A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos...

7
A IIELETRONIZAÇÃO" DOS IISONHOS" Maria Meirice Pereira de Sousa' RESUMO o texto reflete as recentes mudanças no padrão político dos governos do Ceará (Tasso Jereissati - 1987/1990 e Ciro Gomes - 1991/ 1995) com o investimento na tecnologia dos videos com alto padrão de qualidade, baseados no cotidiano das classes populares e tratando- as como "ben efici árias " dos projetos associativos administrados via parceria povo/ governo. ABSTRACT The paper deals with recent changes in politi- cal patterns as revealed by government of the state of Ceara (Tasso Jereissati - 1987/1990 and Ciro Gomes - 1991/1995) which invested heavily on high quality video technology, having as its base the daily struggle of popular classes to organize, and showing them as beneficiaries of joint projects that were advanced by means of partnership people/government. INTRODUÇÃO As características da relação Estado e Movi- mentos Populares no período em que o cenário político do Ceará foi dominado pelos sucessivos governos dos "coronéis urbanos" tornaram-se mais visíveis após 1986, com a ascensão do grupo político composto por jovens empresários ligados ao Centro Industrial do Ceará - CIC, e mais precisamente com a eleição de Tasso Jereissati estre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. =n ocaçãoem Debate - Fortaleza - ANO J 9 - N° 34 - J 997 - p. 78-84 ao governo do Estado, quando o discurso governamental passou a dar ênfase à participação popular e à renovação da mentalidade pública vigente até então, o que foi veiculado através de discursos, documentos e inclusive de um enorme investimento em publicidade, posto em prática pelos governos que se auto-denominaram Governos das Mudanças (Tasso Jereissati/1987-1990 e Ciro GomesI1991-1995), gerando depoimentos nos bairros que exprimiram muito bem a absorção desta lógica. A princípio, isso pode ser sintetizado num deles, de teor bastante significativo, pronunciado por uma líder comunitária, em reunião ocorrida no Bairro Granja Portugal, localizado na periferia urbana de Fortaleza, numa associação de moradores onde houve forte ingerência de recursos fmanceiros oriundos de programas governamentais: A gente, agora, está fazendo papel de governo (Líder comunitária). Ele denotou outro convívio com o Estado, apontando um perfil diferenciado do que se conhecia enquanto representante dos movimentos populares ao afirmar atribuições, segundo uma funcionalidade "estranha", pois oriunda do convívio com os programas participativos, e imersa numa outra temporalidade, a do discurso da participação, conforme determinada pelo Estado, o "outro" de uma relação anterior onde os movimentos populares apregoariam uma contraposição radical dos objetivos de ambos. De fato, algumas modificações na dinâmica de interação dos movimentos populares com o Estado sina- lizavam, neste momento, um perfil de "domesticação" ou espaço de legitimação dos movimentos pelo Estado via interação propiciada em sua recente política social. Através dela, o Estado apareceu de forma mais nítida, desenvolvendo programas sociais sob uma ótica mais planejada e, de sua estratégia de relacionamento

Transcript of A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos...

Page 1: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

A IIELETRONIZAÇÃO" DOS IISONHOS"

Maria Meirice Pereira de Sousa'

RESUMO

o texto reflete as recentes mudanças nopadrão político dos governos do Ceará (TassoJereissati - 1987/1990 e Ciro Gomes - 1991/1995) com o investimento na tecnologia dosvideos com alto padrão de qualidade, baseadosno cotidiano das classes populares e tratando-as como "ben efici árias " dos projetosassociativos administrados via parceria povo/governo.

ABSTRACT

The paper deals with recent changes in politi-cal patterns as revealed by government of the state ofCeara (Tasso Jereissati - 1987/1990 and Ciro Gomes- 1991/1995) which invested heavily on high qualityvideo technology, having as its base the daily struggleof popular classes to organize, and showing them asbeneficiaries of joint projects that were advanced bymeans of partnership people/government.

INTRODUÇÃO

As características da relação Estado e Movi-mentos Populares no período em que o cenário políticodo Ceará foi dominado pelos sucessivos governos dos"coronéis urbanos" tornaram-se mais visíveis após 1986,com a ascensão do grupo político composto por jovensempresários ligados ao Centro Industrial do Ceará - CIC,e mais precisamente com a eleição de Tasso Jereissati

estre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.

