A Longa Duração- Braudel

download A Longa Duração- Braudel

of 20

Transcript of A Longa Duração- Braudel

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    1/20

    3. HISTORIA E CINCIAS SOCIAIS.A LONGA DURAO1

    H uma crise geral das cincias do homem: estotodas esmagadas sob seus prprios progressos, aindaque seja apenas devido acumulao dos novos conhe-cimentos e da necessidade de um trabalho coletivo, cujaorganizao inteligente falta ainda eregir; direta ouindiretamente, todas so atingidas, queiram ou no,pelos progressos das mais geis dentre elas, mas perma-

    necem entretanto s voltas com um humanismo retr-grado, insidioso, que no lhes pode mais servir de

    quadro. Todas, corn mais ou menos lucidez, se preo-

    I . Annalcs E.S.C. . n.0 4 , out.-dez. 1958. Dlbair e1 Combats. pp. 725-753,

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    2/20

    cuparn coin seli Iiigiir no conjunto monstruoso daspesquisas antigas e novas, cuja convergncia necessriahoje se adivinha.

    As cincias do homem sairo, dessas dificuldadespor um esforo suplementar de definio ou um acrs-cimo de mau humor? Talvez tenham a iluso disso,

    pois (no risco de voltar a antigas repeties ou falsosproblemas) ei-Ias preocupadas, hoje, ainda mais queontem, em definir suas metas, seus mtodos, suas supe-rioridades. Ei-Ias, porfia, empenhadas em chicanassobre as fronteiras que as separam, ou no as separam,ou as separam mal das cincias vizinhas. Pois cada

    uma sonha, de fato, em permanecer ou retornar suacasa . . . Alguns estudiosos isolados organizam para-lelos: Claude Lvi-Strauss2 impele a antropologia "es-trutural" rumo aos procedimentos da lingustica, aos

    horizontes da histria "iiiconsriente" e ao imperialismo juvenil das matemticas "qualitativas". Tende parauma cincia que ligaria, sob o nome de cincia daco~?iunictlo,a aiitropologia, a economia poltica, alingustica . . . Mas quem est pronto para esses fran-queamentos de fronteira r para esses reagrupamentos?Por um sim, por um no, a prpria geografia se divor-ciaria da histria!

    Mas, no sejamos injiistos; h um intcressc nessasquerelas e nessas recusas. O desejo de cada um seafirmar contra os outros est forosamente na origemde novas curiosidades: negar outrem, j conhec-lo.Mais ainda, sem o querer explicitamente, as cinciassociais se impem umas s outras, cada uma tende acompreender o social no seu todo, na sua "totalidade";cada uma invade o domnio de suas vizinhas crendopermanecer em casa. A Economia descobre a Socio-logia que a rodeia, a Histria- talvez a menos estru-turada das cincias do homem- aceita todas as liesde sua mltipla vizinhana e se esfora por repercuti--las. Assim, malgrado as reticncias, as oposies, asignorncias tranquilas, a insta!ao de um "mercado

    comum" se esboa; valeria a pena tent-la no decorrerdos anos vindouros, mesmo se, mais tarde, cada

    2 . Anlhropologir slruc lurolc . Paris. Plon, 1958, posrim e notada-mente, p. 329.

    cincia tivesse vantagem, por um momento, em reto-mar uma estrada mais estreitamente pessoal.

    Mas, preciso aproximar-se desde logo, a ope-rao urgente. Nos Estados Unidos, essa reuniotomou a forma de pesquisas coletivas sobre as reasculturais do mundo atual, sendo as area studies, antes

    de tudo, o estudo, por uma equipe de social scientists,desses monstros polticos do tempo presente: China,

    fndia, Rssia, Amrica Latina, Estados Unidos. Co-nhec-los questo vital! Cumpre ainda, fora dessacompartio de tcnicas e conhecimentos, que cadaum dos participantes no permanea enterrado em seutrabalho particular, cego ou surdo, ao que dizem, escre-

    .

    vem, ou pensam os outros! preciso ainda que areunio das cincias sociais seja completa, que nose negligenciem as mais antigas em benefcio das mais jovens, capazes de prometer tanto, seno de cumprir

    sempre. Por exemplo, o lugar dado Geografia nessastentativas americanas praticamente nulo e, extrema-

    mente reduzido o que se concede Histria. E almdisso, de que Histria se trata?

    As outras cincias sociais so muito mal infor-madas a respeito da crise que nossa disciplina atraves-sou no decorrer desses ltimos vinte ou trinta anos,c sua tendncia 6 de:;conhecer, ao mesmo tempo queos trabalhos dos historiadores, um aspecto da reali-dade social do qual a histria boa criada, seno hbil

    vendedora: essa dur;>o social, esses tempos mlti-plos e contraditrios da vida dos homens, que no so

    apenas a substncia do passado, mas tambm o estofoda vida social atual. Uma razo mais para assi-nalar com vigor, no debate que se instaura entre todasas cincias do homem, a importncia, a utilidade dahistria, ou, antes, da dialtica da durao, tal comoela se desprende do mister, da observao repetida dohistoriador; pois nada 6 mais ,importante, a nosso ver,no centro da realidade social, do que essa oposio

    viva, ntima, repetida indefinidamente entre o instantee o tempo lento a escoar-se. Que se trate do passadoou da atualidade, uma conscincia clara dessa plura-lidade do tempo social indispensvel a uma metodo-logia comum das cin&as do homem.

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    3/20

    Falarei, pois, longamente da histria, do tempoda histria. Menos para os leitores dessa revista,especialistas em nossos estudos, que para nossos vizi-nhos das cincias do homem: economistas, etngrafos,etnblogos (ou aiitropblogos), socilogos, psiclogos,linguistas, demgrafos, gegrafos, at mesmo, mate-mticos sociais ou estatsticos

    -

    todos vizinhos que,h longos anos, seguimos nas suas experincias e pes-quisas porque nos parecia (e ainda nos parece), que,colocada a seu reboque ou ao seu contato, a histriase ilumina com uma nova luz. Talvez, de nossa parte,tenhamos alguma coisa a Ihes dar. Das experinciase tentativas recentes cia histria, desprende-se- cons-ciente ou no, aceita ou no- uma noo cada vezmais precisa da miiltiplicidade do tempo e do valorexcepcional do tempo longo. Essa ltima noo, maisque a prpria histria - a histria das cem faces-

    dever i interessar s cincias sociais, nossas vizinhas.1. Histria e duraes

    Todo trabalho Iiistrico decoiiip6e. o tc i i~podecor-rido, escolhe entre suas realidades cronolgicas, segundopreferncias e opes exclusivas mais ou menos cons-cientes. A histria tradicional, atenta ao tempo brevc,ao indivduo, ao evento, habituou-nos h muito tempo sua narrativa precipitada, dramtica, de flego curto.

