À Imagem e Semelhança de Deus - Philip Yancey

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  • EDITORA DO GRUPOZONDERVAN

    HARPERCOLLINS

    (c) 1984, e Paul Brand e Philip YanceyTtulo do original - In his image edio publicada pela ZONDERVAN PUBLISHING HOUSE, (Grand Rapids, Michigan, EUA)

    Filiada aCMARA BRASILEIRA DO LIVROASSOCIAO BRASILEIRA DE EDITORES CRISTOSASSOCIAO NACIONAL DE LIVRARIASASSOCIAO NACIONAL DE LIVRARIAS EVANGLICAS

    EDITORA VIDARua Jlio de Castilhos, 280 Belenzinho CEP 03059-000 So Paulo, SP Tel.:0xx 11 6618 7000 Fax: 0 xx 11 6618 7050 www.editoravida.com.br

    Todas as citaes bblicas foram extradas da Nova Verso Internacional (NVI), 2001, publicada por Editora Vida, salvo indicao em contrrio.

    Coordenao editorial: Fabiani Medeiros Edio: Gibson James Reviso: Jefferson Rodrigues Capa: Marcelo Moscheta Diagramao: Efanet Design

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Yancey, Philip imagem e semelhana de Deus: uma analogia entre o corpo humano e o corpo de Cristo / Philip Yancey, Paul Brand; traduo: James Monteiro dos Reis So Paulo : Editora Vida, 2003. Ttulo original: In his image ISBN 85-7367-7034

    1. Corpo humano - aspectos religiosos - Cristianismo 2. Igreja 3. Jesus Cristo - Corpo mstico I. Brand, Paul W.. II. Ttulo. III. Ttulo: Uma analogia entre o corpo humano e o corpo de Cristo.

    03-2707 CDD 262.77

    ndice para catlogo sistemtico:1. Corpo humano e corpo de Cristo : Analogia: Religio: Cristianismo 262.77

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  • Agradecimentos

    GILBERT KEITH CHESTERTON1 certa vez dedicou um de seus livros a sua secretria, "sem cuja ajuda este livro teria sido publicado de cabea para baixo". Nosso editor provavelmente acharia um jeito de public-lo corretamente, apesar das condies do nosso manuscrito; mas temos certeza de que o resultado ficaria prejudicado, no fossem as contribuies de algumas pessoas. Os doutores Christopher Fung e Kenneth Phillips revisaram os detalhes mdicos, e John Skillen, Tim Stafford e Harold Fickett deram sugestes editoriais imensamente teis. A digitadora Harriet Long organizou os rascunhos irremediavelmente bagunados do livro. E nossa editora na Zondervan, Judith Markham, exerceu sua funo de forma primorosa, como sempre, ao nos guiar por todo o processo de harmonizao. Somos gratos a todos.

    1 Escritor ingls (1874-1936). De estilo satrico, atacou o racionalismo, o cientificismo, o imperalismo, os revolucionrios etc. autor de Histrias do padre Brown. (N. do E.)

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  • Sumrio

    ContedoAgradecimentos.................................................................................................................................................................... 3

    Prefcio.................................................................................................................................................................................5

    Primeira parte: Imagem................................................................................................................................................................................. 8

    1 Semelhana.................................................................................................................................................................... 8

    2 Espelhos.......................................................................................................................................................................11

    3 Restaurao..................................................................................................................................................................16

    Segunda parte Sangue................................................................................................................................................................................ 22

    4 Poder............................................................................................................................................................................22

    5 Vida............................................................................................................................................................................. 27

    6 Purificao................................................................................................................................................................... 31

    7 Superao.....................................................................................................................................................................35

    8 Transfuso................................................................................................................................................................... 42

    Terceira Parte Cabea................................................................................................................................................................................ 46

    9 Caminhos..................................................................................................................................................................... 46

    10 A fonte....................................................................................................................................................................... 52

    11 Confinamento............................................................................................................................................................ 57

    12 A sada....................................................................................................................................................................... 61

    13 A entrada....................................................................................................................................................................66

    Quarta parte Esprito................................................................................................................................................................................71

    14 Respirao................................................................................................................................................................. 71

    15 Entrosamento............................................................................................................................................................. 77

    16 Mediador....................................................................................................................................................................80

    17 Escutando...................................................................................................................................................................85

    18 O motivador...............................................................................................................................................................90

    19 Proteo..................................................................................................................................................................... 95

    20 Conexo..................................................................................................................................................................... 99

    21 Adaptaes...............................................................................................................................................................105

    22 Dor crnica.............................................................................................................................................................. 111

    23 Dor de Deus............................................................................................................................................................. 115

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  • Prefcio

    A menos que toda a existncia seja um meio de revelao, nenhuma revelao em particular ser possvel.

    WlLLIAM TEMPLE

    QUANDO AS MARAVILHAS DO CORPO [Fearfully & Wonderfully Made] foi publicado nos Estados Unidos, em 1980, o dr. Brand e eu, assim como nosso editor, espervamos os resultados com algum receio. Era um livro difcil de descrever e apresentar e, como existem pouqussimos livros de analogia, no podamos prever a reao do pblico.

    Enquanto eu o escrevia, tive a sensao de estar trabalhando ao mesmo tempo em trs livros distintos. Eu queria captar a essncia da vida do dr. Brand e contar biograficamente algumas de suas notveis experincias na ndia e na Inglaterra. Alm disso, tambm esperava transmitir uma valorizao do corpo humano, apresentando fatos mdicos de modo atraente. E claro que a essncia do livro residia em um terceiro tipo de abordagem: um apelo espiritual extrado da analogia, que s vezes exprimia admirao ou glorificao e outras vezes, um desafio proftico.

    Em cada captulo, em quase todas as pginas, esforcei-me por manter esses trs tipos de abordagem em harmonia, mas muitas vezes tinha a impresso de que cada um estava crescendo desproporcionalmente; ento eu lutava para transform-los em um. Insisti porque reconhecia que o dr. Brand oferecia uma combinao singular de talentos. Mesmo depois de quarenta anos praticando a medicina, ele ainda conserva um entusiasmo infantil pela grandeza do corpo humano. Em duas dcadas de trabalhos missionrios na ndia, ele ganhou novas e profundas percepes sobre a verdade crist. Ao longo do caminho, experimentou situaes e contatos com pacientes que foram mais dramticos e pungentes que qualquer um que eu tenha experimentado.

    Este A imagem e semelhana de Deus d continuidade abordagem iniciada em As maravilhas do corpo. No se trata de uma seqncia no sentido estrito da palavra, pois tnhamos ambos os livros em mente desde o comeo. Enquanto aquele enfatizava as clulas individualmente e seus diferentes papis no corpo, este se concentra nos vnculos, nas foras que unem e guiam o corpo e no envolvimento do prprio Deus.

    Comeamos cada seo com uma viso geral de como o corpo humano funciona. Desde que Sfocles2 declarou que o corpo humano a mais assombrosa de todas as maravilhas do mundo, alguns milhares de anos de descobertas cientficas apenas serviram para ressaltar suas palavras. O corpo humano muito mais maravilhoso do que Sfocles poderia imaginar.

    Acreditamos que estudar o corpo humano, empreendimento digno de mrito por si s, produz uma gratificao inesperada. Traz luz a uma metfora usada por mais de trinta vezes no Novo Testamento: o corpo de Cristo. Os cristos so comparados a membros individuais de um corpo universal, no qual Jesus Cristo o cabea. E claro que no queremos dizer que Deus tenha criado as clulas do corpo humano com um objetivo espiritual ou que os fatos biolgicos espelhem de forma precisa a verdade espiritual. Mas certamente existe uma semelhana entre o corpo humano e o corpo espiritual, semelhana que provm de uma mesma autoria.

    Um grande artista pode utilizar vrios meios de expresso, mas acharemos em todos os seus trabalhos a mesma temtica, estilo, contedo e abordagem. Logo, no nos devemos surpreender com o fato de o Artista Supremo ter deixado sua assinatura de vrias formas. Se voc observar com um telescpio galxias, estrelas e planetas e depois observar com um poderoso microscpio as minsculas molculas, os tomos e os eltrons, notar uma similaridade inconfundvel em suas estruturas e padres. O mesmo Criador projetou ambos os nveis de realidade. Logo, da mesma forma, o mesmo Criador desenhou o corpo humano e ento inspirou os autores do Novo Testamento a procurar um modelo de verdade espiritual em sua estrutura. .

    A palavra smbolo vem de duas palavras gregas que significam "lanar atravs". Neste livro, tentamos

    2 Poeta trgico grego (Colona, perto de Atenas, entre 496 e 494 a.C-Atenas, 406 a.C.). Autor de Antgona, Edipo rei, Electra, entre outras. (N. do E.)

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  • criar uma ponte entre um mundo visvel e natural e um mundo invisvel e espiritual. Se formos longe demais e abusarmos da simbologia alm do tolervel, perdoe-nos. No temos a inteno de estabelecer nova teologia; em vez disso, esperamos esclarecer a que conhecemos por meio de uma analogia com o corpo humano.

    At o fim do sculo XVIII, a cincia era vista como uma busca direta por Deus. Quando Coprnico, Kepler, Galileu e Newton3 fizeram suas descobertas, acreditavam que elas tambm instruam a humanidade sobre Deus. Acreditavam que o mundo criado revelava a natureza de Deus; mas j no existem muitas pessoas que abordem a cincia dessa maneira. Esperamos que este livro permanea como uma exceo. William Blake4 disse bem: "Se as portas da percepo estiverem desobstrudas, tudo parecer ao homem como : infinito".

    PHILIP YANCEY MINHA PARCERIA COM PHILIP YANCEY resultou em dois livros muito diferentes do que eu poderia ter escrito sozinho. Os conceitos originais e a maioria das histrias vieram de minhas experincias como cirurgio e bilogo. Comearam a tomar forma na ndia, enquanto eu tentava ajudar meus alunos, futuros mdicos, a integrar sua f crist aos novos conhecimentos da medicina e enriquec-la com tais con-tedos. Esses ensinamentos, primeiramente entregues na forma de mensagens, na capela da Christian Medical College [Faculdade Crist de Medicina], em Vellore, ficaram na gaveta durante anos. Enfim, senti que havia chegado o momento de dividir essas idias com um pblico maior, e foi nesse instante que Philip e eu nos reunimos.

    Eu tinha esperanas de que Philip usasse suas habilidades de escritor para transformar meu material em algo mais legvel do que eu poderia escrever sozinho. Ele fez isso. Mas tambm fez muito mais. Muito antes de nos conhecermos, Philip j pensava e escrevia acerca da dor, do sofrimento e do impacto dessas experincias nas pessoas e na f delas. Agora, munido com minhas anotaes e gravaes de nossas conversas, ele se lanou a uma pesquisa mais detalhada em trabalhos de outros autores, sobre a anatomia do corpo e sobre o funcionamento das clulas. Quando comeou a escrever, era ento um especialista em muitos aspectos da biologia e da teologia.

