A morte no candomble

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA A ESCUTA DO FILHO DE SANTO SOBRE A MORTE: ENTRE O SILÊNCIO DO OCIDENTE MODERNO E A FALA DO CANDOMBLÉ DALVA BARBOSA BRASÍLIA/DF 2006

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A ESCUTA DO FILHO DE SANTO SOBRE A MORTE:

ENTRE O SILÊNCIO DO OCIDENTE MODERNO E A FALA DO CANDOMBLÉ

DALVA BARBOSA

BRASÍLIA/DF

2006

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A ESCUTA DO FILHO DE SANTO SOBRE A MORTE:

ENTRE O SILÊNCIO DO OCIDENTE MODERNO E A FALA DO CANDOMBLÉ

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu

em Psicologia, da Universidade Católica de

Brasília, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Psicologia.

Dalva Barbosa

Orientadora: Profª. Dra. Marta Helena de Freitas

Co-Orientadora: Prafª. Dra. Ondina Pena Pereira

Brasília/DF – 2006

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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Psicologia da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação da Professora

Doutora Marta Helena de Freitas.

Examinada e aprovada pela banca:

_____________________________________

Presidente

Professora Doutora Marta Helena de Freitas

Universidade Católica de Brasília

______________________________________

Vice-Presidente

Professora Doutora Ondina Pena Pereira

Universidade Católica de Brasília

_______________________________________

Professor Doutor José Bizerril

UNICEUB

_________________________________________

Professora Doutora Célia Carvalho de Moraes

Instituto de Gestalt Terapia de Brasília

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Dedico esse trabalho à minha mãe,

Maria Santa, e à minha mãe de santo,

Verinha de Oxum – Oxum Omim Ladê.

Minhas duas mães que, caladas pela morte,

ainda falam através de minhas lembranças.

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RESUMO

Esse trabalho buscou compreender como os fiéis do candomblé se relacionam

com a realidade da morte. O ponto inicial foi marcado pelo cruzamento das culturas

ocidental moderna e do candomblé na prática dos rituais de morte. Os principais

fundamentos teóricos foram trazidos de Philippe Ariès e Jean Baudrillard, para

compreensão da cultura ocidental moderna, e de Monique Augras e Reginaldo Prandi,

para compreensão do candomblé. Uma incursão pela representação da morte no

ocidente, da idade média aos dias de hoje, registrou as várias faces da morte ao longo

da história, até à perda dessa face, resultando em sua exclusão da vida moderna. A

assepsia da morte tutelada pela ciência médica e a rapidez dos ritos fúnebres foram o

contraponto para o entendimento do significado da morte para o candomblé e seus

complexos ritos de iniciação e morte.

Trouxemos para esse trabalho a visão da psicologia cultural, e por meio da

fenomenologia, buscamos compreender como o fiel do candomblé, sujeito do século

XXI, transita entre essas duas culturas, onde se situa e como significa vivências tão

discordantes. O suporte metodológico nos foi dado pelo estudo das obras de Monique

Augras e Mauro Martins Amatuzzi.

A pesquisa de campo desenvolveu-se ao longo de dois anos, no Axé Baraleji,

Terreiro localizado no entorno do Distrito Federal, sob o comando do Babalorixá Tito

de Omolu. Nesse período, ocorreu a morte da Ialaxé Verinha de Oxum, quando pudemos

observar seu ritual de axexê (ritual de morte), realizado por sete dias consecutivos.

Contamos ainda com a descrição do ritual de iniciação, vivenciado pela pesquisadora e,

por último, tivemos a valiosa contribuição das experiências de quatro filhos de santo,

com participação no culto entre oito e vinte anos, todos submetidos aos rituais de

iniciação e presentes ao ritual do axexê realizado nessa comunidade.

Desse encontro de vozes, podemos escutar que o iniciado do candomblé é

síntese, na medida em que agrega diferentes saberes e experiências e, antes de descartá-

las, como é regra no mundo moderno, acolhe-as a fim de compor um sistema de mundo

que lhe seja mais favorável. O candomblé é uma religião que, apesar de incrustada no

mundo moderno, preserva seus fundamentos e tradições, incluindo a face da morte,

onde ela não é ignorada, mas parte permanente do sistema de trocas da vida.

Palavras-chave: Candomblé, psicologia da religião e morte.

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ABSTRACT

This paper aims to comprehend how the followers of “candomblé” deal with the reality

of death. The initial steps began by comparing the modern occidental cultures and the

“candomblé” in the practice of death rituals. The main theoretical fundaments to the modern

occidental cultures received the influence of Philippe Ariès and Jean Baudrillard. To the

“Candomblé” the contribution came from Monique Augras and Reginaldo Prandi.

An investigation of the representation of death in the West, from middle age until our

days, intended to register the several faces showed by death along human history, even the

loss of this face, ending up in its exclusion of modern life. The asepsis of death tutored by the

medical science and the fastness of funeral rituals were the counterpoint to the comprehension

of the meaning of death for “candomblé” and its complex rituals of initiation and death.

Services relied on the permanent system of symbolic exchanges based on this religion.

We brought to this issue the vision of psychology in its dimension of cultural product

and we searched to understand through the fenomenology how a believer of “candomblé”, a

person of the of the XXI century, walks between these two cultures side by side with so

different experiences and their meanings on this subject. The epistemological support was

found in the study of the work of Monique Augras and Mauro Martins Amatuzzi.

The research field was developed during two years at the “Axé Baraleji”, a place

located around of the Federal District under the command of “Babalorixá Tito de Omolu”.

During this period, the ‘Ialaxé Verinha de Oxum’ of that community died. This fact gave us the

opportunity to observe a death ritual which is called “axexé” that lasted seven consecutive

days.

We also had the description of an initiation ritual that was experienced by the

researcher. At last, we received the valuable contribution of four saint’s sons experiences.

Their participation time in the rituals varied between eight and twenty years. All of them

were submitted to the services of initiation and attended to the “axexê” ritual that took place

in that community.

From this encounter of voices, of living experiences in the rituals - rebirth (initiation)

and death (axexê’s ritual), we can come to the conclusion that the person that was initiated in

the “candomblé” practice is a synthesis since he accumulates different knowledge and

experiences and before descarting them, as a rule of modern world, he embraces them in order

to take part in a world system which is more favorable to him. The ‘Candomblé’ is a religion

that although it is inserted in the modern world, it preserves its fundaments and ancient

traditions, including the face of death where it is not ignored, but it takes part permanently in

the exchange lives system.

Word-keys: “Candomblé”, Psychology of religion and death

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................................... 01

Capítulo 1 - Estudo Teórico

1.1. Psicologia e religião .................................................................................................... 06

1.2. A evolução (ou involução) da relação do indivíduo com a morte

no Ocidente .......................................................................................................................... 10

1.3.O Candomblé no Brasil ................................. ............................................................. 18

Capítulo 2 - Metodologia

2.1.Fenomenologia: a busca do mundo vivido ............................................................... 47

2.2. Tempo e espaço: o palco da pesquisa ....................................................................... 50

2.3. Os participantes: colaboradores da pesquisa ......................................................... 51

2.4. Instrumentos e Procedimentos ................. ....................................................... ....... 52

Capítulo 3 - Um olhar de dentro: o contato com o mundo vivido do

candomblé ............................................................................................................................ 56

3.1. O ritual do axexê – retorno as origens ..................................................................... 64

3.2. O ritual de iniciação – inserção em um mundo novo ........................................... 77

3.3. As vozes dos filhos de santo ..................................................................................... 90

Capítulo 4 - Discussão

4.1. A morte no candomblé .......................................................................................... 115

4.2. Iniciação – o eu abre caminho para o “outro” ................ ................................. 123

4.3. Tecendo os fios de várias vozes ....... ................................................................. 127

4.4. Candomblé e cultura ocidental moderna: separação possível? ... ................ 154

Capítulo 5 - Considerações Finais ............................................................................... 162

6. Glossário .................... .................................................................................................. 169

7. Referências Bibliográficas ...... ................................................................................ 174

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8. Anexos

8.1. A fala dos participantes – Entrevistas semi-estruturadas ............................. 178

8.2. Termo de consentimento livre e esclarecido ................................................... 206

8.3. Solicitação de Autorização para realização da pesquisa... ............................ 207

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INTRODUÇÃO

Falar sobre a morte é, ao contrário do que o tema possa sugerir, falar de vida ou

da forma como a vida é entendida pelo indivíduo e a sociedade em que ele se insere.

Sendo o destino inexorável de todo ser vivo e, dentre esses, de todo ser humano, a

morte se inscreve em cada um desde o nascimento; e quer se aceite e discuta o tema ou

se procure negá-lo em todas as suas formas de manifestação, a morte se faz presente e,

no futuro próximo ou distante, se apresentará a todos nós. Negá-la é perder a

oportunidade de buscar compreender a vida em todas as suas dimensões; ignorar o que

não podemos evitar é uma forma de empobrecer a existência.

Vivemos em uma cultura que denega a morte, banindo-a do cotidiano das

pessoas, banalizando-a, tratando-a com o distanciamento dos fatos que parecem só

atingir ao outro. Os rituais de morte foram reduzidos ao mínimo necessário para dar

conta rapidamente daquilo que precisa ser esquecido. Mas como esquecer daquilo que

fatalmente nos atingirá um dia, seja através da perda daqueles a quem amamos, seja no

momento de encarar nossa própria morte? O custo desse esforço há de ser alto para o

indivíduo e para seu grupo social. A vida sem a perspectiva da morte cobra esforços

gigantescos em termos de competitividade, da busca de enriquecimento material, da

manutenção da juventude a qualquer preço, da destruição dos recursos naturais em

nome do desenvolvimento e, por fim, do empobrecimento da vida emocional, onde a

expressão do ser se instala em um segundo plano da existência. Competindo,

enriquecendo, construindo, destruindo, correndo sempre, o indivíduo sequer se lembra

de que, no final dessa maratona, é a morte que está a sua espera.

A morte tem sido um dos assuntos mais negligenciados no contexto da vida

moderna e, no entanto, ela se apresenta de forma tão contundente nos dias atuais,

através da violência instalada nos grandes centros urbanos, que é de se questionar

como é possível ao ser humano tentar renegá-la e apegar-se à ilusão de que a morte é

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um mal que só atinge ao outro. A despeito de todos os avanços tecnológicos na área da

saúde, de todas as condições criadas para o prolongamento da vida, de todas as regras

impostas ao indivíduo pelo capitalismo moderno, no qual o sucesso e a felicidade são

traduzidos em moeda corrente, pela transformação dos desejos em necessidades por

meio da publicidade, o homem não conseguiu livrar-se desta realidade incontestável;

mas buscou seus meios de minimizá-la, de afastá-la do seu dia-a-dia, de trancafiá-la nas

unidades de terapia intensiva dos hospitais. Ao mesmo tempo, paradoxalmente,

acompanha sua ação no mundo, imperiosa, por meio dos telejornais, e cria para si a

ilusão de que tudo está acontecendo “lá fora”, dentro da tela, na tinta impressa e nas

fotos dos jornais e revistas.

O silêncio da cultura ocidental moderna sobre a morte sufoca gritos individuais

e coletivos que podem ser ouvidos através das neuroses, do crescimento da violência e

de outras manifestações de adoecimento do corpo e da alma humana. O silêncio é um

veneno que entorpece aos poucos, que agrava o medo, que amplia a escuridão. Romper

esse silêncio é uma tentativa de trazer à luz o inevitável e escutar sua voz assustadora

para que ela se torne, se não familiar, ao menos mais suave.

Paralelamente à morte, abordaremos um outro tema, já há muito investigado

pela antropologia e que aos poucos vai despertando, também, o interesse da psicologia:

a religião mostra sua face e sua força na vida dos indivíduos e a psicologia não pode

mais negar-lhe a fala. Seja porque as igrejas estão se proliferando pelas cidades e

usando a mídia como canal de comunicação, multiplicando sua voz, seja porque a

religião parece desempenhar um papel de abrigo ao indivíduo perdido no mau tempo

do mundo moderno, ou seja porque a religião esteve presente desde sempre na vida do

ser humano. Sem ninguém que o escute e sem condições de buscar outros meios de

alívio para seu sofrimento, o indivíduo busca na religião um porto seguro para sua vida

e, quem sabe, para uma outra vida além dessa. Realidade ou ilusão, a religião promete

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dar ao indivíduo algo que lhe falta, algo que a cultura ocidental moderna lhe está

negando.

Abrir os ouvidos a essa fala individual e coletiva, que vem do exterior dos

consultórios ou que se sente intimidada dentro deles, parece ser um dos caminhos da

psicologia na busca da compreensão desse ser que não quer mais sofrer calado ou, ao

menos, não quer mais sofrer sozinho.

Dentre as várias religiões, que compõem tão vasto universo de crenças,

abordaremos o candomblé, cujos rituais de morte parecem contrastar com a urgência

ocidental, tornando-se aqui objeto de estudo: explorar a especificidade do significado da

morte para os fiéis do candomblé através de seus rituais, uma vez que estes aparentam

ter uma relação com a morte diferente daquela estabelecida no ocidente moderno.

Entre os vários rituais do culto, evidenciar aqueles que representam experiências de

morte: o ritual de iniciação e o ritual do axexê (ritual de morte).

Ainda que a antropologia já tenha desde sempre se dedicado ao estudo de

comunidades religiosas, inclusive do candomblé, o estudo pelo olhar da psicologia

ainda é um campo pouco explorado, sendo oportuno ressaltarmos que as comunidades

religiosas do candomblé não são culturas exóticas, distantes geográfica e socialmente

de nosso ambiente moderno e dos grandes centros urbanos, mas são compostas por

uma vizinhança física e por cidadãos que nos são familiares, seja no ambiente de

trabalho, na escola, nas universidades, nas ruas. Embora nem sempre possamos

percebê-los, justamente por não se diferenciarem do indivíduo ocidental moderno em

sua vida cotidiana, os fiéis do candomblé são hoje pessoas de todas as classes sociais,

em contraponto à sua origem – formada por negros e pobres, oriundos do sistema

escravagista – de diversas raças e nível educacional, sexo e faixa etária. É um

microcosmo dentro do universo social como um todo. Daí que se torna instigante

buscarmos compreender como indivíduos inseridos no contexto ocidental moderno

convivem com tradições tão antigas, e de que forma significam experiências limites

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como a morte, uma vez que toda a cultura moderna parece lhes transmitir mensagens

diversas das vivenciadas em sua religião.

Movidos pela busca da compreensão de como esse indivíduo se divide ou se

completa em culturas aparentemente tão distintas é que surgiu o objeto de estudo

desse trabalho: os rituais de morte no candomblé afetam o significado da morte para

esse indivíduo que, pertencente a uma religião que preserva tradições milenares,

também é produto da cultura ocidental moderna?

Como palco aonde a pesquisa se desenvolveu selecionamos o Axé Baraleji,

Terreiro da Sociedade Beneficente Religiosa Africana Ile Owo Omo Omolu (Casa dos

Filhos de Omolu), localizado no município de Santo Antônio do Descoberto, entorno do

Distrito Federal.

Tendo à frente o Babalorixá Tito de Omolu, o Axé Baraleji está no Distrito

Federal há 30 anos e conta, atualmente, com cerca de oitenta filhos de santo,

desenvolvendo regularmente todas as atividades religiosas ligadas aos Orixás, seguindo

a tradição dos candomblés de origem Ketu.

Para que pudessemos escutar esse indivíduo, ator da cultura ocidental moderna

e do candomblé, estruturamos o presente trabalho em cinco capítulos:

O Capítulo 1 traz a evolução dos estudos da psicologia sobre religiosidade e sua

necessidade de inserção dentro desse tema que, por vezes esquecido, ou relegado a um

pano de fundo da existência, esteve, desde sempre, presente na história da humanidade.

A relação do indivíduo com a morte é revisitada, desde a Idade Média até a

contemporaneidade, registrando-se as alterações ocorridas ao longo dos séculos, na

tentativa de compreender de que forma a morte deixou de fazer parte da natureza

humana, para se transformar em interdito.

O candomblé, religião brasileira, herança dos escravos negros do século XVI,

possui um sistema de crenças e fundamentos sofisticados onde se buscou penetrar,

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5

procurando-se entender sua forma de organização social, sua compreensão do ser

humano e sua relação com as coisas da vida e da morte: sua visão de mundo. Aqui, nos

fixamos nos limites permitidos ao que é dado saber ao público externo, resguardando-

se, sempre, os segredos do culto, base de sua prática iniciática.

O Capítulo 2 descreve a metodologia utilizada para o desenvolvimento da

pesquisa, dentro dos pressupostos e da postura fenomenológica – de compreensão dos

fenômenos investigados. Indivíduo e grupo foram o foco de estudo, com o olhar da

psicologia em sua dimensão cultural.

O Capitulo 3 traz o estudo de campo, organizado em três momentos

vivenciados pelos participantes da pesquisa, relacionados, diretamente, com

experiências de renascimento (iniciação) e morte (ritual de axexê).

O Capítulo 4 coloca em diálogo esses três momentos vivenciais: observação de

um ritual de axexê e descrição de uma experiência de iniciação – pela pesquisadora; e a

voz dos participantes sobre suas vivências desses dois momentos de morte/vida, para

que, ao tecer esses fios, se possa escutar as convergências e divergências sobre o

entendimento da morte, por parte desses sujeitos que são, ao mesmo tempo, filhos da

modernidade e descendentes de orixás.

O Capítulo 5 busca referendar, à luz das teorias estudadas, o tecido que se

formou desse mosaico de vozes. Além disso, traz importantes pontos que se abriram ao

questionamento e que, por escaparem ao objeto de estudo, deixaram um fio, uma teia, a

ser tecida por outras mãos.

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CAPÍTULO 1 – ESTUDO TEÓRICO

1.1. Psicologia e religião

A história da psicologia, assim como da antropologia e da sociologia, teve seu

início vinculada à religião. Como uma das ciências oriundas da filosofia, a psicologia

acreditava ser de sua competência estudar campos complexos da existência humana,

inclusive a religião. No final do século XIX e início do século XX (1880-1910),

afloraram estudos relativos ao crescimento e ao sentimento religioso (Paiva, 1989).

Podemos encontrar registros mais antigos, de 1746, das primeiras tentativas de

compreensão psicológica do fenômeno religioso, por meio do americano Jonathan

Edwards e de David Hume, que, em meados do século XVIII, sustentavam a tese de

que a religião estende suas raízes no sentimento de medo, mas ao mesmo tempo de

esperança, uma vez que o homem primitivo buscaria conciliar suas necessidades com as

forças hostis da natureza, fora de seu controle.

O primeiro psicólogo a se debruçar sobre o tema da religião foi Granville

Stanley Hall, que deu início a seus estudos sobre conversão religiosa e adolescência, em

1881. Em 1899, Diller Sterbuck publicou o primeiro livro do gênero – “Psicologia da

Religião”, dando início ao estudo sistemático da psicologia da religião.

Mas há consenso entre os estudiosos da área em estabelecer William James

como pioneiro no campo da psicologia da religião, com a publicação, em 1902, de sua

obra clássica “The varieties of the religious experience”. Nessa obra, James examina longa e

variada série de escritos religiosos sob os aspectos de expressão moral e como

testemunho de patologia mental, criando categorias para a distinção entre experiência

religiosa saudável e doentia. James entendia que o misticismo era a expressão de

anseios pessoais profundos, buscando atingir um estágio de consciência transcendente

ao indivíduo, que ele caracterizou como união cósmica.

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Também citado como pioneiro, James Bisset Pratt, com obras publicadas em

1907 e 1922, inovou no estudo da psicologia da religião ao escrever sobre sua própria

experiência religiosa e, realizando pesquisas na Índia, procurou estudar o fenômeno

fora de seu próprio ambiente cultural.

Nas primeiras décadas do século XX, diversos outros autores, na maioria norte-

americanos, dedicaram-se ao estudo do tema, incluindo-se aqui o nome de Willhelm

Wundt, que, apesar de ser conhecido como o pai do paradigma da psicologia de

laboratório, dedicou três volumes de sua obra Volkerpsychologia ao estudo da religião e

mitologia.

A partir de 1920, entretanto, os estudos em torno da psicologia da religião

apresentaram um rápido declínio. Entre os motivos, podemos citar o fracasso da

psicologia em separar-se da teologia ao estudar o fenômeno religioso; o esforço que a

psicologia teve que empreender para ser reconhecida no campo científico; a dificuldade

de pesquisadores e sujeitos ao se deparar com o assunto; a subjetividade do fenômeno

religioso, dificultando sua abordagem empírica e objetiva; a influência do behaviorismo,

com a supremacia do estudo do comportamento observável e o nascimento da

psicanálise, que condenou a religião à ilusão da humanidade (Byrnes e Hallahmi,

1984/1989, em Freitas, 2003).

Ainda que a psicanálise tenha exercido enorme influência para o declínio do

estudo da psicologia da religião como exercício possível, é inegável que,

paradoxalmente, não deixou com que o tema desaparecesse do centro das discussões, já

que Freud dedicou, ao longo de seus estudos, quatorze obras ao assunto, sendo cinco

delas específicas sobre o tema: Totem e Tabu (1913), Psicologia de grupo e análise do ego

(1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o

Monoteísmo (1939).

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Não deixa de causar estranheza que, considerando a religião como ilusão, Freud

tenha dedicado 26 anos de estudo ao tema, e podemos concluir quão poderosa é essa

ilusão sobre a qual o próprio Freud não conseguiu silenciar.

Na esteira freudiana, ocorreu a depreciação do fenômeno religioso nos meios

acadêmicos e científicos e, inversamente, a tendência de reavaliação da própria

experiência religiosa e a produção, em torno do assunto, de Carl Jung, Alfred Adler e

Erich Fromm, dissidentes de Freud.

Jung sempre demonstrou interesse pelos fenômenos mitológicos, espirituais e

ocultos e desenvolveu o conceito de arquétipo, propondo-se a uma compreensão do

fenômeno religioso.

Adler também valorizou positivamente o fenômeno religioso, entendido como

afirmação do valor substancial da vida em todas as suas formas, e Fromm buscou

explicitar as características e perigos da inautenticidade do discurso religioso,

propondo-se a recuperar a religião como sentimento profundo da humanidade.

Na segunda metade do século XX, nas décadas de 60 e 70, proliferam-se

estudos sobre a natureza e o tipo de experiências religiosas com metodologias

qualitativas, sendo substituídos nas décadas seguintes pelo paradigma da mensuração,

com trabalhos relacionados à construção e aplicação de escalas de medida para

experimentação em grupos específicos de indivíduos, como forma de qualificar as

pesquisas no meio científico e acadêmico.

Mas, já na metade da década de 80, surgiram movimentos de estudiosos que

chamavam a atenção para a limitação que o paradigma da mensuração trazia para a

compreensão do fenômeno religioso, buscando, então, qualificar o conhecimento

psicológico da experiência religiosa, sem, no entanto, confundir os objetos de estudo da

psicologia e da teologia.

Para Ortiz (1986, p.27), a pluralidade das religiões no mundo moderno

desmente as previsões secularizadoras dos pensadores do século XIX, a ponto de não

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se poder falar de um “retorno do sagrado” que, na verdade, nunca desapareceu. O

advento da sociedade moderna não significa, assim, o fim das religiões, mas seu fim

como forma de organizar a sociedade como um todo. A sociedade moderna coloca

espaços mais delimitados para a religião, mas não a elimina ou, resumindo, “a religião é

preservada enquanto forma de conhecimento do mundo”.

A sociedade moderna abriga todas as religiões, sendo essa pluralidade e

fragmentação frutos da dinâmica social que cinde o homem em cidadão e,

eventualmente, em ser religioso.

No Brasil, dentre os pesquisadores que têm se dedicado ao fenômeno religioso

no campo da psicologia, destacam-se Amatuzzi (Unicamp), Paiva (USP/SP), Augras

(PUC/Rio), Giovanetti e Mahfound (UFMG), Massimi (USP/Ribeirão Preto),

Ancona-Lopez (PUC/SP) e Freitas (UCB/Brasília), mas ainda predomina uma

tendência, no meio acadêmico, de se manter o estudo do fenômeno religioso numa

posição marginal. Para Freitas (2003, p.22),

A ausência de reflexão sobre o fenômeno religioso na vida humana é,

freqüentemente, acompanhada e, ao mesmo tempo, sustentada por um

desconhecimento ou alienação em relação à própria história da psicologia, suas

raízes na filosofia e respectivas vicissitudes decorrentes da tentativa desesperada em

tornar-se uma ciência exata, confiável e reconhecida a quaisquer custos, inclusive o

de deixar ao largo questões fundamentais ao próprio mundo da vida, dentre elas a

tendência humana à incessante busca de um sentido existencial.

A reflexão sobre o fenômeno religioso pela psicologia deve estender-se também

ao tema da morte, que tem sido banido da vida das pessoas no ocidente moderno, mas

que, nem por isso, se faz silenciar. É fonte de sofrimento constante e presente, ainda

que de forma fantasmática, na história escrita por todos durante a existência.

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Acreditamos ser papel do psicólogo dar voz a todos os temas relacionados ao

humano, buscando escutar-lhe o significado, valorizar-lhe a fala, a fim de que possamos

minimizar a “sentença” de Baudrillard (2002): “tudo aquilo que nós banimos volta em

forma de assombração”.

1.2. A evolução (ou involução) da relação do indivíduo com a morte no Ocidente

A atitude do indivíduo ocidental frente à morte sofreu mudanças radicais ao

longo dos séculos, fazendo com que ela passasse de um fato inevitável, para um

acontecimento que deve ser mantido fora dos limites da vida cotidiana. Ariès (1975, pp.

35/36), diz que “a antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e

próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à

nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu

nome”. Assim, para o autor, a morte deixou de ser “domada” para transformar-se na

morte “selvagem”, aquela que não se pode dar conta e que se procura colocar distante

da realidade da vida ou, nas palavras de Baudrillard (1976, p.197), “a morte deixou de

ser a grande ceifeira para tornar-se a angústia da morte”.

Se durante milênios o homem foi o senhor de sua morte e das circunstâncias

em que ela ocorria, hoje não é mais dessa forma. Para Ariès (1975), o homem da Idade

Média sabia que ia morrer e era natural que tivesse conhecimento da proximidade de

sua morte, em uma época em que as doenças eram quase sempre mortais. Quando a

pessoa não se apercebia dos sinais da morte próxima, cabia aos outros advertirem-na.

Assim como o doente não devia ser privado de sua morte, também cabia a ele que a

presidisse. A pessoa prestes a morrer sabia como proceder, pois por diversas vezes

tinha presenciado a morte de outros. A morte era, então, uma cerimônia pública:

“investido de uma autoridade soberana pela proximidade da morte, sobretudo nos

séculos XVIII e XIX, o moribundo dava ordens e fazia recomendações” (p.234).

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Nos dias atuais, não só o indivíduo deve ignorar a proximidade de sua morte,

mas também a solenidade pública dessa hora deve ser evitada. Hoje, deve-se morrer

sozinho e, se possível, ignorando a própria morte. Segundo o autor, essas mudanças

estão ligadas ao monopólio que a família assumiu no mundo moderno, alterando as

relações entre o doente e a família.

O doente da segunda fase da Idade Média e do Renascimento via na morte um

momento seu, uma oportunidade de ver sua individualidade reafirmada e, sendo dono

da própria morte, tinha, da mesma forma, sido dono da própria vida. Sua vida lhe

pertencera, sua morte lhe pertencia.

Antes do século XVII, existia uma desconfiança em relação à família e ao

cumprimento dos desejos do doente após sua morte, tendo o testamento surgido para

fazer com que sua vontade estivesse assegurada. Mas quando a afeição familiar se

sobrepôs à desconfiança, o testamento perdeu sua função moral e os últimos desejos do

morto passaram a ser sagrados para os demais membros da família. Continuando, o

autor diz que essa confiança na família “nascida nos séculos XVII e XVIII e

desenvolvida no século XIX tornou-se, no século XX, uma verdadeira alienação”

(p.238). Isso significa dizer que o doente perdeu o papel principal no ato de sua morte e

a família assumiu o direito de decidir o que ele deve ou não saber ou fazer em relação à

última etapa de sua vida. Não lhe é dado o direito de tomar conhecimento de seu estado

de saúde ou de se preparar para o encontro com a morte e, se o sabe, deverá tentar

fingir que não sabe. “Antigamente a morte era uma tragédia – muitas vezes cômica –

na qual se representava o papel daquele que vai morrer; hoje a morte é uma comédia –

muitas vezes dramática – onde se representa o papel daquele que não sabe que vai

morrer” (p.238).

A partir da segunda metade do século XIX, o homem deixou de ser o dono de

sua própria vida e, conseqüentemente, de sua própria morte. A família usurpou-lhe esse

papel. Mas não foi apenas a família que contribuiu de forma tão rápida e eficaz para

Page 20: A morte no candomble

12

alterar a relação do doente com a morte. A medicina teve um papel fundamental nessa

mudança: no final do século XIX, a medicina substituiu a morte pela doença,

instaurando, assim, um novo poder – o poder do médico.

Hoje se morre cada vez mais nos hospitais e é importante que isso se dê de

forma asséptica e discreta, para que não se criem embaraços aos sobreviventes. A

ruptura da comunicação com aquele que vai morrer também é uma característica da

sociedade moderna: o doente é cercado no isolamento imposto pelos médicos e pela

família e, também ele deve fingir otimismo em relação a seu estado de saúde. O doente

moderno é privado de sua própria morte, primeiro, porque não se pode falar dela e,

segundo, porque as técnicas da medicina e as equipes médicas farão o impossível para

mantê-lo vivo. A morte só lhe será dada o mais tarde possível.

Como nos fala Ariès (1975, pp.298/2999), hoje “é difícil morrer”, pois “a

sociedade prolonga o maior tempo possível a vida dos doentes, mas não os ajuda a

morrer”. Quando não mais consegue mantê-los vivos, a sociedade renuncia a seus

doentes, porque eles passam a ser prova e testemunhas de sua derrota. Por isso, nas

unidades de terapia intensiva dos hospitais, longe de suas casas, os doentes morrem

solitários e sem dignidade, privados de seus direitos de se manifestar, de expressar

sofrimento pela morte próxima. Deixando de ter valor para a sociedade, aquele que vai

morrer, “passou a ser um marginal”. Baudrillard (1976, p.241) afirma que nos dias de

hoje a morte deixou de ser solene e circunstanciada, em família, transferindo-se para os

hospitais, sendo esses a extraterritorialidade da morte; o homem deixa a companhia

dos seus entes queridos antes de morrer e, segundo o autor, “é por outro lado disso que

ele morre”.

Para Kubler Ross (1969, p.14), o que mudou ao longo do tempo não foram as

necessidades do paciente, mas “nossa capacidade de satisfazê-las”, aumentando seu

sofrimento emocional.

Page 21: A morte no candomble

13

Paralelamente ao poder retirado daquele que vai morrer sobre sua própria

morte, também se retirou dos sobreviventes o direito de chorar seus mortos. Segundo

Ariès (1975), a sociedade moderna, além de privar o homem de sua morte também

proíbe aos vivos de se comoverem com a morte do outro, “não lhes permite nem chorar

os que se vão, nem fingir chorá-los” (p.245). O luto, antes uma dor necessária e

legítima, foi banido de cena.

A morte mascarada

Foi a partir do século XIII que as manifestações de luto, antes mais ou menos

espontâneas ou impostas, conforme a época, ritualizaram-se, e acabaram por se

transformar, no século XX, em interdito.

Antigamente, o que se buscava com o cuidado do corpo do morto era uma

imagem que não visava tirar-lhe a condição de morto. Hoje, o que se busca é evitar a

sombra da morte no semblante do morto, preparando-o para que pareça “estar saudável

e dormindo”, conservando em seu corpo a ilusão da vida, mascarando a morte.

A cremação, cada vez mais utilizada no mundo moderno, principalmente na

Europa, visa, segundo Áriès (1975), duas razões: o meio mais radical de se livrar dos

mortos e a exclusão do culto dos cemitérios e a peregrinação aos túmulos.

Para Baudrillard (1976, p.173), nos dias de hoje “nada mais se prevê para os

mortos, nem no espaço físico nem no mental”; isso implica que com a modernidade os

mortos deixaram de existir, foram rejeitados. Ainda para o autor, “a morte é uma

delinqüência” e, por isso, não existe mais um lugar nem espaços destinados aos mortos.

Aliado a isso, a proibição do luto impõe duras penas aos sobreviventes,

forçados a ignorar a perda e impedidos de chorar por ela; a dor é substituída por

atividades constantes, doenças e neuroses.

