A Escolha de Melissa

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    A ESCOLHA DE MELISSA

    Ramiro Marques

    2004

    Dedico este livro a todas as pessoas que conheci e que me contaram as suas histrias.

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    UM

    O avio comeou a perder altitude. O Pedro olhou pela janela e viu uma ilhaacastanhada, quase careca, cercada de azul. O avio fez-se pista e o casario, branco ecinzento, da Cidade da Praia, deu lugar a vrias lnguas de alcatro, rodeadas de areiasuja e arbustos rasteiros. Aquela paisagem era-lhe familiar, embora no visitasse a ilhahavia dez anos. Quando deixou o avio, uma onda de calor bateu-lhe na cara. Ao fundodas escadas, o alcatro fumegava. Duas raparigas, impecavelmente vestidas com umafarda dos TACV-Airlines, receberam-no com sorrisos e desejaram-lhe as boas-vindas.Ele agradeceu, encaminhou-se para o hangar e procurou um txi. Trazia apenas um sacode mo. O taxista era um rapaz de pele escura e cabelo rapado. No disse nada duranteos dez minutos da corrida e passou o tempo a sorrir. Do rdio, saiu uma msica agitadaque o Pedro no reconheceu. O rapaz abanava a cabea, acompanhando o ritmo da

    cano. O carro chiava nas curvas e o taxista acenava aos outros condutores, como se osconhecesse a todos. Quando o carro chegou ao Plateau, disse ao rapaz que parasse juntodos correios. Era uma rua silenciosa, rodeada de moradias com dois e trs pisos, comportas de madeira muito altas, janelas com portadas, pequenas varandas de ferro forjadoe grandes terraos. Aquele era o antigo bairro da pequena burguesia local: funcionriosda administrao colonial, militares e comerciantes. Agora, grande parte das casasestavam desabitadas e em mau estado. O piso era de alcatro e os passeios, de pedrasescuras, estavam polvilhados de pequenas crateras. Havia gatos estendidos nos passeios,

    junto aos muros decrpitos, a lamberem, cuidadosamente, o plo empoeirado. Um co,com o pescoo e as orelhas cobertas de carraas, coava-se contra uma parede porrebocar. Nos quintais, as bananeiras e mangueiras curvavam-se, obedecendo fora do

    vento. Uma velha, de cabelo quase rapado, abriu o postigo da porta e deitou a cabea defora, fixando os olhos piscos no homem que acabava de chegar. Ao fundo, via-se umbocado de azul: o mar largava pequenas ondas sobre a areia preta. Havia barcosancorados no porto e, na encosta, viam-se dezenas de pequenas casas com paredes porrebocar. Dir-se-ia que as casas estavam em construo, sempre prontas para levarem umnovo piso. Crianas pequenas, seminuas, brincavam nas estradas e carreirosempoeirados. Mais perto do mar, junto da areia preta, sacos de plstico, presos a cactosrasteiros, agitavam-se ao vento.

    O Pedro entregou ao rapaz uma nota de quinhentos escudos de Cabo Verde.Olhou em redor. A porta da casa da Melissa estava semiaberta. Segundos depois, elameteu a cabea de fora e acenou com a mo. Havia dez anos que no lhe punha a vista

    em cima. Era aquela a sua nova casa! A casa que o Macaco comprara e que estava agoraa restaurar. Ele fixou o olhar no nmero da porta, o 28 A, e entrou no corredor escuro. AMel beijou-lhe a boca e disse:

    -Ai, nem acredito que s tu!-Parece um sonho!-Sobe, amor, a minha casinha no 2 e no 3 pisos! O 1 piso tambm meu,

    mas est alugado.-Ests rica, meu amor! disse ele, soltando uma gargalhada.-No gozes! Olha que eu estou mesmo!-Amorzo, ests na mesma! Linda! disse ele, enrolando o brao volta da

    cintura fina da Melissa.

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    -No mintas, sim? Passou-lhe a mo, carinhosamente, pelo pescoo. - At umcego v que eu estou mais velha!

    -Tu, mais velha! Ests ainda melhor! Eu que estou velho.-No vejo um nico cabelo branco! Ests igual! Olhou para ele de alto a baixo.

    Ai, que saudades eu tinha desse sorriso!

    Subiu as escadas atrs dela. Eram umas escadas de cimento vermelho, semcorrimo, ladeadas de paredes, pintadas de amarelo. A casa estava em obras. O 1 pisoestava alugado. No 2 piso, havia materiais de construo, paredes por rebocar eferramentas. O 3 piso estava escassamente mobilado. O corredor, cheio de luz, quevinha do terrao, tinha as paredes por pintar. Encostado parede, uma esttua demadeira, com meio metro de altura, que o Macaco trouxera de Moambique.

    -Amorzo, h anos que esperava por este momento! disse ela. Anda ver omeu filho!

    O beb ainda no tinha trs meses e dormia, de barriga para baixo, em cima dacama. Estava deitado entre duas almofadas. Era um beb de pele clara e cabelos lisos.S o nariz, um pouco achatado, denunciava o sangue africano que lhe corria nas veias.

    -No parecido contigo, pois no?- a cara do pai! Tem o sorriso do Macaco, a pele clara, e at o mesmo sorriso.Olha aqui! disse ela, mostrando ao Pedro uma fotografia do marido.

    Pedro olhou para a fotografia e viu que o italiano era um homem de meia-idade,cabelos escuros e fartos, olhos pequenos e faiscantes, boca grande, escancarada numsorriso trocista.

    -O Macaco deve estar doido de contente!-No cabe em si de alegria! Ainda no esteve com o filho! Coitado, s o viu em

    fotografia. Repara bem nas orelhas dele! Grandes como as do pai!Pedro reparou que o marido dela tinha umas orelhas sadas para fora, em forma

    de abano, que lhe pareceram duas pequenas antenas parablicas.

    O Macaco era o marido da Mel. Ela chamava-lhe Macaco, ele chamava-lheMacaquinha e o Miguel era o Macaquinho. Mas o verdadeiro nome dele era Arturo.-Anda da, amorzo, quero contar-te todas as merdas que me aconteceram nos

    ltimos dez anos disse ela, empurrando-o para a cozinha.A cozinha era um espao acanhado, com cho de cimento, paredes amarelas,

    tectos com manchas de humidade, um fogo em frente da porta, uma mesa de pinhojunto janela que dava para um quintal vizinho, um lava-loias, um frigorfico, umamquina de fazer sumo e um microondas. Ela comeou a fazer sumo de tomate, kiwi ecenoura.

    -No ligues desarrumao, amor. Estamos em obras, isto vai ser tudorestaurado. O Macaco que faz todos os trabalhos. Sabes, ele faz tudo, e na perfeio:

    trabalho de pedreiro, de canalizador e at de carpinteiro. Tive sorte com este homem.Sabe fazer tudo, ganha bom dinheiro e bom na cama.-Tiveste sorte! Podes crer! Pedro sentou-se e ficou a ver a Melissa a cirandar

    pela cozinha. Admirou-lhe a cintura fina e o pescoo alto.-Foi o nico macaco que me fez bem! At tu me deste um pontap no cu!

    Olhou para ele e riu-se. - Os outros s me fizeram cagar merda!-Quando que compraste a casa?-H menos de um ano. Comprei-a a uma velha que emigrou para Boston. a av

    da Suzi, uma moa desmiolada. Levou o dedo indicador testa e sorriu. - A velhotafoi ter com o filho Amrica e vendeu isto barato.

    -So trs pisos, na melhor zona da Praia, com a melhor vista possvel disse ele,enrolando os braos volta dela e beijando-lhe os cabelos longos e fartos que lhe caam

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    pelas costas. -Ela voltou-se e ofereceu-lhe os lbios grossos. O Pedro passou-lhe alngua pelos dentes, uns dentes de uma brancura imensa.

    -O Macaco teve de interromper o restauro da casa h coisa de trs meses. Foipara a Guin-Conacri, numa misso de urgncia. Est a ganhar uma pipa de massa.Aqueles gajos da Unio Europeia so generosos: pagam bem. Mas o Macaco tambm

    bom, o melhor na especialidade dele e alm disso sabe fazer tudo e fala cinco lnguas:italiano, francs, portugus, ingls e crioulo. Na perfeio!-Mel, casaste com um tipo singular! disse, encostando o corpo ao dela.Ela tinha uma cintura delgada, a bem dizer todo o corpo dela era esbelto e

    sinuoso. A pele, ligeiramente escura, era lisa e brilhante. Danava enquanto falava,acompanhando as palavras com os braos, as mos e as pernas, sem nunca permanecerquieta. E ria, ria muito. A voz continuava to doce como quando ela tinha vinte e quatroanos. As palavras dela soavam a msica.

    -Tu que foste o culpado! Lembras-te daquele dia, em Lisboa, em que me desteum pontap no cu?

    -Lembro e peo-te perdo.

    -At que foi melhor assim. Ela inclinou-se e beijou-lhe a boca - Eu estavadisposta a casar com aquele Z, um filho da puta que s queria foder, fodia, fodia semparar, e eu deixava, apesar de no gostar dele nem um bocadinho e estava disposta acasar com o cabro s para me manter perto de ti.

    -Eu sei que fazias isso por mim. Mas, naquela altura, eu no podia ficar contigo.As minhas duas filhas eram muito pequeninas!

    -Sempre as tuas filhas a empatarem! disse ela, desalentada.O Pedro lembrou-se daquela tarde, dez anos atrs, nos Restauradores. Foram

    almoar a um restaurante barato da Baixa de Lisboa. Ele estava a beber a bica quandoela lhe perguntou se queria fazer amor. Ele respondeu que no. Um manto de tristezacaiu sobre a cara da Mel e o sorriso que lhe enfeitava a boca desapareceu, dando lugar a

    uma expresso de tristeza, visvel no silncio e nos lbios cerrados.Viu-a pela ltima vez a subir as escadas da estao do Rossio, onde ia apanhar ocomboio para a Amadora. Ela voltou-se e acenou com a mo. Disse qualquer coisa queo Pedro no conseguiu ouvir. Ele levantou o brao e enfiou-se no parque deestacionamento dos Restauradores. Mordeu os lbios de raiva e saiu de l coberto devergonha.

    -Bolas! Ainda bem que eu no casei com o Z! Sabes que o filho da puta casoucom outra e passa os dias a dar-lhe porrada! J viste do que eu me livrei? Levar porradadum gajo daqueles? Feio como o diabo! Soltou uma gargalhada. - A me dele quegostava muito de mim, queria ver-me casada com ele, dizia que eu era boa cozinheira e

    que saberia tratar do filho como nenhuma outra! Pobre mulher! Estava disposta acomprar um apartamento para ns! E eu ia aceitar se tu tivesses dito que me queriasperto de ti. Mas tu disseste para eu regressar a Cabo Verde e eu voltei a casa. Nem lhedisse nada: fiz a mala, meti-me num avio e vim para aqui. Bem, antes disso, aindaandei um tempo a passear pelo Algarve, onde conheci aquele algarvio, vivo, que tinhauma cabana na praia e que fodia, fodia sem descanso. Onde que aquele diabo iaarranjar tanta energia? Sempre, sempre pronto para o combate!

    - Eu sei! J me contaste a histria do algarvio. Foi um ano depois que conhecesteo italiano, no foi?

    -No foi logo. Eu conto-te tudo mais tarde. uma histria longa e andei a comermuita merda at encontrar aquele macaco.

    -Voltaste para aqui ou para o Mindelo?

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    -Estive no Mindelo um tempo e depois vim para aqui. Trabalhava nos TACVdedia e ainda fazia uma perninha num restaurante de uma amiga, noite. Caguei muitamerda, sabes? Precisava de tocar dois empregos para pagar as contas.

    -E foi no restaurante que conheceste o italiano?-Foi. O Macaco ia l jantar, olhava muito para mim, convidou-me para ir praia

    e eu fui.-Apaixonaste-te por ele, hem?-Qual qu! Mas eu l seria capaz de me apaixonar por outro homem! Nunca

    deixei de te amar, mesmo quando me deste um pontap no cu! disse ela. E pegando-lhe na cara, aproximou-se e pediu: - D c essa boca linda!