    Rapidamente o material se tornou no o "meu" livro, mas o nosso livro. Ele poliu e aprimorou alguns de meus toscos conceitos e contestou outros. Quando os primeiros rascunhos chegaram a minha mesa, percebi que tinha de parar e considerar idias no campo da biologia e das interpretaes da teologia crist que no tinham de modo algum partido de mim. O material comeou a se encaixar como um bvio aprimoramento do que eu havia inicialmente expressado. Algumas idias eram absolutamente novas para mim, o que nos levou a novos e mais profundos debates e, portanto, a uma reelaborao. Ns dois crescemos com essa experincia dinmica e criativa.

    Philip insistiu em que, por coerncia, os livros fossem escritos em primeira pessoa do singular ("eu") em vez do "ns" de uma autoria conjunta. Por isso, todas as idias so vistas a partir da minha perspectiva como mdico nessa parceria. Porm, incomodou-me o fato de a maioria dos leitores de As maravilhas do corpo que me escreveram ter presumido que todas as idias eram minhas, e que Philip as havia apenas registrado em um estilo legvel. Nada est mais longe da verdade. Algumas composies so minhas, genunas e sem nenhuma alterao. Outras so correes e novas elaboraes dele em relao ao que eu escrevera. Mas algumas so inteiramente oriundas dos estudos e interpretaes de Philip. Existem at algumas passagens nas quais invertemos os papis e eu revisei seus textos.

    Neste prefcio, Philip j escreveu sobre a dificuldade de harmonizar trs tipos de livros. O processo tambm incluiu misturar dois autores diferentes. Ainda utilizamos o formato "eu", como se o livro fosse s meu, mas na prtica trata-se de uma verdadeira co-autoria. Alm disso, ns dois sentamos cada vez mais que no estvamos sozinhos. Este livro foi escrito para a glria de Deus; e o Esprito Santo, o Deus intermedirio, juntou-se ao processo. Que o mesmo Esprito Santo seja seu conselheiro enquanto voc ler este livro, para que assim as palavras se tornem vivas e falem com voc; no como minha voz ou a de Philip,

    3 Inseridos no humanismo dos sculos XIV a XVI, o racionalismo e a preocupao com o homem e com a natureza estimularam a pesquisa cientfica. Johannes Kepler, astrnomo alemo (1571-1630) e criador do telescpio, descobriu que as rbitas no eram circulares, mas, sim, elpticas; Nicolau Coprnico, astrnomo polons (1473-1543), foi responsvel pela descrio do sistema heliocntrico, afirmando que a Terra se move em torno do Sol; Galileu Galilei, fsico, matemtico e astrnomo italiano (1564-1642), foi responsvel pela fundamentao cientfica da Teoria Heliocntrica de Coprnico e da sistematizao da mecnica como cincia; Isaac Newton, matemtico e fsico ingls (1642-1727), o formulador da Lei da Gravidade. (N. do E.)4 Poeta ingls (1757-1827), autor de Cantos e inocncia (1789), marco inicial da literatura romntica. (N. do E.)

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  • mas como a voz dos membros do corpo de Cristo, sob o controle do Cabea.

    DR. PAUL BRAND

    imageme semelhana

    de Deus

    Inmeras so as maravilhas do mundo,mas nenhuma, nenhuma maisincrvel que o corpo do homem.

    SFOCLES

    Para ser naturalista, o homem no pode se dispora olhar para a natureza diretamente,

    mas apenas com o canto dos olhos.Ele deve olhar atravs e alm dela.

    HENRY DAVID THOREAU

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  • Primeira parte: Imagem

    1 Semelhana

    Que obra de arte o homem! To nobre no raciocnio!To diversificado em suas capacidades! To preciso e admirvel

    em sua forma e movimento! Na ao como um anjo;no entendimento, como um deus!

    WlLLIAM SHAKESPEARE

    O homem no um balo subindo ao cu nem uma toupeiraque apenas escava a terra; mas, sim, algo como uma rvore,cujas razes so alimentadas pela terra, enquanto seus galhos

    mais altos parecem crescer quase at as estrelas.

    G. K. CHESTERTON

    O que de fato a Terra seno um ninho de cuja beirada estamos todos caindo?

    EMILY DICKINSON

    As CORTINAS OCULTAVAM meu grupo de dez internos e estudantes de medicina, separando-os do resto dos quarenta leitos da enfermaria. Externamente, o Hospital da Faculdade Crist de Medicina [Christian Medical College Hospital], em Vellore, lembrava uma moderna instalao ocidental, mas por dentro era completamente indiano. Do outro lado de nossa cortina, o ambiente fervilhava: parentes de pacientes trazendo comida caseira e enfermeiras enxotando os abutres que vinham atrs, bem como os corvos e, vez por outra, um macaco.

    Entretanto, ns que estvamos do lado de dentro da cortina prestvamos total ateno ao novo jovem colega que apresentava seu diagnstico. Ele estava semi-ajoelhado, a postura que eu havia ensinado, com a mo quente estendida sob o lenol e repousando no abdome nu da paciente. Enquanto seus dedos procuravam delicadamente sintomas de dor, ele dava continuidade a uma linha de investigao que o levava a ponderar entre a possibilidade de apendicite e uma infeco no ovrio.

    De repente, algo chamou minha ateno um leve estremecimento no rosto do mdico residente. Seria a sobrancelha se arqueando? Uma vaga lembrana surgiu em minha mente, mas algo que eu no conseguia recordar completamente. Suas perguntas estavam levando-o a uma rea delicada, especialmente para a discreta sociedade indiana. J teria a mulher sido exposta a uma infeco venrea? Os msculos faciais do mdico residente se contraram numa expresso que combinava comiserao, curiosidade e uma cordialidade encantadora, quando ele olhou diretamente para o rosto da paciente e lhe fez as perguntas. Seu prprio semblante persuadiu a mulher a relaxar, resistir ao constrangimento e dizer a verdade.

    Nesse momento, minha memria estalou. claro! A sobrancelha esquerda arqueada para cima com a direita puxada para baixo, o sorriso irnico e envolvente, a cabea inclinada para um lado, os olhos cintilantes eram claramente as caractersticas de meu antigo cirurgio-chefe em Londres, o professor Robin Pilcher. Puxei o flego e soltei uma exclamao. Os estudantes levantaram a cabea, assustados com minha reao. No pude evitar: parecia que o residente tinha estudado a fisionomia do professor Pilcher para uma apresentao e agora a tirava de seu repertrio para me impressionar.

    Respondendo aos olhares de indagao, eu me expliquei: "Essa a fisionomia de meu antigo chefe! Que coincidncia voc tem exatamente a mesma expresso, ainda que nunca tenha ido Inglaterra, e Pilcher certamente nunca visitou a ndia".

    De incio, os estudantes me olharam com um silncio confuso. At que, por fim, dois ou trs deles

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  • comearam a rir. "Ns no conhecemos nenhum professor Pilcher", disse um deles, "mas, dr. Brand, era a sua expresso que ele estava fazendo".

    Mais tarde naquela noite, sozinho em meu escritrio, eu recordava os meus dias sob o comando de Pilcher. Eu pensava que estava aprendendo com ele tcnicas cirrgicas e procedimentos de diagnstico. Mas ele tambm me passou seus instintos, suas expresses e seu sorriso, que ento seriam passados de gerao em gerao, numa inquebrvel corrente humana. Era um sorriso amvel, perfeito para romper as trevas da timidez e estimular a sinceridade de um paciente. Que livro ou programa de computador poderia ter representado as expresses faciais necessrias naquele exato momento atrs das cortinas? Agora eu, um aluno de Pilcher, tinha me tornado um elo da corrente, um portador de sua sabedoria para estudantes que estavam a cerca de 15 mil quilmetros de distncia dele. O mdico indiano, jovem e de pele morena, falando tmil,5 partilhava algumas semelhanas bvias com Pilcher ou comigo. Ainda assim, de alguma forma, ele transmitiu a imagem de meu antigo chefe com tanto primor, que me levou prontamente de volta aos tempos da universidade. A lembrana me deu uma percepo cristalina do conceito de "imagem".

    A PALAVRA IMAGEM HOJE conhecida de todos ns, mas o significado se perdeu de tal forma que agora significa praticamente o oposto do significado original, "semelhana". Hoje, um poltico contrata um consultor de imagem, um candidato a emprego se veste para ter uma boa imagem, uma empresa procura a imagem certa. Em todos esses casos, o termo "imagem" significa a iluso de algo que aparenta ser, em lugar da essncia do que realmente .6

    Neste livro intitulado A imagem e semelhana de Deus eu quero reforar o significado original de imagem como uma semelhana exata, e no uma iluso enganadora. Devemos voltar ao conceito de semelhana para compreender a "imagem de Deus" que temos inteno de transmitir. Relances daquele significado ainda permanecem.

    Por exemplo, quando observo uma clula nervosa por meio de um microscpio eletrnico, estou estudando a imagem do neurnio. Estou olhando no para o neurnio em si seu tamanho nfimo impede que se faa isso , mas para uma imagem reorganizada que o reproduz fielmente para meus olhos. Nesse caso a imagem aumenta, em vez de distorcer a essncia da clula.

    Da mesma forma, os fotgrafos usam a palavra imagem para descrever seu produto final. A imagem de um bosque de sequias achatado em um pequeno retngulo preto e branco certamente no expressa perfeitamente o original, mas, quando elaborada por um mestre como Ansel Adams,7 pode transmitir a essncia do original com grande eficcia.

    Ou ento imagine um punhado de quatro quilos de protoplasma se contorcendo esporadicamente em um cobertor. O pai do beb pesa quinze vezes mais, tem uma quantidade muito maior de aptides e personalidade. Ainda assim, a me diz orgulhosamente que o beb "a cara" do pai. Um visitante olha de perto. Sim, existe uma semelhana evidente agora por uma covinha, narinas levemente alargadas, um lbulo peculiar da orelha. Em pouco tempo a maneira de falar, as atitudes e centenas de outras caractersticas lembraro o pai de forma inconfundvel.

    Tais usos do termo "imagem", relativos ao microscpio, fotografia e aos filhos possuem significado similar ao da "imagem" do professor Pilcher que inconscientemente passei a muitos estudantes indianos. Todas so imagens verdadeiras, uma representao de um objeto expressa de forma visvel por intermdio de outro. E todas esclarecem a grande e misteriosa frase bblica: imagem de Deus. Essa frase aparece bem no primeiro captulo do Gnesis, e seu autor parece gaguejar de to agitado, afirmando duas vezes um conceito que tinha acabado de mencionar no versculo anterior: "Criou Deus o homem sua imagem, imagem de Deus o criou" (1.27). A imagem de Deus o primeiro homem na terra a recebeu, e de alguma forma distorcida cada um de ns possui essa qualidade "maravilhosamente estranha".