Page 22: A morte no candomble

14

Historicamente, as religiões sempre foram o refúgio que protegia o homem do

medo da morte, com a função de transcendê-la, mas, segundo Carlos Rodrigues (2004,

ed.130), “o que, em outros tempos, esperava-se da magia e da religião, atualmente se

espera da ciência”. Com isso, transferiu-se o culto ao espírito, com a busca da história,

das artes, da literatura, do saber, para o culto ao corpo, com a busca da eterna

juventude, da beleza aparente, da longevidade e, com a negação da morte, da ilusão da

imortalidade.

No trabalho de título Luto e Morte: uma pequena revisão bibliográfica, o autor,

Vilar (2000), cita Émile Durkheim (1966), que faz uma abordagem sociológica da

morte, evidenciando a importância da religião – numa visão funcional, na estabilidade e

harmonia social, ressaltando que, sendo a morte um elemento desestabilizador, marco

de uma ruptura, a religião representaria uma forma de reequilíbrio social, permitindo,

por meio dos ritos de passagem da alma e corpo do morto, uma forma de diferenciá-los

da condição dos vivos, dando a esses condições de retomar suas funções cotidianas. No

mesmo sentido, o antropólogo Lévi-Strauss (1982) sugere que o primeiro ponto a ser

considerado em relação à morte é a força que essa possui de abalar o cotidiano das

pessoas e do mundo, e que a religião busca integrar a morte na ordenação de sentido da

existência humana. A religião seria, então, com suas práticas e crenças, responsável por

legitimar a morte e permitir ao indivíduo continuar vivendo em sociedade, após a perda

de seus entes queridos. Ainda segundo Lévi-Strauss (1982), os “rituais mortuários são

providências concretas para a manutenção da realidade em face da morte”. O autor

segue destacando a importância dos rituais para aqueles que se confrontam com a

morte, como forma de “retomar/recomeçar suas realidades sustentando o diálogo

social”.

Para a psicóloga Júlia Kovács (2004, ed.130), essa constatação também se faz

notar na medida em que, hoje, os funerais são realizados às pressas, de forma mais

indolor possível, com os rituais reduzidos ao mínimo indispensável. Para a autora, isso

Page 23: A morte no candomble

15

“desqualifica os rituais e tira um pouco do seu valor”. Em conseqüência, as pessoas não

conseguem mais realizar o processo do luto.

Segundo Koury (Villar 1996/2000), a situação do luto no Brasil não difere

muito dos demais países ocidentais, já que “a cumplicidade pela indiferença aparente,

como se a morte e a dor não existissem, parece ser a tônica moderna do processo de

luto no Brasil urbano”. Podemos trazer exemplos bastante atuais que corroboram com

o autor: no cemitério de Taguatinga, cidade do Distrito Federal, as capelas onde os

mortos são velados trazem placas que as identificam como “capela ouro”, “capela prata”

e “capela bronze”. Já não somos todos iguais perante a morte, a distinção sócio-

econômica foi estendida aos mortos.

No Rio Grande do Sul, na cidade de Novo Hamburgo, região metropolitana de

Porto Alegre, surge a prática de trancar a capela mortuária à noite, indo os familiares

dormir em casa, deixando para trás o morto e retornando na manhã seguinte para dar

continuidade ao velório. Aqui, a segurança contra possíveis assaltos é a justificativa

apresentada pelas famílias, embora o cemitério da cidade conte com a presença de

funcionários encarregados da segurança do local. A morte, e os mortos, foram

excluídos do mundo dos vivos, cuidando-se para que lhes afete o mínimo possível a

rotina.

O papel das religiões, no tocante à realidade da morte, é a transmissão da

mensagem de que ela não é o fim da existência e de que, de alguma maneira, segundo

diferentes doutrinas, a vida continua após a morte. No entanto, segundo Vilar (2000), o

senso comum aponta para outra realidade: a de que a morte representa o fim ou,

podemos acrescentar, pelo menos o fim para nossa forma de existência atual.

Evidentemente, essa é uma realidade difícil de ser confrontada por qualquer ser

humano e, embora a religião possa confortá-lo e tornar mais branda a perda de pessoas

amadas, dificilmente tornará mais fácil a aceitação da própria mortalidade.

Page 24: A morte no candomble

16

Para Ballone (2002), a morte é um processo biológico natural e necessário,

sendo condição indispensável à preservação da espécie, permitindo que, por meio da

morte, a vida se alimente e se renove, sendo, portanto, “um artifício da natureza para

tornar possível a manutenção da vida”, mas que, apesar de ser um processo natural e de

a ciência ter evoluído tanto no prolongamento da vida, dificilmente as pessoas

entenderão que a morte possa representar apenas “uma vida que chegou naturalmente

ao fim, uma existência que simplesmente expirou”. O autor também acredita que o

exercício espiritual, ligado ou não à religião, facilita a aceitação da morte como

conseqüência da própria vida, e que é o culto ao ego que faz com que “a pessoa acredite

e aceite a morte dos bilhões de seres humanos no mundo, menos a sua própria”.

A cultura do ego, tão valorizada na sociedade atual, faz com que o homem

conjugue cada vez mais o verbo ter, na busca de status social, acúmulo de bens

materiais, juventude aparente e diversos valores relacionados ao estar aqui – nessa

vida, tornando, assim, a morte uma realidade inaceitável já que, na morte, nenhuma

dessas aquisições seguirá com o indivíduo. Segundo Ballone (2002), nesse cenário de

materialismo dominante “ficam irremediavelmente prejudicadas as iniciativas para o

autoconhecimento, primeira lição para aceitarmos com serenidade que um dia

deixaremos de existir”.

O psicanalista francês Charles Melman (2004) faz eco às constatações de

Ballone, dizendo que, hoje, o homem colocou “o prazer à frente do saber”, valorizando a

“estética em detrimento da ética”, e que, apesar de o homem ter conquistado tanta

liberdade, abriu mão do pensamento; e que “nunca se pensou tão pouco” quanto hoje,

tendo a mídia substituído os livros e os grandes escritores do passado, resultando, daí,

“um indivíduo manipulável e manipulado”; e que, para esse sujeito de prazer, a morte

perdeu também sua sacralidade, passando a ser mais um bem de consumo.

Recorremos, ainda, à psicanalista Judith Viorst (1988, pp.328/331), que traça

um percurso sobre como podemos, se não afastar, pelo menos minimizar o medo da

Page 25: A morte no candomble

17

morte em nossas vidas, nessa cultura em que morrer, apesar de inevitável, deixou de

ser permitido. Para a autora, é saudável manter a morte como uma realidade, porque

sua negação empobrece a vida; porque é necessário um consumo de energia enorme

para que se possa manter a morte – e o seu temor – afastada da vida; porque o temor da

morte é substituído por outras fontes de ansiedade e porque, ainda que a

conscientização de nossa morte não a transforme em algo aceitável, pode enriquecer

nosso amor pela vida. Também, para a autora, a “imagem de imortalidade mais familiar

é a religiosa” e “a religião é o único contexto no qual podemos evocar imagens de

continuidade depois da morte”; mas, embora a morte traga o aniquilamento biológico e

psíquico, não precisa, necessariamente, significar o fim absoluto. É possível

imaginarmos a continuidade da existência por meio da natureza, na reintegração com a

terra, por exemplo; ou por meio de obras e trabalhos que sobrevirão às gerações

futuras, trazendo-lhes contribuições importantes; e podemos continuar vivendo através

de nossos filhos e netos, pela continuidade biológica.

Mas, seja qual for a imagem que fizermos para além da vida, é necessário viver

com um senso de transição, de que tudo o que somos e tudo o que amamos não

permanecerão para sempre:

O eu que criamos com tantos anos de esforço e sofrimento morrerá. E por mais

que nos apoiemos na idéia, na esperança, na certeza de que uma parte de nós

viverá para sempre, temos de reconhecer também que esse “eu” que respira, ama

e trabalha, que conhece a si mesmo, será obliterado para sempre... para todo o

sempre.

(Viorst,1988, p.331)

Page 26: A morte no candomble

18

1.3. O candomblé no Brasil

Tendo convivido com o povo do candomblé durante vários anos, pudemos

observar as diferentes formas de relação que essas pessoas mantêm com as coisas da

vida, entrelaçando o cotidiano e o sagrado, tecendo teias entre as diferentes facetas da

vida social com os preceitos e tradições da religião. Uma vivência que parece fundir, e

até confundir, antes de excluir, dois mundos que se apresentam, às vezes, de forma tão

distinta e, até, contraditória.

Dessa forma e, antes de podermos avançar sobre o tema da morte no

candomblé, se faz necessário descrever como é a vida nessas comunidades, como se

organizam as relações pessoais no grupo e como a noção do sagrado permeia a relação

entre elas e suas vidas em geral.

Nos textos sobre o candomblé, aqui apresentados, utilizaremos a grafia da

língua portuguesa, na forma como os termos iorubas são transcritos, pois isso

simplifica a leitura e a escrita. Relacionaremos em glossário, páginas 174/178, todos os

termos iorubas utilizados, com sua tradução e o significado de alguns termos e

expressões que, embora já traduzidos, carecem de explicação.

O candomblé, religião de origem africana, desembarcou no Brasil no século XVI

sendo, segundo Verger (1981, p.22), “uma conseqüência imprevisível do tráfego de

escravos”. Esse tráfico, intenso por mais de três séculos, trouxe aproximadamente

3.600.000 pessoas como escravos para o País. Recebemos aqui cerca de 38% de todo o

movimento praticado entre a América e a África. A Bahia foi o estado que mais recebeu

escravos no Brasil, com 1.200.000 destes desembarcados em seu porto, com o Rio de

Janeiro ocupando a segunda posição (Berkenbrock, 1997, p.77). Vindos de diversas

partes da África, os primeiros escravos a desembarcar no Brasil foram os de origem

Page 27: A morte no candomble

19

bantu, seguidos de grande contingente de daomeanos e iorubas. Fatores como a época

da chegada e o local de trabalho dos negros desembarcados, distribuídos em imenso

território geográfico, contribuíram para que algumas das culturas africanas não

sobrevivessem nesse solo. Como diz Berkenbrock (1977, p.80), “quanto mais cedo um

grupo foi trazido para o Brasil, tanto menor a chance de sua cultura ter tido

continuidade”, assim, os escravos bantu, primeiros a chegar e espalhados nas diversas

regiões para o cultivo agrícola, pouco puderam conservar de sua cultura. Para os

iorubas, chegados ao final dos tempos da escravidão e concentrados, principalmente,

nas cidades, foi possível conservar muitos dos elementos de sua cultura. Esses

elementos, que além das concepções religiosas agregam valores sociais, língua,

culinária, música e representações míticas, foram conservados a partir de nações

africanas diversas e não a partir de uma única matriz africana. No entanto, como alerta

Prandi (2005), as religiões afro-brasileiras, embora trazendo em sua origem a religião

de negros, a sociedade onde elas surgiram, ou ressurgiram, era a brasileira, estruturada

em outras instituições, principalmente a familiar, que firmada nas bases do catolicismo,

fez com que a religião africana se constituísse como religião de negros católicos,

separados de seus clãs e antepassados, tendo como conseqüência a perda de parte de

seus cultos, especialmente os ligados aos antepassados, e regras de comportamento e

convivência entre homens e mulheres que não puderam ser mantidos como eram na

grande família africana (p.143). Entre as principais perdas podemos destacar que os

iorubas tradicionais são polígamos, com famílias numerosas habitando residências

coletivas e cultuando orixás particulares para cada família, cidade e região.

Transportada para o Brasil, a religião precisou adaptar-se a novos modelos sociais,

sendo o desaparecimento das linhagens e ruptura das estruturas de parentesco a mais

importante delas, inaugurando aqui um novo conceito de linhagem: a família de sangue

ioruba foi substituída pela família mítico-espiritual, conhecida como família de santo

(Prandi, 2005, p.166).

Page 28: A morte no candomble

20

Os fundamentos da religião são aquilo que restou da memória coletiva viva e

que faz referência a uma etnia africana, mas, segundo Prandi (2005), o candomblé não é

a reunião de afro-descendentes que cultivam uma origem e antepassados em comum e

sim uma religião dos orixás fundada no Brasil pelos velhos líderes dos primeiros

terreiros, onde os mitos de interesse religioso foram conservados, mas os costumes

adaptados e reinterpretados para poderem sobreviver como prática e elementos

religiosos no Brasil, porque o mito “deve fazer sentido não mais exclusivamente para o

negro e todo afro-descendente, mas também para o branco que adere à religião dos

orixás” (p.168/169).

O candomblé também despertou o interesse dos estudiosos e Augras (2000), em

seu texto “O Terreiro na Academia”, integrante do livro Faraimará – O caçador traz

alegria, Mãe Stella – 60 anos de iniciação, faz uma retrospectiva da inserção do

candomblé na academia, ilustrando que o primeiro estudo científico sobre o candomblé,

assim considerado no Brasil, data de 1900. De autoria de Nina Rodrigues, L’animisme

fetichiste dês nègres de Bahia, o livro, destinado à comunidade internacional, tratava da

variedade dos traços culturais existentes no Brasil. Em outra obra, Os africanos no

Brasil (1906/1907), o autor volta a tratar das tensões existentes entre o negro liberto e

sua difícil inserção na sociedade, ressaltando aqui a impressionante característica de

resistência desse povo às tentativas de catequese e às repressões policiais contra sua

religião de origem (Augras, 2000). Os textos de Nina Rodrigues, no entanto, atribuía o

“estado-de-santo”, no qual os negros eram “possuídos” pelo orixá, a um sonambulismo

provocado, com cisão e substituição da personalidade; os fenômenos eram observados

através do olhar psiquiátrico. Segundo Augras (1995), foi com a chegada de Herskovits

no Brasil, no início dos anos quarenta, que o “estado-de-santo” começou a ser visto

como um comportamento normal, por ser promovido e aprendido. Em 1950, Bastide

defende na Sorbone a tese intitulada As religiões africanas no Brasil, inaugurando um

novo olhar sobre os negros em nosso país, deixando de ver “o terreiro como simples

Page 29: A morte no candomble

21

lugar de sobrevivência de cultos antigos” (Augras, 2000, p.51). A partir daí, estuda

diversos aspectos do candomblé, como seu funcionamento, sua estruturação em relação

à sociedade como um todo, estrutura econômica e análise dos aspectos psicológicos que

envolvem os iniciados na religião. Os estudos referentes aos negros no Brasil deixam,

então, o olhar de nação africana para trazê-los ao contexto da sociedade brasileira,

assumindo, da mesma forma, o estudo do candomblé como uma religião aqui instaurada

e legitimada por seus seguidores, já não só composta por negros, mas também de

brancos e de todos os extratos de classes sociais.

Pierre Verger, etnólogo francês apresentado ao candomblé por Bastide, não só

desenvolveu diversos ensaios literários e fotográficos a respeito da religião, como se

inseriu nela, tornando-se Babalaô em Daomé – África e Ogã, no Axé Opô Afonjá e no

Opô Aganju, em Salvador, BA. Verger (1981) dedicou-se ao estudo do candomblé no

período de 1949 a 1979 e, em 1976, foi reconhecido pela ciência e recebeu o título de

doutor em estudos africanos, concedido pela Sorbone, em Paris.

A partir dos anos 80, o candomblé passa a ser estudado por meio dos diversos

aspectos que compõem esse vasto território de vivências individuais e experiências

coletivas.

Em 1975, Yvonne Maggie trata, em sua tese de mestrado em antropologia

social, do estudo dos conflitos ocorridos em um terreiro de umbanda no Rio de Janeiro.

Seu trabalho, Guerra de Orixá – Um estudo de ritual e conflito já dirigia ao terreiro um

olhar mais específico, dentro de todo seu contexto.

Nessa mesma linha, de olhar um ponto dentro do todo, destacam-se os

trabalhos de Vivaldo da Costa Lima, com o estudo da hierarquia e poder no candomblé,

em 1966, e Roberto Motta, que, em 1980, analisa os terreiros como um conjunto da

sociedade brasileira ali representada.

Prandi (1991) aborda, em sua tese de livre-docência, Os Candomblés de São

Paulo, o impressionante crescimento dos terreiros de candomblé nessa cidade, com

Page 30: A morte no candomble

22

pesquisa de campo envolvendo sessenta terreiros da região metropolitana, trabalhando

com a hipótese de que, “para merecer tanta adesão, o candomblé deve oferecer coisas

muito valiosas no mercado de bens simbólicos”, levando-o à conclusão de que o

candomblé é uma religião que não rejeita o mundo e nem pretende mudá-lo, pois,

vendo o mundo como ele é, enxergam-se nele os meios de ser feliz. O autor

complementa dizendo que “o candomblé afirma o mundo, valoriza-o e, ao propor meios

para lidar concretamente com os problemas, graças à utilização de recursos mágicos,

permite que cada indivíduo lute com armas simbólicas contra tudo aquilo que o

esmaga”, justificando-se, assim, a expansão do candomblé na maior metrópole da

América do Sul (Augras, 2000, p.56).

Augras (2000, p.56) diz que, se o candomblé é bom para resolver as demandas

dos indivíduos da sociedade, o terreiro não poderá mais ser descrito apenas como um

lugar de sobrevivência da religião e dos valores africanos, mas como um espaço de

reordenamento e redefinições que dizem respeito à sociedade brasileira como um todo,

sugerindo que o terreiro “poderá ser focalizado, pelos estudantes universitários, como

um recorte da sociedade mais ampla, onde se expressam questões reveladoras das

tensões comuns a todos os seus segmentos”. Num desses recortes, a autora faz

referência aos trabalhos de Patrícia Birman (1988/1995) e Maria Lina Leão Teixeira

(1993), que trataram em sua tese de doutorado e dissertação de mestrado,

respectivamente, das questões de gênero, dos papéis diferenciados atribuídos pela

sociedade com base na diferença dos sexos, investigando como o terreiro elabora essa

questão tão viva nos demais segmentos da sociedade. Augras (2000, p.57) enfatiza que

“em pesquisas desse tipo, as peculiaridades do candomblé deixam de ser tratadas como

sinais de especificidade étnica, já que, pelo contrário, são pontos de partida para

repensar a sociedade brasileira em seu conjunto” ou, como afirma Roberto Mota: “o

terreiro reflete a sociedade brasileira; o candomblé é o Brasil”.

Page 31: A morte no candomble

23

E assim, mais uma vez, recorremos a Augras (1983, p.51) ao afirmar que um

longo caminho foi percorrido desde Nina Rodrigues, onde a estranheza acaba por

esclarecer o mundo dos valores do observador, em vez do mundo do observado, e que

“somente a visão de dentro para fora pode garantir a compreensão”.

É por essa especificidade que buscaremos olhar de dentro do terreiro, tentando

escutar-lhe o significado da morte e a forma como a morte do outro é vivenciada pelo

fiel do candomblé.

Para que possamos buscar compreender o significado da morte em uma religião

tão rica em rituais, na qual o simbólico se impõe em todas as atividades e manifestações

do culto, extrapolando os limites do terreiro, incorporando-se nas demais dimensões

sociais da vida do iniciado, necessário se faz, embora muitos estudiosos e pesquisadores

já se tenham dedicado a esses temas, lançarmos um rápido olhar sobre os diversos

aspectos que compreendem o universo do candomblé.

O Candomblé de nação Ketu

Embora existam outras formas de culto com tradições distintas ou aglutinação

de diversas tradições, no presente estudo manteremos o foco apenas na tradição de

origem Ketu, sobrevivente no Brasil, considerada pelos adeptos da religião como o

candomblé de raiz, que procura manter ao máximo as tradições vindas da África com

os escravos e por eles conservadas através de seus descendentes (Berkenbrock, 1997).

Vimos, com Prandi (2005), que essas tradições tiveram que ser adaptadas aos moldes

da sociedade brasileira e que muitas características originais se perderam nesse solo,

podendo-se dizer que a “raiz” encontra-se mais nos primeiros fundadores de terreiros

brasileiros do que na África antiga. De qualquer forma, e respeitando-se as demais

nações existentes no candomblé e nas outras formas de expressão dos cultos afro-

Page 32: A morte no candomble

24

brasileiros, o terreiro escolhido para o desenvolvimento da pesquisa tem em sua origem

e forma de culto o candomblé de ketu, sendo essa a principal razão da concentração do

foco nessa nação específica.

A Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, é considerada, pelos estudiosos

e pela comunidade religiosa, como a casa de candomblé mais antiga em funcionamento

na Bahia, surgida na primeira metade do século XIX (Augras, 1983). A partir de uma

cisão entre seus membros, a Casa Branca deu origem a duas outras casas na Bahia, que

têm o status de casa-mãe – de ser origem de uma tradição – no candomblé: o Terreiro

do Gantois e o Axé Opô Afonjá (Verger, 1981). Os demais terreiros de candomblé de

origem Ketu existentes hoje no Brasil são um braço de uma dessas três casas originais

e, embora sejam casas isoladas e independentes, têm um núcleo teológico comum, no

qual se destaca o importante papel dos Orixás.

O candomblé – bem como as outras religiões afro-brasileiras – é uma religião

na qual as tradições são transmitidas oralmente. Não há nenhum texto que ganhe o

status de uma escritura sagrada. “A oralidade é um instrumento a serviço da estrutura

dinâmica da religião. A dinâmica do sistema recorre a um meio de comunicação que

deve se realizar constantemente. Cada palavra proferida é única. Nasce, preenche sua

função e desaparece.” (Santos, 1975, p.47). A palavra é importante tanto no nível

comunitário – quando ela é proferida por uma pessoa para alcançar uma outra, ou

muitas outras através das gerações, como no nível individual – como expressão de um

“processo de síntese no qual intervêm todos os elementos que constituem o indivíduo”.

Augras (1983) faz um importante complemento quando diz que, além da palavra, a

transmissão do saber iniciático faz-se por meio dos gestos, da dança, do canto, dos

atabaques, do ritmo e da emoção que o som exprime. O candomblé é uma religião que

se faz com música e dança. Prandi (2005, p.180) diz que candomblé “acorda-se

cantando, saúdam-se os vivos e os mortos cantando, passa-se pela iniciação sacerdotal

Page 33: A morte no candomble

25

ao som de cantigas sagradas. Nada se faz sem cantar” e prossegue dizendo que “canta-

se para reafirmar a fé, porque cantar é celebração, é reiteração da identidade” (p.182)

Atualmente, no entanto, a oralidade, embora ainda conserve um papel

imprescindível na realização do culto e dos rituais, deixou de ser o único instrumento

de conhecimento da religião. Os iniciados mais jovens, geralmente com alto nível de

escolaridade, buscam avidamente os materiais escritos por sociólogos, antropólogos ou

etnólogos e, mais recentemente, por psicólogos e, principalmente, por iniciados

estudiosos de sua própria religião, com o objetivo de procurar conhecimentos que

julgam perdidos ou que acreditam estar-lhes sendo sonegados pelos adeptos mais

antigos da religião. Para Capone (2004, p.146), o candomblé passou a ser “o lugar de

uma procura incessante dos porquês da vida”, e os iniciados não se satisfazem mais

apenas com a experiência mística, com a vivência do orixá, querendo compreender,

buscando a expressão de uma racionalidade que não conseguem alcançar. A autora faz

uma crítica ao dizer que “passou-se assim da antiga transmissão oral, que era a base do

aprendizado no candomblé, para o estudo de um conjunto de obras “sagradas”, escritas,

em sua maioria, por antropólogos brancos” (Capone, 2004, p.299).

Sobre a oralidade, Augras (1983) afirma que nos rituais as palavras não podem

ser dissociadas dos gestos que os acompanham e que os textos escritos perderiam

assim sua força, seu significado, uma vez que estariam transformados em símbolos

abstratos, deslocados de seu contexto existencial.

De qualquer forma e, embora os iniciados tenham acesso a vários textos sobre

os rituais do culto e suas origens, a religião continua a ser aprendida na experiência e a

palavra proferida nos ritos ainda se afirma como sagrada. Por ser uma religião

constituída sob segredos, os estudiosos iniciados no culto não os revelam e os

estudiosos não-iniciados não têm acesso a eles.

A criação é, na cultura ioruba, a passagem da unidade para a pluraridade e, ao

mesmo tempo, a passagem do estático ao dinâmico. O candomblé tem diversas

Page 34: A morte no candomble

26

divindades como modelo – os orixás, que se apresentam como representações

psicológicas.

A experiência religiosa não visa apenas ser uma parte da vida do indivíduo, mas

é uma experiência ligada intimamente ao ser humano e à busca do sentido da vida

como um todo. A realização do sentido da vida, para o candomblé, está na união ou

harmonia entre dois níveis da existência: Orum e Aiye. O destino do ser humano está,

pois, ligado a essa divisão. O próprio ser humano personifica essa divisão, pois se

encontra no nível do Aiye – da limitação, da materialidade – mas carrega em si algo do

Orum, da ilimitabilidade – um orixá (Lépine, 2000).

A busca da união e harmonia deve ser feita primeiramente, pois, em cada ser

humano. Assim, quando o candomblé apresenta como objetivo a busca da unidade ou

harmonia entre os dois níveis de existência na própria pessoa, e oferece um caminho

para esta busca, ele tem como ponto de partida uma determinada compreensão de

pessoa, por meio do seu orixá, para que essa harmonia possa se dar.

O Terreiro de Candomblé

Palco central das atividades ritualísticas do candomblé, o terreiro é o local onde

a comunidade se reúne. Os terreiros objetivam ser pequenas reconstruções de uma

África mítica no Brasil. São como ilhas africanas, isoladas em uma realidade estranha

ao Ocidente, onde todo o universo (Orum e Aiye) está reunido. Nesta ilha pode ser

retomado o relacionamento entre pessoas e orixás; ali os orixás podem ser invocados.

Ali pode ser trocado o axé e garantidas a dinâmica e a continuação da existência.

Os terreiros são unidades completas e fechadas. Existem diferenças entre os

terreiros africanos e os brasileiros – além das diferenças que surgiram pela perda de

elementos religiosos no Brasil. O terreiro brasileiro não é como na África, mas sim uma

reconstrução à forma brasileira. Uma diferença muito clara é o fato de que na África

Page 35: A morte no candomble

27

cada terreiro, ou aldeia, dedica-se ao culto de apenas um orixá, enquanto que, no Brasil,

são cultuados diversos orixás em cada terreiro. Esse fato deve-se, provavelmente, à

separação dos negros escravos chegados ao Brasil que, depois de reunidos, formaram

uma gama variada de filhos de diversos orixás, passando assim a cultuá-los em

conjunto (Berkenbrock, 1997 e Verger, 1981). Deve-se também, como já vimos, à perda

das linhagens e dos laços sanguíneos deixados para trás pelos escravos, com a vinda

para o Brasil.

O terreiro é composto normalmente por casas ou diversos espaços, formando

uma unidade, surgindo daí sua designação, também, como casa ou roça de santo. Uma

primeira estrutura do culto é a existência de dois ambientes, que cumprem funções

diferentes: um é o espaço das pessoas, o espaço civilizado, da ordem. Nesse espaço,

encontram-se as construções destinadas ao uso particular e de culto. É o espaço

urbano, o espaço da civilização. Por outro lado, existe um espaço não destinado às

pessoas, um espaço que não é por elas freqüentado. É o espaço não civilizado, não

controlado, que carrega em si o mistério e o sagrado. Nesses espaços apenas as pessoas

iniciadas, da alta hierarquia da casa de santo, têm licença para entrar. Dessa forma, o

terreiro traz a representação da totalidade: o espaço habitado e o espaço não habitado,

o destinado às pessoas e o destinado ao sagrado, o conhecido e o desconhecido (Beniste,

2001).

Para que o terreiro cumpra sua função, deve receber axé. O axé é força, energia

transmissível, “é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável” (Santos,

1975, p.39). O axé é plantado no terreiro, geralmente no centro do barracão principal,

simbolizado por um grande mastro de madeira e assim transmitido a todos os outros

elementos que integram o terreiro. O axé, como força dinâmica, pode aumentar ou

diminuir. Assim, para Santos (1975, p.40), “quanto mais um terreiro é antigo e ativo,

quanto mais as sacerdotisas encarregadas das obrigações apresentam um grau de

Page 36: A morte no candomble

28

iniciação elevada, tanto mais poderoso será o axé do terreiro. O conhecimento e o

desenvolvimento iniciático estão em função da absorção e da elaboração de axé”.

Dessa forma, cada vez que uma pessoa é iniciada, o potencial energético de toda

a comunidade é aumentado, o templo cresce, se fortalece, conferindo mais axé a seus

membros que, em troca, amplificam o potencial de energia sagrada do terreiro (Augras,

1983).

O culto – a devoção ao Orixá

O culto cumpre o papel central no relacionamento entre orixá e iniciado. Ele

possibilita o contato direto, no qual o fiel experiencia seu orixá pessoal com total

intimidade, colocando seu corpo à disposição do orixá, de modo que ambos encontram-

se unidos em um único corpo. O orixá é parte integrante do filho de santo e sua

manifestação se faz de dentro para fora, é uma energia que se manifesta, vinda do

interior (da cabeça - ori) do iniciado. Augras (1983) enfatiza que a cabeça é o ponto de

interseção onde se concentram as forças sagradas e a possibilidade de realização

pessoal. Complementamos sua afirmação trazendo a contribuição do pai de santo Tito

de Omolu, Babalorixá do Axé Baraleji, que diz que a manifestação do orixá deve ser

entendida como a presença de uma memória transcendental atuando a partir do

registro celular – memória genética, e não apenas através de ori – entendido como

consciência individualizada porque, se assim não fosse, a estrutura individual e sócio-

cultural do iniciado poderia impedir a manifestação do orixá; se essa memória não fosse

transcendente não conseguiria quebrar as defesas impostas pela consciência e pela

cultura atuantes no indivíduo.

O iniciado é tomado por seu orixá e, por meio do corpo de seu filho, o orixá tem

a possibilidade de participar do Aiye e assim desfrutar da companhia das pessoas. O

orixá está ali para lhe dar axé e vem ao Aiye, por meio do corpo de seu filho, para com

Page 37: A morte no candomble

29

ele festejar e dançar. Este dar e receber mútuo conduz ambos os lados a mais vida. Pelo

axé, é patrocinada a dinâmica e a continuidade da vida. Os orixás são os mediadores e

os doadores dessa força.

Como se trata de um processo de dar e receber, os filhos também fazem sua

parte: realizam oferendas e colocam seu corpo à disposição para que os orixás venham à

terra. O culto, que reaviva todo o processo da existência, acontece através de vários

rituais. Cada iniciado tem uma obrigação perante seu orixá. Essa relação exige

determinados comportamentos, uma forma de vida condizente e a realização de

diversos ritos individuais de fundamental importância para o equilíbrio de sua vida

(Berkenbrock, 1997).

O Povo de Santo - Organização sócio-religiosa

Os terreiros no Brasil são uma tentativa de ligar os cultuadores dos orixás a

uma estrutura familiar aos moldes antigos (africanos). O terreiro funciona como uma

grande família, na qual o parentesco se compõe de duas vertentes: por um lado o

parentesco carnal e, por outro – de igual ou maior importância –, um parentesco

espiritual. O parentesco no terreiro é visto, principalmente, na base de critérios

religiosos. Isso tem como conseqüência que os membros de um terreiro, como também

os filhos de um determinado orixá, considerem-se irmãos. Esse parentesco espiritual

pode ter uma importância decisiva na vida de muitas pessoas e influenciar

enormemente o relacionamento entre elas. Filhos do mesmo orixá não deveriam casar-

se entre si, membros de uma mesma comunidade também não deveriam casar-se entre

si, pois são irmãos pelo critério religioso. Assim, para manter todos os membros na

mesma comunidade de santo, é possível à ialorixá ou ao babalorixá (mãe ou pai de

santo) determinar que um casal possa ser mantido na comunidade, tomando para si,

como filho, um dos membros do casal, e dando o outro como filho para uma das

Page 38: A morte no candomble

30

iniciadas do terreiro, já em condições, devido ao tempo de iniciação e cumprimento das

obrigações, de cumprir os ritos de iniciação. Essa segunda mãe de um terreiro,

chamada de mãe pequena, cumpre as funções de substituir a ialorixá/babalorixá em seus

impedimentos, como se mostra o caso. Assim como uma mãe ou pai de santo não deve

iniciar duas pessoas que formam um casal, também não deverá iniciar seus pais, irmãos,

maridos e filhos carnais, podendo os mesmos ser iniciados pelas mãos de outra pessoa

do mesmo terreiro, onde serão todos filhos de direito, mas não de fato, considerando-se

irmãos de axé, e não irmãos de santo, (Benistes, 2002). Com o passar do tempo e a

proliferação do número de terreiros espalhados pelo Brasil e pela disputa que se

estabelece entre as diversas casas de santo, na busca e manutenção do maior número de

filhos de santo possível, sinal de prestígio para a casa e o pai ou mãe de santo, os tabus

de parentesco foram enfraquecendo, deixando de ser um impedimento categórico.

