A Longa Duração e as Estruturas Temporais Em Fernand Braudel a Longa Duração

download A Longa Duração e as Estruturas Temporais Em Fernand Braudel a Longa Duração

of 115

Transcript of A Longa Duração e as Estruturas Temporais Em Fernand Braudel a Longa Duração

  • 1

    RODRIGO BIANCHINI CRACCO

    A LONGA DURAO E AS ESTRUTURAS TEMPORAIS EM FERNAND BRAUDEL:

    de sua tese O Mediterrneo e o Mundo Mediterrnico na poca de Felipe II at o artigo Histria e Cincias Sociais:

    A longa durao (1949-1958)

    Dissertao apresentada Faculdade de Cincias e Letras de Assis UNESP Universidade Estadual Paulista para a obteno do ttulo de Mestre em Histria. (rea de Conhecimento: Histria e Sociedade)

    Orientador: Hlio Rebello Cardoso Jnior

    ASSIS 2009

  • 2

    Cracco, Rodrigo Bianchini C921l A longa durao e as estruturas temporais em Fernand Braudel:

    de sua tese O Mediterrneo e o Mundo Mediterrnico na poca de Felipe II at o artigo Histria e Cincias Sociais: a longa durao (1949-1958). / Rodrigo Bianchini Cracco. Assis : 2009.

    115 f. ; 30 cm.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Assis, 2009

    Orientador: Hlio Rebello Cardoso Junior

    1. Annales 2. Fernand Braudel 3. Historiografia 4. Tempo I. Autor II. Ttulo.

    CDD 944.0072

  • 3

    Aos meus pais Luis e Ceclia

    e minha esposa Ligia

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao deste trabalho. Desde j, peo desculpas aos que no forem mencionados. Agradeo a FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo) pelo auxlio financeiro.

    Para me conduzir nesta jornada, contei com a orientao, a amizade e a ateno do professor Hlio Rebello Cardoso Jnior. Fico honrado em ser seu orientando. Muito obrigado! Ao professor Milton Carlos Costa e ao professor Ricardo Gio Bortolotti, agradeo pelas contribuies feitas na ocasio da qualificao que ajudaram muito no enriquecimento deste trabalho. professora Tnia Regina de Luca, agradeo pelo curto, mas decisivo, perodo de orientao. Agradeo aos amigos que estiveram bastante prximos de mim durante a execuo deste trabalho: Lucas, Adilson, Daniel, Rodrigo e Guilherme, que suportaram as minhas cansativas conversas de pesquisador nefito. Agradeo aos velhos amigos que no nomearei, posto que, felizmente, so muitos. E s novas e sinceras amizades que fiz nas turmas de graduao e ps-graduao. Agradeo imensamente o apoio e dedicao de meus pais que amo muito, Luis e Ceclia; Ana e ao Daniel, minha famlia que sempre esteve ao meu lado. Tenho muito orgulho de vocs, e toda a gratido do mundo. Tambm agradeo minha nova famlia, Maria Helena, Teofredo e Bruno, por me receberem em seu seio como um filho. Ligia, minha esposa, amante e principal incentivadora. Sem voc, seu apoio e suas broncas Rodrigo, vai estudar este trabalho no teria existido. Muito obrigado por seu amor e por acreditar em mim! Obrigado Deus.

  • 5

    RESUMO

    Fernand Braudel defende a pesquisa histrica que prioriza a longa durao. Os prprios fundadores da revista dos Annales j pensavam a histria a partir de longos perodos, contrapondo-se histria poltica dos sculos XVIII e XIX, ainda que Fernand Braudel afirme que a histria poltica no exclusivamente factual, nem condenada a s-lo. Para entendermos como Fernand Braudel chega a esta posio necessrio refletir sobre as influncias que o levaram a tal, dentre as quais e, principalmente, a tradio dos Annales. Portanto, buscaremos analisar as consideraes sobre o tempo histrico em Lucien Febvre e Marc Bloch e como estas consideraes incidem na nova grade do tempo proposta por Fernand Braudel. Analisaremos o tempo histrico em suas dimenses de temporalidade e durao, a dialtica da durao e a forma como Fernand Braudel trabalha com o conceito de estrutura. O estudo das perspectivas metodolgicas do grupo dos Annales, onde se situa nosso projeto, figura como pr-requisito para a compreenso dos mtodos da historiografia contempornea, em especial os ligados Nova Histria. Devido sistematizao da nova proposta temporal para as pesquisas histricas realizada por Fernand Braudel e, principalmente, ao seu mrito de articular o meio, cultura e sociedade em trabalhos balizados pela dialtica das duraes, somos levados a tomar a sua obra como base para o atual trabalho.

    Palavras-chave: Annales, Fernand Braudel, Historiografia, Tempo.

  • 6

    ABSTRACT

    Fernand Braudel argues about the historical research which gives priority to long term. Even the founders of the Journal of Annales already thought history from long periods of time, contrasting to the political history of the eighteenth and nineteenth centuries, while Fernand Braudel has said that the political history is not only factual, or ordered to do so. To understand how Fernand Braudel reaches this position, we must reflect on the influences that led him to this, among them, and mainly from the tradition of the Annales. Therefore, well examine the comments about the historical time in Marc Bloch and Lucien Febvre and how these considerations relate to the new grade of time proposed by Fernand Braudel. Well review the historical time in its dimensions of "temporality" and "duration", the "dialectic of duration" and how Fernand Braudel works with the concept of "structure". The study of the methodological perspectives from Annales group, which is our project, is a prerequisite to understanding the methods of contemporary historiography, in particular those linked to the New History. Due to the systematization of the new proposal about time for historical research conducted by the Fernand Braudel and, especially, the merit of articulating the environment, culture and society on works marked by the "dialectics of the time," we have to take his work as a basis for the current research.

    Key words: Annales, Fernand Braudel, Historiography, Time.

  • 7

    SUMRIO

    Introduo...................................................................................................................................8

    Captulo 1: A renovao da temporalidade histrica nos primeiros Annales...........................17 1.1. Orientaes gerais sobre a modificao da temporalidade histrica nos primeiros Annales......................................................................................................................................18 1.2. As influncias das Cincias Sociais, Geografia e da Revue de Synthse Histrique na nova temporalidade dos Annales..............................................................................................23 1.3. O alvo das crticas: o modelo temporal dos historiadores positivistas...........................31 1.4. Lucien Febvre: renovao metodolgica da pesquisa histrica e sua implicao na nova temporalidade............................................................................................................................34 1.5. Marc Bloch: primeiras consideraes conceituais sobre o novo tempo histrico nos Annales......................................................................................................................................43

    Captulo 2: O tempo em O mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe II.....50 2.1. A temporalidade histrica dos fundadores e a inovao braudeliana................................51 2.2. A tripartio temporal de O mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe II................................................................................................................................................57 2.3. Algumas leituras de O mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe II.....63

    Captulo 3: A dialtica da durao de Fernand Braudel........................................................72 3.1. Histria e Cincias Sociais: a longa Durao.................................................................73 3.2. Uma proposta de leitura das estruturas braudelianas a partir de Gilles Deleuze...............86 3.3. As estruturas de Fernand Braudel e Claude Lvi-Strauss..................................................94 3.4. Algumas consideraes sobre o tempo na metodologia de Fernand Braudel e Claude Lvi-Strauss............................................................................................................................102

    Consideraes Finais...............................................................................................................106

    Referncias..............................................................................................................................111

  • 8

    Introduo

  • 9

    Rever os hbitos cronolgicos dos historiadores, na tentativa de mostrar como o tempo avana em diferentes ritmos, caracterizou a obra de Fernand Braudel, que alm de crer em uma Histria Nova, costumava afirmar a existncia de apenas uma histria vlida, a correta. O presente trabalho prope uma anlise da concepo braudeliana de tempo histrico em funo de certas influncias, em especial de Lucien Febvre e Marc Bloch, em pontos precisos que haveremos de determinar na seqncia. Concentraremos nosso trabalho no perodo compreendido entre a publicao da tese de Fernand Braudel, La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II, e a publicao do artigo Histoire et sciences sociales. La longue dure (1949-1958). Em 1958, Braudel publicou na revista Annales E. S. C. sob a rubrica Debats et Combats, justamente um chamado discusso seu artigo Histoire et sciences sociales. La longue dure. Sua inteno de levantar o tema da concepo de tempo histrico dos historiadores, assim como a de subverter a periodizao da dita histria tradicional, foi atingida, ou antes, foi sistematizada nesse artigo, posto que nove anos antes, Braudel publicou La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II, no qual, utiliza na prtica, as propostas de renovao dos recortes temporais abordadas no artigo.

    Braudel defende a pesquisa histrica que prioriza a longa durao. Os prprios fundadores da revista dos Annales j pensavam a histria a partir de longos perodos, contrapondo-se histria poltica dos sculos XVIII e XIX, ainda que Braudel afirme que a histria poltica no exclusivamente factual, nem condenada a s-lo. Vrios fatores os levaram a defender esta posio1. Rompe-se com a idia de tempo revolucionrio da modernidade, na busca de uma explicao estrutural da histria mais consistente, menos impressionista. Representa a necessidade de uma desacelerao da histria, trazendo para o mundo dos historiadores o conceito de estrutura social, ainda que modificado, negando a atemporalidade de alguns modelos de socilogos e antroplogos. Assim, priorizando a longa

    1Vale ressaltar, entre outros, o deslocamento do olhar do aspecto poltico para o econmico e social. E no s a crise de 1929, mas toda a dcada de 20 marcada por debates e decises importantes no campo econmico. onde a revista Annales dhistoire conomique et sociale encontra um meio propcio para seu desenvolvimento. Deve-se ressaltar tambm a mutao do campo das cincias sociais no fim do sculo XIX e inicio do XX. Tambm como contexto do desenvolvimento da revista, e, conseqentemente, de suas propostas, temos o trauma do ps-guerra, cristalizado na negao do evento explosivo: da histria batalha, histria poltica e factual; favorecendo assim as perspectivas de longa durao e a vontade pacifista: [...] todos desejam reaproximar as humanidades, os povos, e uma nova finalidade aparece, portanto, no discurso do historiador, o qual ento considerado como instrumento possvel da paz, aps ter sido arma de guerra. DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. Trad: Dulce Oliveira Amarantes dos Santos; Reviso Tcnica: Jos Leonardo do Nascimento. Bauru: EDUSC, 2003. p.33-38.

  • 10

    durao, sem negar o evento, Braudel passa a pensar a histria em termos de dialtica das duraes.