    5 Lngua dravdica falada por cerca de quarenta milhes de pessoas na ndia (estado de Tamil Nadu), trs milhes em Sri Lanka, bem como por comunidades de emigrantes (sudoeste asitico, frica do Sul, oceano Indico e Antilhas). Dados da dcada de 1990, Grande Enciclopdia Larousse Cultural. (N. do E.)6 Um exemplo da mudana no significado: agncias de publicidade se renem diariamente e debatem sobre a reposio da "imagem" dos produtos de seus clientes. Vinte anos atrs, uma marca de cigarro com o nome bastante elegante de Marlborough estava passando por uma queda em suas vendas; os homens evitavam a marca por causa de sua imagem feminina. Uma enorme campanha de publicidade reformulou a imagem do cigarro, mudando a pronncia da marca e criando "O homem de Marlboro". Agora, evoca-se a imagem de um vaqueiro rude, sozinho no campo, acendendo um cigarro durante um providencial descanso de suas ocupaes dirias. A realidade bsica no mudou: o mesmo e velho cigarro. Apenas a iluso a imagem do cigarro mudou. Em razo disso, Marlboro se tornou a marca mais vendida nos Estados Unidos.7 Fotgrafo americano (1902-1984). Co-fundador do grupo F-64 (1932) com Edward Weston. (N.doE.)

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  • Quantos seres humanos podem expressar a imagem de Deus? Certamente no nos podemos parecer com ele, partilhando traos fisionmicos caractersticos como sobrancelha ou lbulo da orelha, pois Deus um esprito invisvel. Filsofos e telogos tm especulado bastante sobre tudo que pode estar includo no mistrio dessa nica frase. Previsivelmente, eles tendem a projetar em suas definies as principais preocupaes de sua poca. A era do Iluminismo nos assegura que a imagem de Deus a capacidade de raciocinar, os pietistas a identificam com a capacidade espiritual, os vitorianos afirmam que se trata da capacidade de fazer julgamentos morais e os pensadores renascentistas situam a imagem de Deus na criatividade artstica. E em nossa prpria poca, dominada pela psicologia? O que mais ela poderia ser, fazem questo de sabermos, seno a capacidade de nos relacionar com outras pessoas e com Deus?

    Visto que at telogos profissionais falharam em chegar a um consenso ao longo dos sculos, no tentarei apresentar uma definio completa, dizendo que a imagem de Deus isso ou aquilo. Mas, como todos concordam que ela se refere exclusivamente ao gnero humano entre todas as criaes de Deus, a frase merece alguns momentos de reflexo.

    Na narrativa do Gnesis, o conceito de "imagem de Deus" aparece na consumao de toda a criao. A cada estgio do progresso, o Gnesis registra meticulosamente que Deus olha para sua criao e diz que ela "boa". Mas ainda falta uma criatura que contenha a prpria imagem de Deus. E somente aps toda essa preparao que Deus anuncia o pice da vida na terra:

    Faamos o homem nossa imagem, conforme a nossa semelhana. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do cu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao cho (1.26).

    Entre todas as criaturas de Deus, somente a humanidade recebe a imagem de Deus, e essa caracterstica nos distingue de todo o resto. Detemos o que nenhum outro animal detm; somos ligados a Deus em nossa essncia. (Mais tarde, quando Deus trata com No a respeito da extenso da dominao humana sobre os animais, essa caracterstica da imagem de Deus surge mais uma vez, como uma linha divisria contundente e maravilhosa entre o homem e as outras criaturas. Matar um animal significa uma coisa; matar um ser humano uma questo totalmente diferente: "Porque imagem de Deus foi o homem criado" (Gn 9.6).

    UM DOS MAIORES ARTISTAS DA humanidade representou a seqncia da Criao na abbada da Capela Sistina, em Roma. Michelangelo8 escolheu como destaque em seu trabalho o exato momento em que Deus despertou o homem a sua imagem.

    Visitei a Capela Sistina em seu cenrio contemporneo muito diferente do que Michelangelo provavelmente tinha em mente como ambiente para sua arte. Turistas so admitidos em grupos que alcanam algumas centenas de pessoas; muitos deles apertando fones de ouvido de plstico branco sobre as orelhas, como se fossem tumores dolorosos. Eles ouvem uma gravao que os guia pela capela. Em vez de olhar para cima enquanto passam por aquele esplndido salo, olham para baixo, seguindo a fita vermelha que delimita a rea onde a gravao transmitida.

    Nada pode preparar os visitantes para o que eles vem quando, no momento certo, erguem a cabea. Magnficas obras de arte cobrem cada centmetro daquela sala enorme: a diviso entre luz e trevas, a criao do Sol e dos planetas, a poca de No, o Juzo Final. E no centro focai, no tranqilo olho de um redemoinho de pinturas, Michelangelo pintou a criao do homem.

    O corpo musculoso de Ado inclina-se no cho na posio clssica dos antigos deuses-rio.9 Sonolento, ele levanta a mo, esticando-a em direo ao cu, de onde o prprio Deus estende a mo para baixo. As mos de Deus e de Ado no chegam a se tocar. Uma brecha separa os dedos de ambos, como uma sinapse por meio da qual flui a energia de Deus.

    Em alguns aspectos, Michelangelo captou a criao do homem como nenhum artista jamais o fez. A prpria palavra Ado, em hebraico, diz respeito terra ou ao p, e Ado se encontra na terra fsica. Alm disso, Michelangelo tambm expressou a natureza dual de Ado, ao retratar o momento em que Deus o alcana atravessando o vazio para transmitir vida espiritual. O segundo relato da criao do homem, no Gnesis, acrescenta mais detalhes:8 Pintor, escultor, poeta e arquiteto italiano (1475-1564). E considerado o maior nome do Renascimento, ao lado de Leonardo da Vinci. Em 1508, depois de protestar que no era pintor, cede aos pedidos de Jlio II e, durante quatro anos, pinta sozinho o teto da Capela Sistina com cenas do Antigo Testamento. Entre 1536 e 1541, faz o afresco Juzo Final na parede dos fundos da capela. (N. do E.)9 Nas religies politestas, muitos deuses se confundem com a natureza e fenmenos naturais, onde mantm seus domnios. Exemplo disso o deus-rio Peneu, da mitologia grega, que tambm d nome a um rio da Grcia que nasce no Pindo, banha a Tesslia e alcana o mar Egeu. (N. do E.)

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  • Ento o SENHOR Deus formou o homem do p da terra e soprou em suas narinas o flego de vida, e o homem se tornou um ser vivente (2.7).

    Quando eu ouvia esse versculo na minha infncia, imaginava Ado deitado no cho, perfeitamente formado, mas ainda sem vida, com Deus se inclinando sobre ele e fazendo um tipo de ressuscitao boca a boca. Atualmente imagino essa cena de forma diferente. Presumo que Ado j estava biologicamente vivo se os outros animais no precisavam de nenhum sopro especial de oxignio, nitrognio ou dixido de carbono para comear a respirar, ento por que o homem precisaria? O sopro de Deus hoje simboliza para mim uma realidade espiritual. Vejo Ado vivo, mas dispondo apenas de uma vitalidade animal. Ento, Deus expira para dentro dele um novo esprito, incutindo-lhe sua prpria imagem. Ado se torna uma alma viva, e no apenas um corpo com vida. A imagem de Deus no uma combinao de clulas epiteliais ou uma forma fsica, mas um esprito inspirado.

    Esse simples ato da criao especial, Deus soprando no homem "o sopro da vida", distinguiu a humanidade de todas as outras criaturas. Partilhamos com os animais uma concha biolgica composta, no nosso caso, de ossos, rgos, msculos, gordura e pele. Na verdade, somos inferiores se compararmos diretamente nossas caractersticas especificamente biolgicas com as de alguns animais. Quem competiria em beleza com uma sensacional arara ou at mesmo com uma humilde mariposa? Um cavalo facilmente nos deixa para trs, um falco enxerga muito melhor, um cachorro detecta odores e sons imperceptveis para ns. A soma total de nossas meras qualidades fsicas no mais parecida com Deus do que seria a de um gato.

    Ainda assim, ns somos feitos imagem de Deus. Para ns, o revestimento de pele, msculos e ossos serve de recipiente, um local de armazenamento para sua imagem. Podemos compreender e at carregar algo do Criador. Nossas estruturas celulares de protenas controladas pelo DNA podem tornar-se templos do Esprito Santo. No somos "meros mortais". Somos, todos ns, imortais.

    ERA DISSO QUE EU ESTAVA tratando no incio deste captulo ao recordar a imagem do professor Robin Pilcher, meu antigo chefe cirrgico de Londres. Estudante e jovem, absorvi algo de sua imagem que carreguei por quase 15 mil quilmetros para a ndia e agora transferi a muitos indianos. Hoje, esses ex-estudantes trabalham em hospitais por todo o mundo. Uma cpia exata da expresso de Pilcher pode vir a aparecer em momentos crticos em Bornu, nas Filipinas ou na frica. Pilcher morreu alguns anos atrs, mas esse pequeno aspecto dele uma suave configurao de msculos faciais apropriada a uma situao mdica especfica mantm-se vivo e visvel em meu rosto e no rosto de meus alunos.

    O que Deus tem em mente para ns parecido, s que muito melhor. Ele nos pede que sejamos no mundo os principais portadores de sua semelhana. Como um esprito, ele se mantm invisvel neste planeta. Conta conosco para darmos corpo a esse esprito, para levarmos a imagem de Deus.

    2 Espelhos

    Os materialistas cometem erros que restringem a vida pela prpria vida.LEON TOLSTOI

    Conhecei a ti mesmo, visto que s minha imagem.Ento conhecers a mim, a cuja imagem s feito,

    e me achars em ti mesmo.WlLLIAM DE ST. THIERRY

    EM QUARENTA ANOS DE CIRURGIA, j deparei com minha cota de dramas humanos, mas nada superou minhas primeiras experincias de quando eu ainda estudava para ser cirurgio, durante os bombardeios alemes em Londres, na Segunda Guerra Mundial. Diariamente, aqueles sinistros esquadres, corpulentos bombardeiros da Luftwaffe,10 cobriam o cu. Seus motores rugiam como um trovo contido, enquanto seus compartimentos de bombas vomitavam cargas de destruio.

    10 Denominao da aeronutica militar alem desde sua criao, em 1935. (N. do E.)

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  • Diversas cenas deixaram marcas em minha memria, de tal forma que quarenta anos depois elas ainda so ntidas. Lembro-me de um impacto direto nas instalaes de banho turco no Hotel Imperial. O ataque ocorreu quase sem o alerta das sirenes, e o local ainda estava cheio quando as bombas explodiram. Quando cheguei, encontrei um cenrio altura das obras de Dante. As divisrias das banheiras eram todas feitas de vidro, e naquele instante as ruas estavam praticamente pavimentadas de vidro estilhaado. Homens extremamente gordos, completamente nus, arrastavam-se para fora dos escombros em chamas e tropeavam caindo sobre o vidro espalhado pela rua. O sangue de dezenas de pequenos cortes lhes cobria os corpos e, em alguns, jorrava de feridas profundas. Ao fundo, as sirenes de ataque areo uivavam em um lamento queixoso e tardio. Tudo estava cintilante: o sangue, as pessoas despidas, a carne ensebada, o brilho lgubre das ruas. As equipes de socorro faziam o mximo para acalmar os feridos, retirando cuidadosamente os fragmentos de vidro de seus corpos e cobrindo com ataduras os ferimentos mais graves. Ao mesmo tempo, ns, os mdicos-residentes, corramos para o hospital a fim de nos preparar para o atendimento.