Segundo Prandi (2005, p. 154), hoje em dia “praticamente todas as relações são

admitidas dentro de um mesmo grupo de culto”, sendo muitos os artifícios admitidos

para quebrar a interdição.

A família de um terreiro é organizada de forma rigorosamente hierárquica. A

composição de cada um na hierarquia é determinada pelos diferentes graus de iniciação,

bem como pelo tempo de presença no culto. O tempo de iniciação, antes contado pela

experiência e pelo aprendizado, passou a ser contado pelo calendário, um tempo que

realmente conta na aprendizagem do iniciado, e que acabou por se impor como fator de

ordenamento hierárquico do grupo. Classificado pelos antropólogos como peking order

– a ordem das bicadas, como pode ser observada nos galinheiros: a galinha mais forte

se estabelece como líder e bica todas as demais e não é bicada por nenhuma; uma outra

é bicada pela primeira e bica todas as outras; a terceira é bicada por essas duas e bica as

demais, até a última galinha que é bicada por todas as outras e não bica nenhuma. Esse

esquema é rigorosamente observado na hierarquia estabelecida no candomblé (Prandi,

2005).

Page 39: A morte no candomble

31

Cada terreiro é conduzido por uma ialorixá ou babalorixá. Ela ou ele é a

autoridade máxima em um terreiro e sua autoridade não se limita ao campo da

espiritualidade ou dos rituais, extrapolando muitas vezes para os aspectos da vida

cotidiana dos filhos de santo. A palavra de uma ialorixá ou de um babalorixá é lei na

comunidade. Esses, por sua vez, devem obedecer apenas aos orixás, que são autoridades

espirituais. Isso traz prestígio ao dirigente de uma casa de candomblé, mas também

uma grande responsabilidade. A ialorixá ou babalorixá tem a responsabilidade maior

pelo processo de troca de axé e, com isso, a responsabilidade última pela harmonia e

equilíbrio da vida.

O cuidado do culto é a tarefa mais importante da ialorixá ou do babalorixá.

Também a grande tarefa de transmissão da tradição, dos conteúdos de fé e das práticas

religiosas faz parte da missão das pessoas que dirigem o terreiro.

Os outros níveis hierárquicos do Candomblé são: mãe-pequena, aquela que, no

caso de impossibilidade da ialorixá ou babalorixá, dirige os trabalhos do terreiro;

Axogun, o responsável pelos rituais sagrados de oferenda aos Orixás; Pegigan, o

responsável pelos altares dos Orixás; Alabê, o responsável pela música durante o culto;

Ekede, ajudante dos Orixás quando se encontram em terra, através do corpo de seus

filhos; Abasse ou Iabassê, a responsável pela preparação das comidas sagradas, entre

outros. Existem ainda os Iaôs, pessoas iniciadas e aptas a permitir, por meio de seus

corpos, a presença dos Orixás em terra, e os Abiãs, pessoas recém iniciadas no culto.

Todos têm uma função clara e estabelecida pelas regras do culto e iniciação, e todos são

importantes para a manutenção da casa de santo e para a continuidade da religião,

(Berkenbrock, 1997).

Page 40: A morte no candomble

32

Os Orixás

Olorum (Deus) é a fonte única de todas as bênçãos, das chuvas, das boas

colheitas, da comida em abundância, da saúde, das vitórias, da paz no lar, mas todos

esses benefícios passam pelos orixás, intermediários estabelecidos pela vontade divina.

Olorum é a fonte de toda a vida; em Olorum, o senhor único do Orum, tudo teve o seu

início. A bondade de Olorum não alcança, porém, os seres humanos e o Aiye de uma

forma direta. Entre o Orum e o Aiye estão os orixás, como mediadores ou

administradores dos bens de Olorum.

No candomblé, a veneração ou adoração a Olorum não acontece de forma direta,

mas sim pela figura dos orixás. Seu nome é raríssimas vezes invocado no culto e ele

não é alvo primeiro de nenhuma ação ritual. Os orixás, estes sim, são o alvo e as figuras

centrais das ações do culto; eles são o eixo central em torno do qual gira a vida

religiosa no candomblé.

Tradicionalmente concebe-se que o lugar dos orixás é o Orum. O Orum não é

entendido, porém, como um local, mas como uma forma de existência. A forma de

existência dos orixás é, pois, a forma do Orum, do nível do não palpável, do intangível,

do nível espiritual. O local pode ser, portanto, em todo o lugar, pois em todo o lugar a

forma do Orum pode se fazer presente.

O Orum abrange o todo, assim, os orixás podem estar tanto num lugar

inalcançável quanto na natureza e, também, na cabeça de seus filhos. Na concepção

teológica do candomblé, os orixás são forças, energias, que controlam e regulam tanto

os conhecimentos cósmicos como os fenômenos naturais, e que determinam tanto a

vida social como a vida individual das pessoas. Os orixás fazem parte da família do

indivíduo, “são os remotos fundadores das linhagens cujas origens se perderam no

passado mítico. Em troca de oferendas, os orixás protegem, ajudam e dão identidade

aos seus descendentes humanos” (Prandi, 2005, p.73).

Page 41: A morte no candomble

33

Os orixás são figuras divinizadas, que surgiram por meio de Olorum como os

primeiros ancestrais ou, em alguns casos, foram seres humanos que, por seus feitos na

terra, conquistaram a divinização, o status de orixá (Beniste, 1997). Nos primórdios do

tempo os orixás estavam intimamente ligados às forças da natureza, mas conforme a

vida do homem ia se tornando mais complexa na terra, os orixás foram se libertando do

mundo natural e se aproximando do mundo do trabalho, da cultura, das atividades

sociais. Assim, Iemanjá, rainha do mar, incorporou a proteção da maternidade e o

equilíbrio mental; Oxum é a dona das águas doces e governa a fertilidade humana e o

amor; Ogum, além de ser o senhor da guerra, é o responsável pela abertura de todos os

caminhos e ascensão social; Xangô, rei do trovão e dono da justiça, passa a ser o

regulador de todos os empregos e contratos; Oxossi, antes cultuado como o orixá da

caça, passou a zelar pela fartura dos alimentos e, mais recentemente, passou a ser o

guardião do meio ambiente, sendo hoje também conhecido como o orixá da ecologia; e

Omolu, visto no passado remoto como o senhor da varíola, passou a ser cultuado como

o responsável pelo controle de todas as doenças. O controle da natureza pelo homem,

com o desenvolvimento científico e tecnológico, foi desviando o homem da natureza e,

com isso, ampliando o campo de atuação dos orixás (Prandi, 2005).

Além de seus atributos ligados à natureza, cultura e sociedade, os orixás são

representações psicológicas na medida em que possuem características ambíguas, sendo

portadores de grandes qualidades e capacidades e, ao mesmo tempo, defeitos, que os

aproximam, assim, dos seres humanos. Por isso se diz no candomblé que cada filho de

orixá traz consigo as características desse pai. Essas características estão inscritas

tanto no corpo quanto na personalidade do indivíduo. Atributos físicos, características

que se referem à sexualidade, traços de caráter e a forma de comportamento social do

indivíduo são “herdados” desse pai ancestral, gerando sua linhagem e continuidade no

mundo do Aiye (Barros e Teixeira, 2000). Para o Babalorixá Tito de Omolu, o que o

filho do orixá herda é o temperamento do pai ancestral e seus atributos físicos, mas o

Page 42: A morte no candomble

34

caráter do indivíduo pode ser moldado e modificado culturalmente, o que confere com a

visão do candomblé de que o indivíduo é responsável pelo seu destino. Se tudo fosse

herdado desse pai ancestral, o filho de um determinado orixá estaria “condenado” a

viver num enredo pré-determinado. Essa afirmação parece coincidir também com a

noção de que o homem é produto da natureza e da cultura, simultaneamente.

Dentro dessa dinâmica, existem orixás intimamente ligados à morte e outros

que dela se afastam, porque suas origens e ligações com os elementos da natureza estão

mais ligadas à vida. Da mesma forma, seus descendentes no Aiye, os filhos de santo,

manterão a mesma proximidade, ou distanciamento, com as coisas ligadas à morte

(Santos, 1975).

Outro elemento de importância fundamental no culto é Exu, injustamente

sincretizado como o diabo cristão, uma vez que, para o candomblé, não existe essa

representação (Verger, 1981), já que e o bem e o mal estão contidos dentro de cada

indivíduo e, também, dentro de cada orixá. Exu é o elemento dinâmico de todos os

indivíduos e de todas as coisas existentes no Aiye. Como princípio dinâmico, ele

representa e transporta todas as “mensagens” do Aiye para o Orum e, sem ele, a vida

não se desenvolveria, pois Exu é o “princípio da existência diferenciada em

conseqüência de sua função de elemento dinâmico que o leva a propulsionar, a

desenvolver, a mobilizar, a crescer, a transformar, a comunicar” (Santos, 1975, p.130).

A autora ressalta que Exu é a primeira forma de existência individual e, portanto, o

filho, o progênito, e que ele “se identifica completamente com seu papel de filho. Como

tal, representa o passado, o presente e o futuro sem nenhuma contradição. Ele é o

princípio da vida de cada ser. É o ancião, o adulto, o adolescente e a criança. É o

primeiro nascido e o último a nascer. Representando o crescimento, simboliza também

a mudança” (p.165). Sendo o primeiro elemento procriado, ele contém em si a natureza

de cada ser e de cada objeto. Exu é o mensageiro, o que possibilita o contato entre o ser

humano e o orixá, entre o Aiye e o Orum. Nenhuma relação, nenhuma oferenda,

Page 43: A morte no candomble

35

nenhum sacrifício, pode ser oferecido ao orixá sem a intermediação de Exu, e é por essa

razão que ele também representa um papel de destaque nos rituais do axexê, que

analisaremos nesse trabalho, sem o qual não seria possível operar os resultados que

dele a comunidade espera.

Entre as várias forças e dimensões de cada orixá, descreveremos aqui os que se

relacionam intimamente com a morte, como Oxalá, que simboliza o elemento

fundamental do começo dos tempos, massa de água e ar, que deu origem a todas as

formas de existência. Os vivos e os mortos, sendo os dois planos da existência, são

controlados por Oxalá (Santos, 1975). É o orixá do branco, representando a passagem,

a transformação de um plano de existência para o outro. Para o candomblé, o branco é

a cor da morte, do renascimento, e está presente em todos os rituais que os representa.

Oxalá é considerado o Orixá dos orixás, sendo o pai primordial de todos os orixás e,

conseqüentemente, de todos os seres vivos. É por isso que na sexta-feira, dia

consagrado a Oxalá, todos os membros do candomblé, independentemente de seu orixá

de origem, se vestem com sua cor, em homenagem ao grande Orixá do pano branco.

Nanã é um orixá feminino, também relacionado aos primórdios da criação. Está

associada à água, à lama e à morte. Os ancestrais e os mortos são considerados seus

filhos e é ela que recebe os mortos em seu seio – a terra, a lama (Santos, 1975).

Obaluiyê ou Omolu, filho de Nanã, quando se manifesta em seus iniciados é

completamente recoberto por uma vestimenta de palha da costa, ráfia africana, que até

hoje é importada da África por não existir no Brasil, e é tão importante no culto a

Omolu, considerada como sua vestimenta sagrada, que não admite substituição por

outros materiais acessíveis aqui (Santos, 1975). Esse material, chamado de iko, possui

grande significado ritual e está associado a todos os rituais ligados à morte e aos rituais

em que o sobrenatural se faz presente. “A presença do iko indica igualmente a

existência de alguma coisa que deve ficar oculta, de alguma coisa proibida que inspire

grande respeito e medo, alguma coisa secreta que só pode ser compartilhada pelos que

Page 44: A morte no candomble

36

foram especialmente iniciados” (Santos, 1975, pp.98/99). Omolu controla as epidemias,

as doenças de pele, os castigos infringidos ao indivíduo, sendo também o único capaz

de prevenir e manter esses males afastados. Segundo a autora, Omolu “oculta sob a ráfia

o mistério da morte e do renascimento, o mistério da gênese”.

Iansã é a senhora dos cemitérios e ao lado de Omolu servirá de guia aos espíritos

que acabaram de se desprender do corpo com destino ao Orum, indicando o caminho a

ser seguido por ele. Comanda a falange dos eguns (mortos), sendo considerada sua

rainha (Barcelos, 1992).

No lado oposto, nos orixás ligados às coisas da vida, Xangô, tem como função

assegurar a vida individualizada no Aiye e está relacionado a tudo o que é quente, como

o fogo, não estando, portanto, em ambientes onde o frio – o corpo frio, como a morte,

se faz presente. Xangô é o único orixá que se retira da cabeça de seus iniciados quando

eles estão prestes a morrer (Santos, 1975), é um orixá de força, movimento, ação,

estando, portanto, distante da inércia da morte. Outros orixás ligados à vida são

Ossain, senhor das folhas que curam, a força vital das plantas, presente em todos as

cerimônias ritualísticas do candomblé. É considerado o feiticeiro, o bruxo, o médico

entre os orixás, por conhecer o segredo das ervas capazes de operar a magia da cura

(Barcelos, 1992); Oxum, dona da maternidade e do parto, da fecundação. Segundo

Barcelos (1992, p.78), Exu entregou a regência da fecundação para Oxum e é ela “que

vai cuidar do embrião, do feto, até o nascimento”; ela é a responsável pela formação e

desenvolvimento da vida. Encontramos, ainda, Ogum, orixá do desenvolvimento, poder

do sangue que corre nas veias, considerado como o orixá da manutenção da vida; Ogum

também é a viagem, a estrada, a jornada, a empreitada e a luta do dia-a-dia.

Assim como as diferenças estão bem retratadas no panteão dos orixás, no

terreiro elas também se farão notar, através das características de cada iniciado, e as

funções de cada um, dentro da casa de santo e nos rituais, será marcada por essas

diferenças.

Page 45: A morte no candomble

37

O significado da vida no Candomblé

O candomblé é uma religião baseada na manutenção da vida, seja a vida pensada

como um todo ou a vida nos seus pequenos detalhes; o candomblé pensa a vida

concreta, do aqui e do agora. Quando pensa em manutenção, realização ou integração

da vida, não entende em primeiro lugar a “vida eterna” ou a vida na pós-morte. O que o

candomblé tem como objetivo é sempre a vida na concretude de sua existência atual,

porque, nas palavras de Prandi (2005), “o futuro está determinado pelo que o precede e

pode ser controlado pela ação no presente”. Sendo a repetição do que já se viveu,

conheceu e experimentou, não é futuro, pois, se “o futuro é aquilo que não foi

experimentado, ele não faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo é o tempo

vivido, o tempo acumulado, acontecido. Mais que isso, o futuro é o simples retorno do

passado ao presente, logo, não existe” (p.31).

A religião do candomblé está ligada com as dificuldades humanas do dia-a-dia e

são essas dificuldades que os fiéis procuram resolver por meio da religião. O axé é a

dinâmica para o acontecimento atual da vida. A experiência religiosa, antes de afastar o

ser humano de seus afazeres diários, quer – pelo contrário – inserir as tarefas humanas

concretas no universo de seu significado religioso, quer levar cada pessoa a perceber a

pertinência religiosa da vida em todos os seus aspectos. Tudo o que acontece na vida,

para o candomblé, tem alguma relevância. Todo o contexto em que vive o ser humano

é importante do ponto de vista religioso. No ambiente, no meio ambiente, onde o ser

humano se encontra, pode ser sentida a presença dos orixás, suas forças podem ser

experimentadas. A procura da harmonia com o orixá é, concretamente, a procura de

harmonia nos relacionamentos, no local de trabalho, na família, consigo mesmo.

Nenhuma parte da vida, nenhum dado da realidade pode ser excluído, nenhuma

atividade humana pode ser relegada.

Page 46: A morte no candomble

38

Esta forma de pensar tem como conseqüência o fato de que tudo deve estar

envolvido na estrutura do dar e receber. Todas as atividades e acontecimentos ou

trazem harmonia, ou a perturbam. Nada é neutro. E toda perturbação da harmonia

exige atos de reparação. O sistema de dar-e-receber não conhece hiato, nem na vida

pessoal, nem na vida comunitária, nem na vida social, nem nos acontecimentos da

natureza (Berkenbrock, 1997). O relacionamento entre seres humanos e orixás é, nesse

sentido, algo prático, imediato, que se realiza no aqui e no agora. O candomblé entende

que o ser humano nasceu por merecimento e que está no mundo para buscar seu

desenvolvimento, realização e felicidade. Não há promessa de uma vida melhor, para

depois da morte; há o ensinamento e a busca de caminhos para que a vida possa ser

vivida de forma integrada e harmoniosa, em equilíbrio.

No candomblé o ser humano é compreendido como uma composição de variados

elementos: o primeiro elemento é o ara, isto é, um corpo que é parte da terra: na terra

teve sua origem e à terra volta após a morte; o segundo elemento é o emi, que é a

respiração - através dele, o ara (corpo) tem vida; além de ara e emi, cada pessoa tem o

seu ori, quer dizer, a inteligência e a consciência. O ser humano, no que tange à sua

existência no nível do Aiye, é, pois, composto desses três elementos: ara, emi e ori.

Cada ser humano carrega em si também algo do Orum, expresso quando se diz

que cada pessoa tem seu orixá, que é o portador do axé, pois o axé é força da dinâmica,

do vir a ser, da concretização da vida. A ausência do axé interrompe o processo de

integração da pessoa. É a força do axé que pode levar a pessoa em direção à verdadeira

harmonia. Sem axé, não há integração (Beniste, 1997).

A manutenção da vida, na compreensão do candomblé, não é algo espontâneo.

O ser humano é, em grande parte, responsável por essa manutenção. E vida é

entendida aqui tanto como vida pessoal quanto a vida em geral, que também necessita

de axé para desenvolver-se. A religião busca oferecer ao ser humano o caminho que

garante essa dinâmica. Com isso, o ser humano tem, na visão do candomblé, uma

Page 47: A morte no candomble

39

grande responsabilidade. Ele não é visto apenas como indivíduo, mas como membro de

uma comunidade e, como tal, toma parte no todo do sistema. Ele não é entregue a si

mesmo, mas é parte de um todo. Para o candomblé, a integração de cada indivíduo só

pode ser alcançada por meio do caminho da comunidade. O processo de troca entre

Orum e Aiye só pode acontecer no caminho da experiência religiosa dentro da

comunidade. O ser humano encontra a sua integração e contribui para manutenção da

vida enquanto cumpre suas obrigações na comunidade, enquanto não se fecha em si

mesmo, mas está disposto e aberto ao dar, ao oferecer. Somente pela troca a vida pode

ser mantida. Nessa troca, os dois lados – seres humanos e orixás – precisam participar,

caso contrário não há troca. Não há nenhuma auto-realização ou autointegração. Cada

qual depende do sistema como um todo, e o sistema como um todo depende da

participação de cada um. O candomblé investe na realização e no desenvolvimento do

indivíduo, acreditando que um indivíduo melhor contribuirá para o desenvolvimento de

um grupo melhor.

O ritual de iniciação

Os ritos, segundo Turner (1969/1974), buscam reconciliar o visível e o

invisível, reconciliação essa que não admite atalho, na qual somente quando o caminho

do desconhecido para o conhecido for totalmente percorrido é que se poderá olhar para

trás e compreender e dar sentido à sua forma final. O ritual recria, assim, um espaço

onde a vida, ou algum aspecto dela, pode ser refeito para ser resignificado.

No candomblé, a feitura de santo representa, para o iniciado, essa resignificação,

uma nova vida e a construção de uma nova personalidade. Baudrillard (1976, p.179)

afirma que a iniciação é um tempo de operação simbólica, “não visa conjurar, nem

superar a morte, mas articulá-la socialmente”, de forma que o iniciado morre

“simbolicamente” a fim de renascer ou, no dizer de Monique Augras (1995, p.180), a

Page 48: A morte no candomble

40

experiência de “fazer o santo” condensa todo um roteiro inciático, incluindo a vivência

da morte, na paradoxal associação de presença e ausência. Após essa morte simbólica o

iniciado ficará a cargo de seus “pais iniciáticos, que os instruem, os curam e os

formam”. A partir da iniciação, o filho de santo terá uma nova família - família de santo

- com um novo pai ou mãe de santo e os diversos irmãos de santo, já pertencentes a

essa família. Receberá um novo nome, e por ele será chamado e reconhecido, adquirirá

novos hábitos e selará um compromisso com seu orixá e seu pai ou mãe de santo

(Beniste, 2001). A iniciação se constitui, assim, em uma troca, uma morte dada e

recebida ou, recorrendo, ainda, a Baudrillard (1976, p.180), é necessário que o iniciado

“tenha feito o percurso da vida e da morte para entrar na realidade simbólica da troca”.

Na feitura de santo o percurso se dá no período de reclusão para que a troca se dê entre

o iniciado e seu orixá.

Segundo Verger (1981, p.44), “todos os seres humanos possuem, em potencial,

numerosas tendências e faculdades que ficam em estado de vigília”; a iniciação tem por

objetivo ressuscitar no iniciado aspectos dessa personalidade escondida, “aqueles

correspondentes à personalidade do ancestral divinizado”.

O iniciado obedecerá às etapas classificadas por Van Gennep (1978) como ritos

de passagem. Será temporariamente separado de sua vida social e do restante de seu

grupo religioso. Por ocasião da feitura de santo, caberá uma dura preparação com

reclusão média de 21 dias, o período liminar, onde ele será submetido a um treinamento

rigoroso e metódico, estudo de sensações e o aprendizado de como ordenar e controlar

as manifestações de seu orixá. Durante todo o período de recolhimento, a pessoa não

estará com sua consciência desperta, não terá contato com pessoas de seu mundo

habitual, mas apenas com as pessoas já iniciadas da casa de santo, que cuidarão dela

durante todo o tempo de recolhimento, e não poderá, em nenhuma hipótese, receber

notícias do mundo de fora.

Page 49: A morte no candomble

41

Podemos repetir com Turner (1969/1974, p.118) que o iniciado aqui se

apresenta em “uma condição oprimida, pelo espaço restrito em que está colocado, tanto

físico quanto de expressão, uniforme, para que seja moldado e dotado de novos

poderes” – o poder do orixá e, assim, capacitado a angariar um novo status dentro da

comunidade e da vida. O próprio nome do aposento sagrado onde o iniciado ficará

recluso durante todo esse período já nos fornece a confirmação de passagem: roncó, que

significa “caminho”. O processo da iniciação é, assim, o caminho que “permite a

interiorização e a mobilização de elementos simbólicos ou espirituais, individuais e

coletivos, que transformam o ser humano num verdadeiro altar vivo, no qual pode ser

invocada a presença do Orixá” (Santos, 1975, p.44) e, complementando com Augras

(1883, p.17), a iniciação fará com que o iniciado passe por um conjunto de ritos que o

levará “aos começos do mundo, às origens do ser”.

Como já dissemos, no candomblé tudo deve ser aprendido com os olhos e os

ouvidos. A observação é a porta do aprendizado, pois todo o conhecimento é

transmitido pela fala e, se “a palavra adquire tal poder de ação, é porque ela está

impregnada de axé, pronunciada com o hálito – veículo existencial – com a saliva, a

temperatura” (Santos, 1975, p.45). Embora já exista na literatura a descrição de alguns

dos ritos da iniciação, como no livro Orixás, (Verger, 1981), a experiência deverá ser

exclusivamente vivida e, pela intensidade dos rituais, os livros não poderão preparar o

iniciado para a relação que ali se estabelece com o seu orixá.

A iniciação é uma preparação, a sacralização da cabeça do iniciado para que ela

possa receber seu orixá. O orixá se manifesta para reforçar a vitalidade do seu filho e

essa energia se espalhará por toda a comunidade da casa de santo.

Durante o recolhimento o iniciado aprende as danças, as rezas, como se

comportar, o repertório de cantigas do seu orixá. Após esse período liminar, de

recolhimento, o iniciado, agora com status de Iaô, terá a festa de saída de barco – final

do período de reclusão, caracterizando-se a terceira etapa do processo ritual de Van

Page 50: A morte no candomble

42

Gennep (1978), a reagregação. O nome barco expressa a essência do rito de passagem

que é a iniciação, significando encostar-se à outra margem da vida mística (Augras,

1983). Nessa festa pública, saída de barco, o Orixá apresentará o seu nome e é por esse

nome que o iniciado agora será chamado. Segundo Augras (1983, p.17), a

transformação à qual o iniciado foi submetido é tão grande que ele “tornou-se outro”.

Os nomes no candomblé são revestidos de grande significado, pois “todo nome possui

características próprias. A ninguém é dado um nome sem que haja razão para isso, e

todos eles, invariavelmente, exprimem alguma história – relacionada com

acontecimentos, atributos, caráter ou personalidade do orixá” (Beniste, 1997, p27).

Assim, o novo nome do iniciado fará referência, obrigatoriamente, ao seu Orixá ou às

coisas a ele ligadas.

Após esse período de reclusão, no dia seguinte à saída de barco, o iniciado passa

por um ritual – Panã, que significa “final do castigo”, quando o iaô vai recuperando sua

consciência e reaprendendo, com as outras pessoas do culto, os gestos e hábitos da vida

comum, imitando atividades simples como lavar, passar, cozinhar, lidar com dinheiro,

etc. (Verger, 1981). Mas o período de aprendizado e restrições ainda não acabou para o

iaô e, durante três meses, ele será submetido a diversas obrigações – só usar roupa

branca, ter a cabeça coberta, portar o kelê (colar) no pescoço, estar presente em todos os

rituais da casa de santo, dormir, sentar e fazer as refeições no chão, rezar duas vezes ao

dia, ao nascer e cair do sol – e proibições: não comer determinados alimentos, não ir a

lugares com grande aglomeração de pessoas, não gritar ou falar alto, não andar com a

cabeça erguida dentro da casa de santo, etc., porque agora o iniciado é depositário da

força divina e deve cuidar para que ela se mantenha intacta (Augras, 1983).

A partir da iniciação, ou feitura de santo, a pessoa não será mais a mesma, terá

uma vida dupla: dois nomes, duas famílias, duas casas, obrigações constantes a cumprir,

em sua vida cotidiana e em sua vida na casa de santo, e um juramento de aliança que

não mais poderá ser quebrado com seu orixá, aliança forjada entre o eu e o Outro em

Page 51: A morte no candomble

43

mim. Essa relação pressupõe uma contínua troca, na qual o iniciado não está à mercê de

seu orixá, mas participa com ele, por meio dos ritos, de sua força sagrada ou como diz

Prandi (2005), “os ritos são sempre individuais, portanto a experiência de cada um não

pode ser transferida aos demais” (p.12).

A vida dupla, a que o iniciado estará então submetido, fará com que ele precise

integrar dois mundos que poderão entrar em conflito, quanto ao tempo de dedicação

aos rituais religiosos e à vida familiar, social, profissional, além do preconceito que

ainda pode ser verificado em relação às religiões afro-brasileiras. A depredação das

estátuas dos Orixás na prainha do Lago Paranoá, em Brasília, é apenas um exemplo de

que a religião ainda encontra resistências em sua forma de expressão.

De outro lado, precisará conviver com sua própria história, sua personalidade e

aprender a se relacionar com seu orixá, agora manifestado em determinados rituais e

seu Erê, que lhe deixará recados, pedidos e lhe parecerá um estranho, quanto aos seus

desejos e comportamentos, dos quais tomará conhecimento através das ekédis e dos

ogans que tomam conta dele quando manifestado. Capone (2004) diz que “a possessão

funciona como um multiplicador de identidade e não como um despojamento da

identidade em favor de um agente possuidor externo” e que disso resulta “uma

pluralidade de vozes: a identidade se define pela multiplicidade” (p.36).

Completados sete anos da feitura de santo, e cumpridas todas as obrigações daí

decorrentes no primeiro e terceiro anos de iniciação, o iaô torna-se ebomi (meu irmão

mais velho) e adquire o direito de ter seu próprio terreiro ou de tornar-se mãe ou pai

pequeno, “com a bênção e a autorização de seu pai ou mãe de santo” (Verger, 1981,

p.48).

Page 52: A morte no candomble

44

O significado da morte no Candomblé

Prandi (2001, pp. 481/484), nos fala da passagem de uma história do

candomblé, onde podemos ler:

Quando morre um sacerdote de Ifá, dizem que seus apetrechos de adivinhação

devem ser deixados numa corrente de água. Quando morre um devoto de

Xangô, dizem que suas ferramentas devem ser despachadas. Quando morre um

devoto de Oxalá, dizem que sua parafernália deve ser enterrada. Mas quando

os seres humanos morrem a cabeça nunca é separada do corpo para o enterro.

Não. Lá está o Ori. Lá vai ele junto com o seu devoto morto. Somente o Ori

pode acompanhar para sempre seu devoto, a qualquer lugar. Pois o Ori é o

único que pode acompanhar seu devoto numa viagem sem volta além dos

mares...

E, mais além, em outra passagem:

“Ori resolveu não nascer de novo. Ori só nasce uma vez”.

Dessas duas passagens, podemos apreender a fala do candomblé sobre a vida no

aqui e agora. Se Ori é a representação da individualidade do ser humano, com toda a

construção de sua personalidade e de tudo aquilo que o constitui enquanto ser

diferenciado de seu Orixá, e se “Ori só nasce uma vez”, podemos inferir que, para o

Candomblé, nada resta do ser individualizado após a morte, nem existe caminho de

retorno individual, uma vez que “Ori é o único que pode acompanhar seu devoto numa

viagem sem volta além dos mares” (Prandi, 2001, p.481).

Page 53: A morte no candomble

45

Para o povo de santo, a alma humana não é indivisível como na concepção

judaico-cristã, mas composta de diversas partes imateriais, sendo o orí aquela que

existe no presente, enquanto se vive no aqui e no agora. O orí é destruído juntamente

com o corpo material. O egun é a parte constituída da memória que a família do morto

passa a cultuar, e o orixá particular, considerado o antepassado remoto, “ínfima porção

do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo do ser humano com o divino, o passado

mítico e o mundo total” (Parndi, 2005, p.37).

O orixá é o elo de união que tudo perpassa e perpetua para além da vida – não

do indivíduo, pois essa se esvai – mas da vida como um todo, do ancestral divinizado,

da dinâmica que não cessa. Esse é o objeto de culto do Candomblé: O orixá, portador

do axé, da energia necessária à manutenção da vida sobre a terra.

Cada ser humano que nasce traz consigo essa energia, esse orixá; daí que, para o

candomblé, todo indivíduo descende de um orixá, é dito seu filho. Cada filho de um

orixá carrega uma parte desse pai. É o ancestral divinizado, a grande energia se

dividindo entre sua descendência e, quando um filho dessa descendência morre essa

energia retorna à sua origem, é reintegrada pela grande energia primordial.

A morte está inscrita na trajetória da vida e, quando uma pessoa iniciada se vai,

é preciso reestruturar todas as relações dentro do sistema, assegurando, assim, a

correta distribuição da força sagrada (Augras, 1983).

Os vínculos do iniciado com o mundo do Aiye devem ser desfeitos e o rito

funerário visa desfazer esses laços de compromisso, liberando as partes espirituais que

compõem a pessoa e, simbolizando essa própria ruptura, os objetos sagrados do morto

são partidos, quebrados, desfeitos e despachados (Prandi, 2005).

O ritual do axexê, embora varie de terreiro para terreiro e hoje sejam dedicados

apenas às pessoas mais ilustres da comunidade de santo, segundo Prandi (2005, p. 61),

atende aos procedimentos básicos de inversão da iniciação, onde sempre está presente: “

1) música, canto e dança, 2) transe, com presença pelo menos de Iansã incorporada, 3)

Page 54: A morte no candomble

46

sacrifício e oferendas variadas ao egun e a orixás ligados ritualmente ao morto, sendo

sempre e preliminarmente propiciado Exu, que levará o carrego e os antepassados

cultuados pelo grupo, 4) destruição dos objetos rituais do falecido (assentamentos,

colares, roupas, adereços, etc.), podendo parte permanecer com algum membro do

grupo como herança, 5) despacho dos objetos sagrados “desfeitos” juntamente com as

oferendas e objetos usados no decorrer da cerimônia, como os instrumentos musicais

próprios para a ocasião, esteiras, etc.”

