as distintas maneiras

como os indivíduos através do discurso produzem realidades psicológicas e sociais, as

quais justificam suas ações frente ao mundo e, conseqüentemente, perante a doença.

Segundo Grandesso (2000), não se pode falar em significado sem

fazer referência à linguagem, tendo em vista que ao se produzir narrativas no intuito de

atribuir sentido à nossa existência, faz-se uso da palavra a todo instante nas nossas

relações, interpretando a nós mesmos e ao mundo que nos cerca.

Uma palavra isolada não quer dizer nada. Para que esta adquira um

significado, faz-se mister a presença coordenada de um interlocutor que terá uma

reação verbal ou não-verbal diante dessa expressão; ainda assim, essa resposta terá que

ser compreendida para que possibilite o processo de significação. Portanto, significar

perpassa pela dinâmica da intersubjetivação, que, como já fora colocado, corresponde a

uma relação em que duas pessoas, cada uma com a sua subjetividade que foi construída

com base nas outras vozes presentes no seu cotidiano, realizam uma ação conjunta,

uma interferindo e influenciando o entendimento da outra, seja reafirmando um sentido

ou resignificando-o a partir dessa troca dialógica (Grandesso, 2000).

A autora salienta que os significados individuais são inerentemente

inacabados. Ou seja, a produção destes é temporária uma vez que estarão

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constantemente sujeitos a acréscimos e alterações decorrentes do processo de

intersubjetivação. Logo, “o que é fixado e estabelecido em um momento pode tornar-se

ambíguo e ser desfeito no próximo. Podem ocorrer negações e alterações dos

intercâmbios como formas de atividade significativa.” (p.162).

Ainda que as pessoas implicadas nessa relação de gerar significados

façam parte do mesmo contexto sócio-cultural, isso não garante que haja compreensão

do que está sendo expresso, tendo em vista que a subjetividade é construída

considerando também as diversas pessoas que integraram outros momentos e situações

da vida, os quais igualmente fazem parte dela. Grandesso (2000) assinala afirmando

que:

...todo implemento cultural para engendrar significado (tais como palavras, gestos e imagens) está sujeito a múltiplas recontextualizações. Cada termo na linguagem torna-se polissêmico, multiplamente significativo. Assim, cada movimento dentro de uma seqüência coordenada é simultaneamente um movimento em outras seqüências possíveis. Portanto, cada ação é um convite possível para uma multiplicidade de seqüências inteligíveis, cada significado é potencialmente algum outro, e a possibilidade de má compreensão está permanentemente à mão (p. 165).

Diante disto, faz-se mister compreender que a linguagem é o recurso

privilegiado para esse tipo de trabalho, considerando-a como uma prática social

construída na relação com os outros, nos processos de interação social com base na

perspectiva pragmática. Essa corrente, segundo Grandesso (2000) adquiriu destaque no

começo do século XX, através da ênfase na linguagem como uma forma de

comportamento, imprescindível para a ação humana coordenada e que tanto o

significado como a função das palavras, somente poderão ser compreendidas dentro do

contexto que emergem.

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Gergen (1994, citada por Grandesso, 2000) refere que :

Um indivíduo sozinho não tem como "significar", sendo exigido um outro para complementar sua ação e dar-lhe uma função dentro do relacionamento. Assim, comunicar, é, pois, conseguir o privilégio do significado pelos outros (p. 160).

Deste modo, o sentido que o indivíduo fornece a um dado fenômeno

é produzido quando duas ou mais vozes se confrontam, e o discurso elaborado é ação e

produz conseqüências. Quando falamos estamos inevitavelmente executando ações,

gerando alguma idéia no outro, a qual será refletida em alguma ação, independente de

nossa intenção (Spink & Medrado, 2000). Pode-se inferir que caso a equipe médica

diga à pessoa portadora de LES somente que sua doença é crônica, sem dar maiores

explicações, a mesma provavelmente terá uma reação diferente se a equipe lhe disser

que apesar da cronicidade da sua enfermidade, ela pode viver bem e sem manifestação

de sintomas desde que a mantenha sob controle.

Adverte-se ainda que mesmo quando o médico não verbaliza nada,

mesmo assim o indivíduo produz um sentido, fazendo uma leitura da sua doença a

partir do “não-dito” ou da própria situação (contexto), como é o caso da pessoa

portadora que se encontra em crise (doença em atividade) que não vislumbra melhora

devido ao seu estado crítico.

Além da relevância entre os dois saberes, os quais produzem um

sentido é importante fornecer espaço para o diálogo enfatizando o processo de escuta, o

qual nessa relação dialógica gera a possibilidade de promover a junção entre o saber

médico e o saber da pessoa acometida pela doença. Contudo, para que isso ocorra é

imprescindível a utilização de uma linguagem mais acessível à compreensão da pessoa,

tendo em vista que o uso de termos técnicos pela equipe, cria um obstáculo nessa

relação (Boltanski, 1989).

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A linguagem médica separa o corpo e seus sintomas, enfatizando

apenas, as informações que são produzidas na academia, desconsiderando a

sintomatologia referida e percebida pela pessoa afetada pela doença (Minayo, 1998).

Conseqüentemente, tende a fortalecer o distanciamento entre o saber científico e o

saber leigo. A comunhão entre o conhecimento do médico e a vivência da pessoa em

relação à sua doença, é que propiciarão a participação e responsabilidade de ambos no

processo que visa minimizar e amenizar o sofrimento e os efeitos negativos da doença.

Segundo Grandesso (2000):

O mundo que construímos com cada um dos nossos interlocutores varia diferente e significativamente, em virtude do relacionamento no qual estamos envolvidos com ele. As palavras pronunciadas tem o seu significado, na maior parte das vezes, decorrente do seu uso no momento, conforme fazem parte de um fluxo de atividade de pessoas em relacionamento e servem para realizar as possibilidades dessa relação (p. 192).

Assim, a pessoa portadora de lúpus construíra o seu sentido da

doença considerando todas as pessoas (vozes) implicadas na sua vivência com a

enfermidade. A palavra, articulada e escrita, bem como, os gestos produzidos por

aqueles que constituem a sua rede de significações, influenciarão e refletirão no

significado individual gerado pela pessoa frente ao seu adoecer, conseqüentemente

produzirão também formas da mesma lidar com a sua doença.

Como dito, conhece-se e compreende-se o sentido que as pessoas

atribuem aos fenômenos através da sua narrativa. Esta é organizada pelo discurso por

meio de termos, símbolos ou metáforas que têm uma seqüência temporal, ou seja,

início, meio e fim (Grandesso, 2000).

A autora ressalta ainda que embora a narrativa nos conte um pouco

da nossa história, na verdade a mesma não expressa totalmente o mundo da

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experiência. Ricoeur (1976, citado por Grandesso, 2000) afirma que a experiência

pessoal será sempre privada, sendo impossível a linguagem através do discurso

descrevê-la com um nível de autenticidade condizente à situação. Assim, apenas o

sentido pode chegar ao domínio público.

Retomando a idéia temporal e linear, Grandesso (2000) destaca três

formas de narrativa:

Estável – os eventos narrados descrevem uma trajetória em que não há qualquer

alteração, nem positiva nem negativa para o protagonista.

Progressiva – os acontecimentos revelam um percurso crescente, pautada na

realização dos objetivos do ator principal.

Regressiva – os episódios estão vinculados de forma decrescente, indicando a

dificuldade do protagonista em atingir seus objetivos.

Não se pode negar que nossas histórias passam por essas tipologias,

muitas vezes transpondo entre uma e outra. Entretanto, devemos observar se estamos

presos, fixados em apenas uma delas e como lidamos quando nos deparamos com a

mudança que faz parte da vida de qualquer pessoa e que, necessariamente, implica em

saltarmos de um determinado tipo para o outro.

Quando uma situação se apresenta como estável, cabe a nós

buscarmos formas para que essa estabilidade seja modificada, caso isso esteja

provocando inquietações, pois esta não deve ser entendida como, essencialmente,

negativa. Isto vai variar conforme a situação e a pessoa. Por outro lado, se a regressão é

que está tomando conta da nossa existência, também é nosso papel tornarmos sujeitos

ativos, procurando identificar o que está impedindo que as nossas metas sejam

alcançadas para que essa condição se transforme positivamente.

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As pessoas portadoras de lúpus, obviamente, também passam por

isso. Nosso papel, enquanto profissionais da saúde, é de tentar ajudá-las a perceberem e

identificarem como estão agindo perante o seu adoecer através da abordagem que

estamos propondo, o que viabiliza o esclarecimento do sentido que a enfermidade tem

para as mesmas.

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5 - Métodos e estratégias de trabalho 5.1 - Aprofundando na subjetividade das pessoas portadoras de lúpus eritematoso sistêmico

Considerando que o objetivo deste trabalho é entender como as

pessoas dão sentido às origens e conseqüências do seu processo de adoecer, torna-se

imprescindível uma estratégia de pesquisa que tenta aprofundar e compreender as

características e significados de uma determinada situação (Richardson, 1999).

Para que este entendimento seja alcançado não se faz necessário um

número elevado de participantes, tendo em vista que a representatividade dos dados está

relacionada com a possibilidade de compreender o significado e a descrição

contextualizada do fenômeno em questão e não à sua expressividade numérica. Assim

sendo, a representatividade é substituída pela exemplaridade. A partir dos critérios

estabelecidos pelo pesquisador acerca da sua amostra, os resultados obtidos servem de

exemplo para refletir sobre outros fenômenos e/ou grupos que apresentam

características parecidas (Goldenberg, 2001).

Portanto, o fenômeno até pode ser o mesmo, porém a compreensão é

perpassada por diferentes aspectos como os objetivos e o enfoque teórico e

metodológico escolhidos pelo pesquisador, bem como, as peculiaridades dos

participantes e o contexto sócio-histórico no qual o mesmo foi produzido (Minayo,1998;

Richardson, 1999). Richardson (1999) lembra, ainda, que a sociedade é dinâmica, que o

mundo social e a compreensão deste modifica-se constantemente, impedindo assim,

generalizações, apontando que:

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O objetivo da pesquisa qualitativa não reside na produção de opiniões representativas e objetivamente mensuráveis de um grupo; está no aprofundamento da compreensão de um fenômeno social por meio de entrevistas em profundidade e análises qualitativas da consciência articulada dos atores envolvidos no fenômeno (p. 102).

É preciso compreender o processo de adoecer da portadora de LES,

considerando-o como um fenômeno coletivo, ou seja, que, a principio, parece afetar

única e exclusivamente a pessoa, mas, que na verdade sua adaptação e enfrentamento

estão inter-relacionados com o contexto social em que a mesma está inserida, sendo

portanto, um fenômeno social e não somente individual. Esta colocação corrobora a

afirmação de Pinheiro (2000):

(...) o sentido é produzido interativamente e a interação presente não inclui apenas alguém que fala e um outro que ouve, mas todos “os outros” que ainda falam, que ainda ouvem ou que, imaginariamente, poderão falar ou ouvir. É sob esse ângulo que o diálogo amplia-se, incluindo interlocutores presentes e ausentes (p. 194).

Assim sendo, a fim de conhecer e compreender o sentido atribuído

pelas mulheres acerca do seu adoecer, a estratégia utilizada foi a entrevista em

profundidade, que é um processo de comunicação que ocorre entre dois atores sociais

(pesquisador e participante) que viabiliza a identificação e compreensão dos sentidos

produzidos por elas sobre o seu adoecer. Isso permitiu um processo de reflexão sobre os

mesmos, partindo-se do critério que isto pode gerar mudanças e novos sentidos frente a

atual situação de portadora de LES.

Portanto, percebe-se que a entrevista, por si só, constitui uma nova

situação social em que os atores envolvidos podem conscientes ou não, influenciar-se

mutuamente. Conforme assinala Gallego (2002), acredita-se que a entrevista em

profundidade é um espaço aberto para a confissão, onde o silêncio do entrevistado pode

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ser também parte desse processo de refletir acerca do que o mesmo considera ser

essencial ser dito ou ser ocultado naquele contexto, pois o silêncio é sempre um calar

ativo, uma vez que o indivíduo se cala porque tem consciência do que deve ser omitido

e não porque ele ignora o que está acontecendo.

Além disso, durante a entrevista, a pessoa tem um espaço para

expressar suas dificuldades e conflitos decorrentes de sua situação, pois muitas vezes a

mesma não tem essa possibilidade para falar sobre a doença e o reflexo desta no seu

cotidiano. Ressalta-se ainda que, no momento em que a pessoa fala de si e de sua

situação frente à enfermidade, instaura-se a possibilidade de uma reflexão não apenas

sobre sua condição, mas também sobre sua participação no adoecer.

Acredita-se que nessa relação dialógica que constitui a proposta

metodológica empregada, a maior beneficiada deve ser a própria participante, ao ter

espaço para organizar a experiência da doença narrativamente.

Bruner (1997), foi um dos autores que melhor tem destacado a

relevância desta abordagem que para ele “é uma das formas de discurso mais ambíguas

e poderosas da comunicação humana” (p. 82). As narrativas estão presentes no nosso

cotidiano e nós interpretamos e definimos a nós mesmos através de relatos na práxis da

relação social (Bruner, 1997 & Murray, 1999). No momento de tensão entre a ordem e a

desordem produzida pela doença, por exemplo, o indivíduo, mais cedo ou mais tarde,

através da narrativa ordena os acontecimentos e gera um significado dentro de um

determinado contexto social.

Lembra-se que a entrevista em si mesma é um contexto social criado

pelo pesquisador, onde o entrevistado elabora a sua narrativa. Assim, o relato não estará

apenas transmitindo uma mensagem sobre a pessoa e a doença mas, também, refletirá o

contexto no qual é informado (Murray, 1999).

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Murray (1999), afirma que saúde e doença são compreendidas

somente através de narrativas. Isso pode ser exemplificado com o caso June, citado pelo

autor, em que esta visitava vários especialistas, os quais afirmavam que ela não tinha

nenhuma doença e que suas queixas eram de natureza psicológica. Finalmente, a mesma

foi diagnosticada com lúpus. Embora ela reconhecesse a gravidade da enfermidade,

obter o diagnóstico foi um alívio, uma vez que na narrativa dela, o mesmo tornou-se um

ponto de mutação decisivo, já que todos os seus problemas de saúde tinham uma

explicação e, sua luta daquele momento em diante passou a ter um nome: lúpus.

Desse modo, considera-se que ao gerar discursos e narrativas, através

de entrevista em profundidade, a pessoa não apenas pôde expor seus sentimentos acerca

do seu adoecer, ao falar sobre as dificuldades e entraves que a doença causou e em

alguns casos ainda ocasiona, mas ao mesmo tempo, gera a possibilidade de organizar

sua experiência, demarcando um início, um meio e um fim, delineando uma perspectiva

temporal quanto ao seu prognóstico. Enfim, pode dar um novo sentido a sua atual

condição, a qual viabiliza-se a possibilidade da mesma se deparar com os recursos

externos disponíveis (ambiente/rede de apoio/situação econômica) e internos (sua

capacidade para lidar da melhor maneira possível com a doença).

Espera-se, ainda, que através desse tipo de trabalho haja uma maior

compreensão da equipe de saúde quanto à necessidade de um enfoque mais amplo do

adoecer, considerando essa permanente inter-relação entre a dimensão biológica,

psicológica e social, considerando a visão e ação da pessoa no processo de adoecer e

não apenas priorizando a intervenção direta e específica sobre a doença através de um

tratamento prioritariamente medicamentoso.

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5.2 - Participantes

Inicialmente definiu-se trabalhar com duas amostras, tendo cada uma

em torno de cinco participantes. A primeira amostra seria constituída por participantes

que tivessem o diagnóstico de LES há 3 - 4 anos, enquanto que na segunda amostra

seria com pessoas com diagnóstico recente (menos de 1 ano), perfazendo um total de até

dez participantes. Estas, apresentariam as seguintes características:

a) Pessoas do sexo feminino, como já foi colocado no início dessa dissertação;

b) Portadoras de lúpus eritematoso do tipo sistêmico (LES);

c) Residentes na cidade de Natal, no intuito de facilitar o encontro com as

participantes;

d) Faixa etária entre 20 e 35 anos, considerando o período em que a doença se

manifesta, além de ser a fase na qual a mulher define planos para o futuro

como carreira, maternidade, casamento, entre outros.

O Hospital Universitário Onofre Lopes18 foi à instituição escolhida

para a realização da coleta de dados, uma vez que este é referência no Estado no

diagnóstico e tratamento do LES. Ressalta-se, ainda, que contactamos uma das

especialistas em reumatologia, profissional deste hospital, a qual atende todas as

pessoas portadoras de lúpus e que esta esteve ciente dos objetivos da pesquisa e

permitiu a realização da coleta em seu ambiente de trabalho, auxiliando no contato da

pesquisadora junto às mulheres portadoras de LES.

Entretanto, durante a fase operacional da coleta de dados, constatou-se

a impossibilidade em definir de antemão o tempo de diagnóstico, fixar uma faixa etária

e restringir o local onde as participantes residiam. Essa dificuldade ocorreu porque no

18 O Hospital Universitário Onofre Lopes, até então, não tem registrado o número de pessoas portadoras de LES atendidas no mesmo.

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hospital, o atendimento das pessoas portadoras de LES, é realizado apenas uma vez por

semana (quinta-feira) no turno da manhã. Além disso, nem sempre as pessoas que se

consultavam nesse dia tinham esse diagnóstico e muitas vezes as mesmas, ainda que

portadoras de LES, residiam no interior do Estado, dificultando assim sua ida à

instituição. Aconteceu também que nem sempre correspondiam aos critérios iniciais

como faixa etária e tempo de diagnóstico. Contudo, houve caso, em que mesmo não

morando na cidade de Natal, a pessoa se dispôs a vir outro dia para a realização da

entrevista.

Diante dessas dificuldades, bem como, os limites de tempo do processo

de realização do mestrado (2 anos), decidiu-se não estipular uma faixa etária, nem pré-

determinar um tempo de diagnóstico e tão pouco restringir o local de moradia à cidade

de Natal, deixando a critério da pessoa portadora, se ela poderia ou não ir outro dia ao

hospital para a realização da entrevista. Assim sendo, os pré-requisitos para participar

da amostra passaram a ser apenas: mulheres portadoras de LES. Considerando essas

limitações, bem como, o objetivo do presente estudo, o número da amostra foi reduzido

a oito participantes.

5.3 - Procedimento para a coleta e análise dos dados

Antes do início da coleta dos dados, o projeto foi submetido ao

Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN,

conforme os critérios estabelecidos pela Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de

Saúde-CNS, sendo aprovado o seu desenvolvimento (ver Anexo A).

Como já foi antecipado, os dados foram coletados através de

entrevistas desenvolvidas, individualmente, seguindo o roteiro que contou em linhas

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gerais, com cinco eixos temáticos: 1) questões sócio-demográficas; 2) experiência da

doença (como a patologia se insere na história de vida da pessoa); 3) nível de apoio

social percebido; 4) nível de informação e “controle” da doença; e 5) processos de

significação e como lidam com a doença (ver Apêndice A).

O roteiro foi testado em pelo menos duas entrevistas exploratórias

(trabalho piloto), no intuito de corrigir e/ou minimizar possíveis falhas de elaboração

e/ou compreensão, tanto das perguntas em si como na condução da mesma. Nesse

sentido, serviu também como treino para a entrevistadora. Todas as entrevistas foram

gravadas em áudio para posterior transcrição, mediante a permissão das participantes,

garantindo o absoluto sigilo das informações.

Como assinala Minayo (1998), as perguntas abertas permitiram,

igualmente ao entrevistador, certa flexibilidade ante a variedade de posicionamentos

que a participante assumiu ao longo da entrevista.