    Em outra noite, eu estava observando do telhado do hospital quando uma bomba caiu na ala infantil do Royal Free Hospital, prximo ao meu, fazendo com que os pisos superiores desmoronassem e se tornassem uma montanha de escombros em brasa. Corri at o local. L, voluntrios escavavam procura de recm-nascidos, a maioria deles com menos de uma semana de vida, e encontravam tanto sobreviventes quanto acidentados cobertos de sangue, sujeira e vidro. As pessoas envolvidas no resgate formaram uma corrente humana, semelhante s de brigadas de incndio, a fim de passar rapidamente as crianas retiradas dos escombros do hospital para as ambulncias que as aguardavam. O choro fraco dos bebs parecia uma reao pateticamente insuficiente diante do horror daquela situao. Ao lado, as mes em roupes observavam a cena com medo e desespero estampados no rosto. Tinham os seus bebs sobrevivido? Todos pareciam iguais no meio da fumaa e da escurido.

    At hoje, quando ouo o soar trmulo de uma sirene que alerta sobre ataques areos em Londres, a adrenalina corre pelo meu corpo, fazendo ressurgir o medo e a tenso.

    Nesse perodo, a Luftwaffe atacou nossa cidade por 57 noites seguidas, com os ataques durando at oito horas sem intervalo. A cada noite vinham 1 500 avies, em ondas de 250. Naqueles dias sombrios, no conseguamos deixar de pensar que tudo aquilo que prezvamos a liberdade, a nao, a famlia, a civilizao seria enterrado sob a devastao criada por aqueles odiosos bombardeiros. Somente uma coisa nos dava esperana: a coragem dos pilotos da Royal Air Force [Fora Area Real] (RAF) que subiam aos cus a cada dia para enfrentar os alemes.

    Podamos ver o confronto areo do cho. Os Hurricanes e os Spitfires da RAF, pequenos e manobrveis, lembravam mosquitos importunando os gigantescos bombardeiros alemes. Embora sua causa parecesse perdida e mais da metade de seus avies fosse rapidamente derrubada, os pilotos da RAF jamais desistiam. A cada dia derrubavam mais alguns dos terrveis bombardeiros, que giravam em chamas at o cho, ao que todos assistamos vibrando e aos gritos. Por fim, a Alemanha no pde suportar as baixas constantes causadas pelos cada vez mais precisos pilotos de caa, e Hitler cancelou os ataques. Londres dormia novamente.

    Talvez no possamos acrescentar nada adorao que o povo de Londres dedicava queles bravos pilotos da RAF. Winston Churchill,11 em todo caso, conseguiu expressar nosso sentimento de gratido quando disse: "E, em toda a histria do conflito humano, nunca tantos deveram tanto a to poucos". Duvido que j tenha vivido um grupo de jovens to bajulado. Eles eram a nata da Inglaterra, os mais brilhantes, saudveis, confiantes e dedicados e, muitas vezes, os mais belos homens de todo o pas. Quando caminhavam pelas ruas com seus uniformes cobertos de medalhas, as pessoas os tratavam como deuses. Todos os olhares se viravam para eles. Os garotos corriam para toc-los e v-los mais de perto. Todas as outras garotas inveja-vam aquelas que eram felizardas por andar ao lado de um homem com o uniforme da RAF.

    Eu vim a conhecer alguns desses jovens, mas em circunstncias menos idlicas. Os Hurricanes, geis e eficientes como eram, tinham todavia um pequeno erro de projeto. O nico motor era montado na frente, a cerca de trinta centmetros da cabina do piloto, e os dutos de combustvel passavam pela cabina em direo ao motor. Com um tiro direto, a cabina poderia se transformar em uma bola de fogo. O piloto podia se ejetar, mas em um ou dois segundos que ele levava para achar a alavanca o calor lhe derretia partes do rosto: o nariz, as plpebras, os lbios e muitas vezes as bochechas. Conheci os heris da RAF envolvidos em 11 Estadista ingls (1874-1965). Um dos mais importantes chefes de Estado do sculo XX. nomeado primeiro-ministro em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo um dos lderes aliados. Em 1951, volta ao cargo de primeiro-ministro e, dois anos depois, recebe o ttulo de sir e o Prmio Nobel de Literatura. (N. do E.)

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  • bandagens, quando iniciavam a torturante srie de cirurgias necessrias ao reparo do rosto. Ajudei a tratar das mos e ps feridos dos aviadores que foram derrubados, ao mesmo tempo que um time de cirurgies plsticos passava a trabalhar nas faces queimadas.

    Sir Archibald McIndoe e seu time de cirurgies plsticos executavam milagres de reconstituio facial, inventando diversas tcnicas novas durante as operaes. Para as cirurgias faciais geralmente usavam o enxerto de pele do abdome ou do trax. Nos dias que antecediam a cirurgia microvascular, as grossas fatias de pele e gordura no poderiam ser simplesmente retiradas de uma parte do corpo e costuradas em outra. As faixas de pele eram removidas ainda com uma extremidade presa no antigo suprimento de sangue, enquanto a outra extremidade era ligada rea do enxerto, at que novos vasos crescessem para nutri-lo. Os cirurgies freqentemente usavam um processo de duas etapas, temporariamente conectando uma extremidade da borda da pele do abdome do paciente ao brao, at que o suprimento de sangue se desenvolvesse na regio. Eles ento cortavam as bordas da pele do abdome, de maneira que ficasse dependurada s pelo brao e utilizavam a outra ponta na testa, bochecha ou nariz. Com o tempo, o suprimento de sangue se desenvolvia na rea do enxerto facial, e a pele podia ser separada de seu hospedeiro provisrio, o brao.

    Em razo dessas complexas tcnicas, surgiam vises bizarras nas enfermarias: braos crescendo nas cabeas, um longo tubo de pele se estendendo da cavidade nasal como se fosse a tromba de um elefante e plpebras feitas de abas de peles to grossas que no podiam se abrir. Em meio a tantas vises, um aviador geralmente enfrentava de vinte a quarenta procedimentos cirrgicos antes de ser liberado.

    Ao longo dos enfadonhos procedimentos cirrgicos, o moral permanecia surpreendentemente elevado entre os pilotos, os quais estavam plenamente conscientes de suas contribuies patriticas. Enfermeiras maravilhosas davam o melhor de si para criar uma atmosfera agradvel e aconchegante, e os pilotos descontavam a dor zombando um do outro, de seus traos de homem-elefante. Eles eram pacientes ideais.

    Mas gradativamente, com as ltimas semanas de recuperao chegando ao fim, uma mudana se manifestava. Percebamos que muitos pilotos continuavam pedindo pequenas alteraes: uma narina um pouco fechada, uma boca um pouco elevada em um dos lados, um sutil afinamento da plpebra direita. Logo, todos notvamos, incluindo os pacientes, que eles estavam apenas ganhando tempo. Eles no podiam encarar o mundo exterior.

    Apesar dos milagres executados por McIndoe com suas maravilhosas tcnicas, cada face havia sofrido danos irreparveis. Nenhum cirurgio tinha condies de restaurar a variada gama de expresses do rosto de um belo jovem. Embora fosse tecnicamente uma obra de arte, a nova face era essencialmente uma cicatriz. Voc no consegue admirar a flexibilidade e a delicadeza quase transparente da plpebra antes de tentar criar uma a partir da pele spera do abdome. Aquele tecido protuberante e rgido proteger o olho de maneira adequada, mas sem nenhuma beleza.

    Lembro-me especialmente de um piloto da RAF, chamado Peter Foster, que me descreveu sua crescente ansiedade com a chegada do dia em que teria alta. Seus temores e preocupaes, dizia ele, incluam uma olhada no espelho. Por alguns meses voc usa o espelho diariamente, como um instrumento de medida, para examinar minuciosamente os progressos realizados por nossos cirurgies. Voc estuda o tecido das cicatrizes, as estranhas rugas da pele, a grossura dos lbios e a forma do nariz. Depois dessa pesquisa, voc pede ajustes para a melhora da aparncia, e os mdicos lhe dizem se o seu pedido cabvel.

    Mas, conforme se aproxima o dia de ter alta, a sua viso do espelho se altera. Agora, medida que voc contempla o reflexo de uma nova face, no aquela com a qual voc nascera, mas uma imitao inferior, voc tenta se enxergar como os outros o vero. No hospital, as pessoas sentiam orgulho de voc; l, voc era apoiado pela camaradagem de seus amigos e pelo auxlio dos funcionrios. J no mundo exterior, voc ser uma aberrao. O medo lhe causa arrepios. Seria possvel que alguma garota ousasse se casar com esse rosto? Ser que algum me dar um emprego?

    Foster conclua que nesse momento crtico, quando cada aviador contemplava a nova imagem de si mesmo como o resto do mundo a veria, s uma coisa importava: a reao da famlia e dos amigos mais ntimos. O relativo sucesso dos cirurgies na reconstituio do rosto contava pouco. O futuro dependia da reao dos familiares notcia de que os cirurgies j tinham feito tudo o que era possvel e o seu rosto jamais seria aprimorado. O que seria notado pelo aviador, uma calorosa aceitao ou certa hesitao?

    Tais reaes claramente distintas dividiam os aviadores em dois grupos separados de uma forma que

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  • eu nunca havia visto , cujos progressos eram acompanhados por psiclogos. Em um grupo estavam aqueles cujas namoradas e mulheres no conseguiam aceitar seus novos rostos. Essas mulheres, que j haviam idolatrado seus hericos amantes, calmamente se afastavam ou entravam com pedido de divrcio. Os aviadores que deparavam com essa reao mudavam de personalidade. Tornavam-se reclusos, evitando aventurar-se fora de casa, exceto noite, e procuravam por algum tipo de trabalho que pudesse ser feito em casa. Em contrapartida, aqueles cujas mulheres e namoradas ficaram firmes ao seu lado foram extremamente bem-sucedidos afinal, eles eram a elite da Inglaterra. Muitos se tornaram executivos e profissionais de sucesso, lderes de suas comunidades.

    Peter Foster com gratido admitia pertencer ao grupo dos felizardos. Sua namorada lhe assegurou que nada se havia alterado, alm de uma pele alguns milmetros mais espessa. Ela disse que o seu amor era por ele, e no por sua membrana facial. Os dois se casaram um pouco antes de Peter deixar o hospital.

    Como era esperado, Peter deparou com algumas dolorosas rejeies. Muitos rapidamente desviavam o olhar quando ele se aproximava. As crianas, cruis em sua honestidade, faziam caretas, riam e zombavam dele.