Após essas providências, que se desenrolam durante a cerimônia do axexê, o

egun está livre para ir embora; da mesma forma o orixá ou orixás pessoais do iniciado

morto já não possuem mais os seus assentamentos, seus vínculos foram rompidos; o orí

partiu junto com seu dono e, portanto, nada mais pertence ao morto, nada mais o

prende ao terreiro.

Para Prandi (2005, p. 66), a feitura do orixá não faz sentido se não forem

realizados os rituais do axexê quando da morte do iniciado, porque “o ciclo

simplesmente não se fecha e a repetição mítica, tão fundamental no conceito de vida

segundo o pensamento africano, não pode se realizar”.

O axexê é, pois, o ritual que fecha a ligação estabelecida entre o orixá (potência

divina) e a sede da individualidade (iniciado). Com a morte, a junção desaparece. O axé

do iniciado falecido é reincorporado ao potencial coletivo, afirmando-se, assim, a função

despersonalizadora da morte (Augras, 1983).

Page 55: A morte no candomble

47

CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA

2.1. Fenomenologia: a busca do mundo vivido

Recorrendo a Augras (1995), trouxemos, nesse trabalho, a visão da psicologia

em sua dimensão de produto cultural, buscando a especificidade do grupo observado

em relação à cultura em que se insere e o momento histórico dessa inserção.

No presente estudo, isso implicou buscarmos compreender o indivíduo

contemporâneo, ator do século XXI, sujeito a todas as influências do mundo moderno e

que, nele atuando também como sujeito influenciador, permite-se trazer ensinamentos

contidos na tradição milenar do candomblé e agregá-los em seu modo de vida

moderno, buscando operar um resgate do passado, tornando-o, assim, novamente

presente. Augras (2002, p.31) nos ensina que “o passado não é imutável, pois o

significado de um acontecimento se transforma juntamente com a história do indivíduo

(...) nessa perspectiva, não é o passado que determina o presente, nem este o futuro. Ao

contrário, é o sentido da trajetória do ser que modifica a significação do passado e do

presente”.

O antropólogo Herskovits, em 1948, cunhou o termo “enculturação”, para

definir a influência cultural da sociedade sobre o indivíduo, sugerindo com isso a

necessidade de um olhar da psicologia para a cultura, como forma de compreender

como essa influência adapta o indivíduo às normas da sociedade da qual ele faz parte e

como esse indivíduo desenvolve, assim, sua visão específica de mundo. Ainda segundo

Herskovits, esse processo de “enculturação”, ou socialização, como é mais usualmente

utilizado, não apenas conforma o indivíduo a uma conduta rígida segundo os modelos

culturais específicos, mas permite também que esse mesmo indivíduo opere mudanças

dentro do grupo social em que vive (Augras, 1995).

Page 56: A morte no candomble

48

Na estrutura dinâmica entre indivíduo e sociedade, ou indivíduo e cultura, é

possível buscar compreender, e não explicar – como tão bem nos lembra Augras (1995)

– as formas pelas quais se dá a expressão e construção de um indivíduo ou um grupo

em uma determinada cultura, atendendo assim ao propósito da psicologia da cultura.

Para os fiéis do candomblé, a construção da realidade permite integrar não só

“aspectos contraditórios da realidade interna e externa” (Augras, 1995, p.22), como

também presentificar, atualizar, formas anteriores de significação do mundo.

E no universo do candomblé, onde presente e passado se fazem no aqui e agora,

a fenomenologia nos indicou o acesso mais apropriado para tentarmos compreender

como se dá essa junção, essa união de momentos históricos distintos que podem

apontar para um entendimento de como esse indivíduo se relaciona com o objeto desse

trabalho: a concretude da morte e seu inevitável encontro com ela no futuro.

Já aprendemos com Augras (1983, p.23) que o “único modo de aproximar-se da

realidade do outro é construir pelo diálogo, conjuntamente com esse outro, o

testemunho do encontro” e, ainda com a autora, concordamos que “o campo do sagrado

é um espaço peculiar da vivência humana” (p.77), que não pode conter pré-julgamentos,

que se manterá encoberto por qualquer tipo de preconceito, que se fará silenciar ao

menor indício de rotulação ou categorização.

Dessa forma, a fenomenologia nos permitiu mantermos o julgamento em

suspenso, entendendo que todo o enunciado do indivíduo é significativo, considerando

que o evento que ele relata é aquele que se investe de importância para ele, e não

outros, e que, por esse motivo, é esse relato que é carregado de valor, qualificando sua

vida (Augras, 1983).

Na prática fenomenológica, privilegia-se o encontro ao invés da interpretação,

tornando o outro parte do conhecimento que se espera construir; o pesquisador abre-se

ao diálogo, à troca, à possibilidade de reformulações e transmutações do saber (Augras,

1995). É necessário reconhecermos o objeto e atribuirmos-lhe valor e significado, e não

Page 57: A morte no candomble

49

nos limitarmos apenas ao registro da realidade, uma vez que essa realidade não é dada

a priori, mas construída, modificada, resignificada.

Amatuzzi (2001) nos diz que a pesquisa fenomenológica é uma pesquisa de

natureza, porque ela pretende clarear o fenômeno, dar conta do que acontece, o que

significa dizer que, nessa pesquisa, o que procuramos foi compreender e não verificar

uma realidade. Buscamos o relato de uma experiência vivida, “não a estrutura de

pensamento subjacente revelada pelo uso de determinadas palavras, não desejo oculto e

camuflado pelo discurso”. Em uma análise fenomenológica, o que conta é a experiência

vivida e não a opinião da pessoa que relata. “Dizer a experiência. O vivido não é

necessariamente sabido de antemão. É no ato da relação pessoal, quando surge a

oportunidade de dizê-lo, que ele é acessado”. O autor enfatiza que o vivido é

surpreendido na relação e que, facilitada pelo pesquisador, a pessoa então o comunica.

É por essa razão que podemos dizer que a pesquisa fenomenológica não tem sujeitos

que fornecem dados ou informações, mas participantes, colaboradores pensando juntos

o assunto, pensando-o com a novidade da primeira vez. “Surpreender o vivido no

presente, quando a experiência da pessoa é pensada de repente e dita como pela

primeira vez, isto é o objetivo de uma entrevista fenomenológica” (pp.10/18). A

pesquisa fenomenológica é, nesse sentido, mobilizadora por que refaz o sujeito no

relato de sua experiência vivida.

Assim, no presente trabalho, guiamo-nos através do olhar da psicologia da

cultura e buscamos compreender os fenômenos com os pressupostos da pesquisa

fenomenológica.

Page 58: A morte no candomble

50

2.2. Tempo e Espaço: o palco da pesquisa

Como já descrevemos anteriormente, o espaço definido como palco da pesquisa

foi o Axé Baraleji, Terreiro de Candomblé da Sociedade Beneficente Religiosa Africana

Ile Owom Omo Omolu, localizado na cidade de Santo Antônio do Descoberto, estado de

Goiás, distante 45 km de Brasília. O templo, de responsabilidade do Babalorixá Tito de

Omolu, desenvolve suas atividades religiosas no entorno do Distrito Federal há trinta

anos, sendo um templo oriundo do candomblé de nação Ketu.

A pesquisa desenvolveu-se ao longo de dois anos, quando foi possível trazer

para esse trabalho vivências de campo pela observação e participação da pesquisadora

que possui diversos anos de convivência com essa comunidade. O objeto de pesquisa

nasceu, justamente, da estranheza da pesquisadora ao se confrontar com realidades tão

distintas – o candomblé e a sociedade moderna – convivendo num mesmo tempo e em

espaços paradoxalmente tão próximos e tão distantes.

O tema da morte colocou-se com tal intensidade nessa estranheza e nessa

diferença que pareceu-nos imperativo dar-lhe voz.

Dessa forma, utilizando-nos da etnografia, buscamos apreender como a morte

se traduz em significado para a comunidade de santo do Axé Baraleji.

Necessário se faz aqui trazermos a questão da implicação da pesquisadora com o

grupo pesquisado. Sabemos que em pesquisas dessa natureza o pesquisador se vê, por

vezes, implicado, ainda que não faça parte do grupo como membro atuante,

reconhecido e que se reconhece como pertencente àquela comunidade. No presente

trabalho, a implicação da pesquisadora precisa ser vista de uma maneira particular, uma

vez que ela faz parte da comunidade, pertence a ela; daí que, no decorrer da pesquisa de

campo, foi preciso manter um maior rigor sobre si mesma, um permanente exercício de

proximidade/distanciamento, no sentido de que as suas impressões e vivências não se

mesclassem às impressões e vivências dos demais participantes da pesquisa, mas antes

Page 59: A morte no candomble

51

pudessem se complementar na produção de um conhecimento construído e não apenas

transmitido pela pesquisadora, obrigando-a a ter sempre em mente o alerta de Bardier

(2001, p. 101), “implicar-me consiste sempre em reconhecer simultaneamente que eu

implico o outro e sou implicado pelo outro na situação interativa”.

Dessa forma, cabe salientar que a pesquisadora constituiu-se como um dos

participantes da pesquisa, agregando três formas de participação: enquanto

observadora do ritual de axexê; quando vivenciou a iniciação, através da “feitura de

santo”; e na condução das entrevistas com os demais participantes da pesquisa. Augras

(1983, p.17), diz que “a fenomenologia da religião coloca, de imediato, o problema do

conhecimento nos termos da experiência vivida. É legitimo, portanto, que se apóie no

modelo gerado pelo seu próprio objeto, isto é, o saber iniciático”. Embora a autora não

empregue esse recurso metodológico em suas pesquisas, admite-o como alternativa

possível e consonante com a perspectiva fenomenológica.

Ainda que pesquisadora mantenha uma convivência de mais de vinte anos com

o grupo pesquisado, em diferentes níveis de relação (quinze anos como observadora,

sete anos como abiã – integrante de menor nível hierárquico no culto e,

posteriormente, como iniciada no grau de iaô), é importante ressaltar que a experiência

de morte vivida na comunidade se deu pela primeira vez no decorrer da realização

dessa pesquisa, tendo sido tão inédita para a pesquisadora como para o restante do

grupo.

2.3. Os participantes: colaboradores da pesquisa

Entre os fiéis do Axé Baraleji, foram selecionados filhos de santo, homens e

mulheres, com idade entre 25 e 50 anos, iniciados na religião com o grau mínimo de

Iaô, o que lhes permitiu viver a experiência da separação/liminaridade/reagregação

(Van Gennep,1978), ou de renascimento/morte, na reclusão do roncó, e a posterior

Page 60: A morte no candomble

52

reintegração ao grupo em um status diferenciado e capacitados, assim, a vivenciar com

maior intimidade a relação com o orixá. Além disso, todos os colaboradores da

pesquisa vivenciaram o ritual de axexê (ritual de morte), participando dos sete dias de

sua realização.

Os participantes, com nível de instrução superior, possibilitaram confrontar

com maior intensidade a realidade do mundo vivido do candomblé e as influências do

mundo moderno a que estão permanentemente expostos, permitindo surgir elementos

mais críticos na relação entre essas duas culturas pois, “ao descrever o mundo, o

homem retrata-se a si próprio (...) o mundo é criado pelo homem, através de um

conjunto de significados, que fazem do mundo a imagem do homem. Numa operação

inversa, a descrição do mundo pode ser tomada como ponto de partida para a descrição

do homem” (Augras, 2002, p.75/76).

A pesquisadora complementa o grupo participante, através da observação do

ritual do axexê e da vivência de sua iniciação como iaô.

2.4. Instrumentos e Procedimentos

2.4.1. Observação etnográfica:

A observação da pesquisadora da realização do ritual do axexê, realizado

por ocasião da morte da Ialaxé do terreiro pesquisado, foi um dos instrumentos da

pesquisa. A observação dos sete dias do ritual do axexê foi registrada pela pesquisadora

em um diário de campo, e as anotações apontadas imediatamente após o final de cada

dia, a fim de possibilitar uma transcrição, o mais fiel possível, do momento vivido

durante o ritual.

Page 61: A morte no candomble

53

Além da observação e experiência vivida do ritual de axexê, a obrigação de

feitura de santo (iniciação), à qual a pesquisadora se submeteu, constituiu-se em

instrumento de observação e experiência vivida do ritual e, mais importante, de

inserção em um mundo de sensações e percepções só acessíveis aos iniciados no

candomblé. Esse ritual importou em sua reclusão, ou recolhimento, por dezesseis dias

dentro das dependências do terreiro e mais três meses de cumprimento de diversos

ritos e restrições e resultou em um relato que traz desde as motivações de sua inserção

na religião, suas dúvidas e questionamentos de permanência na casa de santo,

passando, finalmente, por sua iniciação, após mais de vinte anos de convivência com a

comunidade e suas conclusões sobre essa significativa experiência.

2.4.2. Entrevistas semi-estruturadas:

Foi realizada uma entrevista piloto com um dos filhos de santo do Axé Baraleji,

com o objetivo de verificarmos a pertinência do roteiro elaborado para as entrevistas

com os demais participantes. Essa entrevista-piloto possibilitou correções no roteiro da

entrevista semi-estruturada e a observação da postura da pesquisadora frente ao seu

participante piloto, buscando aperfeiçoar, amadurecer e apropriar-se de uma postura

fenomenológica na condução das demais entrevistas.

A entrevista-piloto permitiu que fizéssemos alguns ajustes para a condução das

demais entrevistas a fim de torná-las mais fluidas, evitando que a racionalidade pudesse

contaminar a vivência dos participantes transformando-as em um discurso bem

elaborado.

A escuta dos relatos dos participantes foi feita por meio de entrevistas semi-

estruturadas, duas realizadas fora do terreiro e outras duas realizadas dentro do

terreiro de santo; a impressão inicial de que, dentro da comunidade religiosa os

participantes não teriam a oportunidade de uma maior entrega, nem a disponibilidade

Page 62: A morte no candomble

54

de tempo para o diálogo necessário com a pesquisadora, não se confirmou; nas duas

entrevistas realizadas dentro do terreiro os participantes se mostraram à vontade,

inclusive quanto ao tempo dispensado para a entrevista, e o restante da comunidade

tratou esse momento com respeito e distanciamento, como se ali se desenvolvesse um

ritual do qual não tinham sido chamados a participar.

O relato dos participantes apoiou-se em um fio condutor, com a chegada dos

participantes ao candomblé e os motivos que os levaram a cruzar as portas da religião;

um olhar sobre o curso de suas vidas, antes e após a chegada ao candomblé; como os

participantes estabelecem sua relação com as coisas da vida e da morte; e as vivências

de um ritual de axexê e de iniciação, experiências comuns a todos os participantes.

Após a realização das entrevistas semi-estruturadas procuramos obter, com os

participantes, a confirmação de que o que está dito pela pesquisadora pode ser por ele,

participante, reconhecido como experiência sua ou, no dizer de Amatuzzi (2001, p.19),

“se ele se reconhece no que o pesquisador lê do que ele diz”.

Seguimos com Amatuzzi (2001, pp. 21/22) na sistematização dos dados, em

quatro momentos distintos:

a) Ordenação ou clarificação do que foi dito no fluxo desordenado do encontro,

chegando-se à síntese da entrevista de cada um dos participantes. Essa

síntese foi mostrada ao participante a fim de obter sua confirmação do que

foi dito, para ver “até que ponto ele se reconhece no que eu digo dele”

(Amatuzzi, 2001).

b) Sistematização das sínteses das entrevistas, buscando-se chegar a uma

síntese coletiva. Segundo Amatuzzi (2001), esse é um “trabalho de separação

e de construção conceitual, que termina em uma estrutura geral do vivido”.

Page 63: A morte no candomble

55

c) Discussão dos resultados. Momento em que se buscou abrir os resultados

obtidos ao diálogo com pesquisas e teorias já dadas, a fim de clarear a

pesquisa dando forma ao objeto pesquisado. Nesse momento, o encontro

entre os três instrumentos da pesquisa – observação do ritual de axexê,

vivência do ritual de iniciação e entrevistas semi-estruturadas - foram

tecidos em conjunto na busca de um núcleo comum dessas vivências em

pertinência ao tema da morte pesquisado.

d) Elaboração do relatório final.

Page 64: A morte no candomble

56

CAPÍTULO 3 – UM OLHAR DE DENTRO: O CONTATO COM O MUNDO

VIVIDO DO CANDOMBLÉ.

A partir desse momento, no qual a pesquisadora entra em contato com o mundo

vivido pelos fiéis do candomblé e busca dar conta da compreensão do significado das

experiências de morte/vida pelos rituais de iniciação e, principalmente, de morte, os

textos serão registrados na primeira pessoa do singular, a fim de melhor retratar sua

relação de proximidade/distanciamento com o objeto pesquisado.

Durante o desenvolvimento desse trabalho, o Terreiro palco da pesquisa, Axé

Baraleji, experienciou a morte de sua Ialaxé, Verinha de Oxum – Oxum Omin Lade,

segunda pessoa em importância na hierarquia do Terreiro. A ela foram dedicados todos

os rituais de morte, conforme a tradição do candomblé.

Ainda no período de realização do trabalho, a pesquisadora submeteu-se ao

ritual de iniciação, cuja descrição compõe os instrumentos desse estudo.

A fala dos participantes da pesquisa, todos iniciados no candomblé, busca,

justamente, a compreensão de suas vivências nesses importantes momentos dentro da

comunidade de santo e de sua experiência individual: a iniciação (ritual de

renascimento) e o axexê (ritual de morte).

O texto a seguir descreve a vivência de todo o período transcorrido entre o

diagnóstico da doença da Ialaxé e sua morte, em dois anos de relacionamento dos filhos

de santo com a perspectiva da morte e, por fim, com sua concretude.

Page 65: A morte no candomble

57

Quando sobre nossas cabeças,

O sol a pino, que revela todos os segredos,

Expulsar as sombras e o frio

E os tambores chamarem o Dono do Mundo,

O senhor que traz nas botas a poeira de todos os caminhos

E na bagagem, ossos de todas as refeições, pediremos:

Exu, pai que nos inventou únicos e diferentes de cada um,

Estamos prontos pra nos enxergarmos iguais a todo outro.

(Alexandre Dante)

O Axé Baraleji é um terreiro de candomblé localizado na cidade de Santo

Antônio do Descoberto, estado de Goiás, a 45 km de Brasília. De origem Ketu, sob a

liderança do Babalorixá Tito de Omolu, essa casa de santo segue as tradições do Axé

Opo Afonjá, de Salvador/BA, comandado pela mãe Stella de Oxossi, de quem Tito de

Omolu é filho de santo.

O Axé Baraleji é uma casa completa, com todos os espaços destinados ao

sagrado e ao urbano, e conta, atualmente, com oitenta filhos de santo. Entre seus filhos

estão pessoas de todas as raças e classes sociais. Entre os filhos com curso superior, a

casa conta com um médico, dois advogados, um economista, duas jornalistas, dois

publicitários, um fisioterapeuta, uma psicóloga, uma profissional de educação física e

três professores. São pessoas com formação em várias áreas do conhecimento, ligados

no Axé por um objetivo comum: o culto aos Orixás. Essa posição privilegiada na vida

social e profissional dessas pessoas não é, na casa de santo, garantia de privilégios.

Todos eles têm que passar pelos rituais de iniciação e respeitar a posição angariada

pelos demais por antiguidade no culto. É comum que essas pessoas, com formação

superior, sejam inferiores, hierarquicamente, a muitos outros filhos de santo sem

Page 66: A morte no candomble

58

nenhuma formação acadêmica. Também é comum que muitas dessas pessoas, de idade

mais avançada, tomem a benção de outros, mais jovens na faixa etária, mas mais

“velhos de santo”.

Não é de admirar que tantas pessoas que ingressam nas casas de santo não se

adaptem. É preciso deixar do lado de fora do muro todas as posições e os papéis

desempenhados na vida social e se integrar na comunidade, com regras muito distintas

das praticadas lá fora. É uma prática de humildade, um abrir mão de confortos

conquistados, um aprendizado de um tipo diferente de relacionamento, no qual o que

vale é o tempo, contado em anos, de dedicação ao orixá.

Mas isso, obviamente, não é fácil e essas relações não se dão sem conflitos. Na

contramão dos filhos de santo com boas condições financeiras e bom nível educacional,

que têm que se submeterem aos “mais velhos de santo” – às vezes sem formação e de

nível social mais baixo – esses, por sua vez, se valem de sua “antiguidade” para dirigir

um tratamento hostil aos “privilegiados” no mundo “lá fora”, cabendo ao pai de santo

administrar esses conflitos e procurar manter a comunidade em harmonia. É comum

também observar que alguns filhos de santo “bem situados” recusam-se a ocupar a

posição inferior que às vezes lhe cabe, geralmente resultando em seu abandono da casa

de santo e outros que, investidos de altos cargos, não se furtam de utilizar sua posição

para exercer um poder, às vezes, tirânico. Segundo Prandi (2005), “as contendas

dentro dos terreiros e entre eles não somente são vividas, mas são apontadas como

inteiramente esperadas” (p.149), uma vez que o mundo é um território competitivo e

conflituoso. Para Capone (2004), os conflitos internos no candomblé, sempre

manifestados através de fuxicos, desempenham um papel de reordenador interno, como

mecanismo de reduzir as tensões e reorganizar as relações de poder dentro do grupo,

porque, segundo a autora, “contestar a legitimidade de outro permite afirmar sua

própria legitimidade. Em contrapartida, as acusações internas visando a pessoas que

ocupam posições hierárquicas distintas questionam a organização do terreiro”, e a

Page 67: A morte no candomble

59

autora continua dizendo que com o fuxico-de-santo, como é conhecido pelos adeptos da

religião, “o grupo de culto reproduz a lógica interna da sociedade brasileira, altamente

hierarquizada e estratificada” (p.151/152).

Durante quinze anos freqüentei essa casa de santo como assistente,

comparecendo apenas nas festas de santo. Há sete anos, submeti-me ao primeiro ritual

de iniciação, com a realização de um bori (obrigação dada à cabeça), e assentamento dos

meus Orixás. Mais recentemente, fiz a obrigação de iaô, ou “fiz o santo”, como se diz no

candomblé. São no total, mais de vinte anos de observação e convívio com os membros

da casa, hoje, irmãos de santo.

Durante os anos de 2003 e 2004, a casa vivenciou a doença da Ialaxé Verinha de

Oxum, esposa do Babalorixá Tito de Omolu. Acometida por um câncer de rápida

progressão, ela veio a falecer, no final do ano de 2004.

Nesses dois anos, entre o diagnóstico da doença e seu falecimento, a casa como

um todo vivenciou o que Kübler Ross (1969), caracterizou como os cinco estágios do

processo diante da morte: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação.

Alguns filhos de santo abandonaram o processo no caminho, deixando a casa. É

possível que esses filhos acreditassem que a religião poderia mantê-los afastados de

todo infortúnio, comuns à existência humana. Ancorados, não na compreensão da

totalidade da religião, mas buscando a garantia de que, pertencendo ao mundo do

orixá, tornavam-se inatingíveis pelas coisas da vida, não puderam suportar a perda da

fantasia de que, uma vez pertencendo a uma comunidade de santo, estariam protegidos

de todo mal. O mundo do candomblé, que opera com forças e rituais que fogem à

racionalidade, não raro transmite a seus adeptos a idéia de onipotência. Muitos são os

que buscam a religião como forma de solução de problemas onde todos os outros

recursos falharam e, acreditando nessa redoma de proteção, quando ela se trinca, os

questionamentos tendem a ressurgir.

Page 68: A morte no candomble

60

Os que permaneceram na casa de santo vivenciaram o estágio da negação,

quando se buscou acreditar que os primeiros sintomas estavam associados a outros

tipos de doenças, sem gravidade. Na confirmação do diagnóstico ainda se procurou

negar que esse tipo de mal poderia ser uma sentença de morte, uma vez que se tratava

de uma Ialaxé, e que isso seria superado. Acreditou-se mesmo que ela estava curada,

após um tratamento rigoroso em São Paulo. Ocorre que, apesar de jovem para morrer

– ela tinha apenas 53 anos – e ser discurso corrente no candomblé de que os iniciados

na religião têm vida longa, por viverem em harmonia física e espiritualmente, a família

carnal da Ialaxé trazia um longo histórico da doença, já tendo perdido vários de seus

membros para o câncer.

Morrer aos 53 anos pode ser considerado precoce, tanto na cultura ocidental

moderna, na qual a expectativa de vida em nosso país já rompeu a barreira dos 70 anos,

e mais ainda para o candomblé, onde, a princípio, espera-se vida longa para os iniciados

investidos de altos cargos.

Pais e mães de santo costumavam, facilmente, ultrapassar os 100 anos de vida,

resguardados em seus terreiros, vivendo harmonicamente com a natureza e sendo-lhes

dispensado todo o cuidado por parte da comunidade de santo. Nos dias de hoje, onde o

terreiro está integrado na sociedade como um todo e seus membros convivem em

ambos os espaços, não há mais a proteção e o isolamento dos tempos passados. Os

perigos modernos, como novas doenças, violência urbana e acidentes, alcançam o povo

de santo tanto quanto o cidadão moderno. O mundo moderno invadiu o candomblé e a

religião sofreu adaptações ao longo dos séculos; não é uma aldeia fechada em seus

princípios, mas uma ilha cercada pela modernidade e, embora os fiéis pratiquem rituais

muito antigos, são todos filhos de um mundo que insiste em transpor os muros do

terreiro.

Quando a doença se impôs como realidade, alguns filhos de santo deixaram a

casa. Quebrada a ilusão da infalibilidade, não puderam acompanhar e suportar o

Page 69: A morte no candomble

61

processo de perda. Caído o manto da proteção absoluta, a religião perdia, para esses, o

valor e o significado. Os demais procuravam ignorar a situação e viviam como se essa

fosse uma realidade que pudesse não se confirmar, na esperança de que viesse o

milagre. Mas ele não veio.

O estágio da raiva seguiu-se logo depois, quando uma irritação tomou conta do

grupo. Era nítida a falta de paciência de uns para com os outros e uma apreensão com o

que estava por vir. Nessa fase, a Ialaxé ainda freqüentava a casa e, com ela mesma

atravessando esses estágios, deixava transparecer em seu comportamento a expressão

dessa raiva, dirigida aos filhos de santo. Foi o momento em que mais alguns desses

filhos deixaram a casa. Aqui, parece ter falhado os laços de parentesco espiritual que o

candomblé pretende fortes.

Atravessamos o estágio da barganha na realização de diversas obrigações aos

orixás para que ela pudesse se recuperar. Esse estágio foi longo, tendo consumido

vários meses de luta e expectativa.

Na verdade, foi possível perceber que o estágio da barganha, da troca como se

costuma dizer no candomblé, teve início antes mesmo desse terceiro estágio. As trocas

permearam todas as fases do processo, atravessando a negação e a raiva e estendendo-

se até os estágios da depressão e aceitação.

Como o sistema de crenças do candomblé está ancorado no eterno movimento

da troca, do dar e receber, não causa espanto o fato das trocas estarem inseridas em

todos os momentos, já que para o candomblé assim é, desde sempre. A partir daí,

nenhum filho de santo deixou mais a casa, todos permaneceram unidos, numa batalha

que se mostrou, mais uma vez, perdida.

O quarto estágio afastou de nosso convívio a presença física da Ialaxé.

Debilitada, ela se recolheu em sua casa na cidade e deixou de freqüentar a casa de

santo. Mas, paralelamente à depressão que ela experimentava, vivenciamos uma

depressão coletiva, onde deixou de ser agradável participar dos rituais da casa. Caiu

Page 70: A morte no candomble

62

uma tristeza sobre o terreiro e esse sentimento pôde ser percebido, e vivido, por todos

aqueles que percorreram os estágios anteriores. É importante ressaltar que, embora a

maioria dos membros da casa tenha percorrido esse caminho, alguns ficaram fixados no

primeiro estágio, procurando negar a realidade, apesar de todas as evidências.

A aceitação chegou ao final de sua doença; sabíamos do pouco tempo que lhe

restava e passamos a aguardar o término de sua agonia, já esperando que viesse rápido,

para que ela, e na verdade o próprio grupo, deixasse de sofrer. Esse estágio traduziu-se

em uma suspensão do tempo para o grupo e teve duração de, aproximadamente, oito

meses. Comparecíamos aos rituais normais da casa e esperávamos. Embora as

atividades no Terreiro continuassem a ser realizadas, com o comparecimento mensal

dos filhos de santo para a realização do osé (limpeza das casas de santo), havia uma

expectativa silenciosa, como se nada mais, na casa de santo, pudesse se definir antes da

partida da Ialaxé. E assim foi, realmente, que as coisas transcorreram: um tempo de

espera, uma espera final.

A notícia da morte da Ialaxé nos chegou ao final da tarde de uma quinta-feira,

em seis de outubro de 2004.

A descrição desse período, entre o diagnóstico da doença e a morte da Ialaxé,

deve-se ao fato de ter julgado importante observar os estágios da morte, não pelo lado

da pessoa que a está vivenciando, mas pelo lado do outro, daquele que olha. Pelo que

pude observar, e vivenciar, o outro é atingido de forma violenta e, no caso de uma

comunidade unida por laços espirituais fortes, onde as relações são consideradas

familiares – a família de santo não difere muito de um núcleo familiar comum,

proporcionando a oportunidade de se verificar diversos comportamentos e reações

diante da realidade da morte.

Foi possível observar os filhos que preferiram negar a morte da mãe e,

recusando-se a vivenciar a perda, abandonaram a casa de santo. Aqueles que

permaneceram e participaram de todas as fases da doença, e aqueles que, em menor

Page 71: A morte no candomble

63

número, permaneceram na casa, retidos em uma ou outra fase entre os estágios da

negação e depressão. Conforme mencionado anteriormente, foi a expressão da vivência

coletiva dos cinco estágios da morte de Kübler Ross (1969).

É enriquecedor, aqui, trazer a vivência e os conflitos de um filho de santo em

especial, por traduzir de forma clara, e emocionante, a luta entre a cultura ocidental

moderna e a cultura milenar do candomblé. Esse filho de santo, iniciado na religião

desde a infância é, também, filho carnal da Ialaxé falecida. Para agravar sua batalha

entre duas culturas tão distintas, esse filho, formado em medicina, desempenhou um

duplo papel: lutar até às últimas forças contra a doença da mãe e, ao mesmo tempo,

buscar aceitar a morte como uma contingência natural da vida, segundo o candomblé.

Ninguém sofreu mais do que ele, embora ela tivesse outros parentes de sangue,

também integrantes da casa de santo. Ninguém negou mais, sentiu mais raiva, se

dedicou tanto às barganhas e se deprimiu tanto quanto ele.

Até à hora da morte dessa dupla mãe, ele desempenhou o papel que dele era

esperado pela cultura moderna, mas, quando ela se foi, ele se despiu desse papel e,

participando de todos os rituais, foi buscar a aceitação da morte na religião, porque essa

aceitação, no papel de médico, ele foi incapaz de praticar, até o momento final.

A Ialaxé permaneceu em casa até os últimos momentos de sua vida – em

contraposição à cultura moderna do afastamento do doente e seu isolamento nas

unidades de terapia intensiva – sendo conduzida ao hospital, após uma parada cardíaca

e vindo a falecer poucas horas depois. Após sua morte, foi levada de volta à casa e

deitada em sua cama. Ali permaneceu, como se dormisse, vestida com suas roupas de

Ialaxé, até o dia seguinte, quando foi velada à tarde, na capela do crematório.

Até onde se sabe, a cremação é uma prática recente incorporada pelo

candomblé. Em Brasília esse é o segundo caso do qual se tem notícia, sendo o primeiro

o do Babalorixá conhecido como Pai Paiva. No caso da Ialaxé Verinha de Oxum, foram

realizados determinados ritos para que a cremação fosse possível e suas cinzas foram

Page 72: A morte no candomble

64

depositadas na terra, como manda a tradição. A modernidade se faz mais uma vez

presente nessa antiga cultura, alterando-lhe o curso e a história.

O pai de santo saiu do hospital direto para o Terreiro, indo cumprir o primeiro

ritual: descer os assentamentos dos santos da Ialaxé e esvaziar as quartinhas com água.

De volta à casa na cidade, quando os assentamentos já estavam no chão e as quartinhas

vazias, o pai de santo realizou o segundo procedimento ritualístico, retirando da cabeça

da Ialaxé os fundamentos colocados por ocasião de sua feitura de santo, vinte e três

anos atrás.