    A nova histria econmica e social p e no pri-meiro plano de sua pesquisa a oscilao cclica eassenta sobre sua durao: prendeu-se miragem,tambm realidade das subidas e descidas cclicas dospreos. Hoje, h assim, ao lado do relato (ou do "re-citativo" tradicional), um recitativo da conjuntura quepe em questo o passado por largas fatias: dez, vinteou cinquenta anos.

    Bem alm desse segundo recitativo, situa-se umahistria de respirao mais contida ainda, e, desta vez,

    de amplitude secular: a histria de longa, e mesmo, delongussima durao. A frmula, boa ou m, tornou-se--me familiar para designar o inverso do que FranoisSimiand, um dos primeiros aps Paul Lacombe, terbatizado histria ocorrencial (vnementielle). Pouco

    importam essas frmulas; em todo caso, de uma outra, de um p610 ao outro do tempo, do instantneo longa durao que se situar nossa discusso.

    No que essas palavras sejam de uma certezaabsoluta. Assim a palavra evento. De minha parte,quisera acanton-Ia, aprision-la na curta durao: oevento explosivo,

    "novidade sonante

    ", como se dizia

    no sculo XVI. Com sua fumaa excessiva, enche aconscincia dos contemporneos, mas no dura, v-seapenas sua chama.

    Os filsofos nos diriam, sem dvida, que istosignifica esvaziar a palavra de uma grande parte

    .

    de seu sentido. Um evento, a rigor, pode carregar-se

    de uma srie de significaes ou familiaridades. Dtestemunho por vezes de movimentos muito profundose, pelo jogo f a c t c i ~ou no das "causas" e dos "efei-tos" caros aos historiadores de ontem, anexa um tem-

    po muito superior sua prpria durao. Extensvelno infinito, liga-se, livremente ou no, toda uma cor-rente de acontecimentos, de realidades subjacentes, eimpossveis, parece, de destacar desde ento uns dosoutros. Por esse jogo de adies, Benedet to Crocepodia pretender que, em todo evento, a histria intei-ra, o homem inteiro se incorporam e depois se redes-cobrem vontade. Sob a condio, sem dvida, deacrescentar a esse fragmento o que ele no contm primeira vista e portanto saber o que justo- ou no- associar-lhe. esse jogo inteligente e perigoso queas reflexes recentes de Jean-Paul Sartre propemS.- -

    Digamos ento mais claramente, em lugar deocorrencial: o tempo curto, medida dos indi-vduos, da vida cotidiana, de nossas iluses, de nossasrpidas tomadas de conscincia- o tempo, por exce-lncia, do cronista, do jornalista. Ora, notemo-lo, cr-nica ou jornal fornecem, ao lado dos grandes acon-tecimentos, ditos histricos, os medocres acidentes davida ordinria: um incndio, uma catstrofe ferrovi-ria, o preo do trigo, um crime, uma representao tea -tral, uma inundao. Assim, cada um compreenderque haja um tempo curto de todas as formas da vida,econmica, social, literria, institucional, religiosa e

    3. JEAN-PAUL SARTRE, Qucstions de mCthode. Ler Tempr Mo-drrnes, 1957 nV 139 e 140.

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    4/20

    mesmo geogrfica (uina ventania, uma tempestade)assim como poltica.

    A primeira apreciiso, o passado essa massa defatos midos, uns brilhantes, outros obscuros e inde-finidamente repetidos, esses mesmos fatos que consti-

    tuem, na atualidade, o despojo cotidiano da micro-socio-logia ou sociometria (h tambtm uma micro-histria). ,Mas essa massa no forma toda a realidade, toda aespessura da histria sobre a qual a reflexo cient-fica pode trabalhar vontade. A cincia social temquase horror do evento. No sem razo: o tempocurto a mais caprichosa, a mais enganadora dasduraes.

    Donde, entre alguns de ns, historiadores, uma \viva desconfiana relativamente a uma histria tradi-cional, dita ocorrencial, confundindo-se a etiqueta com'a da histria poltica, no sem alguma inexatido: ahistria poltica no forosamente ocorrencial, nemcondenada s-10. Entretanto, um fato que, salvoos quadros factcios, quase sem espessura temporal, deonde recortava suas narraes4, salvo as explicaes delonga durao de que era preciso sorti-la, um fatoque, no seu conjunto, a histria dos ltimos cem anos,

    I

    quase sempre poltica, centrada no drama dos "gran-des eventos", traballiou no e sobre o tempo curto.Foi talvez, o preo dos progressos realzados, duran-

    te zsse mesmo perodo, na conquista cientfica deinstrumentos de trabalho e de mtodos rigorosos. Adzscoberta macia do documento levou o historiadora crer que, na autenticidade documentria estava todaa verdade. 1

    Basta, escrevia ainda ontem Louis Halphen6 deixar-se de Ialgum modo levar pelos documentos, lidos um ap6s o outro.tal como se nos oferecem, para ver a corrente dos fatos sereconstituir quase automaticamente.

    Esse ideal,"

    a histria no estado nascente"

    , resul-ta por volta do fim do sculo XIX numa crnica denovo estilo, que, na sua ambio de exatido, segue

    4. a

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    5/20

    ou menos, do mundo inteiro. Sem dvida, esses pe-rodos croiiolgicos no tm um valor absoluto. Emoutros bardmetros, o do crescimento econmico e darenda ou do produto nacional, Franois Perroux6 nosofereceria outros limites, mais vlidos talvez. Maspouco importam essas discusses em curso! O histo-

    riador dispe seguramente de um tempo novo, elevado altura de uma explicao onde a histria pode tentarinscrever-se, dividindo-se de acordo com refernciasinditas, segundo essas curvas e sua prpria respirao.

    Foi assim que Ernest Labrousse e seus alunosprepararam, aps seu manifesto no ltimo CongressoHistrico de Roma (1955), uma vasta investigao dehistria social, sob o signo da quantificao. No creiotrair seu desgnio dizendo que essa investigao levarforosamente determinao de conjunturas (at mes-

    mo de estruturas) sociais, sem que nada nos assegure,de antemo, que esse tipo de conjuntura ter a mesmavelocidade ou a mesma lentido que a econmica.Alm disso, essas duas grandes personagens, conjun-tura econmica e conjuntura social, no nos devemfazer perder de vista outros atores, cuja marcha serdifcil de deteriiiiiiar, talvez indeteriniiivel, por faltade medidas precisas. As cincias, as tcnicas, as insti-tuies polticas, as ferramentas mentais, as civiliza-es (para empregar essa palavra cmoda), tm igual-mente seu ritmo de vida e de crescimento, e a nova

    histria conjuntural, s estar no ponto, quando houvercompletado sua orquestra.Com toda lgica, esse recitativo deveria, por seu

    prprio excesso, conduzir longa durao. Mas, pormil razes, o excesso no foi a regra e um retorno aotempo curto se realiza sob nossos olhos; talvez porqueparece mais necessrio (ou mais urgente) costurar juntas a histria"cclica" e a histria curta tradicional,do qJe ir do anterior para o desconhecido. Em termosmilitares, tratar-se-ia no caso de consolidar posiesadquiridas. Assim, o primeiro grande livro de ErnestLabrousse, em 1933, estudava o movimento geral dospreos na Frana no sculo XVIII', movimento se-