=n ocaçãoem Debate - Fortaleza -ANO J 9 - N° 34 - J 997 - p. 78-84

ao governo do Estado, quando o discurso governamentalpassou a dar ênfase à participação popular e à renovaçãoda mentalidade pública vigente até então, o que foiveiculado através de discursos, documentos e inclusivede um enorme investimento em publicidade, posto emprática pelos governos que se auto-denominaramGovernos das Mudanças (Tasso Jereissati/1987-1990e Ciro GomesI1991-1995), gerando depoimentos nosbairros que exprimiram muito bem a absorção desta lógica.

A princípio, isso pode ser sintetizado num deles,de teor bastante significativo, pronunciado por uma lídercomunitária, em reunião ocorrida no Bairro GranjaPortugal, localizado na periferia urbana de Fortaleza,numa associação de moradores onde houve forteingerência de recursos fmanceiros oriundos de programasgovernamentais:

A gente, agora, está fazendo papel degoverno (Líder comunitária).

Ele denotou outro convívio com o Estado,apontando um perfil diferenciado do que se conheciaenquanto representante dos movimentos populares aoafirmar atribuições, segundo uma funcionalidade"estranha", pois oriunda do convívio com os programasparticipativos, e imersa numa outra temporalidade, a dodiscurso da participação, conforme determinada peloEstado, o "outro" de uma relação anterior onde osmovimentos populares apregoariam uma contraposiçãoradical dos objetivos de ambos.

De fato, algumas modificações na dinâmica deinteração dos movimentos populares com o Estado sina-lizavam, neste momento, um perfil de "domesticação"ou espaço de legitimação dos movimentos pelo Estadovia interação propiciada em sua recente política social.

Através dela, o Estado apareceu de forma maisnítida, desenvolvendo programas sociais sob uma óticamais planejada e, de sua estratégia de relacionamento

Page 2: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

com os sujeitos sociais emergentes da sociedade civil,surgiram inclusive lideranças articuladas às referidaspolíticas governamentais que se colocaram simultanea-mente como seus porta-vozes e dos movimentos debairro".

Para caracterizar o Estado do Ceará nas gestõesgovernamentais de Tasso Jereissati (1987-1990) e CiroGomes (1991-1995), faz-se necessário identificar duasconjunturas em nível local: a primeira, de 1979/85,compreende a administração Virgílio Távora e os doisprimeiros anos da gestão Gonzaga Mota, com apredominância de um padrão tecnocrático e autoritário naexecução das políticas sociais e na relação do Estado comos setores populares, marcada pelos dilemas com aproblemática habitacional, e assinalando diretrizes voltadaspara o desfavelamento urbano através do exercício dodesenvolvimento de comunidade' enquanto processo deremoção, transferência e readaptação de moradores, numcontexto em que a problemática urbana ficou mais evidentecom o acirramento dos conflitos em áreas de ocupação,passando a exigir uma tomada de posição dos governantesfrente à visibilidade assumida pelas disputas.

A segunda tem como marco inicial o rompimentodo governador Gonzaga Mota com o governo Figueiredo,sua participação na Campanha das Diretas e o apoio àcandidatura Tancredo Neves caracterizando a emergênciade um novo padrão de relações entre Estado e MovimentosSociais, através das estratégias participativas.

Assim nos deparamos com formatos distintospara a política social no Estado cearense numa confluênciade acontecimentos, ora no âmbito do acirramento dosconflitos entre movimentos populares e Estado, ora nasdisputas políticas pelo poder local.

Ao lidarmos com outra conjuntura política,percebemos que, além do discurso dos governantes,modificaram-se os padrões de mediação institucional eas estratégias de utilização de imagens, onde oaparecimento de líderes populares, afirmando asmelhorias propiciadas pela política social vigente,garantiu aos governos em questão uma visibilidade paraas "mudanças" apregoadas.

2 Tratamos mais detidamente do surgimento de programas decunho participativo, propiciando a existência de técnicosgovernamentais imbuídos do discurso da participação, e dasinfluências sobre o processo de construção de liderançasconstituindo-Ihes um perfil paradoxal de gerentes e/ourepresentantes, em SOUSA, Ma. Meirice Pereira de. Cenas deum "encontro". Dissertação de Mestrado, Fortaleza:UFC.

3 GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. 11 PLAMEG -Diagnóstico e Programação - 1979/83. Governo VirgílioTávora, 1983.