    -Mas ele apaixonou-se, no?-Coitado, o Macaco estava farto de viver sozinho, tinha acabado de se divorciar

    de uma puta maluca que o trocou por outra mulher e que lhe fez a vida negra! Levou-lheo filho para Frana e ficou-lhe com o dinheiro. Estava carente, coitado. No dia em quefomos praia, fizemos amor logo que chegmos a minha casa. Havias de ter visto!Andava com uma fome! Eu no parava de rir, ao v-lo a tirar e a pr camisinhas, com

    um vontade incrvel!-E por que razo no me falaste nele? Quer dizer, at deixaste de responder sminhas cartas!

    -No foi isso! que eu tive de ir com ele para Moambique! Andei por l quasequatro anos, a comer o po que o diabo amassou, a cagar merda por todo o lado! Aquiloali no havia nada para comer. Tivemos dias em que s comamos mandioca! E aquelaguerra, meu Deus! Havia bombas em todo o lado. Tu deste-me um pontap no cu e eledeu-me a mo. Que querias que eu fizesse? Afinal, o Macaco foi o nico homem queme tratou bem. E ele ama-me, sabes? s vezes, diz-me: todas as mulheres me traram;s espero que tu no faas o mesmo!

    -E eu a mandar cartas para os TACVe para todas as agncias, enquanto andavas

    com o italiano no meio das bombas e dos macacos!- E dos crocodilos e dos elefantes! disse ela. - Oh, amorzo! Estou to contentepor nos termos reencontrado!Mi de-bsa, bo de-minha!

    -O qu? perguntou o Pedro, sem perceber o que ela estava a dizer.-Tens de aprender crioulo, amorzo! Eu disse: sou tua e tu s meu!Depois de percorrerem as quatro divises do 3 piso, foram para o terrao. O

    edifcio dos correios, com dois pisos, estava vazio porque era domingo. esquerda,havia meia dzia de casas baixas, com as portadas fechadas e mangueiras nos quintais.Mas ao fundo, o mar, muito azul, lanava pequenas ondas brancas sobre o areal escuro.Um barco de grandes dimenses estava ancorado no porto, mas sem vivalma. O solqueimava, mas uma aragem fresca, vinda do mar, tornava o terrao habitvel. E foi ali,

    com ela encostada parede, a olhar para o mar, que fizeram amor.

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    DOIS

    Arturo casou com a Mel poucos dias depois de fazer 52 anos. A cerimnia foi

    rpida e simples. Ela levava um vestido comprido, branco, que mandara vir do Senegal.Era um vestido tradicional africano. Os cabelos pretos, longos e fartos, tapavam-lhe ascostas. Estava bonita mas no sorria. As amigas disseram que ela estava com um artriste. Quando Pedro viu as fotografias, pde comprovar a tristeza do rosto dela. Arturo,pelo contrrio, sorria de orelha a orelha.

    Compraram a casa algumas semanas depois de casarem. Ela deixou oapartamento alugado, num prdio pintado de amarelo, numa rua que j conheceramelhores dias, em frente a um largo de terra batida, onde se viam algumas accias depequeno porte, inclinadas pela fora do vento. Ele encheu uma pick-upcom a escassamoblia que possua, numa moradia beira-mar, no bairro das embaixadas, muito pertoda Prainha, e disse ao motorista para despejar tudo no nmero 28 A da Rua dos

    Correios. A Mel no trouxe moblia. Deixou tudo a uma amiga do Mindelo que acabavade chegar Cidade da Praia, sem emprego e com um beb nos braos.Passaram os primeiros nove meses sem fazerem nada. A bem dizer, apenas

    dormiam e faziam amor. Nos intervalos, ela cozinhava e ele fazia pequenos arranjos nanova casa. Ela gostava de o ver em tronco nu, com uns cales cheios de ndoas e unschinelos de plstico nos ps. O Arturo s saa para comprar ferramentas. No se davacom mais ningum na Cidade da Praia. Sem amigos, nem hbitos de sair noite, Arturolevava uma vida monacal, inteiramente dedicada sua jovem mulher e ao restauro dacasa. A visita drogaria exigia uma volta pequena, j que a melhor loja de ferramentasficava em frente do hospital da cidade, a pouco mais de cem metros de casa. A visita casa das ferramentas era o passeio preferido do italiano. Pelo caminho, gostava de

    observar as vendedoras, sentadas em pequenos bancos de madeira, debaixo das acciasressequidas, em frente do hospital. Havia-as velhas e novas, e algumas transportavam osbebs, s costas, enrolados em panos garridos. Ali vendia-se de tudo: mangas, pinhas,morangos, laranjas, comida feita, maos de cigarros e pacotinhos com piripiri, salsa ecoentros. As moscas cirandavam em volta da comida, mas ningum parecia preocupar-se com isso. Nem os bebs, agarrados s costas das mes, se davam ao trabalho deenxotar as moscas que, aos magotes, se fixavam, como lapas, volta dos olhos e donariz.

    Havia uma velha que gostava de se meter com ele. Erguia a cabea e, mostrandouns dentes impecavelmente brancos, dizia:

    -Patro branco, leve isto para a senhora feliz. Ele, mais por pena do que por

    necessidade, aceitava o saco de morangos e entregava duas moedas de cem escudos velha mulher.Quando Mel o acompanhava, a vendedora dizia:-Oh, Felicidade, pede ao teu marido branco para te comprar morangos!A Mel dizia:-Mas eu no me chamo Felicidade!-No preciso ter o nome para ser felicidade! respondia a mulher.

    A Mel enchia-lhe a barriga de doces, sobretudo doce de manga com queijofresco, que o italiano adorava e comia desalmadamente. Quando acabava o doce, oArturo dizia, fazendo uma cara de beb:

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    -A macaca s sabe maltratar o macaquinho, no ? Batia com os punhos nopeito como se fosse um smio. - O macaquinho mata-se a trabalhar e a macaca passa otempo de barriga para o ar, aprofitar como se estivesse de frias!

    Utilizava a palavraprofitara torto e a direito, dava gargalhadas, abria as pernase os braos e punha-se a saltar como se fosse um macaco. Ao ver que a Mel se

    desmanchava a rir, ele aumentava a frequncia dos saltos, baixava os cales at aosjoelhos, agarrava no sexo e punha-se a esfreg-lo, dizendo:-O macaquinho pequenino s profita a tocar punheta, no ? macaco

    trabalhador, um escravo desgraado que foi comprado por uma preta sem sentimento!A Mel ria e dizia:-Ai, tu que s o patro branco agora viraste escravo de preta?-Sim, eu sou um macaco branco que virou escravo de uma cona preta! dizia o

    Arturo, puxando o pnis com fora e dando saltos atrs dela. Depois, encostava-se aorabo da Mel, fingia que estava a copular e acrescentava: - Sou escravo desta cona preta!Sou escravo desta cona preta!

    A Mel fugia dele, refugiando-se no terrao, e ele, correndo atrs dela, dizia,

    mostrando-lhe o sexo murcho:-Vs o que lhe fizeste! O desgraado ficou assim, torto e mole, de tantotrabalhar!

    -Ento esse escravo preguioso e eu vou arranjar outro que trabalhe melhor eque nunca se canse de trabalhar para esta cona preta, no assim?

    -Tens de arranjar mais trs ou quatro escravos porque dois no chegam! Davaum salto em frente e esticava o pnis murcho. - Essa cona preta to quente que maisparece um forno de assar caralhos! Nunca se cansa de profitar! No! Quatro sopoucos! Tens mas de arranjar um regimento! Melhor! Todas as foras armadas daRepblica de Cabo Verde!

    -No chegam! Preciso de mais!

    -Ai sim! Ento pedimos ajuda s foras armadas italianas!-Isso! Isso! dizia a Mel, correndo para o sof, naquilo que era um sinal para oArturo se meter em cima dela, dando incio a mais uma tarde de sexo.

    Uns meses depois de casarem, a menstruao deixou de aparecer. A Melpercebeu que estava grvida, mas s anunciou a boa-nova ao Arturo depois de ter feitoum teste de gravidez. Ele recebeu a notcia com berros de alegria. Comeou a correr portoda a casa, dando saltos, com os braos esticados a imitar um macaco, e s acabouquando chegou ao terrao e se ps a gritar para quem o quisesse ouvir VOU SERPAPAI!!! Era uma sexta-feira. O pessoal dos correios veio janela e ele continuou agritar VOU SER PAPAI!. Segundos depois, ouviu-se uma salva de palmas, vinda das

    janelas do edifcio dos correios. A Mel juntou-se a ele, acenou ao pessoal dos correios edisse:- o meu primeiro filho!Ouviu-se uma nova salva de palmas, a Mel agradeceu e empurrou o Arturo para

    dentro de casa.-Amorzo, tens de dar a notcia aos teus pais e ao teu filho!-Aos meus pais! Para qu? Eles no merecem!-Ao menos ao teu filho!-T bem, manda-lhe um mail!A Mel ligou a net, entrou na pgina do yahoo, digitou a senha de acesso e

    escreveu:

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    Rafaelo,Nem sabes como o teu pai e eu estamos felizes! Espero que possas partilhar

    connosco esta felicidade. Vais ter um irmozinho. Quero dizer, ainda no sei se ummenino ou uma menina mas eu quero tanto que seja um rapaz que at j arranjei nome

    para ele: Miguel! Dizias que no gostavas nada de ser filho nico. Daqui a sete meses,

    j no sers. Recebe um grande beijo do teu pai e outro da Melissa.O Arturo bateu, repetidas vezes, com a mo direita na barriga e, fazendo uma

    voz de criana, disse:-Macaco est esfomeado! Macaca trata mal o macaquinho! So horas de almoar

    e no h nada em cima da mesa!-Sim, macaco tem razo! Tua macaca quer matar-te fome para casar com

    macaco novo!-Ests a ver! Eu tenho razo! Queres matar o teu macaco velho fome!A Mel deu uma gargalhada, abriu o frigorfico e tirou de l trs pratos com

    comida: uma lasanha, duas postas de atum com tomate, cebola, lentilhas e mandioca e

    um prato de borrego assado com mandioca e ervilhas. Abriu a porta do microondas emeteu l dentro o prato com lasanha.-Chega?- pouco! S trs pratinhos para o teu macaco velho? Deu trs saltos, imitando

    um macaco. - Nem sobremesa, nem nada?-Ah, meu macaco guloso e barrigudo, marido debochado, que passa o tempo a

    refilar e a pedir comida! Toma! Enche esse bandulho, essa barriga de macaco velho,com doces, que para eu te trocar por um macaco novo, musculoso e elegante! E ditoisso, tirou do frigorfico trs pratinhos com doces: bolo de laranja, doce de manga comqueijo fresco de cabra e bolo de caf.

    -S trs pratinhos? Nem um pudinzinho, nem um arroz-doce para o teu macaco

    trabalhador, um macaco electricista, serralheiro, pedreiro, canalizador e fodedor!A Mel ria e dava pulos e, batendo com a mo direita na barriga dele, disse:-Isto no uma barriga de macaco! uma barriga de elefante! Com tanto doce

    qualquer dia precisas de um espelho para veres a pila!O Arturo baixou os cales, agarrou no pnis e, fazendo movimentos com a mo

    para cima e para baixo, disse:-Esta pila mole est velha, j s serve para mijar!-Ai, eu vou arranjar um macaco novo, vais ver! Um macaco que coma menos e

    foda mais!-Eu sou um macaco velho desgraadinho, isso que eu sou, um macaco

    trabalhador, um escravo sem direitos!

    -Pronto! Anda c, meu macaco, eu no vou arranjar macaco novo! Vou ficarcom este, que fode pouco mas muito trabalhador!-Um macaco escravo que ganha muito dinheiro, no ?-Sim, um macaco velho que ganha muito dinheiro que para o nosso Miguel ser

    Presidente da Repblica quando for grande!