    A dialtica das duraes, como coloca Braudel, liga, relaciona, articula os diferentes tempos da histria. Apesar de dar maior importncia longa durao, o autor afirma em vrios de seus escritos a necessidade de se pensar a conjuntura e o evento. Superar a histria acontecimental atribuindo uma importncia maior relao entre as diferentes velocidades com as quais o tempo histrico viaja, exprime sinteticamente a idia de dialtica das duraes. Nas palavras de Braudel:

    En fait, les dures que nous distinguons sont solidaires les unes des autres: ce nest pas la dure qui est tellement cration de notre esprit, mais les morcellements de cette dure. Or, ces fragments se rejoignent au terme de notre travail. Longue dure, conjoncture, vnement sembotent sans difficult, car tous se mesurent une mme chelle. Aussi bien, participer en esprit lun de ces temps, cest participer tous.2

    Em sua aula inaugural no Collge de France, conclui:

    Et la difficult nest pas de concilier, sur le plan des principes, la ncessit de lhistoire individuelle et de lhistoire sociale; la difficult est dtre capable de sentir lune et lautre la fois, et, se passionnant pour lune, de ne pas ddaigner lautre.3

    Para entendermos como Braudel chega a estas posies, necessrio refletir sobre as influncias que o levaram a tal, dentre as quais e principalmente a tradio dos Annales. Portanto, buscaremos analisar as consideraes sobre o tempo histrico de Febvre e Bloch e como estas consideraes incidem na nova grade do tempo proposta por Braudel. A anlise

    2 BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales. La longue dure. In: crits sur lhistoire. Paris :

    Flammarion, 1969. p. 76. (1 ed. Annales E. S. C., n 4, octobre-dcembre 1958, Dbats et Combats, p. 725-753.) De fato, as duraes que distinguimos so solidrias umas com as outras: no a durao que tanto assim criao de nosso esprito, mas as fragmentaes dessa durao. Ora, esses fragmentos se renem ao termo de nosso trabalho. Longa durao, conjuntura, evento se encaixam sem dificuldade, pois todos se medem por uma mesma escala. Do mesmo modo, participar em esprito de um desses tempos, participar de todos. BRAUDEL, Fernand. Histria e Cincias Sociais. A Longa Durao. In: Escritos sobre a histria. Trad: J. Guinburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. So Paulo : Perspectiva, 2005. (Debates ; 131). p. 72. 3 BRAUDEL, Fernand. Positions de lhistoire en 1950. In: crits sur lhistoire. Op. Cit. p.35. (Leon

    inaugurale au Collge de France faite le 1 dcembre 1950.) E a dificuldade no conciliar, no plano dos princpios, a necessidade da histria individual e da histria social; a dificuldade ser capaz de sentir uma e outra ao mesmo tempo, e se apaixonando por uma, no desdenhar a outra. BRAUDEL, Fernand. Posies da Histria em 1950. In: Escritos sobre a histria. Op. Cit. p.35.

  • 11

    desta herana de Febvre e Bloch imprescindvel para a compreenso do sucesso das perspectivas e da ampla difuso da obra de braudeliana, da qual vale ressaltar alguns pontos.

    Aps a publicao de La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II e principalmente de seu artigo-manifesto, Braudel passa a ser referncia para a historiografia francesa e de parte do mundo. A influncia de sua obra foi e ainda grande, expandindo-se inclusive (seus principais trabalhos foram traduzidos para dezesseis idiomas).4 Devido a isso, no possvel objetivar uma anlise completa do impacto de seus escritos na historiografia, ainda que se possam ressaltar alguns pontos. As dcadas de 50, 60 e 70, notadamente, refletem a importncia do trabalho tanto de Braudel quanto de Ernest Labrousse. As abordagens histricas por eles propostas tornam-se o eixo da produo historiogrfica francesa e de parte do mundo, evidentemente porque, sob a direo de Braudel, a partir de 1957, os Annales estabelecem um relativo domnio institucional sobre os historiadores do perodo. Bolsas e financiamentos para pesquisa estavam sob sua autoridade5. No devemos, porm, atribuir a isso a crescente expanso de suas idias, o que seria negar o carter inovador de suas propostas em virtude da posio por ele ocupada de administrador do patrimnio fsico e institucional dos Annales. Novas abordagens foram criadas a partir da longa durao e da histria quantitativa, combinando estruturas, conjunturas, demografia histrica, ampliando o campo terico-metodolgico dos historiadores, e desta forma, diversificando o prprio projeto dos fundadores dos Annales. Mesmo outras cincias tiveram e tm tido especial considerao sobre a discusso da histria de longa durao, posto que de bvia importncia para os tericos (socilogos e antroplogos) das mudanas sociais.

    Os avanos proporcionados pela difuso da proposta metodolgica braudeliana so muitos. A substituio da idia de um tempo nico, linear, pela dialtica da durao e o enfoque no tempo longo propiciou, alm de uma aproximao da antropologia, a possibilidade de construir uma cronologia cientfica, datando os fenmenos histricos segundo sua durao, longe de encerrar-se nos acontecimentos, individualizando as estruturas e interessando-se em primeiro lugar por elas. Exemplo disso so as afirmaes de autores da chamada terceira gerao dos Annales como Michel Vovelle6, que v na longa durao o veculo pelo qual a histria cultural teve mais avanos. Jacques Le Goff chega a reconhecer [a longa durao] como a mais fecunda das perspectivas definidas pelos pioneiros da histria

    4 AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Tempo, durao e civilizao: percursos braudelianos. trad. Sandra

    Trabucco Valenzuela. So Paulo, Cortez, 2001. (Coleo Questes da Nossa poca; v. 89) p. 15 5 DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. Op. Cit. p. 182-195.

    6 VOVELLE, Michel. A histria e a longa durao. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL,

    Jacques (Dir.). A Histria nova. Trad. Eduardo Brando. 5 ed. - So Paulo : Martins Fontes, 2005. p. 99.

  • 12

    nova.7 Devido sistematizao da nova proposta de pesquisa histrica realizada por Braudel no artigo de 1958 e, principalmente, ao seu mrito de articular o meio, cultura e sociedade em trabalhos balizados pela dialtica das duraes, somos levados a tomar a sua obra como base.

    O estudo das perspectivas metodolgicas do grupo dos Annales, onde se situa nossa pesquisa, figura como pr-requisito para a compreenso dos mtodos da historiografia contempornea, em especial os ligados Nova Histria.

    Na maior parte das vezes em que a questo da diviso cronolgica dos historiadores veio tona, foi atribuda a filsofos a articulao terica de tais procedimentos. Estes emprestaram aos historiadores noes de recortes temporais, continuidades e rupturas. Da a escassa discusso terica do tema por parte dos historiadores. Se buscarmos discutir estes hbitos cronolgicos nos referindo exclusivamente ao grupo dos Annales, podemos tomar como parmetro as consideraes sobre o tema feitas por Lucien Febvre e Marc Bloch, culminando na obra de Fernand Braudel, em especial, na sistematizao por ele proposta da dialtica das duraes, que evidencia a necessidade de se pensar este tema to caro aos historiadores j que, como coloca Franois Dosse: a durao condiciona todas as cincias sociais e confere um papel central histria.8

    Braudel, em seu artigo Histoire et sciences sociales. La longue dure9, apresenta suas posies em relao s cincias vizinhas e histria. Discute o conceito (longa durao) e defende sua utilidade, tanto para a histria quanto para as outras cincias humanas, apresentando uma possvel metodologia comum para o estudo do homem. A multiplicidade do tempo, em especial o tempo longo, e a interdisciplinaridade so o eixo do texto. Privilegiando a permanncia, a continuidade, Braudel muda a perspectiva temporal da pesquisa histrica, priorizando os movimentos repetitivos, seriveis, em detrimento da ruptura brusca da histria individual e dos eventos. O cotidiano toma o lugar dos fatos singulares e o homem torna-se elemento serivel: diminui, quase rejeitando, a importncia das figuras singulares na operao histrica. No exclui o homem da condio de sujeito, mas mostra como as estruturas existentes agem como barreiras ainda que no totalmente intransponveis ao individual modificadora (produtora) da histria. Ainda neste artigo, expe tambm sua posio em relao ao conceito de estrutura, negando a atemporalidade e a abstrao matemtica de alguns modelos das cincias sociais, 7LE GOFF, Jacques. A Histria Nova. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (Dir.). A Histria nova. Op. Cit. p. 62. 8 DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. Op. Cit. p.166.

    9 BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales. La longue dure. In: crits sur lhistoire. Op. Cit.

  • 13

    mostrando o papel da estrutura na disciplina histrica, como formulao objetiva, buscando atingir assim, o observvel, repetitivo, serivel. A estrutura do historiador um quadro estvel, que confere s atividades um quadro montono, repetitivo; uma longa durao, concreta, mas invisvel, que s a pesquisa e a reconstruo conceitual podem apreender10. O artigo-manifesto Histoire et sciences sociales. La longue dure causou grande repercusso no perodo de sua publicao, ainda que foi em sua obra La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II, onde primeiro foram colocados em prtica os mtodos de anlise posteriormente discutidos no artigo, de forma que vlido explicitar alguns pontos desta obra, no que se refere s duraes.

    La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II, obra dividida em trs partes, cada qual com uma maneira especfica de abordar o passado, forma uma dcomposition de lhistoire en plans tags.11 A primeira parte e, certamente a mais representativa, trata da geo-histria, da relao entre o homem e o meio, de como as caractersticas geogrficas so parte da histria; alm das descries dos espaos geogrficos abordados, relacionando-os sempre com a cultura e a sociedade pertencente a estes. Apresenta tanto montanhas, plancies e ilhas quanto o clima e mesmo as rotas de navegao e de transporte terrestre. So quase trezentas pginas dedicadas a um tipo especfico de histria que se diferencia das costumeiras introdues geogrficas inutilement places au seuil de tant de livres.12 Em seguida, na segunda parte do livro, o autor se preocupa com a histria lentamente ritmada sociedades, tradies religiosas, sistemas econmicos; com as civilizaes, como preferia dizer. o espao destinado basicamente ao estudo dos dois grandes imprios rivais que dominavam o Mediterrneo. Sua anlise perpassa tanto aspectos scio-econmicos quanto culturais dos turcos e espanhis do mediterrneo, ainda que Braudel seja criticado pela falta de nfase na cultura e nas mentalidades. uma histria de permanncias e mudanas somente percebidas por meio do estudo de perodos relativamente extensos, por vezes sculos.