    6 . Cf. rua Th tor i s g& n I r ale du progrLr Iconomique, Cahiem de1'I.S.E.A. 1957.7. Esquirse du mouvement der prixe1 der revenus an Francs OUX V l l l e s i i c l e , Paris, Dalloz , 1933, 2 v.

    cular. Em 1943, no maior livro de histiiria publicadona Frana no decorrer desses ltimos vinte e cincoanos, o mesmo Ernest Labrousse cedia essa neces-sidade de retorno a um tempo menos embaraante,quando, no prprio cncavo da depresso de 1774 a1791, assinalava uma das fontes vigorosas da Revolu-

    o Francesa, uma de suas rampas de lanamento.Apelava ainda para um meio interciclo, grande medi-da. Sua comunicao ao Congresso Internacional deParis, em 1948, Comment naissent les rvolutions?, seesfora em ligar, desta vez, um patetismo econmicode curta durao (novo estilo) a um patetismo poltico(estilo muito antigo), o dos dias revolucionrios.Eis-nos novamente no tempo curto, e at6 o pescoo.Bem entendido, a operao lcita, til, mas como sintomtica! O historiador , de bom grado, encena-dor. Como renunciaria ao drama do tempo breve, aos

    melhores fios de uma velhssima profisso?Alm dos ciclos e intercicios, h o que os econo-

    mistas chamam, sem estud-la, sempre, a tendncia se-cular. Mas ela ainda interessa apenas a raros econo-mistas e suas coiisidcracs sobre as crises estruturais,iio tendo sofrido a prova das verificaes histricas,se apresentam como esboos ou hipteses, apenasenterrados iio passado recente, at 1929, quando muitoat o ario de 18708. Entretanto, oferecem til introdu-o histria de longa durao. So uma primeira

    chave.A segunda, bem mais til, a palavra esirutura.Boa ou m, ela domina os problemas da longa dura-o. Por estrutura, os observadores do social entendemuma organizaso, uma coerncia, relaes bastante fi-xas entre realidades e massas sociais. Para ns, histo-riadores, uma estrutura sem dvida, articulao,arquitetura, porm mais ainda, uma realidade que otempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certasestruturas, por viverem muito tempo, tornam-se ele-

    mentos estveis de uma infinidade de geraes: atra-vancam a histria, incomodam-na, portanto, coman-dam-lhe o escoamento. Outras esto mais prontas

    8. Apreciao e m RENE CLEMENS, ~ r o l d ~ o m d n e rune 1hIo6e daIa rlruclure Icononiiquc, Paris, Domat-Montchrestien, 1952 - ver tambmJOHANN AKERMAN, Cycle ct Stmcture, Ravua Iconomiqua, 1952, n9 1 .

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    6/20

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    7/20

    pa, um sistema econmico que se inscreve em algumaslinhas e regras gerais bastante claras: mantm-se maisou menos no lugar, do sculo XIV ao sculo XVIII,digamos, para maior segurana, at por volta de 1750.Duran te sculos, a atividade econmica depende depopulaes demograficamente frgeis, como ho demostrar os grandes refluxos de 1350-1450 e, sem d-vida, de 1630-1730'5. Durante sculos, a circulao vo triunfo da gua e do navio, sendo toda a espessuracontinental, obstculo, inferioridade. Os surtos de pro-gresso europeus, salvo as excees que confirmam a re-gra (feiras de Champagne j em seu declnio no inciodo perodo, ou feiras de Leipzig no sculo XVIII),todos esses surtos de progresso se situam ao longo dasfranjas litorneas. Outras caractersticas desse sistema:a prioridade dos mercadores; o papel eminente dos me-tais preciosos, ouro, prata, e mesmo o cobre, cujos cho-ques incessantes somente sero amortecidos, pelo de-senvolvimento decisivo do crdito, e ainda, com o fimdo sculo XVI; os abalos repetidos das crises agrco-las estacionais; a fragilidade, diremos, do prprio soa-lho da vida econmica; enfim, o papel desproporcio-nado primeira vista, de um ou dois grandes trficosexteriores: o comrcio do Levante do . sculo XII aosculo XIV, o comrcio colonial no sculo. XVIII .

    Assim, por minha vez, defini ou antes, evoqueiaps alguns outros, os traos principais, do capitalismocomercial, para a Europa Ocidental, etapa de longa

    durao.No obstante todas as modificaes eviden-

    tes que os percorrem, esses quatro ou cinco sculos devida econmica tiveram uma certa coerncia, at a agi-tao do sculo XVIII e da revoluo industrial daqual ainda no samos. Alguns traos lhes socomuns e permanecem imutveis, enquanto que emtorno deles, entre outras continuidades, mil rupturas eagitaes renovavam o aspecto do mundo.

    Entre os diferentes tempos da histria, a longadurao se apresenta assim como um personagem em -baraante, complicado, amide indito. Admiti-lo no

    corao de nosso mister no ser um simples jogo, ahabitual ampliaio de estudos e curiosidades. No se

    15. A liora Irancesn. Na Espanlia o refluxo deinogr&lico sc nota desdeo fim do s&culo X V l .

    tratar, tampouco, de uma escolha cujo nico beneficirio ser ele. Para o historiador, ocult-lo pres-tar-se a uma mudana de estilo, de atitude, a uma alte-rao de pensamento, a uma nova concepo do so-cial. B familiarizar-se com um tempo diminudo, porvezes, quase no limite do movedio. Nessa faixa, no

    I em outra,- voltarei a isso - lcito desprender-sedo tempo exigente da histria, sair dele, depois voltar

    a ele, mas com outros olhos, carregados de outrasinquietudes, de outras questes. Em todo caso, emrelao a essas extenses de histria lenta que a tota -lidade da histria pode se repensar, como a partir deuma infra-estrutura. Todas as faixas, todos os milha-res de faixas, todos os milhares de estouros do tempo

    I da histria se compreendem a partir dessa profundi-dade, dessa semi-imobilidade; tudo ga v i t a em tornodela.

