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    A ferro e fogo: tiro, porrada e bomba

    Adriana Facina,Carlos PalombinieMariana Gomes

    Em 1980, um amigo, filsofo analtico, hoje em uma de nossas principais universidades

    pblicas, dedicava-se a entender de que modo o mundo se desintegrara na Viena de

    Wittgenstein, de Webern e de Freud. Creio que ele lesse Viena fim-de-sculo, de Carl

    Schorske, mas no tenho dificuldade em encontrar ideias anlogas em Oswald Spengler,

    Theodor Adorno e Susan McClary. Em O declnio do Ocidente, publicado em 1918,

    Spengler afirma:

    Somos gente civilizada, e no pessoas do Gtico ou do Rococ. Temos de levar em conta osfatos duros e frios de uma poca tardia, cujo paralelo encontra-se no na Atenas de Pricles,mas na Roma dos Csares. De grande pintura ou grande msica no h mais possibilidade para

    o europeu ocidental. Suas potencialidades arquitetnicas exauriram-se nos ltimos cem anos.Restam apenas possibilidades extensivas. E todavia no vejo desvantagem alguma em que umagerao vigorosa e cheia de esperanas ilimitadas descubra s vezes que algumas dessasesperanas devam dar em nada. E que sejam as esperanas mais altas: quem valha alguma coisasuperar o fato.

    Em O envelhecimento da msica nova Adorno dizia, em 1955:

    A estabilizao da msica, o perigo da segurana, perceptvel desde 1927, tornou-se aindamais intenso aps a catstrofe mundial. Efetivamente, reza o clich, de modo algum o mostodeu em vinho doce e maduro. Nenhuma realizao vlida, nenhuma obra-prima consumadatomou o lugar dos excessos de certos seguidores do Sturm und Drang. A luta por obras-primas

    parte daquele conformismo ao qual a Msica Nova renunciou.A poucos meses de sua morte, em 1969, ele encerrava assim a palestra Sobre o

    problema da anlise musical:

    A crise da composio hoje e gostaria de concluir por aqui tambm uma crise deanlise. Procurei mostrar por que. Talvez no seja exagerado dizer que toda a anlise musicalcontempornea da msica tradicional ou da recente tem ficado aqum do nvel daconscincia musical contempornea em composio. Caso a anlise possa subir a tanto semrecair numa obsesso vazia com a coleta de fatos musicais, provavelmente seja ento capaz de,por sua vez, agir criticamente sobre a composio e afet-la.

    Para Adorno, ainda no ensaio de 1955:

    O conceito de Msica Nova incompatvel com todo o som afirmativo, com a confirmao doque , ainda que se trate da prpria Existncia querida. Quando a msica chegou a duvidar detudo isso pela primeira vez, tornou-se Msica Nova. O choque que causou na audincia em seuperodo heroico poca da primeira execuo das Canes de Altenbergde Alban Berg ou daSagrao da primaverade Stravinsky em Paris no se pode simplesmente atribuir aodesconhecimento e estranheza, conforme desejaria a apologia simptica; ele mais o resultadode algo verdadeiramente aflitivo e confuso. Quem o negue e pretenda que a arte nova seja tobela quanto a tradicional presta-lhe real desservio; ele gaba o que essa msica rejeita ao seguir,resoluta, seu prprio mpeto.

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    Adorno j sabia que a indstria cultural ameaava adquirir todas as aes da

    Msica Nova para transformar-se em proprietria exclusiva. Se ela era capaz de faz-lo

    com a msica em 1955, o que no faria, em 2015, com a filosofia?

    Vladimir Safatle pede msica nova que desempenhe um papel de alta

    relevncia; que mostre o caminho da ideologia cultural nacional; que mantenha a

    linha de frente do debate cultural; que siga os exemplos paradigmticos de Villa-

    Lobos e Mrio de Andrade; que efetue a juno entre Estado, nao e povo; que se

    alce em linguagem de construo do espao social e de reconciliao das populaes

    como unidade; que nos deixe mais prximos da origem e da autenticidade; que nos

    orgulhe enquanto expresso maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e

    modos de pensar; que sirva de modelo de convivncia possvel entre camadas sociais

    distintas e distantes; que se alie ao ferro e ao fogo para construir este pas.

    Nobilssima tarefa! Mas o filsofo se coloca ao nvel da conscincia musical

    contempornea e age criticamente para afet-la? No. Ele a recusa pura e simplesmente,

    o que o dispensa de qualquer esforo de anlise crtica. Diante da crise da anlise, o

    terico declara o fim da msica. E promove seu loteamento: o pagode do PSDB; o

    sertanejo e o funk so do PT. Depois disso, no se sabe o que esteja por vir ainda, mas

    Safatle tem um partido e uma teoria, que no se entende com a realidade. Ele lembra

    assim aquele tio que, mesa, encerra a discusso ao anunciar, com modstia triunfante:Eu tenho uma teoria!