    Peter tinha vontade de gritar: "Por dentro, eu sou a mesma pessoa que voc j conhecia! Voc no consegue me reconhecer?". Em vez disso, ele aprendeu a se voltar para sua mulher. "Ela se tornou o meu espelho. Deu-me uma nova imagem de mim mesmo", ele dizia agradecido. "Mesmo agora, independentemente de como me sinto, quando olho para ela, recebo um sorriso amoroso e caloroso, que me diz que estou bem."

    Vrios anos aps ter trabalhado com pilotos, li um artigo profundamente perturbador intitulado "O complexo de Quasmodo", na British Journal of Plastic Surgery [Revista Britnica de Cirurgia Plstica]. Nele, dois mdicos relataram seu estudo feito com onze mil presidirios condenados por assassinato, prostituio, estupro e outros crimes graves. Eles cuidadosamente documentaram uma tendncia que irei resumir com uma comparao genrica. Em uma populao adulta normal, pode-se dizer que 20,2% das pessoas portam deformaes faciais passveis de correo cirrgica (orelhas protuberantes, nariz deformado, bochechas profundas, marcas de acne, marcas de nascena, deformaes oculares). Mas a pesquisa revelou que, dentre os onze mil criminosos, 60% apresentavam essas caractersticas.

    Os autores, que chamaram o fenmeno de Quasmodo,12 o "cor-cunda de Notre-Dame", da obra de Victor Hugo, terminaram o artigo com algumas questes preocupantes. No teriam esses criminosos deparado com hostilidades ou rejeio por parte de seus colegas de escola, tanto no ensino fundamental quanto secundrio, por causa de suas deformidades? Seria possvel que o cruel deboche das outras crianas os tivesse lanado ao estado de desequilbrio emocional, que os acabou levando prtica de atos criminosos?

    Os mdicos chegaram a propor um programa de cirurgia plstica corretiva para presidirios voluntrios.13 Imaginavam que, se a aparncia externa fez a sociedade rejeit-los, possivelmente levando-os ao crime, qui a alterao dessa aparncia pudesse ajud-los na reabilitao, ao alterar sua auto-estima. Seja um assassino no corredor da morte, seja um piloto de elite da RAF, uma pessoa forma sua auto-estima baseada, principalmente, no tipo de imagem que outras pessoas tm dela.

    O relatrio sobre o complexo de Quasmodo transforma em estatsticas uma verdade que assombra todas as vtimas de queimaduras, invaldez e lepra. Ns, humanos, nos preocupamos excessivamente com o corpo fsico, ou a casca na qual vivemos. preciso uma pessoa verdadeiramente especial, como a mulher de Peter Foster, para olhar atravs dessa casca e reconhecer o valor essencial do ser humano, a intrnseca imagem de Deus.

    Ao refletir sobre o complexo de Quasmodo, compreendi que de uma forma sutil, e s vezes no to sutil, eu tambm julguei e rotulei pessoas com base na aparncia. Recordo-me de urna antiga tradio familiar que eu costumava pr em prtica com meus filhos. A cada ano nas frias de vero, eu inventava uma srie de histrias de aventuras em que cada membro da famlia era representado por nome e personagem. Todas as noites na hora de dormir, eu prosseguia com a narrao, tentando entremear algumas mensagens proveitosas: as crianas escutavam histrias nas quais elas mesmas davam inesperadas demonstraes de coragem e altrusmo, que mais tarde talvez pudessem ser praticados na vida real.

    12 Personagem de Notre-Dame de Paris (O corcunda de Notre-Dame), de Victor Hugo. Sineiro da catedral de Notre-Dame, tem oculta sob o aspecto grosseiro de suas deformaes fsicas a mais sublime delicadeza de sentimento. (N. do E.)13 Graas, em parte, s descobertas dos autores (F. W. Masters e D. C. Greaves), vrios Estados americanos estabeleceram programas abrangentes para a oferta de cirurgias plsticas gratuitas aos prisioneiros com deformidades.

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  • Todavia, as histrias continham viles tambm. Eu aumentava a tenso e o entusiasmo dia aps dia com os viles atraindo as crianas para situaes impossveis, das quais elas deviam desvencilhar-se por si mesmas. Hoje, ao me lembrar dessas histrias, recordo com remorso que meus principais viles, que tornavam a aparecer todos os anos nas narrativas, traziam os nomes de Cicatriz e Corcunda. Um tinha uma medonha cicatriz que lhe atravessava o rosto; o outro era baixo e tinha uma corcunda nas costas. No decorrer do enredo, os dois tentavam disfarar essas caractersticas, mas cedo ou tarde as crianas percebiam os disfarces e desmascaravam os viles.

    Por que, eu me pergunto hoje em dia, fui dar aos homens maus das minhas histrias esses nomes e caractersticas? Sem dvida alguma, segui o esteretipo universal de qualificar o feio como o mau e o bonito como o bom. Ser que inadvertidamente encorajei meus filhos a identificar a feira com a maldade, fazendo com que possivelmente lhes fosse mais difcil amar aquelas pessoas que carregam deformaes e cicatrizes?

    PRNCIPES MEDIEVAIS COSTUMAVAM colecionar anes, monstros e corcundas para a prpria diverso. Nossa sofisticao no permite esse tipo de prtica, mas no deslizamos em rejeies sutis com o mesmo efeito?

    Aps entender o complexo de Quasmodo e reconhecer caractersticas de rotulao e julgamento em meus prprios contos, comecei a observar mais atentamente as influncias culturais que determinam os padres de valor e receptividade humana. Nos Estados Unidos, o ideal nacional o macho alto, bonito e confiante, ou a fmea sorridente e com curvas, porm esbelta. Anncios de programas de musculao, dietas, remodelagem facial e roupas para "a imagem correta" revelam nosso compromisso cultural com a beleza fsica. Se avalissemos a populao americana pelas imagens que aparecem em revistas ou na televiso, poderamos chegar concluso de que vivemos em uma sociedade de deuses e deusas.

    Tenho visto o efeito de longo prazo que nossa devoo perfeio fsica exerce sobre meus pacientes com lepra, que nunca tero a aparncia de um atleta olmpico ou de uma miss Universo. Pude observar mais influncias sutis agirem em meus filhos, logo que passaram a freqentar a escola pblica. De certo modo, nossos conceitos culturais nos aprisionaram de tal forma, que no conseguimos admitir que uma criana seja desajeitada, tmida ou sem atrativos. Essas crianas deparam com uma rejeio constante e sem amparo. Os "espelhos" ao redor determinam a imagem que elas devem ter, mas no conseguem alcanar. Quantos Salks14 ou Pasteurs15 foram perdidos por causa desse terrvel processo de rejeio pelos companheiros? Ns tambm temos muito a aprender sobre sermos espelhos.

    PASSEI TODA A VIDA NA medicina, tentando melhorar as "cascas" de meus pacientes. Eu me empenhei para restaurar mos, ps e faces deformadas, em relao s formas originais. Senti-me profundamente satisfeito ao ver aqueles pacientes reaprendendo a andar e a usar os dedos, podendo assim retornar para suas comunidades e famlias com a oportunidade de ter uma vida normal.

    Ainda assim, cada vez mais percebo que a casca fsica qual dediquei tanto esforo a pessoa por inteiro. Meus pacientes no so apenas conjuntos de tendes, msculos, folculos capilares, clulas nervosas e epiteliais. Cada um deles, apesar da aparncia deformada e das leses fsicas, contm um esprito imortal que um vaso da imagem de Deus. Suas clulas fsicas um dia se reuniro aos elementos bsicos da terra, o hmus que constitui a parte material da humanidade. Mas suas almas permanecero, e meu efeito sobre essas almas deve ser muito mais valorizado que meus esforos de melhorar seus corpos fsicos.

    Embora eu viva em uma sociedade que venera a fora, a riqueza e a beleza, Deus me enviou aos pacientes de lepra, que so geralmente fracos, pobres e sem atrativos. Nesse ambiente, aprendi que todos ns somos espelhos, tal qual a mulher de Peter Foster. Cada um de ns tem a capacidade de evocar nas pessoas que conhecemos a imagem de Deus, a fasca da semelhana de Deus no esprito humano. Ou, em vez disso, podemos ignorar ou apagar essa imagem e julgar somente pela aparncia. Oro para que, ao ver uma pessoa, eu veja a imagem de Deus dentro dela, seu valor fundamental, e no apenas a "imagem" cultural que todos nos esforamos para conquistar.16

    Madre Teresa17 dizia que, quando olhava para a face de um mendigo moribundo em Calcut, orava para ver a face de Jesus e assim poder servir ao mendigo como ela serviria a Cristo. Em uma passagem citada com freqncia, C. S.

    14 Jonas EDWARD SALK, bacteriologista americano. Desenvolveu a primeira vacina injetvel contra a poliomielite, chamada vacina Salk, em meados da dcada de cinqenta. (N. do E.)15 Louis PASTEUR, qumico e microbiologista francs (1822-1895). o descobridor da vacina anti-rbica. (N. do E.)16 O autor de Provrbios indica o valor inerente a cada pessoa nesta curiosa afirmao: "Oprimir o pobre ultrajar o seu Criador, mas tratar com bondade o necessitado honrar a Deus" (14.31).17 Freira catlica de origem iugoslava (1910-1997). Em Calcut, na ndia, fundou a Ordem das Missionrias da Caridade que, em 1965, tornou-se congregao pontificai (sujeita apenas ao Papa). (N. do E.)

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  • Lewis expressou um pensamento anlogo:

    uma grande responsabilidade viver em uma sociedade de possveis deuses e deusas, sem esquecer que a mais aborrecida e desinteressante pessoa com quem voc fala hoje pode algum dia se tornar uma criatura que, se voc a visse agora, se sentiria fortemente tentado a adorar. Ou poderia talvez se transformar em algo horrvel ou deformado, que voc atualmente conhece, quando muito, somente em pesadelos. Durante todo o dia, em maior ou menor grau, ns nos ajudamos a chegar a um desses dois destinos.

    3 RestauraoO prprio Ado est agora disperso por toda a superfcie da terra.

    Antes concentrado em um nico lugar, ele caiu;tendo sido quebrado em pedaos, por assim dizer, ele

    preencheu o universo com seus fragmentos. Entretanto, amisericrdia de Deus juntou seus pedaos espalhadospor toda parte e, fundindo-os no fogo de sua caridade,

    reconstituiu sua unidade quebrada.

    AGOSTINHO, DOUTOR DA IGREJA LATINA CIDADE DE DEUS

    O ideal cristo mudou e inverteu tudo, de forma que, como ditono evangelho: "Aquilo que tem muito valor entre os homens

    detestvel aos olhos de Deus". O ideal j no a grandeza de umfara ou de um imperador romano, nem a beleza de um grego oua riqueza da Fencia, mas a humildade, a pureza, a compaixo eo amor. O heri no o rico, mas o mendigo Lzaro; no Maria

    Madalena em seus dias de beleza, mas no dia de seuarrependimento; no os que adquirem riquezas,

    mas os que as abandonam; no os que moram em palcios,mas os que vivem em catacumbas e cabanas; no os

    que dominam sobre os outros, mas os que no admitemnenhuma autoridade alm da de Deus.