De acordo com Pinheiro (2000):

O sentido é dado em função do contexto. No entanto, há a possibilidade de aparecerem múltiplas narrativas dentro dessa aparente unidade, recorrendo a pessoa – muitas vezes de forma contraditória – a discursos médicos e psicológicos, a saberes populares e a conhecimentos divulgados através dos meios de comunicação (p. 195).

Portanto, durante a entrevista, a pesquisadora foi se deparando com

muitas vozes, não só da participante mas de todas as pessoas que fizeram, fazem e farão

parte da sua auto-biografia, todas exercendo algum tipo de influência sobre o sentido

que a mesma produz frente ao mundo e, em especial, à condição de ser portadora de

LES.

O contato inicial com as participantes foi pessoalmente, na sala de

espera do ambulatório do hospital. Antes da pesquisadora contactar com as mulheres

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portadoras de LES, a Dra. Maria José Vilar (reumatologista), verificou se na lista de

atendimento tinha alguém com o diagnóstico de lúpus. Isso evitou que pessoas que

ainda não tinham o diagnóstico de lúpus, acabassem participando da pesquisa, já que

algumas delas tinham toda a sintomatologia da doença, porém ainda estavam no período

de investigação diagnóstica, que como já foi explicado, pode se prolongar por algum

tempo.

Os encontros foram realizados numa sala afastada dos locais de

atendimento ao público (ambulatório), para que não houvesse a interferência de ruídos,

bem como, a interrupção por parte dos profissionais que trabalhavam no local,

respeitando, portanto, as condições de privacidade e sigilo que requer a situação.

Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra para serem analisadas.

Tendo em mãos os nomes das mulheres portadoras de LES, a

pesquisadora se apresentava e perguntava se ela morava no interior ou na cidade de

Natal. Posteriormente, foi explicado com detalhes o objetivo da pesquisa e se a mesma

estaria disposta a colaborar. Diante da afirmativa, foi orientado como, onde e quando

seria realizada a entrevista, sendo combinados dia e horário. Importante destacar que

durante as visitas ao ambulatório do hospital para contatar as participantes, não

apareceu nenhuma pessoa do sexo masculino como portador de LES. Isso mostra, mais

uma vez a prevalência da doença em mulheres.

Decidiu-se que os encontros seriam realizados em outro dia, e não

imediatamente na sala de espera, porque seria impossível realizar as entrevistas naquele

momento em virtude do hospital não dispor no turno matutino de salas desocupadas, na

qual a mesma pudesse ser desenvolvida. Assim, foi considerado, também, que o dia

marcado com a médica, as mulheres talvez não se dispusessem a participar sem aviso

prévio, visto que estariam cansadas, já que, a consulta inicia às 7h e as mesmas tendem

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a chegar antes do horário para serem atendidas o mais rápido possível. Além disso,

algumas delas dependem da ambulância da prefeitura do interior do Estado, a qual tem

hora marcada para retornar ao município; situação que deixaria a participante

apreensiva diante da possibilidade de perder sua condução.

A coleta dos dados foi realizada majoritariamente no setor de

ortopedia do hospital, no turno vespertino, porque este dispunha de salas desocupadas,

bem como, afastadas do atendimento ao público.

No entanto, embora se tenha decidido que a coleta seria feita no

hospital, duas entrevistas foram realizadas na casa da participante porque uma delas

afirmou no primeiro encontro, que não poderia conduzir-se até o mesmo em outro dia,

em virtude de seu trabalho. Frente a essa situação, a pesquisadora se dispôs a ir até sua

casa; tendo em vista, as dificuldades expostas para compor a amostra. Contudo, durante

a coleta dos dados, pôde-se perceber que a participante não queria se locomover até a

instituição, não só porque atrasaria a entrega do seu trabalho, mas, também, porque

quando a mesma necessita sair, senti-se muito cansada em decorrência da doença.

A outra participante, cuja entrevista também ocorreu na residência,

não houve a princípio nenhum motivo em torno da sua saúde, que a impedisse que a

impedisse de chegar no hospital. No entanto, como ela estava sempre ocupada com suas

atividades, ficou difícil definir um horário naquele local. Diante disso, a pesquisadora se

dispôs a realizá-la na casa da entrevistada.

Pôde-se observar, que as entrevistas realizadas na casa das

participantes tiveram duração maior que aquelas desenvolvidas no hospital. Talvez isso

possa ser justificado pelo fato delas estarem em um ambiente familiar a elas, além de

não terem a preocupação com horário para voltar para casa.

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No início do encontro a pesquisadora se apresentou novamente e

explicou às participantes os objetivos da entrevista, salientando que em toda pesquisa

envolvendo seres humanos, há a exigência que a colaboradora assine um termo de

consentimento (ver Apêndice B), conforme os critérios estabelecidos pelo Comitê de

Ética em Pesquisa.

Após essa fase, a pesquisadora perguntou se a própria pessoa queria

ler o termo de consentimento ou preferiria que a entrevistadora lesse. Em todos os

encontros, as pessoas preferiram não ler. Durante a leitura do termo de consentimento,

foi esclarecido às participantes que a colaboração delas na pesquisa não era vinculada

ao atendimento com a médica reumatologista e caso elas não quisessem participar,

ficassem à vontade para recusar, pois isso não comprometeria as consultas delas no

ambulatório.

Nessa fase inicial, foi perguntado às participantes se a entrevista

poderia ser gravada em áudio, uma vez que também seria impossível anotar todas as

informações transmitidas por elas e que depois os dados fornecidos seriam transcritos

para o papel. Todas concordaram, apesar de algumas participantes, a princípio se

sentirem acanhadas. Entretanto, percebe-se que no transcorrer da entrevista elas estavam

mais à vontade.

Para algumas participantes, o encontro foi um momento de expressar

seus sentimentos devido a sua condição, chegando mesmo a chorar durante a entrevista.

Para outra, foi uma ocasião em que a participante tinha a sua frente uma psicóloga, onde

se sentiu à vontade para narrar as suas atuais dificuldades de um relacionamento

conjugal em crise que, segundo afirmação da mesma afetava diretamente na sua saúde,

pois começava a apresentar alguns sintomas do LES.

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Algumas participantes, mostraram-se mais receptivas durante a

entrevista do que no primeiro contato ocorrido na sala de espera do ambulatório. Isso foi

constatado pela motivação expressa no transcorrer do encontro e a disponibilidade de

novos encontros caso houvesse necessidade. Fato que ratificou o acerto de não ter

desenvolvido a coleta de dados no contato inicial.

Importante destacar também que apesar da decisão em realizar as

entrevistas no ambulatório e não com mulheres que estavam na enfermaria, considerou-

se que estas estariam necessariamente com a doença em atividade e, conseqüentemente,

mais debilitadas tanto física como psicologicamente, não sendo na nossa avaliação um

bom período para realizar a coleta.

Contudo, o fato das participantes não estarem hospitalizadas, não

impediu que uma delas estivesse com a doença em atividade, inclusive sentindo dores

durante a entrevista, mas, disposta em colaborar mesmo nessa situação, negando-se a

adiar o encontro para outro dia. Duas entrevistadas revelaram a necessidade de um

acompanhamento psicológico em virtude da dificuldade em lidar com a doença.

A transcrição das entrevistas também foi realizada pela própria

pesquisadora, estando atenta ao objetivo de compreender o modo de funcionamento, a

organização e as formas de como o sentido foi socialmente produzido (Minayo, 1998).

A estratégia utilizada foi a análise dos discursos partindo do critério

que os textos ou os discursos, como assinala Traverso-Yépez (1999), são seqüências de

signos, os quais produzem sentidos, a partir da (inter) ação social, permitindo, assim,

práticas sociais concretas. Ressalta-se ainda que a prioridade recai sobre os tipos de

argumentações e justificativas que fundamentam as falas, os quais, segundo Minayo

(1998), refletem as condições em que foram produzidos e apreendidos os significados

gerados pelos atores sociais.

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Segundo Traverso-Yépez (1999), as definições e os processos de

significação e produção de sentidos podem apresentar múltiplas formas de expressão e

modificações até no decorrer da própria entrevista.

Concorda-se com Gill (2002), que o contexto de intersubjetivação

permite que os atores sociais estejam permanentemente se orientando no intuito de

construir um discurso adequado, para que os atores sejam aceitos e/ou compreendidos

no contexto em que estão inseridos. Dessa forma, entende-se que o discurso é

circunstancial, variando conforme o local e as pessoas envolvidas na situação

A análise de discurso esteve atenta, além do conteúdo, às três

dimensões relevantes na análise: a função, a construção e a variação, sempre situando o

discurso da pessoa portadora de LES nas suas limitações e possibilidades. Desta forma,

a função corresponde ao discurso enquanto ação, já que, na e através da linguagem se

produz uma realidade pela reinterpretação dos significados. Pinheiro (2000) refere que:

As ações não seriam vistas como conseqüência de processos ou entidades mentais, mas o interesse da análise está em compreender como as noções mentalizadas são construídas e usadas. (...). No relato, está em foco, portanto, o que a pessoa traz, os argumentos utilizados e a explicação dada para torna-los plausíveis, ou seja, o que ocorre numa dada situação, dentro de uma seqüência de atividades (p.185).

Enquanto que a construção, refere-se à utilização dos recursos

lingüísticos preexistentes, ou seja, é a seleção e a escolha de repertórios interpretativos

que constituem o conjunto de termos, os lugares-comuns e as descrições empregadas em

produções gramaticais e estilísticas específicas. A variação está vinculada com o tipo de

ação que o discurso pretende atingir, bem como, com as diversas situações e pessoas

que envolvem o discurso a ser gerado (Spink & Frezza, 2000).

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No intuito de situar a fala da mulher portadora de LES nas suas

limitações e possibilidades, a análise de discurso verificou em que condições a fala foi

produzida, pois, como assinala Rizzini, Castro e Sartor (1999):

As condições de produção caracterizam o discurso. Quando alguém fala ou escreve, o faz para um outro ou outros com um objetivo determinado. (...). Um discurso é preparado pelo seu autor com uma intenção, mesmo que esta não seja totalmente clara para ele (p. 100).

Logo, o processo de analisar a fala produzida pelas participantes

procurou explicar a quem elas estavam se dirigindo, o que diziam e qual sua intenção.

Para tanto, essa análise passou pelas seguintes etapas:

1) Organizou-se o material a ser analisado (transcrição de gravações, considerando as

figuras de linguagem, pausas e as repetições presentes e os dados da observação) de

acordo com os objetivos e questões de estudo;

2) Realizaram-se várias leituras do material, com o objetivo de conhecer e melhor

aprofundar na subjetividade de cada uma das entrevistadas, bem como, definir no

conjunto dos dados, os núcleos temáticos de significação ou categorias usadas para a

codificação relevantes na fala, as quais foram orientadas e determinadas pelas

questões de interesse. Isto é, observou-se como o discurso delas foi construído e que

tipo de ação esse discurso produziu;

3) Buscou-se estabelecer articulações entre o conteúdo expresso pelas participantes e o

referencial teórico da pesquisa, respondendo às indagações com base nos objetivos.

Desse modo, almejou-se instituir uma compreensão dos dados

obtidos, responder as questões formuladas, bem como, ampliar o conhecimento acerca

do assunto pesquisado. Observando, ainda, que as reflexões que foram produzidas

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constituem um recomeço, ou seja, não são verdades absolutas, mas um olhar que

permitirá a construção de novos saberes.

No término da pesquisa, pretende-se demonstrar os resultados obtidos

às participantes e profissionais envolvidos através de encontros e publicações

científicas, tendo em vista que o valor de toda investigação ocorre a partir de sua

comunicação. Portanto, salientando a função social das ciências que, neste caso,

preocupou-se com o processo de adoecer em mulheres portadoras de LES, no intuito de

ampliar o conhecimento e o entendimento delas, mas, também, dos demais profissionais

de saúde que trabalham diretamente com essa demanda.

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6 – Conhecendo os processos de significação e geração de sentidos em mulheres portadoras de lúpus eritematoso sistêmico

Retomando os capítulos que compõem essa produção, o lúpus

eritematoso sistêmico é uma doença crônica e auto-imune que atinge diversas partes do

corpo, essencialmente, a pele e as articulações, podendo ainda, afetar órgãos vitais como

os rins e o coração. Sua etiologia é pouco conhecida e aponta para diversos fatores

como desencadeadores da mesma, tais como a hereditariedade, a presença de estrógeno

e o ambiente (exposição aos raios ultravioleta, estresse, fatores emocionais e

medicação).

Devido a cronicidade e complexidade do LES, seu quadro clínico

pode se desenvolver de várias formas, com uma sintomatologia semelhante a outras

doenças, como será observado a partir das informações fornecidas pelas participantes.

No intuito de manter o LES relativamente controlado e minimizar os

seus sintomas, a pessoa portadora deve passar por uma série de mudanças que

acarretarão algumas implicações na sua vida. Assim sendo, é importante considerar a

forma peculiar de como a doença se expressa na vida concreta de cada pessoa e o

sentido que ela atribui ao seu processo de adoecer, que vai refletir, de fato, nas

diferentes esferas da vida da mesma.

Através dos depoimentos das participantes foi possível compreender

melhor o que é ser portadora de LES. Infelizmente, os livros e artigos científicos, em

sua maioria, transmitem apenas o quadro clínico da doença, sem fazer qualquer menção

à pessoa portadora. Neste trabalho foi possível conhecer a respeito da doença, mas,

principalmente, a visão das mulheres enquanto pessoa que sofre, chora, tem frustrações

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e perdas advindas desse processo do adoecer, que normalmente não é ressaltado nas

pesquisas. Tem constituído ainda uma oportunidade ímpar para ver com maior clareza

essa necessidade de ter um enfoque mais amplo do adoecer, que considere a permanente

interdependência entre as dimensões, biológica, psicológica e social, bem como, a visão

e ação da pessoa que sofre nesse processo.

6.1 - Conhecendo as participantes

Sendo preciso contextualizar e contar um pouco quem são essas

mulheres que comporam o presente estudo, o roteiro de entrevista contemplou perguntas

como: idade, estado civil, escolaridade, religião, profissão e/ou situação ocupacional,

renda familiar; bem como, informações sobre maternidade e ocorrência de outros casos

da doença na família. No momento da transcrição e a fim de respeitar a privacidade das

participantes, cada uma foi identificada apenas com uma letra do alfabeto em ordem

seqüencial.

Assim sendo, a participante “A” tem 22 anos, é católica, solteira e

não tem filhos. No momento está freqüentando o 1º ano do 2º grau, ou seja, o período

que está cursando é incompatível com a sua faixa etária, revelando seu atraso nos

estudos. Ela mora no bairro Bom Pastor juntamente com os seus pais, irmãos gêmeos e

irmã. A renda familiar gira em torno de R$ 480,00 (quatrocentos e oitenta reais). Diante

da complexidade acerca da doença, com um quadro clínico diversificado e similar a

outras patologias, a conclusão do diagnóstico foi difícil, fazendo com que os médicos

levassem seis meses para descobrir que ela tinha LES; nesse momento ela estava com

19 anos, ou seja, ela tem o diagnóstico de LES há três anos. Sua irmã também teve a

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doença, sendo que esta já faleceu, segundo informações da irmã decorrente de

tuberculose e não LES19. A participante revelou-se durante a realização da entrevista

como uma pessoa tímida e pouco comunicativa, precisando que a entrevistadora-

pesquisadora sempre intervisse no intuito de aprofundar suas respostas.

A participante “B” tem 18 anos e está cursando o último ano do

ensino médio. É evangélica, solteira e não tem filhos. A mesma reside no bairro da

Cidade da Esperança juntamente com seus pais e irmãos; não havendo registro de outro

caso de lúpus na família. A renda familiar é em torno de R$1.440,00 (um mil,

quatrocentos e quarenta reais). A mesma levou dois meses para descobrir que estava

com LES, estando na época com 17 anos. Assim, ela convive há um ano com a doença.

“B” foi para a entrevista acompanhada da irmã (17 anos), a qual algumas vezes

interveio nas respostas da entrevistada. Segundo a participante, a irmã está sempre

ciente das suas visitas médicas e das recomendações estabelecidas, o que revela a união

e cumplicidade entre as duas irmãs. Durante o desenvolvimento da entrevista, a

participante mostrou-se muito comunicativa e alegre, embora no contato inicial

mostrara-se muito retraída e tenha afirmado que não gosta de falar sobre a sua doença.

A participante “C” tem 42 anos, cursou até o 2º grau completo, é

católica, solteira e não tem filhos. Conviveu maritalmente com uma pessoa durante

quatro anos, tendo nesse período evitado a gravidez; posteriormente se separou e desde

então não teve outro relacionamento. Agora mora no bairro de Felipe Camarão, junto

com a mãe, irmã e sobrinha. Já trabalhou como operadora de caixa e atualmente se

mantém com a pensão dada pelo ex-marido, com a qual perfazem uma renda familiar

em torno de R$ 800,00 (oitocentos reais). Quanto a sua experiência com a doença, ela

levou 6 meses para chegar ao diagnóstico de LES, tendo na ocasião, 26 anos, pelo que 19 Embora ela faça essa atribuição, destaca-se que o LES atinge o sistema imunológico, deixando-o debilitado podendo apresentar infecções de todo tipo (Zerbini & Fidelix, 1989).

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se conclui que há dezesseis anos ela convive com a mesma. Durante a entrevista

mostrou ser uma pessoa tranqüila que procura informações acerca da sua doença e que

não descuida da sua saúde.

A participante “D” tem 39 anos, cursou até a 4ª série do ensino

fundamental. É solteira e tem dois filhos (15 e 16 anos). Convive com a irmã, neto desta

e os seus filhos no bairro do Bom Pastor. No passado foi auxiliar de costura, mas

atualmente, está aposentada por invalidez. Somando o valor da aposentadoria e o

aluguel que a mesma tem de dois imóveis na zona norte, com a pensão da irmã deixada

pelo marido falecido, além do comércio existente na residência da irmã, totalizam uma

renda em torno de R$ 760,00 (setecentos e sessenta reais). Apesar de ter um imóvel

próprio, a entrevistada prefere morar com a irmã porque teme morar sozinha com os

filhos em decorrência da sua patologia. No tocante a sua doença, os médicos levaram

um ano para apontar o diagnóstico de LES, estando a mesma no período com 26 anos; o

que indica que ela tem a doença há 13 anos. Durante a entrevista, mostrou-se

depressiva, revelando-se como uma pessoa pessimista. Falava preocupada e chorando

em alguns momentos sobre o medo de morrer e inconformada pelo fato da doença ser

incurável, sempre se referindo a esta como um sofrimento e se colocando na posição de

vítima. Ficou evidente que ela necessita de um acompanhamento psicológico para lidar

melhor com a sua condição.

A participante “E” tem 39 anos, é solteira e tem um filho de oito

anos. Afirma que não tem uma religião específica, freqüentando tanto a igreja católica

quanto à evangélica. A mesma tem um baixo nível de escolaridade, tendo cursado

somente até a 2ª série do ensino fundamental. Trabalhou como auxiliar de serviços

gerais, mas no momento se mantém com o auxílio provisório (encostada pela perícia)

fornecido pelo governo. Tendo em vista, que ela não está em condições de ter sua

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própria moradia tem sido necessário residir com a sua irmã, cunhado e sobrinha no

bairro do Alecrim. A renda familiar perfaz um total de R$ 480,00 (quatrocentos e

oitenta reais). A investigação diagnóstica levou oito meses até chegar a conclusão de

que ela tinha LES, ocasião em que ela estava com 37 anos; assim sendo, sua experiência

com a doença é apenas de dois anos. A mesma declara ter uma prima que também é

portadora de LES. No dia da entrevista, “E” estava com dores, contudo, não quis marcar

para outro dia. Mostrou ser uma pessoa muito reservada, mas com um discurso

reiterativo sobre a preocupação em transmitir a doença para o filho, bem como,

abandoná-lo no caso dela falecer, chorando algumas vezes durante o encontro. O pai da

criança está com câncer e tendo outra família é totalmente ausente no cuidado com o

garoto, o que aumenta a sua preocupação.