    Essa teoria desnecessrio diz-lo no constitui cincia de ponta, mas

    variaes hiperblicas floridas sobre uma espcie de senso comum acadmico. Ela se

    esquece de levar em conta que o mundo mudou nos anos 1990. Que ao ruir do muro de

    Berlim e da Guerra Fria ergueram-se outros muros e encetaram-se outras guerras.

    Aqueles mesmos que ele gostaria de ver construrem este pas a ferro e fogo tm seus

    filhos mortos pelo ferro das Foras Armadas e seus domiclios incinerados pelo fogo do

    Estado mrbida ironia! Para Safatle, eles no tm cultura. Mas no era Adorno quem,

    em O envelhecimento da msica nova, dizia: As nicas obras de arte autnticas que se

    produzem hoje so aquelas que, em sua organizao interna, se medem pela experincia

    mais completa do horror? E mais adiante:

    As medidas brutais tomadas pelos estados autoritrios, medidas que controlam a msica eatacam qualquer desvio como decadente e subversivo, fornecem evidncia tangvel do queacontece de modo menos ntido em pases no totalitrios, do que se passa at no interior daarte, bem como no interior da maioria dos seres humanos. Diante de um estrago to profundo,a maior loucura moralizar.

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    Safatle lamenta que a ideologia, traduzida na Folha de S. Pauloem crotonsde

    filosofia, j no sirva de compensao simblica para a expropriao real de explorados e

    oprimidos, que seguem a fazer msica como bem entendem, a fazer pouco de seus altos

    princpios, e a ganhar, como ele, seu dinheirinho.

    Se percorresse num sbado qualquer os becos e vielas de alguma favela

    brasileira ouviria uma complexidade de sons e sentidos, os pobres em suas performances

    a insistir em reinventar a vida diante do genocdio cotidiano. s balas que no so de

    borracha, o funk responde com sons de tiros tornados percusso eletrnica, a narrar, de

    um ponto de vista que no aparece nos jornales, a sobrevivncia nas periferias de nossas

    grandes cidades. Tornar tiro som, fazer da morte msica, festejar a vida em meio ao

    extermnio: a criao esttica de sobrevivncia situacional, aposta num entrelugar onde

    nada fixo, onde qualquer referencial que se pretenda universal desconstrudo, e as

    misses civilizatrias ruem meio que ridiculamente, a testemunhar a impotncia da

    crtica.

    Analisar culturas de sobrevivncia exige deslocamentos epistemolgicos que

    permitam pensar a diffranceno sentido de Derrida: irredutvel a consensos que silenciem

    conflitos. Negociao e traduo permanentes, hibridismos que desconstroem qualquer

    busca por pureza ou autenticidade, porque afirmam a performance como lugar da criao

    cultural. preciso descolonizar o pensamento. Nas palavras de Homi Bhabha:Os termos do embate cultural, seja atravs de antagonismo ou afiliao, so produzidosperformativamente. A representao da diferena no deve ser lida apressadamente como oreflexo de laos culturais ou tnicospreestabelecidos, inscritos na lpide fixa da tradio. Aarticulao social da diferena, da perspectiva da minoria, uma negociao complexa, emandamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem emmomentos de transformao histrica. O direito de se expressar a partir da periferia do podere do privilgio autorizados no depende da persistncia da tradio; ele alimentado pelo poderda tradio de se reinscrever atravs das condies de contingncia e contraditoriedade quepresidem sobre as vidas dos que esto na minoria. O reconhecimento que a tradio outorga uma forma parcial de identificao. Ao reencenar o passado, este introduz outras

    temporalidades culturais incomensurveis na inveno da tradio. Esse processo afastaqualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradio recebida. Os embatesde fronteira acerca da diferena cultural tm tanta possibilidade de serem consensuais quantoconflituosos; podem confundir nossas definies de tradio e modernidade, realinhar asfronteiras habituais entre o pblico e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar asexpectativas normativas de desenvolvimento e progresso.

    Essas nossas consideraes seriam apenas um debate de ideias no fosse o

    cenrio sinistro em que se do. Como nos ensinou Marx, ideias no vivem no vazio ou

    em algum lugar atemporal ou ahistrico. O que significa denominar regresso s formas

    musicais fruidas e produzidas por boa parte dos trs mil mortos pela Polcia Militar em2014, em sua maioria pobres, pretos e perifricos? Paul Gilroy afirma que a msica a

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    biblioteca da dispora africana. Cada livro importa, pois a msica performatiza uma

    histria de inveno de vida num Atlntico de dor e sofrimento. A surdez que impede

    que se oua essa histria de longa durao tem implicaes que se contam em cadveres.

    A palavra regresso, se repousada sobre as mos daqueles que aplicam teorias

    evolucionistas cultura, pode significar, entre outras acepes, um estgio anterior na

    escala evolutiva. Ora, se pensamos a cultura como processos, prticas e produes de

    sentido, no cabe enxergarmos a ideia de regresso a no ser com propsito pejorativo.