Outrossim, a realidade contemporânea apre-senta uma combinação bastante rica de práticas eexperiências culturais diante das quais nos deparamoscom uma estreita vinculação entre o tradicional e omoderno. E, embora a situação cultural contemporâneaseja mais complexa do que o quadro que oraapresentamos, há mais um agravante: a condição pós-moderna, sinalizando modificações na produção e noconsumo da cultura, bem como nas práticas cotidianas,também decorrentes do aprofundamento da moder-nidade, ou ainda, como nos diz BELLONI (1994), dapossibilidade de uma mutação antropológica de grandealcance nos sujeitos que convivem nessa era in-formatizada.

Neste contexto, as imagens tornaram-semercadorias (BAUDRILLARD, 1986), tendo quedesempenhar outras funções. A política passou, então, avalorizá-Ias como componentes de sua aura de autori-dade e poder. Por isso, a produção e o consumo dessasimagens exigiram sofisticação para obter reconhecimentoe para eliminar a "concorrência" política.

Assim sendo, poderíamos inferir que assimulações, enquanto réplicas bastante aproximadasda perfeição, aparências de realidade porquepossuidoras de disfarces, determinam um papelpoderosíssimo à mídia, no tocante à constituição de"novas'" identidades políticas. Empilham-se imagens,eclética e simultaneamente, na tela da TV,transformando-as em simulacros de ambientesindistinguíveis do original, compondo uma síntese detemas e personagens efêmeros.

Tratar do relacionamento comunicação e política,cujo principal instrumento mediador foi a televisão setraduz num caminho repleto de controvérsias, mas asquestões daí emergentes permitem exercitar umaconfluência temática, senão inquietante, pelo menossugestiva.

1 OS COMERCIAIS DAIIGERAÇÃOcEARÁ ELHOR"

As recentes mudanças no padrão político dosgovernos do Ceará (décadas de 80/90) assinalaram autilização da tecnologia do vídeo com alto padrão dequalidade, evidenciando a propaganda como instrumento

• O termo entre aspas traz implícita uma compreensão deidentidade como um referencial ambíguo o qual sofrereelaborações e não inovações por completo.

Educação em Debate- Fortaleza -ANO 19 - N° 34 - 1997 - p. 78-84 79

Page 3: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

político. Assistimos, diariamente, a depoimentos cujacaracterística de repetição se fez perceber assentada ematitudes do cotidiano das classes populares' .

Numa tentativa de exposição sucinta destescomerciais, vejamos: (Narrador) "Esta é Dona fulana,residente no bairro tal, costureira. Uma das milhares debeneficiados pelos recursos do Governo do Estado,destinados ao incentivo das atividades produtivas e àmelhoria da qualidade de vida do povo do Ceará.Governo das mudanças: construindo o Ceará melhor!"(A narração tem as imagens do cotidiano da personagemcomo cenário e é entrecortada por depoimentos damesma confirmando os benefícios recebidos, asmodificações qualitativas e quantitativas por elespropiciadas e, de forma enfática e espontânea, atransformação operada em sua vida e na dos moradorespela gestão Tasso Jereissati). Nos comerciais veiculadosna gestão posterior (Ciro Gomes) acrescenta-se algoao conteúdo destas imagens. Substitui-se o final anteriorpor: "O Ceará mudou: Geração Ceará Melhor", dandoidéia de continuidade do "projeto mudancista" propostona gestão que a antecedeu" .

Os comerciais da Geração Ceará Melhor("slogan" que passou a nomear o poder público esta-dual) apresentaram imagens de comunidades beneficia-das por recursos oriundos do Estado, via programassociais de cunho participativo, onde moradores e líderespopulares foram personagens de uma rede de "beneficia-dos" pelos projetos encaminhados mediante a parceriapovo/governo.

Estes governos veicularam uma vasta campanhapublicitária na qual os anseios populares por justiça socialforam transformados num projeto "novo" e "demo-crático", cujo envolvimento com o "resgate da cidadania"(GOVERNO DO CEARÁ, 1987) se expressou através

5 No período em questão, foi produzida a novela "Tropicaliente"pela Rede Globo com ajuda financeira proveniente do governodo Estado, segundo informações veiculadas pela imprensa.Embora este fato seja comumente apontado como uminvestimento em propaganda pelo mesmo, optamos pela análisedos comerciais porque sua característica de repetição, formade investimento e veiculação assim permitiu caracterizá-los,Também, enquanto denominados "prestação de contas àpopulação cearense", a qualidade técnica e o evidentedirecionamento ideológico dos mesmos distinguiram e tomarammarcante o relacionamento população e governo na realidadelocal.