A participante “F” tem 46 anos, é católica, cursou até o ensino médio

(magistério). Está separada há dez anos e tem quatro filhos, vindo a morar com três

deles no bairro de Nova Natal, não tendo nenhum tipo de apoio financeiro do ex-

marido. Atualmente está aposentada e faz serviço de crochê sob encomenda, mas

anteriormente trabalhava como costureira-operária na fábrica Coteminas. Somando os

seus rendimentos com os do filho mais velho (separado e que tem, também, que manter

os seus filhos), a renda familiar é em torno de R$ 550,00 (quinhentos e cinqüenta reais).

Embora, ela fale que o diagnóstico do LES demorou aproximadamente três meses, no

seu discurso fica claro que passou algum tempo com muitas dores, mas resistindo ir ao

médico porque isso significava se afastar do trabalho. Tinha na época 39 anos,

convivendo, portanto, com a doença há sete anos. A entrevista aconteceu na casa dela e

durante a mesma, mostrou ser uma pessoa tranqüila, comunicativa e consciente da sua

situação e dos cuidados para que esta não se agrave.

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A participante “G” tem 21 anos, é católica, solteira e está fazendo um

curso técnico de enfermagem. A mesma mora com seus pais, dois irmãos e uma prima

na cidade de Ceará-Mirim. A família se mantém com uma renda mensal em torno de R$

1.000,00 (um mil reais). Sobre a sua doença, ela informou que demorou quatro meses

para chegar ao diagnóstico e aos 18 anos descobriu que estava com LES. “G” convive

com a doença há três anos e referiu ter uma prima que também tem a patologia. No dia

da entrevista foi acompanhada do namorado, mas entrou sozinha para a realização desta.

No decorrer da mesma, revelou ser uma pessoa comunicativa e risonha.

A participante “H” tem 44 anos, é católica, casada há 23 anos e com

uma filha adotiva, residindo no bairro de Nova Natal. Informou que teve dois abortos e

após essas duas tentativas resolveu adotar uma criança. A mesma é formada em Letras e

já cursou Teologia. Foi professora de ensino fundamental e médio e, na atualidade, está

aposentada por invalidez. Porém, exerce outras atividades como escritora, responsável

das relações públicas na Associação Jornalística e Escritora do Brasil, vendedora

autônoma e voluntária da Liga Feminina Contra o Câncer. Somando os seus

rendimentos com o do marido que é taxista, a renda familiar é em torno de R$ 1.100,00

(mil e cem reais). Sua luta para descobrir a doença que tinha levou um ano, chegando ao

diagnóstico de LES aos 37 anos; o que significa que ela convive com a doença há sete

anos. A entrevista foi realizada na sua casa e, além de ser comunicativa, mostrou-se

como uma pessoa hospitaleira e preocupada em agradar a entrevistadora.

A seguir, mostra-se um resumo desses dados sócio-demográficos,

apresentando também, nos casos que se fizer necessário, à distribuição por freqüência.

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Tabela 3: Identificação das participantes

Participantes Idade Estado civil Escolaridade Religião

A 22 anos solteira 1º ano do 2º grau católica

B 18 anos solteira 3º ano do 2º grau evangélica

C 42 anos solteira 2º grau completo católica

D 39 anos solteira 4ª série do 1º grau católica

E 39 anos solteira 2ª série do 1º grau católica/evangélica

F 46 anos separada 2º grau completo católica

G 21 anos solteira 2º grau completo católica

H 44 anos casada 3º grau completo católica

Com relação à maternidade, como a literatura aponta (Zerbini &

Fidelix, 1989; Lockshin, 2001), observa-se que o fato de ser portadora de LES não

impede a possibilidade de ter filhos. Assim, três das entrevistadas engravidaram e,

inclusive, uma delas, quatro vezes. Contudo, deve-se destacar que durante a época da

procriação, nenhuma delas tinha ainda o diagnóstico. De qualquer forma, no caso de

“H”, apesar de que a doença surgiu há sete anos e os dois abortos que sofrera

aconteceram muito tempo antes, ela acredita que o fato de não conseguir gerar uma

criança está relacionado a sua condição de ser portadora de LES.

É bom lembrar também que, inclusive, com a doença diagnosticada,

nada impede engravidar, mas sendo apenas recomendável tomar as precauções para que

isso aconteça quando a doença está inativa. Provavelmente, decorrente desse fato as

mais novas das participantes têm como projeto de vida formar uma família e ter filhos.

Percebe-se que somente duas entrevistadas têm apenas ensino

fundamental e as restantes possuem ensino médio (embora duas delas incompleto),

salientando que uma delas ainda tem formação universitária.

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A renda per capta de seis das participantes é inferior ao valor do

salário mínimo como mostra a tabela abaixo. Essa renda tende a decrescer ainda mais,

considerando que um dos membros da família é portador de uma doença crônica, a qual,

na maioria dos casos, tem que ser mantida sob controle através de medicamentos.

Tabela 4: Renda per capta

Renda per capta (R$) Total 80,00 a 180,00 5 181,00 a 281,00 1 282,00 a 382,00 2

Nota-se que quatro mulheres moram com os seus pais; enquanto duas

residem com outros familiares. Dentre estas, “D”, apesar de ter casa própria prefere

residir com a irmã porque teme morar sozinha com seus filhos adolescentes por causa

da doença, embora tenha destacado que no passado esse convívio lhe trouxesse

sofrimento pelo alcoolismo do cunhado já falecido:

Moro com minha irmã, o marido dela que morreu, ele era alcoólatra... a gente sofria muito nas mãos dele, sabe. Dentro de casa assim, porque conviver com alcoólatra não é fácil. E a gente convivia com ele. Eu cheguei, fui embora, morar sozinha, mas eu não... morei. Não consegui porque eu tinha medo de morar sozinha, com eles dois, né. Voltei pra casa. Aí, agora não, a gente tá tranqüila. Só eu e ela, eles dois e o neto da minha irmã. (...) não tem mais aquele aperreio não, a agonia que a gente tinha. (D – 39 anos)

O caso de “E” é diferente, já que afirma que diante do fato de não ter

condições financeiras para ter sua casa, ela e o filho têm que morar com sua irmã, ainda

que isso seja uma fonte permanente de estresse decorrente dos problemas com o

cunhado e a sobrinha de 24 anos:

Sempre morei. Aí, ela com a filha dentro de casa, eu tenho um menino, aí já arenga. Aí, tudo é problema, né. Eu fico

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nervosa, né. Não quero que... bata no meu filho. Aí, prejudica (...) sinto muita dor, fico agitada, muito agitada. (E – 39 anos)

O discurso de algumas participantes revela como o ambiente familiar

que deveria ser acolhedor, tem sido fonte de estresse emocional, acarretando danos à

saúde delas. Assim, além das dificuldades econômicas, a situação dessas duas mulheres

que são acolhidas por parentes, evidencia os problemas advindos dessas dificuldades e

do próprio processo de adoecer. A primeira (D - 39) tem onde morar, mas em virtude do

seu medo acabou tendo que conviver com o alcoolismo do cunhado, o que lhe

provocava raiva e a deixava ainda mais doente. Enquanto, que a segunda (E - 39) recebe

o apoio da irmã, ao fornecer moradia a ela e ao filho, entretanto, isso também prejudica

o seu estado de saúde em virtude das brigas entre os filhos delas.

Entre as outras duas mulheres, “F”, os filhos moram com ela e “H”

reside com o marido e a filha. Apesar de “H” morar na sua casa, durante a entrevista

deixou muito claro que seu casamento estava em crise pelo fato do marido estar

mantendo um relacionamento extraconjugal e ter tido uma filha recentemente do

mesmo. A entrevista funcionou ainda como um espaço para que ela falasse amplamente

sobre essa crise conjugal e o quanto isso propiciava o retorno dos sintomas:

As mudanças ocupacionais ocorridas a partir do surgimento da

doença (Tabela 5) indicam que cinco participantes deixaram de exercer suas atividades

profissionais (operadora de caixa, auxiliar de serviços gerais - ASG, auxiliar de costura,

costureira-operária e professora) devido à doença.

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Tabela 5: Situação profissional e ocupacional

Nº Situação antes da doença Após a doença Ocupações atuais

1 Operadora de caixa Pensionista Nenhuma 1 Auxiliar de serviços gerais (ASG) “Encostada pela perícia” Nenhuma 1 Auxiliar de costura Nenhuma 1 Costureira-operária Trabalho

manual 1

Professora

Aposentadas por invalidez Escritora, relações públicas,

vendedora autônoma e voluntária.

3 Estudante Estudante Estudante

As únicas participantes que não tiveram mudanças ocupacionais em

decorrência do lúpus foram às estudantes, já que estas, pela idade e tipo de atividades

(os horários e atribuições exigidas tendem a ser mais flexíveis), podem suspender

temporariamente as atividades no decorrer do processo de adoecer, embora isso possa

ser fonte de atraso no processo de formação.

Importante destacar que as atividades de operadora de caixa, auxiliar

de costura, costureira-operária e ASG são ocupações que requerem muito das

articulações, ossos e músculos; enfim, áreas em que o lúpus mais se manifesta como se

pôde constatar na tabela 1, mencionada no capítulo 2. Contudo, uma dessas mulheres

aposentadas (“F”) continua fazendo trabalho manual (crochê) em casa após o

afastamento do trabalho. Enquanto que a professora (“H”) desenvolve múltiplas

atividades (escritora, relações públicas, vendedora e voluntária na Liga Feminina Contra

o Câncer) que lhe fornecem um sentido de realização e controle de sua vida.

... a minha doença só me ajudou a crescer como pessoa. (...) depois dessa minha doença; foi bom ter acontecido porque eu vi que a gente não é nada. Não é nada no sentido assim de ser humano. A gente somos... um instrumento de Deus, digamos assim, que tamos aqui pra

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passar por algumas aprovações. Eu fui uma delas, né. (...). Não que eu fosse diferente das outras pessoas. Mas eu achava que, por se, por ser formada, por ser isso, ser aquilo outro, escritora, ser a tal, né, posição social. Eu achava que eu nunca ia adoecer e eu me sentia talvez... no pedestal que eu deveria ficar. E foi bom que eu vi que não era por aí. Que a gente não é nada e que tamos aqui pra levar, pra caminhar, não sabe como. É tanto que depois da minha doença, eu fui ser voluntária, né. Já tô no Luiz Antônio, na Liga, na Rede Feminina Contra o Câncer... (H – 44 anos)

Fica evidente que após o estado de choque inicial, a convivência com

a doença trouxe a essa participante um novo olhar acerca de si e dos outros. Permitiu

que ela percebesse, a partir da eclosão do LES, que ela era frágil como todo mundo e

que o fato de ter formação superior não a colocava numa posição favorável as outras

pessoas que não se situavam no mesmo patamar que ela. Contudo, “H” mostra como o

LES ordenou a sua vida e permitiu o surgimento de novos empreendimentos (Remen,

1993).

No caso de “E”, que se encontra “encostada pela perícia”, durante a

entrevista expressa que uma fonte de preocupação permanente é sua situação indefinida

no Instituto Nacional de Serviço Social-INSS, há dois anos. Desde que soube que tinha

LES está lutando, sem sucesso até hoje, para conseguir o benefício da aposentadoria em

definitivo e assegurar sua renda mensal de um salário mínimo.

Porque se eu tivesse assim... aposentadoria, ia ser bom, né. Porque de três em três meses tem que renovar (...). (E – 39 anos)

Considerando a impossibilidade de trabalhar e ainda bancar com os

gastos extras que elas têm com os remédios, a garantia de ter uma renda fixa todo mês,

mesmo que baixa, é algo que lhes traz tranqüilidade, pois seria mais difícil aderir ao

tratamento medicamentoso caso não tivessem o auxílio do governo.

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A minha vida hoje tá melhor. (...) porque eu tenho minha aposentadoria, né. Teve época, quando eu adoeci, eu não tava trabalhando. Meus filhos era pequeno. Não tinha nem com que comprar um remédio pra mim. Eu sempre tinha que pedir uma irmã, pedir pra alguém. Até comida pra eles, eu tinha que pedir a alguém pra dar porque minha irmã na época também não tinha condições. Hoje não, eu tô bem. Graças a Deus... quanto mais eu me sinto bem, mais eu me sinto aliviada, da dor, (...). Porque essa doença, é... o remédio mais à tranqüilidade. (D - 39 anos)

Pode-se observar que a doença impediu que cinco participantes

continuassem seus trabalhos regulares. Porém, para algumas dessas mulheres permitiu a

realização de outras atividades, as quais não se enquadram na rotina determinada pelo

Ministério do Trabalho, ou seja, obedecendo a uma jornada em torno de 6 a 8 horas

diárias. Uma carga horária fixa torna-se, na maioria dos casos, impraticável dependendo

dos sintomas apresentados quando a doença entra em atividade. Além das diferentes

complicações que a doença pode trazer, quando afeta as juntas provocando dores e

inchaço, a maioria declarara ficar impossibilitadas de se locomover, o que exige a

paralisação de toda atividade.

Em relação à questão sobre outros casos de LES na família, os dados

coletados indicam que cinco mulheres não apresentam nenhum outro registro da doença

na família; enquanto três mencionaram outro caso. “A” teve uma irmã que também teve

lúpus (na entrevista ela conta que esta faleceu, mas devido à tuberculose) e, “E” e “G”

afirmam ter uma prima que também é portadora de lúpus. Destaca-se também, que “A”

cita ainda o caso de outra pessoa na família que morreu com diagnóstico de câncer nos

ossos, mas com os mesmos sintomas do LES. A participante “H” durante a entrevista

questiona se o que causou a morte da sua avó não teria sido LES, porque a mesma

apresentou uma sintomatologia parecida com a sua, além delas serem parecidas

fisicamente. Isso remete e reforça a idéia da predisposição hereditária como uma das

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explicações sobre a etiologia da doença (Zerbini & Fidelix, 1989; Sato, Meinão &

Assis, 1999; Sato et al, 2002).

6.2 - Experiência da doença

De forma geral, esse sub-item exprime as formas como as mulheres

entrevistadas declararam experimentar o LES, desde o surgimento dos primeiros

sintomas, passando pelo processo de diagnóstico até o momento atual. Assim, o

seguinte bloco temático que orientou a entrevista tem a ver com a idade da portadora no

surgimento dos primeiros sintomas, tempo passado até ter o diagnóstico, qual fora sua

reação original nesse momento, a sintomatologia que, geralmente, apresenta, atribuições

que fazem com relação ao aparecimento do LES, mudanças e limitações que a doença

acarreta em suas vidas, além das atribuições que fazem com relação ao retorno dos

sintomas.

6.2.1 – Surgimento dos primeiros sintomas até o momento do diagnóstico e tempo

de convivência com a doença

Como aponta a bibliografia consultada, o diagnóstico da doença não é

fácil e esse tempo, desde o surgimento dos primeiros sintomas até o diagnóstico

definitivo, pode se prolongar e ser marcado por grandes incertezas (Radley, 1994;

Edelmann, 2000).

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Tabela 6: Tempo de investigação, idade no diagnóstico e tempo de diagnóstico

Tempo de investigação

diagnóstica

Idade no

diagnóstico

Tempo de

diagnóstico

2 a 4 meses 3 17 a 19 anos 3 1 a 3 anos 4

5 a 7 meses 2 26 anos 2 7 anos 2

8 a 12 meses 3 37 a 39 anos 3 13 a 16 anos 2

Observando o tempo de diagnóstico das participantes, pode-se

constatar que todas as entrevistadas tiveram o surgimento da doença em período fértil

(entre 17 e 39 anos). Coincide com a faixa etária mencionada na literatura, que aponta a

maior incidência entre os 16 e 30 anos, segundo Zerbini e Fidelix (1989), e entre os 15 e

45 anos, conforme Sato (1999).

Sobressai-se, ainda, que metade das mulheres entrevistadas já tem o

diagnóstico de LES, por um tempo igual ou superior a sete anos. Ou seja, apesar da

coleta findar sendo aleatória às participantes que apareceram, permitiu compor dois

grupos: um com tempo maior (7 a 16 anos) de experiência da doença e outro, com

período menor (1 a 3 anos). Todavia, esse maior tempo de convivência com a patologia

parece não contribuir significativamente na forma de perceber a sua enfermidade na

atualidade, uma vez que há outros fatores que o influenciam como a reincidência e

gravidade dos sintomas, apoio de familiares, a própria personalidade, a estrutura

familiar (ter ou não filhos), idade, projetos de vida e outros.

Praticamente todas as entrevistadas coincidem em relatar momentos

de muito sofrimento físico e psíquico, já que, manifestavam diversos sintomas, sem

saber exatamente a razão destes. Diante da complexidade da patologia, para a doença ter

um nome acarretou uma longa fase de investigação diagnóstica (ver tabela 6),

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configurando-se como uma peregrinação por vários especialistas e além de todo o mal-

estar, inúmeras dúvidas e temores.

Era muita dor. Primeiro foi uma dor aqui no pescoço (mostra o pescoço). Nem olha assim nem assim (pro lado). Aí fui pro médico, o médico achou que era alguma torcicolo que tinha dado, alguma coisa assim, começou a passar remédio pra relaxar... os nervo e tudo. Aí essa dor foi descendo, descendo pro braço, descendo pra qui. Aí foi, fiquei de um jeito que não podia mais levantar os braços, começou a inchar. Tudo quanto era junta minha inchava. Aí eu comecei a vim pra cá, aí comecei a fazer tratamento. Isso levou um bocado de tempo pra descobrir que era lúpus. (D – 39 anos) Eu tinha os sintomas e ainda não tinha... foi horrível. É uma coisa assim, muito... muito sofrida assim pra mim porque todos os médicos que eu fui, ninguém descobriram, foi muito assim, a gente já tava pensando que era uma coisa muito mais séria, mas graças a Deus eu vim pra cá, pra esse hospital, encontrei uma médica excelente, Dra. Maria José e graças a Deus hoje eu tô bem. Mas no começo foi muito difícil pra mim. Foi muito... muito é... como é que fala, foi muito difícil, muito crítico meu estado, tava muito crítico.... no começo. (G – 21 anos) Esse período era assim, um período de descoberta. Era o período de fim de vida (...) a morrer, né. Às vezes o povo vinha me visitar já com um olhar de piedade.Tão novinha, meu Deus. Não tem mais jeito, aquela coisa toda, né. (...). E o pior disso, antes deu ir pro Onofre Lopes, eu me internei no ... Giselda, eu fiquei lá... onde eu passava por vários processos. Foi horrível meu internamento no Giselda porque eu achava que tava com AIDS. (H – 44 anos)

Com relação à reação ao diagnóstico, as mulheres em sua maioria

declararam ter passado por momentos difíceis na hora de recebê-lo, o qual parece se

tornar um delimitador de águas; pois, o diagnóstico é tanto uma definição da patologia

como um momento em que a vida da pessoa pode sofrer mudanças significativas

conforme as especificidades da doença e dos sintomas que cada uma experimenta.

Ademais, fica em evidência que as pessoas reagem de formas diferentes diante de

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acontecimentos que podem parecer similares, dependendo em muito da história de vida

de cada uma, bem como, do momento e circunstâncias que elas estão vivendo (Remen,

1993; Radley, 1994 e Edelmann, 2000).

O momento do diagnóstico, portanto, passa a ser o início de

mudanças na vida da pessoa portadora, tendo em vista que o LES precisa ser controlado

no intuito de minimizar a reincidência dos sintomas, bem como, o seu agravamento.