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    TRS

    A Suzi tinha a pele mais escura do que a Mel. Corria-lhe nas veias o sangue dos

    primeiros escravos que chegaram ilha de Santiago. Descendia de uma das mais antigasfamlias da ilha e a av era proprietria de duas casas coloniais na rua dos Correios. Acasa onde vivia a Mel fora da av da Suzi. A rapariga tinha um andar danarino e umcorpo rolio e elegante. O cabelo, crespo e muito curto, dava-lhe um ar de rapazinho,mas o rabo, duro e empinado, e os seios, atrevidos, anunciavam a sua feminilidade. Oslbios eram grossos e os olhos, negros e brilhantes, tinham a forma de duas amndoas.A ris faiscava sobre a brancura imensa do globo ocular. Quando sorria, mostrava unsdentes brancos e, como era de baixa estatura, erguia o pescoo delgado quando falavacom algum. Desde que a av partira para Boston, a Suzi repartia o seu tempo entre acasa da Mel, onde comia e dormia por vezes, e uma lojinha de roupas de criana numpequeno centro comercial, junto do edifcio do Tribunal Militar. Tinha acabado a escola

    secundria e esperava ganhar uma bolsa de estudos para continuar os estudos na Europa.A irm, acabada de chegar ilha, depois de cinco anos em Cuba, onde seformara em Cincias Jurdicas, recusava-se a dar-lhe guarida, acusando-a de ser umadesmiolada, incapaz de agarrar as oportunidades, eternamente procura de um homemrico que a levasse para longe dali. Mas a Suzi tinha azar com os homens. Elesdesejavam-na mas ela no os sabia escolher. Um dos ltimos que lhe calhara em sorte,fora um italiano, dono de uma loja de animais, que a queria levar para a Itlia, mas queela recusara com o argumento de que no queria passar a vida atrs de um balco, aindapor cima a vender raes para animais! Com um corpo daqueles e uma cara que tinhatanto de bonita como de extica, a Suzi achava-se digna de coisa melhor e como acabarade fazer vinte anos era ainda muito cedo para pr termo sua desesperante busca.

    O italiano que no desistia. De trs em trs meses, viajava at ilha do Sal,hospedava-se num hotel de quatro estrelas, e pedia para ela ir ter com ele. A Suzi no sefazia rogada. Agradava-lhe a ideia de passar uma semana fora da capital, num hotel comtodo o conforto, comida boa e variada, tardes estendida na praia e noites nas discotecase bares de Santa Maria. Da primeira vez que estivera com o italiano, h dois anos atrs,ele prometera comprar um pequeno apartamento de duas assoalhadas na aldeia dePalmeira, a duzentos metros do mar. A ideia agradava-lhe. Talvez pudesse alugar oapartamento a outros italianos e viver da renda durante todo o ano. Cada vez que o viaou lhe telefonava, a Suzi insistia na promessa de compra do apartamento, mas o italianoarranjava sempre uma nova desculpa para adiar a compra. Da ltima vez que estevecom ele, desagradou-lhe particularmente a insistncia com que ele a queria ver a

    trabalhar na loja de animais e os cinco dedos de carne que lhe saam para fora do cinto.Estava mais gordo, tinha menos cabelo, as costas, de uma cor leitosa, salpicadas desinais e os dentes, amarelos e cariados. A cara, branca e bexigosa, estava cravada decrateras e pontos negros e o nariz, afilado, tinha uma pilosidade que lhe dava um artosco e rude. Era um homem desengraado, a caminho da meia-idade, divorciado pelaterceira vez, sem grandes qualidades fsicas ou intelectuais, que herdara a loja deanimais, e continuava a viver com a me numa casa grande mas velha, situada emVerona, bem perto do teatro romano. A Suzi tambm no gostava da forma como eleressonava, de boca aberta, libertando sons animalescos, envoltos num eterno mau hlitoque nem o mascar de pastilha elstica eliminava. Quando o italiano pegava no sono,emitia uns barulhos que faziam lembrar o tambor de uma mquina de lavar roupa emmovimento e, por vezes, largava uns sons agudos, em forma de assobio, que se

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    assemelhavam aos traves de um carro velho com falta de leo. Quando falava, soltavasalpicos de saliva que atingiam o interlocutor com a fora e a disperso de umasaraivada de balas.

    A Mel dizia para ela aproveitar, porque homens assim no havia muitos. Afinal,o italiano era divorciado, portanto livre e desimpedido, tinha uma situao financeira

    razovel e, embora no fosse l grande coisa como homem, tinha dois braos, duaspernas, dois olhos, uma boca, o nariz no lugar e, segundo o que a Suzi dizia, gostava desexo e era bom na cama.

    A Suzi chamava pela Mel quase sempre mesma hora. Fechada a loja paraalmoo, a rapariga dirigia-se para a rua dos Correios, parava em frente da casa que forada sua av, e gritava:

    -Mel! Dona Melissa! Sou eu! Abra a porta!Em tempos, havia uma campainha mas a Mel mandou-a retirar porque no

    gostava de ser incomodada. Se a quisessem visitar, bem podiam telefonar a avisar.Como tinha uma caixa postal e o edifcio dos correios ficava do outro lado da rua, nemprecisava que o carteiro lhe batesse porta. que no era fcil descer e subir os trs

    lanos de escada!Quando a Mel no estava a fazer amor com o Arturo ou a dormir a sesta, logoque ouvia os gritos da Suzi, vinha varanda e dizia para ela esperar um pouco. Desciaas escadas, com passos lentos, e abria a porta de entrada. A rapariga subia as escadasatrs dela, espera do habitual convite para almoar, e era certo e sabido que iaaproveitar a ocasio para abrir a caixa de correio electrnico, ler os mailsdo italiano eresponder, se estivesse com pacincia para escrever. Sempre que abria a caixa decorreio electrnico, a rapariga navegava durante horas, esquecia-se de ir para a loja, e squando a Mel lhe dizia que j era tempo de acabar com aquilo, porque a Internet, emCabo Verde, custa uma fortuna, que a rapariga levantava o rabo da cadeira e voltavaas costas ao computador sem se dar ao trabalho de desligar a net. Quando a Suzi descia

    as escadas, em passo lento, parava a meio e dizia para a Mel, que a observava docorredor:-Dona Melissa, no h para a uma nota de mil que eu pago-lhe depois?A Mel ia buscar a carteira, que guardava num bolso de um vestido africano,

    pendurado no guarda-fato, tirava uma nota de mil escudos cabo-verdianos e dava-os rapariga, que se limitava a esconder a nota no bolso e a sussurrar:

    -Obrigado, Dona Melissa! Altamente! A senhora mesmo baril! Eu depoispago!

    A Suzi nunca pagava, a bem dizer o dinheiro que ela ganhava na loja mal davapara a renda do quarto, mas a Melissa no se ficava a perder. Anotava o emprstimonum caderno de apontamentos e, no final do ms, mandava a conta para a av da Suzi, e

    a velhota mandava o cheque, com a quantia exacta, todos os seis meses.

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    QUATRO

    O Pedro acordou, olhou para o relgio, e viu que eram cinco horas da manh. O

    sol entrava timidamente no quarto. A rede mosquiteira deixava passar os raios de sol,que se projectavam na parede, em pequenos pontinhos, como se formassem uma pinturaimpressionista. L fora, apesar do sol matinal, no havia vivalma. Ao longe, um barcode pesca aproximou-se, silenciosamente, do porto. O piar dos pardais era o nico somque quebrava o silncio da manh. O Pedro olhou para o lado e viu o corpo escuro daMel, que estava nua, semi-tapada por um lenol branco. Ela dormia ainda. O beb, jacordado, de barriga para o ar, atirava as mozinhas contra um peluche que estava presopor um fio e seguia-lhe o movimento com um olhar inquiridor. Quando conseguia tocarno peluche, fazendo-o abanar sobre a sua cabea, o beb ria e soltava sons decontentamento.

    Quando o Pedro se levantou da cama, com a inteno de ir tomar duche, como

    era hbito todas as manhs, a Mel disse:-Onde que vais?-Tomar duche.-Amorzo, no sejas to apressado! Bateu com a palma da mo no lenol. -

    Aqui, fazemos tudo devagar.- do hbito, sabes.-No vs que a gua ainda est fria! Ela atirou o lenol para o fundo cama e

    ficou nua. - Eu no tomo banho antes das onze horas, que quando a gua j estmorna. O Pedro deitou-se, de novo, na cama, abraou a Mel, e ela continuou: - Vamosdar uma fodinha, sim?

    O Pedro olhou para o beb, que continuava a atirar as mos contra o peluche,

    indiferente ao que se passava ao lado, e rolou para cima do corpo nu da Mel. Beijou-lhea boca e sentiu as pernas dela cruzadas sobre as suas costas. Os dedos da Melissadeslizaram pelas costas do Pedro e ela sussurrou:

    -D cabo de mim! Ele acariciou-lhe os seios nus. Sou tua! disse, cruzandoos dois braos sobre as costas dele.

    O Pedro sentou-se junto da mesa da cozinha e ficou a olhar a Mel a preparar opequeno-almoo. Fizera uma tentativa para a ajudar, mas ela ordenou que ficasse quietoe que a observasse. A cozinha era o territrio dela e via-se que cuidava do Pedro comsatisfao. A pouco e pouco, a mesa ficou cheia de pratos. Primeiro, ovos mexidos comlinguia frita, depois, um queijo de cabra de Santo Anto, de seguida, um prato com

    papaia descascada e manga aos pedacinhos. Por fim, dois copos com sumo natural: umdeles com sumo de tomate e cenoura e o outro com sumo de laranja e ma. Ela s sesentou quando a mesa ficou cheia e comeou a comer depois de o Pedro ter saboreado alinguia.

    -Est bom? perguntou, sentando-se.-Est delicioso. Pedro no levantou a cabea do prato.-Agora prova o sumo. Ela colocou o copo na mesa. O Macaco adora os meus

    sumos. Agora, coitado, est para a selva, sem ningum que cuide dele!Ele bebeu um gole de sumo de laranja e ma e disse que estava muito bom.-Bebe agora do outro! - Ele levou o copo de sumo de tomate e cenoura boca e

    voltou a dizer que estava delicioso. A Mel sorriu e disse: - Aqui tudo natural, tudofeito nas calmas. Queres que faa um caf da Ilha do Fogo?

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    -Logo! Fazes depois do almoo.Depois de tomarem o pequeno-almoo, ela pegou no beb ao colo e deu-lhe

    mama. O Pedro observou a cena. Ela tinha uns cales de ganga muito curtos e estavadespida da cintura para cima. O beb chupava o mamilo da me com evidente prazer. Amozinha esquerda do beb beliscava a mama direita da Mel. Na rua, o roncar dos

    primeiros carros anunciou o comeo de um dia de trabalho. O som das mulheres atagarelarem ecoava como que vindo do fundo de um poo. Pelo corredor da casa, ecoouum grito de mulher, vindo da rua. Algum chamava pela Melissa. Seria a Suzi? A Meldisse

    -Deixa para l! Ainda no so horas para se incomodar as pessoas. - O Pedroolhou para o relgio e viu que eram dez horas da manh.

    Eram onze horas quando desceram as escadas. Ao abrirem a porta de entrada,um bafo de ar quente, qual bofetada, bateu-lhes na cara.

    -Ui, hoje est quente! disse o Pedro.-Nesta altura do ano sempre assim. Sair rua como abrir a porta de um forno

    para tirar de l um bolo acabado de fazer!O Pedro levava o beb ao colo e a Mel seguia ao lado dele, com uma pequenamochila s costas.

    -Apanhamos um txi? perguntou o Pedro.-Sim, na pracinha!A pracinha ficava no corao do Plateau. quela hora, fervilhava de gente.

    Havia pessoas em fila entrada dos bancos, engraxadores que ofereciam os seusservios aos transeuntes, homens que conversavam, em pequenos magotes, encostadoss paredes e condutores que se esforavam para encontrar um lugar de estacionamento.