    Nas linhas que precedem no pretendo ter defi-

    nido o mister de historiador

    -

    mas uma concepodesse mister. Feliz, e bem ingnuo, quem pensasse,aps as tempestades dos ltimos anos, que encontra-mos os verdadeiros princpios, os limites claros, a boaEscola. De fato, todos os misteres das cincias sociaisn o cessam de transformar-se em razo de seus movi-mentos prprios e do vivo movimento do conjunto. Ahistria no faz exceo. Nenhuma quietude est pois vista e a hora dos discpulos no soou. H uma longadistncia de Charles-Victor Langlois e Charles Seigno-bos a Marc Bloch. Mas desde Marc Bloch, a roda nocessou de girar. Para mim, a histria a soma de todasas histrias possveis

    -

    uma coleo de misteres e depontos de vista, de ontem, d e hoje, de amanh.

    i O nico erro, a meu ver, seria escolher uma des-sas histrias com excluso das outras. Foi e seria oerro historizante. Sabe-se que no ser cmodo con-vencer todos os historiadores e, menos ainda, as cin-cias sociais, empenhadas encarniadamente em nos re-conduzir histria tal como era ontem. Ser-nos-preciso muito tempo e cuidado para fazer com que

    ! todas essas mudanas e novidades sejam admitidas sobo velho nome de histria. No entanto, uma nova"cincia" histrica nasceu, e continua a interrogar-se ea transformar-se. Anuncia-se, entre ns, desde 1900,

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    8/20

    com a Revue de Synthse Historique e com os Anna-les, a partir de 1929. O historiador quis-se atento a"todas" as cincias do homem. Eis o que d ao nossomister estranhas fronteiras e estranhas curiosidades.Alm disso, no imaginemos, entre o historiador e o

    observador das cincias sociais, as barreiras e diferen-as de ontem. Todas as cincias do homem, inclusive

    a histria, esto contaminadas umas pelas outras.Falam a mesma linguagem ou podem fal-la.

    Quer se situe em 1558 ou no ano da graa de1958, trata-se, para quem quer compreender o mundo,de definir uma hierarquia de foras, de correntes, demovimentos particulares, depois, apreender de novouma constelao de conjunto. A cada instante dessapesquisa, ser preciso distinguir entre movimentos lon-

    gos e impulsos breves, estes, tomados desde suas fontesimediatadas, aqueles, no impulso de um tempo longn-quo. O mundo de 1558, to enfadonho no momentofrancs, no nasceu ao umbral desse ano sem encanto.E tampouco, sempre no momento francs, nosso dif-cil ano de 1958. Cada "atualidade" rene movimen-tos de origem, de ritmo diferentes: o tempo de hojedata, ao mesmo tempo, de ontem, de anteontem, deoutrora.

    2 . A Querela do Tempo Curto

    Essas verdades so certamente banais. Entretan-to, as cincias sociais no se sentem quase tentadaspela busca do teinpo perdido. No que se possa levan-tar contra elas um firme requisitrio e declar-las sem-pre culpadas de no aceitar a histria ou a duraocomo dimenses necessrias de seus estudos. Aparen-temente, elas nos do mesmo uma boa acolhida; eexame "diacrnico" que reintroduz a histria no est jamais ausente de suas preocupaes tericas.

    Todavia, afastadas essas aquiescncias, precisoconvir que as cinclas sociais, por gosto, por instinto,profundo, talvez por iorniao, tendem a escapar sem-pre explicao histrica; escapam-lhe por dois pro-cedimentos quase opostos: uma "fatualiza", ou sequisermos "atualiza" em excesso os estudos sociais,

    graas a uma sociologi emprica, desdenhosa de todahistria, limitada aos dados do tempo curto, da inves-tigao sobre o vivo; a outra ultrapassa pura e sim-plesmente o tempo, imaginando ao termo de uma"cincia da comunicao" uma formulao matemtica

    de estmturas quase intemporais. Este ltimo procedi-f

    mento, o mais 'novo de todos, evidentemente o nicoque pode nos interessar profundamente. Mas o ocor-rencial tem ainda bastante partidrios para que os doisaspectos da questo meream ser examinados alterna-damente.

    Falamos de nossa desconfiana em relao a umahistria puramente fatual. Sejamos justos: se hum pecado factualista, a histria, acusada de escolha,no a nica culpada. Todas as cincias sociais par-

    ticipam do erro. Economistas, demgrafos, gegrafos,esto divididos entre ontem e hoje (mas, nial dividi-

    dos); ser-lhes-ia preciso para serem prudentes, man-ter a balana igual, o que fcil' e obrigatrio para odemgrafo; o que imediato para os gegrafos (par-ticularmente os nossos, alimentados pela tradio vida-liana); o que, ao contrrio, s acontece raramente nocaso dos economistas, prisioneiros da mais curta atua-lidade, entre um limite retaguarda que vai aqum de1945 e um hoje que os planos e previses prolongamno futuro imediato de alguns meses, quando muitoalguiis anos. Sustento que todo pensamento econmicofica encantoado por essa restrio temporal. Cabe aoshistoriadores, dizem os economistas, ir aqum de 1945,na pesquisa das economias antigas; mas, fazendo isso,privam-se de um maravilhoso campo de observao,que abandonaram por si mesmos, sem por isso negar--lhe o valor. O eco,nomista tomou o hbito de correra servio do atual, a servio dos governos.

    A posio dos etngrafos e etnlogos no toclara, nem to alarmante. Alguns dentre eles subli

    -nharam bem a impossibilidade (mas todo o intelectual obrigado ao impossvel) e a inutilidade da histria

    I no interior de seu mister. Essa recusa autoritria dahistria no ter quase servido Malinowski e seus dis-cpulos. De fato, como a antropologia se desinteres-saria da histria? E a mesma aventura do esprito,

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    9/20

    como costuma dizer Claude Lvi-Strausslu. No h6sociedade, por mais inferior que seja, que no revele observao, "as garras do evento", tampouco no hsociedade cuja histria tenha naufragado inteiramente.Por este lado, no teramos razo em 110s lamentar ouinsistir.

    Em compensao, nossa querela ser bastante vivanas fronteiras do tempo curto, com respeito sociolo-gia das investigaes sobre o atual, as investigaes demil direes, entre sociologia, psicologia e economia.Elas mergulham entre ns, como no estrangeiro. So sua maneira, uma aposta repetida sobre o valorinsubstituvel do tempo presente, seu calor "vulcni-co", sua riqueza abundante. Para que voltar-se parao tempo da histria: empobrecido, simplificado, devas-tado pelo silncio, reconstrudo- insistamos bem: re-

    construdo. Na verdade, est to morto, to reconstru-do quanto se pretende diz-lo? Sem dvida, o histo-

    riador tem demasiada facilidade para destacar o essen-cial de uma poca passada; para falar como HenriPirenne, distingue nela sem esforo os "eventos impor-tantes", entenda-se, "aqueles que tiveram conseqn-cias". Simplificao evidente e perigosa. Mas, o queno daria o viajante do atual para ter esse recuo (ouesse avano no tempo) que desmascararia e simplifi-caril1 a vicla prcsiiitc, confusa, poiico legvel porqucdeinasiado atiavaiicada de gestos e sinais menores'?Claiide Lvi-Strauss pretende que uma hora de con-vcisafio com ui i i cc~iiieii~poriieoc Plato o informa-ria, mais que nossos discursos clssicos, sobre acoerncia ou a iiicoeriicia da civilizao da GrciaantigaT

    7. Estou bem de acordo com isso. Mas

    que, durante anos, ele ouviu cem vozes gregas salvasdo silncio. O historiador preparou a viagem. Umahora na Grcia de hoje no lhe ensinar nada, ouquase nada, acerca das coerncias ou incoernciasatuais.