Observa-se que em relação ao modo como reagiram ao diagnóstico, a maioria das

participantes expressou um sentimento de choque, centrado em torno da constatação do

fato da doença não ter cura.

Ah, fiquei arrasada. Quando o médico falou pra mim que essa doença não tinha cura; ela só tinha controle. (...). Fiquei... totalmente fora de mim. Fora de mim... porque é ruim ter essa doença e saber que você não vai poder ficar boa, (...) vai ter que conviver com ela pro resto da vida. (B – 18 anos) Ah, eu fiquei... eu nem sabia direito o que era. Fiquei mais triste quando soube que não tinha cura. Que ele dizia pra mim, ele disse abertamente assim: ó, é uma doença que não tem cura, mas pode ser controlada. Pode viver normalmente. Mas não é a mesma coisa. Jamais! (D – 39 anos)

Evidencia-se nos depoimentos as inquietações de todo tipo, oriundas

da insegurança acerca de como seria sua vida a partir desse momento, uma vez que o

prognóstico é incerto e inevitavelmente exigirão mudanças, nem sempre fáceis ou

viáveis, no estilo de vida (Radley, 1994; Edelmann, 2000). Na pesquisa nos deparamos

com situações que podem ser piores nos casos das pessoas com limitados recursos

econômicos.

Contudo, diante da história do sofrimento durante a fase dos

primeiros sintomas, em alguns casos o diagnóstico tornou-se, também, uma forma de

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alívio. Assim para “F”, o fato de saber que não era câncer se contrapôs ao possível mal-

estar do diagnóstico.

...mas eu perguntei a ele... pra mim pior seria se ele tivesse dito que eu tava com câncer. Aí, eu acho que eu tinha morrido ali mesmo porque é uma doença que eu morro de medo. (F – 46 anos)

Percebe-se que “F” vincula o seu medo à outra doença (câncer). Está

implícita a idéia, ainda muito presente, no imaginário social de que o câncer conduz

necessariamente a condição de finitude (Spink & Gimenes, 1994). Observa-se, também,

nos discursos, que sendo os sintomas tão fortes, é bastante comum pensar em outras

doenças incuráveis, inclusive AIDS, como fora o caso de “H”. Igualmente, “G” se

lembra que uma das fontes de maior sofrimento foi quando no bairro espalharam a

fofoca de que tinha AIDS:

Eu já tava melhorando, meu cabelo caiu muito, ficou bem ralinho, aí já tava nascendo cabelo, já tava voltando, aí eles viram que não era aquilo, né. Falaram muita, muita calúnia sobre mim nesse tempo.Dizia que eu tava com AIDS... (G – 21 anos)

A associação entre o LES e outras doenças crônicas até se justifica

pela gravidade e semelhança da sintomatologia. Além do estigma inerente a uma doença

incurável, o LES também traz marcas visíveis da patologia, tais como queda do cabelo,

manchas e escoriações graves na pele, o inchaço e a deformação do corpo, seja pela

doença e/ou pelos medicamentos, o que atrai a atenção e até preocupação ao contágio

por parte das pessoas que desconhecem a doença (Radley, 1994). Isso pode ser

percebido nos discursos das participantes que giram em torno das seguintes

características:

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1. Semelhança entre os sintomas,

Porque minha, minha, uma pessoa da minha família já morreu de câncer... nos ossos e a pessoa começa a sentir os mesmos sintomas assim... sabe, do lúpus, dores, inchaço, vermelhaço. (A – 22 anos)

2. O fato de não ter cura,

... uma doença que não tem cura. É a mesma coisa de você ser um diabético, você ter um câncer. O câncer mata também, né. Mata, só que mata mais rápido. (D – 39 anos)

3. O receio das pessoas quando se deparam com a pessoa portadora.

... então não é diferente de um CA. Porque do mesmo jeito que o povo tem receio de uma pessoa cancerosa, tem de um portador de lúpus. (G – 44 anos)

Outro sentimento que está presente nesse momento é o

inconformismo. Isso ficou em evidência na fala da entrevistada “H” diante do impacto

inicial frente a um diagnóstico, cujo prognóstico dependeria de uma série de alterações

no seu estilo de vida a fim de ter a doença relativamente controlada. Dessa forma, a

enfermidade é experimentada como uma força exigindo mudanças de planos e

ignorando as escolhas pessoais (Remen, 1993). Assim, ela teve que deixar

imediatamente a sala de aula para conviver com essa nova realidade.

De repente, eu tava na ativa, ensinava de 5ª ao 2º grau, escolas grandes como o Atheneu, José Sotero, ah, muitos colégios, ia pro Sara Aguiar, muitos colégios. Escola privada, ensinei também (...). E eu tive que me afastar de sala de aula imediatamente, então, isso pra mim foi horrível, conviver com o afastamento do trabalho de repente, né. (...). Pra mim foi assim, não tinha mais solução. Não tinha jeito. Pra mim, eu ia morrer. Nada me conformava. (H – 44 anos)

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A reação de outra entrevistada, mostra-se mais acomodada com a

situação. Justifica-se talvez pelo fato de não ter interrompido um trabalho, já que, no

momento de aparecimento dos sintomas, ela estava desempregada, bem como, pelo

desconhecimento que também tinha acerca da complexidade e gravidade da doença.

Eu me senti assim... não fiquei muito nervosa, né. Não sabia realmente, eu não tinha idéia o que era o lúpus, né. (...) porque realmente ela não é uma doença boa, mas a devido pelo tempo que eu tenho, eu nem acho.. Me conformei, né. Mas chorei muito, fiquei muito... viche! Eu cheguei a passar até numa psicóloga. (C – 42 anos)

Contudo, pode até chamar a atenção a atitude da participante “A” cuja

irmã falecida teve a mesma doença. Esta se mostrou indiferente quanto ao diagnóstico,

o que possivelmente para qualquer leitor seria uma reação não condizente com a

realidade que ela vivenciou com a irmã:

Pra mim não foi assim... um baque não, porque eu já estava cuidando da minha irmã, já sabia como é que era.. Eu recebi a notícia normal. (A – 22 anos)

Evidencia-se no processo da pesquisa, a variedade de formas de

encarar a doença dependendo da pessoa, a experiência de vida, e até o grau de

maturidade para perceber a dimensão e implicações da mesma (Radley, 1994). Deste

modo, é impossível pensar em uma forma unívoca de lidar com a doença.

6.2.2 – Algumas atribuições que as mulheres fazem sobre o surgimento da doença

Como se desconhece uma etiologia exata do LES e se prefere falar de

ser uma doença multifatorial, na qual diversos fatores emocionais e/ou estresse podem

estar inter-relacionados com a predisposição hereditária, é relevante saber se a doença

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se manifestou em alguma circunstância específica. Assim sendo, em relação à

possibilidade de algum acontecimento ter contribuído para o aparecimento do LES,

algumas mulheres alegaram que o surgimento coincidiu com momentos de perda e

sofrimento emocional. Para “E” coincidiu com a dor decorrente da separação do pai do

seu filho e “D” também associa com a perda do sobrinho:

Acredito. Foi com certeza. Assim... eu tenho um sobrinho que ele morava, morava ali não, morava longe. Aí ele se suicidou, se suicidou. (...). Aí, eu tava, tinha ido buscar o menino no colégio, quando eu cheguei em casa, tinha um rapaz lá em casa esperando (...) aí deu a notícia a mim, né. Pronto, no outro dia, eu amanheci com uma dor... no pescoço (...). Aquilo foi um... choque pra mim.. Pronto, a partir disso aí... aconteceu (...) acabou... minha vida modificou (D – 39 anos) (...) na época que eu adoeci, foi uma grande decepção com ele. Meu esposo. (...). Tivemos que mudar pra Mossoró... de imediato. Porque ele queria que eu fosse pra lá porque ele trabalhando lá e pra ficar pra lá e pra cá, ia ficar dispendioso. Quer dizer (...) tinha que morar lá e eu fui morar lá. E eu fui e quando cheguei lá. E minha maior decepção, foi que eu tomei conhecimento. Quando eu vinha pra cá, pra aqui nossa casa em Natal.Ele ficava com a mulher na minha casa. Então isso pra mim foi um choque tão grande... (H – 44 anos)

Para “F” não foi apenas a decepção com o casamento, somado a uma

vida de muito sofrimento, mas também considerou o estresse decorrente do excesso de

trabalho. Assim se junta o fato de ser uma pessoa muito responsável e auto-exigente,

com um outro fato de trabalhar numa fábrica que valorizava a produtividade, gerando

nela uma dinâmica que poderia ser considerada até exagerada por superar todas as

metas e garantir uma renda melhor para manter seus quatro filhos:

Contribuiu. Muito sofrimento. Eu sou uma pessoa muito sofredora, nunca tive sorte na minha vida com nada. Sempre fui pobre, vim de família muito pobre, criada com muita dificuldade, muita dificuldade mesmo. E quando eu me casei, eu achava que ali seria o meu, o meu ponto pra

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ter uma vida melhor, pelo menos sossego, mas foi engano meu. Foi pior ainda. Meu marido era uma ótima pessoa assim, mas... ele era muito raparigueiro, aí não deu pra gente viver. Eu sofri demais, demais mesmo na mão dele por causa de mulher. (F – 46 anos) Trabalhava 8 horas em cima de uma máquina, costurando. E fábrica você sabe como é, né. Você tem que trabalhar, não é história de você trabalhar 8 horas e ser brincando não. Você trabalha ali correndo, pra dar uma determinada meta, porque eles pedem, né. Então tem que trabalhar às 8 horas sem parar, aí a gente só tinha meia hora de almoço e o resto era em cima da máquina, correndo, na maior rapidez que pudesse. (...). Eu sempre passava da minha meta todo dia, mas eu corria muito pra isso. Quando chegava no final do expediente, eu tava só arquejando (...).Tinha dia que era pra gente sair ás 10 da noite, aí a chefe chegava e dizia: quem quer ficar fazendo extra? Aí, eu ainda ficava. Tinha dia que eu chegava em casa de 4 horas da manhã, de 4 e 20 (...). aí, dormia aquele pouquinho, quando dava 6 horas eu tinha que tá em pé que era pra dar conta do recado, pra quando eu sair pra trabalhar deixar tudo pronto. (F – 46 anos)

Embora no caso de “A” e de “G” o aspecto hereditário seja relevante

pelo fato da primeira ter a irmã e a segunda, a prima com o mesmo diagnóstico, elas

atribuem o aparecimento da doença à exposição solar:

Eu acho que foi mais o sol que eu levei. (...) eu acho que foi o sol que afetou mais, porque a doutora disse que afetou os meus nervos. Então eu acho que foi o sol. (A –22 anos) Acredito. O sol. Eu tomava muito sol. Eu todo final de semana tava na praia, praia, praia. E teve uma vez que quando saiu as manchas... é... no domingo eu fui pra praia na outra semana surgiu as manchas, só que (...) eu pensei que era bronzeado normal, né, mas a da minha amiga ficaram normal e a minha não voltou ao normal, ficou aquela ferida, aquela mancha borboleta. Aí... eu acho que foi o sol, a única... (G – 21 anos)

Os discursos das participantes acerca do que acreditam possa ter

contribuído para o surgimento do LES, coincidem com os fatores citados na literatura,

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como desencadeadores da doença, tais como situações de perda, o estresse e exposição

aos raios ultravioletas (Zerbini & Fidelix, 1989; Mello Filho & Moreira, 1992; Sato et

al, 2002). Em contrapartida, “B” e “C” não fizeram referência a quaisquer

acontecimentos para o surgimento do LES.

Relembrando que o LES é uma doença cujos sintomas são múltiplos, a

tabela a seguir mostra a variedade desses sintomas mencionados pelas participantes.

Além de revelar a complexidade do quadro clínico apresentado por elas, fica em

evidência o porquê dessa patologia ser confundida com outras doenças e o quanto se

torna difícil para o médico chegar ao diagnóstico, fazendo com que a investigação

perdure por alguns meses.

Tabela 7: Principal sintomatologia apresentada no início e durante o curso da doença

Sintomas Total

Inchaço nas articulações 8 Dor (ossos, tornozelo, joelho, ombro, cabeça, pescoço) 8 Vários problemas de pele (manchas avermelhadas, roxa, ressecamento) 8 Ficar sem andar (disfunção das habilidades motoras) 5 Estado depressivo 5 Febre 3 Problema respiratório 3 Queda de cabelo (alopecia) 3 Problemas de visão 2 Feridas (cabeça, boca, orelha) 2 Problemas de circulação – vasculite 2 Perda de peso 2 Inflamação nos rins 1 Problemas no coração 1 Pressão alta 1 Ascite (acúmulo de líquido na cavidade abdominal) 1 Unhas pretas 1 Perda de peso 1 Aumento de peso 1 Sangramento na gengiva 1 Anemia 1 Nódulo 1

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A maioria das participantes destaca a presença de sintomas

simultâneos, sendo o inchaço e dores em diversas partes do corpo, as principais queixas

sintomáticas apresentadas por elas. Constata-se que a artrite afeta a todas as

participantes, estando de acordo com Zerbini e Fidelix (1989), que apontam esta como

um dos sintomas essenciais que atinge as pessoas portadoras de LES. A inflamação das

juntas pode ser tão severa, que cinco das entrevistadas afirmam ter perdido totalmente a

possibilidade de se locomover nos momentos de crise. Assim, “B” com 17 anos na

época expressa:

Só era dor...(...) muita, muita dor mesmo, eu não conseguia ficar nem de pé (...) Eu passei dois meses, dois meses, assim deitada na cama, sem poder nem me mexe... (B – 17 anos)

Os problemas na pele também são apontados por todas as

participantes. Pela severidade de certos casos, atinge não só o aspecto físico da pessoa,

mas, também, o psicossocial, uma vez que afeta a imagem corporal da pessoa no

momento em que os sintomas estão se manifestando e/ou ao deixarem algumas

cicatrizes ao regredirem (Zerbini & Fidelix, 1989; Meinão, Assis & Sato, 1999). Isso

pode causar constrangimento à pessoa portadora diante dos outros que ficam curiosos e

até chegam a questionar o tipo de doença que a pessoa tem, bem como, se esta é

contagiosa.

Considerando que o sistema nervoso também é atingido pelo LES, os

casos de depressão foram evidentes, principalmente no início da doença. Embora seja

difícil distinguir se fazia parte da doença ou em decorrência do impacto emocional

gerado por toda a situação (Shapiro, 2001). Percebe-se, também, que “D” e “E”

continuam com evidentes sintomas de ansiedade e depressão. Psicose e convulsão,

embora também sejam mencionadas na literatura, não foram citadas por nenhuma das

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mulheres. Deve-se salientar, ainda, que pelo tempo que as mulheres convivem com a

doença e a infinidade de sintomas que elas podem manifestar, pode ser que elas tenham

esquecido de apontar a ocorrência de alguns dos sintomas.

Além da diversificada sintomatologia que cada participante pode

apresentar, considerou-se também relevante conhecer se elas identificam situações

especiais em que os sintomas retornam.

As participantes “C” e “G” foram categóricas ao afirmar que

desconhecem a situação em que os sintomas voltam. Destaca-se que “C” justifica essa

não identificação da situação ao fato dos sintomas não terem retornado com a mesma

severidade do início da doença. Em contrapartida, “G” explica que desde quando foi

descoberto o diagnóstico (há três anos) a doença encontra-se inativa:

Não. É, logo no início, mesmo com a medicação, que eu tinha muita dor na junta, né. Também tive começo de artrite e.... tomava a medicação, vamos supor, duas semanas bom, assim melhor, uma semana já piorava. Mas devido o tratamento, no controle que eu venho fazendo... quer dizer que, uma pessoa assim, me parece quase normal. (C – 42 anos)

Observa-se que é também difícil identificar os sintomas quando a

doença parece não dar trégua. Talvez pelo fato da doença ter avançado decorrente do

excesso de trabalho e pela idade, na atualidade “F” fica na dependência de altas doses

do medicamento que por sua vez geram efeitos colaterais. Assim, apesar de “F” aderir à

medicação para manter a doença sob controle, a volta dos sintomas é inevitável devido a

sua evolução:

Ela diminuiu (a médica) o comprimido, ela diminuiu o Meticotem, que ela quer me tirar do corticóide, mas não consegue porque ela vai, diminui, diminui, diminui quando chega no de 5mg que repito os exames, tá tudo alterado de novo. Aí volta pra estaca zero de novo, dois de 20. E assim que eu vou levando.(...). Menina! Ele

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volta, ele é tão rápido! Às vezes eu tô boazinha, boazinha... quando eu penso que não, aparece uma dor numa junta, aí vem numa perna, às vezes num osso do braço, às vezes é só daqui pra aqui, às vezes é só aqui, às vezes é no dedo, nas juntas de um dedo, acredita? Só nas juntas de um dedo aparece às vezes aparece. Agora a dor é muito forte, sabe. É aquela dor cansada, que você acha que os ossos vai se quebrar. A dor que aparece mas é rápido demais, mas também vai indo, vai indo, aí passa. Passa por ela mesma porque eu tô tomando a medicação, né. Eu não sei nem porquê ela aparece... mas aparece. Quando eu penso que não, aparece uma dor (...) (F – 46 anos)

Contudo ela continua mostrando-se ativa, organizada e sempre que

possível fazendo trabalhos manuais para incrementar a renda familiar. Ela, de fato,

parece maximizar o que ainda pode controlar com relação à doença. Assim, por

exemplo, apesar de declarar que adorava ir à praia, agora evita totalmente pela

exposição solar, como reconhece que cansa rapidamente quando está na rua, saindo

apenas quando é imprescindível:

...praia, eu não posso chegar nem perto, né. Se eu for pra uma praia tem que ficar na sombra, ainda mais cheio de protetor. Fico toda vermelha, não posso levar sol, por causa da doença, aí eu não vou pra nenhum canto não. Também quando eu saio, me sinto muito cansada, sabe. Quando eu saio canso demais, quando eu chego, chego doente. Quando eu vou pro hospital me consultar ou qualquer coisa, quando eu chego em casa, chego doente, aquele dia pra mim não vale mais nada, que eu chego morta, morta, parece que eu tava apanhando. Meu corpo chega todo quebrado (F – 46 anos)

“B” também citou que os sintomas reaparecem automaticamente

quando a medicação é suspensa por ordem médica, evidenciando, a maioria delas a

dependência permanente ao medicamento:

Quando eu paro de tomar os remédios. Eu acho que eu fico sem tomar o remédio, ... um mês, um mês no máximo, aí já começa a ficar dolorido. (B – 18 anos)

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A participante “H”, igual a “F”, faz referência à exposição solar como

propiciador da reincidência dos sintomas; porém, salienta ainda que quando está com

algum problema eles também reaparecem:

Geralmente aparece quando, quando... no meu caso, quando eu me aborreço, quando eu tenho um problema. E também quando eu levo sol, minha filha! Sol ou vento pra mim me mata, sabe. O sol e vento... é meus inimigos número um. (H – 44 anos)

Aspectos emocionais são também destacados por “D” e “E” como

causador da volta dos seus sintomas. “D” quando sente raiva, enquanto “E” retoma a

situação de briga entre o filho e a sobrinha de 24 anos e toda preocupação que acarreta,

porque o cunhado não quer mais acolhê-la na casa dele devido a essas brigas:

Quando eu fico com muita raiva. Ás vezes quando eu tenho raiva, quando eu tenho desgosto... quando eu começo... a pensar nas coisas eu, aí eu fico (...) até inchada mesmo, (...) inchada, dói, dói aqui, dói assim, assim do lado do meu joelho. (D – 39 anos) Assim, quando eu tô assim preocupada, aí eu sinto, sabe. Sinto dor. Nos ossos... Dói até a sola dos pés.(...) como eu falei, né. Com o menino porque (...) Patrícia (...) muito impulsiva também, aí o menino não quer admitir, né. Aí, o pai dela quer botar a gente pra fora (...) não posso fazer nada. Não tenho pra onde ir.(E – 39 anos)

“A” atribui o retorno dos sintomas devido à baixa temperatura

climática:

Quando o clima tá frio. É, aí começa dor nos ossos. Só não tá inchando. (A – 22 anos)

Nota-se, a partir do discurso das participantes, a existência de diversos

aspectos que favorecem o retorno dos sintomas, tais como baixa temperatura, exposição

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solar, estresse, fatores emocionais e suspensão da medicação. Todavia, alguns desses

podem ser controlados como evitar o sol, enquanto que o estresse e fatores emocionais

fogem do controle das pessoas já que acontece na interação com as pessoas a sua volta,

nem sempre dispostas a colaborar ou dar apoio. Isso aponta para a necessidade da escuta

terapêutica viabilizar formas de amenizar esse tipo de sofrimento.