    Todas as noites, depois de jantar, a Mel fazia uma caminhada volta dapracinha. Os funcionrios pblicos escolhiam a pracinha para um pequeno passeio antes

    de regressarem a casa. As raparigas juntavam-se volta do coreto a saborearem gelados,olhando, sorrateiramente, para os rapazes. Os midos faziam acrobacias com asbicicletas. Pares de namorados, abraados, esperavam pelo crepsculo para trocarembeijos apaixonados.

    Era volta da pracinha que se distribuam alguns dos edifcios mais antigos dacidade. A velha igreja, pintada de branco, enchia-se de crentes todos os domingos demanh. As agncias bancrias, onde se acotovelavam mulheres que faziam fila paralevantarem o dinheiro enviado pelos maridos emigrantes, ocupavam o primeiro piso dedois edifcios coloniais. Tambm havia cafs e cibercafs, onde rapazes e raparigas serefugiavam do calor da tarde, em volta de cervejas frescas e sumos naturais de manga.Sem passadeiras para pees, as ruas em volta da pracinha eram disputadas por carros e

    pessoas, num entendimento perfeito que no precisava de linguagem.Inexplicavelmente, os condutores sabiam quando deviam parar e os pees pareciamadivinhar quando lhes era permitido atravessar a estrada.

    O txi serpenteou ladeira abaixo em direco praia Quebra Canelas. Na rua dasembaixadas, junto linha do mar, havia midos a jogar bola e casais de namoradosaos beijos. Uma rajada de vento lanou uma nuvem de p sobre o pra-brisas do carro.Ao longo da avenida que bordejava o mar, havia centenas de midos que regressavamda praia. Os homens e as mulheres optavam pelos autocarros, que ali eramamistosamente designados de Yes, talvez por causa das curvas das estradas cabo-verdianas ou, quem sabe, porque os motoristas dizem sempre que sim a um pedido parapararem.

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    Havia crianas que regressavam da escola, mes carregadas de sacos e poucos homens.No havia velhos. Onde estariam os velhos? A Mel disse que os velhos j tinhammorrido e os que ainda eram vivos estavam em casa. O Pensamento era um enormebairro de casas baixas, muitas delas por acabar, com uma enorme quantidade demercearias, tabernas e drogarias. Destacavam-se as velhas moradias coloniais, com

    pequenos terraos, portas e janelas muito altas, com portadas de madeira, paredespintadas de amarelo. Havia raparigas sentadas porta de casa, em amena edespreocupada conversa, bebs ao colo das mes e rapazes a jogarem bola nosquintais empoeirados. As mulheres, janela, conversavam umas com as outras. Quandoo autocarro chegou ao fim da linha, a Mel comprou outro bilhete e eles regressaram pelomesmo caminho. Alguns rapazes ainda jogavam bola num campo de futebolimprovisado no leito seco de uma ribeira. O sol adormecia no dorso do mar. As casascomearam a iluminar-se com uma luz fraca, amarelada, e dentro delas circulavamsombras. Chegaram a casa quando anoitecia.

    -Amanh, levo-te Assomada.-Eu quero muito conhecer a Assomada. A minha agncia quer que eu faa um

    relatrio sobre as potencialidades tursticas do interior da ilha.-Ai, sim?-Com a liberalizao dos voos para Cabo Verde, eles querem organizar um

    pacote de viagens diferente, uma coisa que permita aos turistas conhecerem o interior deSantiago.

    -A Assomada o stio ideal. Sabes que aquilo muito verde?-Verde?-Sim! Tem muita gua, muitas rvores, muita agricultura! H muitos bananais e

    muita cana-de-acar! Muita rvore de fruto! Mangues a perder de vista!-E o caminho para l?-Esto a construir uma estrada boa! Alcatroada!

    A Assomada a segunda cidade de Santiago. Situada no interior, a meiocaminho entre a Praia e o Tarrafal, destaca-se pela verdura e pelas temperaturas maisbaixas. Quando a temperatura sobe aos trinta e cinco graus na Praia, na Assomada nopassa dos trinta. Pelo caminho, o Pedro teve oportunidade de visitar uma velha fbricade grogue, a bebida mais apreciada de Cabo Verde, feita a partir da cana-de-acar.

    A Assomada parecia mais ordenada do que a Praia. Passeios bem arranjados,rvores de maior porte, flores, bananeiras e mangueiras nos quintais, casas com paredespintadas e ruas limpas. Havia centenas de jovens a caminho das escolas. Depois depercorrerem a cidade de txi, almoaram. Tiveram a companhia de um vereador daCmara Municipal, um homem novo, de pele quase branca, cabelos claros e olhos

    verdes, que forneceu ao Pedro informaes preciosas sobre restaurantes. O nicoproblema era a ausncia de um hotel. Contudo, a nova estrada alcatroada permitiria umregresso rpido Cidade da Praia, com uma breve paragem na Praia de S. Francisco, apoucos quilmetros da capital. Concordaram no seguinte itinerrio: na ida, a estrada dointerior; no regresso, a opo pelo litoral. A Mel disse:

    -O ideal era os turistas ficarem uma noite na Assomada e seguirem, no diaseguinte, para o Tarrafal!

    O vereador assentiu com a cabea e disparou:-Tens razo, Melissa! A Cmara Municipal est a estudar um projecto de

    construo de um pequeno hotel, na Assomada.Depois do almoo, percorreram, abraados, as ruas da Assomada, fizeram uma

    visita Escola Tcnica, um edifcio novo, pintado de amarelo, com centenas de

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    raparigas de uniforme azul, e regressaram Cidade da Praia ao anoitecer, pela estradado litoral. Pedro anotou, num caderninho de apontamentos, com evidente interesse, onome das aldeias piscatrias com potencial turstico. Apesar das praias serem de areiapreta, a acalmia do mar e a tranquilidade das aldeias, faziam-no acreditar napossibilidade de as incluir no roteiro turstico pelo interior da Ilha de Santiago.

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    CINCOO Pedro disse que ia sozinho para o aeroporto. A Mel ops-se. Como poderia

    deix-lo ir sozinho? Queria estar com ele nem que fosse s por mais uma hora. Ambossabiam que ela ficaria, parada, a dizer-lhe adeus, com os olhos rasos de lgrimas, comoacontecera nas outras despedidas. Voltaria para casa, de txi, deitar-se-ia na cama erecusar-se-ia a comer durante o resto do dia. A almofada ficaria hmida com as suaslgrimas, uma sensao de desespero e de perda apoderar-se-ia da sua alma e um mantode tristeza desceria sobre ela, envolvendo a casa como uma sombra.

    Ela enfiou o beb no canguru, chamou um txi pelo telefone e desceu as escadas frente do Pedro. Era manh, mas o ar morno tocou-lhes as faces como se fosse uma

    carcia. Entraram no txi. Ela ordenou:-Para o aeroporto!O carro subiu a custo a estrada ngreme e sinuosa, beijando a curva do mar, para

    logo se despedir dele. Numa curva apertada, debruada sobre o porto, quatro grandespedras no asfalto, obrigaram o taxista a sair para fora da estrada, guinando para a direita,numa manobra que pareceu ao Pedro uma tentativa mal sucedida de suicdio colectivo.O carro chiou, acusando a violncia da manobra, mas logo retomou a estrada.

    Havia outras mulheres entrada do aeroporto. Outras mulheres como a Mel quese despediam dos seus homens. O Pedro fez o check-in e dirigiu-se para a esplanada-bar, onde a Mel o esperava, sentada, com duas latas de sumo de manga sobre a mesa. OPedro queria falar, mas as palavras morriam-lhe na garganta. Os passageiros comearam

    a entrar na sala de embarque e a esplanada ficou deserta. Beijaram-se na face. O Migueldormia ao colo da me. O Pedro entrou na sala de embarque e ficou de p, com a caracolada vidraa, a ver a Mel dirigir-se para um txi. Acenou-lhe e ela respondeu comum beijo.

    O avio ia partir hora. Sentou-se ao lado de um portugus, baixo e gordo. Ohomem perguntou-lhe se ia para Lisboa. Ele disse que sim. Ento, o homem apresentou-se:

    -Chamo-me Francisco. Esticou a mo. Pode chamar-me Chico.-Eu sou Pedro disse, apertando-lhe a mo.-Tambm vou para Lisboa. Passei aqui seis meses estupendos! disse o homem,

    rindo.

    -Cabo Verde um belo pas.-Tem tudo aquilo que um homem quer, no ? Belas mulheres, bom clima e boacomida, porra!. O Pedro reparou que o homem tinha a cara coberta de bexigas.

    -L isso ! disse o Pedro. Guardou alguns segundos de silncio e depoisperguntou: - Vai de frias?

    -No! Vou para ficar. J no volto, foda-se! respondeu o homem, piscando osolhos. Tinha uns olhos pequenos, com o glbulo ocular raiado de sangue e uma ris decor indefinida.

    -O que que esteve c a fazer?-Estive a trabalhar na construo da nova estrada para a AssomadaA trabalhar

    para uns filhos da puta!

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    -Ai sim? Eu passei por l e vi que havia muita gente a trabalhar. Portugueses,no ?

    -Sim! uma empresa portuguesa. Uns cabres. Fez uma pausa e bateu com opunho na parede. Pedro reparou que o homem tinha umas mos peludas - Deram emdespedir o pessoal agora que a estrada est quase pronta, caralho! E olhe que tm outros

    contratos aqui.-Novas estradas?-Sim, sim, novas estradas. Mas os cabres preferem trazer malta nova e despedir

    os mais antigos. Os olhos do homem faiscaram. Franziu o sobrolho e os olhosdesapareceram sob duas almofadas de gordura. Filhos da puta, o que eles so!

    -Ento, vai daqui com pena?!-Oh, se vou! Deixou cair os braos, em sinal de desalento. - Deixei uma

    cabritinha na Assomada que era um assombro de mulher, foda-se!. Deu um estalocom os lbios. - Voc tambm deixou para trs uma bela mulher, hem?

    - verdade!-E porque no ficou, caralho!?

    -Impossvel! Ela casada com um italiano. Vim c passar uns dias com elaporque o italiano est no estrangeiro.- uma bela mulher, hem?-L isso ! Imagino que a sua tambm era, no?-Nem imagina! Uma foda de primeira|! Um mulhero de dezoito anos, uma

    bunda rija e umas mamas redondas! Desenhou um crculo no ar com as mos. - E quecara, meu Deus!

    -As mulheres africanas so especiais, no ?-Ai, meu Deus! Mais quentes, mais pacientes, elas fazem tudo para agradar a um

    homem! Sempre prontas para a brincadeira! Danadinhas para a foda!-E foi a primeira?

    -A segunda. Andei com uma cabo-verdiana em Portugal. No queira saber!Aquilo era fogo! Colocou os beios em forma de bico e soprou - Uma vez, amos decarro, do Porto para Lisboa, no que ela comeou a despir-se at ficar nua ao meulado? E eu a conduzir com a mo esquerda e a mexer-lhe na rata com a direita! Parmosna Mealhada e fomos foder para a casa de banho dos deficientes! Uivava que pareciauma loba! Gesticulava e os olhos dele brilhavam. - Andei com ela dois anos masaquilo no era mulher para um s homem, caralho! Apanhei-a com outro e mandei-a irdar uma curva. O engraado que ela casou com o tipo e eu continuei a com-la sescondidas! Ainda hoje a fodo sempre que passo por Vila Nova de Gaia e o cabro domarido no est. O gajo camionista e faz muitos trabalhos para a Alemanha. Soltouuma gargalhada e deu dois saltos. Grande cabro! Ficou com a melhor parte! E um

    valente par de cornos a enfeitar-lhe o pra-brisas!Uma mulher com o uniforme dos TACV Airlines chamou os passageiros com

    bilhete para o Sal e o Pedro separou-se do Francisco. O Pedro sentou-se, apertou o cintode segurana e ficou a olhar a ilha a desaparecer lentamente, medida que o aviotomava altitude. Meia hora depois, o avio fazia-se pista do Aeroporto Internacionalda Ilha do Sal. Tinha de esperar quatro horas pelo voo para Lisboa. Dirigiu-se para orestaurante e reparou numa rapariga, de olhar triste, que vagueava pelo corredor central.