    Mais ainda, o inquiridor sobre o tempo presentesomente chega at s tramas "finas" das estruturas, condio, tambm, de reconstruir, de adiantar hipte-

    16. CLAUDE WVI - STRAUSS, Anlhropologic s lrucluralc, op. ci l . ,p. 31.

    17 . DIOGkNE COUCHB, Lr s Ternpr Modernrs . no 195, p. 17.

    ses e explicaes, de recusar o real ta1 como perce-bido, de trunc-lo, de ultrapass-lo, todas as opera-es que permitem escapar ao dado, para melhordomin-lo, mas que so, todas, reconstrues. Duvidoque a fotografia sociolgica do presente seja mais "ver-dadeira" que o quadro histrico do passado, e tanto

    1 ' menos quanto mais afastada do reconstrudo ela qui-ser estar.

    Philippe Aris18 insistiu sobre a importncia doexpatriamento, da surpresa na explicao histrica:tropeais, no sculo XVI, em uma estranheza, estra-nheza para v6s, homem do sculo XX. Por que essadiferena? O problema est colocado. Mas direi que

    ,

    a surpresa, o expatriamento, o afastamento - essesgrandes meios de conhecimento - no so menosnecessrios para compreender o que vos cerca, e de

    to perto que no mais o vedes com clareza. Viveiem Londres um ano, e conhecereis bem mal a Ingla-

    terra. Mas, por comparao, luz de vossos espantos,tereis bruscamente compreendido alguns dos traosmais profundos e originais da Frana, aqueles que noconheceis a fora de conhec-los. Face ao atual, opassado, tambCm 6 expatriamento.

    Historiadores e social scientists poderiam poiseternamente passar a bola um para o outro no quetange ao documento morto e ao testemunho muito vivo,ao passado longnqiio, atualidade muito prxima.No acho que esse problema seja essencial. Presente epassado iluminam-se com luz recproca. E se seobserva exclusivamente na estreita atualidade, a aten-o incidir sobre o que se mexe depressa! brilha comrazo ou sem razo, ou acaba de mudar, ou faz ba-rulho, ou se revela sem esforo. Todo um fatual, tofastidioso como o das cincias histricas, espreita oobservador apressado, etngrafo que encontra por trsmeses um povo polinsio, socilogo industrial queentrega os clichs de sua ltima investigao, ou quepensa, com questionrios hbeis e as combinaes doscartes perfurados, cercar perfeitamente um mecanis-mo social. O social uma caa muito mais ardilosa.

    Na verdade, que interesse podemos encontrar, ns,cincias do homem, nos deslocamentos, de que fala

    8 Le T e m p s de I'histoire, Paris. Plon, 1954, notadamente p. 298 e% .

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    10/20

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    11/20

    vem a dar no m e s m a bastante fictcia; do mesmo modo,uina descida segundo a inclinao do tempo no pensvel serio sob a forma de uma inultiplicidade dedescidas, segundo os diversos e inumerveis rios dotempo.

    Essas breves chamadas e cuidados bastaro, parao instaiite. Mas preciso ser mais explcito no queconcerne histria inconsciente, aos modelos, s ma-temticas sociais. Esses comentrios indispensveis serenem alhures, ou- espero-o- no tardaro a sereunir, numa problemtica comum s cincias sociais.

    A histria inconsciente , bem entendido, a hist-ria das formas inconscientes do social. "Os homensfazem a histria, mas ignoram que a fazemvz3. A fr-mula de Marx esclarece, mas no explica o problema.De fato, sob um novo nome, uma vez mais, todo o

    problema do tempo curto, do "microtempo", do factualque se nos reapresenta. Os homens sempre tiveram aimpresso, vivendo seu tempo, de apreender seu desen-rolar no dia a dia. Essa histria consciente, clara, abusiva, como muitos historiadores, j h muito tempo,concordam em consider-la? Ontem, a lingustica acre-ditava tirar tudo das palavras. A histria teve a ilusode tirar tudo dos eventos. Mais de um de nossos con-temporneos acreditaria de bom grado que tudo veiodos acordos de Ialta ou de Potsdam, dos acidentes deDien-Bien-Phu ou de Sakhiet-Sidi-Iussef, ou desse outroevento, importante de outro modo, verdade, o lana-mento dos sputniks. A histria iiiconsciente se desen-rola alm dessas luzes, de seus flashes. Admiti poisque existe, a uma certa distncia, um inconsciente so-cial. Admiti, alm disso, esperando o melhor, que esseinconsciente seja considerado cientificamente mais ricoque a superfcie cintilante qual nossos olhos esto ha-bituados; cientificamente mais rico, isto , mais sim-ples, mais fcil para explorar- seno para descobrir.Mas a separao entre superfcie clara e px'ofundezasobscuras

    -

    entre rudo e silncio

    -

    difcil, aleatria.Acrescentemos que a histria "inconsciente", em partedomnio do tempo conjuntura1 e, por excelncia, dotempo estrutural, muitas vezes, mais claramente per-

    23. Citado por CLAUDE L&VI-STRAUSS, Anihropologic s lrucluralc.o p cit., pp. 30-31.

    cebida do que se costuma dizer. Cada um de ns, almde sua prpria vida, tem o sentimento de uma histriade massa cuja potncia e cujos impulsos reconhecemelhor, verdade, do que as leis ou a direo. E seessa conscincia, hoje, cada vez mais viva, ela nodata apenas de ontem. ( o que acontece no tocante histria econmica.) A revoluo, pois, uma re-voluo no esprito, consistiu em abordar de frente essasemi-obscuridade, em lhe conceder um lugar cada vezmaior ao lado, at em detrimento, do factual.

    Nessa prospeco em que a histria no est s(ao contrrio, ela nada mais fez seno seguir nessedomnio os pontos de vista das novas cincias sociais eadapt-los ao seu uso), novos instmmentos de conhe-cimento e investigao foram construdos: temos assim,mais ou menos aperfeioados, por vezes ainda artesa-nais, os modelos. Os modelos no so mais do quehipteses, sistemas de explicao solidamente ligadossegundo a forma da equao ou da funo: isso igualaquilo ou determina aquilo. Mas uma certa realidadeno aparece sem que uma outra no a acompanhe e,desta para aquela, relaes estreitas e constantes se re-velam. O modelo estabelecido com cuidado permitir,pois, colocar em questo, fora do meio social observa-do- a partir do qual foi, em suma, criado- outrosmeios sociais de mesma natureza, atravs do tempo eespao. seu valor recorrentc.