    10

    REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales a inovao em histria. So Paulo: Paz e Terra, 2000. p.17. 11

    BRAUDEL, Fernand. La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II. Extrait de la prface. In: crits sur lhistoire. Op. Cit. p. 13. (O livro acabado em 1946, foi publicado em 1949: La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II, Paris, Armand Colin, XV + 1160 p., in-8; 2 ed. revista e aumentada, ibid., 1966, 2 v., 589 e 629 pp., in 8. Cf. p. XIII e XIV da 1 ed.) 12

    BRAUDEL, Fernand. La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II. Extrait de la prface. In: crits sur lhistoire. Op. Cit. p. 11. Inutilmente colocadas ao limiar de tantos livros. 12BRAUDEL, F. O Mediterrneo e o Mundo Mediterrneo poca de Filipe II. Extraido do Prefcio. In: Escritos sobre a histria. Op. Cit. p. 14.

  • 14

    Sem neg-la, porm sempre alertando para seus perigos, na terceira parte do livro, Braudel trabalha com a histria acontecimental (vnementille). No se trata de uma narrativa de eventos aos moldes to criticados da histria metdica, posto que se esfora todo o tempo em situar os indivduos e fatos num contexto amplamente valorizado, ainda que o faa para negar-lhes importncia substancial. uma histria de carter poltico-militar, uma nova proposta de como a historiografia pode pensar os atores e acontecimentos num curto perodo da histria. preciso, no entanto, esclarecer que apesar de Fernand Braudel ter sido um inovador no que diz respeito s dimenses da temporalidade, seus escritos fazem parte da perspectiva lanada por Lucien Febvre e Marc Bloch, os quais, ainda que de formas diferentes, j se preocupavam em realizar uma mudana significativa dos hbitos cronolgicos dos historiadores. Exemplo disso a tendncia das perspectivas de longa durao nas publicaes da revista por eles dirigida13 e mesmo a proposta de histria-problema, que utilizando questes do presente para interrogar o passado, inevitavelmente reorganiza o tempo histrico. Nesta anlise, como em qualquer outra que envolva o grupo dos Annales, duas obras so essenciais: Combats pour lhistoire, e, Apologie pour lhistoire, ou Mtier dhistorien, esta que tem o primeiro captulo intitulado Lhistoire, les hommes et le temps, onde Marc Bloch expe suas posies quanto s temporalidades que, de certa forma, aproximam-se mais das disposies braudelianas ainda que Braudel tivesse relaes muito mais prximas de Febvre. J na coletnea Combats pour lhistoire, no temos um artigo tratando especificamente a questo da temporalidade, no entanto, em muitos deles Febvre discute o tema. Notam-se formas diferentes de considerar as duraes histricas em Febvre e Bloch. Febvre, apesar de sempre empenhado na crtica da periodizao da histria metdica, busca partir do evento intelectual ou da biografia, para desta forma atingir uma estrutura mental coletiva. Bloch diferencia-se de Febvre colocando em primeiro plano as estruturas, como latente na passagem: Or, ce temps vritable est, par nature, un continu. Il est aussi perptuel changement 14, onde podemos notar a nfase de Bloch nos aspectos duradouros, sem excluir a especificidade histrica da mudana. Em nosso primeiro captulo, buscaremos nos focar no perodo pr-braudeliano, nos textos de carter metodolgico de Lucien Febvre e Marc Bloch, assim como na Revista por

    13

    No perodo de 1929-1939, 45,9% dos artigos publicados na revista dos Annales tratam da longa durao, contra porcentagens bem menores na Revue historique e Revue dhistoire modene et contemporaine. DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. Op. Cit.p. 123. 14

    BLOCH, Marc. Apologie pour lhistoire, ou Mtier dhistorien. 5 ed. Paris : Armand Colin, 1964. (1 ed. 1949).

  • 15

    eles publicada. Este primeiro captulo servir como base para compreendermos qual o papel dos pais fundadores dos Annales e da prpria Revista para a renovao do tempo histrico realizada por Fernand Braudel. Ainda neste captulo buscaremos mostrar como outras cincias do homem tiveram uma importncia central para a renovao do tempo histrico, seja ainda com Febvre e Bloch, seja depois, com Braudel. Tambm pretendemos mostrar, ainda que de modo latente, qual o contexto de modificaes das cincias pelo qual o mundo e, em especial, a Frana, atravessa na primeira metade do sculo XX. No segundo captulo, faremos uma incurso pelas diferentes duraes presentes na tese de Fernand Braudel O mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe II, posto que esta obra o principal trabalho onde a dieltica da durao braudeliana est aplicada. Neste captulo, buscaremos integrar: 1) a continuidade/descontinuidade do tempo histrico segundo os fundadores dos Annales e o de Fernand Braudel; 2) como a diltica da durao aparece na obra e; 3) quais foram as principais crticas e a aceitao deste trabalho, em funo da modificao da perspectiva temporal por parte dos historiadores. No terceiro e ltimo captulo, trabalharemos mais diretamente em funo da dialtica da durao braudeliana. Alm de uma anlise do artigo fundamental de Braudel sobre o tempo histrico Histria e Cincias Sociais: a longa durao, buscaremos iluminar a questo sobre as estruturas em Fernand Braudel, seu carter singular e inovador, a partir do trabalho de Gilles Deleuze, que prope um roteiro para a conceituao dos estruturalismos. Por fim, analisaremos as aproximaes e, principalmente, as diferenas entre as estruturas temporais da histria, com Fernand Braudel, e as da antropologia, com Claude Lvi-Strauss. Estas ltimas discusses permitiro revelar os traos singulares do estruturalismo temporal e da dialtica da durao de Fernand Braudel.

    O objetivo de nossa pesquisa, portanto, o de analisar as consideraes sobre as duraes contidas na metodologia dos fundadores dos Annales at, e incluindo, a obra de Fernand Braudel. Logo, buscaremos identificar, exclusivamente nos escritos de cunho metodolgico de Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel (sobre este ltimo, incluiremos nos textos a serem discutidos tambm sua tese sobre o mediterrneo), nosso eixo de anlise do tema, procurando definir a posio de cada um em relao ao tema das duraes, suas proximidades e diferenas e identificar a forma como o programa de renovao metodolgica de Febvre e Bloch incide sobre a nova grade do tempo histrico proposta por Braudel.

  • 16

    Devemos, contudo, insistir em um ponto: no almejamos, em absoluto, uma anlise que v alm das consideraes sobre o tempo histrico, nesta bibliografia to grandiosa em volume e, fundamentalmente, representatividade. Procuraremos analisar nosso tema de forma sistemtica e direcionada, para evitar que a pesquisa venha a enveredar-se por caminhos e variaes temticas que no correspondem com a proposta da pesquisa.

  • 17

    Captulo 1 A renovao da temporalidade histrica nos primeiros Annales.

  • 18

    1.1. Orientaes gerais sobre a modificao da temporalidade histrica nos primeiros Annales.

    Neste captulo buscaremos discutir as primeiras inovaes relacionadas ao tempo histrico nos Annales. Focaremo-nos nas figuras de Lucien Febvre e Marc Bloch, em seus escritos de cunho metodolgico onde questes relacionadas, direta ou indiretamente, temporalidade so discutidas. Procuraremos tambm reconstruir brevemente o contexto do lanamento da Revista e o papel exercido por outras cincias como a sociologia, economia e geografia no projeto da revista de histria econmica e social dos Annales. Nosso foco no a revista em si, mas, sim, a inovao da temporalidade da pesquisa histrica efetuada pelo grupo de historiadores reunidos em torno dela. Nosso principal objetivo discutir a sistematizao da nova temporalidade histrica feita por Fernand Braudel. Acreditamos, todavia, ser imprescindvel partir de Lucien Febvre e Marc Bloch, posto que eles so os fundadores do grupo dos Annales e as principais influncias do pensamento braudeliano. Passemos, portanto, revista e ao pensamento metodolgico de Febvre e Bloch. Ao cabo da Primeira Guerra Mundial, Lucien Febvre pensa j uma revista de histria econmica para ser dirigia pelo historiador belga Henri Pirenne. Este projeto foi adiado at 1928 quando, junto de Lucien Febvre, Marc Bloch o retoma ainda com a inteno de que Pirenne estivesse frente de tal empreitada. Com a recusa de Pirenne, Febvre e Bloch passam a ser os editores da revista, que publica seu primeiro nmero em 15 de janeiro de 1929. A revista tinha ento o nome de Annales dhistoire conomique et sociale, nome que perdurou at 1939. Entre 1939 e 1942, e tambm no ano de 1945, devido a mudanas na prpria orientao dos estudos da revista, esta se chamou Annales dhistorie sociale; entre 1942 e 1944, a revista levou o nome de Mlanges dhistoire sociale e de 1946 em diante, de certa forma, sintetizando os ttulos anteriores, a revista passou a se chamar Annales: conomies, socits, civilisations. Em 1994 a revista mudou seu nome para Annales. Histoire, Sciences Sociales, nome que perdura at hoje. Este perodo, de cerca de dez anos, entre a idealizao de uma revista de histria econmica e, de fato, seu lanamento, tem razes polticas e sociais, devido situao mundial do ps-guerra. Devemos considerar tambm a conjuntura econmica do perodo. As oscilaes econmicas da dcada de 20 so um ponto importante para o sucesso de uma revista de histria econmica e social. Ainda assim, no podemos dizer que foi da crise de 1929 que a revista recebeu seu principal impulso, j que esta foi lanada nove meses antes da quebra da bolsa de Wall Street. Toda a sociedade na dcada de 20, no entanto, busca, inclusive na histria, respostas para o momento econmico no s europeu, mas mundial. A

  • 19

    lgica econmica capitalista colocada em xeque. As implicaes econmico-sociais da crise so amplamente discutidas, principalmente os efeitos de recesso, desemprego e queda na produo industrial. Este deslocamento do objeto em discusso na sociedade a saber, do domnio poltico-militar do ps-guerra para o domnio econmico apresenta-se como terreno frtil para o lanamento da revista. Mesmo a atuao poltica do perodo passa a ser qualificada diante dos sucessos ou insucessos das medidas econmicas. Tambm os aspectos sociais da dcada de 20, derivados muitas vezes da situao econmica, so essenciais para o desenvolvimento da revista. Os efeitos da primeira guerra mundial ainda esto bastante presentes em 1929, principalmente no domnio da histria. Os relatos polticos, a histria militar e episdica alterada, posto que este tipo de histria da guerra e dos fatos polticos no explica inteiramente os fatos traumticos do perodo do qual o mundo vem lentamente se recuperando. A conjuntura do ps-guerra favorece uma histria econmico-social onde a histria das relaes diplomticas, das batalhas e atos polticos no responde mais totalmente aos anseios e questionamentos da sociedade. Tambm h um esprito pacifista entre os historiadores que procuram fazer da histria menos relato de guerra e mais ferramenta de questionamento e fonte de respostas para a sociedade do perodo15. A revista surge no momento de crise da conscincia histrica quando as crticas histria metdica j esto bastante disseminadas. H um desgaste deste tipo de histria, causado principalmente pela investida das cincias sociais. As constantes crticas ao modelo metdico de histria se do, por parte dos Annales, pela necessidade de afirmar um novo modelo de histria, afirmar uma nova histria. As tentativas de renovao da disciplina histrica se multiplicam e os Annales, assumindo uma postura de histria influenciada pelas cincias sociais detm, logo de incio, uma relativa importncia no cenrio de contestao histria metdica. -nos essencial retomar, ainda que superficialmente, os passos iniciais da Revista dos Annales e dos pesquisadores que se agrupam em torno dela a fim de analisar, em seu programa inicial, indcios de modificao da relao dos historiadores com a temporalidade histrica.