    LEON TOLSTOI, WHAT IS ART [O QUE ARTE]

    ENCONTRO-ME DE P NA fantstica Capela Sistina. A maioria dos turistas j se foi, o crepsculo se aproxima e a luz amadureceu em um belo tom dourado. J sinto uma leve dor no pescoo por manter a cabea nas mais estranhas posies e imagino rapidamente como Michelangelo deveria se sentir aps um dia de trabalho naquelas pinturas no teto.

    Meus olhos ficam se voltando para a cena principal, na qual se v Deus concedendo vida ao homem. A imagem de Deus simboliza tudo aquilo que valoriza e dignifica o homem e a mulher, e nada poderia demonstrar melhor esse poder intrnseco do que as pinturas que me cercam. Entretanto, mesmo enquanto admiro a cena da criao, algo me incomoda. Michelangelo foi maravilhosamente bem-sucedido na representao da dualidade humana e do drama da Criao. Porm, ele nitidamente falhou, como deve acontecer com todos os artistas, na representao do prprio Deus. O Deus de Michelangelo no um esprito, mas um Deus feito imagem do homem.

    Seis sculos antes de Cristo, o filsofo grego Xenfanes18 observou que:

    Se touros, cavalos e lees tivessem mos ou pudessem desenhar com as patas e criassem obras de arte como as feitas pelo homem, os cavalos desenhariam imagens de deuses como cavalos, e os touros, de deuses como touros [...] os etopes possuem deuses com narizes chatos e cabelos pretos; os trcios tm deuses ruivos e de olhos cinzentos.

    O Deus de Michelangelo tem a forma e a estrutura de um ser humano e at mesmo o nariz adunco dos romanos, tal qual o de Ado. O artista retratou a semelhana entre Deus e o homem em seu aspecto literal e fsico, no espiritualmente. Realmente, se voc pegasse o rosto de Ado na pintura, envelhecesse ao redor dos olhos e o coroasse com cabelos brancos e soltos e uma barba, teria a representao que Michelangelo fez de Deus-Pai.

    18 Fundador da escola Elia. Dedicou-se a demonstrar a unidade e a perfeio de Deus. Sua filosofia um pantesmo idealista. (N. do E.)

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  • Como seria possvel a um artista representar um Deus que esprito? E, se no podemos v-lo, como poderemos contemplar sua imagem? Nosso vocabulrio, requintado e preciso na descrio do mundo material, silencia diante da profundidade do esprito. A prpria palavra "esprito" significa em muitas lnguas to-somente um sopro ou um vento. Mas todo o Antigo Testamento insiste na verdade fundamental de que Deus esprito, e nenhuma imagem fsica pode captar sua essncia.

    O segundo dos Dez Mandamentos probe que se desenhe ou faa uma imagem de escultura com o objetivo de representar Deus. Todas as vezes que os judeus tentaram, Deus viu esse ato como profanao. Depois de viver em um pas onde imagens de dolos so abundantes, bem posso entender essa proibio.

    O hindusmo19 tem mais de mil imagens diferentes, e eu mal podia atravessar um quarteiro de uma cidade indiana sem ver um dolo ou uma imagem. medida que observava os efeitos daquelas imagens no indiano comum, percebia dois efeitos mais freqentes. Para a maioria, as imagens vulgarizavam os deuses, que perdem qualquer aura de santidade e mistrio e se transformam em mascotes ou amuletos de boa sorte. Um motorista de txi coloca a esttua de uma deusa em seu carro e oferece a ela flores e incenso como orao para a segurana dele. Para outros, os deuses podem tornar-se smbolos grotescos que provocam uma postura de medo e servido. Kali,20 por exemplo, deusa violenta de Calcut,21 tem uma lngua flamejante e usa um adorno de cabeas ensangentadas ao redor de sua cintura. Os hindus podem adorar cobras, ratos, um smbolo flico e at mesmo uma deusa da varola; imagens como essas lotam os ornamentados templos.

    Com sabedoria, a Bblia adverte para no reduzirmos a imagem de Deus ao nvel da matria fsica; uma imagem desse tipo limita muito facilmente nossos conceitos da verdadeira natureza de Deus, e poderamos pensar nele como um velho homem barbado no cu, tal qual a figura da pintura de Michelangelo. Sendo esprito e onipresente, Deus no pode ter uma forma limitada. "Com quem vocs compararo Deus?", pergunta Isaas; "Como podero represent-lo?" (40.18).22

    PORTANTO, TEMOS UM DEUS que no pode ser captado em uma imagem visvel. Mas qual a aparncia de Deus? Como posso ach-lo?

    Onde est a imagem dele? De alguma forma, a essncia de Deus entrou nos corpos dos primeiros humanos criados, e eles trouxeram em si a imagem de Deus sobre este planeta. Durante algum tempo, as duas naturezas, a natureza fsica, com rgos, sangue e ossos, e a natureza espiritual, puderam ter uma comunicao direta com Deus, integrar' se em harmonia. Infelizmente, essa situao no durou muito tempo.

    O relato da Queda, registrado em Gnesis 3, rompeu a harmonia existente entre as duas naturezas. A desobedincia de Ado e de Eva arruinou para sempre a imagem de Deus que eles traziam, e naquele instante um enorme abismo se abriu, destruindo a unio entre Deus e a humanidade. Agora, quando olhamos para os seres humanos, encontramos misturada entre eles gente como Gngis Khan,23 Josef Stalin24 e Adolf Hitler.25 E correto afirmar que evidncias dramticas dessa imagem quebrada transbordam de cada um de ns. As pessoas j no podem expressar satisfatoriamente sua semelhana com Deus; a histria prova de forma sombria quanto somos diferentes dele.

    No nos suficiente refletir o pouco que restou de esprito e de valor dentro de cada pessoa. Precisamos de algo maior, muito maior, para saber como Deus se parece. Precisamos de nova imagem, nova demonstrao da semelhana de Deus em nosso planeta.

    Os cristos acreditam que temos essa imagem na pessoa de Jesus Cristo, o segundo Ado, cuja vinda se mostrou to revolucionria que se tornou centro de uma nova religio. Deus, sendo esprito, concordou em 19 Termo que designa a corrente religiosa majoritria na ndia. organizado em torno de um corpo de textos snscritos considerados como "a revelao" (sruti), que compreendem principalmente os Vedas e os Upanishads, compilados entre 2000 e 600 a.C. (N.doE.)20 Nome de uma deusa do panteo hindu que representa a destruio e a morte. (N. do E.)21 Cidade da ndia, capital do Estado de Bengala Ocidental. (N. do E.)22 V Isaas 44, discurso de Deus que nos d um resumo convincente, porm brilhante da tolice de fazer dolos.23 Fundador do imprio mongol. Foi eleito khan (chefe) de sua tribo em 1196, provavelmente sob o nome de Tchingiz Kagan (ou Gngis, Chinghis ou Jnghis, palavra que significa "oceano"; a expresso Gngis Khan significa, assim, "chefe ocenico" ou "soberano universal"). (N. do E.)24 O poltico sovitico e lder revolucionrio (1879-1953) nasceu Josef Vissarionovitch Djugachvili, em Gori, na Gergia, e adotou o nome de Stalin (homem de ao). Em 1917, participa da Revoluo Russa. Foi secretrio-geral do Partido Comunista e sucedeu a Lenin depois de sua morte (1924), derrotando Leon Trotski e os maiores lderes do partido bolchevique. (N. do E.)25 Lder poltico alemo nascido na ustria (1889-1945). Em 1919, filia-se ao Partido Operrio Alemo (DAP), rebatizado no final de 1920 como Partido Operrio Nacio-nal-Socialista Alemo (NSDAP), que ganha o apelido de nazi. No ano seguinte, passa a chefiar o partido e em 1930 ganha a cidadania alem. Nomeado chanceler, assume o poder na Alemanha em janeiro de 1933. Foi desencadeador da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), responsvel por um dos maiores genocdios da histria e mandante direto do extermnio de cerca de seis milhes de judeus. (N. do E.)

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  • se tornar homem, encarnando seu prprio esprito. Dentro de um corpo de pele, ossos e sangue, Deus viveu na matria como se fora um microcosmo; como o sol em uma gota d'gua. E nas palavras concisas de G. K. Chesterton: "Deus, que tinha sido apenas uma circunferncia, foi visto como o centro".

    O Novo Testamento aplica a palavra "imagem" a Jesus Cristo em trs lugares (Cl 1.15; 2Co 4.4; Hb 1.3). A passagem em Hebreus diz que ele o "resplendor da glria de Deus e a expresso exata do seu ser". Cristo veio terra nos oferecer uma imagem no sentido mais puro da palavra: um reflexo preciso de como o Pai, em forma corprea. "No Pai", diz Michael Ramsey,26 "no h nenhuma dessemelhana com Cristo".

    Os mdicos nos alertam quanto a olharmos para o cu e vermos o brilho do sol, mesmo que por um instante. Isso sobrecarregaria as clulas fotorreceptoras, de forma que mesmo com os olhos fechados a imagem dessa estrela ainda apareceria marcada em nossas retinas como um ferro em brasa. O mesmo acontece com Jesus Cristo: em uma forma que ns podemos visualizar, ele marca nossa percepo com a imagem de Deus.

    Aqui temos uma estranha verdade: a imagem de Jesus se revelou surpreendente para quase todo o mundo. A maioria de ns ouviu e viu a histria de Jesus ser contada com tanta freqncia, que decoramos noes preconcebidas de como Jesus era. Nunca seremos capazes de compreender o choque, o terrvel choque da forma incgnita que Deus tomou para si mesmo. Em sua entrada, ele desconsiderou Roma, claro, e at mesmo Jerusalm; escolhendo, em vez disso, uma cidade minscula e sem valor. Ele estava to espetacularmente fora das expectativas das pessoas quanto divindade, que alguns perguntaram, incrdulos: "Esse no o filho do carpinteiro?". A inevitvel calnia tnica veio a seguir: "Nazar! Pode algo bom vir de l?". Nem mesmo os seus irmos acreditavam nele e pelo menos uma vez o consideraram louco. Joo Batista, que havia predito a vinda de Cristo e que o tinha batizado, balanou em sua f j prximo do fim. O seguidor mais ntimo de Jesus o amaldioou.

    Jesus afirmou ser um rei maior que Davi, mas havia pouca coisa nele que condizia com a imagem da realeza. Jesus no carregava armas, no agitava bandeiras e, a nica vez que permitiu uma procisso, montou num burro, com os ps arrastando pelo cho. evidente que Jesus no se mostrava altura da imagem que se esperava de um rei ou de um Deus.

    Instintivamente imaginamos Jesus como fisicamente perfeito, e, na arte, ele retratado como alto, com cabelos longos e soltos, com belas feies fsicas, modeladas de acordo com os ideais aceitos pela cultura artstica. Mas com base em qu.7 Pelas evidncias da Bblia, nada em Jesus o fazia fisicamente especial.