    Esses sistemas de explicaes variam ao infinitosegundo o temperamento, o clculo ou o alvo dos uti-lizadores: simples ou complexos, qualitativos ou quan-titativos, estticos ou dinmicos, mecnicos ou estats-ticos. Retomo em Claude Lvi-Strauss esta ltima dis-tino. Mecnico, o modelo estaria na prpria dimen-so da realidade diretamente observada, realidade depequenas dimenses interessando somente a grupos mi-nsculos de homens (assim procedem os etnlogos apropsito das sociedades primitivas). Quanto s vas-tas sociedades, onde os grandes nmeros intervm, o

    clculo das mdias se impe: elas conduze:m aos mo-delos estatsticos. Mas pouco importam essas defini-es, por vezes discutveis!

    De minha parte, o essencial antes de estabelecerum programa comum das cincias sociais, . precisar o

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    12/20

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    13/20

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    14/20

    "Em to1111 ~ocicdnde", escreve Claude Lvi--Strauss:l< "n nconiunicno se opera pelo menos emt r s I I I V ~ H :O I I I U ~ ~ C ~ ~ Odas mulheres; comunicaodo3 hriis c dos servios; comunicao das mensagens".A c l i i ~ i ~ ~ i i ~ i o sque sejam, em nveis diferentes, linguagensdiferentes, mas linguagens. Assim sendo, no teremoso direito de trat-las como linguagens, ou mesmo comoa linguagem, e de associ-las, de maneira direta ou in-direta, aos progressos sensacionais da lingustica, oumelhor, da fonologia, que "no pode deixar de repre-sentar, em face das cincias sociais, o mesmo papelrenovador que a fsica nuclear, por exemplo, represen-tou para o conjunto das cincias exatas9'33? dizermuito, mas preciso dizer muito, algumas vezes. Comoa histria presa na armadilha J o evento, a lingusticapresa na armadilha das palavras (relao das palavras

    com o objeto, evoluo histrica 'das palavras), se li-bertou pela revoluo fonolgica. Aqum da palavra,

    ela apegou-se ao esquema de som que o fonema, indi-ferente por conseguinte a seu sentido, mas atenta a seulugar, aos sons que o acompanham, aos agrupamentosdesses sons, s estruturas infrafonmicas, toda reali-dade subjacente, inconsciente da lngua. O novo tra-

    balho matemtico colocou-se sobre algumas dezenas defonemas que se encontram, pois, em todas as lnguasdo mundo passou a aplicar-se o novo trabalho mate-mtico, e eis a lingustica, ao menos uma parte da lin-

    gustica que, no decorrer desses ltimos vinte anos,escapa do mundo das cincias sociais para atravessar"o desfiladeiro das cincias exatas".

    Estender o sentido da linguagem s estruturaselementares de parentesco, aos mitos, ao cerimonial,s trocas econmicas, pesquisar esse caminho difcilmas salutar do desfiladeiro, e a proeza que realizouClaude Lvi-Strauss, propsito, primeiramente, datroca matrimonial, essa primeira linguagem, essencials comunicaes humanas, a tal ponto que no h

    sociedades, primitivas ou no, onde o incesto, o casa-mento no interior da estreita clula familiar, no sejaproibido. Portanto, uma linguagem. Sob essa lin-guagem, ele procurou um elemento de base correspon-dente, se quisermos, ao fonema, esse elemento, esse

    32 . Ibid., p. 326.33. Ibid., p. 39.

    "tomo" de parentesco, o qual nosso guia apresentouna sua tese de 1949" sob a expresso mais simples:entenda-se o homem, a esposa, a criana, depois otio materno da criana. A partir desse elementoquadrangular e de todos os sistemas de casamentosconhecidos nesses mundos primitivos- e so nume-rosos

    -

    os matemticos procuraro as combinaese solues possveis. Ajudado pelo matemtico AndrWeill, Lvi-Strauss conseguiu traduzir em termos mate-mticos a observao do antroplogo. O modeloobtido deve provar a validade, a estabilidade do sis-tema, assinalar as solues que este ltimo implica.

    V-se qual o encaminhamento dessa pesquisa:ultrapassar a superfcie da observao para atingir azona dos elementos inconscientes ou pouco conscien-tes, depois reduzir essa realidade em elementos meno-

    res, em toques finos, idnticos, cujas relaes possamser precisamente analisadas. nessa etapa "micro--sociolgica" (de um certo gnero, sou eu que acres-cento essa reserva) que se espera perceber as leis deestrutura mais gerais, como o linguista descobre as suasna ordem infrafonmica e o fsico, na ordem inframo-lecular, isto , ao nvel do tomo""5. O jogo podeprosseguir, evidentemente, em muitas outras direes.Assim, nada mais didtico, do que ver Lvi-Strausss voltas, desta vez, com os mitos e, maneira de ser,com a cozinha (essa outra linguagem) : re.duzir osmitos a uma srie de clulas elementares, os mitemas;reduzir (sem acreditar muito) a linguagem dos livros

    de cozinha em gustemas. A cada vez, est procurade nveis de profundidade, subconscientes: ao falar ,no me preocupo com os fonemas de meu discurso; mesa, salvo exceo, no me preocupo mais, culi-nariamente, com "gustemas", se que existem "gus-temas". A cada vez, entretanto, o jogo das relaessutis e precisas me faz companhia. Essas relaessimples e misteriosas, a ltima palavra da pesquisa

    sociolgica, seria apreend-

    las sob todas as linguagens,para traduzi-las em alfabeto Morse, quero dizer, a uni-versal linguagem matemtica? a ambio das novas

    34. L er ~I r u c lu r es l l im cn ta i r s r de la parenll, Paris, P.U.F., 1949.Ver Anlhropologie s ruciurale, pp. 47-62.

    35. Anlhropologie ..., pp. 42-43.

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    15/20

    natemt i cas sociais. Mas, posso dizer, sem sorrir,que essa uma outra histria?

    Reintroduzamos, com efeito, a durao. Disseque os modlos eram de durao varivel: valem otempo que vale a realidade que eles registram. E

    esse tempo, para o observador do social, primordial,porque, mais significativos ainda que as estruturas pro-fundas da vida, so seus pontos de ruptura, sua bruscaou lenta deteriorao sob o efeito de presses con-traditrias.

    Comparei por vezes os modelos a navios. Onavio construdo, o meu interesse p-lo na gua, verse flutua, depois faz-lo subir ou descer, minha von-tade, as guas do tempo. O naufrgio sempre omomento mais significativo. Assim, a explicao

    imaginada por F. Spooner e por mim mesmo, paraos jogos entre metais preciosos, no me parece vlidoantes do sculo XV. Aqum, os choques dos metaisso de uma violncia que a observao ulterior nohavia assinalado. Ento, cabe-nos procurar a causa.Assim como necessrio ver, rumo jusante destavez, porque a navegao de nosso navio muito sim-ples torna-se difcil, depois impossvel, com o sculoX V I I I e o impulso anormal do crdito. Para mim, apesquisa deve ser sempre conduzida, da realidadesocial ao modelo, depois deste quela, e assim pordiante, por uma sequncia de retoques, de viagenspacientemente renovadas. O modelo assim, alter-nadamente, ensaio de explicao da estrutura, instru-mento de controle, de comparao, verificao dasolidez e da prpria vida de uma estrutura dada. Seeu fabricasse um modelo a partir do atual, gostariade recoloc-10 imediatamente na realidade, depoisfaz-lo remontar no tempo, se possvel, at seu nas-cimento. Aps o que, calcularia sua vida provvel,at a prxima ruptura, segundo o movimento conco-mitante de outras realidades sociais. A no ser que,servindo-me deie, como de um elemento de compa-rao, eu o faa passear no tempo ou no espao, embusca de outras realidades capazes de se iluminargraas a ele, com uma luz nova.

