A Formação Matemática e Didático Pedagógica

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Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n. 18, p. 107-115, junho 2005 A FORMAÇÃO MATEMÁTICA E DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NAS DISCIPLINAS DA LICENCIATURA EM MATEMÁTICA 1 THE MATHEMATICAL AND DIDACTIC-PEDAGOGIC EDUCATION IN DISCIPLINES OF MATHEMATICS TEACHING COURSES Dario FIORENTINI 2 RESUMO O objetivo deste artigo é discutir e problematizar, de um lado, a formação matemática e didático-pedagógica do futuro professor nas diferentes disciplinas do Curso de Licenciatura em Matemática e, de outro, o trabalho docente dos formadores de professores junto aos Cursos de Licenciatura. Tentaremos mostrar e argumentar que, independentemente do modo como são ensinados, ambos os grupos de disciplinas específicas e didático-pedagógicas formam pedagógica e matematicamente o futuro professor. Concluímos este trabalho, apontando como perspectiva de formação e desenvolvimento profissional do futuro professor a vivência, ao longo do curso de licenciatura, de práticas investigativas que problematizem os saberes da docência. Palavras-chave: Formação Inicial de Professores; Licenciatura em Matemática; Conhecimento Profissional. ABSTRACT This article intends to discuss and problematize, on the one hand, the mathematical and didactic-pedagogic knowledge learning in pre-service teacher education and, on the other hand, the teaching work of college math-educators. We will try to show and argue that, independently from the way that they are taught, both mathematics and didactic-pedagogic groups of disciplines teach both pedagogical and mathematical knowledges. As a perspective of education and professional development of future teachers, we end this paper by suggesting inquiry practices which that problematize the professional knowledges, along the pre-service education. Key words: Pre-service Teacher Education; Mathematics Teaching Course; Professional Knowledge. (1) Trabalho apresentado em uma mesa redonda do VII EPEM (SBEM-SP, São Paulo, Junho de 2004) da qual também participou Romulo Lins. (2) Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: [email protected]

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A FORMAÇÃO MATEMÁTICA E DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NASDISCIPLINAS DA LICENCIATURA EM MATEMÁTICA1

THE MATHEMATICAL AND DIDACTIC-PEDAGOGIC EDUCATION INDISCIPLINES OF MATHEMATICS TEACHING COURSES

Dario FIORENTINI2

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir e problematizar, de um lado, a formação matemática e

didático-pedagógica do futuro professor nas diferentes disciplinas do Curso de Licenciatura em

Matemática e, de outro, o trabalho docente dos formadores de professores junto aos Cursos de

Licenciatura. Tentaremos mostrar e argumentar que, independentemente do modo como são

ensinados, ambos os grupos de disciplinas específicas e didático-pedagógicas formam pedagógica

e matematicamente o futuro professor. Concluímos este trabalho, apontando como perspectiva de

formação e desenvolvimento profissional do futuro professor a vivência, ao longo do curso de

licenciatura, de práticas investigativas que problematizem os saberes da docência.

Palavras-chave: Formação Inicial de Professores; Licenciatura em Matemática; Conhecimento

Profissional.

ABSTRACT

This article intends to discuss and problematize, on the one hand, the mathematical and

didactic-pedagogic knowledge learning in pre-service teacher education and, on the other hand, the

teaching work of college math-educators. We will try to show and argue that, independently from the

way that they are taught, both mathematics and didactic-pedagogic groups of disciplines teach both

pedagogical and mathematical knowledges. As a perspective of education and professional

development of future teachers, we end this paper by suggesting inquiry practices which that

problematize the professional knowledges, along the pre-service education.

Key words: Pre-service Teacher Education; Mathematics Teaching Course; Professional Knowledge.

(1) Trabalho apresentado em uma mesa redonda do VII EPEM (SBEM-SP, São Paulo, Junho de 2004) da qual também participouRomulo Lins.