    Vale citar alguns dos pontos de renovao propostos por Febvre e Bloch no lanamento da revista16. O primeiro deles, e o mais importante em nossa pesquisa, a forma como, j nos primeiros nmeros da revista e nas obras de seus fundadores, nota-se uma modificao na perspectiva temporal das pesquisas apresentadas. A incluso do estudo das 15

    DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. Trad: Dulce Oliveira Amarantes dos Santos; Reviso Tcnica: Jos Leonardo do Nascimento. Bauru: EDUSC, 2003. p. 36.

    16 Cf. REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales a inovao em histria. So Paulo : Paz e Terra, 2000. pp. 91-97.

  • 20

    permanncias, dos aspectos duradouros difere bastante da histria tradicional na qual o evento poltico tratado quase como exclusivo objeto da histria. A perspectiva da mudana continua sendo considerada, mas a incluso no discurso do historiador do que muda somente muito lentamente, as estruturas mentais to presentes na obra de Febvre, assim como as estruturas sociais e econmicas da obra de Bloch, abrem uma nova possibilidade para a disciplina histrica de expandir o leque de objetos de estudo, alm de aproximar a histria das cincias sociais e, desta forma, atualizar seus mtodos de anlise e possibilitar buscar permanncias e mudanas reconhecidas somente na longa durao aos moldes das cincias sociais.

    A nfase nos aspectos econmicos e sociais de suma importncia para a caracterizao da nova revista. A mudana de foco do poltico para o social e econmico abrem as portas para o estudo das estruturas, das permanncias, assim como dos ciclos e tendncias seculares, principalmente no que diz respeito economia. A mudana nos objetos privilegiados carrega consigo uma mudana na perspectiva temporal das anlises. A lentido da mudana do social, assim como sua amplitude, buscando investigar as prticas humanas em todas as suas instncias, em comparao com o poltico, assim como a incluso das vrias duraes conhecidas dos economistas na disciplina histrica provoca uma alterao significativa na temporalidade da histria dos Annales, logo no incio da publicao da revista.

    Portanto, em linhas gerais, o programa dos fundadores dos Annales buscava: praticar uma interdisciplinaridade, alianas com disciplinas vizinhas para desta forma diminuir o isolamento disciplinar das cincias humanas; afirmar novas reas de interesse para seus estudos, com nfase principalmente nos aspectos econmicos e sociais; diminuir a importncia atribuda histria poltica, narrativa e acontecimental, para buscar um fundo estrutural da histria recusando a histria tradicional num esforo para a construo de uma nova histria; produzir uma histria total, sem determinismos explicativos e reducionismos. Todas estas orientaes da pesquisa histrica afirmadas pelos Annales partem da nova concepo de tempo histrico.

    Foram nos anos de 1920 a 1933 que Febvre e Bloch se encontraram diariamente na universidade de Estrasburgo. A amizade e a identificao das perspectivas de trabalho de Febvre e Bloch figuram mesmo como um dos principais motivos do sucesso da empreitada de uma revista da qual dividiam a direo. A identificao terico-metodolgica e pessoal dos fundadores da revista animou o trabalho conjunto e o projeto maior de renovao do

  • 21

    conhecimento histrico. na revista dos Annales onde principalmente se d o combate s disposies da histria do fim do sculo XIX.

    Febvre e Bloch j so intelectuais reconhecidos na Frana da dcada de trinta. O sucesso da revista desde seu lanamento se deve tambm a este reconhecimento. Ainda assim, os Annales foram considerados marginais ao establishment historiogrfico no seu incio. O trabalho de Febvre e Bloch na revista no se dava unicamente como o de diretores: ao contrrio, o contedo essencial da revista dos Annales na dcada de trinta e primeira metade da dcada de quarenta so os escritos, resenhas, artigos, notas etc., de Febvre e Bloch. Os diretores da revista assinam neste perodo uma quantidade significativa de textos publicados.

    Vale ressaltar que os pontos de renovao da disciplina histrica propostos pelos Annales so essencialmente metodolgicos: apesar da inexistncia de uma teoria, como corpo fixo de interpretao, mesmo porque este um dos alvos do ataque dos Annales a um tipo de histria que no a deles, Febvre e Bloch se preocuparam constantemente em propor e aplicar novas direes do mtodo de investigao. H em seus trabalhos, principalmente nas resenhas publicadas na revista dos Annales, uma constante preocupao epistemolgica. a partir da anlise do discurso histrico, que buscam renovar, que Febvre e Bloch baseiam suas crticas. Apesar de constantemente recusar teorias dogmticas sobre o conhecimento histrico, os Annales participam tambm, e talvez, principalmente, da renovao da histria por meio da apresentao de novos mtodos interpretativos. A prpria interdisciplinaridade que caracteriza os Annales pressupe uma constante troca metodolgica de experincias cientficas, formas de anlise e explicao. Esta preocupao terico-metodolgica por parte dos Annales foi bem exposta como forma de questionamento por Ulisses T. Guariba Neto:

    O programa dos Annales de intercmbio de experincias tericas, que se propem a objetivar a ao do homem na histria, no responde necessidade de renovao da prtica cientfica? No todo um programa de epistemologia das cincias do homem que posto em ao?17

    Ainda, segundo Guariba Neto, os Annales so escola de mtodo, sem dvida 18. Para efetuar esta renovao metodolgica da histria, os Annales se aliaram a disciplinas vizinhas, das quais vale citar as trs principais. Seguiremos, todavia, somente os

    17

    GUARIBA NETO, Ulysses T. Leitura da obra de Lucien Febvre e Marc Bloch nos Annales: Introduo a anlise do conhecimento histrico. 299 p. Tese (Doutorado em Histria). Faculdade de Cincias e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, s.d. p. 201. 18

    Id. Ibid. p. 202.

  • 22

    pontos nos quais estas disciplinas contriburam para a formulao de um novo conceito de tempo histrico.

  • 23

    1.2. As influncias das Cincias Sociais, Geografia e da Revue de Synthse Histrique na nova temporalidade dos Annales.

    O projeto dos Annales sofreu, portanto, basicamente trs grandes impulsos externos prpria disciplina histrica: de um lado, a escola sociolgica durkheimiana; de outro, a geografia humana, principalmente de Vidal de La Blache e, finalmente, da revista lanada por Henri Berr Revue de Synthse Histrique. Citaremos rapidamente quais as implicaes destas influncias para a modificao da temporalidade histrica pelos Annales.

    A mutao das cincias sociais que se d no fim do sculo XIX e incio do sculo XX figura como ponto essencial para o desenvolvimento das perspectivas dos Annales. A sociologia durkheimiana apresenta uma forte oposio histria metdica de ento, e busca articular, sob seu comando, as outras cincias do homem. Busca fazer da histria uma mera ferramenta que organiza materiais para serem analisados pela nova disciplina, considerada por eles a nica capaz de analisar a sociedade e dar respostas aos questionamentos que se colocam nesse momento, caracterizado pela mutao das cincias em todos os planos. Esta investida das cincias sociais foi, a princpio, motivo de crise da disciplina histrica, mas com os Annales, passa a ser fator de renovao da disciplina, posto que os Annales, de certa forma, absorvem este discurso e fazem dele meio de renovao da disciplina, como haveremos de explicitar na seqncia.

    Sobre a investida da cincia social contra a histria dita positivista, vale citar um trecho do artigo Mtodo histrico e cincia social. Franois Simiand, o mais enrgico crtico do grupo durkheimiano histria mostra, vigorosamente, sua viso da histria produzida no fim do sculo XIX:

    O historiador tradicional tem as suas ambies. Ambiciona nos fornecer simplesmente uma representao do passado, sem teoria abstrata, sem ponto de vista tendencioso, sem elaborao dogmtica, bem fundamentada sobre documentos pertinentes, realizada com crtica e fidelidade aos fatos. Estas ambies so ilusrias. No h fotografia ou registro automtico do passado, mas operao ativa do nosso esprito. No h, na cincia, constatao que no seja escolha, observao que no pressuponha alguma idia, alguma perspectiva. No h reunio de fatos que no implique (conscientemente ou no) em uma certa hiptese construtiva, em uma pr-formao cientfica. O pensamento que concebe e a ateno que observa esto, no trabalho cientfico, em comrcio estreito, atuando juntos, constituindo unidade. A investigao analtica segue pari passu a sntese construtiva da cincia e regula-se, constantemente, por ela, da mesma forma que a sntese se funda, tambm passo a passo, apoiando-se na anlise. Os dois processos so inseparveis. Por que razo o procedimento cientfico estaria excludo do conhecimento histrico? O historiador que evita fazer trabalho de cincia social, que se afasta da procura das relaes cientficas, das leis dos fenmenos, da constituio de tipos e de espcies de fatos cr, em vo, no estar entregando idias pr-concebidas, nem plano prvio de organizao da pesquisa. As

  • 24

    idias e os planos estaro, sem dvida, atuando no seu trabalho, inconscientemente talvez, com a diferena que, no lugar dos mais inovadores, sero incapazes de responder s exigncias e aos desafios da cincia atual. Idias e planos que, provenientes do fundo de idias prontas, constitudos pela cincia de cinqenta ou cem anos atrs e absorvidos pela mentalidade social, parecero naturais como se no tivessem sido concebidos pela inteligncia humana. Assim, o trabalho que procede destas concepes regula-se pela cincia de ontem ou de anteontem, ao invs de se orientar pela cincia de hoje ou de amanh. Avana, contraindo emprstimos, apressados e incoerentes, fraseologia do dia, utilizando-se, sem crtica, de noes pseudocientficas atualmente na moda, ou de construes arbitrrias subjetivas e fantasias.19

    Febvre critica esta fundamentao cientfica da histria metdica em um modelo cientfico j ultrapassado. Assumindo o discurso de Simiand, afirma que tempo de renunciar as velhas orientaes do trabalho cientfico em favor de novos modelos:

    Tout au moins, ny a-t-il pas lieu de renoncer, une bonne fois, nous appuyer sur les sciences dil y a cinquante ans pour tayer et justifier nos thories puisque les sciences dil y a cinquante ans ne sont plus que des souvenirs et des fantmes? Voil toute la question. Y rpondre, ce serait rsoudre la crise de lhistoire. Et sil est vrai que les sciences sont toutes solidaires la rponse est connue davance. Inutile de la professer solennellement.20

    Simiand funda suas crticas a partir das principais caractersticas da histria metdica, caractersticas as quais intitular dolos da tribo dos historiadores: o dolo poltico, o dolo individual e o dolo cronolgico 21. A primazia da histria poltica, dos grandes nomes da histria e da busca pelas origens so justamente os focos da pesquisa histrica do perodo. Sobre o dolo poltico, Simiand critica a exagerada nfase dada a este aspecto da histria que, episdico, segundo ele, dificulta o estabelecimento de regularidades e de leis. O dolo individual a crtica centralidade dos indivduos nas pesquisas histricas que, dessa forma, relegam ao segundo plano o estudo de temas mais amplos como as instituies, a economia, agricultura, entre outros e o dolo cronolgico uma crtica a busca das origens por parte dos historiadores que muitas vezes acabam por se perder em particularidades.