6 Ao utilizarmos o termo mudancista, não estabelecemos, porisso, uma conotação pejorativa, nem tampouco queremos afirmarque houve efetivamente as mudanças apregoadas. Apenas

dimos a uma expressão amplamente mencionada pela

::o cação em Debate - Fortaleza -ANO 19 - N" 34 - 1997 - p. 78-84

dos "slogans" definidores destas gestões ("Construindoo Ceará Melhor", "Governo das Mudanças", "O CearáMudou") e "trajes" de imagens, apresentadas na TV,como fotografias da realidade cearense.

Houve a exibição constante desta "fotografia",onde, ao invés de política "ao vivo", assistimos às corese veracidades possíveis de serem obtidas em gravaçõese montagens. Para isso, reestruturou-se um certonúmero de elementos fornecidos pela realidade, com-pondo, em vídeo, não a realidade própria, mas umsimulacro da mesma ou uma hiper-realidade(BAUDRILLARD, 1986).

O aperfeiçoamento deste "padrão de qua-lidade" se fez notar na sucessiva eleição de Ciro Gomes(em 1990, para o exercício do mandato 1991-1995) ena transposição de Tasso Jereissati, reeleito governadordo Ceará em 1995, do cenário regional ao nacional,em liderança significativa do Partido da SocialDemocracia Brasileira - PSDB. E o Ceará chegou aorestante do país. Pudemos observar o simulacro,permitindo o convencimento, ao percebermos a"realidade" cearense exposta como uma "tela gigante".Os programas do mencionado partido político(campanha presidencial de 1994), projetadosnacionalmente, foram significativos deste fenômenoquando apresentaram o referido Estado como uma"Ilha da Prosperidade".

Fortaleza, outrora palco de inúmeras mobili-zações em prol da garantia dos serviços públicosbásicos, pareceu o recorte de um realismo, quaseharmônico: "o Ceará que mudou". E a TV ali estavacomprovando que o atendimento oriundo das solicita-ções dirigidas ao governo propiciava melhorias.Parecia tratar-se agora de gestões qualitativamentediferentes, porque dispostas ao diálogo e à parceria

imprensa local para referir-se ao período governamentalcompreendido pelas duas administrações que se auto-intitularamgovernos das mudanças (gestão Tasso Ribeiro Jereissati - 1987/1990 e Ciro Ferreira Gomes - 1991/1995). O termo foi bastanteutilizado para fazer referência à postura assumida pelosgovernantes do período em questão, como oposição ao que poreles mesmos foi apontado como" velho" enquanto inerente àspráticas políticas dos governantes anteriores. Segundo suapostura, modernizar diria respeito a uma "roupagem" distintado que fora o poder político anteriormente, desempenhado pelos"coronéis" da política local, acrescido da capacidade dedesenvolvimento das condições materiais da sociedadecearense. Os mesmos deram muita ênfase à possibilidade detornarem a administração pública estadual, em suas gestões,um agente propulsor do processo de modernização viatransformação estrutural da economia.

Page 4: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

com as comunidades e capazes de responder acontento a reivindicações.

A partir de então, as formas políticas anteriores(não apenas o coronelismo, como também a clássicaatuação da militância de esquerda), perderam grada-tivamente sua influência diante da significação assumidapelas produções veiculadas pela TV, as quais colocarama população em contato direto com a grande "verdade":"O Ceará Mudou".

Z A PUBLICIDADE NA TV

O fenômeno que articula política e mídiacristalizou-se, a partir de meados da década de 80, comas eleições diretas para prefeituras de capitais e governosde Estado, quando os efeitos da utilização de técnicas demarketing nas campanhas eleitorais e a associação aoscódigos de televisão se fizeram claramente perceptíveis,intercalando o próprio conteúdo das práticas políticasconvencionais.

A política, como se configurara na modernidade,enquanto ampliada e hegemônica, passara a exigir umaatividade de realizações no âmbito público sob o riscode que outras formas de sociabilidade, em meio àscontradições e conflitos que marcam a sociedade, etambém capazes de alcançar sua dimensão pública,colocassem em xeque o seu percurso, exigindorealizações concretas.

O lugar da política, mediante as transformaçõesocorridas buscou dar conta destas mudanças, formando,o fenômeno da "mediatização da política" (MASC,1994: 192). Observa-se, a partir da cristalização de umacultura midiática, um outro lugar de construção dopolítico onde ocorre o predomínio da condição deplatéia. O lugar da praça, se não é destruído, ficaclaramente constrangido pelos limites da central idadealcançada pelos meios de comunicação de massa noconjunto das práticas políticas (idem).