Durante o velório, na capela do crematório, cantaram-se cantigas em ioruba e,

quando o sol se pôs, iniciou-se o ritual do Sirrum; o sol caía como se tivesse sido feito

para aquele momento, em que a Ialaxé também se despedia. O caixão foi carregado,

aberto, nos ombros de seis filhos de santo, todos homens. Os demais seguiram atrás,

como em procissão, vestidos de branco – a cor do luto no candomblé. Os quinhentos

metros que separavam a capela do local de cremação foram transpostos com uma

cantiga em ioruba, acompanhada por todos, e o ritmo dos passos eram marcados: três

passos para frente e um para trás. Esse ritual, levando a Ialaxé no seu último caminho,

representa o significado do caminho da vida. Caminhar e recuar, caminhar e recuar, até

os últimos passos da vida, representado pela morte.

3.1. O ritual do axexê – retorno às origens

A morte na sociedade moderna é vazia de sentido porque a coletividade não tem

mais participação nela; banalizou-se porque o indivíduo está banalizado, a célula

familiar está banalizada; deixou de ser luto e celebração coletiva, compartilhada. Cada

família enterra seus mortos.

Page 73: A morte no candomble

65

O candomblé não enxerga a morte dessa forma; toda a morte é social, coletiva,

devendo ser absorvida pelo grupo por meio de determinados ritos. Esses ritos são

permutados acima da cabeça do morto, “a morte é jogada e é conquistada

simbolicamente – o morto ganha aí o seu estatuto, e o grupo se enriquece com a

incorporação de um parceiro” (Baudrillard, 1976, p.221).

Foi dessa forma, para essa troca simbólica, que dois dias após a morte da Ialaxé,

reunimo-nos todos na casa de santo, para a continuidade dos rituais de morte. As

cinzas foram enterradas sob uma árvore sagrada do terreiro, cumprindo-se assim o seu

retorno à terra.

Os pertences pessoais da Ialaxé e seus assentamentos de santo foram dispostos

no chão do barracão, sendo determinado pelo jogo de búzios o destino desses

pertences. Os assentamentos de santos permaneceram na casa, por determinação do

jogo. Sendo a Ialaxé fundadora dessa casa de candomblé, ao lado do pai de santo,

ficaram para serem cuidados pela comunidade, não mais como assentamentos daquela

Ialaxé a quem pertenceram, mas como assentamentos de santos da casa. O

assentamento representando a cabeça da Ialaxé foi despachado, juntamente com outros

objetos de culto e de uso pessoal.

Após essa primeira cerimônia, foi marcada a continuidade dos rituais do axexê,

para dentro de dez dias, aguardando-se a chegada de uma Ebomi do Axé Opo Afanjá, e

de dois Ojés (sacerdotes do culto aos ancestrais), que viriam de Salvador para realizar o

restante do ritual: sete dias seguidos de celebração à Ialaxé falecida.

Page 74: A morte no candomble

66

O 1º dia de cerimônia

Antes do início do axexê, as Iabás preparam na cozinha as comidas que serão

utilizadas no ritual, para o Padê de Exu e para a Ialaxé falecida, que será homenageada.

Os Ojés realizam uma cerimônia secreta na casa dos Eguns. Ali não se sabe o que

se passa. Podemos apenas inferir pela literatura e por relatos que, nesse espaço, onde

poucas pessoas têm autorização para entrar, serão acumulados os materiais de todos os

dias das cerimônias e onde serão realizados os sacrifícios necessários, compondo o

carrego, sendo tudo despachado no último dia do axexê.

Após esses preparativos, inicia-se o primeiro dia do axexê, que começa

pontualmente às 21h. Todos os participantes, vestidos de branco e com os pés

descalços, entram no barracão de cerimônia e ficam sob esteiras no lado direito do

barracão. As pessoas pertencentes à família carnal da falecida são dispostas no lado

esquerdo do barracão, ficando separadas das demais. As roupas dos participantes

devem ser simples e as mulheres mantêm o peito coberto com o pano da costa, e a

cabeça com o ojá, durante toda a cerimônia. Sabe-se que essa providência busca uma

“camuflagem”: cobrindo os seios e os cabelos, as mulheres se passam por homens aos

olhos dos Eguns que virão participar da cerimônia.

No centro do barracão já estão dispostas as comidas que serão despachadas no

Padê de Exu, primeiro a ser homenageado, a quem se busca pedir licença para a

realização do ritual e garantir que ele levará ao Orum as oferendas e os pedidos em

relação à Ialaxé falecida.

Enquanto o ritual do Padê se desenvolve no centro do barracão, todos os

participantes, independentemente do cargo ou antigüidade na linha da casa, ficam com

os joelhos no chão e a cabeça apoiada sobre os pulsos, em sinal de respeito. Esse ritual

visa, além de pedir a licença e colaboração de Exu, convocar a força poderosa dos

ancestrais para participar do ritual.

Page 75: A morte no candomble

67

No axexê, os atabaques de couro, comuns nas demais cerimônias do culto, são

substituídos por cabaças e três Ogans da casa tocam as cantigas conduzidas pelo

responsável na realização do ritual.

Todos os participantes do primeiro dia do axexê estão obrigados a comparecer

nos seis dias subseqüentes, não sendo facultado a ninguém a ausência,

independentemente da posição no terreiro. O ritual do axexê é aberto ao público, não se

restringindo aos filhos da casa de santo, e essa regra de comparecimento também se

aplica às pessoas de fora, visitas, como são chamadas. Uma vez iniciado o ritual,

ninguém tem permissão para deixar o barracão, exceto os Ojés (sacerdotes no culto aos

ancestrais), até que a cerimônia da noite esteja concluída.

Após o despacho do Padê todos se levantam; no centro do barracão já está

colocada uma cabaça, com a parte superior aberta e uma vela acessa; essa cabaça

representa a Ialaxé falecida. Tem início, então, uma sessão de danças individuais, por

ordem de antigüidade na casa. Apenas os filhos de santo iniciados, os Iaôs e os filhos

com santo assentado participam da dança.

A dança começa com o filho de santo indo até à porta do barracão e tocando o

chão com sua cabeça, num gesto de homenagem a todos os ancestrais. Dirige-se ao

centro do barracão, onde está colocada a cabaça e a vela e toca o chão com sua cabeça,

numa saudação de respeito à Ialaxé falecida; com duas moedas – uma em cada mão

inicia a dança. Os demais participantes do ritual, agora independentemente da posição

que ocupam, podem ir até o iniciado que está dançando e colocar moedas em suas mãos.

O iniciado dança em volta da cabaça, recebendo as moedas dos demais participantes e,

quando os Ogans encerram sua cantiga, o iniciado deposita as moedas na cabaça e

retorna ao seu lugar na esteira. Um outro iniciado, por ordem de antigüidade, repete o

mesmo ritual de saudação aos ancestrais à porta do barracão, à cabaça no centro do

barracão, e inicia sua dança; segue-se novamente o movimento dos demais em depositar

Page 76: A morte no candomble

68

moedas em suas mãos e assim o ritual transcorre, até que o mais novo dos iniciados da

casa tenha realizado sua dança individual.

Têm início então uma nova parte do ritual onde dançam, em conjunto, os filhos

de santo que possuem santos iguais aos da Ialaxé falecida; no caso desse ritual, os filhos

de Oxum e Oxossi. Depois, após esse grupo ter retornado ao seu lugar, os filhos de

Omolu e Nanã - orixás ligados à morte, realizam, também, uma dança conjunta.

Por fim, as filhas de Iansã são chamadas ao centro do barracão. Nas cantigas

tocadas nesse momento, as filhas de Iansã viram nos seus santos e buscam, no cômodo

contíguo ao barracão, as comidas que já estavam preparadas e as depositam em volta da

cabaça, no centro do barracão; depois, vão se posicionar ao lado esquerdo da cabaça.

Após o fechamento desse primeiro ciclo, todos os demais dançam, em uma roda,

em volta da cabaça, voltando, depois, aos seus lugares e, de pé, assistem a uma parte do

ritual, proferida em ioruba, pelos dois Ojés, que, munidos de seus ixãs (espécie de vara

de madeira, utilizado para manter os Eguns à distância), dançam e conversam entre si.

Essa parte do ritual possui uma grande força e energia, no entanto, para a

grande maioria dos participantes parece ser ininteligível, uma vez que não se consegue

acompanhar a língua ioruba falada por eles. Faz parte do segredo do culto e, no

Candomblé, ninguém está apto a conhecer os segredos, até que se tenha iniciado dentro

daquela posição de hierarquia e iniciação que o capacita para tanto. Mesmo para esses,

muita coisa pode passar sem compreensão, uma vez que o culto aos mortos – Eguns –

depende de uma aprendizagem específica e não está ao alcance de todos, por fazer

distinção de sexo e do santo ao qual a pessoa tem origem. Como já foi dito

anteriormente, apenas homens e descendentes de orixás intimamente ligados à morte,

podem se iniciar no culto aos Eguns.

Encerrado esse ciclo, os Ojés e as filhas de santo incorporadas em Iansã

recolhem as comidas do chão, juntamente com a cabaça cheia de moedas e a vela, que é

agora apagada, e se retiram do barracão, levando esses elementos para a casa de Egun.

Page 77: A morte no candomble

69

O restante dos participantes aguarda, sentado nas esteiras, a volta do grupo

para o barracão. Em seu retorno, eles comunicam o que ouviram na casa de Egun; são

mensagens referentes a Ialaxé falecida, e essa comunicação é feita, mais uma vez, na

língua ioruba.

A última parte da cerimônia tem início com a roda de todos os participantes

formada no barracão. São entoadas cantigas para os orixás ligados à Ialaxé falecida,

Oxum e Oxossi, e para os demais orixás ligados à morte – Omolu, Nanã e Oxalá.

Enquanto cada pessoa passa pela porta de entrada do barracão, na roda de dança, faz

gestos de estar limpando, tirando de si as coisas ruins, e encerra-se, às 24horas,

pontualmente, o primeiro dia do ritual do axexê.

Nesse primeiro dia do axexê estava estampada na face dos participantes a tensão

pela inexperiência nesse tipo de ritual: não saber acompanhar as cantigas, não saber

como proceder no ritual, o temor de errar os procedimentos, o não saber, o mistério, o

desconhecimento do próximo passo.

Não sendo considerado, pelo povo do candomblé, um ritual triste, mas alegre,

pois visa celebrar os ancestrais e a Ialaxé falecida, o axexê é, para os participantes do

terreiro, uma tentativa de transformar um momento muito doloroso em algo natural,

uma vez que, para o candomblé, a morte é um processo da existência, considerado

normal, como o nascimento.

Mas aqui é possível sentir o conflito entre as culturas: indivíduos constituídos

na cultura ocidental moderna aprendendo a lidar com o saber ancestral: a morte não é

um evento que se deva chorar, mas, antes, celebrar. É dentro dessa dificuldade que os

parentes carnais da Ialaxé falecida e os filhos de santo da casa atravessam a noite.

Naquele primeiro dia do axexê, nós todos tateamos os minutos seguintes, atentos e

inseguros. Penso nessa Ialaxé, nossa mãe, de quem agora nos despedíamos. Penso que

um ritual assim é de difícil realização.

Page 78: A morte no candomble

70

A maioria dos terreiros não tem condições de realizá-lo, por falta de

conhecimento de como o ritual se processa, por falta de sacerdotes especializados no

culto dos Eguns e no comando do ritual e, até, por falta de recursos financeiros.

Penso nesse primeiro dia do axexê, nessa mãe, que dedicou sua vida a ensinar e

conduzir seus filhos de santo e que nos brindava, ainda, com um presente: em sua

morte privilegiou-nos com o conhecimento e a participação num ritual tão complexo e

tão raro em nosso país.

2º dia de cerimônia

A cerimônia do segundo dia do axexê se desenrola exatamente como no

primeiro dia. Desaparece parte da tensão, os participantes estão colocados de uma

forma mais natural, pois já sabem como proceder. Talvez esperem por algo novo no

ritual, mas não acontece. Tudo se repete como no primeiro dia. Dá para antever que os

próximos dias se traduzirão em cansaço devido ao longo tempo de permanência de pé e

da seqüência do ritual que não se altera.

Começo a buscar o significado da repetição que ainda não alcanço. Sei que os

cinco primeiros dias ocorrem da mesma forma. Por quê? Por trás do significado

ritualístico começa a parecer que a perseverança e a repetição devem produzir nas

pessoas alguma coisa além do cansaço que talvez se instale no decorrer dos próximos

dias. A obrigação de comparecer durante todos os dias do ritual não deve cumprir a

função de apenas manter os membros presentes à cerimônia. Deve buscar operar um

efeito psicológico, que ainda não alcanço e, que, certamente, passará despercebido da

maioria dos participantes. Aguarda-se o terceiro dia, que, sei de antemão, deverá ser

rigorosamente igual aos primeiros.

Page 79: A morte no candomble

71

3º, 4º e 5º dias da cerimônia

No terceiro dia de ritual foram colocados no barracão murais com fotos da

Ialaxé falecida em diversos momentos de sua vida. Seu casamento, o nascimento e

aniversário dos filhos, sua trajetória na casa de santo. Vestida com suas roupas de

ração, que são vestimentas simples, destinadas ao uso diário na casa de santo, para os

afazeres comuns, como limpar, cozinhar, participar de obrigações internas. Vestida com

suas roupas de festa de santo, essas confeccionadas com esmero em tecidos finos e

adornadas com rendas e fitas. No mural, estava sua vida social e sua vida de povo de

santo, integradas, como integrada deve ser a vida para o povo do candomblé.

Todos continuaram comparecendo ao axexê e a cerimônia de cada dia tinha

início no horário marcado. Agora já se sabia as cantigas e era possível cantá-las; a

cerimônia passou a ficar mais organizada e bonita, pois os participantes não erravam

mais os passos, sabiam como proceder.

A partir do 4º dia, comecei a perceber o outro significado, por trás do

significado religioso do ritual. O significado que já buscava desde o segundo dia: com

apenas dezesseis dias do falecimento da Ialaxé, estávamos todos ali, diariamente

reunidos para homenageá-la. A reunião era o significado. O estar juntos, fazer alguma

coisa em relação ao fato acontecido, juntos. Ninguém estava isolado, em suas casas,

elaborando a dor, sozinho. Estávamos em companhia uns dos outros, repartindo,

dividindo, não só os procedimentos do ritual e as homenagens, mas estávamos

realizando a dor em comunidade. O processo do luto era realizado em conjunto.

A cada dia de ritual, podíamos sentir a energia do ambiente mais forte. Foi

possível, para alguns, ouvir cantigas e gritos vindos da rua, sentir cheiros de perfume

inundar o barracão, ver sombras e luzes cortar a noite lá fora. Os Ojés, a cada dia,

ficavam mais agitados, indo à rua por diversas vezes para afastar Eguns que queriam

participar do ritual. Soubemos depois que, no início de cada cerimônia, é feita uma

Page 80: A morte no candomble

72

invocação para que os ancestrais ligados àquela casa de santo venham participar do

ritual junto com a Ialaxé falecida, e que essa invocação acaba por atrair Eguns que não

deveriam estar presentes, sendo, portanto, necessário mantê-los afastados do ambiente.

6º dia de cerimônia

Fomos avisados de que, a partir da cerimônia do 6º dia, todos deveriam

permanecer no terreiro até o final do ritual do axexê. Significa dizer que não

poderíamos voltar à cidade para trabalhar, como estávamos fazendo desde o início das

cerimônias. A maioria dos filhos de santo da casa, assim como nos demais terreiros de

candomblé, trabalha, estuda, possui uma família, ou seja, uma vida social, fora da casa

de santo.

No ritual do axexê, que se estendeu por sete noites seguidas, a maior parte dos

filhos de santo chegava ao terreiro ao anoitecer, participava da cerimônia do dia e, ao

seu término, voltava à cidade para dormir e cumprir seu dia de trabalho, retornando à

casa de santo, novamente, ao final do dia. Mas, a partir do 6º dia, a despeito de

quaisquer compromissos profissionais ou sociais, tivemos que permanecer no terreiro.

A cerimônia do 6º dia teve início às 22h e estendeu-se até bem mais tarde do

que nos dias anteriores, tendo acabado às 4h30 da madrugada. A primeira parte do

ritual transcorreu como nos demais dias, com o Padê de Exu, as danças individuais em

frente à cabaça e as danças na roda.

A mudança ocorreu no ciclo dos Ojés. Foram trazidos ao centro do barracão

diversos pertences de culto e uso pessoal da Ialaxé falecida, já dispostos em peneiras de

palha e completamente cobertos com flores brancas, de forma que não podíamos ver o

que se ocultava abaixo das flores. Comidas e bebidas também faziam parte do material,

todo arrumado sobre um lençol branco estendido previamente no chão. Os animais que

Page 81: A morte no candomble

73

seriam sacrificados também foram trazidos para o centro do barracão. Os Ojés

cantaram, dançaram em volta de todos esses elementos e conversaram em ioruba, entre

si e com os Eguns. Foi um ritual longo e bonito.

Começava-se a perceber que se aproximava o momento da despedida final à

Ialaxé. Depois, tudo foi recolhido do chão e os Ojés se retiraram para a casa dos Eguns

para a realização dos sacrifícios e preparação final do carrego. Ficamos todos no

barracão, em silêncio; foi amarrado no pulso de cada um, uma fita de mariow, com o

objetivo de identificar-nos como filhos de santo da casa e manter os Eguns afastados.

Um dos Ojés trouxe um alguedá - vasilha de barro, contendo um preparado com

folhas, onde todos depositamos as fitas de mariow que trazíamos no pulso. Ele recolheu

a vasilha e a levou para compor o carrego. Alguns Ogans da casa foram selecionados

para acompanhar os Ojés até o local onde seria despachado o carrego. Saíram do

terreiro, em dois carros, e demoraram-se por 1h:30 nessa seqüência do ritual.

Esperamos em silêncio, sentados no chão do barracão, pela volta deles. Quando por fim

retornaram, deram as notícias em ioruba e, desta vez, traduziram-na para o português,

dizendo que tudo estava certo e que a Ialaxé já estava desligada das coisas do Aiye. E

com uma última dança na roda encerrou-se o 6ª dia de cerimônia.

7º dia de cerimônia

Com a cerimônia da véspera tendo terminado às 4h30 da madrugada e a

cerimônia do último dia com início marcado para as 7h30 da manhã, muitos filhos de

santo preferiram se manter acordados para a organização da cozinha e a preparação do

café da manhã, que faria parte do ritual.

No horário marcado, todos já estavam na varanda do barracão, aguardando o

início da cerimônia do último dia do axexê. Um dos Ojés colocou ao lado esquerdo da

Page 82: A morte no candomble

74

porta de entrada do barracão um alguedá – vasilha de barro, contendo um preparado

com folhas, e, ao lado direito, um pote de barro, contendo água e uma quartinha. Por

ordem de antigüidade, um a um pegou a quartinha com água, esvaziando seu conteúdo

na rua, em três movimentos, esquerda, direita e centro do portão. Retornou, passando a

quartinha para o próximo filho de santo e, antes de entrar no barracão, lavou os olhos

com o preparado de folhas colocado no alguedá. Os que iam encerrando esse ritual

aguardaram sentados, no chão do barracão, até que o mais novo filho de santo da casa

encerrasse sua participação. Fez-se uma roda no barracão e algumas cantigas foram

cantadas e dançadas. Seguimos, então, para o café da manhã coletivo.

A mesa já estava posta, cuidadosamente preparada, com café, leite, chocolate,

sucos, frutas, pães, biscoitos, geléias, frios, xícaras, pratos e talheres. Antes do início da

refeição, um prato com um pouco de cada uma das comidas foi servido e colocado

sobre a mesa, simbolizando a Ialaxé falecida.

Aqui é necessário abrir um parêntese para evidenciar a importância simbólica

desse ritual. Em uma casa de santo, apenas as pessoas com cargos e da alta hierarquia

têm permissão para sentar-se à mesa e utilizar talheres. Os demais filhos de santo,

mesmo iniciados como Iaôs, sentam-se no chão ou em bancos muito baixos e não se

utilizam de facas e garfos, apenas de colheres. O sentar no chão cumpre a tradição de

ficar sempre em uma posição mais abaixo dos demais membros, superiores na

hierarquia, e o comer com colher representa um direito adquirido pelos mais velhos de

santo e aqueles investidos de altos cargos na casa de santo, imprimindo uma marca da

hierarquia. Os filhos de santo mais jovens na casa, sem nenhuma iniciação ainda

realizada, chamados de Abiã, não se utilizam nem de colheres, devendo comer com as

mãos. A tradição de sentar no chão não ocorre apenas no momento das refeições, mas

em todos os momentos do terreiro. As cadeiras e os bancos altos só podem ser

utilizados pelos pais e mães de santo, Ebomis e pessoas de cargo na casa, como os Ogans

e as Ekedes e, naturalmente, pelas visitas.

Page 83: A morte no candomble

75

Por esse motivo, a refeição coletiva desse último dia do axexê se reveste de

importância simbólica. O pai de santo, representação máxima do poder da casa, senta-

se à cabeceira da mesa e participa da refeição com todos os demais membros do

terreiro, até o filho de santo mais novo. Ele deverá ser o primeiro a sentar e o último a

levantar. Como na mesa não cabem todos os membros da casa de uma só vez, e ficou

claro não ser essa a intenção do ritual, vão sentando os mais velhos, participando da

refeição e levantando após terem terminado, cedendo lugar aos demais. Enquanto essa

troca de lugares se dá, o pai de santo permanece sentado à mesa, esperando que todos

comam, e dividindo a refeição com todos.

Duas coisas me pareceram claras nesse ritual, que se repetiu uma vez mais na

hora do almoço: primeiro, a demonstração de igualdade frente à morte; a submissão do

pai de santo à humildade de repartir a mesa com todos os filhos, dos mais velhos e

investidos dos mais altos cargos no terreiro e, portanto, de direitos, aos mais jovens,

sem direito sequer ao uso de cadeiras ou de talheres. Naquelas refeições

compartilhadas, todos eram iguais, como o são perante a morte. Segundo, na troca de

lugares, os mais velhos cedendo lugar à mesa para os mais jovens de santo, o novo

assumindo o lugar do mais velho, na continuidade simbólica da vida.

No final da tarde, mais um ritual é cumprido. Realiza-se o Padê de Exu, faz-se a

roda de dança e, ao som das cabaças e cantigas, realiza-se o adeus final à Ialaxé. Em

seguida, é feito o sacudimento, lavar, varrer e limpar o barracão com folhas especiais

colhidas para esse ritual.

Está encerrado o ritual do axexê. A Ialaxé agora faz parte da ancestralidade da

casa de santo e será perpetuada na memória dos filhos dessa casa, porque o ritual do

axexê, no dizer do Babalorixá Tito de Omolu, “não dignifica apenas aquele que se foi, mas

visa também à permanência da dignidade daquele que se foi naqueles que ficam”.

Page 84: A morte no candomble

76

Um outro ritual está programado para o início do ano seguinte, quando o pai de

santo procederá a “retirada da mão” da Ialaxé da cabeça dos filhos de santo por ela

iniciados, substituindo o axé dessa mãe, pelo seu próprio axé, de forma que ele passa a

ser o seu substituto no Aiye para todos esses filhos.

O jogo de búzios determinou luto por um ano para o Terreiro, o que significa

que, durante esse período, apenas as obrigações internas serão realizadas, não havendo

festas de santo, nem obrigações de iniciação de novos Iaôs ou confirmação de cargos

para Ogans e Ekedis.

É um período importante no qual o luto será coletivo, compartilhado por todos

os filhos da casa, um tempo de se refazer, de retomar aos poucos as coisas da vida e,

principalmente, um tempo de reordenamento no terreiro. Uma importante posição

ficou vazia de presença e de significado.

Page 85: A morte no candomble

77

3.2. O ritual de iniciação – inserção em um mundo novo Após quinze anos de observação dos rituais abertos do candomblé, e de sete

anos de participação como filha de santo, no grau mínimo de abiã, a pesquisadora

submeteu-se ao ritual de iniciação, com a “feitura de santo”, tornando-se Iaô do Axé

Baraleji. O texto a seguir refere-se ao relato da pesquisadora sobre essa vivência:

Fiz santo no mês de janeiro de 2006. Mas uma experiência dessa magnitude, que teve

seu desfecho no dia 28 do primeiro mês desse ano em curso, não pode ser resumida ao relato

dessa vivência. Na verdade, essa data representa um marco, uma ruptura, uma morte, um

renascimento.

Cheguei ao candomblé em 1983, como quem procura respostas para uma dor, uma

perda. Tinha então atravessado a doença e morte de minha mãe, que na época estava com 48

anos; eu contava 22 anos quando ela morreu e 24 quando conheci o candomblé, levada pelas

mãos de um grande amigo. Durante esses dois anos que se passaram, entre sua morte e meu

encontro com o candomblé, procurei em outras religiões por minhas respostas, não pela morte de

minha mãe, mas pelo sentido da vida que então me tinha fugido.

Nascida e criada na religião católica, sem nunca ter tido contato com as religiões afro-

brasileiras, o candomblé era para mim um mundo estranho, mas me foi acolhedor na figura do

Pai de Santo Tito de Omolu e, mais tarde, por sua esposa, a Ialaxé Verinha de Oxum.

Fui me encantando com aquele mundo, descobrindo aos poucos as respostas buscadas,

muito devagar, como devagar são as descobertas no candomblé.

Muitos anos se passaram e por todos esses anos eu freqüentei o terreiro como assistente,

mas, ao fim dos primeiros quatro anos assentei meu Exu pessoal. No décimo quinto ano, no mês

de dezembro, durante a realização da festa das Iabás (santas mulheres), ao entregar um buquê

Page 86: A morte no candomble

78

de flores para Oxum de mãe Vera, “bolei” no santo pela primeira vez. Isso significa que, pela

primeira vez, sem que eu esperasse, meu santo se manifestou. Essa manifestação, o “bolar no

santo”, ocorre de forma brusca, perde-se o controle do corpo, cai-se no chão numa espécie de

desmaio e a consciência foge de repente; é o sinal de que o santo precisa ser feito e que a pessoa

deve passar pelo processo de iniciação para que o orixá possa se manifestar de forma adequada.

Na verdade, acreditava que isso jamais aconteceria; com tantos anos de freqüência às festas, sem

nenhum indício ou sensação de que isso viesse a ocorrer, julguei que minha participação na

religião se restringiria à assistência, ao estudo e à observação dos rituais abertos ao público e a

uma relação muito próxima de amizade com Pai Tito e Mãe Vera.

Mas como “bolei” no santo, Pai Tito consultou o jogo de búzios e foi aconselhado a

“assentar” meus santos. O que me faria iniciar na religião, mas com um grau de

comprometimento menor do que aquele a que seria submetida se realizasse a feitura do santo.

Tanto eu quanto o Pai de Santo julgávamos que os compromissos religiosos seriam por demais

pesados para mim. Psicóloga, publicitária, empresária, não haveria tempo para maior

dedicação à religião. A dura iniciação de iaô também nos parecia excessiva para meu agitado e

moderno modo de vida.

A obrigação de assentamento dos santos foi um ritual de cinco dias; recolhida ao roncó

e, com a consciência desperta, passei pelos rituais de assentamento de meus santos – Oxalufã,

Oxaguiã e Oxum. Essa obrigação fez com que meu santo principal - Oxalufã - deixasse de

“bolar” nas festas de santo e nas obrigações internas que, aos poucos, comecei a freqüentar. Mas

sabíamos que esse tempo seria contado, entre cinco e sete anos, no máximo. Vencido esse tempo,

Oxalufã voltaria a pedir sua feitura. Passaram-se cinco anos e voltei a “bolar” no santo. Mas

então, embora fosse meu desejo fazer o santo, eu já não encontrava os caminhos para me

submeter à feitura. O longo período de recolhimento e as restrições do período de kelê eram

fatores de impedimento pela vida profissional que para mim sempre foi muito intensa.

Dificuldades internas, como relações conflituosas dentro do grupo, disputas de poder entre

alguns filhos de santo e, por fim, a morte de mãe Vera, fazia com que cada vez mais eu buscasse

Page 87: A morte no candomble

79

um distanciamento emocional com a comunidade. Embora minha relação com meus Orixás

crescesse – jamais deixei de participar de um osé – estava buscando afrouxar os laços que me

prendiam às pessoas do terreiro. Decidi, após a morte de mãe Vera, que não faria mais meu

santo; continuaria a freqüentar o terreiro por ocasião dos osés, compromisso assumido por mim

quando do assentamento de meus Orixás, mas não avançaria mais na religião.

No período que se passou entre o assentamento de meus santos (1997) e o jogo de búzios

do ano de 2005, dois barcos de iaô foram feitos, no total de cinco iniciados e eu não estava entre

eles. Todo o dia seis de janeiro de cada ano que começa, o Pai de Santo joga os búzios para

saber como será o ano que se inicia e qual o odú que regerá os caminhos do terreiro e de cada

um dos membros da comunidade de santo. No dia seis de janeiro de 2005, ao jogar para

identificar o meu odú naquele ano, Oxalufã, mais uma vez pediu feitura e disse mais, que

nenhum barco de iaô sairia naquele terreiro sem que ele estivesse na frente, ou seja, nenhum

santo seria mais feito ali antes dele.

Mas eu me mantinha firme no meu propósito de não avançar mais, não por meus

santos, aos quais eu me ligava cada vez mais, mas pelas dificuldades internas de relacionamento

e por condutas e comportamentos dentro do grupo, com os quais eu, no momento, não

concordava.

Em outubro de 2005, comecei a adoecer. Estava exausta. Não tanto pelo volume de

trabalho e estudo, estava em um emprego que me permitia um melhor aproveitamento do tempo,

o que até me permitira iniciar o mestrado, mas estava exausta da vida, como se minhas forças

estivessem se esvaindo. Dois anos antes, desfiz uma sociedade de 17 anos, deixando para trás a

empresa que fundei, por desavenças internas com meu sócio. Isso me causou um profundo abalo

emocional, mas consegui me refazer, não sem marcas, não sem cansaço que, aliado ao esforço

para me reerguer, profissional e emocionalmente, ajudou a me conduzir ao colapso de outubro.

Comecei a emagrecer, tive problemas sérios de gastrite e foi diagnosticada uma pré-

diabetes. Iniciei o tratamento médico e comecei a pensar em refazer minha vida. Mudar

radicalmente, abandonar a profissão de publicitária, desempenhada há vinte e seis anos; estudar

Page 88: A morte no candomble

80

para um concurso público, acomodar-me em algum lugar onde as mudanças não pudessem mais

me afetar; desfiz um relacionamento afetivo, que mantinha com um membro da casa de santo e,

principalmente, decidi que, a partir de 2006, me afastaria definitivamente da comunidade de

santo. Só participaria dos osés, porque esse era o compromisso assumido por mim com meus

Orixás, e nada mais.

No final de 2005, foi marcada a feitura de santo de uma filha de Oxum e de uma

Ekedi, filha de Yemanjá, para o mês de janeiro de 2006. Por toda minha disposição de

distanciamento, que o Pai de Santo não ignorava, eu também não fazia parte desse próximo

barco. Mas como o vento sempre sopra e as mudanças sempre vêm, e como Oxalufã já havia dito

que nenhum santo seria feito mais naquele terreiro antes dele, não foi assim que as coisas

aconteceram.

No primeiro osé do ano, no dia 6 de janeiro, fui para o terreiro no final da tarde de

sexta-feira; acordei cedo no sábado, como é o costume, e fui para a casa de Oxalá para a

realização do osé. Estava sozinha, os outros dois filhos de Oxalá, que sempre participam

comigo do osé na casa de nosso Orixá, não estavam presentes nesse primeiro osé do ano. Entrei

chorando. Sentia-me triste e fraca. Cuidei da limpeza dos assentamentos e da casa muito

devagar; não tinha pressa de terminar. Devo ter ficado ali por umas três horas. Depois, lavei o

chão das varandas externas da frente e dos fundos da casa. Terminando, subi para a casa de

Exu. Eu estava muito revoltada, como já disse, com a atitude de alguns membros do grupo;

como estes eram mais velhos de santo do que eu, não me cabia questionar seus comportamentos.

Na casa de Exu, chorei mais uma vez, rezei aos pés do assentamento de meu Exu pessoal e

disse-lhe que ainda permanecia no terreiro porque jamais o deixaria para trás, assim como não

deixaria para trás os assentamentos de meu pai Oxalá e de minha mãe Oxum. Terminado o osé

na casa de Exu, desci para fechar a casa de Oxalá e, então, voltaria para minha casa na cidade.