    19

    SIMIAND, Franois. Mtodo histrico e cincia social. Trad. Jos Leonardo do Nascimento. Bauru : EDUSC, 2003. pp. 99-100. 20

    FEBVRE, Lucien. Vivre lhistoire. Propos dinitiation. In: Combats pour lhistoire. Paris : Librairie Amand Colin, 1992. (primeira edio de 1952). p. 29. No ser, pelo menos, tempo de renunciar de uma vez por todas, a apoiar-nos nas cincias de h 50 anos para escorar e justificar as nossas teorias uma vez que as cincias de h 50 anos no so mais do que recordaes ou fantasmas? Essa a pergunta. Responder-lhe, seria resolver a crise da histria. E se verdade que as cincias so todas solidrias a resposta conhecida de antemo. Intil profess-la solenemente. FEBVRE, L. Viver a histria. In: Combates pela histria. 3 edio. Lisboa : Presena, 1977. p. 39. 21

    SIMIAND, Franois. Mtodo histrico e cincia social. Trad. Jos Leonardo do Nascimento. Bauru : EDUSC, 2003. pp. 109-116.

  • 25

    Os Annales creditam como vlidas as crticas de Simiand a respeito da histria como era produzida no incio do sculo XX e, de certa forma, assumem algumas direes metodolgicas vindas da sociologia, sobretudo do ncleo durkheimiano. Sobre o papel das cincias sociais na modificao do tempo histrico, vale discorrer brevemente sobre como a unio entre a sociologia e histria produziu um terceiro tempo histrico. Buscaremos por um momento nos basear na hiptese sobre o tempo histrico dos Annales desenvolvida por Jos Carlos Reis22.

    O que caracteriza a Nova Histria a sua posio de deixar-se influenciar pelas cincias sociais e seus mtodos. Esta influncia traz diversas implicaes para a disciplina histrica. Entretanto, seguindo nossa proposta de pesquisa, nos focaremos no modo como esta influncia das cincias sociais significou uma mudana na forma como os historiadores trabalham as temporalidades histricas. Para Jos Carlos Reis, a unio da histria com as cincias sociais produziu uma terceira mudana substancial do tempo histrico. A primeira se produziu na esfera da religio, quando, ao romper com o mito, o tempo histrico passa a ser orientado para o futuro, para um fim histrico. Nesta perspectiva teleolgica, os eventos tm lugar dentro de uma linearidade temporal, de sentido nico, em direo a um fim, a salvao. Esta concepo de tempo valoriza a histria e sua irreversibilidade, d importncia aos eventos como localizados nesta perspectiva teleolgica, caracterizada por sua abertura e espera do futuro, do Juzo. dessa forma que o tempo histrico sofre a primeira mudana, exemplificada pela substituio do tempo cclico do mito pela salvao futura. A segunda mudana na orientao do tempo histrico se d pela filosofia do sculo XVIII, ao romper com a religio. O futuro deixa de ser orientado por uma escatologia e passa a ser produzido pelo homem. D-se assim a busca por um fim diferente do da religio, de uma sociedade moral e racional, onde o homem produtor da histria e que busca, com a idia de progresso, este futuro no qual triunfa a Razo enquanto princpio. Este perspectiva temporal

    da histria caracteriza-se pela atribuio do futuro ao humana; de fato histrico e se ope ao futuro divino. Temos, portanto, neste movimento iniciado pela religio, e posteriormente pela filosofia, uma mudana significativa em relao ao futuro: de um fim escatolgico para uma filosofia da histria. Diferenciam-se, basicamente, pela exterioridade da orientao temporal da religio: a histria se produz por um exterior divino, enquanto a filosofia afirma a

    22

    REIS, J. C. Nouvelle Histoire e Tempo Histrico: a contribuio de Febvre, Bloch e Braudel. So Paulo: tica, 1994.

  • 26

    produo da histria a partir do homem. Nos sculos XIX e XX as cincias sociais rompem com a religio e com a filosofia para atribuir uma nova orientao temporal histria e a que os Annales vo buscar elementos para produzir a renovao da temporalidade histrica. Este tempo histrico das cincias sociais se caracteriza pela incluso no movimento histrico da permanncia, das estruturas, dos movimentos e mudanas de longa durao, da repetio, constncias e repousos. A modernidade e o tempo histrico da filosofia do sculo XVIII propiciaram uma grande acelerao na produo de eventos, que se acreditava serem reflexos da realizao de um progresso de sentido conhecido, em direo razo. As cincias sociais alertaram ento para o fato de que os eventos no se ordenam e nem so passveis de controle tal qual se considerava no sculo XVIII. preciso antes conhecer as resistncias da histria, suas estruturas, antes de transform-la em meio no qual os eventos so necessariamente encadeados na direo de um fim j conhecido; negar, de certa forma, uma filosofia da histria. Este terceiro tempo histrico, posterior religio e filosofia, passa a fazer parte do discurso dos socilogos na segunda metade do sculo XIX. J para os historiadores, este tempo histrico comea a aparecer somente no incio do sculo XX, j que a histria tradicional estava at ento ainda ligada s filosofias da histria, considerando o tempo como linear, contnuo e progressivo.

    deste terceiro tempo da histria, portanto, que os Annales vo se alimentar para produzir seu conceito de tempo histrico. Assim como nas cincias sociais, este tempo se caracteriza pela desacelerao na produo de eventos e d nfase aos aspectos duradouros, coletivos, que se repetem e so, ao menos parcialmente, resistentes mudana. desta forma que a Nova Histria se alia s cincias sociais e redimensiona a temporalidade histrica. Esta nova orientao temporal da pesquisa histrica favoreceu uma mudana significativa nos objetos de anlise do historiador. Passando a considerar s permanncias, o historiador desloca o olhar dos objetos tradicionais da histria para outros nos quais o papel do que resiste, do que muda somente a longo termo, se destacam. Passa a ser dada uma importncia maior aos aspectos mais resistentes da histria como os econmicos, sociais e mentais em detrimento da poltica, das biografias, etc. Nos campos econmico, social e mental o tempo histrico aparece de forma menos acelerada: a especificidade histrica da mudana continua presente, no entanto, de forma menos convulsiva, menos rpida que no campo poltico-biogrfico, do tempo individual, dos eventos. Este tempo mais lento favorece a pesquisa quantificada e problematizante. A repetio tambm caracterstica deste novo

  • 27

    tempo histrico, possibilitando a comparao como modelo cientfico, diferente do modelo positivista.

    Neste novo modelo temporal, a histria no mais narrativa de indivduos e eventos. Ao focar os aspectos econmicos, sociais e mentais, a histria passa a buscar movimentos de longa durao, que se repetem e esto instalados no mbito coletivo, de certa forma, diminuindo a importncia da ao livre dos indivduos. Para Jos Carlos Reis, a histria produzida pelos Annales s pode se considerar nova por ter empreendido uma nova concepo de tempo histrico, desde o incio, com Febvre e Bloch. A realizao deste novo conceito se dar mais adiante com Fernand Braudel. Isto, contudo, no indica uma unidade entre os membros do grupo dos Annales quanto ao conceito de tempo. Existem diferenas significativas, que haveremos de explicitar na seqncia, entre as pesquisas de cada um dos autores. O que os une, no entanto, um impulso comum no sentido da produo de uma histria dentro de um quadro de longa durao, numa tentativa de superar a histria acontecimental dos eventos em favor de uma histria que prioriza as constncias e regularidades, estruturas sociais e econmicas onde a especificidade histrica da mudana somente se apresenta a partir do estudo de perodos longos. Os Annales introduzem na histria, portanto, a possibilidade de analisar a repetio e a permanncia, quadros estveis e de mudana em longo prazo. Os novos objetos dos historiadores favorecem este tipo de enfoque da histria. Ao importar o conceito de estrutura social das cincias sociais, ainda que modificado, os Annales formulam o conceito de longa durao e desta forma produzem uma significativa modificao epistemolgica. O conhecimento histrico, antes dedicado exclusivamente irreversibilidade da mudana, passa a comportar tambm o estudo das constncias e regularidades, do homogneo e quantitativo. Esta mudana na orientao da pesquisa, no entanto, no total: se h uma aproximao da sociologia, das estruturas e permanncias, as mudanas qualitativas, a sucesso no desaparece da pesquisa histrica. H, neste momento, um aumento na possibilidade de temporalizao da pesquisa e no uma guinada total em direo de uma histria estrutural.

    Alm da aproximao das cincias sociais, o contato com a geografia exerce um papel muito importante nesta fase posto que se cria uma geo-histria, uma busca da relao entre os homens e o ambiente. Deste contato tambm temos como resultado, alm de uma aproximao interdisciplinar, mais uma forma de expandir ainda mais a temporalidade, j que o tempo da geografia, da transformao e adaptao do homem natureza tambm de muita longa durao. As introdues geogrficas includas nas monografias regionais que

  • 28

    caracterizam esta primeira fase dos Annales, assim como a histria rural assume, desta forma, um papel decisivo na renovao da compreenso do tempo histrico.