Percebe-se, que todas as participantes que já tiveram sua doença em

atividade por mais de uma vez, conseguem identificar a situação em que ocorre a

reincidência dos sintomas, contudo, isso não garante o controle da mesma porque os

fatores emocionais, o estresse e a própria doença são marcados pela imprevisibilidade.

6.2.3 - Mudanças e limitações decorrentes do lúpus eritematoso sistêmico

Como já fora apontado, a doença crônica, seja ela qual for, na maioria

dos casos exige alterações no estilo de vida da pessoa visando minimizar os sintomas

e/ou manter a doença relativamente controlada (Remen, 1993; Radley, 1994). Dessa

forma, o cotidiano da pessoa portadora sofre necessariamente mudanças e limitações.

Neste estudo, as participantes destacam algumas das mudanças na sua

vida, tais como: evitar exposição solar; não fazer esforço físico; não trabalhar; fazer

dieta; tomar remédio sistematicamente; conviver com o sofrimento da doença e

preocupação pelos cuidados que ela demanda. Contudo, as reações a essas mudanças,

dependem muito do contexto econômico e social, do apoio que percebem e do tempo

de convivência com a doença.

Assim, algumas participantes citam as frustrações mais significativas

decorrentes das limitações geradas pelo LES. “D”, por exemplo, além das restrições

mais comuns, se lamenta também do fato de que a doença a impediu de morar em outro

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estado, pois o mesmo tem um clima frio, o que lhe traria dores mais constantes nas

articulações:

Não tenho direito de me divertir, de ir a uma praia, não tenho direito a ir a um shopping. Isso me deixa muito triste, né. (...). Impediu.... Impediu muitas coisas já. Muitas coisas... Se não fosse a doença, eu não morava aqui, não vivia aqui em Natal. Morava em Brasília, lá.. (D – 39 anos)

Enquanto que “H” aproveita para evocar o quanto sofreu com o seu

afastamento do trabalho:

Tive que me afastar do trabalho porque eu não tive mais condições de trabalhar e uma das principais mudanças foi essa. E de repente, eu tive que me afastar de tudo, então isso aí foi pra mim, muito difícil conviver com isso. (H – 44 anos)

O mais significativo para “E” decorrente da doença é conviver com o

sofrimento ante a possibilidade de morrer, deixando totalmente desamparado o filho de

8 anos. A depressão é tão evidente, ao ponto dela até falar para o filho de que vai

morrer, apesar dos sintomas não terem atingido órgãos vitais. Talvez, ela veja sua

situação mais crítica pelo fato já ressaltado que o pai da criança tem outra família e está

com câncer, sendo ausente, tanto afetiva como financeiramente:

Porque eu fico preocupada com essa doença.(...).Tem que tomar esse remédio até morrer (...) (...) deixar o filho na mão dos outros, né!? O pai dele... tá até com câncer. (...) Sabe, (...) mainha vai lhe deixar. Ele diz: não mainha eu vou com a senhora. (E – 39 anos)

Algumas das participantes trouxeram a tona à idéia da doença como

“anormalidade” que lhes limita nas atividades cotidianas, incluindo as tarefas

domésticas. Assim, as participantes “B” e “C” afirmaram que deixaram de ter uma vida

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“normal” devido à doença, esta última se lamentando também da necessidade de ter que

depender do medicamento para toda a vida:

Antes deu ter ela, tinha uma vida normal. Fazia de tudo. Agora com ela, eu não posso fazer nada, quase nada... (...) podia fazer educação física no colégio, eu poderia fazer academia, que é o que eu quero e não posso. Eu não faço nada em casa. Antes eu fazia... lavava roupa, arrumava casa, fazia de tudo e não posso mais fazer isso. (B – 18 anos) Minha vida antes, eu tinha menos problema. Era uma pessoa normal, eu ia numa praia. Aí, o que mudou foi nisso aí e os medicamentos que eu tomo, né. Porque antes, eu tomava uma medicação quando fosse pra uma gripe, (...) agora eu tô com aquela medicação direto, né. (C – 42 anos)

O discurso das participantes “A” e “F”, embora não toquem no tema

da “anormalidade” coincide ao afirmarem que as mudanças sofridas em decorrência da

doença giraram, primordialmente, em torno da impossibilidade de se expor ao sol, bem

como, não realizar esforço físico:

Pra agora tem porque... primeiro eu saía com a minha irmã pra algum canto e agora eu fico mais em casa por causa do sol, né. Assim... em termos de pegar peso, não poder pegar muito peso. (A – 22 anos) ... praia, eu não posso nem chegar perto, né. Se eu for pra uma praia tem que ficar na sombra, ainda mais cheio de protetor. Fico toda vermelha, não posso levar sol, por causa da doença, aí eu não vou pra nenhum canto, não! (...) mudou assim, porque eu não posso... eu não posso lavar, não posso fazer minhas coisas, não posso lavar muita roupa, não posso. Aí, todo dia eu tenho que lavar aqueles pouquinho que suja todo dia porque se juntar eu não posso lavar porque se eu lavar muita roupa, eu fico morta, cansa (...).(F – 46 anos)

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Entretanto, no decorrer da entrevista, “F” apontou ainda a permanente

convivência com a evolução da doença, a qual a cada momento manifesta algo

diferente:

A mudança que houve foi só essa mesmo, né, que a doença vai se agravando, eu vou... cada vez vai aparecendo uma coisa... um problema que eu não tinha..., né, vai aparecendo uma coisa que eu não tinha, que eu não sentia e assim eu vou levando. Só isso que mudou mesmo. (F – 46 anos)

Observa-se que a manifestação de vários sintomas ao mesmo tempo

implica em diversas limitações sócio-ocupacionais, que atingem a subjetividade e a

própria auto-imagem da pessoa. De forma geral, todo esse contexto oriundo da doença

tem repercutido na vida dessas pessoas de diferentes formas, incluindo a possibilidade

de apontar também formas alternativas de ver a adversidade.

Assim, a participante “G” tenta não apontar para as “perdas”,

destacando sempre as alternativas para não abdicar totalmente das coisas que gosta de

fazer. O que se justifica plenamente pela idade e pelo fato da doença estar inativa desde

sua primeira crise, além de estar sempre priorizando que qualquer sacrifício é preferível

para manter a saúde:

Não posso tomar muito sol. Não posso mais ir à praia como eu ia antes. Se eu vou à praia, tenho que ir as seis da manhã e voltar às sete. Essas coisas assim. Se comer muito crustáceo, eu gostava, mudou isso totalmente, mas isso não me faz... assim muita falta porque agora... graças a Deus eu tenho a minha saúde, né, independente de qualquer coisa. (G – 21 anos)

Destaca-se que apesar das mudanças expostas acima, fica evidente as

diferentes prioridades que as participantes estabelecem com relação às mesmas.

Observa-se que as alterações são sentidas conforme a biografia, o contexto e o momento

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em que elas estão inseridas, bem como, as implicações na rotina de cada uma. Algumas

até conseguem criar estratégias para não restringir totalmente sua vida, percebendo estas

como limitantes, mas que se tornam indispensáveis, pois está em jogo a manutenção da

sua saúde.

Em diferentes proporções e dependendo do momento, o LES, como

doença crônica severa, tem causado profundo impacto emocional nas participantes,

provocando-lhes tristeza, choro, revolta, sofrimento, preocupação e medo. Em algumas

ocasiões, esses sentimentos decorrentes da doença, podem conduzir a um ciclo vicioso,

em que tendem a desencadear novos sintomas e/ou agravar a situação, já que, as

doenças auto-imunes, como o LES, estabelecem uma forte relação com os aspectos

psicossociais (Moreira & Mello Filho, 1992). Isso aponta mais uma vez a

interdependência das dimensões (biológica, psicológica e social) e, conseqüentemente,

ratifica a necessidade de uma intervenção interdisciplinar no atendimento às pessoas

portadoras de LES.

6.3 - Conhecimento da doença

É amplamente reconhecido que existem distinções na forma como as

pessoas lidam com a doença e a interpretação de sintomas. Alguns dos fatores que

influenciam são: a personalidade, grau de maturidade, gênero, cultura, aspectos sociais e

emocionais (Edelmann, 2000; Marks, Murray, Evans & Willig, 2000). Uma das formas

de ficar ciente dessas diferenças é através das informações que as pessoas demonstram

ter sobre a doença. No caso da doença crônica este conhecimento pode ser relevante

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para um melhor controle da mesma. Daí o interesse por incluir no roteiro da entrevista,

perguntas desse tipo. Assim, as mulheres destacaram os seguintes aspectos do LES:

Não tem cura;

É genético;

Não é contagioso;

É um vírus lutando;

Precisa fazer controle;

Ataca todos os órgãos do corpo;

Defesa fica baixa;

Doença dos ossos;

Tem vários tipos;

A pessoa morre de parada respiratória.

Fica em evidência que a idéia sobre o LES mais presente entre as

participantes é o fato desta ser uma doença incurável, seguido da concepção de que sua

origem é de ordem genética. Pode-se observar ainda a visão de que o LES é uma doença

dos ossos e que é proveniente de um vírus. A quantidade de doenças provenientes de

vírus é enorme, o que sugere que algumas patologias de origem pouco definida possam

ter por trás um agente viral. Isso também se aplica ao LES, no entanto, pesquisas

desenvolvidas até o momento descartam a existência de uma relação entre infecção por

vírus e o aparecimento deste (Zerbini & Fidelix, 1989).

Com relação à idéia de ser uma doença dos ossos, isso pode ser

explicado pelo fato de também afetar os ossos, porém, isso é pouco freqüente. Além

disso, o próprio tratamento com corticóide pode provocar o amolecimento e destruição

de alguns ossos (necrose asséptica avascular), bem como, perda de cálcio dos mesmos

(Zerbini & Fidelix, 1989).

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Essas concepções acerca da doença referidas pelas participantes

certamente têm origem nas relações sociais, conversas entre os próprios portadores de

LES, na consulta médica, nas reportagens de jornais e TV, amigos e vizinhos (Alves &

Rabelo, 1999; Spink & Medrado, 2000), além do que elas mesmas compreendem a

partir da sua própria sintomatologia. Por exemplo, se em uma pessoa o LES tem afetado

principalmente as juntas, certamente ela descreverá a doença com base na sua

experiência, destacando que é uma “doença das juntas”. Não apenas essas trocas

dialógicas geram diferentes interpretações nas pessoas, mas estas podem adotar termos

muito particulares ao contexto cultural a qual pertencem. Por exemplo, a participante

“A” falou em nervos, mas na verdade estava se referindo as articulações: “Porque a

doutora disse que afetou os meus nervos (ela passa a mão no punho)...”. Quando foi

questionado o que ela estava chamando de nervos, a mesma faz a seguinte afirmação:

“Eu acho que... o sistema nervoso”. Fica claro que ela faz confusão entre nervos e

sistema nervoso, entretanto, talvez isso não altere a sua vivência do adoecer.

As participantes “A”, “B”, “D” e “G” referiram ainda não ter qualquer

dúvida ou questionamento sobre o LES, lembrando que uma delas expressa o

desinteresse em saber sobre o mesmo, como será explorado posteriormente. Enquanto

que “C”, “E”, “F” e “H” alegaram ter algumas incertezas em torno da doença. Embora

mostrassem ao longo da entrevista de alguma forma conhecerem já as respostas, não

deixaram de reiterar as seguintes indagações: É hereditário? Tem cura? É contagioso?

Como é, o que faz dentro da pessoa? Como chega? É falta do quê?

Assim, embora a participante “E” tenha expressado dúvida e,

inclusive, questionado nesse sentido à entrevistadora-pesquisadora, quanto à

possibilidade ou não de cura e de contágio, a mesma já tinha essas respostas dadas por

outro profissional. Acredita-se que faz parte do estado de ansiedade vivenciado por ela

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nesse processo de adoecer. Assim, sua preocupação em morrer e deixar seu filho ou

prejudicá-lo através do contágio a fez retomar essas questões algumas vezes durante a

entrevista.

Contudo, em um momento ela foi categórica em responder: “Sim,

perguntei. Ela disse que não pegava não” (E; 39 anos). Talvez essa dúvida diante da

afirmação de um profissional especializado, pode ser considerada como negação ou não

aceitação da realidade que obviamente traz complicações para seu estado geral de

saúde. Fica em evidência a necessidade de um tratamento que não seja apenas

medicamentoso e sim que possa ajudar a pessoa portadora a refletir acerca da sua

doença e as implicações psicossociais que está produzindo em sua vida.

Esses questionamentos podem também se explicar pelo fato de que

estando diante de um novo profissional de saúde, elas tenham a esperança que eles

informem o contrário do que sabem. Isto não quer dizer que desconfiam do que o

médico lhes disse, mas porque realmente desejam alguma solução para a sua doença.

Contudo, é diferente quando as pessoas se interessam em buscar

maiores informações sobre aspectos menos conhecidos da doença, o que se torna uma

atitude básica para qualquer pessoa que quer estar mais presente lidando com a

enfermidade, fundamentalmente, se ela é crônica. Acredita-se que conhecê-la possibilita

a identificação dos sintomas e, conseqüentemente, permite que ela atue rumo a amenizá-

los a partir da orientação médica (Remen, 1993). Inclusive, segundo Sato et al (2002) e

Krauthamer, Coelho e Sato (1999), educar-se constitui uma das recomendações médicas

necessárias.

Assim, as participantes “C”, “D”, “F”, “G” e “H” revelaram o

interesse em estar sempre ampliando seus conhecimentos acerca da doença através das

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consultas médicas, jornais, revistas, entrevistas na TV, livros e conversa com outros

portadores de lúpus.

... eu procurei informações só com o médico mesmo. E com essa menina que já tinha um caso, né, mais antigo, aí... eu comecei a perguntar. (F – 46 anos)

Eu sempre procurava saber assim, sobre é... jornais, que teve muita entrevista, Dra. Maria José Villar fazia...é....(...) livros (...). (G – 21 anos)

As participantes “A”, “B” e “E” afirmaram nas entrevistas que

preferem não ampliar seus conhecimentos acerca da patologia. Contudo, a participante

“B” tem consciência do quanto isso é relevante para a sua saúde:

(...) não me interessei não em saber mais sobre a doença, não. Eu acho que o que eu sabia... não é o suficiente não pra quem tem. Deveria saber mais, né. Tá bem informado sobre ela, mas eu nunca me interessei não! (B –18 anos)

A postura desta, reflete a forma como enfrenta a sua condição de ser

portadora de uma doença permeada pela cronicidade, na qual ela escolhe a ignorância

(falta de conhecimento) para não se deparar com as dificuldades e implicações que a

doença pode provocar em sua vida (Radley, 1994).

6. 3.1 – Leitura das recomendações médicas e dificuldades de adesão

Em relação às recomendações fornecidas pelo profissional de saúde

acerca das condutas mais apropriadas para manter a doença inativa, as participantes

“C”, “D”, “E” e “F” afirmarem que não têm dificuldades em seguir as orientações

médicas. Entretanto, embora “F” tenha facilidade em segui-las, destaca que

esporadicamente come carne e abusa na manteiga. Por outro lado, as participantes “A” e

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”G” afirmaram com argumentos não apresentar nenhuma dificuldade de adesão ao

tratamento, sendo significativo o caso de “A” que se expressa sobre a doença com tanta

naturalidade, o que se explica pelo contexto de doença familiar em que ela tem se

desenvolvido:

Não. Tenho dificuldade não porque lá em casa a maioria do pessoal são doente. Minha mãe tem problema de pressão alta, tem diabetes. Meu pai tem problema de pressão alta; então tudo que eu como assim é descarregado. Comia sim, quando eu não sabia. (A – 22 anos) Não, tenho não. Que eu acho que vai de costume, né. Se você já se acostumou. (G – 21 anos)

Ao passo que as participantes “B” e “H” expressaram certa

dificuldade, deixando claro no depoimento os motivos para essa falta de adesão. “B”

porque simplesmente carece da força de vontade para caminhar porque não gosta, mas

posteriormente justifica que não vê resultado nenhum. “H” em virtude da necessidade

de sair para desenvolver suas atividades e não ter automóvel, sendo impossível numa

cidade como Natal não pegar sol.

Consigo. (...). Só não faço caminhar. (...). Porque eu não gosto. Não quero. (...). É não vejo resultado nenhum. (B –18 anos) Algumas coisas, eu falto, né. No sentido do sol. É impossível evitar o sol. Eu dependo, eu preciso resolver as coisas, então eu saio no sol. (...). Não que eu não queira cumprir... porque eu não posso. Eu não tenho automóvel; só tem o carro do meu marido. É de trabalho, então, eu às vezes tenho que sair mesmo e levo sol, né. (...). Veja, eu tava com essa blusa, já botei outro casaco pra que o sol não bata no meu braço. Que sabe que eu fico (...) eu procuro... dentro do possível me cuidar. (H – 44 anos)

Observa-se que toda doença marcada pela cronicidade apresenta uma

série de orientações visando mantê-la sob controle. Embora transmitidas pelo

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profissional da saúde, às vezes as pessoas não conseguem segui-las; seja porque

constituem situações que fogem do controle destas, tais como: evitar situações

estressantes ou se proteger totalmente do sol numa cidade como Natal. Com relação ao

sol, algumas entrevistadas mencionam ainda recursos para minimizar a exposição aos

raios ultravioletas citados na literatura (Moreira & Mello Filho, 1992), como a

utilização de chapéus, sombrinhas ou usar roupas escuras que protejam melhor a pele.

Contudo, essas estratégias colocam as pessoas numa situação de ter que ficar explicando

aos outros seus problemas, tendo que expor sua vida, quando por vezes, estas não se

dispõem a isso.

Ocorre também que as orientações do médico não são sempre aceitas,

pois não fazem o mesmo sentido que para o profissional, sendo incapazes, portanto, de

desenvolver estratégias adequadas com relação às mesmas. Pode acontecer ainda, que

apesar de cumprir o que lhe é recomendado, a pessoa não apresente melhora nenhuma,

criando uma dinâmica de impotência e desgaste que pode até gerar depressão. Portanto,

fica claro que não basta às pessoas saberem quais orientações elas devem seguir. Aderir

a estas faz parte de um permanente processo de elaboração cognitivo e emocional, o que

não se consegue apenas através de uma visita médica ou uma palestra educativa (Silva,

2002).

6.3.2 – Observações sobre o que prejudica e o que ajuda no controle da doença

Pela mesma razão acima citada, para manter relativamente sob

controle uma doença crônica não basta saber quais são as orientações que devem ser

seguidas. É preciso também que a pessoa tenha in-corporado o que pode estar ajudando

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ou prejudicando-a nesse processo de adoecer. Nesse sentido, as participantes quando

questionadas sobre os aspectos que elas sentiam que prejudicava a saúde, nem sempre

ficou claro que não se estava procurando o discurso socialmente aceitável. Assim, a

participante “A” respondeu de uma forma quase mecânica:

A pessoa não seguir as recomendações médicas, fazer extravagância como ir à praia, pro sol, comer comida carregada. (A – 22 anos).