(2) Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: [email protected]

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Introdução

Antes de iniciar uma discussão mais pontualsobre a formação matemática e didático-peda-gógica do futuro professor de Matemática duranteo Curso de Licenciatura, tema central destamesa redonda, gostaria de explicitar o que estouentendendo por didática, pedagogia, conheci-mento matemático escolar e saber docente.

Podemos conceituar Didática como umcampo disciplinar que busca explorar as relaçõesprofessor-aluno-conteúdo - triângulo didático,segundo a Didática Francesa. A Didática, nestesentido, centra foco no processo de ensinar eaprender um determinado conteúdo e, também,no que antecede esta ação - o planejamento deuma boa seqüência - e a sucede - a avaliação doensino e da aprendizagem.

Por outro lado, conceituamos Pedagogiacomo aquele campo disciplinar que se preocupacom o sentido formativo ou educativo do queensinamos e aprendemos. Ou seja, preocupa-secom as conseqüências da ação didática, sobretudoo que esta pode promover em termos de formaçãoe desenvolvimento humano do sujeito, seudesenvolvimento emocional, afetivo, social, cultu-ral, intelectual e cognitivo. A Pedagogia, portanto,governa e vetoriza a ação didática, pois dásentido à ação didática, preocupando-se comquestões tais como: por que, para que e paraquem ensinamos?

Mas, como a formação do indivíduo nãodecorre apenas da relação didática que alunos eprofessores estabelecem com o conteúdo, aPedagogia preocupa-se também com as relaçõesinterpessoais que acontecem nas aulas e nosmomentos e espaços intersticiais das aulas(LARROSA, 1999), isto é, aquele lugar/momentoque acontece entre uma aula e outra, ou nosmomentos considerados de não-ensino, nasconversas e relações no corredor ou durante orecreio, etc. Estas relações dependem principal-mente da organização e da gestão do espaço-tempo de ensino e do contrato didático que cadaprofessor estabelece com os alunos na práticacurricular.

Ou seja, considero a Didática como umaparte da Pedagogia. Enquanto a Didática temrelação mais direta com o conteúdo que se ensi-na e aprende, a Pedagogia vai além dos conteúdos,pois preocupa-se também com as dimensõessócio-afetiva, emocional, pessoal e ética, tendocomo norte a formação de valores e de sujeitosemancipados sócio-politicamente.

Por isso, para contemplar esse duplosentido presente nas disciplinas chamadaspedagógicas, vou chamá-las aqui de DISCIPLI-NAS DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS.

A formação do conhecimentomatemático a partir de diferentesperspectivas

O conhecimento matemático pode serfocalizado a partir de três diferentes perspectivas:da prática científica ou acadêmica; da práticaescolar; e das práticas cotidianas não-formais.Todas essas perspectivas interessam à formaçãodo professor, pois a matemática escolar seconstitui com feição própria mediante um processode interlocução com a matemática científica ecom a matemática produzida/mobilizada nasdiferentes práticas cotidianas. Interessa aoprofessor, principalmente, porque a matemáticaescolar – que é objeto-foco da atividade doprofessor no Ensino Básico – é um conhecimentoque é, ao mesmo tempo, mobilizado e transcriadoou produzido nas relações que se estabelecemno seio escolar. Relações essas que envolvemdisputas ideológicas, políticas e econômicas enegociações sobre quais significados eprocedimentos são válidos, aceitos e reproduzidospelos atores escolares.

Essa concepção de matemática escolarse aproxima, em parte, daquela apresentada porPlínio Moreira e Maria Manuela David (2003),principalmente porque também pressupõe umaruptura tanto com a idéia de Transposição Didáticade Chevallard (1991) - a qual concebe a mate-mática escolar como uma transposição damatemática acadêmica realizada e regulada porespecialistas - quanto à de uma construção

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totalmente endógena à escola, isto é, o sabermatemático escolar se constitui pela/na/para aprópria escola, mantendo independência dasdisciplinas acadêmicas, como observa AndréChervel.