    A geografia humana da qual os Annales se aproximam estava principalmente representada pela revista Annales de Gographie e em torno da figura de Vidal de La Blache. Segundo Jos Carlos Reis23, esta geografia humana produz um tipo de conhecimento muito prximo do que vai ser produzido pelos Annales: alia-se s cincias sociais, d nfase economia e s sociedades e recortam seu objeto segundo um espao. O foco de suas pesquisas so os grupos humanos, as coletividades em sua relao com o meio, desta forma privilegiando duraes mais longas. A inspirao que vem dos gegrafos para a pesquisa de estruturas lentamente mveis de primordial importncia para o grupo dos Annales. Vale tambm citar que atravs desta aproximao da histria e da geografia o espao, alm do tempo, passa a ter um papel muito importante para os historiadores que inclusive passam a definir seus objetos de anlise por um espao e no mais por fatos e acontecimentos. As monografias regionais devem muito a esta aproximao da histria e geografia na primeira fase dos Annales.

    Um terceiro ponto de importncia destacada para a renovao do tempo histrico dos Annales a Revue de Synthse Histrique. Henri Berr um pesquisador de extrema importncia na fundao dos Annales. Em torno da revista lanada por ele em 1900, que Lucien Febvre e, posteriormente Marc Bloch, tiveram contato com alguns dos principais intelectuais envolvidos na fundao da revista dos Annales. Em torno da Revue de Synthse Historique que, tal qual foi tambm realizado nos Annales, profissionais de vrias reas do conhecimento como historiadores, socilogos, economistas, antroplogos, gegrafos, filsofos etc., se reuniram. Nomes como os de Paul Lacombe, Henri Hauser, Franois Simiand, Paul Mantoux e Lucien Febvre, que desempenhou papel de destaque neste grupo, contriburam para o desenvolvimento da revista dos Annales que ainda era, no perodo, somente uma idia de Febvre. A similitude das propostas da Revue de Synthse Historique e dos Annales evidente: renovar a disciplina histrica, negando o seu carter factual e exclusivamente poltico em favor de uma histria conjunta dos diversos ramos nos quais a disciplina estava dividida, uma histria mais ampla e aberta s novas fontes e mtodos, principalmente das cincias sociais.

    Havia, contudo, uma diferena crucial entre a Revue de Synthse Historique e o projeto dos Annales: enquanto a primeira se preocupava em apontar o problema da

    23

    Cf. REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales a inovao em histria. Op. Cit. p. 61.

  • 29

    compartimentao dos ramos da histria, denunciar as falhas da disciplina tal qual era produzida ento, por meio de uma discusso terica acerca destas questes, j que Henri Berr filsofo, preocupado com a teoria do conhecimento histrico 24; a segunda, apesar de prezar muito o aspecto combativo da revista de Henri Berr percorria, desde o momento em que era ainda um projeto a ser desenvolvido, um caminho diferente: ao invs de buscar uma discusso terico-filosfica sobre a histria, pretendia executar uma modificao de fato pelo exemplo, pela prtica, e menos pela discusso terica, como podemos notar na passagem do editorial do primeiro nmero da revista, onde os diretores escrevem sobre o seu contedo: Non pas coup darticles de mthode, de dissertations thoriques. Par lexemple e par le fait 25. Este empenho na produo de uma nova histria pela prtica, por exemplos extrados do exerccio de historiador seguiu a revista no s em seus primeiros anos, mas ao longo de toda a sua histria. a renovao por meio de pesquisas concretas que caracteriza a revista de Febvre e Bloch. A falta de uma discusso maior sobre a teoria da proposta de nova histria da revista foi, inclusive, muitas vezes alvo de crtica.

    ***

    Dentro deste quadro de mutaes das cincias do fim do sculo XIX e incio do XX, entre a investida das cincias sociais e a crtica ao modelo positivista de histria, vale lembrar, ainda que superficialmente, da mudana na idia de tempo da fsica, a passagem da idia de tempo da teoria newtoniana para a relatividade de Einstein, e como esta passagem influenciou a histria e as outras cincias do homem. Em 1915, a teoria geral da relatividade de Einstein produziu uma verdadeira revoluo cientfica que refletiu, dessa forma, inclusive na disciplina histrica. Das inovaes das cincias da natureza, Bloch e Febvre buscam implicaes para a histria.

    Marc Bloch fala da mudana na atmosfera mental neste perodo, e mostra como as idias sobre as cincias, as noes do que cientfico se modificam substancialmente a partir dos exemplos da fsica: Au certain, elles ont substitu, sur beaucoup de points, linfiniment probable; au rigoureusement mesurable, la notion de lternelle relativit de la mesure 26. Tem-se na nova fsica e em seu conceito de relatividade um verdadeiro choque nas perspectivas deterministas, inclusive na histria. Febvre fala longamente desta mutao das 24

    REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales a inovao em histria. Op. Cit. p. 56. 25

    ANNALES DHISTOIRE CONOMIQUE ET SOCIALE. Paris : Librairie Armand Colin, T. 1, N1, 1929. p. 1. 26

    BLOCH, Marc. Apologie pour lhistoire ou mtier dhistorien. Paris : Librairie Armand Colin, 1964. p. XVI. Com certeza, substituram, em muitos pontos, o infinitamente provvel, o rigorosamente mensurvel pela noo da eterna relatividade da medida. BLOCH, Marc. Apologia da histria, ou, O ofcio do historiador. Prefcio : Jacques Le Goff. Apresentao edio brasileira: Lilia Moritz Schwarcz. Traduo: Andr Telles. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2001. p. 49.

  • 30

    cincias e indica que assim como a biologia, a fsica tem importante papel nesta renovao do esprito cientfico:

    Et les vides dont ils taient tissus nous habituaient, eux aussi, dans le domaine de la biologie, cette notion du discontinu qui, dautre part, sintroduisait dans la physique avec la thorie des quanta: dcuplant les ravages dj causs, dans nos conceptions scientifiques, par la thorie de la relativit, elle semblait remettre en question la notion traditionnelle, lide ancienne de causalit et donc, dun seul coup, la thorie du dterminisme, ce fondement incontest de toute science positive ce pilier inbranlable de la vieille histoire classique.27

    Este ponto incide diretamente sobre a modificao na noo de tempo histrico, que passa a ser relativizado, esticado para duraes mais longas do que as utilizadas pela escola metdica e caracterizado pela durao dos fenmenos segundo a observao, por parte do historiador, de sua extenso, com duraes que variam entre as curtas e as de longo prazo e no mais como simplesmente apresentadas episodicamente pela documentao oficial. Vale citar que a meno que fazemos aqui temporalidade das cincias fsicas justifica-se por denunciar como no incio do sculo XX a mudana que se opera na mentalidade cientfica busca criticar todos os modelos deterministas da cincia, inclusive o positivismo e conseqentemente a temporalidade deste modelo aplicado histria.

    nesse momento das cincias do fim do sculo XIX e incio do sculo XX que surge, a princpio, como alternativa, e posteriormente, como modelo dominante, a revista dos Annales e ao redor dela que um contingente de pesquisadores vai se unir para promover uma substancial mudana no pensamento histrico, assim como de um campo maior das cincias humanas do perodo.

    27

    FEBVRE, Lucien. Vivre lhistoire. Propos dinitiation. In: Combats pour lhistoire. Op. Cit. p.28. E os vazios de que eram compostos habituavam-nos tambm, no domnio da biologia, a essa noo de descontnuo que, por outro lado, se introduzia na fsica com a teoria dos quanta: decuplicando os estragos j causados nas nossas concepes cientficas pela teoria da relatividade, parecia repor em questo a noo tradicional, a idia antiga da causalidade e portanto, de um s golpe, a teoria do determinismo, esse fundamento incontestado de toda a cincia positiva, esse pilar inabalvel da velha histria clssica. FEBVRE, L. Viver a histria. In: Combates pela histria. Op. Cit. p. 37.

  • 31

    1.3. O alvo das crticas: o modelo temporal dos historiadores positivistas.

    Esta mudana na orientao temporal da pesquisa histrica produzida pelos Annales s pode se considerar nova quando comparada temporalidade das pesquisas da historiografia do fim do sculo XIX e incio do XX. A histria como era produzida neste perodo criou uma escola historiogrfica, que autores como Franois Dosse e Jos Carlos Reis chamam de escola metdica, pois consideram imprpria a forma como estes historiadores se auto-intitularam de positivistas, j que o modelo de cincia positiva almejado por estes historiadores no se relaciona de perto com o positivismo de Auguste Comte. Por vezes, este tipo de histria tambm chamado de histria tradicional, em oposio Nova Histria, como conhecido o modelo de histria dos Annales. Vale relacionar brevemente o modelo temporal desta escola historiogrfica para demonstrar porque os Annales podem se considerar produtores de uma Nova Histria, fundada num outro modelo temporal da pesquisa histrica.

    Segundo Hlio Rebello Cardoso Jr.:

    A culminncia de uma historiografia positivista produz-se a partir de duas tradies distintas: uma derivada da filosofia do romantismo alemo, particularmente em seu aspecto historicista, e outra proveniente do Positivismo propriamente dito.28

    Da filosofia alem, a historiografia positivista resgata o papel central atribudo aos grandes personagens que so os exemplos do esprito de um povo. O principal nome desta historiografia Leopold von Ranke que foca suas pesquisas na documentao diplomtica e poltica, pois estas revelam os eventos num estado mais original. Seu intento, tal como foi assimilado pela historiografia francesa positivista era de mostrar puramente e simplesmente como as coisas se verificaram.

    Por outro lado, o papel do Positivismo para a historiografia positivista foi o de almejar um carter cientfico para a disciplina histrica por meio de uma neutralidade do historiador diante dos fatos. A historiografia positivista no cumpre o programa Positivista na medida em que busca, ainda que de forma diferente da sociologia, uma possvel sntese dos fatos singulares observados no tempo. H um esforo entre estes historiadores no sentido de mostrar a ligao necessria dos fatos histricos, ainda que isso no implique que os historiadores positivistas buscavam formular leis sociais para a histria.

    28

    CARDOSO JR., Hlio Rebello. Tramas de Clio; convivncia entre filosofia e histria. Curitiba : Aos Quatro Ventos, 2001. p. 169.

  • 32

    Na Frana, Ernest Lavisse era muito conhecido por sua atuao poltica e por seu trabalho como pedagogo. tambm um dos principais nomes da disciplina histrica do final do sculo XIX, mas foi com a obra de Charles Signobos e Charles-Victor Langlois Introduction aux tudes historiques29 que a histria metdica teve seu maior alcance, j que esta obra tornou-se manual quase obrigatrio entre os estudantes de histria da poca.