    -Vais para Lisboa? perguntou ele. Ela sorriu e sussurrou que ia paraRoterdo.

    -Ento, tambm vais ter de esperar quatro horas!? Ela acenou com a cabea eele perguntou: - Conheces Santa Maria?

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    - a primeira vez que saio da Ribeira Brava!-Isso -Em S. Nicolau interrompeu ela.-Ento s da Ribeira Brava! E o que vais fazer a Roterdo?-Vou...

    -No queres ir comigo at Santa Maria? perguntou o Pedro. - Apanhamos umtxi, vamos ao p do mar, comemos qualquer coisa e regressamos. - Ela sorriu, baixou acabea e no disse nada. Ele voltou carga: - No tenhas medo, s um passeio! Daquia duas horas estamos de volta!

    O Pedro chamou um txi e entraram os dois para o banco de trs. De um lado edo outro da estrada, havia areia e pequenos arbustos ressequidos e inclinados pelovento. Passaram por Espargos, no centro da ilha, e pararam em Santa Maria. O Pedrometeu uma nota de mil escudos nas mos do taxista e disse para ele estar de volta dentrode duas horas. Dirigiram-se a p para a praia e sentaram-se na areia, a escassos metrosdo mar.

    -No queres molhar os ps? perguntou o Pedro.

    -No,-Ests triste?-Estou.-Porqu? Tens medo de mim?-Oh, no! Tu tens cara de boa pessoa respondeu, sem levantar a cabea.-Posso saber o que tens?-Saudade disse, deslizando o indicador direito pela areia.-Ah, saudade! E medo tambm?-Tambm medo. a primeira vez que deixo S. Nicolau.-E o que vais fazer a Roterdo?-Vou casar respondeu.

    -Casar?-Sim. Levantou a cabea, olhou para o Pedro e deixou a areia deslizar,suavemente, por entre os dedos.

    -Com quem? Um holands?-Oh, no! um cabo-verdiano. Quer dizer, ele nasceu na Holanda mas filho de

    cabo-verdianos.-E como o conheceste?-Ele foi s festas da Ribeira Brava. Foi no ano passado Levantou a cabea e

    pousou os olhos no Pedro.-E tu gostas dele?-Eu gosto, mas no o conheo muito bem. Fez uma pausa. - Quer dizer, nunca

    mais estive com ele. S falmos por telefone.-E ele pediu-te em casamento?-Sim, ele foi s festas da Ribeira Brava para arranjar uma mulher. Viu-me e

    gostou de mim.-Pareces to nova!-Eu? Nova? Tenho vinte e oito anos.-No possvel! Eu dava-te uns dezoito.Ela soltou uma gargalhada e escondeu a cara com as mos.O Pedro perguntou se ela queria comer uma sanduche e ela assentiu com a

    cabea. Sentaram-se numa esplanada, a dois passos do mar, e ele pediu duas sanduchese dois sumos. Comeram e beberam em silncio. Ela olhou para o relgio e disse:

    -So horas de irmos.

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    O Pedro abriu a carteira e tirou uma nota de quinhentos escudos. Ela afastou acarteira dele e disse:

    -Eu pago.-No! Eu que te convidei.-Mas eu nunca mais vou precisar destas moedas cabo-verdianas! Eu que pago!

    -No tencionas voltar?-Nunca mais voltarei a S. Nicolau.-No? Mas porqu?-As viagens so muito caras. O Guido, esse o nome dele, no tem razes para

    voltar a Cabo-Verde. Ele nasceu na Holanda, no fala portugus nem crioulo e os pais eirmos vivem todos em Roterdo.

    -No fala portugus? Ento, como que falas com ele?-No falo.-No?-Quer dizer, digo s que o amo, ele diz que me ama, e no preciso dizer mais.-Mas vais aprender o holands, no ?

    -Sim. O Guido disse que eu ia aprender holands na escola nocturna.-Vais trabalhar l?-Sim. Os pais dele tm um snack-bar.-Ento vais ficar bem!A rapariga pagou a conta e seguiu, atrs dele, em direco ao txi. Quando

    chegaram ao aeroporto, ela perguntou:-No queres telefonar?-Por acaso, quero!-Toma! disse ela, dando-lhe um carto da CV Telecom.-Oh, no! Podes precisar dele!-Nunca mais vou precisar dele respondeu a rapariga, metendo-lhe o carto na

    mo. -Mas tu s assim to generosa? - Ela sorriu e baixou a cabea.Ele disse que ia telefonar a uma amiga que ficou na Cidade da Praia. Dirigiu-se a

    uma cabina telefnica e discou o nmero da Mel. Do lado de l, a voz doce da Mel:-s tu, amorzo?-Sim. Ainda estou no Sal.-Morro de saudades.-Eu tambm.-A casa ficou vazia.-O Macaco chega amanh. A casa vai ficar alegre, de novo.-No a mesma coisa.

    -Eu sei que no.-Quando voltas?-Logo que o Macaco v para fora.-E voltas para ficares?-No sei. Ainda cedo para pensar nisso.-Para ti sempre cedo. As palavras morreram-lhe na garganta e seguiu-se um

    longo silncio.-No chores, amor doce.-Eu no estou a chorar. Estou apenas triste.-Amo-te.-Pensa em mim a em Portugal.-A toda a hora.

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    -Quando estiveres com a branquela, j no pensas em mim.-Pensarei em ti a toda a hora, meu amor.-Eu tambm.-Adeus, amor. Fica bem.-Adeus.

    Quando o Pedro voltou para junto da rapariga, ela apontou para o relgio e disseque tinham de se separar. A fila de embarque para Lisboa era esquerda e a fila paraRoterdo era no lado oposto. O Pedro pegou-lhe na mo e disse:

    -Desejo que todos os teus sonhos se realizem. s uma mulher bonita e doce.-Obrigado. s um homem bom.

    O Francisco era o primeiro da fila. Sorriu para o Pedro e disse:-Eh, p, voc arranja logo companhia! O que que voc tem que eu no tenho?O Pedro deu uma gargalhada e respondeu:-Eu sei l! Conversa, elas gostam de conversar!

    O avio ia apenas meio cheio. Quando lhe foi permitido desapertar o cinto, oPedro levantou-se e viu que havia lugares vagos junto do assento do Francisco. Fez-lhesinal e ele gritou:

    -Venha para aqui!Sentou-se junto dele. O homem pediu uma cerveja hospedeira e depois falou

    sem parar. Pediu uma segunda cerveja, mas a hospedeira respondeu que no haviaautorizao para dar mais do que uma. Olhou para a hospedeira com desdm e, quandoela lhe voltou as costas, disse:

    -Foda-se! Um homem aqui morre de sede!O Pedro ficou a saber que ele era divorciado, que tinha dois filhos pequenos, que a

    mulher o deixou porque ele gostava de andar com outras mulheres e que era um

    garanho de primeira. Trs horas depois, o avio descia em direco a Lisboa.Separaram-se. Pedro desejou-lhe boa sorte. O outro homem olhou para trs e disse:-At vista!

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    SEISArturo no trabalhava h oito meses. Nos primeiros tempos, agradou-lhe a ideia

    de passar o tempo a restaurar a casa. Era uma casa suficientemente grande e antiga paraestar continuamente a precisar de reparaes. Ele no queria v-la concluda. Agradava-lhe verificar que aquela casa dependia dele, da sua sabedoria e capacidade. No fundo,temia que, uma vez concluda a casa, Melissa achasse que ele deixara de ser necessrio.Quando passava o olhar pela nova casa de banho e pelas portas e janelas, inteiramenteconstrudas por ele, sentia-se um homem realizado, dotado por Deus com muitas evariadas capacidades. Ele conseguia ser melhor carpinteiro do que os carpinteiros,melhor pedreiro do que os pedreiros, melhor electricista do que os electricistas. Essa

    superioridade obrigava-o a fazer tudo sozinho. Desde criana, que fora dotado de umainvulgar capacidade para aprender. So raros os homens capazes de fazerem umainfinidade de coisas com perfeio. Ele falava cinco lnguas e, ao mesmo tempo, eradotado de grandes capacidades manuais. Aprendera todos esses ofcios sozinho.Observava os outros e logo era capaz de fazer aquilo que vira os outros fazer. Com aprtica, conseguia aperfeioar o modus operandide todos esses ofcios. Recebera o domdo seu pai, que por sua vez o recebera do av de Arturo, um comandante de navios,oriundo da Sardenha, e que era uma lenda pela sua fora fsica, capacidade de trabalho etalentos. O av deixara dezanove filhos, alguns em terras distantes, espalhados pormuitas ilhas do Mediterrneo. Era um velho comandante de navio, judeu, que teve afelicidade de assistir criao do Estado de Israel, para onde se mudou com a sua neta

    preferida. Da parte da me, uma judia alem, libertada de um campo de concentraopelas tropas americanas, recebera o gosto pela leitura, o sentido artstico da vida, mastambm a depresso crnica, a oscilao entre a euforia e a desiluso. O pai era um

    judeu italiano que se dedicava a trabalhar o ouro. Havia peas suas nas melhoresourivesarias de Milo e de Roma. Quando Mussolini subiu ao poder, o pai de Arturoperdeu tudo. Foi preso, acusado de actividades subversivas. Encarcerado durante umano, trocou a Itlia por Portugal, onde viria a conhecer a mulher, em 1949, depois deesta ter sido libertada. Ela estava em Lisboa temporariamente, com a inteno deembarcar para Nova Iorque, juntando-se a milhares de judeus que, tal como ela, viramnos Estados Unidos da Amrica uma terra de liberdade e de oportunidades. Uma trocade olhares, na Brasileira, em pleno Chiado, numa tarde soalheira de Inverno, foi o

    bastante para lhe mudar a vida. No dia seguinte, faziam amor num hotel dosRestauradores. Um ano depois, nascia o Arturo. Era o ano de 1950. Arturo passou ainfncia em Lisboa. Aos oito anos de idade, mudava-se, com os pais, para Milo. O paicontinuou a trabalhar o ouro e voltou a ganhar a notoriedade no negcio da joalharia.

    Arturo parecia-se com o av e recebera dele o gosto pela aventura, a fora fsicae a inteligncia. Ao contrrio da irm, que encontrou a finalidade da vida num colonatoisraelita, Arturo andou dezenas de anos procura sem encontrar. Foi essa inquietaoque o levou a trocar um cargo bem pago numa empresa petrolfera italiana, pelotrabalho incerto e descontnuo em frica. Fez a primeira misso na Mauritnia, ondeconheceu a primeira mulher, uma rabe de pele clara e olhos escuros, com quem casou eteve um filho. A desconfiana, no apenas face s mulheres, mas perante tudo e todos,foi um trao do seu carcter que se acentuou nele quando soube que a Mara o enganava

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    com um clrigo muulmano. Como poderia ter-se enganado tanto a respeito dela? Como que no percebeu que aquele casamento, um matrimnio entre um judeu e umamuulmana, no poderia dar certo? Custou-lhe muito abandonar aquela criana, deix-lo entregue aos cuidados de uma me neurtica e errante, completamente subjugada tirania de um clrigo extremista, que via em todo o judeu um alvo a abater. Que seria do

    seu filho, judeu como ele, e rabe como a me, s mos de um tirano que odiava judeus?Os primeiros anos de separao foram duros e cruis. Arturo deixou a Mauritnia tinhao filho dois anos de idade e s voltou a v-lo seis anos mais tarde. Aqueles seis anosforam uma descida ao Inferno. Mas o pior de tudo que, nessa descida, ele foraacompanhado pelo filho e pela me da criana. Ela aceitou ser uma das quatro esposasdo clrigo, vergou-se s exigncias de clausura que ele lhe imps, recebeu, comresignao, os maus-tratos, e s quando ele morreu, num acidente de avio, a caminhodo Afeganisto, onde se ia juntar guerra que os talibanstravavam contra os russos, que ela acordou do pesadelo. O Arturo estava em Maputo, a trabalhar para umaorganizao da Unio Europeia, quando recebeu uma carta dela a implorar ajuda. Elemandou-lhe dinheiro, alugou-lhe uma casa em Paris, conseguiu tir-la da Mauritnia e

    continuou, durante vrios anos, a sustent-la, mandando dinheiro para ela e para o filho.Enquanto isso, a irm dele fizera tudo aquilo que as raparigas judias fazem emIsrael. Aprendeu hebreu, estudou religio, prestou servio militar, tirou um cursouniversitrio, casou e teve duas filhas. Quando Arturo a visitou, lamentou as escolhasque fora forado a fazer e anteviu, no belo rosto da irm, a felicidade que ele negara a siprprio. Pouco depois, aceitava uma misso em Cabo Verde e iria conhecer a Mel, umamulher de pele escura e sorriso fcil, que o salvaria da depresso e da angstia. Voltariacom a Mel a Moambique e a muitos outros pases de frica.