    Neste sentido, o que aconteceu com aqueles de culturas menos evoludas ou

    mesmo aos sem cultura em uma breve anlise do percurso histrico da

    humanidade? Escravido, expropriao, genocdio, silenciamento. Perversidades que se

    justificam a partir desta lgica. Se o termo regresso pode ser interpretado como uma

    forma de apontar um valor inferior cultura produzida por certos grupos, o caminho a

    que esta anlise nos leva o da desumanizao.

    Como nos diz Chimamanda Adichie, embora histrias tenham sido usadas para

    expropriar e desumanizar, tambm podem ser usadas para empoderar e humanizar.

    Assim, neste rduo exerccio de pensar o peso dos discursos e das histrias fixadas

    atravs deles, importante que, neste circuito de afetos que o prprio Safatle prope,

    no reproduzamos o que se diz daqueles a quem o poder dominante pretende subjugar.

    Mas no por pena ou covardia crtica. No por ausncia de critrios e/ou ferramentasanalticas. E sim por lanarmos mo de uma interpretao que leva em considerao um

    olhar no-universal sobre a cultura.

    De fato, o sentido antropolgico da ideia de cultura no parece ser considerado

    na interpretao adotada pelo autor. Mesmo assim, preciso questionar: quem este

    sujeito universal produtor desta narrativa do povo? Que narrativa esta? Quem este

    povo? Esta colonial-modernidade, que presume um sujeito nico, universal, de costumes

    e gostos fixos e naturais que se sobrepe a toda e qualquer outra possibilidade de

    vivncia, que barbariza a diferena, est em xeque. E nesta tica que argumentamos a

    favor da necessidade de chaves de leitura, vocabulrios e epistemologias que desloquem a

    essncia deste sujeito homem, branco, colonizado e heteronormativo. No ser a partir

    dos critrios deste sujeito da colonial-modernidade que construiremos anlises relevantes

    sobre a cultura em 2015.

    Safatle tambm afirma que os que apontam elitismo em anlises como as dele

    aplicam um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura. Pois diramos que

    exatamente por no incorrer neste equvoco que sinalizamos o elitismo circunscrito em

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    seu diagnstico sobre a msica. No a Marx que recorremos para sustentar este ponto.

    E sim a Pierre Bourdieu, que defende que cultura questo de gosto, e os gostos so

    construes sociais. Como toda construo social, a formao do gosto no um evento

    ao acaso, mas sim discursivo. tambm atravessado por questes de classe, raa, gnero,

    territrio, e afetos sobre os quais Safatle teoriza entre outros inmeros

    pertencimentos que perpassam as teias s quais os sujeitos esto conectados. Desse

    modo, Bourdieu argumenta que um dos mais poderosos mecanismos de distino que

    atuam na subjugao de determinados grupos, classes, etnias etc. a hierarquizao

    valorativa da cultura.

    Se em 2015 a msica morreu, morreram com ela, portanto, algumas das

    possibilidades de problematizao de questes de gnero e sexualidade no campo da

    cultura. O disco do Dream Team do Passinho, lanado em 2015, traz duas canes que

    discutem a heteronormatividade na msica. Batom com batom e Kiss me narram,

    respectivamente, um caso de amor entre duas meninas e o relacionamento entre dois

    meninos. O que Safatle chama de regresso causou nos ltimos dois anos acalorados

    debates no campo do feminismo. Valesca Popozuda, entre outras funkeiras,

    protagonizaram com seu papo-reto-quase-descompromissado e com seus corpos

    descolonizados um embaralhamento do dualismo colonial/moderno.

    Foi tambm em 2015 que a carreira do rapper Rico Dalasam, primeiro gayassumido da cena hip hop, deslanchou. Dalasam fala de amor entre homens, racismo,

    sobre o cotidiano de se saltar sobre o sangue que escorre nas favelas paulistas e,

    principalmente, sobre o que chama defervo. Para Dalasam, o fervo protesto. Em suas

    msicas, ele reconhece que a performatividade tem seu papel subversivo em uma

    sociedade machista e homofbica. A que regresso Safatle se refere ento? De que morte

    ele fala?

    Em 1914, escandalizado com a apresentao do Corta-Jacanos sales

    presidenciais, Rui Barbosa discursou no Congresso Nacional. A dana, sensual para os

    padres da poca, com os danarinos a evolurem de corpos colados, e a msica de

    Chiquinha Gonzaga apavoraram a misso civilizatria que nos queria mais europeus e

    menos africanos. Eis um trecho do acalorado discurso:

    Uma das folhas de ontem estampou em fac-smile o programa de recepo presidencial em que,diante do corpo diplomtico, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam darao pas o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca altura de uma instituio social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar h muito tempo,que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danasselvagens, a irm gmea do batuque, do cateret e do samba. Mas nas recepes presidenciais o

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    corta-jaca executado com todas as honras de msica de Wagner, e no se quer que aconscincia deste pas se revolte, que as nossas faces se enrusbesam e que a mocidade se ria!

    Nossa misria musical vem de longe, podemos perceber. Contaminada

    pelos tambores da dispora negra, a msica popular urbana no Brasil teve a morte

    decretada desde seu nascimento. Felizmente, quem sobrevive no morre fcil.