Em outros casos, como da participante “B”, ela destaca que não tomar

os remédios é o que mais prejudica no controle da doença. De fato, ela explicou na

ocasião da entrevista que estava consumindo seis comprimidos por dia, para pressão,

inchaço e inflamação nos rins e que os sintomas retornam quando suspende os remédios

por ordem médica. Além disso, em outro momento ela revela a sua preocupação, caso o

pai não tivesse condições de adquiri-los, ou seja, como manter o controle se não dispõe

de recursos financeiros para isso.

Eu me sinto muito mal. Sabendo que tenho essa doença. Desde o início. Porque é muito ruim. Saber que você pode... você... vamos supor, se meu pai não tiver o dinheiro pra comprar o remédio, como é que eu fico? Aí vai voltar os sintomas, vai começar tudo, tudo de novo. (B – 18 anos)

Novamente como no caso da situação em que ocorre o retorno dos

sintomas, foram citados aspectos emocionais e a falta de apoio daqueles que as cercam,

bem como, a exposição solar, como fatores que prejudica o relativo controle. Nesse

sentido se expressaram “C”, “E”, “G” e “H”:

Se eu, assim, for no sol, tá me prejudicando; já saio do controle, né. Se eu tiver raiva, é, ficar muito tempo num canto assim... que eu sinto calor, sabe. É isso só. (C – 42 anos)

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Apoio, né. (...) a pessoa precisa pelo menos apoio. Família, né. (E – 39 anos)

...quando eu tava assim, na crise mesmo que alguém me dava mais assim, carinho, mais atenção, eu achava que controlava mais, eu não sentia muitas dores. Atenção, carinho, uma palavra de conforto, eu acho que isso aí é o essencial. (G –21 anos) Hoje, o que prejudica pra controlar, hoje, está sendo o meu marido. Por incrível que pareça. Porque eu tô tendo os sintomas depois dessa descoberta. (...). no domingo de manhã, eu tinha pego um documento na bolsa dele, uma relação de compra, na bolsa dele. E essa relação de compra tava assinado Carla Souza, o telefone da pessoa e o celular dela e a relação de material de construção, de compra. Eu... muito esperta... porque eu já vinha acompanhando o comportamento dele e também já vinha atrás dessa pessoa que em janeiro deste ano,eu já tinha descoberto que ela tava com ele e que estava grávida dele (...).Quer dizer, ele hoje, já não me faz bem. Já tá me fazendo mal. (H - 44 anos)

A participante “F” disse que ela não faz nada que cause prejuízo ao

controle da sua doença, já que, afirma que segue todas as orientações médicas, tomando

a medicação e fazendo a dieta, embora, às vezes, burle esta, como já mencionado.

Apesar de algumas participantes terem mencionado os efeitos

colaterais provenientes da medicação, um aspecto interessante foi o da participante “D”

ter sido a única a afirmar que é justamente a medicação que lhe causa prejuízo:

Eu... eu me sinto mal porque eu vivo tomando medicamento. Só esse remédio... que eu sinto que esse remédio, você trata uma coisa e prejudica outra. (...). Tomar remédio é triste. Você tá curando uma coisa, mas ele pode causar uma gastrite, pode causar uma coisa em você. (..). Que esse remédio pode curar, pode controlar o lúpus mas eu sei que ele tá me prejudicando em outras coisas, pode ser uma gastrite, pode ser... qualquer coisa que já tenha aqui em mim. (D – 39 anos)

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As participantes também foram questionadas a respeito do que ajuda

no relativo controle do LES. Em contrapartida, ao que foi explicitado por “D”, segundo

as participantes “B”, “E” e “F” a medicação é percebida como o aspecto que mais ajuda

a manter a doença inativa:

Só a medicação mesmo. (B – 18 anos)

Remédio, né. (E – 39 anos) Não, eu não tenho uma coisa específica assim não! Porque eu já não vivo andando, já não ando muito, não saio, num vô pra praia, num vô nada. O meu dia aqui é esse mesmo, eu tomo a medicação e pronto. (F – 46 anos)

Por outro lado, as participantes “A”, “C”, “D”, “G” e “H” destacaram

simultaneamente vários aspectos que auxiliam no controle da doença:

Eu acho que boa alimentação e os remédios, e o acompanhamento médico, né.. (A – 22 anos)

Assim, evitar o sol. É... não ter contrariedade, né. Eu acho ...é... assim, quando tem assim uma raiva, qualquer coisa assim, eu acho que... prejudica. (C – 42 anos) Acho que é a vontade de viver. A vontade que eu tenho de viver. Num... porque tem pessoas que tem lúpus, leva sol, come comida carregada. Tudo isso ajuda o lúpus a aumentar, né. Eu não, procuro fazer tudo direitinho. Tomo meu medicamento, vivo em casa. (D – 39 anos) Eu acho assim sair, sair. Sair, andar, espairecer, é caminhar... eu acho que é isso tudo. (G – 21 anos) No meu caso, o,o ... controle emocional, né. Eu tenho um controle emocional que eu considero bom. (H – 44 anos)

Poder-se-ia pensar que há uma relação direta entre o que prejudica e o

que ajuda no controle do LES. Isto é, se a medicação é o aspecto fundamental que ajuda

no controle, a falta desta também seria o principal fator que prejudica. Contudo,

percebe-se que nem todas as participantes fazem essa relação quando indicam os fatores

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emocionais como principais contribuintes para o descontrole da doença. Talvez isso se

justifique pelo fato da medicação ser um controle mais fácil de ser efetivado por elas;

enquanto, os aspectos vinculados ao emocional são mais difíceis de serem evitados e,

geralmente, fogem ao seu controle, pois não depende somente delas e sim de todo um

contexto familiar/social que propicia a ocorrência desses episódios estressantes.

6.3.3 - Experiências influenciando na "visão" das mulheres acerca da doença

Nota-se que a experiência de outras pessoas portadoras de LES pode

exercer tanto uma influência positiva quanto negativa para as que compartilham dessa

doença, dependendo obviamente da história de vida de cada uma delas e da forma de

lidar com a do outro portador. A maioria das entrevistadas conhece alguém que tem

LES; seja prima, vizinha, aluna ou colegas (algumas amizades construídas a partir das

internações hospitalares). A forma como a doença se expressa (através dos sintomas)

em cada uma das pessoas que elas conhecem, tende a exercer algum tipo de influência

na forma como as participantes vêem e lidam com a sua enfermidade.

Quando a convivência com a doença é repassada tendo como foco

todo o sofrimento oriundo dos sintomas, bem como, suas limitações e restrições, a

pessoa portadora tende a visualizar o seu adoecer do mesmo modo, especialmente, nos

momentos em que a doença está em atividade. Esse conhecimento acerca da experiência

dos outros, nos casos de “F” e “G” foi, inclusive, muito traumático no momento de ter o

diagnóstico:

Eu fiquei preocupada logo no início porque a minha vizinha aqui, que mora aqui em frente, ela tem essa mesma doença. E a dela, ela foi desenganada, ela fez até quimioterapia no hospital das clínicas durante um ano,

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ela quase morre. (...). Aí, eu fiquei com medo, quando ele disse o nome da doença, eu tive um medo muito grande porque eu já sabia do caso dela, né. (F – 46 anos) ...uma amiga minha que mora em frente a minha casa ela tinha. E dizia assim, que era uma doença que não tinha cura, que... o povo inventava muita coisa, né. Que era câncer, essas coisas. Aí, quando eu recebi o diagnóstico eu chorei muito, passei por psicólogo, aí foi até agora. Aí, com um ano depois, eu fui me acalmando mais e hoje, eu tô mais tranqüila em relação a isso. (G – 21 anos)

No entanto, quando a experiência é transmitida, ressaltando o controle

da doença, a preservação de suas atividades ocupacionais, assim como, revelando a

possibilidade de se levar uma vida normal apesar da doença, às pessoas tendem a

percebê-la de outra forma, como foi destacado por “G” em outro momento da

entrevista:

...se eu tiver crise, mas eu creio muito em Deus que eu não vou ter mais (...) não empata em nada. Tranqüilo, posso trabalhar. Tem amigas minha... que tem e trabalham normalmente. (G –21 anos)

Importante lembrar que desde que “G” teve a primeira crise e soube

que estava com LES, ela ainda não teve reincidência dos sintomas, o que contribui para

que ela tenha essa visão positiva.

Evidentemente, que o contato e a troca de experiências com aqueles

que compartilham a mesma condição, reflete alguma coisa nas pessoas, podendo

favorecer o seu crescimento ou abatê-las, dependendo do momento em que se

encontram. Assim, ninguém sai imune das relações interpessoais, na qual um é afetado

pelo outro e nessa relação produzem significados, os quais permitirão a produção de

sentidos através do processos de intersubjetivação (Grandesso, 2000; Ayres, 2001).

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Além das relações interpessoais e todo o contexto sócio-cultural

influenciando os processos de significação e geração de sentidos, há ainda as

características pessoais que apontam para a existência ou não de um recurso pessoal

para acreditar em si e na sua capacidade de driblar os momentos considerados críticos,

fazendo com que a pessoa descubra e crie forças para enfrentá-los (Remen, 1993). É o

que se pode perceber no discurso de “G”:

... muitas colega minha, inclusive algumas morreram aqui...(referência ao hospital) que elas eram muito, elas não tinham assim aquele ânimo que eu tinha, ta entendendo? De ficar boa assim, entre aspas assim. Elas diziam que sentiam nojo, que assim... eu nunca me senti assim. Mas elas se sentiam assim. Eu, eu falava pra elas que não era bem assim, eu conversava muito com elas, mas... não adiantava. (G – 21 anos)

Evidentemente que estar cercado do apoio de familiares e amigos

contribui e muito para que a pessoa potencialize os seus próprios recursos como é o

caso de “G”, que não apresenta problemas financeiros e mora com os pais, os quais lhe

dão todo o apoio e carinho de que necessita, além da doença estar inativa. Com isso,

pretende-se deixar claro que a capacidade de enfrentar positivamente uma situação

depende também de outros fatores e não somente de um “querer interno” da pessoa

portadora.

6.4 - Apoio social percebido

O aparecimento de uma doença configura-se como uma das principais

situações da vida que claramente demandam a existência de diferentes tipos de apoio, e

por tempo indeterminado, especialmente no caso de uma doença crônica. Isso torna, na

maioria das vezes, difícil para os amigos e colegas de trabalho manterem esse apoio por

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um longo período (Barrón, 1996), sendo a família o recurso mais duradouro para

atender as demandas de uma pessoa portadora de doença crônica.

Assim no depoimento das participantes “A”, “B”, “C”, “E”, “F”, “G”,

“H”, a família representa a principal "fonte" de apoio e/ou conforto.

Minha família me acolhe, me dá carinho, me dá amor. (A – 22 anos) Da minha família todinha. Assim... eu recebo assim... porque sempre tão me apoiando. (...), preocupado; que não é pra ficar com medo, eles tão ali comigo, eu não tô sozinha. (B – 18 anos) Da minha mãe, das minhas tias. Assim, ela... quando ela vê que... que eu quero fazer alguma coisa que vai me prejudicar. Por exemplo, meu avô ficou internado no Walfredo, cada noite ficava uma pessoa, né. Aí, teve um da família que queria que eu passasse a noite. Aí, (...) disse: ela não pode porque assim... assim, como é que se diz, devido ao problema do lúpus, aquela dedicação, aquele tratamento, quer dizer que eu, não posso ficar uma noite ou duas noites no hospital. Porque eu posso até pegar, como se diz minhas defesas tão, né. (C – 42 anos)

Mais da família. (E – 39 anos) Só nos meus filhos mesmo. Antigamente era minha mãe também, mas aí ela não tá mais aqui. É só os meus filhos mesmo. (F – 46 anos) Meu pai, na minha mãe, no meu... nos meus avós, na minha família de modo gera.l (G – 21 anos) Na minha irmã Luiza. A minha irmã Luiza é assim uma dádiva num... pra mim. Porque ela, ela tá sempre tendo uma palavra amiga... ali. Ela nunca (...) tá sempre dando aquela injeção de confiança. Ela... minha irmã Luiza foi assim à força maior, sabe. Ela... tava sempre muito presente. Não assim o corpo, mas o espírito, a palavra, sabe. Ela muito assim... pra mim. (H – 44 anos)

Observa-se que a rede social de apoio da maioria das entrevistadas

concentra-se, basicamente, nos seus familiares. Não havendo nenhuma outra fonte que

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lhes forneça ajuda, exceto no caso da participante “D”, que aponta a religião, ou melhor,

Deus, como auxílio para enfrentar a doença. Deve-se lembrar que ela continua revoltada

e inconformada com a presença da doença mostrando um permanente estado de ânimo

negativo:

... conforto, só Deus mesmo. Só Jesus mesmo que eu encontro, que eu me pego. Eu acho que eu não tenho ninguém pra... porque a minha família é o tipo de pessoa que eu conto, o que eu sinto, o que é que acontece, eles não acreditam, eles não ligam. (D – 39 anos)

O tipo de apoio que as pessoas podem fornecer aos outros abrange

diversas atividades como: escutar, demonstrar carinho ou interesse, emprestar objetos,

ajudar financeiramente, sentir-se amado, aconselhar ou orientar, entre outros (Barrón,

1996). Ademais, lembra-se ainda que há uma distinção entre o que é fornecido e o que é

percebido como ajuda, pois a pessoa até pode estar recebendo, mas não percebê-lo e

vice-versa. Contudo, a literatura, sem menosprezar a importância de ambos, assinala

que o apoio percebido é mais relevante do que o recebido.

Rodríguez-Marín (1995) e Andrade e Vaistman (2002) salientam o

aspecto positivo da rede de apoio, sejam profissionais, colegas de trabalho, amigos,

associações comunitárias e grupos de ajuda mútua, parentes e familiares, os quais

exercem um papel relevante nos cuidados e atenções destinadas às pessoas acometidas

por alguma patologia. Contudo, observa-se que para a maioria, são os familiares que

aparecem como os únicos e/ou mais relevantes fornecedores de apoio.

Questionadas quanto ao tipo de ajuda que seus familiares fornecem

em relação ao controle do LES, as mulheres perceberam os seguintes aspectos como

mais relevantes no apoio fornecido:

Cuidados na alimentação e não exagerar nas atividades;

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Pensamentos positivos e palavras de conforto;

Preocupação pelo bem-estar, incluindo oportunidades de lazer;

Evitar que a pessoa se aborreça (tenha raiva).

Importante apontar que, embora todas as participantes percebam que

os familiares de alguma forma as auxiliam no controle da doença, isso não garante que

elas estejam satisfeitas quanto ao mesmo. As participantes “A”, “B”, “C”, “F” e “G”

destacaram que estão absolutamente satisfeitas com o apoio percebido, seja dos

familiares ou amigos:

Sim. Porque (...) o apoio que eu recebo. Porque todo mundo me apóia. Até o pessoal de fora, sem ser o pessoal da minha família, eles dizem pra mim não me preocupar. Dizem que eu vou ficar boa. Pra mim não ficar triste como eu ficava. (B – 18 anos) Estou. Porque... é... é uma coisa boa pra mim, né. Se eu vou fazer uma coisa que eu sei que tá me prejudicando e aí, às vezes eu quero até fazer. Quer dizer, quando eles falam isso, já me ajudam, né. (C – 42 anos.) Tô. Ah... eu tô assim, porque é tudo que eu precisava assim, porque antes quanto eu tava com crise, né, muita gente... me dava esse apoio que geralmente meus familiares me davam,né. E tô graças a Deus, eu tô bem satisfeita. (G – 21 anos)

A participante “D”, apesar de receber apoio da irmã ao morar na casa

dela com seus dois filhos e esta ainda fazer as atividades domésticas quando ela está

manifestando os sintomas, encontra-se insatisfeita em relação ao apoio que recebe,

especialmente porque é cobrada pelo estado anímico negativo que mantém. É tanto que

quando questionada, ela refere-se à instituição hospitalar e os profissionais de saúde ao

invés dos familiares:

Ajuda. Assim, que eu não fique falando que vou morrer, que tô doente. Quanto mais eu disser que tô doente, mais

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eu fico doente. Assim, a gente conversa às vezes, né. Aí, ela diz... minha irmã. (...) Aqui no hospital, os médicos (...) Tô (satisfeita), sou muito bem tratada graças a Deus... (D – 39 anos)

Por outro lado, a participante “E” destacou não estar totalmente

satisfeita devido à situação problemática, já mencionada, entre seu filho e a sobrinha e,

a necessidade de morar com a irmã, tendo que se conformar com isso:

É, nunca é como se eu tivesse num canto, tudo, né. Era mais, né... assim, na casa dos outros, nunca...a casa é da minha irmã, não é minha, né, no caso. (E – 39 anos)

A participante “H”, também se mostra parcialmente descontente em

relação ao apoio percebido, referindo-se aos amigos, assim como, ao marido devido a

crise conjugal já mencionada:

Da minha família sim. Até certo ponto, né. Quando eu digo: até certo ponto com relação ao meu esposo, né... Mas... dos amigos eu acho que eu precisava de ter tido mais apoio. Meus amigos, amigos quando a gente fala, né, a gente tá falando em termos geral. Não foram tão presente. Não foram não! Tanto que eu senti muita falta disso, entendeu. Senti muita falta disso, mas...(...). Quer ter amigos não fale de problema nem de doença, por experiência mesmo. É tão sempre muito presente, mas se eu tiver um problema ou doença fica meio difícil. (H – 44 anos)

O discurso das participantes em relação à ajuda que recebem,

sobretudo, dos familiares, ratifica o quanto é importante para as pessoas portadoras de

doença crônica a existência das diferentes formas de apoio, que varia conforme as

necessidades de cada pessoa e do momento em que este é fornecido (Barrón, 1996).

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6.4.1 – A impressão sobre as mudanças nas relações interpessoais

Sendo, o surgimento de uma doença crônica um ponto de mutação,

normalmente, as pessoas afetadas tendem a se preocupar se o relacionamento que

mantém com as outras pessoas antes do aparecimento da enfermidade permanecerá da

mesma forma ou elas serão discriminadas por aqueles que não compreendem nem

compartilham a mesma situação de doença (Radley, 1994; Edelmann, 2000).

Dessa forma, as participantes “B”, “C”, “E”, “F” e “G” foram

categóricas ao afirmarem não ter percebido nenhuma diferença no tocante ao tratamento

destinado a elas pelas pessoas a sua volta. No caso de “D”, ela claramente reconhece

que nunca teve facilidade para fazer amizades, o que só se agrava a partir das limitações

que a doença gera:

Não. Também eu não tenho muita amizade. Conheço as pessoas... mas não sou de contar a minha vida, contar meus problemas. Às vezes vejo alguém, porque eu sou aposentada, aí pergunta de quê, porquê. Aí, eu digo: não porque eu tenho problema de reumatismo. Eu digo desse jeito. Também (...) não perguntam mais nada! (D – 39 anos)

É preciso, então, considerar a forma de se relacionar das pessoas

antes do aparecimento da doença, porque se a mesma apresenta dificuldades de

relacionamento isto deve ser ponderado ao se analisar o tipo de relações interpessoais

que a pessoa mantém a partir do seu adoecer. O possível isolamento e as dificuldades de

se relacionar podem ser também influenciadas pelas características pessoais e não

porque os demais a tratam diferente devido à doença.

Entretanto, não se pode negar que de fato algumas pessoas modificam

o seu comportamento diante de uma pessoa doente e isso pôde ser percebido por

algumas entrevistadas, as quais apontaram os seguintes posicionamentos:

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1. As pessoas não sabem lidar com a doença do outro.