Lee Shulman publicou, em 1986, um artigoque se tornaria referência mundial sobreconhecimentos docentes e que é uma idéiaprecursora dessa concepção de matemáticaescolar. Ao criticar a ênfase dicotômica presentena formação/seleção de professores em torno dedois eixos tradicionais (conhecimento específicoe conhecimento pedagógico), Shulman (1986)introduz um terceiro eixo (conhecimento doconteúdo no ensino), o qual compreende:conhecimento sobre a matéria a ser ensinada;conhecimento didático da matéria; e conheci-mento curricular da matéria. O terceiro eixoconfigura-se, assim, no principal eixo da formaçãodos saberes da docência, pois interliga de formaintencional o saber matemático e os saberesdidático-pedagógicos, incluindo aí também osentido educativo/formativo subjacente à práticaescolar que acontece ao ensinar e aprenderesses conteúdos.

Abrindo um parêntese, a maioria dosconcursos públicos para seleção de professoresde Matemática, até hoje, continuam a privilegiaro domínio dicotômico dos saberes docentesrelativos aos dois primeiros eixos. As provasseletivas geralmente apresentam uma grandelista de questões de domínio conceitual ouprocedimental da Matemática, para seremrespondidas sem que o candidato tenha muitotempo para pensar; e outra lista que avalia odomínio de aspectos pedagógicos gerais.

Essa tendência dicotômica pode serpercebida na prova do último concurso para oprofessor de Matemática do Estado de SãoPaulo, como mostra a análise dessa provarealizada pelo Grupo de Estudo e Pesquisasobre Formação de Professores de Matemáticada FE/Unicamp (NACARATO et al, 2004) e quefoi apresentado no Grupo de discussão sobre as“Expectativas sobre a Formação de Professoresde Matemática: múltiplos olhares e múltiplasdemandas” no VII EPEM. Embora apareçam,

nessa prova, algumas questões relativas aodomínio do saber didático-pedagógico daMatemática, elas representam apenas uma parteínfima, se comparada com aquelas tradicional-mente privilegiadas.

Mas, além disso, há um outro problemaque pode ser expresso pela seguinte pergunta: Oque é saber bem a Matemática para ser professorde Matemática? Ou melhor: que Matemática oprofessor deve saber, para ensiná-la de maneirasignificativa aos jovens e crianças da escolabásica?

Shulman (1986) é enfático ao afirmar quesaber Matemática para ser um matemático nãoé mesma coisa que saber Matemática para serprofessor de Matemática. Ele não defende que olicenciando deva ter uma Matemática inferior oumais simples que o bacharel. Se, para o bacharel,é suficiente ter uma formação técnico-formal daMatemática – também chamada de formaçãosólida da Matemática -, para o futuro professor,isso não basta.

Eu particularmente não gosto do adjetivosólido para qualificar a formação Matemática doprofessor, pois o termo sólido lembra rigidez,densidade e imobilidade; isto é, algo que, por serestruturado, pleno ou não-vazio, é também prontoe acabado. Ou seja, essa adjetivação é própriade uma concepção de Matemática que privilegiao rigor, a precisão e sua consistência lógica.Com isso, livre de contradições, dúvidas, incerte-zas, como é a Matemática real, tanto aquela queacontece em sala de aula quando os jovensestabelecem interlocução com ela, quanto aquelaem processo de criação/produção pelosmatemáticos.

O professor precisa conhecer o processode como se deu historicamente a produção e anegociação de significados em Matemática, bemcomo isso também acontece, guardadas asdevidas proporções, em sala de aula. Alémdisso, precisa conhecer e avaliar potencialidadeseducativas do saber matemático; isso o ajudaráa problematizá-lo e mobilizá-lo da forma que sejamais adequada, tendo em vista a realidade escolaronde atua e os objetivos pedagógicos relativos àformação dos estudantes tanto no que respeita

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ao desenvolvimento intelectual e à possibilidadecompreender e atuar melhor no mundo.

Por isso, para ser professor de Matemáticanão basta ter um domínio conceitual e proce-dimental da Matemática produzida historica-mente. Sobretudo, necessita conhecer seusfundamentos epistemológicos, sua evoluçãohistórica, a relação da Matemática com a reali-dade, seus usos sociais e as diferentes linguagenscom as quais se pode representar ou expressarum conceito matemático.