    Naquela manh, Arturo acordou com a inteno de pr um ponto final lassidoque h oito meses o mantinha dentro de casa. Fora ao banco no dia anterior e verificara

    que a sua conta batera no zero. Se continuasse metido em casa, sem mandar ocurriculum vitae para os stios habituais, Comisso Europeia, FAO e Banco Africanopara o Desenvolvimento, seria, em breve, obrigado a vender mais uma das suas casas,em Itlia. Tal como acontecera das outras vezes, um facto desses levantaria contra si aira dos pais e da ex-mulher. A Mel mantinha-se em silncio, com receio de que elevoltasse a insult-la e a amea-la, como acontecera nas outras vezes em que ficaramuitos meses sem trabalho. Quando Mel o via triste, em silncio, debruado sobre avaranda, de olhar perdido na linha do mar, ela fazia um doce e, depois de o colocar emcima da mesa da cozinha, dizia-lhe:

    -Amorzo, no estejas triste, anda comer um docinho com a tua macaca!Naquela manh, a Mel fez-lhe um doce de manga com queijo fresco. Colocou o

    doce numa bandeja e levou-a para o terrao. Arturo desviou o olhar da linha do mar efixou-o na bandeja. Ela ficou, em silncio, frente dele e apontou para o doce como quea dizer-lhe que estava ali o doce, que ela o tinha feito porque queria que ele ficassealegre. Ele deu um passo em frente e atirou a cabea contra a porta de madeira queseparava o terrao do corredor da casa. Depois, deu novo passo atrs e voltou a lanar-se contra a porta, repetindo o gesto por cinco vezes. A Mel lanou-se sobre ele eabraou-o. Arturo afastou-a com o brao. Duas lgrimas grossas escorreram-lhe pelacara. Arturo encostou-se parede e deixou deslizar o corpo at ficar de ccoras. Elaajoelhou-se e disse:

    -Amorzo, por que ests triste?-Cala-te! No vs que eu sou um falhado? Tudo o que fao mal feito! Todos

    cagam em cima de mim! Todos me traem!

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    -No amorzo, tu no s um falhado. Fazes tudo com perfeio e s um bommarido!

    -O que eu sou uma grande merda! Um falhado! E tu vais fazer-me aquilo quetodos os outros fizeram: vais dar-me um pontap no cu! Vais cuspir nesta mo que te dde comer!

    -No podes dizer uma coisa dessas-Cala-te, porra! interrompeu ele.As palavras morreram-lhe na garganta e ele comeou a soluar. A Mel abraou-o

    e secou-lhe as lgrimas com os lbios.

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    SETE

    Tu recordas o dia em que a viste pela primeira vez e perguntas por que razo adeixaste partir sozinha. Sabias que aquela era uma mulher diferente das outras masreceaste no seres capaz de abandonar o teu comodismo, a tua segurana, o teuconforto. Logo que a viste, soubeste que aquela imagem te iria perseguir durante a vida.

    Era uma tarde de Outono como tantas outras. Lisboa acordara coberta de umanvoa que subia do mar. Os passeios e os jardins ficaram, se sbito, cobertos de folhassecas. Reparaste que ela trazia vestida roupa de Vero. Tu, pelo contrrio, vestias umacamisola de l grossa e umas calas de algodo. Foi por acaso que a Agncia te pediupara dares o curso de formao sobre gesto de carteira de clientes. Tambm foi poracaso que os TACV a escolheram para participar no curso. Encontraste-a por acaso.Entraste na vida dela sem qualquer premeditao.

    Ela fixou em ti os olhos amendoados e tu no desviaste o olhar. No final dasesso, convidaste-a para almoar. Tinhas o carro estacionado frente do edifcio erolaste, com ela ao teu lado, at ao castelo de S. Jorge. Querias mostrar-lhe a vista dacidade a partir da sua mais bonita colina. Quando ela se debruou sobre as ameias,abraando o Tejo com o olhar, tu pousaste o brao sobre as costas dela e reparaste que apele dela era macia. Desceste a mo at curva da cintura e notaste que ela tinha umcorpo sinuoso. Olhaste para os seios dela, uns seios pequenos e duros, e sentiste vontadede lhes tocar. Foste almoar com ela a um restaurante situado entrada do castelo.Quando estavas a comer a sobremesa, a tua mo direita deslizou para cima da moesquerda dela. Ela apertou a tua mo. Tu olhaste-a nos olhos e disseste:

    -s linda!

    Ela sorriu e guardou silncio. No tirou a mo debaixo da tua.Desceste a rua de mo dada. Abriste a porta do carro e ela entrou. Depois,entraste tu. Antes de pores o motor a trabalhar, inclinaste a cabea sobre ela e pediste-lhe um beijo. Ela no disse nada. Ofereceu-te a boca e tu escondeste a lngua nos lbiosgrossos dela. Tiveste ainda tempo de lhe dar beijos hmidos nos olhos, na face e nopescoo. Ela tinha umas orelhas simtricas. Os cabelos, negros, compridos eencaracolados, cheiravam a um perfume que tu no foste capaz de identificar. Mascheiravam bem. No havia neles a mais pequena marca de tinta. No cheiravam aqumicos. Eram uns cabelos naturais. Deslizaste os lbios pelo pescoo esguio dela.Sentiste que aquela mulher te excitava mais do que as outras. Uma mulher que se dava.Que se abria e entregava. Que falava pouco e que sorria muito. Quando o carro

    arrancou, tu j estavas apaixonado. Levaste-a de regresso ao edifcio de onde sarashavia duas horas e durante a tarde nada do que tu dizias soava direito. Custava-te aencontrar as palavras certas, esquecias-te do que ias para dizer e os teus olhos no eramcapazes de se afastarem da cara dela. Parecia que ela tinha inundado o teu crebro e nohavia mais nada que l pudesse entrar. Comparado com ela, tudo o resto deixara de terimportncia. No outro dia, voltaram a almoar juntos. Disseste que a amavas. Ela disseque tambm te amava. Perguntaste-lhe se podias passar pelo hotel onde ela estavahospedada quando fossem horas para jantar. Jantaste com ela num restaurante da Baixae, nessa mesma noite, j no regressaste a casa. Em vez de tomares o caminho de casa,entraste num cabina telefnica e ligaste para a tua mulher. Respondeu a Adelaide, a medas tuas filhas, a quem disseste que tinhas de ir ao Porto fazer um servio urgente e ques voltarias no dia seguinte. Ela ouviu-te mentir mas no perguntou nada. A Melissa

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    esperava-te fora da cabina. Perguntou apenas se estava tudo bem. Tu respondeste queestava. Ela agarrou o teu brao e guiou-te at ao hotel. Era um hotel barato, situado nosRestauradores. Subiram as escadas e entraram num quarto do terceiro piso. J era noitemas ainda se ouvia o barulho dos carros. O quarto estava frio. Tentaste ligar oaquecimento, mas o aparelho no funcionava. Pediste mais dois cobertores. Viste-a

    despir-se. Primeiro, ela tirou a camisola. Reparaste que ela usava um suti branco sobrea pele escura. Deste um passo em frente e ajudaste-a a soltar o suti. Ela ficou emtronco nu e tu abraaste-a. Sentiste os seios dela contra o teu peito e beijaste-lhe a bocacheia. Descalaste os sapatos e tiraste as meias. Ela ajudou-te a tirar as calas. Quandoela se ajoelhou, tu deste-lhe a beijar o teu sexo. Ela sabia beij-lo. Percorria-o levementecom a lngua molhada e acariciava os teus testculos com os dedos finos e compridos.Depois, ela sentou-se na cama e tu tiraste-lhe as calas. Pediste-lhe para ela deixar ficaras cuecas. Ela abriu as pernas e tu escondeste a cabea entre elas. O perfume delaincendiava-te. Deitaste-te em cima dela e penetraste-a. Ouviste-a gemer e gritar.Quando a ltima gota do teu smen entrou nela, tu disseste que a amavas e ela sussurrouque queria ser tua para sempre.

    No dia seguinte, voltaste para casa s ao fim da tarde. A tua mulher no teperguntou nada. Ela sabia que essa era a melhor maneira de te guardar. Beijaste as tuasfilhas nas faces e fizeste-lhes perguntas sobre a escola. Durante o jantar, permanecestecalado. Querias falar mas no tinhas nada para dizer. noite, afundaste o corpo no sofe, de olhar perdido no televisor, esperaste que a vinda do sono te libertasse do enormedesejoso de deixares aquela casa para sempre. Sabias que, embora desejasses fugir dali,no havia escapatria possvel. Estavas encurralado, partido ao meio, incapaz de tomardecises. Aquela era uma sensao que te acompanhava havia muito. Estavas dividido,entaipado, desejavas uma coisa e eras obrigado a fazer outra. Tinhas estado mais vezesnaquela situao e sabias que a tua falta de coragem, qual fora paralisadora, teimpediria de tomar uma deciso. Deixarias passar o tempo espera que acontecesse

    alguma coisa. No eras capaz de tomar a iniciativa. Deixar-te-ias arrastar pela fora dosacontecimentos. Seria mais fcil no fazer nada, deixar tudo como estava e esperar queo tempo ajudasse a resolver o problema. Desde criana que te sentias inundado por essaindolncia, essa apatia, esse comodismo, que te impediam de dar um novo curso tuavida. Tal como as guas do rio, que correm necessariamente em direco ao mar,tambm a tua vida flua empurrada pelas circunstncias, sem que tu tivesses o poder dedirigir o curso dela. Passaste o sbado e o domingo espera da segunda-feira. Em vezde ires para o escritrio, telefonaste para a Agncia e pediste um dia de folga. Depois,foste ter com a Melissa ao hotel e convidaste-a a visitar vora. A meio do caminho,paraste o carro junto de uma velha casa em runas. Perguntaste-lhe se ela queria ir at l.Ela assentiu. Havia um campo semeado de trigo a separar a estrada da casa abandonada.