Com certeza. Ele... eles ficam assim... a ela tem problema... é.. tem dificuldade devido à doença. Aí, acha que por isso, deve... é... se afastar. Dificuldade assim de... acho de lidar, né, com a pessoa doente assim. (A – 22 anos)

2. Afasta-se da pessoa portadora por temerem o contágio.

.... Essa diferença acontece. Quem não sabia que eu tinha lúpus, quando passa a saber, já me vê diferente. ... algumas agem como se... eu fosse uma coitadinha, né; a bichinha, doentinha. Outras, agem como se, eu não posso me aproximar muito porque essa doença pode pegar. (H – 44 anos)

Como foi sentido pelas participantes, o fato de certas pessoas não

mudarem seu comportamento diante das mulheres portadoras de LES, pode ser

caracterizado como uma conduta significativa de apoio porque elas se sentem aceitas e

não sofrem discriminações devido a sua doença (Castro, Campero & Hernández, 1997).

6.5 - Processos de significação e geração de sentidos com relação à doença

Como fora analisado, sendo a doença crônica uma ruptura no curso da

vida, a tendência da pessoa é passar por diferentes momentos de crise que leva a refletir

sobre toda a vida passada, sobre as perdas e a necessidade de encontrar um relativo

equilíbrio na nova situação. Ou seja, ela é levada a rever todos os seus valores e definir

prioridades em função das suas atuais limitações e possibilidades (Remen, 1993;

Grandesso, 2000). Em certos casos e, apesar do sofrimento que a doença possa

acarretar, a pessoa chega a ressignificar de forma positiva sua situação, passando a dar

sentido a sua vida e ao processo de adoecer através de diferentes estratégias para lidar

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com a nova realidade. Contudo, há também pessoas que têm dificuldades em superar a

revolta e o estado depressivo dos primeiros momentos e a tendência é tentar, seja obter

ganhos secundários decorrentes do seu papel de vítima (ser uma doente), ou adotar uma

postura de passividade-resignação, percebendo a doença crônica como um processo

terminal irreversível (embora nem esteja nessa situação extrema) e dependendo apenas

da medicina para conviver com a doença, esquecendo-se do seu poder pessoal (Remem,

1993; Radley, 1994).

Assim, quando questionadas sobre o seu sentimento em ser portadora

de LES, bem como, a forma como significam e lidam com a doença, nos deparamos

com uma variedade de discursos que permitem compreender melhor a situação dessas

pessoas.

Embora a participante “A” conheça a doença, não só em relação a si

mesma, mas também a partir da convivência com a sua irmã, ela não apenas teve

dificuldade em compreender a pergunta, mas quando respondeu expressou que nunca

tinha pensado sobre isso. Ela age como se sua vida não tivesse sofrido nenhuma

mudança e que a doença não fosse tão grave como parece e/ou dizem, talvez decorrente

do fato já apontado de que a maioria dos membros da família sofre de diferentes

doenças crônicas. Apesar dessa naturalização ou talvez por essa mesma razão, ela não

mostra nenhuma dificuldade em aderir às recomendações médicas:

(...) Como é que eu me sinto? (...) Não, nunca parei pra pensar nisso. Pra mim não tem importância não... assim, a maioria das doença que aparece agora é lúpus, câncer. (A – 22 anos)

Já a participante “B” referiu que não se sente bem em ser portadora de

LES, lembrando ainda que não gosta de falar sobre o assunto. Foi relevante a forma

como ela significa a doença se referindo sobre ela como o visitante indesejado que

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“apareceu praticamente do nada”. Contudo, afirmou que já se acostumou com a doença

e toma regularmente a medicação prescrita pela médica:

Porque... assim... antes, sei lá... essa doença me deixou muito abatida. Porque eu nunca imaginei que eu ia ter... essa doença. Porque ela apareceu praticamente do nada. Na minha vida assim. Aí, agora não, eu já me acostumei com ela, de tomar remédio. Não ligo mais pra ela não. Pra mim ela nem existe! (B – 18 anos)

“C” afirmou que apesar de conviver há 16 anos com LES, tendo que

abdicar da praia, bem como, sofrer outras limitações para mantê-la sob um relativo

controle, mesmo assim, considera-se uma pessoa normal. Mesmo manifestando alguns

sintomas, o tempo de convivência com a doença leva-a a aceitar melhor sua condição e

tentar se manter ativa socialmente:

Eu num... eu me sinto, pelo tempo que eu convivo com essa doença, eu me sinto até uma pessoa normal, porque... apesar que... só que eu achei ruim só porque eu gostava de praia, né. Mas (...) eu vou a festa... por mim... pelo tempo que eu tô com essa doença, já sei o que é o lúpus. Pra mim, agora ta tudo bem. Que é uma doença que tendo controle... a gente vevi o resto da vida, né. E não desesperar (...). Porque esse tempo todinho ele, assim, eu nunca passei mais do que quatro, cinco meses sem vir ao médico. Quer dizer, que fazer o controle, né... Só isso que eu digo e, confiar em Deus. (C – 42 anos)

Em contrapartida, “D”, apesar de ser portadora há 13 anos, até hoje se

mostra muito revoltada e inconformada com sua situação. É talvez a que mais se

encaixa nessa situação de “perda-oposição” citada por Radley (1994) em que a pessoa

percebe a doença como um golpe definitivo e adota até uma atitude de conformismo

frente a sua condição:

Ah, triste, muito triste. Muito triste mesmo. Eu vejo as pessoas que tem saúde... de fazer o que querem e eu não tenho. Me deixa muito triste. Revoltada (aumentou o tom da voz). Às vezes me revolto. Quero me revoltar, mas eu

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digo: não, vou ter fé em Deus. Porque... se eu tô doente é porque Deus quis assim, porque Deus não manda nada pra ninguém sem a pessoa merecer. Então eu mereço. Só posso ter merecido. (D – 39 anos)

A idéia fixa em encontrar uma solução e até uma cura para a sua

doença esteve presente em vários momentos durante a entrevista de “E”. Lembre-se que

mesma, revelou uma preocupação constante, falando da doença como terminal e que a

obrigaria abandonar seu filho de oito anos, caso ela venha a falecer:

Muito ruim, né, ter essa doença (...).Tô até com medo de tá doente do coração, eu sinto dor no coração, acho que é nervoso. Eu vou dormir, aí tenho medo de pegar no sono e acordar morta. (E – 39 anos)

A participante “F” mostra ao longo da entrevista uma personalidade

bem estruturada e decidida. Apesar de ser uma das participantes em que os sintomas são

mais permanentes e limitantes, tenta manter a doença sob controle através dos

medicamentos e não exagerando as atividades:

Maior satisfação que eu tenho no dia de hoje é deu ainda tá viva. (...) porque a minha doença é uma doença que eu sei controlar, já sei que tenho ela, já sei que não tem cura, então pra mim só resta controlar ela e fazer meu tratamento correto e... bola pra frente. Não me preocupar com nada... e pronto! (F – 46 anos)

Porém, sendo “F” uma mulher muito ativa e organizada, em outro

momento da entrevista, se lamenta da dependência dos medicamentos e de não poder

trabalhar. Contudo, percebe a necessidade de se manter lutando para controlar a situação

o quanto puder, seja através dos remédios ou fazendo crochê sob encomenda, como uma

atividade fisioterápica incentivada pela médica, mas que também se tornou uma forma

de aumentar a renda familiar:

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Ah, eu me sinto mal, assim porque se eu não tivesse ela, seria bem melhor, né. Porque se eu não tivesse ela, não tinha, não precisava tá tomando medicamento sem precisão, me entupindo de remédio. Não tinha deixado de trabalhar, né, parado meu trabalho, minhas atividades que sempre fiz.. (F – 46 anos)

Para “G”, o momento em que se deparou com o diagnóstico foi

aterrorizante. Entretanto, como a doença tem se mantido inativa há 3 anos, além de se

sentir apoiada pela família e pelo namorado e, manter suas atividades sociais e

ocupacionais, faz com que ela se sinta, conforme suas palavras, como “uma pessoa

normal”:

No começo eu me sentia assim... horrível! Mas hoje em dia não, me sinto uma pessoa normal. Eu penso assim, eu acho que praticamente eu tenho uma vida normal (...) com certos cuidados, né, mas uma vida normal. (G – 21 anos)

A participante “H” reconhece a sua preocupação com a sua condição

de ser portadora de LES, porque a qualquer momento a doença pode surpreendê-la com

a manifestação de algum novo sintoma. No entanto, isso não a impediu de buscar

alternativas que promovessem o seu crescimento e realização pessoal, mantendo-se

ativa com as diversas ocupações criadas após o aparecimento da doença e a conseqüente

aposentadoria forçada:

Preocupada no sentido assim, porque eu vou dormir e não sei se eu vou acordar. Eu fico preocupada. Se eu disser a você, não, eu não tenho preocupação em relação a minha doença, mas tô sempre (...) comigo mesmo. Eu fico preocupada, né, mas ... está na mão de Deus. Ele vai resolver, ele está resolvendo, né. Mas sendo portadora de lúpus fica sempre aquela preocupação. Porque... eu vejo a doença... é como se ela fosse assim muito traiçoeira. Estou boa... de repente eu me apago. Que eu vi casos assim, né. E isso me preocupa. Apesar de precisar de cuidado, né.. Eu vivo muito bem apesar de ser portadora de lúpus. ... faz dois anos que eu não tomo mais nada. Tô

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bem graças a Deus. Aparece essas coisinhas, né. Fica esse fungado, uma coisinha aqui, uma coisinha ali. Mas isso aí, eu procuro trabalhar a minha mente e sigo em frente! (...) Hoje, eu não sinto nada, absolutamente nada. Eu costumo dizer: eu não tenho nada mesmo. (H – 44 anos)

Acredita-se que a forma como atualmente ela vivência a sua doença

esteja relacionado ao fato do lúpus estar inativo e permitir que a mesma desenvolva

algumas ocupações (voluntária da Liga Feminina Contra o Câncer, vendedora, escritora

e relações públicas), ou seja, a doença não está impedindo que ela realize ou desenvolva

outras coisas em sua vida. Contudo, apesar dessa postura positiva frente à doença, a

mesma assume suas limitações e fragilidade diante da possibilidade de enfrentar uma

outra pessoa portadora de LES, não ocultando o impacto que sente quando sabe que

alguém manifesta a mesma doença:

Eu sinto por ela, né. Eu sinto muito. Essa minha aluna Tereza. Ela... eu fico com dó porque eu quero visitá-la mas é como se eu tivesse um choque em vê-la a situação. (...) e eu tô sem condições de ir visitá-la porque psicologicamente eu não tô bem pra fazer a visita, entendeu. (...). Como eu conheço o estado do lúpus, já sei que é mais ou menos o quadro que eu vou encontrar, então pra mim já... não vai ser bom pra mim que sou portadora de lúpus. (H – 44 anos)

Parece que a possibilidade de encontrar a ex-aluna que está com a

doença em atividade lhe faz relembrar todo o sofrimento sentido no início do seu

diagnóstico, quando foi inclusive desenganada pela médica, bem como, a probabilidade

de em algum momento retornar a essa situação crítica.

Percebe-se que apesar de toda a complexidade da doença e suas

implicações psicossociais, a maioria das participantes (“A”, “B”, “C”, “F”, “G” e “H”)

revelou no seu discurso que aceitam a doença e buscam, em maior ou menor grau,

alternativas para manter sua vida social mesmo diante das restrições impostas pela

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doença (Radley, 1994). Enquanto que “D” e “E” mostram-se inconformadas e com

muitas dificuldades para aceitar a doença.

6.5.1 - Projetos de vida

No tocante as perspectivas das participantes acerca do seu futuro, o

discurso delas pôde ser representado por duas "categorias": 1) Exclusivamente voltada

para a doença; 2) Preocupação pela doença associada a outras conquistas como

constituir uma família, estudar, trabalhar, reformar a casa e adquirir bens, aspirações

que se resumem para algumas na preocupação de “manter uma vida normal”.

A categoria centrada na doença foi ressaltada pelas participantes “D” e

“E”, lembrando que as duas, no momento da entrevista, encontravam-se depressivas

devido a sua doença e mostram um discurso reiterativo e sempre centrado nos

problemas e com um viés marcado pela resignação cristã.

É, do mesmo jeito que venho levando. Tomando remédio, lutando contra essa doença. Sempre que aparece alguma coisa, corro pra o médico, pra ver o que é. E fazendo minhas coisinhas, pros meus filhos, até quando Deus quiser, né. Cuidando dos meus filhos. (D – 39 anos) Eu, ficar boa. Cuidar do meu filho. Como Deus quer, né. (E – 39 anos).

Enquanto que as participantes “F” e “H” destacaram tanto manter a

sua doença controlada, como ter conforto e segurança através de possessão de bens, já

as participantes “A”, e “G”, até pela juventude, enfatizam também à realização de

constituir uma família, estudar, ter uma profissão, trabalhar, passear... “B”, além de

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fazer vestibular e se formar, sua maior aspiração é “viver uma vida normal”, ao passo

que para “C” ter sua vida “quase” normal foi o único desejo expressado.

Projeto que eu tenho minha filha, é que Deus me dê saúde, né, pra eu viver, sustentar essa doença até...o máximo possível, porque morrer eu não quero tão cedo, não!" A mesma refere ainda:"Sonho de... de ter minhas coisas dentro de casa, ajeitar minha casa, conseguir o que eu nunca consegui... que eu tô conseguindo agora com esforço. (F – 46 anos) Então o meu maior projeto hoje é... manter minha saúde, que eu cuido muito. É ver minha filha formada. Comprar minha casa de novo e permanecer com a minha saúde, né. (H – 44 anos) Eu espero que seja sempre assim, do jeito que eu tô. Boa, sem crise, sem nada, que eu possa construir uma família... trabalhar, passear, sabe. (G – 21 anos)

Dessa forma toda a história pessoal, os contextos nos quais participam

(nos papéis de esposa, mãe, filha ou irmã; no trabalho ou na escola onde desempenha

suas atividades; no hospital enquanto portadora de uma doença), as relações

interpessoais estabelecidas por elas nos diversos contextos, incluindo também as

distintas fontes de informação (televisão, rádio, jornal, entre outros) influenciam os

processos de significação, evidenciando várias formas de dar sentido ao seu adoecer.

Esses processos estarão permanentemente em movimento e promovendo mudanças

conforme os novos contextos e papéis que a pessoa vai assumindo ao longo da sua vida,

podendo assim, ser modificado e permitindo a geração de novos sentidos.

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7 - Considerações finais

As idéias presentes nesse capítulo surgiram, não apenas ante a

necessidade de uma síntese de fechamento desse trabalho de pesquisa, mas, também, a

partir da gratificante possibilidade de poder compartilhar com as participantes suas

experiências e vivências em relação a sua doença. As opiniões expressadas aqui foram

construídas a partir de um olhar específico, assim sendo, deve ser vista como uma janela

que se abre na intenção de permitir novas reflexões sobre o processo de adoecer e o

reencontro de um relativo equilíbrio na vida dessa pessoa.

Ao entrar em contato com essa clientela, durante um estágio

voluntário desenvolvido no HUOL, deparei-me com essa doença pouco conhecida pela

população. Além dos inúmeros sintomas e manifestações que ela pode apresentar,

encontra-se ainda a imprevisibilidade do curso que tomarão tais sintomas em cada

pessoa afetada, bem como, sobre o relativo controle que as pessoas podem ter sobre ela.

Diante dessa realidade, comecei a pensar na pessoa portadora que

sofre frente às possíveis perdas oriundas da doença. Assim, alguns questionamentos

suscitaram o interesse por esse tema, todos eles apontando para um melhor

entendimento dos processos psicossociais permeando o adoecer dessas pessoas.

No processo da pós-graduação foi ficando mais claro que essas

indagações poderiam ser mais bem aprofundadas através de um trabalho de pesquisa

que considerasse a dinâmica dos processos de significação e produção de sentidos.

Parte-se do critério de que embora, o sentido seja um processo particular (subjetivo), o

mesmo é construído socialmente através das relações interpessoais (processos de

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intersubjetivação), que estão inseridas em um determinado contexto sócio-histórico e

cultural.

O surgimento do LES aponta não apenas para uma possível

predisposição genética, mas, geralmente estão presentes aspectos hormonais (estrógeno)

e ambientais, como estresse, exposição aos raios ultravioleta (encontrado no sol e em

lâmpadas fluorescentes) ou uso de determinados medicamentos, bem como, os fatores

emocionais.

Apesar dos estudos apontarem essas possibilidades para o

aparecimento do LES, faz-se necessário outras pesquisas que dêem conta da

complexidade da doença e de suas exacerbações. Nesse sentido, como fora colocado em

capítulos anteriores, é relevante ponderar não apenas a dimensão biológica, mas que

concomitantemente se vislumbre a situação da pessoa envolvida, vendo-a como uma

totalidade, tendo em vista, que a sintomatologia produz múltiplas implicações de caráter

psicossocial, exigindo mudanças no estilo de vida delas no intuito de manter a doença

relativamente controlada.

Considerando que o LES incide principalmente em mulheres (cerca de

90% dos casos, segundo Sato, 1999), situação também encontrada em estudos na cidade

de Natal, decidiu-se desde o início em trabalhar só com participantes do sexo feminino.

Coincidentemente, durante as visitas ao ambulatório de reumatologia do HUOL para

contactar as participantes, foi ratificada essa tendência, não aparecendo nenhum homem

portador de LES no decorrer da coleta de dados.

A partir dos discursos das participantes, observou-se que não é só o

LES que tem inúmeras formas de se apresentar. Ficou em evidência que a experiência

da doença é algo muito subjetivo e intransferível, tendo também diversas formas de

expressão conforme as conseqüências advindas desse processo de adoecer para cada

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pessoa. Essas implicações ocorrem a partir do contexto social, cultural e econômico que

compõem a realidade desta, incluindo todas as situações e vivências que fizeram parte

da sua auto-biografia e, que de alguma forma, perpassam seu desenvolvimento enquanto

ser humano.

A experiência do adoecer no caso das participantes configurou-se a

partir do aparecimento dos primeiros sintomas, em que a maioria levou mais de sete

meses sofrendo física e psicologicamente, até chegar ao diagnóstico de LES, o qual

definiu uma fase de transição em suas vidas. Todas, nesse momento, estavam em idade

produtiva e fértil (idade variando entre 17 e 39 anos), tendo ainda uma vida inteira pela

frente. Contudo, aquelas com filhos passaram pelo período de gestação antes da

manifestação da doença e para aquelas ainda com expectativas de engravidar, ficou

claro, que o LES não afeta a fertilidade impedindo-as de conceber filhos, necessitando

apenas de maiores cuidados do que as outras mulheres.

Observou-se que o modo como as participantes lidaram com o

impacto do diagnóstico dependeu de uma série de fatores, tais como a pessoa estar

sozinha ou acompanhada; o modo como ele foi transmitido; o que foi explicado e

comunicado sobre a doença, seu prognóstico e suas implicações; o significado social

(estigma) que ela carrega consigo, bem como, as características pessoais e a história de

vida de cada uma. Tudo isso permitiu diferentes formas delas significarem e reagirem

ao diagnóstico.

O fato da doença não ter cura foi o que mais causou impacto entre as

participantes, enquanto que em outras, além da frustração pela incurabilidade do LES,

houve um sentimento de alívio. Devido à gravidade dos sintomas durante a fase de

investigação diagnóstica algumas chegaram a suspeitar ter câncer e até AIDS, pela

semelhança dos sintomas (por exemplo, queda de cabelo e problemas na pele).