Portanto, interessa à formação do professornão tanto, segundo Pérez Gómez, uma aborda-gem enciclopédica ou técnico-formal da Matemá-tica, mas, sim, uma abordagem compreensiva -no sentido de poder abarcar seus múltiplosaspectos ou dimensões – que busca explorar acompreensão lógica, epistemológica, semióticae histórica da matéria que ensina. SegundoFiorentini et al (1998, p. 316), esse domíniocompreensivo da matéria:

(...) é fundamental para que o professortenha autonomia intelectual para produzir oseu próprio currículo, constituindo-seefetivamente como mediador entre oconhecimento historicamente produzido eaquele – o escolar reelaborado e relevantesocioculturalmente – a ser apropriado econstruído interativamente pelos alunosem sala de aula.

Nessa abordagem compreensiva daMatemática inclui-se, também, o conhecimentodas diferentes concepções tanto da Matemáticacientífica quanto da escolar, reconhecendo oparadigma ao qual se filiam. Por exemplo:reconhecer que a concepção platônica deMatemática ou o modelo euclidiano de organi-zação e sistematização do conhecimentomatemático, ainda muito presente nas práticasescolares atuais, trazem conseqüênciaspedagógicas que pouco contribuem para aprodução de uma prática pedagógica capaz dedesenvolver a autonomia de pensamento e delinguagem do aluno. Pois, essas concepçõespriorizam um conhecimento pronto, acabado ea-histórico, nada parecido com aquele que

acontece no processo de aprendizagem ou deprodução do conhecimento.

Ampliando o conceito de saber docente

O saber profissional do professor – ousaber docente, como prefiro chamar – entretanto,não se restringe às três categorias (ou eixos)inicialmente apresentadas por Shulman (1986).O próprio Shulman ampliaria, um ano depois,suas categorias, incluindo também os saberesda experiência, os saberes sobre os alunos e seucontexto.

Assim, como mostram as 18 disserta-ções/teses analisadas pelo GEPFPM da Unicampe que tinham como foco de estudo os saberesdocentes, há outras dimensões do saber docente(PASSOS et al, 2004). Ou seja, além da dimensãodo saber acadêmico (veiculado e enfatizado nasdisciplinas da Licenciatura), há também a dimen-são subjetiva (saber ser professor-educador) e adimensão da prática (saber-fazer).

Penso que tanto a formação matemáticaquanto a formação didático-pedagógica aconteceem cada uma dessas três dimensões. É isso quetentarei mostrar a seguir, tomando como foco deanálise as disciplinas matemáticas e pedagó-gicas da Licenciatura em Matemática, aliás,este é o foco central de discussão desta mesa dedois.

A formação pedagógica do professornas disciplinas matemáticas

A maioria dos professores de Cálculo, deÁlgebra, de Análise de Topologia etc. acreditaque ensina apenas conceitos e procedimentosmatemáticos. Embora alguns professores tenhamconsciência e busquem deliberadamente desen-volver uma prática que reproduza ou cultive suascrenças e valores, outros – e provavelmente emmaior número – não percebem que, além daMatemática, ensinam também um jeito de serpessoa e professor, isto é, um modo de concebere estabelecer relação com o mundo e com a

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Matemática e seu ensino. Ou seja, há um currículooculto3 subjacente à ação pedagógica desseprofessor, pois ele ensina muito mais do quepensa estar ensinando. O futuro professor nãoaprende dele apenas uma Matemática, internalizatambém um modo de concebê-la e de tratá-la eavaliar sua aprendizagem.