    Certa vez em minha infncia, a gentil tia Eunice chegou de um estudo bblico absolutamente furiosa. Algum havia lido uma descrio de Jesus, escrita por Josefo ou outro historiador, que o caracterizava como corcunda. Tia Eunice tremia de vergonha e raiva, e seu rosto ficou vermelho. "Isso uma blasfmia", dizia ela. "Uma absoluta blasfmia! Aquilo uma caricatura horrenda e no uma descrio do meu Senhor!" Sendo uma criana impressionvel, no pude evitar de concordar com a cabea, solidariamente indignado.

    Apesar de a idia ter me chocado muito poca, hoje no me chocaria nem um pouco descobrir que Jesus no era bem-apessoado nem tinha aparncia ou o fsico ideal. Embora a Bblia no inclua uma descrio do rosto e do corpo de Jesus, h uma espcie de descrio na profecia do Servo sofredor em Isaas:

    Assim como houve muitos que ficaram pasmados diante dele; sua aparncia estava to desfigurada, que ele se tornou irreconhecvel como homem; no parecia um ser humano [...] Ele no tinha qualquer beleza ou majestade que nos atrasse, nada havia em sua aparncia para que o desejssemos. Foi desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de dores e experimentado no sofrimento. Como algum de quem os homens escondem o rosto, foi desprezado, e ns no o tnhamos em estima (52.14; 53.2,3).

    Socialmente, em seus ensinamentos sobre si mesmo, Jesus se identificou com o faminto, o doente, o rejeitado, o nu e o encarcerado to completamente, que ele nos diz que qualquer coisa que faamos pela menor dessas pessoas tambm faremos por ele (Mt 25.40). No encontramos o Filho de Deus nos corredores do poder e da riqueza, mas nos desvios da necessidade e do sofrimento humano. Cristo escolheu identificar-se principalmente com aqueles que parecem repulsivos e inteis aos olhos do mundo.

    esse aspecto da identificao pessoal de Jesus com o humilde, mais que qualquer outro, que me ensinou sobre as enormes diferenas entre as diversas utilizaes da palavra "imagem". Na imagem do mundo a imagem que exploramos hoje nas competies por prestgio, concursos de beleza, campanhas publicitrias , Deus no deixou nenhuma marca especial na terra. Todavia, at mesmo uma pessoa da

    26 Prelado anglicano (1904-1988). Arcebispo da Canturia (1961-1974), batalhou arduamente para reaproximar as igrejas crists. (N. do E.)

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  • insignificante cidade de Nazar, o filho de um carpinteiro, um corpo ferido contorcendo-se numa cruz, at ele poderia expressar a imagem, a exata semelhana de Deus.

    No tenho como lhe passar o impacto que essa nica verdade pode ter quando ela comea a manifestar-se plenamente em uma pessoa que nunca alcanar o padro da sociedade, como, por exemplo, uma vtima da lepra, incrivelmente pobre e fisicamente deformada. Para uma pessoa dessas, Jesus se torna a nica esperana de recuperao.

    JESUS, A EXATA SEMELHANA DE Deus em carne, expressou a imagem do Pai na forma humana. Mas desde o comeo ele nos alertou de que a sua presena fsica seria temporria. O objetivo dele estava mais alm: restaurar a arruinada imagem de Deus na humanidade.

    A atividade de Deus na terra no teve fim com Jesus, e sua imagem no desapareceu quando partiu. Os autores do Novo Testamento estendem o sentido do termo a um novo corpo que Deus est criando a partir dos "membros" homens e mulheres reunindo-se para realizar o trabalho de Deus. Ao se referirem a esse corpo, tais escritores se utilizam claramente da mesma palavra que antes descrevia a fagulha do divino no homem e que, mais tarde, descreveu Cristo. Segundo Paulo, somos chamados para sermos "conformes imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primognito entre muitos irmos" (Rm 8.29).

    Este livro, imagem e semelhana de Deus, no essencialmente um tratado sobre a natureza do homem e da mulher como indivduos. No vamos analisar os atributos psicolgicos e mentais de cada um de ns que podem refletir a imagem de Deus. Em vez disso, vamos nos concentrar em uma comunidade, no grupo de homens e mulheres de Deus que so chamados, por mais de vinte vezes no Novo Testamento, de o corpo de Cristo. Todos os que estamos associados a ele somos uma extenso da encarnao. A imagem de Deus sobrevive e se multiplica em milhes de pessoas comuns, assim como ns. Trata-se de um mistrio divino.

    Somos chamados a levar essa imagem como um corpo, porque qualquer um de ns, individualmente, apresentaria uma imagem incompleta. Essa imagem seria em parte falsa e invariavelmente distorcida, como uma nica lasca cortada de um espelho. Mas, juntos, com toda a nossa diversidade, podemos formar uma comunidade de crentes para recuperar a imagem de Deus no mundo.

    Para termos um padro a seguir, basta voltar os olhos para Jesus, aquela divina imagem marcada em nossa conscincia. As qualidades surpreendentes que Jesus demonstrou humildade, dom de servir, amor tambm se tornam modelo para seu corpo. J no precisamos lutar para construir nossas imagens, para provar algo ns mesmos. Em vez disso, podemos concentrar nossa vida em anunciar sua imagem. E o que conta para um grande sucesso na cultura popular fora, inteligncia, riqueza, beleza, poder significa muito pouco para essa imagem.27

    Eu nunca havia entendido o padro revolucionrio que Jesus estabeleceu at comear a trabalhar com pacientes leprosos na ndia. Eu repetidamente via essas pessoas, to cruelmente banidas da sociedade, de alguma forma irradiarem o amor e a bondade de Deus muito melhor do que alguns cristos ricos, bonitos e prsperos que conheci. Assim como o prprio Deus assumiu uma imagem humilde, tambm parecia que seus mais fiis seguidores geralmente revelavam essa mesma caracterstica simplria. Eles tinham um direito mais do que natural de sentir raiva e amargura, todavia o grau de dedicao e maturidade espiritual entre os pacientes que chegaram a conhecer Jesus era tal que deixava mdicos e missionrios envergonhados. Enfrentei o paradoxo pelo qual aqueles que tinham menos motivos para ser gratos a Deus eram os que demonstravam melhor seu amor.

    Essa tendncia apareceu com tamanha fora e constncia, que me levou a examinar passagens bblicas as quais eu nunca levara a srio e que, confesso, me constrangeram. Ao descrever a igreja de Corinto, Paulo disse:

    Irmos, pensem no que vocs eram quando foram chamados. Poucos eram sbios segundo os padres humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento. Mas Deus escolheu o que para o mundo loucura para envergonhar os sbios, e escolheu o que para o mundo fraqueza para envergonhar o que forte. Ele escolheu o que para o mundo insignificante, desprezado e o que nada , para reduzir a nada o que , a fim de que ningum se vanglorie diante dele (ICo 1.26-29).

    As afirmaes de Jesus tambm vieram mente: o Sermo do Monte, em que ele misteriosamente abenoa o pobre, o que chora, o perseguido; seus comentrios de quanto difcil para o rico entrar no reino

    27 "No se glorie o sbio em sua sabedoria nem o forte em sua fora nem o rico em sua riqueza, mas quem se gloriar, glorie-se nisto: em compreender-me e conhecer-me, pois eu sou o SENHOR e ajo com lealdade, com justia e com retido sobre a terra, pois dessas coisas que me agrado" (Jr 9.23,24).

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  • dos cus; sua repulsa ao orgulho e auto-suficincia. inevitvel que, ao ler essas passagens agora, meus pensamentos fiquem dando voltas naquela palavra

    especfica que temos discutido: imagem. Esforo-me ao mximo por melhorar a auto-imagem danificada dos pacientes de que trato. Mas, quando leio as Escrituras, encontro novo tipo de imagem; uma imagem em que no se aplicam as mesmas regras. Em todo caso, o princpio oposto vlido; um tipo de complexo de Quasmodo s avessas.

    A auto-imagem humana alimenta-se de atrao fsica, habilidade atltica, ocupao digna. Trabalhei para dar essas ddivas a pilotos feridos na Inglaterra e pacientes leprosos na ndia e agora nos Estados Unidos. Mas, paradoxalmente, qualquer uma dessas qualidades desejveis pode erguer uma barreira contra a imagem de Deus; pois praticamente qualquer qualidade que possa apoiar uma pessoa torna mais difcil a ela confiar no esprito de Deus. O belo, o forte, o politicamente poderoso e o rico dificilmente representam a imagem de Deus. Em vez disso, o esprito de Deus brilha com mais fora por meio da debilidade do fraco, da impotncia do pobre, da deformidade do corcunda. Mesmo que os corpos estejam destrudos, a imagem pode crescer mais radiante.

    A princpio, achei esse discernimento na natureza do corpo de Cristo desagradvel. Talvez porque me tivesse trazido a incmoda conscincia de que, no mais das vezes busquei me cercar do bem-sucedido, do inteligente e do belo. Com demasiada freqncia julguei pela imagem das pessoas em vez de julgar pela imagem de Deus. Mas, quando refleti sobre minha vida e sobre as pessoas que melhor representaram a imagem de Deus para mim, minha mente fixou-se especialmente em trs pessoas. E nenhuma delas alcanara o padro humano de sucesso.

    QUANDO CRIANA, FREQENTEMENTE ia a grandes igrejas e retiros, onde pude ouvir alguns dos mais famosos oradores cristos da Inglaterra; muitos deles demonstravam grande eloqncia e erudio. Mas outro tipo de orador tem um lugar especial em minha memria: Willie Long, homem que encontrei na Igreja Metodista Primitiva de uma estncia de veraneio. Willie subiu ao plpito com seu agasalho azul de pescador, com as escamas de peixe ainda presas em suas laterais, trazendo um aroma salgado para o salo da igreja. Todavia, esse homem sem educao, com um forte sotaque de Norfolk, pouca noo de gramtica, de f simples, provavelmente fez mais para estimular minha f naqueles anos de formao do que todos os famosos oradores juntos. Quando ele se ps a falar de Cristo, falava de um amigo pessoal e irradiava o amor de Deus com suas lgrimas. Willie Long, que tinha pouca importncia para a imagem do homem, mostrou-me a imagem de Deus.

    Mais tarde, na ndia, observei, espantado, a harmonia espiritual que ligava os pacientes cirurgia Mary Verghese. E ela era incomparvel: uma cirurgi paraplgica.

    Mary havia sofrido um grave acidente de carro, que a deixou paralisada da cintura para baixo; era uma das minhas alunas mais promissoras. Durante meses ficou deitada em uma cama de hospital, resistindo recuperao. Mary depositava suas esperanas em uma cura divina, dizia ela, e exerccios de reabilitao para paraplegia seriam apenas perda de tempo. Algum dia, Deus restauraria completamente o uso de suas pernas.

    Por fim, Mary conseguiu a coragem para desistir daquela exigncia de cura milagrosa, em troca da compreenso de que o poder do Esprito Santo se revelava melhor em sua fraqueza. Indo contra todas as probabilidades, ela completou o curso de cirurgia e se tornou uma poderosa fora espiritual no hospital da Christian Medicai College [Faculdade Crist de Medicina].