A obrigação de osé se inicia na noite de sexta-feira, quando se dorme no terreiro, atravessa o

sábado, quando é realizada a limpeza das casas de santo e só termina no domingo pela manhã,

Page 89: A morte no candomble

81

após a reza coletiva. Mas, nesse final de semana eu estava decidida a interromper minha

participação no início da tarde do sábado.

Algumas pessoas sabiam de minha insatisfação, embora eu não a verbalizasse senão

para dois ou três irmãos de santo com quem tenho maior afinidade. Mas quando eu me dirigia

para fechar a casa de Oxalá, uma Ekedi me seguiu; estava empenhada em me convencer a

entrar nesse próximo barco de iaôs, para que eu fizesse meu santo. Conversamos por um longo

tempo, ela me mostrando as razões pelas quais eu deveria fazer o santo já, eu mostrando a ela

as razões pelas quais isso não era possível: faltava menos de uma semana para o início das

obrigações e os preparativos são muitos para tão curto espaço de tempo, tais como compra de

enxoval e organização das coisas da vida para esse período de ausência; eu teria que antecipar

férias já agendadas no trabalho; teria que colocar a empresa onde trabalhava a par de minha

condição de adepta do candomblé e preparar meu chefe e os colegas para o período que se

seguiria após minha feitura de santo – usar somente roupa branca por três meses e, uma vez que

teria o cabelo raspado, um lenço branco na cabeça também faria parte desse novo figurino.

Como minha função era a de gerente comercial, a empresa teria que aceitar que eu me

apresentasse assim diante de toda sua carteira de clientes, que envolvia pessoas do alto escalão

do governo federal; além disso, meu único filho estava se formando na universidade, em Porto

Alegre, no início do mês de fevereiro e, além da dificuldade de me apresentar diante de seus

colegas vestida de branco e sem cabelos, trazendo um lenço branco na cabeça, a data prevista

para a saída de obrigação desse barco era posterior à data de sua formatura. Eu não abriria

mão de participar da formatura de meu filho. Mas sem poder explicar exatamente como, eu fui

deixando me convencer, apesar das dificuldades que antevia, desde que fosse possível viajar para

Porto Alegre na data por mim já programada.

Enquanto nós conversávamos, na varanda da frente da casa de Oxalá, dois micos

acompanhavam atentamente a conversa, pendurados na árvore próxima à varanda. Olhos

arregalados, agarrados ao tronco da árvore, pareciam mesmo aguardar o desfecho de tão

importante embate. Quando percebemos, rimos dos dois, ali, imóveis. Decidimos ir falar com o

Page 90: A morte no candomble

82

Pai de Santo para ver se era possível realizar todas as obrigações a tempo de eu estar liberada

para a viagem que precisava fazer. Chegamos as duas em sua casa, que também fica dentro do

terreiro, e ele nos mandou sentar. Sentei-me no chão, como o costume, mas ele mandou que eu me

sentasse na cadeira, próximo a ele e a Ekedi. Ela disse que eu estava disposta a entrar no barco

programado e ele disse que estava feliz porque há muito meu santo já deveria ter sido feito, mas

que ele jamais me forçaria a uma decisão como essa. Pediu um calendário e passou a programar

as datas das obrigações, que são muitas, a fim de que todas pudessem ser realizadas dentro do

tempo que me era disponível. Concluiu que era possível, com uma pequena antecipação do início

de período de recolhimento, para que o término das obrigações se desse no dia 28 de janeiro, com

a festa de saída do barco e, no dia 29, os últimos rituais da obrigação de feitura. Sem que eu

tivesse programado ou me preparado para isso, estava marcada minha feitura de santo. Tinha

início o meu ritual de vida/morte/vida.

Começou, então, uma maratona para tratar dos preparativos do meu período de

recolhimento. Percebi de imediato que todos os caminhos estavam abertos. Recebi apoio total de

meu filho, que disse não se importar de me ter em sua formatura vestida completamente de

branco e com um lenço a esconder a cabeça raspada, a opinião dos outros não lhe dizia respeito;

meu chefe, surpreendentemente, não apresentou resistência, nem às minhas férias que teriam que

ser antecipadas e maiores do que o que eu tinha solicitado, nem ao período após a feitura,

quando eu teria que me apresentar de maneira pouco convencional. Isso me surpreendeu. Não

esperava por essa reação tão positiva e estava até preparada para pedir demissão caso houvesse

algum impedimento por parte da empresa. Não foi necessário. No mais, foi um corre-corre de

compras, duas malas brancas, que não encontrei nas lojas e ainda precisei mandá-las forrar,

tecidos para as roupas, lençóis, esteiras, baldes, bacias, roupas, sapatos e bolsa branca para o

período de kelê, agendar pagamentos de contas para o tempo de minha ausência, deixar meu

gato sob os cuidados de minha irmã. Como disse no início, os caminhos estavam abertos e nada

foi empecilho para os preparativos.

Page 91: A morte no candomble

83

Na quinta-feira, dia 12 de janeiro, cheguei ao terreiro no final da tarde. As duas

outras pessoas que fariam parte da obrigação de iniciação já estavam lá e, a partir daquele

momento, nós três só nos separaríamos no final do mês de janeiro. Difícil aprendizado de

convivência. Idades diferentes, gostos e hábitos distintos, estávamos agora ligadas vinte e quatro

horas por dia, sem direito à pausa, nem na hora do banho.

Nossas esteiras foram colocadas no sabagi – quarto contíguo ao roncó, e ali ficamos

tecendo os fios de contas que usaríamos no pescoço, fazendo as refeições, dormindo. O banheiro

também ficava no cômodo ao lado e era reservado apenas para o nosso uso. Na tarde de sexta-

feira, dia 13 de janeiro, foi realizada a primeira de uma série de obrigações que se seguiriam.

Era fora do terreiro, em um rio. Fomos despertas, voltamos tomadas pelos Erês, eu e minha

irmã de barco, agora chamada Dofonitinha de Oxum. A outra iniciada que compunha o barco

seria Ekedi e essas pessoas, de cargo como se diz, não “viram no santo”, ou seja, permanecem o

tempo todo conscientes. Quando voltamos dessa obrigação no rio e, já no sabagi, nos chamaram

de volta à consciência, nosso cabelo tinha sido raspado. Era a primeira perda. Confesso que

estava assustada e no sábado, quando acordei, tive uma crise de choro. O cabelo me fazia falta e

era o sinal de um caminho sem volta. As obrigações de iniciação tinham começado. Desesperada,

eu dizia que só não iria embora porque sabia da responsabilidade assumida, mas que meu desejo

era o de ir embora. Era um sentimento ambíguo, ao mesmo tempo em que estava arrependida,

queria e sabia que iria continuar. Os mais velhos acorreram tentando me acalmar, minha

Dofonitinha chorou também. O Pai de Santo veio me ver, dizendo que eu era uma psicóloga,

velha de terreiro, já tinha visto outras pessoas passarem pela iniciação e, por isso, não esperava

de mim uma reação como aquela. Ocorre que, agora, as coisas estavam acontecendo comigo e

estavam apenas começando. Por mais que eu tivesse lido toda a literatura disponível sobre a

iniciação e tivesse acompanhado outros barcos anteriores, existem segredos que só são revelados

para os iniciados, e outros dos quais nem nós mesmas teremos conhecimento, já que serão

vivenciados por nossos Orixás ou por nossos Erês. Difícil a perda de controle, deixar-se levar,

numa entrega total onde apenas a confiança no Pai de Santo e nos membros do grupo é capaz

Page 92: A morte no candomble

84

de nos permitir mergulhar nesse abismo do qual não poderemos dar conta depois, sequer teremos

todas as lembranças desse tempo de recolhimento, desse período de morte.

O que me permitiu assumir tão desafiadora experiência foi justamente a confiança que

tinha, e mantenho, na capacidade do Pai de Santo e na de um grupo de pessoas do terreiro com

as quais tenho afinidade. Além disso, reconheço a competência dessas pessoas no cuidados das

coisas relacionadas aos Orixás.

Todos esses anos de preparação e indefinição me haviam sido absolutamente

necessários. Não vejo como poderia me entregar, assim tão sem defesa, nas mãos de pessoas as

quais não conhecesse e confiasse. Os demais dias que passamos no sabagi foram para mim

intermináveis. Voltei a chorar mais vezes, tive uma desavença com a Ekedi, também recolhida, e

agradeci o fato de que uma vez recolhida ao roncó não estaria mais com minha consciência

desperta. Na noite de 18 de janeiro entramos para o roncó, onde três esteiras já estavam postas

no chão, cobertas com lençóis brancos, à nossa espera. A primeira obrigação seria a de Bori –

obrigação dada à cabeça do iniciado, da qual participei desperta. Já tinha passado por essa

experiência, sete anos atrás, quando do assentamento dos meus santos e participado de várias

outras, dada a outras pessoas e nada ali me era estranho. Essa obrigação visa fortalecer a

pessoa que a recebe. Cansada dos intermináveis dias de sabagi, essa obrigação me veio como

uma benção.

Do que se seguiu, a partir da noite seguinte, não posso dar conta. Sei apenas que

diversas obrigações são realizadas, quase que diariamente, para que o santo possa “ser feito”. O

terreiro fica em movimento constante, é preciso preparar as obrigações e participar delas, fazer

comida, acompanhar os iniciados recolhidos em tempo integral, alimentando-lhes,

acompanhando-lhes nos banhos diários, às 6 horas da manhã e às 6 horas da tarde, rezando

com eles após os banhos. É preciso ainda confeccionar as roupas com as quais a Ekedi e os

Orixás se apresentarão no dia da festa de saída do barco, e não são poucas; cada Orixá se

apresenta com três roupas distintas e elas são elaboradas com muito cuidado e esmero. Além

disso, sei que são realizados ensaios diários onde o Erê e o próprio Orixá manifestado são

Page 93: A morte no candomble

85

ensinados a dançar suas cantigas específicas e que passam por diversos testes para confirmar sua

manifestação no iniciado. Nada pode dar errado sob pena da iniciação ser interrompida. Nada

deu errado em nosso barco que se apresentou ao público na noite de 28 de janeiro, em uma festa

que reuniu mais de trezentas pessoas. Soube que as pessoas vêm de longe para ver uma saída de

Oxalufã, gente de diversos terreiros de Brasília, e até pessoas de outros estados vieram para

prestigiar nossa casa e ver a saída desse barco que tinha uma presença rara: meu Orixá –

Oxalufã. Por ser um Orixá muito velho, dificilmente ele é feito na cabeça de seus filhos. Sua

presença no barracão é impressionante. Todo vestido de branco, apoiado no Opaxorô – espécie

de cajado de prata, ele dança curvado pela idade, muito lentamente. Sobre sua cabeça, seis

membros da comunidade carregam um pano branco, uma espécie de tenda, chamada de Alá.

Além de ser raro nos terreiros, Oxalufã é o primeiro Orixá, considerado pai de todos os outros

Orixás, por isso o respeito e a veneração que lhe são dispensados. Contaram-me que foi uma

festa linda e que as pessoas se emocionaram com Oxalufã e Oxum dançando no barracão.

Meu grande amigo, que me levou para o candomblé mais de vinte anos atrás, estava lá.

Antes de me recolher eu lhe telefonei dizendo ser muito importante sua presença na festa de

saída de meu Orixá, já que ele era o responsável primeiro por meu ingresso no candomblé. E

nessa noite ele estava lá e me disseram que ele chorou quando Oxalufã entrou no barracão.

Essa festa foi também importante porque 2006 é um ano regido por Oxalufã, e eu

acabei sendo a primeira iaô a ser iniciada no Distrito Federal, nesse ano de 2006, feita para

Oxalufã, num ano regido por ele. Não foi coincidência, nem foi programado por mim ou pelo

Pai de Santo. Penso que, desde o início, tudo estava determinado por ele – meu Pai Oxalufã.

No dia posterior à festa de saída do barco, voltei à consciência na beira de um rio.

Abraçada à minha irmã de barco, Dofonitinha de Oxum, choramos muito. Vários membros do

terreiro, além do Pai de Santo, estavam ao nosso lado. Estranha sensação de voltar ao mundo,

senti-me muito fragilizada, indefesa mesmo. De volta ao terreiro outros rituais foram

realizados, uma espécie de reintegração à vida diária e, no final da tarde, fui levada para

minha casa por uma Ekedi mais velha do terreiro.

Page 94: A morte no candomble

86

A maioria das pessoas do terreiro, e que fizeram santo antes de mim, disseram que o

período de kelê foi o melhor tempo de suas vidas, outras não me disseram nada. Eu posso dizer

que foi um tempo de sentimentos novos e ambíguos. Talvez tivesse sido um tempo sagrado, se

fosse possível permanecer no terreiro durante os três meses do período do kelê, dedicando-me

apenas ao Orixá, como era em épocas que já se perderam no tempo. Mas, ser jogada no mundo

após tantos dias de recolhimento e afastamento da sociedade, por imposição mesmo da vida

moderna e do mercado de trabalho, não é uma boa experiência, nem simples, nem fácil.

Contribui para a dificuldade desse enfrentamento da realidade moderna o fato de que a

consciência não volta instantaneamente. A capacidade de reação fica muito reduzida, uma

carência se instala e é como se, realmente, eu tivesse nascido de novo. A rua assusta, o barulho

incomoda, a multidão é intolerável.

A reação das pessoas a essa minha mudança variou desde o apoio explícito – recebi

flores de uma colega na volta ao trabalho, até a tentativa de demonstrar naturalidade frente a

uma pessoa que sai de férias e de repente retorna vestida de branco dos pés à cabeça.

É impressionante como as pessoas tiram suas próprias conclusões e nos condenam a um

destino sem qualquer questionamento. Algumas me perguntaram abertamente como estava indo

o meu tratamento com a quimioterapia; outras, mais discretas, perguntaram a pessoas amigas se

eu estava com câncer. Para aquelas que me perguntaram diretamente, respondi que tinha feito

uma iniciação religiosa; para as mais curiosas, dei maiores detalhes. De várias pessoas, ouvi

dizer de minha coragem com a posição ocupada no mercado profissional, ser capaz de encarar

período tão longo de restrições e uma mudança tão radical de aparência.

Sentia-me, obviamente, diferente. Destacava-me nos lugares por onde andava. O lenço

branco, cobrindo a cabeça raspada, era a peça do vestuário que me transformava num ímã para

o olhar dos outros. Para a relação com o mundo à minha volta, essa marca foi a dificuldade

maior. E como se tudo fosse programado para me testar, foi a época em que mais reuniões de

trabalho precisei realizar, enfrentando públicos diversos e numerosos. Além da viagem para

Porto Alegre, para a formatura de meu filho, ainda precisei enfrentar uma viagem a São

Page 95: A morte no candomble

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Paulo, dessa vez, a trabalho, em uma convenção que reuniu colegas de vários estados do País.

Um desses colegas comentou comigo: “você está toda de branco, mas não é essas coisas de

batuque, de macumba, é?”, limitei-me a responder com outra pergunta: “pois é, e se for?”.

Na época dessa viagem eu já havia retirado o lenço branco da cabeça. Com quarenta e

cinco dias, meu cabelo já crescido, o Pai de Santo consultou o jogo de búzios para saber se

poderia liberar a mim e a minha irmã, Dofonitinha, do uso do lenço na cabeça. Essa peça

realmente me incomodava, mas não pedi ao Pai de Santo para abreviar esse preceito; estava

disposta a levar até o fim essa imposição. Talvez ele tenha sentido que isso estava me pesando

demais, mas jamais teria consentido se não tivesse recebido autorização de meu Orixá e do

Orixá de minha irmã de barco. O que foi para nós duas um alívio, gerou uma crise no grupo

religioso. Alguns membros da casa nos acusaram de romper a tradição, de quebrar preceito, de

violar as regras e desejaram que pagássemos com sofrimento por aquilo que consideraram uma

transgressão. Não vejo dessa forma. Já vi muitas regras serem mudadas em nossa casa de santo

e em várias outras, e considero que o mal não está na forma como as coisas são feitas, mas na

intenção com que são praticadas. Cumpri meu kelê integralmente e apenas o lenço foi retirado,

por autorização de meu Orixá, dada através do jogo de búzios. Satisfaz-me a explicação dada

pelo Pai de Santo de que ele também estranhava o fato de meu Orixá estar sendo tão

condescendente comigo, mas que isso acontecia porque, embora meu santo tivesse sido feito

recentemente, estava assentado já havia sete anos e, durante todo esse tempo, eu mantive com ele

meu compromisso e dedicação.

Mas os membros do grupo, contrários a essa atitude, cobraram seu preço. Uma rede de

fofocas se instalou, nunca frontalmente, sempre com dissimulações; pela frente diziam apoiar a

liberação do uso do lenço; pelas costas, condenavam veementemente. As hostilidades vieram

mascaradas com a força da hierarquia. As mais velhas de santo, revoltadas com aquilo que

chamaram de regalia, fizeram valer os cargos ocupados para nos colocar em nosso lugar: de iaô,

de recém iniciadas que nada sabem e que devem apenas obedecer as suas ordens. Já vulneráveis

por todo o processo vivido no recolhimento e no enfrentamento do dia-a-dia fora do terreiro,

Page 96: A morte no candomble

88

vimos nossos finais de semana virar uma provação desnecessária. Não podíamos reagir às

ordens ou provocações. O candomblé é rígido no sentido de obediência à hierarquia; devíamos

apenas abaixar a cabeça; uma reação maior, como ocorreu no caso de minha irmã, implicou em

maior perseguição por parte desse grupo. Não reagi, não achei necessário, embora isso tenha me

magoado e aprofundado o abismo que me separava dessas pessoas em particular, sabia que esse

era um tempo contado no calendário e não vi necessidade de medir força ou buscar o espaço

ocupado por elas. Na verdade, penso que isso nada tem a ver com o Orixá. São disputas

mesquinhas de um poder que não busco. Mas foi assim, com muita dificuldade, que

atravessamos os três meses de kelê, que nos fez ir para o terreiro todos os finais de semana, treze

ao todo, chegando na sexta-feira, ao cair da tarde, e voltando para casa apenas no domingo.

Esse compromisso, por si só, não era ruim. Era o lugar onde me sentia mais integrada com o

momento que estava vivendo. Não fossem os problemas de relação com o grupo, teria sido um

bom tempo. Devo dizer que uma outra parte do grupo foi muito solidária, amiga, próxima,

compreensiva, num momento de transição como esse e foram essas pessoas que nos apoiaram e

nos ajudaram nessa longa travessia. Sou muito grata a elas.

Quanto a mim, sinto que sofri uma mudança radical. Durante esses três meses, minha

rotina foi completamente alterada e meu corpo não era meu, estava marcado. Não só pelas

roupas brancas usadas, mas pelos símbolos que se carrega no corpo. Uma espécie de colar de

contas no pescoço – o kelê propriamente dito, símbolo da ligação com o Orixá, que não pode ser

tirado, nem mostrado fora do terreiro, fica coberto por um tecido durante todo o tempo que se

está na rua; apenas em casa pode-se retirar o pano, mas nunca o colar, que está amarrado

próximo ao pescoço. Além disso, três tiras de palha da costa trançadas ficam permanentemente

junto ao corpo, uma na cintura e uma em cada braço. Não é permitido fazer depilação e o corpo

vai se transformando em algo estranho, pesado. Durante os três meses, dormi no chão, em uma

esteira colocada ao lado de minha cama. Também não pude sentar nas cadeiras e sofás de casa,

sentava no chão, inclusive para fazer as refeições, quando utilizava sempre um prato e uma

caneca de ágata e uma colher de plástico; nem garfos, nem facas, nem copos e pratos de vidro ou

Page 97: A morte no candomble

89

de louça. Duas vezes ao dia, às 6 da manhã e ao final da tarde, quando chegava do trabalho,

rezava. Antes, um banho com água fria e depois, a reza. Uma seqüência de dezesseis rezas que

levava, em média, cinqüenta minutos. Não saí à noite durante todo esse período. Minha casa

era meu melhor refúgio. Também estava proibida de comer determinados alimentos, de

consumir bebida alcoólica e de praticar sexo.

Encerrado o período de kelê, no dia 29 de abril, ainda devo manter algumas restrições

pelo período de um ano para determinados alimentos e, embora todas as outras cores me estejam

liberadas, o preto está proibido. Renovei o guarda-roupa, dei de presente as roupas pretas que

usava quando ainda não era uma iaô. Minha capacidade de reação aos acontecimentos

externos, reduzida durante o período de kelê, foi se refazendo nos dias anteriores à sua retirada.

Uma semana antes do final desse período, recebi uma nova proposta de trabalho, que aceitei de

imediato. Estava viva de novo, com uma nova energia. As pessoas à minha volta notaram a

diferença, não apenas externa, uma postura mais firme, uma certeza no olhar, mas uma maior

autoconfiança, como a das pessoas que estão integradas com suas várias facetas, suas diversas

estórias. É assim que me sinto agora, integrada. Depositária de uma força divina – meu

Orixá, um aliado no percurso da vida.

Page 98: A morte no candomble

90

3.3. As vozes dos filhos de santo

Anderson, Eduardo, Luciana e Fernando são filhos de santo do Axé Baraleji.

Cumpriram todos os ritos da iniciação e participaram do ritual de axexê da Ialaxé

Verinha de Oxum. A entrevista de cada um deles buscou dar voz a essas vivências

transformadoras, por sua intensidade e significado: como chegaram ao candomblé e de

que forma esse novo caminho afetou suas vidas; o entendimento que mantêm sobre a

morte e com os aspectos a ela relacionados; a vivência do ritual de axexê daquela que foi

a mãe de santo de todos eles, e a experiência da “feitura de santo”, caminho sem volta

para o iniciado no candomblé.

Anderson – o candomblé como destino marcado no corpo: Iaô – Filho de Oxalá,

sexo masculino, conta com 26 anos de idade, oito de participação no candomblé e seis

de iniciação na condição de iaô. É professor universitário e fisioterapeuta, com atuação

em Unidades de Terapia Intensiva.

Eduardo – o candomblé como o fim da busca por si mesmo: Ogan – Filho de

Oxóssi, do sexo masculino, conta com 41 anos de idade, doze de participação no

candomblé e seis anos de iniciação na condição de ogan. É economista e empresário.

Luciana – o candomblé como palco de certezas e dúvidas: Joye – Filha de Iapaoka,

sexo feminino, 36 anos de idade, vinte de participação no candomblé e sete de iniciação

na condição de Joye. É professora de Educação Física e está concluindo o curso de

Direito.

Page 99: A morte no candomble

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Fernando – o candomblé como herança espiritual: Pai Pequeno, filho de Oxalá, sexo

masculino, 49 anos de idade; vinte anos de participação no candomblé e dezessete anos

de iniciação. Ocupa o cargo de Maé, responsável por auxiliar o pai de santo na

administração dos recursos mágicos do Axé Baraleji. É advogado e empresário.

3.3.1. O ingresso no candomblé

Anderson ingressou no candomblé como conseqüência de um caminho traçado

desde a infância. Não buscou a religião de forma específica, mas foi “encontrado” por ela.

Vítima de desmaios constantes desde os seis anos de idade, encontrou na umbanda, aos

nove anos, a solução para esse problema de saúde que a medicina não pode dar conta.

Até os dezessete anos permaneceu na umbanda e na doutrina kardecista. Conheceu o

candomblé por acaso, pois revela que tinha “muito preconceito ao candomblé”. Acredita

que não chegou ao candomblé nem pela dor, nem pelo amor, como é comum dizer-se na

religião. Ele alega ter chegado ao candomblé “num chamado, porque eu não fui atrás, ele

veio atrás de mim”. Segundo Anderson, uma série de coincidências fez com que,

independente de sua procura, ele chegasse ao candomblé, cumprindo um ciclo de

aprendizagem que lhe havia sido revelado quando ele ainda freqüentava a umbanda:

“isso as minhas entidades falavam, olha você vai ter a continuidade de um novo aprendizado,

dentro de uma nova escola, dentro da espiritualidade; e foi assim que eu cheguei à religião”.

Nesse contexto, Anderson foi conduzido ao candomblé por suas entidades de umbanda.

Eduardo atribui a simpatia pelo candomblé a uma “herança de família”. Filho de

pais que freqüentavam a umbanda conheceu vários terreiros desde criança. A partir da

adolescência procurou diversas outras religiões, ou como diz: “eu procurei vários

caminhos”; freqüentou as igrejas católica, protestante, messiânica, entre outras, e afirma

Page 100: A morte no candomble

92

não ter-se encontrado em “nenhum desses lugares”. Após vários anos sem freqüentar

nenhuma religião, chegou ao candomblé “por curiosidade”.

Pela diversidade de crenças que procurou, o candomblé parece ter sido mais

uma tentativa na busca desse encontro interior, um novo caminho. Começou a visitar o

terreiro de candomblé, freqüentar as festas e foi se integrando: “quando eu vi já estava

participando do culto, e me iniciei no candomblé”. Um longo percurso, com várias

tentativas na busca de um lugar onde pudesse se reconhecer como membro de uma

comunidade e ser reconhecido por ela, ou em suas palavras: “a busca do encontro comigo

mesmo se deu no candomblé”.

A umbanda é uma religião brasileira, nascida do candomblé, que congrega

diversas outras crenças como a espírita, a indígena, de caboclos; criado dentro da

umbanda, Eduardo traçou seu percurso como um círculo: conhecendo diversas

religiões, voltou ao começo de sua infância e um pouco mais atrás, na origem da

umbanda – se encontrou no candomblé.

Luciana conheceu o candomblé através de um amigo, Fernando, que hoje é Maé

do Axé Baraleji. De família kardecista, aos 16 anos, quando conheceu o candomblé, diz

ter ficado “muito encantada com todo o folclore, todo o místico que envolvia a arrumação, a

ornamentação de uma casa de candomblé”. Atribui sua entrada ao candomblé a esse

“encantamento” e a paixão imediata que sentiu pelo orixá Oxum, iniciando, assim, o

percurso de uma “longa estrada”. Luciana era Joye de Oxum, encarregada de cuidar das

coisas relacionadas a Oxum Omim Ladê, Orixá de Mãe Vera, Ialaxé falecida do Axé

Baraleji.

Em 1989, já casada com Fernando, começou a participar dos rituais do

candomblé e, em 1991, foi iniciada, dando seu primeiro borí. Para ela, a máxima de que

a pessoa chega ao candomblé pelo amor ou chega pela dor, não foi um imperativo:

“para mim, foi um outro caminho; eu acredito que eu me encaixe mais na questão do amor, do

Page 101: A morte no candomble

93

que na questão da dor”. Acredita que por ser muito jovem à época, não pode atribuir seu

ingresso a problemas pessoais, já que não os tinha, e pensa ter sido envolvida por uma

energia que a deslumbrou desde o seu primeiro contato com o culto. Esse

encantamento parece ter se aliado às circunstâncias de sua vida afetiva que, casando

com um membro da comunidade de santo, passou também a fazer parte do terreiro, na

condição de iniciada.

Fernando nos diz ser descendente de africanos e considera que sua iniciação

começou ainda no ventre de sua mãe. Ele explica que seu avô materno, nascido no

Congo, veio para o Brasil, aportando na Bahia; sua mãe, nascida brasileira, trouxe a

herança genética espiritual de dar continuidade ao trabalho de seu avô, por ser a

primogênita. A mãe de Fernando, no entanto, não deu prosseguimento ao trabalho

religioso de seu avô e passou, segundo ele, a “ter ojeriza a todo o culto religioso,

principalmente de origem afro”. Como filho e neto primogênito, Fernando diz ter herdado

essa herança “genética espiritual” de seu avô, que por sua vez também a herdara de seus

ancestrais africanos. Quando Fernando contava 14 anos de idade, sua mãe apresentou

graves problemas de saúde, e ele a levou até um centro de umbanda. Com a intenção

inicial de ajudar a mãe, acabou por se envolver com a religião, e afirma que, desde

então, mantém estreita convivência com o mundo espiritual. Aos 18 anos, no Ceará,

conheceu outras vertentes da umbanda, como a quimbanda que é, segundo afirma, “uma

umbanda pesada que mexe com magia negra”.

Uma vez em Brasília, conheceu o kardecismo e durante seis anos permaneceu

nessa religião. Fernando diz que, findo esse período de seis anos, foi avisado por uma

“entidade” que sua missão na umbanda havia terminado, e que ele deveria buscar aquele

que seria o seu “verdadeiro caminho”. Nessa época, ao deixar o kardecismo, conta ter

acreditado que voltar às origens seria voltar para umbanda, mas como sua vida estava

em ordem e, profissionalmente, encontrava-se muito bem, decidiu abdicar da vida

Page 102: A morte no candomble

94

espiritual:“eu simplesmente peguei todas as minhas coisas de santo da umbanda, os patuás, as

imagens, botei tudo numa caixa (...) falei que não precisava de nada daquilo e despachei tudo

no mar”.

Iniciou-se, então, um período de retrocesso em sua vida, que ele atribui a seu

descaso por sua “herança genética espiritual”. Ele conta que em seis meses perdeu todos

os bens materiais que possuía e também sua família, já que essa situação levou-o a

ruptura do casamento e ao afastamento de sua primeira filha. Fernando continua

dizendo que, no carnaval de 1986, começou a passar muito mal e “apagou” na quadra

comercial da 310 Sul, em Brasília, em frente a uma loja que vendia artigos de

candomblé, que era a loja de Tito de Omolu, hoje seu pai de santo.

Fernando afirma que foi levado até à loja de Tito de Omolu pelos orixás: “na

realidade, eu voltei à origem de meus ancestrais, que era o meu avô e aos seus ancestrais”. Ele

diz se enquadrar, dessa forma, na máxima do candomblé e entrou na religião pela porta

da dor: “então, o caminho religioso, é um dito que se tem principalmente dentro do candomblé,

ou você entra pelo amor ou pela dor e noventa e nove por cento das pessoas entram pela dor e

essas dores elas doem em vários lugares”.

3.3.2. A vida antes e depois do candomblé

Para Anderson, o ingresso no candomblé significou a continuidade de um

processo espiritual iniciado na infância. Paralelamente, seguiu o curso de sua vida.

Acredita que a religião foi importante, na medida em que o motivou a buscar novos

desafios, mas não a coloca como base para as conquistas da vida, dizendo que a atitude

da pessoa é fundamental para seu processo de crescimento.

Eduardo atribui um significado maior à religião. Considera que sua vida antes

de entrar para o candomblé era “vazia, sem objetivo, sem crença”. Confere à religião os

progressos feitos a partir de então. As mudanças positivas na vida profissional e o

Page 103: A morte no candomble

95

retorno aos estudos, há vinte anos interrompidos, são conquistas que ele credita à

religião. Para ele, o candomblé foi o motor dessas mudanças. Diz que o incentivo

recebido, veio de um conjunto de forças, não só do Orixá, ou de uma pessoa, ou da

comunidade, mas desse conjunto que “te dá forças e faz com que você toque o barco pra

frente”.

Esse conjunto de forças, a que Eduardo se refere, confirma os fundamentos do

candomblé, de ser uma religião onde a participação em comunidade é condição para o

exercício do culto aos orixás. Para o candomblé, o todo depende da participação de cada

um, daí que não é possível para ele destacar um fator ou uma força principal, mas esse

conjunto que fez com que sua vida tivesse um impulso de crescimento. Esse

crescimento, “essa guinada em minha vida”, vem, assim, atestar o “encontro comigo mesmo”

buscado por ele desde a adolescência.

Luciana conheceu a religião católica através dos colégios onde estudou na

infância e adolescência. Mas alega não ter encontrado no catolicismo “um berço” que lhe

“aconchegasse”. A crença no Deus católico também não foi possível para Luciana, que

questionava sua bondade diante das injustiças sociais. Aos 12 anos começou a

freqüentar o kardecismo, seguindo os passos de seus pais. Ali permaneceu até os 15

anos, ainda sem acreditar nos fundamentos religiosos. Ela diz: “eu não tinha nenhuma

crença, não tinha nada que me fizesse acreditar que na verdade existia uma força ou um Deus

que movimentasse o universo”.

Ela considera que, apesar de sua pouca idade quando do ingresso no

candomblé, sofreu uma grande mudança. Hoje, Luciana ainda acredita não existir esse

Deus que “tenha colocado as pessoas no mundo com o motivo delas definharem ou delas

prosperarem” e acha que as pessoas buscam uma solução para seus problemas, um

amparo, nessa imagem do Deus cristão que ela considera “cultural”.