Algumas pesquisas têm mostrado, segun-do estudos de Zeichner e Gore (1990) nos EUAe Camargo (1998) no Brasil, que as disciplinasespecíficas influenciam mais a prática do futuroprofessor do que as didático-pedagógicas, sobre-tudo porque as primeiras geralmente reforçamprocedimentos internalizados durante o processoanterior de escolarização e as prescrições erecomendações das segundas “têm poucainfluência em suas práticas posteriores”. Umadas razões disso é o fato de as disciplinasdidático-pedagógicas, muitas vezes, seremfortemente prescritivas – dizendo como o professordeve ensinar, de acordo com um modelo ideal deensino - ou limitarem-se a promover críticas depráticas vigentes sem que os futuros professorestenham oportunidade de experienciá-las eproblematizá-las em contextos de prática. Assim,na hora de iniciar a docência na escola, tendema mobilizar aqueles modos de ensinar e aprenderMatemática que foi internalizado durante aformação escolar ou acadêmica do futuroprofessor.

Tardif (2002, p.20) diz que os futurosprofessores, antes mesmo de ensinar, vivem nassalas de aulas e nas escolas – e, portanto, emseu futuro local de trabalho – durante 16 anos (ouseja, em torno de 15.000 horas), o processo deensinar e aprender. Essa imersão prática énecessariamente formadora, pois levam os futurosprofessores a adquirirem crenças, valores, repre-sentações e certezas sobre a prática do ofício deprofessor, bem como sobre como ser aluno.Mesmo aquelas práticas docentes criticadas,acabam, de certa forma, sendo inconsciente-mente internalizadas e parcialmente repro-

duzidas, pois o aluno, para poder obter êxito nadisciplina, deve se sujeitar àquela forma de ensinare aprender. É assim que se constitui a tradiçãopedagógica, a qual, apesar dos avanços daspesquisas em Educação Matemática, tem feitocom que as práticas escolares pouco pareçamevoluir. Esse saber da tradição escolar, herdadoda experiência escolar anterior, é muito forte epersiste através do tempo e a formação univer-sitária não tem conseguido transformá-lo e nemabalá-lo.

Visto dessa perspectiva o problema daformação incidental ou ambiental do professor,podemos afirmar que as disciplinas matemáticasformam também pedagogicamente o professor.Ou seja, podem contribuir para uma formaçãoque tenda a perpetuar a tradição pedagógica, nasquais o aluno é basicamente um ouvinte daspreleções do professor, devendo acompanhartodos os raciocínios e passos dados peloprofessor e, depois, treinar e internalizar aquelesprocedimentos através de uma lista enorme deexercícios.

Nesse contexto da tradição pedagógica, oconceito de uma aula didaticamente perfeita éaquela, cujo contrato didático prevê que oprofessor apresente e conduza a aula e osraciocínios de forma clara, lógica e mais precisapossível, cabendo aos alunos acompanharem,fixarem os ensinamentos através de exercíciosrepetitivos e devolvê-los depois na prova.

O formador de professores, conscientedessa formação implícita ou ambiental do pro-fessor e frente ao desafio de formar professoresde Matemática capazes de promover aprendi-zagens significativas a seus alunos, tentaráimplementar outros modelos didáticos de ensinodas disciplinas específicas de Matemática. Umaalternativa seria, como vem acontecendo comalguns educadores matemáticos, promoveratividades exploratórias e problematizadoras das

(3) Giroux (1986, p. 89), ao falar do currículo implícito ou oculto nas práticas educativas, diz que “a natureza da pedagogia escolardeveria ser encontrada não apenas nas finalidades expressas das justificativas escolares e dos objetivos preparados peloprofessor, mas também na miríade de crenças e valores transmitidos tacitamente através de relações sociais e rotinas quecaracterizam o dia-a-dia da experiência escolar”.

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dimensões conceituais, procedimentais, episte-mológicas e históricas dos saberes matemáticosde disciplinas como Álgebra, Geometria, Cálculo,Análise, etc, de modo que o aluno se constituaem sujeito de conhecimento, isto é, no principalprotagonista do processo de aprender.