    No tenho razo em pensar que os modelos dasmatemticas q u a l i t ~tivas. tais como nos foram apre-

    sentadas at aquiw, se prestariam mal a tais viagens,antes de tudo porque circulam sobre um a nica dasinumerveis rotas do tempo, a da longa, longussimadurao, ao abrigo dos acidentes, das conjunturas, dasrupturas? Voltarei, uma vez mais, a Claude Lvi--Strauss, porque sua tentativa, nesses domnios, meparece a mais inteligente, a mais clara, a melhor enrai-zada tambm na experincia social de onde tudo devepartir, ou aonde tudo deve voltar. A cada vez, note-mo-lo, ele pe em causa um fenmeno de extremalentido, como que intemporal. Todos os sistemasde parentesco se perpetuam porque no h vida huma-na possvel alm d e uma certa taxa de consaginidade,I

    , porque preciso que um pequeno grupo de homens,I para viver, se atira para o mundo exterior: a proibi-

    o do incesto uma realidade de longa durao.

    0 s mitos, lentos para se desenvolver, correspondem,eles tambm, a estruturas de extrema longevidade.Podemos, sem nos preocupar em escolher a mais anti-ga, colecionar as verses do mito de dipo, sendo queo problema ordenar as diversas variaes e pr luz, abaixo delas, uma articulao profunda que ascomande. Mas suponhamos que nosso colega se inte-resse no por um mito, mas pelas imagens, pelasinterpretaes sucessivas do "maquiavelismo", que elepesquisa os elementos de base de uma doutrina bas-tante simples e muito difundida, a partir de seu lana-mento real por volta do meio do sculo XVI. A cadainstante, aqui, quantas rupturas, quantas reviravoltas,at na prpria estrutura do maquiavelismo, pois essesistema no tem a solidez teatral, quase eterna, domito; ele 6 sensvel s incidncias e saltos, s intem-

    I pries mltiplas da histria. Numa palavra, nocaminha apenas sobre as estradas tranquilas e mon-tonas da longa durao . . . Assim, o procedimentoi que Lvi-Strauss recomenda na pesquisa das estruturasmatematizveis, no se situa apenas na etapa micro--sociolgica, mas no encontro do infinitamente pequenoe da longussima durao.

    I De resto, as revolucionrias matemticas quali-I

    tativas estaro elas condenadas a seguir somente as36. Digo matemticas qualitativas, segundo a estratkgia dos jogos. So-

    bre os modelos clssicos e tais como os elaboram os economistas, umadiscusrio diferente estaria por se empenhar.

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    16/20

    estradas da longussima durao? Nesse caso, aps

    esse jogo cerrado, encontraramos apenas verdadesque so um pouco demais as do homem eterno.

    Verdades primeiras, aforismos da sabedoria das na-es, diro espritos melanclicos. Verdades essenciais,

    responderemos, e que podem iluminar com uma novaluz as prprias bases de toda vida social. Mas no

    reside a o conjunto do debate.

    No creio, de fato, que essas tentativas - outentativas anlogas- no possam prosseguir fora dalongussima durao. O que se fornece s matem-ticas sociais qualitativas, no so cifras, mas relaes,relaes que devem ser assaz rigorosamente definidaspara que possamos atribuir-lhes um sinal matemticoa partir do qual sero estudadas todas as possibilida-

    (

    des matemticas desses sinais, sem mesmo nos preo-cuparmos mais com a realidade social que representam.Todo o valor das concluses depende portanto dovalor da observao inicial, da escolha que isola oselementos essenciais da realidade observada e deter-mina suas relaes no seio dessa realidade. Conce-be-se, por conseguinte, a preferncia das matemticassociais pelos modelos que Claude Lvi-Strauss deno-mina mecnicos, isto , estabelecidos a partir degrupos estreitos onde cada indivduo, por assim dizer, diretamente observvel e onde uma vida social

    muito hornognea permitz definir seguramente relaeshumanas, simples e concretas, pouco variveis.

    Os modelos ditos estatsticos se destinam, aocontrrio, s sociedades amplas e complexas onde aobservao s pode !e r dcseiivolvida graas s mdias,isto , s mateiiitic:,~tradicioiiais. Mas, essas iiidiasestabelecidas, se o observador capaz de estabelecer,lia escala dos grupos e no mais dos indivduos, essasrelaii de base de que. falvamos e que so neces-srias s elaboraes das matemticas qualitativas,

    nada impede por conseguinte de recorrer a elas. Aindan o houve, que eu saiba, tentativas desse gnero. Masestamos no incio das experincias. Por ora, quer setrate de psicologia, de economia, de antropologia, )todas as experincias foram feitas no sentido quedefini propsito de Lvi-Strauss. Mas as matem-

    ticas sociais qualitativas s daro provas de seu valor

    quando houverem abordado uma sociedade moderna,seus problemas emaranhados, suas diferentes velocida-des de vida. Apostemos que a aventura tentar umde nossos socilogos matemticos; apostemos tam-bm que provocar uma reviso obrigatria dos mtodos

    at aqui observados pelas matemticas novas, porqueestas no podem restringir-se a isso que chamareidesta vez, a durao demasiado longa; elas devemreencontrar o jogo mltiplo da vida, todos os seusmovimentos, todas as suas duraes, todas as suasrupturas, todas as suas variaes.

    4. Tempo do historiador, tempo do socilogo

    Ao termo de uma incurso pelo pas das intem-porais matemticas sociais, eis-me de volta ao tempo,A durao. E, historiador incorrigvel, espanto-me,uma vez mais, que os socilogos tenham podido esca-par dela. Mas que seu tempo no o nosso: muito menos imperioso, menos concreto tambm, nuncaest no corao de seus problemas e de suas reflexes.