Assim a política, para atender a tais condicio-nantes, passa a reter o "fato" político via mídia, paraviabilizar suas possibilidades de trânsito no nível públicoda sociedade. Com' o( s) vídeo( s) é possível eternizarexperiências importantes vivenciadas nas lutaspopulares, alternando individualidades, coletividades emoldando imagens sociais, sintetizando-os sob temas,personagens e cenários, ou seja, conformando-ospoliticamente.

Como a mediatização não é apenas o usufrutoinstrumental de canais para a difusão de ideários políticos,

nem para a construção organizativa, os meios decomunicação, principalmente a TV, tornaram-se osprincipais interventores nos espaços tradicionalmentelegitimados como lugares clássicos da política.

Assim, os investimentos para assegurar ganhoseleitorais foram redefinidos. Walter Benjamin, quandotrabalha a obra de arte, nos fornece pistas fecundas, asquais, por analogia, ousamos estender à política enquanto"bem" cultural.

Para BENJAMIN (1985), a concepção tradicio-nal de arte é estremecida quando sua reprodução se dápela mediação da técnica, e não pelo trabalho humanode imitação. A reprodução técnica destrói a "aura" daobra de arte, o que a tomava alvo de admiração. Assim,a autenticidade perde o sentido, pois o limite entre ooriginal e a cópia dá "autonomia" à segunda, porque atécnica acelera o alcance de resultados que abalam aautenticidade do real. O autor destaca o cinema comoarte que por excelência sintetiza a ruptura da autoridadedo real porque abre perspectivas para exibição do nossoinconsciente.

Aqui, destacaríamos a utilização da televisão -pois, via "telinha", pudemos perceber, também, umaquebra no alcance da visibilidade do real, a qual ficoudemarcada numa sobreposição da publicidade aosdesníveis socioeconômicos da realidade cearense -contrapondo-se ao padrão político em vigor ante-riormente.

Pela publicidade há um processo de construçãoe reconstrução como num espelho deformado onde aimagem do lado do vídeo é muito melhor que a do real.Desse modo, não apenas vende produtos mas demonstramodelos a serem seguidos. Ela apresenta padrõescomportamentais e dita regras de reconhecimento evalorização social. A publicidade na sociedade industrialcapitalista funciona como um reforço das ideologias, davalorização das aparências, da promoção de status,reforçando tendências disfarçadas da cultura. Elaconfirma distinções reproduzindo a própria cultura, repletade desigualdades.

No contexto em vigor, essa função exercida pelapublicidade, transportou para o ídeo valores e desejosancorados na cultura e, por isso, consumidos pelaspopulações nos bairros. Ela agiu sobre as necessidadessociais, principalmente aumentando as investi das sobreas necessidades simbólicas. Desse modo, aquele que nãose enquadrasse no modelo imposto pareceriamarginalizado e tenderia, por isso, a render-se a taisimperati os.

A repetição de imagens, que reprocessaramtradições do movimento popular, apareceram atraves-

Educação em Debate - Fortaleza -ANO J 9 - N° 34 - J 997 - p. 78-84 I 8 1

Page 5: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

sadas por inversões onde os "lugares" do que depõe novídeo e o do ouvinte ficaram aprisionados num modelosociotecnológico, até mesmo por desmontagens: era umahistória diferente em cada caso, o que dava a impressão deque as peculiaridades desta ou daquela comunidade nãoimportavam como coletivo, quando, em sua trajetória, osmovimentos populares, constroem um imaginário decomunidade (DURHAM, 1984) o qual busca demonstrarjustamente o contrário, não evidenciando conflitos, senãoem momentos de refluxo dos mesmos.

Vale lembrar, aqui, a prática de produção devídeos pelos movimentos populares de bairro,notadamente pelas Comunidades Eclesiais de Base -CEB's. Importava gravar momentos e eventossignificativos para a luta comunitária. O vídeo funcionariacomo instrumento de organização, pois tratava-se deutilizá-Io como material de educação política e, dentreoutros alcances interpretativos, dar o sentido de evitarque os "políticos" conseguissem ludibriar as comunidadescom sua versão dos fatos.

Como as imagens congelam e cristalizam opresente, o (s) vídeo (s) possibilitaria eternizar experiênciasimportantes vivenciadas nas lutas populares.