Há múltiplas formas de se realizar esse tipode prática pedagógica. Por exemplo, o professorpode lançar mão, na prática universitária, deinvestigações matemáticas em sala de aula, dedesenvolvimento em projetos de modelagemmatemática, baseados na metodologia de proje-tos, como fazem, por exemplo, alguns professoresdo IMECC (Instituto de Matemática da Unicamp),cujas experiências o leitor poderá encontrar naRevista Zetetiké. Pode também promoverseminários de estudos temáticos ou de estudoda evolução histórica dos conceitos que estãosendo estudados.

Se, de um lado, pode haver uma perda emrelação à sistematização e formalização rigorosados conceitos matemáticos a serem ensinadose aprendidos, de outro, o futuro professor viveráum ambiente rico em produção e negociação designificados, aproximando-se, assim, domovimento de elaboração/construção do sabermatemático.

Reafirmo que essa forma de viver a Mate-mática contribui não apenas para uma apropriaçãocompreensiva e histórico-crítica da Matemática,mas, também, ajuda a formar didático-pedagogi-camente o professor, pois o futuro professor, aoexperienciar, no sentido de Larrosa (1996), formasdinâmicas e significativas de aprender Mate-mática, transforma-se durante o processo expe-riencial. Poderíamos comparar esse processoformativo como uma viagem – algo semelhanteao que experienciou Che Guevara, e que foiretratado no filme “Diários de Motocicleta”. Se elenão tivesse realizado a viagem que fez pelaAmérica Latina, certamente não teria sido orevolucionário que se tornou. São experiênciassemelhantes a essas que podem efetivamenteromper com a reprodução da tradição pedagógicado ensino da Matemática.

A formação matemática nas disciplinasdidático-pedagógicas

As disciplinas didático-pedagógicas, porterem como foco de estudo as práticas de ensinoe, sobretudo, o processo de ensinar e aprenderMatemática nos diversos contextos de práticaescolar, podem não apenas contribuir para aformação didático-pedagógica do futuro professor.Elas podem, também, contribuir para alterar avisão e a concepção de Matemática, principal-mente se o foco passa a ser não mais o conheci-mento pronto e acabado, como geralmente apare-ce em alguns manuais didáticos, mas, o saberem movimento em seu processo de significaçãoe elaboração, tendo a linguagem simbólica comomediadora desse processo de significação. Osaber matemático passa a ser visto como umsaber sócio-cultural que é produzido nas relaçõese práticas sociais, e pode expressar-se de múlti-plas formas, sendo uma delas a forma acadêmicaformal.

Estas disciplinas, dependendo do modocomo são desenvolvidas, podem, também, ajudara re-significar conceitos e procedimentos mate-máticos adquiridos durante o processo deescolarização, sobretudo se este foi marcadopela tradição pedagógica. Essa re-significação,entretanto, é potencializada quando for tomadacomo objeto de estudo e problematização osconceitos e procedimentos que cada um traz deseu processo de escolarização, sobre determi-nado tópico da matemática escolar. Por exemplo:como cada licenciando pensa introduzir, na práticaescolar, o conceito de equação ou promover ainiciação ao desenvolvimento da linguagem e dopensamento algébricos.

Esses preconceitos trazidos pelos futurosprofessores podem ser tomados como objeto deanálise e discussão de toda a classe. Tais dis-cussões são geralmente muito ricas e evidenciamque, apesar de todo o domínio já adquirido deMatemática formal, desconhecem aspectosfundamentais e básicos da Matemática escolar.Por exemplo, no conceito de equação, algunsalunos não consideram como fundamental naconstituição deste conceito o sentido de igualda-

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de. Muitos deles têm apresentado, por vezes, osentido de igualdade associado apenas aoconceito de equilíbrio de uma balança. O conceitode ângulo é também um conceito que os futurosprofessores têm associado à área ou à distânciaentre duas semi-retas concorrentes, e, inclusive,alguns o delimitam como região próxima aovértice. Alguns possuem um conceito de ângulorígido e estritamente euclidiano, excluindosignificações como inclinação, abertura, mudançade orientação ou parte de uma rotação. Assim,também em relação ao conceito de área eperímetro, não considerando, às vezes, a possi-bilidade de existência de perímetros internos, nocaso de figuras vazadas.