    Alm da paraplegia, Mary sofreu vrias leses faciais. Aps uma srie de operaes para reconstruir a estrutura ssea do rosto dela, o cirurgio plstico no teve escolha a no ser deixar uma enorme e deselegante cicatriz atravessando seu rosto. Em razo disso, ela tinha um sorriso estranho e assimtrico. Pelos padres da perfeio fsica, no teria uma avaliao muito alta. Ainda assim, ela tinha um profundo impacto sobre os pacientes em Vellore.

    Os deprimidos pacientes de lepra vagavam pelos corredores da enfermaria (naquela poca seu trnsito na maioria dos hospitais era limitado). De repente, eles ouviam um rangido baixo que significava a aproximao da cadeira de rodas de Mary. De uma s vez, toda a fileira de rostos se iluminava com sorrisos radiantes, como se algum tivesse acabado de dizer que estavam todos curados. Mary tinha o poder de renovar a f e a esperana daquelas pessoas. Assim, quando penso em Mary Verghese, no vejo sua face, mas seu reflexo nos rostos sorridentes de tantos outros; no a imagem dela, mas a imagem de Deus derramada por seu imperfeito corpo humano.

    Uma ltima pessoa se sobressai entre todas as outras que influenciaram minha vida: minha me, conhecida como Granny Brand. Digo isso com carinho e amor, mas na velhice restava pouca beleza fsica

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  • em minha me. Ela tivera uma beleza clssica quando jovem tenho fotografias para provar mas no em sua velhice. As severas condies de vida na ndia, associadas a quedas traumatizantes e sua luta contra a febre tifide, disenteria e malria, fizeram dela uma senhora magra e corcunda. Anos de exposio ao vento e ao sol curtiram a pele de seu rosto como couro e fizeram rugas profundas e extensas como eu nunca tinha visto em um rosto humano. Ela sabia melhor do que ningum que a sua bela aparncia fsica a abandonara havia muito tempo por essa razo ela se recusava obstinadamente a manter um espelho dentro de casa.

    J com a idade de 75 anos, enquanto trabalhava nas montanhas do sul da ndia, minha me caiu e quebrou o quadril. Ela passou toda a noite deitada no cho sentindo dores, at que um trabalhador a encontrou na manh seguinte. Quatro homens a carregaram montanha abaixo, em uma maca feita de cordas e madeira, at a plancie e a colocaram em um jipe, que percorreu agonizantes 240 quilmetros de estrada de terra. (Ela j havia feito esse trajeto, aps cair de cabea para baixo de um cavalo em uma montanha rochosa, e tinha experimentado alguma paralisia abaixo dos joelhos.)

    Logo marquei uma visita a minha me em sua casa de barro nas montanhas, com a inteno de convenc-la a se aposentar. Naquela poca, s conseguia andar com a ajuda de duas varas de bambu mais altas que ela. Minha me apoiava-se nas varas e levantava suas pernas, evitando a cada passo doloroso que seus ps paralisados se arrastassem pelo cho. Ainda assim, ela continuava viajando a cavalo e acampando nas vilas afastadas para pregar o evangelho, tratar os doentes e arrancar os dentes podres dos aldees.

    Apresentei argumentos irrefutveis para sua aposentadoria. No era seguro para ela continuar vivendo sozinha em um lugar to distante, a alguns dias de viagem de uma assistncia decente. Com seu senso de equilbrio danificado e pernas paralisadas, minha me se colocava em perigo constante. Ela j havia suportado fraturas das vrtebras e das costelas, presso na raiz do nervo espinhal, um traumatismo craniano, um fmur fraturado e graves infeces nas mos. "At mesmo as melhores pessoas s vezes se aposentam quando chegam aos setenta anos", eu disse sorrindo. "Por que no vir para Vellore e morar perto de ns?"

    Granny livrou-se de meus argumentos como se fossem uma grande besteira e me deu uma bronca. Quem iria continuar aquele trabalho? No havia mais ningum em toda a cadeia de montanhas que pregas-se, tratasse das enfermidades e arrancasse dentes. "De qualquer forma", ela concluiu, "para que preservar meu corpo velho se no ser usado onde Deus precisa de mim?".

    E ento ela ficou. Dezoito anos depois, aos 93 anos, ela de m vontade desistiu de montar em seu jumento porque estava caindo com freqncia. Os dedicados aldees indianos comearam a lev-la em uma rede de cidade em cidade. Aps mais dois anos de trabalho missionrio, ela finalmente faleceu, aos 95 anos de idade. Foi enterrada, como havia pedido, em um simples e usado lenol aberto sobre o cho sem nenhum caixo. Ela odiava a idia de desperdiar boa madeira em caixes. Alm disso, gostava do simbolismo de devolver o corpo fsico a seu hmus original enquanto o esprito era liberto.

    Uma das minhas ltimas e mais fortes lembranas de minha me se passa em uma vila, nas montanhas que ela tanto amava; talvez a ltima vez que a vi em seu ambiente. Ela est sentada em um muro baixo de pedras que cerca a aldeia, com pessoas que a comprimem de todos os lados. Eles esto prestando ateno a tudo o que ela tem a dizer sobre Jesus. As cabeas se inclinam concordando, e profundas e penetrantes perguntas vm da multido. Os prprios olhos embotados de Granny esto brilhando, e, estando eu ao seu lado, posso ver o que ela deve enxergar pelos olhos que j comeam a falhar: rostos concentrados, olhando fixamente com absoluta confiana e afeio aquela pessoa que eles passaram a amar.

    Sei que mesmo com minha relativa juventude, fora e toda a minha especialidade na rea de sade e em tcnicas agrcolas, eu jamais poderia merecer aquele tipo de amor e dedicao por parte daquelas pessoas. Elas miram um rosto velho e enrugado, mas de alguma forma sua pele contrada se torna transparente, e ela toda um esprito brilhante. Para essas pessoas, ela bonita.

    Granny Brand no precisava de um espelho feito de vidro e cromo polido; tinha os rostos brilhantes de milhares de aldees indianos. Sua imagem fsica desgastada teve apenas o efeito de acentuar a imagem de Deus, que brilhava por intermdio dela como um farol.

    WILLIE LONG, MARY VERGHESE, Granny Brand so as trs pessoas nas quais vi a imagem de Deus mais claramente. No estou dizendo que uma miss Universo ou um belo atleta olmpico jamais comunicaria o amor e o poder de Deus, mas acredito que essas pessoas esto, de certa forma, em desvantagem. O talento, uma aparncia fsica agradvel e a bajulao das multides tendem a deixar de lado qualidades como

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  • humildade, abnegao e amor, as quais Cristo procura naqueles que poderiam carregar sua imagem. A mensagem clara:

    Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros que dela tinham falta, a fim de que no haja diviso no corpo, mas, sim, que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos outros (1Co 12.24,25).

    Paulo assinala que em nosso corpo fsico aquelas partes que parecem ser as mais fracas se mostram indispensveis, e as partes que so indecorosas exigem um recato especial. Tambm no corpo de Cristo a analogia se mantm. Quando nos juntamos a seu corpo, a imagem de Deus que devemos achar, e no a nossa. No a achamos em um processo de auto-afirmao, mas, sim, ao nos libertar dessa desesperada dependncia da nossa auto-imagem, a fim de tomarmos sobre ns a imagem gloriosa de Deus.

    Eu, Paul Brand, j me aproximando de meus setenta anos, com mais rugas e menos cabelo do que gostaria, posso desistir de minha ansiedade em relao a sade, aparncia e habilidades, que esto se esvaindo. A dependncia dolorosa e competitiva de minha auto-imagem abre espao para uma libertadora e agradvel dependncia da imagem de Deus.

    Tenho de admitir que perco alguma autonomia e a oportunidade de acalentar meu ego. Mas a oferta de pertencer ao corpo de Cristo tambm recompensadora. Do ponto de vista de Deus, ns, os membros, somos realmente tragados e cercados pelo corpo de Cristo, "em Cristo", como Paulo fica repetindo. Os autores do Novo Testamento se estendem por metforas que expressam a realidade. Vivemos ou permanecemos nele, eles dizem (v. lJo 2.6). Somos o aroma de Cristo para Deus (v. 2Co 2.15). Brilhamos como estrelas no universo (v. Fp 2.15) e somos santos e irrepreensveis em sua presena (v. Ef 1.4). Isso apenas uma amostra; a mensagem ressoa por todas as epstolas. Somos o deleite de Deus, seu orgulho, sua experincia na terra, cujo propsito mostrar sua sabedoria at mesmo para os poderes e autoridades nas regies celestiais (v. Ef 3.10). Uma restaurao de sua imagem sobre a terra est a caminho, por intermdio de ns.

    Para ser membro de seu corpo, Deus atraiu pessoas de todas as raas e grupos, tendo em vista que nele no h gregos ou judeus, escravos ou libertos. Um simples pescador, um piloto com uma cicatriz no rosto, uma paraplgica e uma velha encarquilhada podem alegremente assumir suas posies. a glria de Deus que tomamos sobre ns, e no a nossa. O custo pode ser maior queles que possuem riquezas, atrativos fsicos e segurana. Mas para todos ns a recompensa a mesma: a oportunidade de sermos julgados no pelo que somos, mas pelo que Cristo . Quando Deus olha para ns, ele v seu amado Filho.

    E todos ns, que com a face descoberta, contemplamos a glria do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glria cada vez maior, a qual vem do Senhor, que o Esprito (2Co 3.18).

    Segunda parte Sangue4 Poder

    Uma mosca uma criatura mais nobre do que o sol, pois uma mosca possui vida e o sol, no.

    AGOSTINHO

    MlNHA CARREIRA COMO mdico tem origem em uma noite sombria no Hospital Connaught, no lado leste de Londres. At aquela noite, eu vinha resistindo, teimoso, a todas as presses para ingressar na escola de medicina. Minha famlia j tentava me influenciar, a ponto de um tio se prontificar a pagar todas as minhas despesas de curso. E, pouco antes de eu terminar o ensino mdio, o retorno de minha me da ndia nos deu oportunidade de conversarmos seriamente sobre meu futuro.

    Sentamo-nos juntos em seu quarto, diante de um sibilante aquecedor a gs. Aps ficarmos separados por seis anos, eu estava chocado com a mudana em sua aparncia. Vinte anos na zona rural da ndia tinham

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  • desgastado seu suave semblante da aristocracia britnica e deixado traos de uma inequvoca determinao nas linhas de seu rosto. A tristeza cobria sua face como uma mscara meu pai tinha falecido por conseqncia da malria naquele mesmo ano. Ela havia voltado para casa terrivelmente prostrada, procurando um local de refgio.

    Parecia estranho para mim estar repentinamente planejando meu futuro com algum que no via fazia seis anos. "Voc sabe quanto seu pai amava o servio de sade nas montanhas", ela comeou gentilmente. "Ele sempre teve o desejo de se tornar mdico com uma formao adequada, em vez de ter de contar com um rpido curso de capacitao da Livingstone College [Faculdade de Livingsto