Porém, nos comerciais da Geração CearáMelhor, vimos, inclusive, lideranças populares,anteriormente posicionadas em contraposição à esferacentralizada de poder, o Estado, depondo em favor domesmo. Assim, os elementos culturais foram como quemisturados "inadequadamente" com outros pela vivênciaem outros lugares, no caso as políticas sociais de caráterparticipativo, chegando a gerar um lugar ambíguo comoa possibilidade de localizar algumas destas lideranças nestarealidade, na anterior, ou "deslocadas", vivenciando umpertencer tanto a uma como a outra, agora em vigor.

Por conseguinte, é possível dizer que tambémos moradores, os liderados, ficaram sem a localizaçãoexata do discurso reivindicatório. A TV parece terquebrado a identidade cultural, à medida que recolheu"produtos" de seus lugares de origem e os multiplicou,transmitindo a milhares de outras. Entretanto,projetando formas atraentes, o design dos vídeosveiculados pela TV embelezou o cotidiano, cujosobjetos viraram informações estéticas como se fossem,agora, iscas de sedução. O discurso tradicional domovimento de bairro foi traduzido para a sociedade,enquanto grande platéia sob o predomínio de umatransformação imagética.

O resultado, a troca de cenários e atores, interferena formação de propostas e na conjunção de interessesna ida cotidiana dos bairros: surge o enfraquecimentodas militâncias e do trabalho educativo, a redução do

Ed ocação em Debale - FMaIeza -mo 19 - N" 34 - 1997 - p. 78-84

proselitismo direto, o abandono da inserção nestesespaços, entre outros efeitos.

Outrossim, comparando novamente a televisãocom um espelho da realidade, percebemos que na TV ascoisas funcionam como num espelho invertido. Enquantono espelho observam-se defeitos que não se gostaria deter ou ver, ansiando a chegada do "lado bom", na TV onegativo aparece como oposição ao estado harmoniosodos fatos, como contraponto da situação almejada.

No caso das gestões mudancistas, a "aura" dospersonagens (líderes comunitários e moradores dosbairros de Fortaleza) se dissipa,já que tornaram-se figuraspermutáveis num jogo de imagens adaptáveis aoimaginário da população que assiste ao espetáculo dapolítica cearense.

A realidade é transposta, através da montagemde fragmentos, para a hiper-realidade que assume uma"visibilidade" diferenciada do vivido em dimensão equalidade. As câmeras focalizam cenas nos bairros, nasruas, nas casas, nos grupos, produzindo imagens maisexpressivas, dificultando a percepção dos critérios deverdade dos acontecimentos porque eles, agora, podemser reproduzidos e virar notícias.

A "reprodutibilidade técnica" produz seusconsumidores específicos (as massas), fazendo com queos fatos e as coisas tornem-se mais próximos, dominando-os através de sua imagem.

Para garantir sua eficiência, a técnica exige queo imaginário coletivo seja revolvido, a fim de que aimagem atinja ° sentimento de usufruto do modelo departicipação política veiculado pela televisão. Em sualuta por se fazerem reconhecer, as camadas popularesassistem ao processo de reconhecimento, porém apenasno âmbito do gerenciamento de recursos oriundos dosprogramas sociais de cunho participativo.

Entretanto, os videoteipes parecem com a vidae não importa se são ou não reais, pois estão falando aopúblico e com a sua participação. Esta participação é umsimulacro da vida, destitui a linguagem do ideológico, oeletrônico é absoluto, vai além dos limites entre o signoe o sentido, seduzindo a massa. O trecho abaixo sintetizamuito bem este processo:

Quando os signos perdem o sentido e seconsomem na fascinação tem-se o espe-táculo (BAUDRILLARD, 1986).

Não estamos priorizando, aqui, o aspecto dacomunicação como mensagem ideológica, pois, seagíssemos assim, cairíamos numa concepção desociedade imutável, dada substancialmente e, conse-

Page 6: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

qüentemente, a comunicação seria apenas divulgaçãoda atividade política.

Acontece que a forma de comunicação em focopotencializa enormemente o lugar social do discurso,diferenciando-se do modo de comunicação interpessoalem voga nos movimentos, o qual fazia intermediaçãoentre os sujeitos. Agora a comunicação é configuradapela produção e divulgação de bens simbólicos acercada sociedade, onde os discursos são reproduzidosincorporando novas regras e outras maneiras de "olhar"o lugar social reconstruído.

3 O MUNDO DO VíDEO

Como um meio globalizante, a televisão introduznovas discussões, mas suprime o diálogo direto, os debatesentre as pessoas, apresentando exemplos de vida, deambientes, e de situações que acabam virando modelos.