    A histria metdica, ou como intitularam estes historiadores, histria positivista, se baseia num total empirismo da pesquisa, considerando cientfico seu mtodo de observao e descrio dos acontecimentos. A crtica positivista busca, a princpio, assegurar a autenticidade dos documentos para, em seguida, apresentar seu contedo e sintetizar, numa seqncia aparentemente lgica, os fatos que se desenrolam no tempo. Desta forma os positivistas buscam encontrar o fato histrico na sua forma pura, tal como apresentado pela documentao, sem a interferncia de juzos ou opinies por parte do pesquisador. A histria neste molde deve majoritariamente basear-se na documentao escrita, s se produzir a partir dela e manter-se fiel ao contedo apresentado pelos documentos. Este mtodo de pesquisa histrica acaba por privilegiar o particular, o singular e as duraes curtas dos fatos tal como so apresentados pela documentao, em sua maioria produzida pelo Estado. A histria metdica assimila a histria escrita e desta forma restringe muito o leque de possibilidades de pesquisa. A descrio factual, a histria relato ser um dos pontos mais incisivos da crtica dos socilogos e dos Annales histria metdica. Qualquer tipo de regularidade, de repeties observadas no decorrer da histria so sistematicamente excludas do discurso do historiador metdico que se preocupa exclusivamente com o no repetvel, o singular, grandes acontecimentos e grandes nomes da histria poltica.

    Este tipo de histria tende a atribuir maior importncia ao poltico em detrimento de outras esferas do conhecimento histrico. O Estado o centro das observaes no sculo XIX. A nao recebe ateno especial no contexto de toda a Europa. A histria um dos objetos privilegiados para propagar o nacionalismo francs e reunir, em torno da ptria, toda a nao. A histria positivista do perodo serve muito bem a este propsito, com sua nfase no fato poltico-militar nacional. O discurso do historiador o discurso sobre o poder e o carter unificador do Estado. As biografias de grandes polticos so um dos principais pilares da produo desses historiadores. A revista Revue historique o principal peridico que representa, no fim do sculo XIX e incio do XX, a histria metdica. Fundada em 1876 por

    29

    LANGLOIS, Charles-Victor; SEIGNOBOS, Charles. Introduction aux tudes historiques. Paris : Hachette, 1898.

  • 33

    Gabriel Monod, era em torno desta revista que as principais produes ligadas histria poltico-militar francesa eram produzidas.

    O modelo temporal da escola metdica era, portanto, fundado no evento singular e na curta durao, caracterizado pela singularidade dos fatos histricos e sua temporalidade bem definida pela exclusividade e irreversibilidade do evento ou personagem. Este modelo temporal fechado no evento, em geral poltico ou militar, o principal alvo das crticas dos Annales e da sociologia do incio do sculo escola metdica. Em comparao com este modelo temporal, podemos dizer que os Annales, de fato, produziram um novo conceito de temporalidade histrica.

  • 34

    1.4. Lucien Febvre: renovao metodolgica da pesquisa histrica e sua implicao na nova temporalidade.

    Comecemos por Lucien Febvre e suas propostas de renovao da metodologia da pesquisa histrica. Dentre esta renovao metodolgica destacaremos alguns pontos30: a histria problema, a construo do fato histrico, a renovao das fontes histricas, a histria total e a interdisciplinaridade.

    Estes cinco pontos que discutiremos dizem respeito s inovaes metodolgicas do conhecimento histrico, em especial iniciativas de Febvre, e incidem direta ou indiretamente sobre a modificao da perspectiva temporal da pesquisa histrica. Focamos, em primeiro lugar, as propostas de Febvre, porque em Bloch buscaremos discutir mais longamente suas afirmaes diretas sobre a modificao da temporalidade histrica. Bloch o primeiro historiador dos Annales a abordar de frente a questo. No entanto, a histria problema, a construo do fato histrico, a renovao das fontes histricas, a histria total e a interdisciplinaridade esto, de fato, muito ligadas renovao das perspectivas temporais do historiador. A histria problema e a construo do fato histrico modificam a perspectiva temporal da pesquisa na medida em que no mais se utiliza as demarcaes temporais da histria tradicional. a partir dos questionamentos do historiador que vo se definir a durao dos objetos pesquisados. Os outros pontos, que basicamente derivam da idia de uma histria problema colaboram para que o historiador modifique a forma de conceitualmente determinar os limites temporais da pesquisa. A histria problema uma proposta dos Annales de definio dos objetos de pesquisa que se ope forma como a histria tradicional encadeava os fatos de mudana na durao. No se trata mais de buscar uma ligao entre fatos aparentemente dispersos em uma ordem lgica, com um sentido nico, dispostos cronologicamente numa linha irreversvel onde os diversos fatos histricos se encadeiam no mesmo sentido. Esta forma de narrar os acontecimentos tal qual foram produzidos, segundo o que apresenta a documentao, substituda pela problematizao dos temas. No basta mais narrar o passado: necessrio question-lo, buscar respostas a questes colocadas pelo presente. A histria-problema vem se opor ao carter narrativo da histria tradicional 31. Esta histria-problema alerta para o fato de que narrar o passado tal qual se deu uma empreita infrutfera. Ao contrrio, o historiador passa a explicitar constantemente suas

    30

    Cf. REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales a inovao em histria. Op. Cit. pp. 73-82. 31

    Id. Ibid. p. 73.

  • 35

    hipteses de pesquisa, seus questionamentos documentao e seus conceitos, com os quais busca responder a estas questes. Trata-se de uma escolha conceitual do que se busca na documentao e no mais de uma forma de narrar os fatos nela representados. A pesquisa histrica, portanto, passa a ser guiada pelos problemas postos pelo historiador e a partir deles que se busca definir a documentao, os fatos que se relacionam com a problemtica. Feito este recorte, sempre a partir dos problemas anteriormente colocados, a pesquisa histrica que se segue so as respostas aos problemas postos de incio, confirmando ou refutando hipteses. Baseado na histria-problema, o resultado da pesquisa se d por uma construo terica da problemtica e no mais pela narrao objetivista dos fatos apresentados pela documentao. As implicaes da histria-problema na temporalidade histrica so bastante contundentes. O encadeamento necessrio dos fatos numa linha cronolgica perde o sentido j que os problemas colocados pelo historiador que passam a definir a documentao utilizada na pesquisa, diferente da forma como a histria tradicional tratava a documentao, segundo sua disposio cronolgica. Dessa forma, as respostas dadas s questes colocadas pelo historiador s fontes que vo determinar a durao dos fenmenos. O tempo da histria se modifica quando o passado questionado a partir de problemas colocados pelo presente. Trata-se de uma constante reordenao, inclusive temporal, do passado, segundo as hipteses do historiador. A histria-problema renova assim as duraes trabalhadas pelo historiador segundo os problemas colocados. Um desdobramento da histria-problema a nova constituio do objeto de pesquisa que passa de mera narrao do passado para construo do mesmo. O passado deixa de ser fato dado para passar a ser reconstrudo com base no questionrio do historiador. O historiador deixa de lado a iluso da busca do fato em seu estado bruto tal qual apresentado pela documentao em favor de uma construo terica, baseada nas questes do presente postas pelo historiador. Trata-se da negao por parte do historiador de cumprir a funo de colecionador de fatos. Assim esta investigao do passado constri, baseada no presente, os fatos aplicveis s respostas e comprovao das hipteses do historiador. Nas palavras de Febvre: laborer un fait, cest construire. Si lon veut, cest une question fournir une rponse. Et sil ny a pas de question, il ny a que du nant. 32.

    32

    FEBVRE, Lucien. De 1892 1933. Examen de conscience dune histoire et dun historien. In: Combats pour lhistoire. Op. Cit. p.07.

  • 36

    Outra inovao importante do discurso dos Annales a ampliao do conceito de fonte histrica. A histria tradicional, como j foi dito, ligava o conhecimento que poderia produzir aos textos que eram exclusividade como fontes. Excluindo a histria antiga, que j fazia uso da arqueologia, e a pr-histria conceito equivocado segundo Febvre, j que produz conhecimento histrico tal qual uma histria moderna ou contempornea a histria no utilizava outros tipos de fontes alm da documentao escrita, em geral documentao oficial, produzida pelo Estado. Com os Annales, outros tipos de vestgios da atividade humana passaram a ser considerados como fonte para a histria: a prpria arqueologia recebeu um impulso com os Annales assim como a literatura em geral, a iconografia, as estatsticas, os arquivos jurdicos, alfandegrios e contbeis e at mesmo os clculos, principalmente no que diz respeito histria econmica. Este alargamento do material que passa a fazer parte das fontes do historiador proporciona no s avanos para a histria antiga e medieval com a arqueologia, mas tambm uma melhor compreenso da sociedade e principalmente da cultura nos perodos moderno e contemporneo, por meio da literatura e da iconografia. Febvre d a dimenso da passagem de como a histria tradicional fazia uso das fontes e como os Annales renovam o leque de possibilidades neste sentido:

    [...] Et pas seulement ces documents darchives en faveur de qui on cre un privilge le privilge den tirer, comme disait cet autre, un nom, un lieu, une date ; une date, un nom, un lieu tout le savoir positif, concluait-il, dun historien insoucieux du rel. Mais un pome, un tableau, un drame : documents pour nous, tmoins dune histoire vivante et humaine, saturs de pense et daction en puissance...33

    So consideradas tambm como possveis fontes para a histria, com os Annales, o material produzido por outras disciplinas como a estatstica, a demografia, a lingstica e a psicologia. Essas disciplinas produzem um material muito rico para a histria nova que,

    Elaborar um facto construir. Se se quiser, fornecer uma resposta a uma pergunta. E se no h pergunta, s h o nada. FEBVRE, Lucien. De 1892 a 1933: Exame de conscincia de uma histria e de um historiador. In: Combates pela histria. Op. Cit. p. 20. 33

    FEBVRE, Lucien. De 1892 1933. Examen de conscience dune histoire et dun historien. In: Combats pour lhistoire. Op. Cit. p.12. [...] E no s os documentos de arquivos em cujo favor se cria um privilgio o privilgio de da tirar, como dizia o outro*, um nome, um lugar, uma data; uma data, um nome, um lugar todo o saber positivo, conclua ele, de um historiador indiferente ao real. Mas, tambm, um poema, um quadro, um drama: documentos para ns, testemunhos de uma histria viva e humana, saturados de pensamento e de ao em potncia... FEBVRE, Lucien. De 1892 a 1933: Exame de conscincia de uma histria e de um historiador. In: Combates pela histria. Op. Cit. p. 24. * O fsico Boisse.