    Entraste, abraado a ela, dentro das runas. Ela disse que havia muito tempo quesonhava fazer amor numa casa abandonada. Ajudaste-a a baixar as calas de ganga.Encostaste o teu corpo ao dela e o teu pnis, duro e grosso, procurou-lhe o sexo. Elaencostou-se parede e o teu sexo deslizou suavemente, perdendo-se dentro dela. Elagritou sem medo que a ouvissem. Depois, voltaram ao carro e seguiram o caminho paravora. Nos dias seguintes, viajaste com ela para outros lugares. Lembras-te que aamaste num moinho abandonado, a caminho da Foz do Arelho? E aquele dia em que afoste esperar estao de Aveiro e a levaste para um hotel barato que ficava na avenidada estao? Recordas a fria com que a tomaste? Uma fria desmedida, um desejoanimalesco como que o prenncio do fim de um sonho, j que tu sabias que ela estavaprestes a partir e, nessa altura, no tinhas a certeza se voltarias a v-la. Quando elaestava prestes a regressar a Cabo Verde, voltaste a fazer amor com ela no quarto do

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    hotel. Viste-a chorar quando saste do quarto. Ela ainda te perguntou por que razo nopodias ir para Cabo Verde. Foi ento que lhe disseste que tinhas duas filhas e que nopodias separar-te delas. Disseste-lhe adeus e abandonaste o hotel, derrotado e triste.Durante dois anos, escreveste-lhe todas as semanas. Nesse tempo, no havia Internetnem telemveis e as cartas demoravam semanas a chegar ao Mindelo. Ela voltou a

    Lisboa dois anos depois. Estiveste com ela num hotel dos Restauradores. Ela disse-teque estava disposta a casar com um portugus, um rapaz da idade dela que a amava eque desejava fazer dela a sua esposa. Tu perguntaste-lhe se ela o amava e ela disse queno era capaz de amar mais ningum e que estava disposta a casar com ele s para ficarperto de ti. Tu disseste-lhe para ela voltar ao Mindelo. Entregaste-lhe uma fotografiatua, junto de uma roseira florida, e escreveste por detrs: Estas rosas so para ti! Nuncate esquecerei! Viste-a a subir as escadas da estao do Rossio. Quando ela se voltoupara te dizer adeus, tinhas os olhos rasos de lgrimas. Julgaste que ela tinha voltado parao Mindelo, mas estavas enganado. Ela viajou para o Algarve e andou por l trs meses,entregando-se nos braos de um algarvio, um homem de meia-idade, que a mimou compresentes, muito sexo, algumas viagens e muita alegria de viver. Se no posso ser do

    Pedro, ento serei detodos!, pensava ela, enquanto se entregava nos braos do algarvio.Trs meses depois, ela voltava ao Mindelo. Um ano mais tarde, conhecia o italiano. Foiento que tu estiveste mais de cinco anos sem teres notcias dela. Nem podias imaginarpor onde ela andava. Enquanto tu te deslocavas todas as manhs para o escritrio,cumprindo uma rotina que te roubava a vida, a Melissa deambulava pelas florestas deGuin-Conacri e calcorreava as savanas de Moambique na companhia de Arturo, obilogo italiano com quem viria a casar mais tarde. Mandaste-lhe cartas para muitasmoradas, mas ela no tinha como receber essas cartas. Quando os telemveis segeneralizaram, enviaste-lhe uma carta com o nmero do teu celular para uma moradaimprovvel, a Direco-Geral do Turismo. Um acaso feliz fez com que a carta fosseparar s mos de um antigo colega de Melissa, que a guardou, e lha entregou assim que

    ela regressou Cidade da Praia. Algum tempo mais tarde, recebeste uma chamada noteu telemvel e reconheceste-lhe a voz. Ela disse-te que voltara Cidade da Praia, queestava grvida e que casara com um italiano.

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    OITO

    H vrios meses que Arturo no tinha notcias de novos projectos. Ocupava otempo a fazer pequenos arranjos em casa. A rotina diria era sempre igual: tomar opequeno-almoo devagar, descer ao segundo piso, procurar ferramentas, fazer pequenosarranjos numa porta ou numa janela, tomar um duche a meio da manh, voltar aotrabalho, esperar pelo almoo, almoar devagar, dormir a sesta, sexo a meio da tarde,esperar pelo jantar, jantar devagar, deitar no sof e ver televiso.

    H meses que Melissa ocupava o tempo da mesma forma: levantar, dar de comerao beb, preparar o pequeno-almoo, brincar com o beb, tomar duche, ida ao mercadopara comprar hortalias, fruta e peixe, preparar o almoo, almoar devagar, dar decomer ao beb, brincar com o beb, sexo a meio da tarde, fazer o jantar, jantar devagar,

    dar de comer ao beb, deitar no sof e ver televiso.Da ltima vez que o Pedro esteve com ela, a sua rotina fora muito diferente:levantar tarde, fazer amor, tomar o pequeno-almoo, dar de comer ao beb, ir praia,fazer almoo, almoar, dar de comer ao beb, fazer sexo, dar um passeio de autocarro,comer um gelado numa esplanada, jantar numa churrascaria, dar de comer ao beb e verteleviso deitada no sof.

    So dois homens muito diferentes, o Arturo e o Pedro!, pensou a Melissa.Enquanto um s est bem dentro de casa, passando o tempo a fazer arranjos e a dizermaluquices, o outro s quer passear. A minha cabea diz-me que o Arturo o melhormarido que uma mulher pode desejar, mas o meu corao puxa-me para o Pedro! Ah, oPedro! O meu primeiro verdadeiro amor!

    Arturo estava, h vrias horas, em silncio, sentado numa cadeira de lona, comos olhos postos na linha do mar. Disse para ela:-Quero que consultes a Dona Margarida.Mel sabia que Arturo no tomava decises importantes sem consultar a Dona

    Margarida.-Ests a pensar em concorrer a outro projecto, amorzo?-Isto no pode continuar assim. O dinheiro est a acabar-se, estou farto de ficar

    para aqui sem fazer nada, isto no vida para um homem com dois filhos para sustentar.-Amorzo, no te preocupes com o dinheiro. Aproximou-se dele e abraou-o. -

    Temos o depsito em escudos cabo-verdianos! Temos l dinheiro que d ainda paramuitos meses.

    -Tenho de mandar euros para Frana. preciso pagar o colgio do meu filho.-`T bem, eu telefono para a Dona Margarida. Endireitou-se e levou a mo aobolso. Meu macaco, no estejas preocupado, sim?

    Melissa pegou no telemvel e falou com a vidente. Ela disse-lhe que precisavade falar pessoalmente com os dois. Combinaram encontrar-se em casa dela, no diaseguinte, s dez horas.

    Dona Margarida era uma mulher de idade incerta, alta e seca de carnes, cabeloscurtos, nariz europeu, lbios finos e pele escura. A cara, macia como um pssego, tinhaa emoldur-la um eterno sorriso. Neta de um portugus e de uma cabo-verdiana, filha deum guineense e de uma cabo-verdiana, Dona Margarida tinha casa posta numa rua queficava nas traseiras do mercado. Era uma moradia antiga, pintada de azul, com porta e

    janelas altas, um terrao e um pequeno quintal com duas rvores de fruto: uma

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    romzeira e uma bananeira. Vivia sozinha desde que enviuvara. Sem filhos nem irmos,Dona Margarida levava uma existncia solitria, dedicada aos seus santinhos e aosclientes. Recebia as pessoas num quarto sem janelas, iluminado pela luz das velas, parcoem mobilirio, paredes brancas e cho de cimento.

    Mel entrou primeiro. Arturo, sempre atrs dela, permaneceu em silncio. Mel

    contou vidente qual era o projecto que Arturo queria ganhar. Havia uma vaga para aGuin-Bissau, uma coisa boa, para dois, bem paga, com o objectivo de criar materiaiscurriculares de Biologia para as escolas secundrias. A mulher ouviu em silncio. Comum isqueiro, acendeu sete velas que jaziam sobre uma mesa redonda. No centro damesa, havia dois santinhos de cermica. Dona Margarida juntou as mos, beijou ossantos, deu-os a beijar a Melissa e a Arturo e sussurrou meia dzia de palavrasincompreensveis. Depois, olhou para o Arturo e disse:

    -Este projecto para agarrar. Vai dar coisa boa. Depois da matana, vem abonana. frica precisa de ti. Dois anos muito tempo para um homem estar sozinho.

    -Ento - interrompeu a Mel.-Tero de ir os dois precisou a vidente.

    -Para Bissau? Com um beb? perguntou a Mel.-Sim, os trs.-No sei se possvel interrompeu o Arturo. Nem sempre deixam ir a

    famlia.Arturo agradeceu Dona Margarida e entregou-lhe um envelope com mil

    escudos cabo-verdianos. Ela agradeceu e apontou-lhes o caminho da porta. A Melbeijou a mulher na face e o Arturo disse que fariam como a Dona Margarida desejavaque se fizesse. Quando se encontravam no passeio, ouviram a Dona Margarida achamar. Arturo olhou para trs e viu a vidente a chamar com a mo.

    - comigo? perguntou o Arturo.-Com ela! Quero falar com ela! respondeu a mulher.

    - contigo disse Arturo para a Melissa, batendo-lhe com a mo no ombro.-Comigo? perguntou a Melissa. S comigo? gritou.A vidente assentiu com a cabea e a Melissa voltou a enfiar-se dentro da casa da

    Dona Margarida, deixando Arturo do lado de fora.-Minha querida, contigo que eu quero falar, sim, e sem ele por perto.A vidente acendeu mais duas velas e voltou a sentar-se. Apontou com a mo

    direita para uma cadeira, fazendo sinal Melissa para se sentar tambm.-Sem ele porqu? perguntou a Melissa, intrigada e receosa.-O que tenho para te dizer s a ti diz respeito, minha filha. A Melissa franziu o

    sobrolho e uma nuvem de tristeza e medo desceu sobre ela. H outro homem na tuavida, no ? A Melissa no disse nada. Fechou os olhos e baixou a cabea. Bem, um

    homem casado, um homem que encheu o teu corao e que tomou conta da tua cabea,no verdade? A Melissa abanou a cabea em sinal de concordncia. Esse homempode dar cabo da tua vida. No de confiana. No vai ficar contigo. fraco.

    -vacila, no ? Melissa sentiu as mos quentes da vidente sobre as suas.- isso, filha. Tiraste-me a palavra da boca. Ele vacila. Recua quando devia

    avanar. Foi sempre assim, no foi?-Sim. Foi sempre um fraco.-Mas tu ama-lo, no ? Melissa assentiu com a cabea. Mas est a chegar o

    momento de todas as decises. E ele vai recuar, ouviste? Agora vai em paz, minha filha.No te esqueas do que eu te disse. Ele vai recuar.

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    Quando a Melissa chegou junto do Arturo o seu corao saltava como se fosse otambor de uma mquina de lavar roupa no perodo de centrifugao mxima. As mostremiam-lhe e os olhos pareciam cobertos com um manto de tristeza.

    -O que que tens? O que que a velha te fez? perguntou o Arturo, abraando-a com fora.

    -No foi nada respondeu ela. que - As palavras morreram-lhe nagarganta, sufocadas pelos soluos. Quer dizerEla-ela o qu, mulher? O que que ela te fez, porra!-No foi nada, amorzo. Fui-me abaixo, apenas. Limpou os olhos e tentou

    sorrir.-Alguma coisa foi! E no foi boa!-No foi nada, amor. Esquece!Arturo deixou cair os braos sobre as coxas e resignou-se ao silncio da Melissa.

    Sabia o quanto ela era teimosa e no valia a pena insistir com perguntas.

    Pararam no mercado. quela hora, o mercado fervilhava de gente. As bancas,repletas de bananas, mangas, anonas, hortalias, mandioca e batatas, eram assaltadas pordezenas de mulheres que, diariamente, ali faziam as suas compras. Mulheres, sentadasno cho, vendiam o peixe, sobretudo atuns, que os rapazes transportavam, fazendo-osdeslizar pelos passeios de cimento. Junto porta principal, raparigas vendiam chinelosde plstico, sandlias, pastilhas elsticas e doaria. Um homem, talvez o nico vendedordo mercado, oferecia costeletas de porco e chourios, decorados com um punhado demoscas, que ele, ingloriamente, afastava com as mos. Melissa comprou mandioca,morangos, coentros e batatas.

    Uma semana depois, chegou o dia da partida. Era uma manh como todas as

    outras na Cidade da Praia. Amanheceu cedo. Mal o sol lanou os seus dedos sobre acidade, as vendedoras puseram-se a caminho do mercado. Algumas traziam filhos atiracolo, pendurados num canguru improvisado, feito de um pano garrido que elasfaziam passar por debaixo das pernas do beb, com as pontas atadas cintura. Levavamtudo o que conseguiam transportar em cestos de vime, em caixas de papelo ou emsacos de plstico.