Enquanto as reuniões nas sedes das associaçõesde moradores giram em torno das dificuldades docotidiano, quando, algumas vezes, toca-se na vidapolítico-administrativo-econômica, a televisão apresentou"novas realidades". Assim, ela que fascina mais do queoutras formas de comunicação, introduz uma linguagemdistinta, a qual, inicialmente, atrai o receptor, que, passívelde incorporá-Ia, insere reelaborações à sua forma depercepção sociocultural.

Também, a modernidade gerou uma concepçãoda realidade que deu às pessoas a impressão de satisfaçãodas suas vontades através de mercadorias. Talvez porisso este veículo, que apenas poderia acrescentar algomais ao cotidiano, teve importância especial, sendo tãosedutor e transformando relações.

A televisão fala, mostrando cenas, fotografias,uma coisa atrás da outra, num ritmo que não permiteprestar atenção. São cores, vozes, rostos, sons, imagens,tudo causando impacto num telespectador que tem poucoânimo para fazer alguma coisa. Embora o cotidiano dohomem moderno, que permite utilizar todo uminstrumental criado para facilitar sua vida na modernasociedade industrial, apesar da globalização, tambémpossibilite que alguns grupos se coloquem comosimbolicamente distintos (vide revitalização de gruposétnicos e religiosos em contraposição à tentati a dehomogeneização, como se houvesse, ao mesmo tempo,um processo contínuo de dominação e resistência).

As classes populares, não tendo acesso a todasas condições geradas por tal sociedade, i em como quenuma modernidade incompleta na qual os sujeitos

parecem vivenciar dois níveis - aquele do trabalho, dascoisas práticas, o mundo das normas e da participaçãono todo social coercitivo (DURKHEIM, 1974) e, o outroé aquele que parece escapar a tudo isto, como se fossemeramente subjetivo, porém que move o primeiro, poisé mais dinâmico, mais vivo, mais criativo e inovador. Atelevisão, inclusa na intimidade, parece percorrer amediação entre os dois mundos referidos. Mexe com oimaginário e apresenta fatos e acontecimentos ligados aoreal social, aparentemente distante da imaginação, elatenta isolar completamente os sujeitos que, semperceberem, têm a ilusão de participar do ambienteapresentado numa presença ilusória.

Tomando o exemplo da fotografia, verifica-seque há possibilidade de análise e de reingresso no passado,quando a observamos e somos informados sobre seuconteúdo (personagens, onde vivem, quais as suas idéiasetc.), enquanto na televisão as imagens passam rápido enão permitem uma exploração minuciosa, uma fixaçãonos detalhes, senão quando quem as construiu assim osdeseja. Porque nela ocorre uma escolha de detalhes parao telespectador sem possibilitá-Io o direito à escolha e àconcentração.

No caso do cinema, a televisão, diferentemdele (no filme há um certo retardamento da imagem paraque quem assiste possa percorrer os seus ângulo ose observasse fotografias), vende cada ins eprogramado. O filme é, então, como um pinteiro, enquanto a 1V "angustia-se diame da possibilidadede o telespectador mudar de canal a qualquer momento

Assim, os sujeitos mantêm relações disrimas comos meios de comunicação. Etelespectadores, a 1V além de 11 ,',CTr.:> .•.•• Oa:x~ülf:ns;:tgelllS

sociais que chegam até osatualização. E mais ela v .toma-se interior aos __recepção regular e contínua,

Como conseqãês :lCJ;2.:

da consciên iada dinâmicaseleti as,lidades e inovacão cuímraí, Desse zaooose cada"ma é . _"ri •.•..•.",=

do iraOs modos

gens que as pessoasresultado o contato direto com as

s e inhamentos corriqueiros da lutacomrmnaria, enrique iam sua formação, seu uni erso

e estimula 'am a expressão de suas peculiaridades,onstiruindo um produto cultural típico, o qual

possibilita a o reconhecimento às pessoas enquanto

Educação em Debate - Fortaleza -ANO J 9 - N° 34 - J 997 - p. 78-84 I 83

Page 7: A IIELETRONIZAÇÃO DOS IISONHOS...marketing nas campanhas eleitorais e a associação aos códigos detelevisão se fizeram claramente perceptíveis, intercalando o próprio conteúdo

comunidade coesa, unitária, ou melhor, compunha anoção de identidade cultural como possibilidade dereconhecimento em falas, enquanto narrativas quecompõem uma totalidade orgânica, como produto depráticas sociais de determinado contexto, grupo ousociedade.