Uma outra forma de contribuir para aformação matemática nas disciplinas didáti-co-pedagógicas – e que venho utilizando comfreqüência – é analisar e discutir episódios reaisde sala de aula. Seja através de vídeos de aulasseja através de episódios ou narrativas de aulas,que podem ser extraídas de relatórios de pesquisasobre a prática, do diário de campo do própriolicenciando quando for fazer observações nasescolas e, principalmente, quando trouxeremrelatos sobre a própria prática docente, durantea fase de estágio de regência de classe. Segundoresultados de minhas pesquisas e experiências,esta forma investigativa e de reflexão compar-tilhada sobre a prática, em colaboração comoutros licenciandos e professores, tem semostrado muito eficiente para desencadear umprocesso efetivo de desenvolvimento profissionaldo professor aprendiz, sendo capaz de promovermudanças radicais na prática docente de cadaum.

Eu diria, além disso, que as disciplinasdidático-pedagógicas, por centrarem foco nasrelações e interações das práticas escolares,promovem processos metacognitivos (isto é,tomadas de conhecimento sobre o próprioprocesso de aprender a ensinar) ou metareflexivos(relativos à reflexão e análise do próprio processode refletir em ação, durante suas aulas),contribuindo, assim, para produzir outros sentidospara o saber matemático. Sentido esse quepassa a ser concebido não como um conheci-

mento em si, mas, no sentido de Charlot (2000),como um saber de relação consigo mesmo, como outro – os alunos da escola ou os colegas comos quais compartilha experiências e saberes – ecom as outras disciplinas escolares.

É a apropriação dessa dimensão relacionaldo saber matemático que pode tornar o futuroprofessor um profissional bem sucedido oucompetente nos diversos contextos escolares, efalo especialmente naqueles relativos às escolaspúblicas de periferia. Realidade para a qual nãohá uma receita de como formar o professor.Nestes casos, para cada contexto de prática, oprofessor é desafiado a construir uma metodologiade ensino que melhor se adapte àquele contexto.Isso exige que a Licenciatura forme o professorcom autonomia e competência para produzir emobilizar saberes matemáticos adequados epossíveis a estes contextos. Isso exige a formaçãode um profissional reflexivo e pesquisador de suaprópria prática.

Em síntese, vir a ser professor é umprocesso permanente e sempre inacabado, comodiz Paulo Freire (1997). Por isso, a Licenciaturaprecisa ser vista como um porto de passagem ede iniciação ao processo de investigar a práticapedagógica em Matemática, condição funda-mental para promover sua autonomia profissionale seu próprio desenvolvimento profissional aolongo da carreira.

Para concluir

Tentamos mostrar neste texto que tanto oprofessor das disciplinas matemáticas quanto oprofessor das disciplinas didático-pedagógicasda licenciatura em Matemática contribuem, aseu modo, para a formação matemática e para aformação didático-pedagógica do futuro professor.

Entretanto, o que tem acontecido é que osformadores de professores que ministram taisdisciplinas geralmente não têm consciência deque participam dessa dupla – e eu diria múlti-pla – formação do futuro professor. Esse fato nosremete a defender que essa dupla/múltipla funçãodo formador seja reconhecida por todos e

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assumida como uma função fundamental àformação do futuro professor. Isso, de certaforma, nos obriga, enquanto formadores deprofessores de Matemática – matemáticos oueducadores matemáticos – a desenvolver estu-dos, tanto em relação aos processos didático-pedagógicos do ensino e da aprendizagem daMatemática, quanto em relação à ampliação desua cultura matemática sob uma perspectivacompreensiva, envolvendo aspectos históricos eepistemológicos deste campo de conhecimento.

Em suma, penso que a problemática aquiabordada aponta para a necessidade do formadorde professores de Matemática constituir-se umprofissional com características de formador-pesquisador que assume a docência como funçãoprincipal de seu trabalho na universidade e busquedesenvolver pesquisas que dêem o suportenecessário para a realização e desenvolvimentodessa função.

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