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Diante dos conhecidos fatores que desencadeiam o surgimento do

LES como exposição solar, estresse e aspectos emocionais. Ficou evidente que os

fatores emocionais foram o que mais as participantes consideraram como influências

significativas para o aparecimento da doença. A exposição solar também foi destacada,

entretanto, as mulheres que fizeram essa associação foram justamente aquelas que

apresentaram outros casos da doença na família. Provavelmente, no caso destas, o que

contribuiu para a eclosão do LES foi à hereditariedade e não a exposição aos raios

ultravioleta. Portanto, isso confirma a idéia de existir uma predisposição genética e que

a doença possivelmente surja a partir desses fatores desencadeadores.

Diante da diversificada sintomatologia que o LES pode manifestar

simultaneamente, percebeu-se que nessa fase dos primeiros sintomas, a doença atingiu

principalmente as articulações, afetando sua mobilidade motora e impedindo-as de

exercer suas atividades ocupacionais e/ou profissionais. Na maioria dos casos, se

apresentaram também os diversos problemas da pele, causando-lhes constrangimento

diante dos outros porque atraia a curiosidade e atenção. A depressão, igualmente, foi

citada como um sintoma, mas não ficou claro se foi oriundo da atividade da doença ou

devido à dificuldade de lidar com a mesma.

Conhecer quando os sintomas retornam parece ser importante, porque

assim as pessoas portadoras poderiam ter um maior controle da doença, ao evitar as

possíveis situações que podem estar influenciado as novas crises. Nesse sentido, as

participantes destacaram como principais circunstâncias à exposição solar, baixa

temperatura climática, problemas emocionais e estresse. Contudo, houve participante

que apontou ainda que às vezes não consegue identificar a ocasião porque apesar de

todo o controle, de repente os sintomas voltam. Diante disso, conclui-se que as mulheres

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têm consciência da situação em que os sintomas reincidem, porém, a imprevisibilidade

da doença impede o maior controle desta.

A complexidade da patologia, com seus diversos quadros clínicos, os

quais podem ocorrer simultaneamente, trouxe repercussões em vários campos da vida

das participantes (na casa, nos estudos e no trabalho) exigindo modificações em suas

rotinas, tais como: 1) Deixar de exercer as tarefas domésticas quando a doença está

ativa, porque exige força e as deixa cansada; 2) Fazer dieta porque o uso do corticóide

faz com que elas aumentem o peso; 3) Utilizar protetor solar, roupas que cubram a pele

e chapéus e/ou sombrinhas para evitar os efeitos nocivos dos raios ultravioletas, além de

não ir à praia, o que muitas vezes é a única fonte de lazer; 4) Usar constantemente

medicamentos; e 5) Ter que conviver com o sofrimento gerado pela doença e

preocupações com os cuidados a fim de manter esta relativamente controlada.

Em relação às atividades profissionais e/ou ocupacionais, a doença

trouxe alterações, uma vez que, apresentando-se ativa, exigiu o afastamento delas. Pois,

mesmo quando a doença encontrava-se controlada, o esforço sistemático favorecia o

retorno dos sintomas, especialmente, nos casos em que as tarefas estão diretamente

vinculadas as partes do corpo mais atingidas pela doença. Foi, assim, mais prudente

deixarem de trabalhar, ao menos nas atividades que estavam exercendo.

Contudo, o afastamento do trabalho, para aquelas que já trabalhavam,

repercutiu diretamente na situação econômica, em um contexto já de limitações,

afetando a única garantia de sobrevivência. Isso acabou sendo uma fonte de estresse e

preocupação adicional para algumas participantes, problema que ainda é sentido por

uma delas, encostada na perícia já há dois anos. Dessa forma, a aposentadoria fornecida

pelo Instituto Nacional de Serviço Social-INSS, constitui um apoio relevante, que

deveria ser fornecido sem tanta burocracia. Segundo os depoimentos de algumas

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participantes, ter o salário todo o mês, garantiu não só os gastos básicos, mas também a

compra da medicação necessária para manter o relativo controle da doença e

minimização dos sintomas.

Outro ponto importante em relação ao trabalho, é considerar o que

este representa para as pessoas, pois sua relevância pode variar conforme a posição que

ela se encontra na sociedade. Assim, ficou evidente que aquelas que tem maior nível de

instrução entendem que o trabalho não é somente uma fonte de renda, mas, também

uma atividade que lhes acrescenta enquanto pessoa. Pôde-se perceber que a maioria das

mulheres, que exerciam algum tipo de atividade e que tinham uma baixa escolaridade,

não sentiu tanto o fato de suspenderem suas atividades laborais, já que, sua renda estava

sendo garantida através da aposentadoria.

Apesar das mudanças, algumas participantes, não se detiveram nas

perdas advindas do adoecer. Estas, preferem focalizar a atenção no potencial que ficou e

tentar “garantir” a minimização dos sintomas. Assim, uma delas criou alternativas de

trabalho na qual tem maior flexibilidade em estipular os seus horários e, a outra buscou

estratégias que preservassem alguns programas de lazer considerando o melhor horário

para realizá-las. Dessa forma, tem preservado sua vida social sem causar prejuízos a sua

condição de portadora de uma doença crônica.

Contudo, observa-se que a doença impõe algumas mudanças que não

querem necessariamente dizer que são limitações, e mesmo ao serem consideradas

assim, não se configura como uma ameaça à identidade social da pessoa, principalmente

quando elas compreendem que isso pode “assegurar” um relativo controle da sua saúde

e/ou minimização dos sintomas.

Ficou evidente, que o conhecimento das participantes a respeito da

doença, reside basicamente na idéia desta ser incurável. A justificativa para isso pode

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ser o impacto ocasionado pelo reconhecimento de ter que conviver com a mesma para

toda a sua vida. Embora a maioria das mulheres esteja ciente dessa cronicidade,

algumas delas persistem nesse ponto, principalmente, aquelas que se encontram em

estado depressivo. Observa-se que estas não se conformam com a condição e não

conseguem vislumbrar outras possibilidades, deixando que a doença controle sua vida.

A maioria das participantes afirmou não apresentar nenhum tipo de dificuldade no

tocante a adesão ao tratamento, o qual não se restringe apenas a medicação, mas,

concomitantemente, ao uso de protetor solar, fazer dieta, praticar alguma atividade

física, entre outros. Acredita-se que ocorre essa facilidade porque caso negligenciem a

medicação, elas não têm noção do tipo de sintoma que pode se manifestar, podendo ser

um inchaço severo nas articulações, como também uma inflamação nos rins ou em

algum outro órgão vital, o que seria muito mais grave. Contudo, o que mais chamou a

atenção, foi que uma delas utilizou como argumento para aderir às recomendações

médicas, o fato de todos em sua casa serem doentes (pai, mãe e irmã já falecida de

LES). Isto é, o contexto familiar permeado por várias doenças a faz naturalizar aspectos

relativos ao adoecer.

No tocante ao que prejudica no relativo controle da doença foram

citados os fatores emocionais, tais como raiva, crise conjugal e falta de apoio de

familiares como os mais nocivos. Contudo, uma delas deixou claro que o remédio é

justamente o que mais a prejudicava devido aos efeitos colaterais, pois ao tentar

controlar o LES, as altas doses de corticóide provocam-lhe diversas reações, deixando-a

mais doente. Em contrapartida, a medicação foi mencionada pela maioria como o

principal recurso para auxiliar o controle da doença. Portanto, fica evidente que elas

conhecem o que lhes prejudica, mas não têm clareza que esses aspectos podem e devem

ser trabalhados como formas de minimizar os sintomas.

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Diante das dificuldades e implicações impostas pela doença, as quais

tendem a deixá-las mais fragilizadas, a família constitui a principal fonte de apoio, o que

não foi diferente no caso das participantes. No entanto, algumas destacaram que o

ambiente familiar também causa problemas emocionais (por exemplo, a crise conjugal e

as brigas entre os filhos das irmãs), os quais tendem a refletir na sua saúde porque

provoca o retorno de alguns sintomas. Assim, apesar de receberem o apoio dos seus

familiares, algumas se encontram insatisfeitas em virtude dessas dificuldades.

A condição de ser portador de uma doença crônica normalmente gera

preocupação em relação a como será o comportamento das outras pessoas diante delas,

uma vez, que a doença pode deixar marcas visíveis (manchas, feridas, calvície, entre

outros). No caso das participantes, poucas sentiram mudanças nos relacionamentos já

estabelecidos, destacando que existe essa distinção, a qual foi percebida de duas formas:

1) As pessoas não sabem como lidar com a pessoa portadora de LES e 2) Elas temem

que a doença seja contagiosa. Contudo, de acordo com o discurso delas isso ocorreu,

primordialmente, no início da doença quando ainda não se sabia o diagnóstico. Portanto,

ter o diagnóstico é importante não só para que a pessoa dê um nome ao seu sofrimento e

inicie o tratamento mais apropriado, mas, também, para passar segurança àquelas que

estão perto delas.

Observou-se que o sentido atribuído pela maioria das participantes

sobre a sua enfermidade é que ela é algo ruim e horrível, que apareceu do nada e que a

qualquer hora pode se manifestar com novas exacerbações. No entanto, apesar dessa

visão negativa e das mudanças impostas pela mesma, a maioria consegue estabelecer

uma boa convivência com a doença, aceitando-a e tentando criar alternativas para

preservar sua identidade social, sem, contudo, negligenciar os cuidados necessários para

mantê-la relativamente sob controle. Ao contrário do que se poderia pensar, o sentido

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que elas atribuem, reforça a adesão ao medicamento, a não se expor aos raios

ultravioletas e a não fazer esforço, sendo essas, as condutas mais fáceis de serem

assumidas. Enquanto que os demais cuidados como praticar atividade física, fazer dieta,

evitar eventos estressantes e os aspectos emocionais tendem a ser mais difíceis de serem

seguidos, especialmente estes porque fogem ao seu controle.

De um modo geral, no caso das mais jovens, a convivência com a

doença não impede que estas criem expectativas quanto ao seu futuro, seja constituindo

uma família ou na realização de uma carreira profissional. Enquanto que aquelas que já

passaram por essa fase da vida esperam poder acabar de criar seus filhos e vê-los

formados, além de continuar mantendo a doença sob controle para que esses objetivos

sejam alcançados.

Isto mostra que apesar da complexidade da doença, da possibilidade

dos sintomas retornarem; enfim, de todas as implicações decorrentes do seu adoecer,

estes não fazem com que a maioria das participantes vejam a sua enfermidade como

algo que de antemão determinará o tempo e a hora da sua finitude. Contudo, isso não

acontece com aquelas que estão em estado depressivo, pois a cura constitui seu principal

desejo. Parece que a doença assumiu o controle de suas vidas, ao invés delas buscarem

alternativas para lidar com a doença e assim conservar sua vida social.

Isso vem reforçar a idéia de que ser portador de uma doença crônica

não é nada fácil, mas que a pessoa pode e deve vislumbrar uma vida saudável, tendo

consciência de suas possibilidades e limitações. Obviamente, que adotar essa postura

requer uma série de outras condições que não dependem unicamente delas, como

recurso financeiro para adquirir os remédios e/ou fazer uma dieta, bem como, ter o

apoio de seus familiares.

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Poder-se-ia até pensar que o tempo de convivência com o LES

influenciasse no modo como as participantes lidam com a doença. Entretanto,

constatou-se que há diversos fatores implícitos nesse processo de lidar com a mesma,

como a idade e maturidade das participantes, personalidade, nível cultural, reincidência

de sintomas, gravidade dos sintomas, o apoio percebido e o contexto em que elas estão

inseridas.

Diante de tudo que foi exposto, percebeu-se a necessidade de um

acompanhamento psicoterápico ou a formação de grupos de discussão e/ou grupos de

apoio para as mulheres portadoras de LES, pois, esse trabalho, permitiria a troca de suas

experiências e uma melhor convivência com a doença, ao compartilharem suas

angústias e temores. Isso possibilitaria um diálogo entre elas que ajudaria na criação de

estratégias para ultrapassar as dificuldades impostas pela doença, contribuindo assim,

para que pudessem lidar melhor com esta.

O discurso das participantes revelou que inicialmente, as

conseqüências físicas são as mais sentidas, tendo em vista que sua identificação é mais

fácil e perceptível, enquanto que as outras dimensões, a social e a psicológica

apresentaram-se como secundárias. No entanto, após o estabelecimento da doença, os

aspectos psicossociais passaram a ser tão importantes quanto os biológicos no

tratamento dos sintomas e relativo controle da doença. Revelando, portanto, que as

doenças auto-imunes, como o LES, não podem ser tratadas considerando

exclusivamente uma dimensão, mas sim, observando a interdependência entre elas.

Observou-se, ainda, a existência de poucos estudos e até divulgação

sobre o LES nos meios de comunicação, o que não acontece com outras doenças como o

câncer e a AIDS. Estas são constantemente destacadas em campanhas informativas

explicando o que é a doença e alertando para a sua prevenção. Isso também deveria

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ocorrer no caso do LES, principalmente em cidades como Natal, que além de apresentar

maior incidência que a média internacional, o sol está presente a todo o momento.

Portanto, acredita-se ser imprescindível estudos que possam informar sobre a sua

existência, assim como, esclarecer melhor a sua dinâmica e as suas conseqüências para

toda a população e não apenas para aqueles que já são portadores.

Observou-se, que apesar da literatura e dos profissionais falarem em

tratamento personalizado, em verdade, isso é feito parcialmente porque eles se referem

unicamente ao medicamento para combater e/ou minimizar os sintomas diferenciados

apresentados pela pessoa portadora. Essa terapêutica deveria contemplar todos os

aspectos que foram apontados nesse trabalho, o que demanda uma dinâmica de

intervenção interdisciplinar.

Espera-se que com esta pesquisa exista uma maior compreensão sobre

a pessoa portadora de LES e toda a complexidade implícita no processo de adoecer.

Deve-se considerar o contexto social e a sua subjetividade, pois, como se pôde perceber,

a patologia não afeta apenas o seu corpo, mas simultaneamente, o social e o psíquico.

Assim, qualquer tratamento deve ponderar a interdependência das três dimensões ao

almejar a minimização dos sintomas e o relativo controle da doença.

Pretende-se comunicar todas as informações produzidas aqui às

participantes e profissionais envolvidos com essa clientela, através de encontros e

publicações científicas. Pois, esse estudo somente terá cumprido o seu papel social se o

mesmo for transmitido, não só àqueles que estão diretamente envolvidos com essa

dinâmica do adoecer (portadoras de LES e profissionais de saúde), mas, também, com

aqueles sensíveis a continuarem aprofundando nesse tipo de problema.

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APÊNDICE A

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença crônica, auto-

imune que atinge diversas partes do corpo. Estudos indicam a importância de estudos

psicossociais sobre a doença crônica, incorporando assim a visão do paciente acerca do

seu adoecer; tendo em vista que qualquer doença deve ser compreendida em sua

totalidade, ou seja, observando o aspecto biológico, psíquico e social.

O objetivo desta pesquisa é conhecer o significado que a doença lúpus

eritematoso sistêmico tem para você. Além disso, que informações você tem sobre a sua

doença e os sintomas apresentados por você quando a doença entra em atividade; e

saber como você lida com a sua doença.

A pesquisa será feita da seguinte forma: você será entrevistada pela

pesquisadora, em uma sala reservada no Hospital Universitário Onofre Lopes e

responderá perguntas sobre: 1) seus dados pessoais; 2) experiência da sua doença; 3)

que apoio recebe das pessoas que convivem com você; 4) o que sabe sobre o lúpus

eritematoso sistêmico e o que você faz para controlar a doença; e 5) qual o sentido da

doença para você. Todas as entrevistas serão gravadas em um gravador e transcritas

para serem analisadas posteriormente pela pesquisadora.

Todas as informações dadas por você durante a entrevista serão

utilizadas somente pela pesquisadora, a fim de atender apenas aos objetivos da pesquisa;

além disso, serão mantidos em absoluto sigilo, assegurando assim a sua privacidade. As

informações colhidas ficarão sob os cuidados da pesquisadora, em sua residência.

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Com este estudo, pretende-se mostrar a importância de se considerar a

visão da pessoa que tem lúpus eritematoso sistêmico sobre o seu adoecer, uma vez que

se acredita que esse olhar da paciente pode contribuir para a evolução e agravamento da

doença.

Esta pesquisa não oferece nenhum tipo de risco para você. E trará

como benefício, abrir um espaço de escuta através da entrevista individual, para que

você possa expressar seus sentimentos frente a sua atual condição. Além disso, através

dos resultados da pesquisa você compreenderá como o sentido dado por você à sua

doença, pode ou não estar contribuindo para o agravamento do seu adoecer.

Você poderá deixar de colaborar com a pesquisa em qualquer fase,

sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado; cabendo a você apenas

comunicar sua decisão à pesquisadora.

Os resultados da pesquisa, favoráveis ou não, serão divulgados no

próprio hospital através de palestra ou exposição de painel, além de ser publicado em

uma revista científica.

________________________________________ declaro que

conheço os objetivos e procedimentos que envolvem essa pesquisa e concordo em

participar desta como voluntária.

Natal, __ de _______________ de 2003.

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APÊNDICE B ROTEIRO DE ENTREVISTA

IEFEPRNTR ••••

1 - DADOS SÓCIO-DEMOGRÁFICOS

dade: stado civil: ilhos: scolaridade: rofissão: eligião: º de pessoas no lar: em irmãos: enda familiar:

Fale um pouco de sua vida, quais são os seus projetos. O que você fazia nas horas livres, como lazer? Quais aspectos na sua vida você considera os mais importantes? Quais aspectos na sua vida você considera menos importantes?

A

2 - EXPERIÊNCIA DA DOENÇ

Há quanto tempo tem o diagnóstico de LES?

Que sintomas você teve no início da doença?

Você ficou grávida após o diagnóstico de LES? Se sim, como foi a gestação?

Como foi o período em que você ainda não sabia o que tinha?

Como se sentiu quando recebeu o diagnóstico?

Quem estava com você quando recebeu o diagnóstico?

Foi importante para você estar acompanhada (quando recebeu o diagnóstico)?

Você ficou grávida após o diagnóstico de lúpus? Se sim, como foi?

Você procurou informações sobre o lúpus quando soube que tinha?

Você acredita que algum acontecimento na sua vida contribuiu para o surgimento da

doença? Qual (is)?

Houve alguma mudança na sua vida, após o diagnóstico? Em quê e como?

A doença lhe impediu (ou está limitando) algo na sua vida?

Como sua família reagiu ao saber da doença?

Como seus amigos reagiram?

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• Você sente alguma diferença na forma como as pessoas lhe tratam quando sabem

que tem LES?

3 - NÍVEL DE INFORMAÇÃO E “CONTROLE” DA DOENÇA

• O que você sabe sobre a doença?

• Você tem alguma dúvida sobre o lúpus?

• Você consegue identificar qual o momento/situação em que os sintomas voltam?

Quais?

• Qual a orientação dada pelo médico para você controlar o lúpus?

• Você segue as orientações?

• Você tem alguma dificuldade em seguir as recomendações médicas?

• Você já ficou internada?

• Que aspectos/fatores de sua vida prejudicam para o controle do LES?

4 - NÍVEL DE APOIO SOCIAL PERCEBIDO

• Em que pessoas você encontra conforto (apoio)?

• Os familiares ajudam no controle da sua doença? Como?

• Você está satisfeito com o apoio que recebe? Por quê?

5 - PROCESSO DE SIGNIFICAÇÃO E COMO LIDAM COM A DOENÇA

• Como você se sente sendo portador de uma doença crônica como o LES?

• Esta visão acerca da doença, de alguma forma reflete no seu tratamento? Como?

• O que você pensa quando sabe que alguém tem LES?

• O que você diria a uma pessoa que tem LES?

• Que aspectos/fatores de sua vida contribuem para o controle do LES?

• Como você vê sua vida daqui para frente (que projetos você tem)?

• Você acha que a doença pode impedir seus planos?

• Em que você acha maior satisfação, no dia de hoje?

• O que você menos gosta?