    Arturo espreitou pela janela e viu um barco a chegar ao porto. As cegonhasfaziam voos rasantes sobre o barco. Apeteceu-lhe tomar um daqueles barcos e, nacompanhia da Mel, fazer o circuito das ilhas. Seria bem melhor do que apanhar o avio,numa viagem cansativa e dispendiosa at Bruxelas, ainda por cima sem ter a certeza deque o projecto na Guin-Bissau fosse seu. Tivera conhecimento, na vspera de partir, da

    existncia de mais quatro candidatos, todos homens experientes, com muitas missesem frica e vrias ps-graduaes em Biologia. As palavras da Dona Margarida, ditasuma semana antes, tranquilizavam-no e davam-lhe coragem para enfrentar mais aquelaprovao. Quantas vezes tivera de se submeter a idnticas viagens, a entrevistasentediantes com burocratas da Unio Europeia, s para poder candidatar-se a um lugarefmero, bem pago certo, mas de curta durao? Fora aquela a vida que escolhera e depouco lhe valia estar a lamentar-se e a lamber as feridas como se fosse um co sarnento.Ele sempre fora assim: gostava de lamentar a sua falta de sorte e no passava um diasem simular a cena do homem trado, infeliz e abandonado. A Mel iria em seu socorro,abra-lo-ia, chamar-lhe-ia meu macaquinho azarento! e ele ficaria to tranquilocomo um pobre e indefeso beb nos braos da me.

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    Arturo vestiu as calas de linho, abotoou a camisa de manga curta e meteu agravata e o casaco dentro da mala. H quantos meses no era obrigado a vestir-seassim? Habituara-se a usar sempre a mesma coisa, uns cales largos, uma T-shirte unschinelos de plstico e, mesmo quando precisava de sair de casa, bastava-lhe trocar oschinelos por umas sandlias de couro e estava pronto para tudo o que fosse preciso.

    Recordou a ltima entrevista que tivera em Bruxelas, havia um ano atrs, e foi tomadopor uma onda de desconforto. No havia nada que lhe fosse mais penoso do que viajarpela Europa. A Blgica entediava-o. Aquelas florestas escuras, a chuva miudinha, o frio,as fachadas das casas enegrecidas pelo tempo, tudo o entristecia naquele pas!Assustava-o o preo escandaloso da comida e dos transportes, a agitao das grandescidades e a pressa com que as pessoas viviam. Preferia mil vezes o ambiente catico dosbairros da Cidade da Praia, com casas por acabar, passeios a precisarem de pavimento esacos de plstico a esvoaarem pelo cho, ordem das cidades europeias, onde tudoparecia acabado, como se os europeus tivessem chegado ao fim da histria e nada maislhes restasse do que viver a reforma ou esperar por ela. Nunca soubera explicar a razodo seu desconforto face ao modo de vida europeu. Toda a sua vida se lembrava de andar

    a fugir de alguma coisa e o nico lugar onde encontrou paz e tranquilidade foi em CaboVerde. Carregava em cima dos ombros o destino dos pais, a tragdia do seu povo, e asua vida fora, at ento, um contnuo xodo, uma incessante procura. Nisso, ele era to

    judeu como a irm, que optara por viver em Israel, no respeito escrupuloso pelastradies hebraicas. A Melissa e a Cidade da Praia eram o seu porto de abrigo, longe doqual se sentia acossado, perseguido e cansado. Suspirava pelo dia em que diria umadeus definitivo s viagens e se entregaria a cuidar da fazenda, que tencionava adquirirno interior de Santiago, logo que tivesse dinheiro suficiente para isso. Faria uma casa deum s piso, no meio da fazenda, e, com a ajuda de meia dzia de trabalhadores,produziria o melhor caf e a melhor mandioca de Cabo Verde.

    Tomou o pequeno-almoo em silncio. A Mel ficou de p. Andava de um ladopara o outro da cozinha, para ter a certeza de que nada faltava na mesa do Arturo. Derepente, um som metlico cruzou os ares e a voz do padre, que iniciava a missadominical, na igreja vizinha, quebrou o silncio. Arturo detestava aqueles cnticos!Achava aquilo uma violao da sua liberdade individual e um atropelo ao seu direito aosossego. O novo padre, um homem novo e enrgico, recm-chegado do Mindelo,colocara uns altifalantes na torre da igreja e obrigava todos os moradores do Plateau aouvirem a missa.

    Arturo deu um salto da cadeira e berrou:-Que raio de democracia esta? A Mel sorriu e ele continuou: - Porra! Vai l

    dizer ao padreco de merda que este som me est a rebentar com os colhes! E dito

    aquilo, puxou os cales para baixo e puxou os testculos, esticando-os como se fossemas asas de um morcego.A Mel riu com satisfao e disse:-Amorzo, no ds cabo dos tomates! No admira que os tenhas do tamanho dos

    de um boi, j que passas o tempo a estic-los! Parecem as orelhas de um elefante!Arturo olhou para o relgio e viu que faltava uma hora para a partida do avio.

    Deu um beijo ao Miguel, que dormia, fechou a mala e desceu as escadas atrs da Mel. Otxi esperava-o. Beijou a Mel, entrou no carro, abriu a janela e gritou:

    -Daqui a duas semanas, estou de volta!

    O voo para Bruxelas foi penoso. Teve de esperar quatro horas no aeroporto deMilo. Chegado a Bruxelas, instalou-se no hotel do costume e passou o dia seguinte a

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    preparar-se para a entrevista. Reescreveu o curriculum vitaeno seu computador porttile respondeu a vrias perguntas imaginrias, que ele sabia que iam ser feitas, porque jtinha perdido a conta s entrevistas a que se submetera. Sabia que tinha de se submeter treta do costume. Perguntas idiotas sobre a poltica de cooperao e de ajuda aodesenvolvimento dos pases pobres! No fundo, submeter-se queles interrogatrios

    idiotas era o preo que ele tinha de pagar para sacar uma montanha de euros aosburocratas da Comisso Europeia!O edifcio era uma construo modernista coberta de vidro. entrada, uma

    mulher, impecavelmente vestida, cabea pequena enterrada num pescoo curto, nariztorto e lbios metidos para dentro, disse-lhe que o esperavam no nono piso. Arturosubiu no elevador. Entrou num corredor comprido, ladeado de portas de vidro e andoupara a frente e para trs, a espreitar pelas vidraas, at que um funcionrio lhe perguntouse estava ali para a entrevista. Respondeu que sim. O funcionrio disse para ele entrarna ltima porta direita.

    A entrevista correu to bem como das outras vezes. Ele sabia que aquele lugardependia menos da entrevista do que da sorte. Se os outros candidatos fossem mais

    fracos do que ele, o lugar seria seu. Se fossem mais fortes, restava-lhe lamentar a perdade tempo e de dinheiro numa viagem inglria e cansativa.Quatro dias depois, uma voz feminina anunciava-lhe, pelo telefone, que o lugar

    era dele. Assinou o contrato e o seguro de vida e viajou at Paris. H dois anos que novia o filho. Como estaria ele? Como que ele o iria receber? E a me do rapaz? Noltimo e-mail, o filho usara uma linguagem estranha, com algumas referncias vontade de Al!. Sabia que a me o educara na tradio muulmana, mas estava longede imaginar o que tinham feito cabea do rapaz. Ao telefone, o filho parecera-lheainda mais estranho. Fez referncias despropositadas Palestina, invocou a Jihad,afirmou que a verdadeira justia estava na aplicao da Shariahe falou repetidas vezesem procurar um novo sentido para a vida. Arturo ficou preocupado e tinha boas razes

    para isso.Rafaelo esperava-o na estao dos caminhos-de-ferro. Estava mais alto e tinha abarba comprida. Nunca fora parecido com o pai. Desde beb que tinha a cara da me e,agora, as feies rabes surgiam acentuadas pelos cabelos encaracolados e pretos, onariz comprido, os lbios em forma de corao, quase femininos, a pele escura e osolhos pretos, redondos e fundos. Arturo ficou satisfeito por no ver a me do rapaz. Daltima vez que estivera com ela, perdeu a cabea, insultou-a, amaldioou o dia em que aconheceu, mas acabou por lhe dar cinco mil euros para ela pagar uma dvida antiga.

    Rafaelo sorriu e deu-lhe um beijo na face. Arturo disse-lhe que o achava maisalto e forte e que estava contente por o ver de perfeita sade. O rapaz disse-lhe que ame estava de frias na Holanda, em casa de uma amiga. Arturo ficou satisfeito com a

    boa notcia: iriam ter a casa s para os dois e ele no precisaria de enfrentar a fera.Meteram-se num txi. Trinta minutos depois, o Rafaelo mandava parar o carro. Arturorecolheu a mala e seguiu atrs do filho. Subiram no elevador e saram no oitavo piso. Oapartamento ficava num daqueles prdios incaractersticos, rodeados de outros prdiosiguais, nos subrbios de Paris. Arturo deu trs passos em direco janela e viu ominarete da mesquita que se erguia a pouco mais de cem metros do seu nariz. Nasparedes dos prdios, havia grafitos escritos em lngua rabe. Sentou-se. O filho ficou dep.

    -Mudmos de apartamento h pouco tempo.-E porqu?-A me zangou-se com a Margot e tivemos de deixar a casa dela. Rafaelo deu

    dois passos em direco janela. Foi h coisa de um ou dois meses.

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    -Ainda bem que j no precisas de estar em casa dessa mulher. Sempre achei queela era uma m influncia - disse Arturo.

    -L ests tu com a mania de saber o que que bom para mim! Rafaelo deudois murros na parede.

    -Sou o teu pai, no sou?

    -E da? perguntou o rapaz, mantendo-se de costas voltadas.- suposto os pais preocuparem-se com os filhos.-Preocupao tardia e desnecessria! Voltou-se para o pai.-No ests comigo porque no queres.-Foste enfiar-te no meio da selva.-Em Cabo Verde, no h selva.-Pois no! H pedras e p, que ainda pior.-No sabes do que falas, filho.-Sei sim, j l estive.-No saste de l por causa das pedras.-Pois no, foi por causa da negrinha.

    -A negrinha tem nome.-Sempre a preferiste a mim. Deu dois passos em frente e apontou o dedo para opai. - E agora at tens outro filho! Tens idade para ser av, no para ser, de novo, pai.

    -No sejas estpido!-E ainda vais ter mais! Ela muito nova, h-de querer mais um filho, um que

    saia a ela, pretinho, como ela !-No sejas racista! No te esqueas que tens sangue rabe! Tens a pele quase to

    escura como a Mel.-Eu sou muulmano e tu s judeu.-No venhas com essa merda das religies. Eu sou judeu e tu s rabe e judeu.

    s as duas coisas. Arturo levantou-se, deu dois passos em frente e olhou directamente

    nos olhos do filho. - Tens sangue judeu e sangue rabe!-Pois sim, mas tu nunca me deixaste aprender o rabe! Querias que euaprendesse o hebreu!

    -Foi uma opo que eu tomei porque achei que era melhor para ti! No fazia malnenhum aprenderes o hebreu!

    -Pai, no gozes comigo! Querias que eu perdesse tempo a aprender a lngua doscolonos, dos opressores, dos que nos roubaram os lugares santos?

    -Quem que te ensinou essas falsidades?-No da tua conta! E no so falsidades! berrou o rapaz. Eu ando a estudar

    Teologia.-Com os talibans? Agora deste em seguidor do Bin-Laden?

    -No tens nada como isso! Nunca te preocupaste comigo, no agora que voudar-te satisfaes.-No sejas parvo! Quem que te paga as contas? Quem que te pagou a viagem

    a Meca?-Fizeste apenas a tua obrigao. Tens dado bem mais negrinha! Compraste-lhe

    uma casa e encheste-a de jias!-Fizeram-te uma lavagem ao crebro?-Eu fiz o que tu devias ter feito: regressei s origens!-E regressar s origens andar com os talibans? pregar o dio contra as outras

    religies? acabar morto e rodeado de destroos porque um maluco qualquer nosconvenceu de que nosso dever fazer explodir um cinto com dinamite numa paragemde autocarro?

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    -Pai, tu no sabes de nada. Rafaelo voltou, de novo, as costas ao pai e disse,num tom ameaador: - Tornaste-te um estranho, no queiras tornar-te um inimigo.

    -No sei de nada? Julgas que no leio os jornais? Que no vejo os noticirios? Levantou o brao direito e apontou o dedo rente ao nariz do filho .- Que no sei quemmanda esses jovens idiotas para a morte?

    -No m