    De fato, o historiador no sai jamais do tempoda histria: o tempo cola em seu pensamento como aterra p do jardineiro. Ele sonha, seguramente, em

    lhe escapar. Com a angstia de 1940 ajudando, GastoiiR0upnel:~7escreveu a esse propsito palavras que fazemsofrer todo historiador sincero. igualmente o sen-tido de uma antiga reflexo de Paul Lacombe, tambmhistoriador de grande classe: "o tempo no nadaem si, objetivamente, no nada seno uma idia parans":iX... Mas se t r t ta no caso de verdadeiras eva-ses? Pessoalmente, no decorrer de um cativeirobastante moroso, lutei muito para escapar 3 crnicadesses anos difceis (1940-1945). Recusar os even-tos e o tempo dos eventos, era colocar-se margem,ao abrigo, para olh-los um pouco de longe, melhorjulg-los e no crer muito. Do tempo curto, passarao tempo menos curto e ao tempo muito longo (seexiste, este ltimo, s pode ser o tempo dos sbios);

    37. H i ~ i o i r s e1 D c s l in , Paris, Bernard Graset, 1943, parsim, notada-mente p. 169.

    38 . Neuue dr rynfhise hisoriqur, 1900, p. 32 ,

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    17/20

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    18/20

    sendo tambm o ltimo construdo e como que sobre-posto ao conjuiito.

    As temporalidades de Georges Gurvitch so ml-tipl;is. Ele distingue toda uma srie: o tempo de longa Idiirao e em ritmo mais lento, o tempo iluso de Iiptica ou o tempo surpresa, o tempo de pulsaoirregular, o tempo cclico, o tempo em atraso sobre siprprio e o tcmpo d c altcrii5iicia cntre atraso e avan-o, o tempo em avaiico sobre si prprio, o tempo ex-plosivof". . . Como o historiador se deixaria conven-cer? Com essa gama de cores, ser-lhe-ia impossvelreconstituir a luz branca unitria, que lhe indispen-svel. Ele percebe tambm rapidamente, que essetempo camaleo assinala sem mais, com um sinal su-plementar, com um toque de cor, as categorias ante-

    riormente distinguidas. Na cidade de nosso amigo, otempo, ltimo a cnegar, se aloja muito naturalmenteentre os outros; assume a dimenso desses domicliose de suas exigncias, segundo os "patamares", as Isociabilidades, os grupos, as sociedades globais. E umamaneira diferente de reescrever, sem modific-las, as

    li1

    mesmas equaes. Cada realidade social secreta seutempo ou suas escalas de tempo, como vulgares con- 1chas. Mas o que ns, historiadores, ganhamos comisso? A imensa arquitetura dessa cidade ideal perma-nece imvel. A histria est ausente dela. O tempo

    do mundo, o tempo histrico a se encontra, mas comoo vento em Eolo, encerrado numa pele de bode. No histria que os socilogos, final e incoilsciente-mente, querem mal, mas ao tempo da histria, -essa realidade que permanece violenta, mesmo se seprocura arranj-la, diversific-la. Essa coero qualo historiador nunca escapa, os socilogos escapamquase sempre: evadem-se ou no instante, sempre atual,como que suspenso acima do tempo, ou nos feno-menos de repetio que no so de nenhuma idade;

    portanto, por uma marcha oposta do esprito, que osacantona seja no factuel 'mais estrito, seja na duraomais longa. Essa evaso lcita? A reside o verda-deiro debate entre historiadores e socilogos, inclusiveentre historiadores de opinies diferentes!

    43. Cf. GEORGES GURVITCH, D t c rm i n i sm c s so c i a u x r t Liberidhumaii ie , Paris, P.U.F., 1955, pp. 38-40 e passim..

    No sei se esse artigo muito claro, muito ampa-rado, segundo o hbito dos historiadores, ter a aquies-cncia dos socilogos e de nossos outros vizinhos.Duvido. . Em todo caso, no til repetir, h guisade concluso, seu leitmotiv exposto com insistricia.

    Se a histria est destinada, por natureza, a dedicaruma ateno privilegiada durao, a todos os movi-mentos em que ela pode decompor-se, a longa duraonos parece, nesse leque, a linha mais til para umaobservao e uma reflexo comuns s cincias sociais. pedir muito, a nossos vizinhos, desejar que a umdado momento de seus raciocnios, reconduzam a esseeixo suas constataes ou suas pesquisas?

    Para os historiadores, que no sero todos daminha opinio, seguir-se-ia uma inverso do vapor: para a histria curta que vo, instintivamente, suaspreferncias. Estas tm a cumplicidade dos sacros-santos programas da Universidade. Jean-Paul Sartre,em recentes artigo+, refora o ponto de vista delesquando, querendo protestar contra o que, no mar-xismo, ao mesmo tempo demasiado simples e dema-siado pesado, ele o faz em nome do biogrfico, darealidade abundante do factual. Nem tudo est dito,quando se tiver "situado" Flaubert como um burgus,ou Tintoretto como um pequeno-burgus. Estou efe-tivamente de acordo. Mas a cada vez, o estudo do

    caso concreto-

    Flaubert, Valry, ou a poltica exte-

    rior da Gironda

    -

    reconduz, finalmente, Jean-Paul

    Sartre ao contexto estrutural e profundo. Essa pes-quisa vai da superfcie s profundezas da histria eatinge minhas prprias preocupaes. Alcan-las-iaainda melhor se a ampulhet fosse inclinada nos doissentidos - do evento para a estrutura, depois dasestruturas e dos modelos para o evento.

    O marxismo uma multido de modelos. Sartreprotesta contra a rigidez, o esquematismo, a insufi-cincia do modelo, em nome do particular e do indi-

    vidual. Protestarei como ele, (em estes ou aquelesmatizes a menos), no contra o modelo, mas contraa utilizao que dele se faz, que muitos se julgaramautorizados a fazer. O gnio de Marx, o segredo de

    44. JEAN-PAUL SARTRE, Fragment d'un livre B paraltre tur leTintoret, Ler Tcmps Mo d c rn e s , nov. 1957, e artigo citado precedente-mente.

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    19/20

  • 8/8/2019 A Longa Durao- Braudel

    20/20

    ,?,,lii, I I I I I ,~I~~I,I I~I I I I1 IIIIII. I ' o i s SSC artigo, necessrioIII I,,, i l ~ l i r 1111 IUII IICIISO colocado sob a rubricaI 1, / I , I I + r * / ~ I ~ I I / J ~ I ~ . Y ~ ' ~ .Pretende por no resolver pro-III~.IIIII~ri1 que infelizmente cada um de ns, no queII:I~concerne sua especialidade, se expe a riscosevidentes. Essas pginas so um chamado discusso.

    47. Rubxica bem conhecida dor Annolcr (E .S .C . ) .

    78

    Ii

    4. UNIDADE E DIVERSIDADE DASCINCIAS DO 1-IOMEM1

    i

    A primeira vista- ao menos se se participa porpouco que seja em seu processamento - primeiravista, a s cincias humanas nos impressionam no pelaunidade, difcil de formular e de promover, mas pela

    diversidade entranhada, antiga, afirmada, para dizertudo, estrutural. Elas so desde logo elas mesmas,estreitamente, e se apresentam como outras tantasptrias, linguagens e tambm, o que menos justifi-cvel, como outras tantas carreiras, com suas regras,

    I . Rcuuc ds l ' tnreigncment rupe"aur, n9 1. 1960, pp. 17-22.