Os meios de comunicação, no caso a 1V,extraíramdos MSU' s (Movimentos Sociais Urbanos) suas aberrações,seus elementos chocantes, suas peculiaridades,"simplificando-as", tornando-as, no discurso televisivo,compreensíveis para todos: "Esta é dona Fulana, do bairrotal. Uma das milhares de beneficiadas pelos muitoschafarizes construídos pelo Governo das Mudanças". Ouseja, passa-se a assimilar uma compreensão simplista deque o governo modificou a difícil realidade com oatendimento às necessidades individuais, lá no seu lugar demoradia, sem a mediação de conflitos, conforme emergedo depoimento - proferido por morador do bairro ParqueSão João durante encontro comunitário na sede daassociação de moradores, 1989 - reproduzido abaixo:

... o governo, agora está bem intencionado,as coisas agora tão mudando, tá tudo dife-rente. Num precisaficar fazendo confusãoantes do tempo que quando tem que dácerto, tudo se ajeita (Líder comunitário).

Já não há mais nada a ver com a passeata naavenida principal do bairro, com as incontáveis reuniões,envolvendo a comunidade e as autoridades, com o abaixo-assinado, os oficios encaminhados ao órgão competente.Criou-se a partir da resultante, o atendimento à demandados moradores, algo vazio de todo este dinamismo.

Assim, a tendência reivindicativa dos movi-mentos vai sendo substituída por um perfil da execuçãoreferente à gestão de programas e à negociação direta,nos padrões administrativos estabelecidos com a esferagovernamental.

Portanto, os signos acentuados pelas gestõesmudancistas apregoaram uma repetição que pareceucondenar a preocupação com a ruptura. Foi um fenômenoque se integrou ao cotidiano dos bairros, tendo papelpreponderante na forma de encaminhamento das lutaspopulares. Tal repetição acionou uma identificação comas camadas populares de onde decorreram a força e adurabilidade deste padrão administrativo. Emergiram,também, outros horizontes de sociabilidade, simulta-neamente, ampliados e limitados enquanto prisioneirosdas regras de produção dos discursos e dos controlessociais conseqüentes, os quais problematizaram aalardeada transparência.

m Eà ração Debate - Fortaleza - ANO J 9 - N° 34 - J 997 - p. 78-84

No Ceará, para proporcionar a "evidência" daabertura dos canais de participação popular, tomou-semister que a cidadania, com a utopia da gestão igualitáriados serviços urbanos, "sonho" dos movimentosreivindicatórios, se realizasse. Assim sendo, o mundo queo vídeo nos permitiu visualizar tornou-se mais real que aprópria realidade.

A participação nestes dois mundos teve efeitosvisíveis no modo como os líderes passaram a ordenarseu trabalho. Como efeito da circulação de informações.e imagens, surgiram as características de uma outra formade exercício da liderança. Esta forma não é homogênea,pelo contrário, ressalta as possibilidades do diverso pelasdistintas articulações em cada situação específica. Istotambém nos remete à necessidade de investigar melhoras formas de ação cotidiana das camadas populares paraalcançar novas formas de pensar os posicionamentosideológicos daí emergentes.

lntencionamos, ao analisar uma outra constru-ção das formas de mediação política entre Estado emovimentos populares, resultante destas vivências, sugerirquestões para possíveis e bem-vindos aprofundamentosposteriores.

BIBLIOGRAFIABAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silen- .

ciosas - o fim do social e o surgimento das massas.São Paulo: Brasiliense, 1986.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodu-tibilidade técnica Irr Obras escolhidas, magia e técnica,arte epolítica. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BELLONl, Maria Luíza. A mundialização da cultura.ln: Sociedade e Estado, vol. IX, Brasília, 1994.

DURHAN, Eunice. Movimentos sociais: a construçãoda cidadania. ln: Novos Estudos CEBRAP, n. 10,São Paulo, out. 1984.

DURKHEIM, Émile. As regras do método socio-lógico. São Paulo: Nacional,1974.

GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. II PLAMEG-Diagnóstico e Programação - 1979/83. GovernoVirgílio Távora, 1983.

GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. Plano demudanças: Governo Tasso Jereissati: 1987-1990.Fortaleza: 10CE, 1987.

MASC, Maria Cristina. Política y comunicatión, entre Iaplaza y Ia platea. ln: Revista Comunicação e Política.Rio de Janeiro: Cabe Ia, 1994.

SOUSA, Ma. Meirice Pereira de. Cenas de um"encontro". Dissertação de Mestrado. Fortaleza:UFC (mimeo).