Page 104: A morte no candomble

96

Para Luciana, o mundo é formado por energias e “a essência humana, que também

é energia, a alma que também seria uma forma de energia, vem pra um aprimoramento”.

Acreditando, agora, em um Deus “universal e único” e entendendo-o como “uma energia”,

sua entrada no candomblé significou uma mudança na forma de se relacionar com

Deus. Entrando para o candomblé ainda muito jovem, sua vida, a partir de então, ficou

ligada de forma muito intensa a essa religião.

Ao ingressar no candomblé, Fernando trouxe consigo uma história de vida

destruída; mas as coisas não se resolveram rapidamente para ele, porque, segundo

conta, sua história espiritual estava marcada por vários desacertos. Sua “origem

espiritual ancestral” lhe cobraria sete anos em sacrifícios, até que sua vida voltasse a se

ajustar. Considera que seu maior erro foi abdicar da vida espiritual em favor de uma

vida material confortável, faltando com a responsabilidade diante de sua ancestralidade,

e aceita o castigo, como forma de reparação a essa quebra de compromisso. Cumprido o

período de sete anos de “castigo”, ele diz ter aprendido um pouco mais sobre o

sacerdócio, a vida, o mundo e sobre os orixás. Passados 20 anos de seu ingresso no

candomblé, diz ser “prova viva” do poder dos orixás. Sobre esse poder ele diz: “cada vez

mais você vai recebendo, como num conta gotas, o axé que o orixá lhe dá, ele vai lhe dando a

conta gotas, força e poder individual para que você construa para você e para os seus”.

Fernando, hoje, é um empresário de sucesso e está casado novamente, tendo

reconstruído, também, sua vida afetiva; na vida espiritual, dentro do candomblé, segue

um caminho crescente no Axé Baraleji, casa de santo aonde foi iniciado. Com dezessete

anos de “santo feito”, participa ativamente de todas as atividades do culto, sendo “pai

pequeno” de vários filhos de santo, já tendo, inclusive, iniciado o seu primeiro iaô, o que

lhe confere o título de pai de santo, ou babalorixá.

Page 105: A morte no candomble

97

3.3.3. A relação com a morte

Para Anderson, que desde muito cedo aprendeu a conviver com perdas de

consciência, entidades espirituais, doutrinas kardecistas, a morte parece se apresentar

não com a face da grande ceifeira, mas com a face da morte domada. Acredita que essas

experiências da infância lhe trouxeram uma grande proximidade com a questão morte-

vida e, por “ver” e “conversar” com pessoas mortas, ele diz não poder encarar a morte

como um fim, vendo, por isso, continuidade após a morte. Anderson parece conservar

suas concepções de morte oriundas do kardecismo, diferentemente do candomblé que

não privilegia a continuidade após a morte, mas a vida no aqui e agora.

Acostumado a tratar a morte de forma tão próxima, Anderson reconhece a

dificuldade de viver de forma tão radical os dois extremos da cultura do candomblé e

da cultura ocidental moderna. Desde sempre, ele esteve inserido em religiões onde a

morte é tratada como um acontecimento esperado na vida; em contrapartida,

desempenha sua trajetória profissional nas unidades de terapia intensiva, local onde a

morte espreita vinte e quatro horas por dia, e onde todos parecem ignorar-lhe a

presença. Dividido entre dois mundos tão distintos, nesse momento, ele se reconhece

como ator da cultura ocidental: “a minha postura é me calar, me fechar, porque as pessoas ali

pensam diferente de mim (...) não existe espaço para você discutir sobre qualquer coisa ligada à

morte, ninguém vai discutir isso, morreu, morte clínica, pronto, acabou, então agora a família

vai sofrer e velar o morto, ponto.” A postura médica oficial dita as regras da cultura

ocidental dentro do ambiente de trabalho desse filho de santo que se cala porque,

naquele espaço, sua voz não pode ser ouvida. Seu papel está restrito ao sujeito da

modernidade, não há espaço de expressão, ali, para esse iaô de Oxalá, ponto.

Eduardo diz ter várias concepções sobre a morte: “tem aquela concepção que a

gente aprende desde criança, que a gente herda da sociedade; tem a concepção da casa de santo,

Page 106: A morte no candomble

98

que a gente vai aprendendo aos poucos”, apontando aqui a existência da diferença da

concepção recebida pela cultura ocidental, que lhe é dada desde a infância e a concepção

do candomblé, que precisa ser aprendida com o tempo e a vivência do culto.

Conforme a fala do candomblé – o filho herda as características do pai – ele se

apropria da característica do seu orixá principal, Oxóssi, de não temer a morte: “o meu

orixá de cabeça é um orixá que não teme a morte e, eu não sei se por esse motivo, eu também não

tenho medo da morte, a morte pra mim é uma passagem, só uma passagem, eu encaro ela com

muita naturalidade, não temo a morte, não tenho receio dela”.

Cita duas experiências de morte vividas na casa de santo, de uma iaô e da

própria mãe de santo, e faz uma distinção entre elas, pela forma como essas mortes se

deram: a primeira, de uma jovem que foi morta de forma trágica e brutal, assassinada

pelo namorado aos 22 anos de idade, e a mãe de santo, que morreu após dois anos de

luta contra o câncer, mas ao final diz ter encarado as duas mortes da mesma maneira:

“foi uma irmã de santo, que fez santo junto comigo e que veio a falecer de um crime bárbaro (...)

essa eu senti bastante a morte dela, mas encarei com naturalidade (...) depois de me

conscientizar que aquele era o caminho dela, que aquela era a missão dela, ela teria que passar

por aquilo ali, e foi daquele jeito que tinha que ser”.

Essa concepção da morte, como caminho, como destino inscrito na vida da

pessoa, parece vir de alguma outra concepção de morte, dentro das várias que ele diz

ter, e não da cultura ocidental ou do candomblé. Em relação à morte da mãe de santo,

ele a descreve como “uma morte mais demorada, uma doença que se estendeu por dois anos

até o falecimento, já era uma morte assim esperada (...) então eu encarei com naturalidade”.

A maneira de encarar da mesma forma duas mortes tão distintas, apesar do

sofrimento mais acentuado na primeira, parece demonstrar a aceitação da realidade da

morte. Eduardo ancora essa aceitação na concepção de que com a morte a pessoa “vai

para um outro plano” e acredita que “acumulando as experiências aqui vividas, a pessoa possa

ser útil em outra esfera, outra dimensão”.

Page 107: A morte no candomble

99

Por ser Joye de Oxum, Luciana tinha uma relação muito estreita com a Ialaxé

falecida. Sua percepção da morte mudou a partir do acompanhamento da doença e

morte da Ialaxé. Ela acusa uma desconstrução de tudo àquilo que até então acreditava

ser a morte, e o próprio Deus: “o candomblé vê a morte como sendo início e fim (...) a morte

é um dos elementos mágicos que mais movimenta o rito do candomblé, porque é a única verdade

certa do ser humano, que é a passagem dele, de alguma forma, por esse aspecto chamado morte”.

Ela diz entender a morte no candomblé como “o inevitável por sermos matéria”, e como

uma das forças mais poderosas que já sentiu e vivenciou. Luciana fala da “inexplicável

sensação de desespero (...) do medo profundo” que a levou a questionar a morte como sendo

uma passagem boa, como acreditava anteriormente.

Luciana participou ativamente de todas as obrigações – ebós – que foram

realizados na tentativa de superação da doença da Ialaxé. A experiência que ela relata

aqui se deu na primeira de uma série de obrigações que se estenderam por quase dois

anos. Ela diz:

Então, aquele momento, aquele exato momento quando se iniciou a tentativa

mágica da manutenção da vida, foi que me mostrou o quanto era frágil à vida, o

quanto que a morte é extremamente mais forte, porque com todo o amor que se

dedicou aquele momento, com toda a magia, com todo o conhecimento que se faz

necessário na tentativa de alguma ação de sucesso, a única sensação que eu

guardei foi de medo.

Por vir de uma família kardecista, ela ainda guarda os aprendizados de que o

homem é um ser em evolução, que vêm de outras experiências de vida, “não tem como

você nascer num berço Kardec e não ter esses valores dentro de você”, mas também já coloca

esses valores em questionamento. Ela diz ter ouvido de seu pai, que se encontra muito

Page 108: A morte no candomble

100

doente – “minha filha, talvez Deus não exista” – e levanta que se ele que “é um profundo

estudioso da religião kardecista, se ele pode levantar esse aspecto de dúvida (...) me sinto

extremamente à vontade pra questionar a existência de um Deus”.

Luciana parece ter voltado ao início de sua adolescência, quando questionava a

existência de um ser superior, mas diz ter encontrado no candomblé respostas que a

fazem manter a crença na religião e continuar dedicando-se a ela. Ela se questiona:

Por que eu permaneço no candomblé? Eu tenho uma resposta muito forte, a nível

consciente, de todas as coisas que, principalmente, eu peço ao Orixá Oxum, no

sentido do meu caminho profissional, no sentido de antecipação de fatos da minha

vida pessoal, no sentido da proteção da minha família (...) dento do candomblé eu

tenho essa resposta, de alguma forma existe uma energia, seja ela dado o nome

que for, Oxum, Deus, Ifá que é o dono de todos os caminhos, seja qual for essa

forma de energia, ela me responde.

A morte da Ialaxé parece ter abalado às certezas de Luciana, aumentando sua

busca de racionalidade. Luciana é uma Joye, não “vira no santo”, o que faz com que ela

não experiencie a possessão pelo orixá, a perda do controle, os momentos de

inconsciência impostos pelo transe. Pode-se imaginar que, por isso, busque tantas

“provas” palpáveis na religião. Ela afirma:

Com certeza se o candomblé não tivesse em mim uma resposta positiva, de acreditar,

de manifestação, de realmente poder antecipar, de poder prever, de poder acertar,

com certeza, por mais amor que eu tivesse a Oxum, que é o Orixá que eu mais

cultuo, eu não ficaria aqui. Porque eu tenho a necessidade de ter a certeza daquilo

que eu faço.

Page 109: A morte no candomble

101

Luciana julga que a experiência da morte da Ialaxé alterou sua forma de ver a

morte, marcando para ela o fim da “naturalidade da morte”, derrubando suas certezas

de que a morte era apenas uma boa passagem: “aquela estrutura que eu criei durante os

meus 36 anos (...) aquela estrutura de ser uma coisa boa a passagem, caiu por terra”.

Fernando diz ter duas visões sobre a morte: “a visão do candomblé e a minha, que

é visão do candomblé e mais um pouquinho”. Para o candomblé, segundo sua explicação, a

morte “é o momento onde a tua alma e o teu espírito, o teu orixá, o teu axé, o teu ori se

desprendem desse aiye, desse mundo”.

Ele fala sobre cada uma “dessas partes” que se desprendem do corpo físico, da

matéria, no momento da morte:

O espírito é a ancestralidade, ele já é existente (...) o espírito é uma existência

divina. A alma é a energia catalisadora que traz o equilíbrio entre o corpo e o

espírito, a própria vida é a alma; o orixá é um ancestral, mas não é um ancestral só

seu ou um ancestral só meu; um novo descendente, que tenha um caminho de orixá

com aquela ancestralidade, se aquele filho tiver ligação direta com aquele orixá, o

orixá pode voltar. O ori acaba e o axé se reincorpora na comunidade de santo.

No entendimento de Fernando, a morte, para o candomblé, é o desligamento

desses cinco componentes da existência humana. A continuidade para além da morte

não ocorre de forma automática, como em outras crenças, mas advém de “um

merecimento”; em suas palavras: “a morte nem sempre é uma continuidade, pra ter

continuidade tem que ter merecimento”.

Segundo Fernando, esse merecimento é sempre aqui, nesta vida, nesta

existência, de onde se pode lembrar da concepção de vida no “aqui e agora” professado

pelo candomblé.

Page 110: A morte no candomble

102

Para Fernando, dentro do culto do candomblé, o conceito de “carma”, como

entendido pelo kardecismo, não se sustenta: “isso é uma filosofia religiosa ou um

fundamento religioso que para nós, do culto religioso do candomblé, ele não tem muito

fundamento; se nós estamos aqui pra pagar aquilo que não sabemos que temos pra pagar, então

aonde é que está a evolução?”

Quanto à sua visão particular de morte, Fernando enxerga um pouco além do

merecimento que o candomblé atribui; por todas as experiências espirituais que teve

em diversas outras religiões, anteriores à sua iniciação no candomblé, ele vê o retorno

do espírito como algo além do merecimento. Ele diz: “eu vejo o retorno como uma

necessidade real de evolução do espírito sempre para um mundo melhor (...) a morte é um novo

caminho, e não chamo um renascimento, é uma transformação (...) o que as pessoas chamam de

morte, para mim é o acúmulo de experiência do orí, do orixá, do espírito e da alma”.

3.3.4. A vivência de um ritual de axexê

Anderson considera que o ritual do axexê é complicado dentro do contexto da

sociedade moderna porque os filhos de santo cresceram dentro da mentalidade

ocidental, o que lhes dificulta o entendimento do ritual. Ele diz: “o ritual do axexê vem

antes das pessoas, ele é mais antigo do que nós, somos nós que não estamos inseridos nesse

contexto”.

Demonstra nesse relato a supremacia que a cultura ocidental tem adquirido

sobre as práticas milenares do candomblé. Ressalta a dificuldade de integração e

entendimento de um ritual muito antigo, que “vem antes das pessoas”.

Para o candomblé, esse ritual foi criado por Oiá (Iansã), que por ocasião da

morte de um grande caçador – chamado Odulocê – que a havia tomado como filha,

pensou em um modo de homenageá-lo; reuniu todos os instrumentos de caça de

Odulocê e enrolou-os num pano; preparou todas as iguarias de que ele mais gostava,

Page 111: A morte no candomble

103

dançou e cantou por sete dias e, com seu canto, fez com que se reunissem no local todos

os caçadores da terra; na sétima noite, acompanhada dos caçadores, Oiá entrou na mata

e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulocê. Olorum emocionou-

se com o gesto de Oiá e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Orum.

Desde então, todo aquele que morre tem seu espírito levado ao Orum por Oiá. Antes,

porém, deve ser homenageado por seus entes queridos, em uma festa com cantos,

danças e comidas, tendo, assim, nascido o ritual do axexê (Prandi, 2001, pp. 310/311).

O axexê é, então, um ritual herdado dos orixás. Mas não é apenas isso que

dificulta o entendimento. Os filhos de santo do Brasil do século XXI são filhos da

modernidade, da pressa do dia-a-dia e, ainda que pratiquem sua religião de

ensinamentos tão antigos, estão muito mais sujeitos a participar dos rarefeitos rituais

modernos de morte do que dos longos rituais de morte do candomblé. Por maior que

seja a comunidade de santo, em maior número são as relações que essas pessoas têm em

sua vida comum e, assim, é natural que participem de um maior número de rituais

fúnebres modernos do que de rituais de axexê.

Apesar desse estranhamento e da dificuldade de viver um ritual tão longo como

o axexê, Anderson considera que o tempo ajuda na elaboração da perda: “eu concordo que

o tempo, o tempo sim ele ajuda, (...) o ritual do axexê, por ser mais prolongado ele te leva a

refletir, elaborar aquela perda, a buscar instrumentos de se reestruturar e de se apoiar

mutuamente”.

Eduardo também acredita que muitos fiéis não entendem a complexidade do

ritual de axexê: “algumas pessoas não tem uma bagagem cultural para entender o significado

de um ritual e faz por repetição, porque todo mundo fez”. Atribui essa dificuldade a vários

fatores, como o pouco tempo de participação na religião, à ignorância de algumas

pessoas que, apesar de vários anos freqüentando a casa de santo, não se interessam em

apreender o significado dos diversos ritos e até a incapacidade de “deixar a coisa fluir

Page 112: A morte no candomble

104

naturalmente”, numa referência à recusa de uma maior entrega, em não abrir mão do

questionamento dos rituais, num apego à racionalidade.

Aqui, podemos perceber uma postura que vem sendo, atualmente, muito

observada nos terreiros, onde os filhos de santo não mais se satisfazem com a

experiência mística, querendo sempre entender, buscando a expressão de uma

racionalidade que não conseguem alcançar. Ao mesmo tempo em que Eduardo critica o

“apego à racionalidade” por parte de alguns membros do culto, critica também a “falta de

bagagem cultural para o entendimento dos rituais”, em uma contradição que parece mais

um choque de discurso entre o Eduardo – filho de santo e o Eduardo – sujeito do

século XXI.

Eduardo considera que o ritual do axexê cumpre a função de completar o ciclo

da pessoa na terra para que o “seu espírito parta em paz”. Acha que o ritual do axexê, para

os participantes, é um processo “longo e cansativo”. Aponta a diferença do ritual do axexê

em relação aos rituais fúnebres da sociedade moderna dizendo: “aqui fora os rituais

fúnebres são precedidos de um velório, que geralmente dura uma noite e no dia seguinte a pessoa

é sepultada, existe rituais de missa, orações que são feitas e no dia seguinte a pessoa é sepultada,

rapidamente”.

Acentua aqui a diferença existente entre a “pressa” da sociedade moderna em

sepultar seus mortos e a demora do ritual do axexê: “é um processo mais longo e muito

cansativo, não é um processo fácil não, é feito em cima de obrigações, onde participam todos os

filhos de santo da casa, pessoas de fora também participam, é um ritual aberto”. Ao

mencionar o “ritual aberto”, ele traz, aqui, a lembrança de que o axexê é um ritual

coletivo, compartilhado e, apesar de enfatizar a demora do ritual, acredita que a

participação de toda a comunidade tornou mais fácil “a aceitação da passagem dessa

pessoa”.

Page 113: A morte no candomble

105

Assim como a morte perdeu o seu caráter “natural”, o ritual do axexê também

trouxe para Luciana dificuldades extremas. Ela se apega na tradição para justificar a

necessidade de sua participação no ritual: “eu acho que quando você abraça uma tradição

religiosa você abraça também tudo aquilo que envolve todos os momentos dela”. Mas afirma

que não tem como separar o sentimento que nutria pela pessoa da Ialaxé, do cargo que

a Ialaxé ocupava na comunidade; para ela era uma mesma coisa, um mesmo sentimento

dirigido à pessoa de Mãe Vera. Ainda assim, ela busca dar racionalidade ao ritual e

acha que “foi importante porque era uma homenagem, nós aprendemos culturalmente que o

axexê é uma última homenagem (...) esse é o rótulo do axexê”. E, então, ela se entrega

novamente ao sentimento, perguntando: “eu posso considerar que foi esse o rótulo do axexê

de minha mãe? Não, não posso”.

Luciana justifica sua afirmação ao lembrar que “existia uma dor muito grande pela

partida dela, no caminho que foi embora pela doença e não pela velhice, já há aí uma

interrupção, talvez, do que nós chamamos de natural” acreditando que esse foi o principal

motivo de impedimento para a vivência do ritual do axexê como seria o esperado.

Considera que o axexê foi para ela uma experiência boa e ruim ao mesmo tempo:

“boa no sentido de que nunca participei de um axexê de uma Ialorixá; já participei de axexê de

pessoas de menor hierarquia no candomblé”.

O aprendizado, o acúmulo de conhecimentos é valorizado por ela. Mas,

enquanto ser sensível, volta a se enredar em dificuldades, embora ainda tente se apegar

à racionalidade. Ela diz: “não tive a oportunidade de enxergar o axexê de minha mãe como

um axexê, aquele que a gente lê nos livros, uma homenagem, não tenho como transmitir essa

referência a ela porque a tristeza era muito grande.

Luciana acredita que a forte ligação afetiva que os membros da casa de santo

mantinham com a Ialaxé impediu a comunidade de vivenciar o ritual como ele é

fundamentado na tradição do candomblé, “uma homenagem”. Pensa que os sete dias

dedicados ao ritual do axexê trouxeram muito sofrimento às pessoas mais próximas à

Page 114: A morte no candomble

106

Ialaxé e continua, dizendo: “eu entendo que aquele procedimento de sete dias só causava mais

sofrimento, que na verdade se desligar de uma pessoa, não existe magia pra isso”.

Ela considera que, por ser uma casa de santo relativamente nova, os filhos de

santo do Axé Baraleji não estão acostumados a conviver com a morte de seus membros

de culto. Para ela, no Axé Opo Afonjá, casa de candomblé centenária da Bahia, da qual o

Axé Baraleji descende, deve ser mais fácil conviver com a morte, e justifica:

No Axé Opo Ofonjá tem muito mais velhos do que novos, que se perde pela idade

um após o outro (...) a gente estava perdendo uma pessoa literalmente, a sensação

que eu tenho (...) foi de uma perda irreparável, como eu poderia estar feliz e alegre,

como eu poderia caracterizar o axexê uma festa de felicidade, muito difícil, foram

sete dias de axexê, foram sete dias de tortura.”

Apesar de todo o sofrimento ainda demonstrado em suas palavras, quase dois

anos após a morte da Ialaxé, Luciana reafirma que a despeito de toda a dor, o axexê é

uma tradição que precisa ser preservada: “a tradição é feita pra ser cumprida, então ela

deve ser cumprida”.

A dificuldade da vivência do ritual do axexê pode estar associada, segundo

Luciana, à falta de preparo da comunidade para a perda da Ialaxé, que partiu por doença

e não por velhice, como é o que se espera no candomblé: “não se preparou a casa pra

partida dela (...) algumas pessoas nem chegaram a se despedir dela com ela ainda viva, mesmo

que fosse um olhar, mesmo que fosse um abraço...”

Luciana se refere aqui aos últimos meses de vida da Ialaxé. Quando a doença se

mostrou irreversível, a Ialaxé se afastou do convívio da comunidade de santo; apesar de

ter morrido em casa, cercada de seus familiares consangüíneos, sua “família de santo”

foi excluída de seus últimos momentos de vida. Ela diz:

Page 115: A morte no candomble

107

Eu, graças a Deus, tive a oportunidade de me despedir dela, mas sei que muitos dos

meus irmãos não tiveram, foi errado, no meu entendimento foi errado (...) tinha que

ter sido mais verdadeiro, mais exposto, talvez tivesse sido, pra nós filhos de santo,

melhor”.

Fernando conta que o ritual de axexê completo é de vinte e um dias, para o caso

de pessoas falecidas da alta hierarquia do candomblé, e justifica o ritual de sete dias de

axexê da Ialaxé:

O ritual que houve aqui, no caso da nossa mãe Vera, ali não foi uma morte, aquilo

foi um novo caminho, o nosso Pai de Santo, Tito de Omolu, ele fez um ritual

secreto antes para que não precisasse ficar vinte e um dias, então ele fez um ritual

secreto onde participaram três pessoas e se teve um ritual de no mínimo sete dias. O

ritual completo são vinte e um dias, na realidade esse ritual, mesma forma da

iniciação, é uma iniciação de um novo caminho do espírito e do novo caminho, que

aí é uma opção da pessoa depois que morre, da alma, que existe alguns segredos que

eu não vou poder contar.

No ritual do axexê, através do jogo de búzios, a alma se manifesta para escolher

o caminho que deseja seguir. Fernando continua:

É a alma que comanda, que toma uma decisão, se ela quer continuar existindo ou

não, há uma interferência do espírito em relação a isso; dependendo da decisão

dessa alma, se ela vai continuar, o ritual vai até os vinte e um dias, para que ela

fixe essa consciência e se torne um ser vivo, sem corpo. Esse ser vivo sem corpo,

dependendo do acúmulo de experiência dele, do propósito que ele queira existir, ele

pode levar um ano ou cem anos aprendendo ainda a ser um bom egun. Ele tem a

Page 116: A morte no candomble

108

consciência da pessoa que viveu adquirindo novas experiências, normalmente esses

seres eles são utilizados num outro ritual que se chama egungun (...) nós, por

exemplo, dentro do nosso Ilê Axé nós temos o nosso lesse egun (culto dos eguns);

porque pro nosso pai de santo, pra ele é permitido e é uma coisa que não deve se

brincar nunca, você está mexendo aí sim, com mortos, o egun é um morto, o espírito

não.

Para Fernando, o ritual do axexê, necessário para todo o iniciado no candomblé

que falece, é doloroso para os filhos de santo por uma questão cultural, pois vivemos

em uma cultura cristã de mais de dois mil anos e, segundo afirma, isso pesa para o filho

de santo:

Mas a partir do momento em que o filho de orixá tem a consciência do que é um

axexê e do que ele representa, ele não é tão doloroso, pelo contrário, ele acaba lhe

trazendo conforto em saber que aquele que você ama, ou que você conviveu, ou que

você gosta está num processo claro, não doloroso, em que ele está indo para um

caminho em que ele, alma, espírito, optaram e que estão de forma consciente fazendo

aquilo que eles realmente querem e que sozinhos não poderiam, exatamente porque

eles estão presos a uma iniciação; eles estão presos à iniciação, porque eles ficaram

presos a uma ancestralidade que é um poder muito mais forte do que o próprio axé,

porque o axé é a concentração de poder da ancestralidade de vários orixás, de

vários caminhos, então você tem o conforto de saber que ele está indo para a opção

dele, a própria alma, e ao mesmo tempo você sabe, tem a certeza do descanso (...)

mas para nós é óbvio que é dolorido, é doloroso para nós que amamos a pessoa,

porque nós somos egoístas no nosso sentimento, gostaríamos de ter aquela pessoa

presente, não gostaríamos de perdê-la, mas é puro egoísmo, e também porque aquela

pessoa vai fazer falta realmente.

Page 117: A morte no candomble

109

3.3.5. A experiência da iniciação

A iniciação de um iaô importa em um ritual complexo, que visa operar uma

transformação na vida da pessoa que a ele se submete. Consiste na perda de controle,

que afeta a consciência, e na dependência total das pessoas que passam a cuidar do novo

iniciado. Mas, para Anderson, a experiência foi apenas a continuidade de um caminho

há muito tempo traçado. Ele não considera a iniciação como um renascimento porque

“é difícil ter algum parâmetro, porque a gente não lembra de quando nasceu, então a gente

perdeu o referencial do que é nascer, (...) se renascer, se morrer para renascer é, não perder a sua

individualidade, mas acrescentar muitas outras coisas ao seu eu, eu realmente renasci”.

No que se refere a experimentar a figura do orixá e do erê, como “outros”

dentro do próprio corpo, ele acredita que o que há é uma integração, assim como a vida

dentro do terreiro e no mundo moderno também se dá por acréscimo. Ele diz:

A religião me ajuda a entender e compreender e a enfrentar a vida aqui fora de

uma maneira diferenciada, então ela me influencia aqui fora, ela me acrescenta

aqui fora; não são dois papéis que não estão no palco ao mesmo tempo, eles estão no

palco ao mesmo tempo, eles estão interpretando a mesma peça, que é a peça da vida,

só que são dois papéis, é o Iaô Dofono de Oxalá e o Anderson, filho, profissional,

professor, mas eles se integram.

A vivência da “tomada do orixá ou do erê” é sentida por ele como “ensaios de

morte” que fazem com que ele pense “tem algo além da minha consciência, do meu

controle”. Considera um “privilégio” vivenciar o orixá e o erê porque “eles me fazem ter

mais a certeza de que existe um outro plano, uma outra força, algo que é superior ao meu eu”.

Page 118: A morte no candomble

110

Eduardo ocupa a posição de Ogan, que é um cargo da alta hierarquia do

candomblé, concedido a adeptos do sexo masculino, que não “viram no santo”, ou seja,

não estão sujeitos a vivência da possessão pelo orixá. Passam pelas obrigações de

feitura de santo com a consciência desperta; alguns rituais, e as restrições a que se

submetem, são mais leves do que aquelas aplicadas aos iaôs (iniciados que são tomados

pelo orixá). Também gozam de direitos e possuem regalias dentro da casa de santo que

não são conferidas aos iaôs.

Define a experiência da iniciação como “integração”. Já tendo participado de

várias outras religiões, ele entende que o candomblé é diferente na medida em que, a

partir da iniciação, da dedicação ao orixá, à pessoa vai se integrando ao culto.

Ele acredita que o candomblé, em relação a outras religiões, é uma religião de

pouca cobrança: “não tem aquela cobrança de você ter que ir, você ter que fazer, você ter que

contribuir, não tem essa cobrança, é uma coisa bem natural, espontânea”.

No candomblé, as relações sempre se dão através de trocas, daí que não existe a

cobrança nesse movimento de dar e receber; se os dois lados envolvidos estiverem

participando com suas obrigações haverá a troca, se um dos lados não fizer a sua parte,

não haverá, também, a retribuição. Isso é válido para as relações entre filho de santo e

comunidade, o iniciado e seu orixá, enfim, para todas as relações dentro e fora da casa

de santo.

A condição de ogan, cargo ocupado por Eduardo na casa de santo, implica,

também, em uma menor cobrança por parte do grupo religioso, uma vez que, para as

pessoas de cargo, as regras são menos rígidas do que para os iniciados que “viram no

santo” – os iaôs. Além disso, eles não estão sujeitos à possessão do orixá e do erê que,

independente da vontade do iniciado, se manifesta e permanece presente por um tempo

sobre o qual o iaô não tem controle; embora isso não implique em uma cobrança, já que

é uma relação de troca, não pode ser considerado como espontâneo para o iaô.

Page 119: A morte no candomble

111

Luciana é uma Joye, cargo do candomblé conferido a pessoa do sexo feminino

que passa a ter o compromisso de cuidar de determinado Orixá da casa de santo; além

disso, recebe, na iniciação, a sacralização da cabeça através da feitura de santo.

Como todas as pessoas de “cargo”, Luciana não “vira no santo” e como já há

muito tempo pertencia à casa de santo, com várias atribuições e responsabilidades,

encara a iniciação de uma forma racional. Acredita que, no caso das pessoas de cargo, o

que acontece é que “não tinham acesso ao sagrado e no momento da iniciação passam a ter

acesso ao sagrado, ou seja, dali começa uma nova vida dentro do sagrado” e, para as pessoas

que “viram no santo” a iniciação significa ter “a manifestação mais inteira do Orixá na sua

pessoa”.

No seu caso, ela diz não ter vivenciado nem uma coisa, nem outra: “eu fui

oborizada em 91, então quando eu me oborizei eu tenho a sensação de que eu passei a pertencer

a um novo caminho, no sentido de participar do sagrado de uma forma mais vivencial”. A

partir de seu primeiro ritual de borí passou a ter contato com o sagrado. Ela diz:

Desde o meu primeiro bori passei a entrar nos cômodos sagrados, a entender o que

era um assentamento, a entender como que acontecia a feitura de um iaô; quando eu

vim a fazer a minha feitura, há sete anos, eu já participava de tudo do sagrado; na

verdade, o sagrado é que estava pesando sobre os meus ombros, atrapalhando a

minha vida, no mundo digamos lá fora, na minha vida profissional, na minha vida

dos meus compromissos, financeiramente, ou seja, na verdade existia uma cobrança

do sagrado em torno da minha feitura; mas todos os atos que pertenciam ao

sagrado, eu Luciana, antes de ser Tojú, já participava.

Tojú é o nome sagrado que Luciana recebeu no momento de sua iniciação como

Joye.

Page 120: A morte no candomble

112

Houve uma inversão nas regras do candomblé no caso de Luciana. Ela recebeu

as atribuições de uma iniciada antes da iniciação. Dez anos antes de sua iniciação ela já

participava de rituais sagrados e vedados aos não iniciados.

Luciana diz que o período de reclusão no roncó, e as obrigações de iniciação a

que foi submetida, não se converteram em dificuldade para ela, pois já pertencia ao

terreiro há mais de uma década. O retorno ao mundo “real”, com as restrições impostas

pelo período de kelê, no entanto, foi o grande desafio de sua iniciação.

O período de kelê imposto às pessoas de cargo é muito mais curto do que aquele

imposto aos iaôs, pessoas que “viram no santo”. Aos iaôs é imposto um período de três

meses de kelê, enquanto as pessoas de cargo cumprem o kelê em um período de vinte e

um dias. Mesmo assim, Luciana sentiu o impacto dessa imposição, com a obrigação de

transitar no mundo moderno com o corpo marcado pelos ritos da iniciação. Apesar do

conflito vivenciado pelo pertencimento a duas culturas que se fazem, às vezes, tão

distintas, Luciana é intransigente na defesa da manutenção das tradições do candomblé,

a despeito de qualquer dificuldade ou de toda dor que isso possa implicar.