  • 37

    como j vimos, interessa-se por objetos bastante distintos e variados em comparao com a histria poltica tradicional. Alm da histria-problema, do fato histrico como construo e do alargamento do leque de fontes histricas, vale citar um quarto ponto caracterstico da histria produzida pelos Annales: a histria total. Segundo Jos Carlos Reis34, a idia de histria total ou global dos Annales pode ter duas acepes diferentes. Uma de que todo o passado, em qualquer dimenso, tem o valor de fato histrico. Dessa forma, dependendo da questo colocada pelo historiador, os mais diversos aspectos do passado so passveis de se tornarem objetos de anlise. Tem-se, portanto, a idia de que tudo histria, nada escapa ao ofcio do historiador e todos os objetos que fazem parte da atuao dos homens so dignos de estudo. Esta proposta apresenta-se como um grande alargamento do campo histrico frente histria poltica tradicional. Alm do poltico, entram em cena as dimenses econmica, social, cultural, religiosa, etc. Ainda, segundo Reis, os Annales falharam no projeto deste tipo de histria total ao excluir de seus trabalhos o aspecto poltico. Uma segunda interpretao desta histria total dos Annales a de buscar conhecer uma poca em sua totalidade. Este tipo de histria total pressupe um princpio unificador que d sentido s vrias instncias do real num mesmo perodo. As monografias regionais de certa forma partem deste princpio que pode, inclusive, parecer paradoxal em relao histria-problema, j que anulam questionamentos especficos em favor de uma busca do todo. A busca de conjuntos totais de histria pode ser encontrada nas obras de ambos os fundadores dos Annales. Em sua obra Le problme de lincroyance au XVIe sicle la religion de Rabelais35, Febvre busca um aspecto mental comum da poca de Rabelais, na tentativa de afirmar ser intelectualmente impossvel o atesmo no sculo XVI. Bloch em sua obra La socit fodale 36 busca abarcar toda uma sociedade, por sinal numa durao bem longa.

    No h, no entanto, uma interpretao definitiva do que se trata a histria total dos Annales. As possibilidades anteriores aparecem conjuntamente nos textos dos fundadores. Mais tarde Fernand Braudel afirmar uma histria total que se caracteriza pela dialtica entre os trs nveis temporais longa durao, conjuntura e curta durao. Todas estas formas que podem se apresentar esta histria total tm em comum a caracterstica de produzir 34

    REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales a inovao em histria. Op. Cit. pp. 78-81. 35

    FEBVRE, Lucien. Le problme de lincroyance au XVIe sicle la religion de Rabelais. Paris : A. Michel. 1962. 36

    BLOCH, Marc. La socit fodale. Paris : Editions Albin Michel, 1982. (Primeira edio 1939,1940).

  • 38

    pesquisas muito extensas, com quantidades exaustivas de dados e informaes, pesquisas de muito flego.

    Um quinto ponto da renovao da histria proposto pelos Annales, que de certa forma, sintetiza os itens anteriores, a interdisciplinaridade. Da unio da histria com as cincias sociais temos o esprito dos Annales. Essa relao de trocas metodolgicas, sempre tensas, j era buscada antes mesmo dos Annales, no projeto de Henri Berr e tambm de Franois Simiand. Esta interdisciplinaridade ainda no pressupe, contudo, um mtodo comum das cincias do homem: trata-se de uma troca de conceitos, tcnicas e mtodos entre as disciplinas, cada qual mantendo sua especificidade, e tendo em comum o objeto homem social, que na histria considerado na perspectiva das duraes. Este ponto foi muito evidenciado nos escritos metodolgicos de Febvre que buscava constantemente descaracterizar as compartimentaes das cincias humanas. Segundo Febvre, necessrio:

    Entre disciplines proches ou lointaines, ngocier perptuellement des alliances nouvelles; sur un mme sujet concentrer en faisceau la lumire de plusieurs sciences htrognes: tche primordiale, et de toutes celles qui simposent une histoire impatiente des frontires et des cloisonnements, la plus pressante sans doute et la plus fconde.37

    Da unio da histria com outras cincias do homem surgiram colaboraes como: histria econmica, geo-histria, histria antropolgica, etc. A unio e a colaborao entre as cincias do homem caracterizam o projeto dos Annales ao longo de sua histria. Podemos encontrar em Febvre o grande manifesto contra a compartimentao das cincias humanas e a favor da interdisciplinaridade em uma carta de 1933, Contre lesprit de spcialit38. Febvre no discute diretamente as novas orientaes temporais da histria. No entanto, pode-se notar seu grande esforo em denunciar as falhas e insuficincias do conceito de tempo da histria tradicional em seus escritos de cunho metodolgico, em especial os reunidos em Combates pela Histria. Ao criticar o modelo temporal da histria tradicional, Febvre questiona que, partindo-se de interrogaes do presente, com a histria problema, o passado tambm passa a se revelar como desvio e acaso, descontinuidade e ruptura, e no

    37

    FEBVRE, Lucien. De 1892 1933. Examen de conscience dune histoire et dun historien. In: Combats pour lhistoire. Op. Cit. p. 14. Negociar perpetuamente novas alianas entre disciplinas prximas ou longnquas; concentrar em feixe sobre um mesmo assunto a luz de vrias cincias heterogneas: tarefa primordial, e sem dvida a mais premente e a mais fecunda das que se impem a uma histria impaciente com as fronteiras e as compartimentaes. FEBVRE, L. De 1892 a 1933: Exame de conscincia de uma histria e de um historiador. In: Combates pela histria. Op. Cit. p. 24. 38

    FEBVRE, Lucien. Contre lesprit de spcialit. Une Lettre de 1933. In: Combats pour lhistoire. Op. Cit. pp. 103-105.

  • 39

    mais exclusivamente como uma cadeia de fatos que se sucedem necessariamente. Esta nova forma de considerar o tempo histrico como no-uniforme , em parte, efeito das grandes transformaes pelas quais a cincia atravessa na passagem do sculo XIX para o XX. Febvre parte da idia de que a funo do historiador no reconstituir e sim reconstruir o passado, quando afirma o fato histrico como construo, tendo como base que a pesquisa histrica deve partir de questionamentos e hipteses para reconstruir, desta forma, o passado e no tentar reconstitu-lo, apresentar o que de fato se passou, com os eventos em seu estado puro. Assim, Febvre diferencia o tempo da experincia vivida, irrecupervel, do tempo da pesquisa histrica, que se caracteriza pela resposta aos questionamentos e confirmao ou refutao de hipteses. A pesquisa histrica parte, portanto, do presente para conhecer o passado. Presente e passado dialogam na pesquisa histrica, mas guardam sua exclusividade no tempo vivido. Uma obra essencial para compreendermos a temporalidade histrica em Lucien Febvre Le problme de lincroyance au XVIe sicle. La religion de Rabelais. Esta obra talvez o maior exemplar de uma histria problema e segundo Peter Burke uma das obras histricas mais fecundas publicadas neste sculo 39. Le problme de lincroyance au XVIe sicle parte de um estranhamento de Febvre sobre uma hiptese de Abel Lefranc na qual o autor afirmava que Rabelais era de fato um ateu e buscava, por meio de seus escritos, executar fortes crticas ao cristianismo. Para Febvre, Lefranc cometeu no apenas um erro interpretativo como um anacronismo. Segundo Febvre:

    Or, pour Abel Lefranc, point dhsitation. Ds 1532, le pre spirituel de Panurge tait un ennemi du Christ, un athe militant. Lui [Rabelais], un adepte plus ou moins timor de la Rforme? Allons donc!40

    Febvre segue ento na busca de refutar a hiptese de Lefranc, afirmando que Rabelais fazia crticas Igreja da baixa Idade Mdia, mas no era um ateu militante como defendia Lefranc. A obra de Febvre, no entanto, no se resume a refutar as idias de Lefranc: coloca ento o problema da impossibilidade de haver um atesmo racionalizado no sculo XVI. Passa ao estudo da mentalidade coletiva deste sculo, sob a questo da possibilidade ou no da

    39

    BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revoluo Francesa da historiografia. Traduo: Nilo Odalia. So Paulo : Fundao Editora da UNESP, 1997. p. 39. 40

    FEBVRE, Lucien. Le problme de lincroyance au XVIe sicle: La religion de Rabelais. Op. Cit. p. 15. Ora, para Abel Lefranc, no h qualquer hesitao. Desde 1532, o pai espiritual de Panurgo era inimigo de Cristo, um ateu militante. Quem? Rabelais, um adepto mais ou menos tmido da Reforma? Ora, vamos! MOTA, Carlos Guilherme. L. Febvre : histria. Trad. Adalberto Marson, Paulo Salles Oliveira e Maria Elisa Masccarenhas. So Paulo : tica, 1978. p. 34. (Coleo: Grandes cientistas sociais ; 2.)

  • 40

    descrena no perodo. Esta obra tambm considerada principal inspiradora das obras sobre mentalidades coletivas produzidas pelos Annales a partir da dcada de 60. Vale notar que os pontos em que Febvre indica novas direes metodolgicas para a pesquisa histrica, discutidos anteriormente, esto presentes nesta obra, a comear pela histria problema: Febvre questiona se, de fato, possvel a descrena no sculo XVI e parte da hiptese de que o instrumental intelectual da poca no permitia tal atesmo racionalizado. Est tambm caracterizado um impulso para a histria total, posto que Febvre fala sobre os homens do sculo XVI e sua religio como um princpio unificador da sociedade daquele sculo. Esta caracterstica de histria total da obra foi, inclusive, alvo de crticas41, pois ao falar dos homens do sculo XVI, Febvre deu pouca importncia s diferenas de classe, gnero, entre outras particularidades dos homens do sculo XVI. O fato histrico como construo tambm est presente na obra, j que Febvre reconstri este passado analisando os escritos de Rabelais e de outros autores do sculo XVI de forma crtica, no reproduzindo o passado nem intencionando reconstitu-lo como se deu, mas observando a documentao a partir de seus questionamentos. Por fim vale lembrar a interdisciplinaridade, j que a lingstica esteve presente ao longo de toda a obra e foi principalmente importante para revelar que o instrumental intelectual no comportava, ou mesmo ignorava certos

    conceitos, at mesmo o de ateu, que segundo Febvre possua uma interpretao livre, bastante diferente da palavra contempornea. A ampliao do campo de investigao de Febvre que parte de Rabelais e expande sua pesquisa para toda uma mentalidade do sculo XVI de extrema importncia para a compreenso de seu papel na renovao da temporalidade histrica. O que caracteriza a obra de Febvre a tentativa de superao do evento, na figura de Rabelais, inserindo seu pensamento num campo mais amplo da mentalidade do sculo XVI. Febvre busca, desta forma, realizar uma pesquisa numa temporalidade mais longa. , de fato, uma nova compreenso do tempo histrico. Febvre, em seus combates contra a temporalidade da histria tradicional, prope uma nova compreenso do evento psicolgico, inte