Fernando diz que a iniciação dentro do candomblé foi para ele “uma nova

experiência, um renascimento”. Por já ter acumulado experiências de iniciação dentro da

umbanda e do kardecismo, diz que essas iniciações se deram de formas diferentes:

A sensação é diferente, a forma de incorporação é diferente, a forma como acontece

depois é diferente; são energias bastante diferenciadas; depois que você é iniciado

existe um processo; vou fazer uma analogia com a criança: você para andar,

primeiro você tem que aprender a engatinhar; porque você aprende a engatinhar?

Pra que você comece a iniciar um equilíbrio sobre o seu próprio corpo, depois você

começa a andar meio desequilibrado, aí começa a andar e mesmo andando você

precisa sempre dos pais, pra você não bater na quina da mesa, etc., etc., (...) você

Page 121: A morte no candomble

113

quando inicia essa iniciação ela tem que objetivo? Fazer uma comunicação mais

estreita da sua pessoa, do seu eu, do seu espírito com a sua origem ancestral (...)

então você vai buscar aquele orixá que é o seu ancestral divino (...) ele passa a

reviver dentro de você, você recebe todos esses axés que levam de quatorze a trinta e

dois dias esses rituais sagrados (...) na iniciação, por muitas vezes, você fica vinte e

um ou trinta dias inconsciente. Me lembro que quando eu fui feito eu entrei para a

iniciação e quando acordei tinha a guerra do Golfo, tinha havido uma maxi

valorização do dólar, confisco da poupança pelo Governo Collor, a moeda tinha

mudado, o mundo estava de cabeça pra baixo e eu não participei de nada disso; e

onde eu estava? Você só sabe como é emprestar o seu corpo para o orixá quando você

volta.

Fernando é categórico ao dizer que a iniciação é um processo de integração:

Primeiro, porque o orixá ele para poder interagir com você, lhe tomar, você precisa

ter se doado primeiro, ter trazido ele da sua origem por opção, e ele está dentro de

você, então na realidade é sempre uma integração porque ele já está dentro de você,

nós somos um único ser, e ele está dentro, então ele simplesmente aflora (...) no meu

modo de ver, para mim é uma dádiva, servir o orixá, emprestar o corpo para mim

sempre foi muito prazeroso, mesmo que por muitas vezes eu fique cansado, porque o

orixá às vezes fica horas, duas, três, quatro, cinco, dez, doze, vinte e quatro horas

no ar e como ele precisa da sua energia também, às vezes você acorda desgastado,

mas é por pouco tempo, logo depois essa tua energia vem em dobro, ou triplicado

porque ele lhe reabastece, então ele lhe agradece e diz usei a sua, agora tome a sua e

mais a minha e mais um pouco e você fica muito forte para o mundo.

Page 122: A morte no candomble

114

Sobre a integração do mundo do candomblé com o mundo para além dos muros

do terreiro, Fernando diz:

É um grande equívoco das pessoas que se predispõem a entrar no caminho do

sacerdócio do orixá fazerem essa separação entre o mundo dentro de uma roça de

santo, do axé e o mundo lá fora; é um grande equívoco que elas cometem, porque o

fato de você atingir a maioridade, sair de casa, morar sozinho, ter a sua vida

independente não quer dizer que seus pais deixaram de ser seus pais e que você

deixou de amá-los.

Aqui, Fernando traz os ensinamentos do candomblé: a vida deve se dar de

forma integrada, onde a religião não é apenas parte da vida do indivíduo, mas uma

experiência intimamente ligada ao ser humano, na busca de um sentido para a vida

como um todo.

Page 123: A morte no candomble

115

CAPÍTULO 4 – DISCUSSÃO

A escuta que vem de dentro do terreiro

Percorridos três momentos empíricos – observação do ritual de axexê, vivência

da iniciação e entrevistas com membros do grupo pesquisado – a discussão foi

organizada em quatro etapas, a fim de clarificar cada momento e possibilitar a abertura

de um diálogo entre eles: 1) a morte no candomblé, compreendendo a doença e morte

da Ialaxé, e o impacto dessa perda na comunidade de santo; 2) o ritual de iniciação, com

a descrição da vivência da “feitura de santo” pela pesquisadora; 3) a voz dos

participantes sobre morte e iniciação e 4) o encontro do candomblé e do ocidente

moderno, à luz das teorias estudadas.

4.1. A morte no candomblé

O ritual do axexê foi o desfecho do acompanhamento coletivo da doença e morte

da Ialaxé do Axé Baraleji, terreiro palco de realização da pesquisa. Após dois anos de

observação desse processo, muitos aspectos podem ser ressaltados, tanto por sua

proximidade, quanto por seu afastamento das práticas comuns ao mundo ocidental

moderno. A primeira diferença a ser apontada está relacionada com a estrutura do

candomblé em geral e diz respeito à hierarquia que é marcada pelos anos de freqüência

ao culto e pelo grau de iniciação de cada membro na comunidade. A posição é dada

pelo tempo e por aquilo que a pessoa se torna, o que ela vem a ser dentro da casa de

santo. No mundo ocidental moderno, a diferença é marcada pelo ter, acumular – bens,

riqueza, consumo. Essa cisão entre os dois mundos, ocidental moderno e do

candomblé, é fonte de conflitos dentro do grupo religioso. A adaptação, quando ocorre,

é resultado de muita renúncia por parte daqueles que “têm”, que possuem no mundo

Page 124: A morte no candomble

116

moderno, mas não “são” o equivalente no mundo do candomblé. Para Prandi (2005),

esses conflitos dentro do terreiro são esperados já que refletem a competitividade

existente no mundo como um todo. O que chama a atenção aqui é o que essa hierarquia

significa para aquele que se inicia na religião: uma mudança de atitude e de visão de

mundo radical, pelo menos enquanto estiver entre os limites geográficos do terreiro.

4.1.1. Doença e morte da Ialaxé

Após o diagnóstico da doença da Ialaxé, todos os recursos mágicos foram

utilizados no sentido de “trocar” sua doença por energia vital. Paralelamente, foram

tentados os recursos da medicina. O que chamou atenção nesse processo, e que se

distancia do costume ocidental moderno, foi que ela permaneceu em casa até os

momentos finais, tendo sido levada ao hospital após uma parada cardíaca. Uma vez

constatada sua morte, seu corpo retornou para casa e ali atravessou anoite, deitada na

cama que lhe pertencera. Ressalte-se que a casa fica na cidade e não no terreiro de

santo sendo, portanto, um local que pertence, geograficamente, ao mundo moderno.

Vários amigos e filhos de santo se dirigiram até a casa para vê-la e prestar

solidariedade à família, mas o que causou estranheza, para o padrão moderno de

distanciamento da morte, foi que após determinada hora, quando as visitas já se haviam

retirado, fechou-se a casa e os membros da família foram dormir em outros quartos da

casa. Apenas o filho médico ficou aos pés da cama da mãe morta, como se ainda

cuidasse dela. Essa cena contradiz o contexto moderno, que teria deixado o corpo no

hospital até a manhã seguinte para, então, ser velado. O próprio comportamento dos

familiares que foram dormir não pode ser visto como o hábito moderno, praticado hoje

em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, de deixar o corpo do morto sozinho

na capela do cemitério e ir para casa dormir. Havia naturalidade no gesto, o corpo

estava na casa, havia presença ali, era como se a mãe e esposa, simplesmente dormisse.

Page 125: A morte no candomble

117

Contrasta com o hábito moderno que, além de tentar ignorar aquele que morre,

também retira dos sobreviventes o direito de chorar por ele. Como nos diz Ariès (1975,

p.245), a sociedade moderna “não lhes permite nem chorar os que se vão, nem fingir

chorá-los”. O que se viu nessa família adepta do candomblé foi a subversão dessa

ordem: a família não apenas se deu o direito de chorar seu ente morto, como ainda

dormiu sob o mesmo teto que ele, acolhendo a presença da morte.

Se a atitude frente aos momentos finais de vida da Ialaxé e sua transferência

para casa após a morte contrastam com o que impõe o costume atual, podemos

observar um momento em que essa comunidade de santo tomou de empréstimo um

hábito moderno – a cremação.

Segundo Ariès (1975), a cremação vem sendo cada vez mais utilizada no mundo

moderno e visa, segundo o autor, duas razões: o meio mais radical de se livrar dos

mortos e a exclusão do culto aos cemitérios e a peregrinação aos túmulos.

Para o candomblé, o corpo dos mortos deve retornar à terra, à natureza. Nanã,

orixá feminino associado à lama e à morte, considera seus filhos aqueles que morrem e

é ela que os recebe em seu seio – a terra, a lama (Santos, 1975). Embora os membros

do candomblé devam enterrar seus mortos, parecem não guardar o hábito de cultuar

seus túmulos, como se algo ainda permanecesse ali, uma vez que tudo que lhe

pertenceu em vida deve ser despachado para que ele rompa sua ligação com esse

mundo, passando a ser lembrado como um ancestral, sem vínculos com o aiye (terra).

No caso da Ialaxé, parece-nos que a contradição foi resolvida com o enterro de

suas cinzas sob uma árvore sagrada do terreiro de santo, tendo seu corpo cumprido,

assim, o retorno à terra. Não podemos deixar de observar, no entanto, que houve uma

mudança na tradição, com a apropriação de um costume em franco crescimento no

mundo ocidental moderno.

Um outro ritual realizado ainda na capela merece registro por marcar uma

diferença entre as duas culturas – ocidental moderna e candomblé: o ritual do Sirrum.

Page 126: A morte no candomble

118

Nesse ritual, onde o corpo foi levado da capela até o local da cremação por cerca de

quinhentos metros, com o caixão aberto, as pessoas seguiram em procissão entoando

uma cantiga em ioruba e com os passos contados, três passos para frente, um passo

para trás. Esse ritual, segundo nos explicou o Babalorixá Tito de Omolú, representa o

percurso da vida: caminhar e recuar, caminhar e recuar, até os últimos passos da vida,

representado pela morte. A cultura ocidental moderna se esforça para ignorar esse

percurso. Banindo a morte da cena da vida, investe alto na cultura do ego e o resultado

disso, segundo Melman (2004), é o homem moderno que coloca o prazer à frente do

saber, valoriza a estética em detrimento da ética e que, abrindo mão do pensamento,

tornou-se “um indivíduo manipulável e manipulado”. Sendo sujeito de prazer, o homem

moderno usurpou a sacralidade da morte e transformou-a em mais um bem de

consumo. Não há lugar para a morte no caminho da vida moderna.

Apesar da mudança na tradição, vista na cremação do corpo da Ialaxé, podemos

constatar diferenças significativas na forma como a morte foi tratada e encarada por

essa comunidade: a permanência da Ialaxé em casa até os seus últimos momentos de

vida – a recusa da família em isolar o seu doente; o retorno do corpo para casa – a

morte domesticada e o ritual do Sirrum que, ao contrário da rapidez dos rituais

modernos, levou o caixão aberto e vagarosamente até o seu destino final – a exposição

da morte.

4.1.2. Ritual do Axexê – um passado remoto subvertendo a urgência dos rituais

de morte do ocidente moderno

O ritual do axexê da Ialaxé foi realizado dentro da tradição professada pelo

candomblé, passando por todos os ritos de desconstrução da feitura de santo, a

inversão dos procedimentos básicos da iniciação, de que nos fala Prandi (2005): 1)

música, canto e dança; 2) transe, com presença de pelo menos Iansã incorporada; 3)

Page 127: A morte no candomble

119

sacrifício e oferendas variadas ao egun e a orixás ligados ritualmente ao morto, sendo

sempre Exu o primeiro a receber as oferendas; 4) destruição dos objetos rituais do

falecido; 5) despacho dos objetos sagrados “desfeitos” juntamente com as oferendas e

objetos usados durante a cerimônia.

Dois procedimentos ritualísticos aconteceram logo após a morte da Ialaxé,

dando início à inversão da iniciação. Seus assentamentos de santo foram colocados no

chão e as quartinhas com água esvaziadas, em sinal de que ali não existia mais vida.

Em seguida, o pai de santo retirou da cabeça da Ialaxé os fundamentos colocados

durante sua feitura de santo, vinte e três anos atrás, em sinal de que ali não havia mais

orixá.

Dois dias após a morte da Ialaxé, a comunidade de santo, reunida no terreiro,

deu início ao ritual do axexê; um ciclo de sete noites de cerimônias em homenagem a

Ialaxé.

O contraste em relação aos rituais fúnebres do mundo moderno é muito intenso

aqui; seja pelo tempo dedicado às cerimônias, seja pela contínua lembrança da morte e

da vivência do processo de luto. É sabido que, para o candomblé, esse deve ser um

ritual de alegria. Entretanto, embora não tenha se visto manifestações de tristeza ou de

desespero por parte dos participantes, tão pouco se viu expressões de alegria. O que

pareceu foi que todos ali estavam vivenciando um momento novo, com apreensão por

aquilo que não conheciam.

O ritual do axexê é raro nos dias de hoje e só é realizado em todas as suas etapas

para pessoas da alta hierarquia das casas de santo. Só pode ser realizado por sacerdotes

especializados no culto dos eguns (mortos), que cobram por esse serviço não estando,

assim, acessível a todos os terreiros. No caso de iniciados com menor grau de

hierarquia na comunidade, o ritual, embora sempre aconteça, é reduzido à quebra dos

assentamentos e ao despacho de todos os pertences do iniciado morto. Parece que o

Page 128: A morte no candomble

120

ritual do axexê vai perdendo força em função de duas estrelas do mundo moderno:

tempo e dinheiro.

Tempo porque os filhos de santo mantêm uma vida social, familiar e

profissional fora da casa de santo e participar de um ritual durante sete noites

consecutivas exige certo esforço e negociação com aspectos e afazeres da “vida

moderna”.

Dinheiro, porque é preciso pagar pelos serviços dos ojés (sacerdotes

especializados no culto dos eguns). Esse valor pode incluir, ainda, despesas com

passagens aéreas, hospedagem, além das comidas para as oferendas e alimentação das

pessoas que participam do ritual durante o período de sete dias.

Ainda que o ritual não conserve nos dias de hoje sua função original, de

celebração, pode-se observar que o tempo dedicado ao ritual, assim como sua repetição,

dia após dia, pode permitir aos participantes um momento de elaboração da perda, um

tempo de dedicação a essa perda e uma oportunidade de estar junto ao grupo,

realizando um luto compartilhado.

Em uma das últimas cerimônias do ritual, o café da manhã e almoço coletivos, a

morte subverte a hierarquia. Iguala o pai de santo aos demais membros da comunidade,

quando ele divide a mesa e a refeição com todos, buscando mostrar que o novo deve

ocupar o lugar do mais velho, sempre, para que possa haver a continuidade da vida

como um todo. Essa idéia não cabe no mundo ocidental moderno onde a

individualidade se impõe como a principal forma de existência e onde a morte não tem

mais lugar.

Insistindo em ignorar os ditames do mundo moderno, o ritual do axexê é um

lócus onde a morte ainda se apresenta com toda a sua força e soberania.

Page 129: A morte no candomble

121

4.1.3. O impacto da morte na comunidade de santo

No período dos dois anos pesquisados, o diagnóstico da doença da Ialaxé alterou

a vida da comunidade, que passou a nortear suas atividades religiosas em função dessa

nova realidade. Pudemos ver o comportamento do grupo através dos cinco estágios do

processo da morte descritos por Kübler Ross (1969) – negação, raiva, barganha,

depressão e aceitação. O estágio da barganha esteve presente do início até o final, se

sobrepondo aos demais. Pode-se compreender essa atitude lembrando que ela está

descrita nos fundamentos do candomblé, no sistema de dar e receber, na compreensão

de que tudo se dá pelo princípio da troca, de que os acontecimentos geram harmonia ou

perturbação, e que toda perturbação da harmonia exige atos de reparação – obrigações

de troca. O próprio ritual do axexê está fundamentado no princípio da troca: obrigações

para o morto, para que ele possa romper as barreiras do mundo do aiye (terra) e para

que o grupo religioso possa se reestruturar social e magicamente após essa partida.

Uma das conseqüências mais visíveis no processo da doença e morte da Ialaxé, foi a de

que a casa de santo sofreu a perda de grande parte de seus membros. Houve uma

ruptura na ordem até então estabelecida e a concepção do candomblé frente à morte –

um ciclo que se fecha – mostrou-se frágil para essas pessoas que se retiraram do

terreiro. Podemos observar ainda que, para o filho da Ialaxé, médico e iniciado no

candomblé, a luta travada e perdida contra a doença da mãe mostrou, também, nesse

caso, a força da cultura ocidental moderna sobre o candomblé. Alguns meses após a

morte da Ialaxé, ele deixou o terreiro, abandonando ali todos os seus assentamentos de

santo. Uma outra filha de santo, nora da Ialaxé, também deixou o terreiro, meses após a

morte da Ialaxé, mas para ela os assentamentos de santo guardavam um significado

maior, uma vez que ela os levou consigo. O que ficou bastante evidente no caso dessa

iniciada, ao vê-la ir embora com seus assentamentos e todos os seus pertences, é que ela

Page 130: A morte no candomble

122

estava rompendo com o grupo, com aquele grupo específico, mas que seus orixás

conservavam para ela ainda um grande valor.

No que diz respeito ao grupo como um organismo que se nutria e crescia até a

doença da Ialaxé, podemos constatar que sua morte abalou os alicerces da comunidade,

de uma forma que nos leva a questionar se faltou a essa comunidade a preparação “real”

para essa perda, com sua imediata substituição, como é o costume no candomblé. Seu

lugar de segunda pessoa na hierarquia da casa e o papel de mãe que desempenhava com

rigor, não foi preenchido. O ritual do axexê visa, também, cumprir essa função. Além

de desfazer os laços de compromisso do morto com as coisas do aiye, incluindo a

comunidade de santo, o ritual do axexê busca, segundo Augras (1983), reestruturar

todas as relações dentro do sistema e assegurar a correta distribuição da força sagrada.

No presente caso, passados quase dois anos da morte da Ialaxé, a comunidade ainda

luta para reestruturar suas relações. Parece-nos que, no que tange ao coletivo, o ritual

do axexê não pôde cumprir sua função.

Page 131: A morte no candomble

123

4.2. Iniciação – o eu abre caminho para o “outro”

Para traçarmos um diálogo entre o pensamento do mundo ocidental moderno e

a condição do filho de santo, sujeito à possessão do orixá, utilizamos uma interlocução

entre textos do livro A Troca Impossível, de Baudrillard (2002), e a vivência daquele que

se deixou tocar pela experiência de uma entrega de onde a razão temporariamente se

ausenta.

Antigamente, o homem não estava fadado a não ser o que é. Deus e Satã brigavam

em cima de sua cabeça. Antigamente, éramos importantes o bastante para que

alguém brigasse por nossas almas. Hoje, nossa salvação compete a nós. Não estando

mais inscrito em uma ordem que lhe é superior, mas vítima de sua própria vontade,

intimado a ser o que quer e querer o que é, o indivíduo moderno acaba por detestar

a si mesmo e por afundar no esgotamento de suas possibilidades – nova forma de

servidão voluntária. (pp. 53/55).

De forma geral, o indivíduo não procura o candomblé porque quer, mas busca

na religião algo que lhe falta. Seja a cura para um sofrimento, do corpo ou da alma, ou o

preenchimento de um vazio que a razão não pôde atender. O candomblé não é um

caminho de fácil escolha, é uma religião prescrita, ainda cercada de preconceito e de

ignorância sobre seus fundamentos. Apesar de ser hoje aceita nos meios intelectuais,

artísticos e acadêmicos, é vista, pela grande maioria da população, como uma religião

atrasada, que pratica rituais inadmissíveis na concepção da modernidade e da razão;

não raro é vinculado à prática do mal e o mágico é visto como feitiçaria. Sabemos que

esses resíduos foram deixados pela tentativa de submissão dos negros escravos à

religião católica. Mas a opinião dominante ainda é a do século XIX, mesmo que velada,

porque hoje não é “politicamente correto” discriminar pessoas ou crenças.

Page 132: A morte no candomble

124

Seja como for, a servidão para o iniciado no candomblé não é voluntária, mas,

antes, imposta por uma necessidade não satisfeita pelos recursos disponíveis no mundo

moderno. E ainda que ele encontre no orixá seu caminho de expressão de ser,

individualizado enquanto se reparte com esse Outro e passe a admiti-lo como condição

de sua existência, ainda assim, permanecerá escravo desse Outro sendo dele, também,

Senhor. Um caminho sem retorno. O iniciado, uma vez filho de orixá, ainda que opere

uma ruptura com a comunidade e suas obrigações para com ela e para com esse Outro,

será sempre um filho de orixá, faltoso, em dívida e dividido.

Para o indivíduo, abraçar a condição de iniciado no candomblé implica em uma

grande responsabilidade, em compromissos com a comunidade, consigo mesmo e com

seus orixás. E como no candomblé nada é dado de ante mão, mas vivido e aprendido no

decorrer dessas vivências, implica, também, em um constante descobrir, um

descortinar o novo, um mergulho no desconhecido que o iniciado admite na busca de

algo que lhe transcenda, porque é isso que está lhe faltando. Baudrillard (2002) atesta

essa falta: “Na ausência de potências transcendentes que cuidem de nós e no desígnio perpétuo

de produzir provas de nossa existência, somos forçados a nos tornar fractais para nós mesmos.

Privado do destino, o indivíduo moderno o substitui por uma experiência fatal consigo mesmo”

(p.55).

Podemos reconhecer no candomblé as potências transcendentes – os orixás –

mas que dependem do indivíduo para que, também, numa experiência fatal consigo

mesmo, possa dar vazão a essa potência. Fatal porque precisa romper as barreiras de

seu próprio preconceito e de sua consciência; fatal porque é uma entrega no escuro, um

vôo cego, uma ausência de si mesmo; fatal porque priva o indivíduo, não do destino,

mas do controle.

A iniciação no candomblé implica a permissão da apropriação da individualidade

por uma alteridade radical – o orixá – para que, só a partir daí, seja possível a

constituição do ser enquanto sujeito completo. Essa apropriação não tem lugar no

Page 133: A morte no candomble

125

mundo moderno onde, segundo Baudrillard (2002) “a vida individual está colocada sob o

signo moral de uma apropriação de si, portanto de uma degeneração de toda alteridade

radical” (p.51).

Ao iniciado do candomblé, a exigência que se faz é a de que abra mão de sua

consciência, de sua autonomia, e deixe seu corpo à disposição de um Outro que ele

vivencia, mas não sabe dar conta, nem de seus atos, nem de sua voz. É o orixá que

dança seu corpo, é o erê que diz sua fala e altera sua voz. O eu se ausenta para um lugar

impossível de ser alcançado; não há consciência, o tempo se anula.

Na descrição que o iniciado faz após ter sido tomado por seu orixá, ou por seu

erê, há uma suspensão do tempo; as horas parecem não ter passado, o tempo deixou de

contar naquela troca entre o sujeito e o orixá. Quando retorna, o iniciado experimenta

uma sensação de leveza, de estar limpo; tendo voltado de um lugar do qual não pode

dar conta, tendo vivido essa metamorfose, o iniciado renasce a cada manifestação do

orixá. Recorremos a Baudrillard (2002) para apontar a diferença entre essas duas

culturas, já que, para o mundo moderno, “a exigência da consciência é a de cada vez mais

autonomia, mais liberdade. É por isso que quebramos o pacto simbólico e o ciclo das

metamorfoses” (p.51). Nesse sentido, o iniciado parece abrir mão de todos os

pressupostos modernos para entregar-se, sem controle, à vivência do seu orixá.

Baudrillard (2000) diz que “atualmente é ilegal não querer ser livre ou renunciar a

própria vontade” (p.57). O iniciado no candomblé está inscrito nessa ilegalidade, porque

renuncia à própria vontade, à própria consciência.

Ainda segundo o autor, o indivíduo moderno, “sem alteridade interior, consagrou-

se a uma identidade sem fim. Identificação do indivíduo, do sujeito, da nação, da raça.

Identificação do mundo, tornado técnica e absolutamente real – tornado o que é” (Baudrillard

(2000, p.58). O filho do orixá se torna o que é em combinação com o Outro que lhe

toma e de quem herda características e traços que não são seus, ou o são por herança, já

Page 134: A morte no candomble

126

que desse Outro ele descende. E é com esse Outro dentro de si que ele se identifica,

tornando-se o que não é, diferente de todos os outros.

Baudrillar (2002) pergunta: “O que é um escravo sem mestre? É aquele que devorou

seu mestre e o interiorizou, a ponto de se tornar seu próprio mestre. Não o matou para se tornar

o mestre (isso é a Revolução), absorveu-o permanecendo escravo, mais servo do que servo: servo

de si mesmo” (p.61). Segundo o autor, na sociedade antiga os limites eram bem

demarcados: o mestre e o escravo, o senhor e o servo, o capital e o assalariado, sendo

possível determinar quem é um e quem é o outro, mas, agora, o mestre desapareceu,

restando apenas os servos e a servidão. Servidão de si mesmo.

Não é dessa forma que se dá a relação entre o iniciado e o orixá. Ambos se

alternam na posição de mestre e escravo. O orixá é mestre enquanto prescreve ao

iniciado determinados ritos, comportamentos, proibições; quando se exterioriza e toma

seu corpo e dele se utiliza para dançar e conviver com o mundo do aqui e do agora.

Mas é escravo porque depende do iniciado para se manifestar, para que esse cuide e

preserve os seus rituais e obrigações, sem os quais não poderia se fazer presente.

Eterna troca, constante dar e receber, sem o qual nem um, nem outro, poderia vir a ser

inteiro.

Apreendemos dessa interlocução, entre o candomblé e os textos de Baudrillard

(2000), que o candomblé é um espaço onde indivíduos modernos se tornam sujeitos

através da renúncia de uma liberdade hoje imposta, mas que, paradoxalmente, não

renunciam a ela por escolha, mas por uma imposição que vem de dentro de si mesmo,

da falta, do Outro que insiste em se manifestar; imposição da liberdade do Outro – esse

“Outro em mim”.

Page 135: A morte no candomble

127

4.3. Tecendo os fios de várias vozes

Contamos, para esse tear de vozes, com a participação de quatro filhos de santo,

que trouxeram suas vivências dentro dos diversos rituais do culto e com a voz da

pesquisadora que, integrante da comunidade de santo, descreveu o ritual do axexê da

Ialaxé Verinha de Oxum e sua vivência, desde a chegada ao candomblé até sua iniciação

como iaô. Através do cruzamento destas vozes buscaremos tecer os pontos de

convergência, apontando também os divergentes, a fim de obtermos um tecido que nos

permita compreender como esses filhos de santo, sujeitos da modernidade, costuram

suas trajetórias entre as tradições de uma religião milenar e as urgências da vida

ocidental moderna.

4.3.1. A porta de entrada – o ingresso no candomblé

Com exceção da pesquisadora, os demais participantes da pesquisa tiveram,

antes do ingresso no candomblé, uma participação ativa na umbanda ou no kardecismo.

Anderson e Fernando foram, inclusive, iniciados nestas duas religiões. Nenhum dos

participantes nasceu, portanto, no berço do candomblé.

É comum dizer-se no candomblé que se chega até ele pela dor ou pelo amor e

três dos participantes fizeram referência a essa citação; a pesquisadora, apesar de não

fazer referência clara a esse ditame, admitiu sua chegada à religião pela dor. Apenas um

dos participantes não fez essa citação, nem admitiu sua chegada por qualquer desses

caminhos, caracterizando-a como uma busca, busca de si mesmo, que chegou ao fim ao

conhecer o candomblé.

Eduardo, filho de pais umbandistas, conheceu e participou de várias religiões,

mas diz que “a busca do encontro comigo mesmo se deu no candomblé”. Chegou ao

Page 136: A morte no candomble

128

candomblé “por curiosidade” e passou a freqüentar e a se integrar ao culto, “quando eu vi

já estava participando do culto do candomblé (...) como nós dizemos, eu fiz o santo”.

Luciana, filha de pais kardecistas, foi levada ao candomblé por um amigo, que

mais tarde se tornou seu esposo; muito jovem, parece não ter feito, na época, uma

escolha pela religião em si, mas pelo caminho que o esposo já seguia.

A pesquisadora, nascida católica, procurou outras religiões sem se fixar em

nenhuma delas; chegou ao candomblé, também guiada por um amigo, mas levada por

uma dor, pela perda de sua mãe e do significado da vida.

Anderson, embora sustente que não chegou ao candomblé pela dor ou pelo

amor, foi inserido no mundo espiritual desde a infância e pelo caminho da dor, doença

física, marcada no corpo. Freqüentou a umbanda e o kardecismo durante anos, sendo

avisado por “entidades espirituais” de que um novo caminho de aprendizado deveria ser

seguido por ele. Sua chegada ao candomblé se deu através de uma série de

coincidências e ele diz que, uma vez que não o procurou, foi “encontrado” por ele e

afirma que tinha, antes de sua chegada, “muito preconceito ao candomblé”.

O caminho de Fernando é semelhante ao de Anderson; descendente de um

sacerdote africano diz-se herdeiro espiritual do avô e por isso, seu destino, desde

sempre, estava traçado para o sacerdócio dos orixás. No entanto, também afirma o

preconceito e diz que sua concepção sobre o candomblé não era muito boa e que “não

passava pela minha cabeça entrar para o culto religioso nagô, ioruba, que é uma das origens do

candomblé”. Mas apesar de conhecer diversas religiões e de ser iniciado na umbanda e

no kardecismo, assim como Anderson, também recebeu o aviso de que deveria começar

um novo caminho espiritual. Também, como Anderson, não buscou esse caminho e foi

após um período de muita dor e de muitas perdas materiais e afetivas que foi levado ao

candomblé pelos orixás, como fala: “fui levado até ele (o pai de santo Tito de Omolu) pelos

orixás (...) como eu não encontrei o caminho (os orixás) fizeram com que eu encontrasse”.

Page 137: A morte no candomble

129

Destes cinco caminhos, três deles foram iniciados pelos passos da dor:

Fernando, Anderson e a pesquisadora sofreram no corpo ou na alma as dores que os

fizeram alcançar a porta de entrada do candomblé. Eduardo procurou por esse

caminho e após abrir e fechar as portas de várias religiões e crenças encontrou no

candomblé o seu porto de chegada. Luciana chegou pelo amor, o amor ao esposo aliado

ao “encantamento” pelas coisas do candomblé e o “amor ao orixá Oxum” fizeram com que

ela cruzasse as portas da religião.

Com uma participação entre oito e vinte e três anos no candomblé, os

participantes da pesquisa parecem ter encontrado na religião uma forma de lidar com

seus problemas mais urgentes, sejam as repostas que buscavam (Eduardo, Luciana e a

pesquisadora) ou o aplacamento de suas dores mais agudas (Fernando e Anderson),

confirmando o dizer de Prandi (1991, pg. 214) de que “o candomblé afirma o mundo,

valorizando-o e, ao propor meios para lidar concretamente com os problemas, graças à

utilização de recursos mágicos, permite que cada indivíduo lute com armas simbólicas

contra tudo aquilo que o esmaga”, concluindo que o candomblé é uma religião que, por

não rejeitar o mundo ou pretender mudá-lo, mas vendo-o como ele é, possibilita às

pessoas enxergarem, no mundo possível, os meios de ser feliz.

4.3.2. Um recomeço – a vida a partir do candomblé

A partir do ingresso no candomblé, Eduardo, Fernando e Luciana reconhecem

uma mudança profunda em suas vidas. Anderson acredita que apenas continuou a

trilhar os caminhos já escolhidos anteriormente, dando continuidade a “um processo

espiritual iniciado na infância” e o seguimento do curso já traçado em sua vida acadêmica

e profissional; ele diz não saber se teve influência direta da religião em suas conquistas

por acreditar que a responsabilidade pessoal é fundamental para o atingimento das

metas individuais. Anderson diz:

Page 138: A morte no candomble

130

Eu acho que a religião pode ser um instrumento, ou não, depende muito da postura

da pessoa, depende muito do que ela faz por ela mesma, antes da religião; a religião

acho que é um adendo, algo mais e não a base para isso.

Anderson está de acordo, aqui, com o livre arbítrio professado pelo candomblé

ao afirmar que a manutenção da vida não é algo espontâneo e que o ser humano é, em

grande parte, responsável por essa manutenção. Cabe a ele, portanto, desempenhar seu

papel no mundo da vida.

Eduardo acredita que as mudanças positivas ocorridas em sua vida estão

diretamente relacionadas à sua entrada no candomblé:

A minha vida profissional mudou completamente (...) a força, o empurrão que eu

precisava para minha carreira ir em frente (...) inclusive os meus estudos que

estavam paralisados há vinte anos (...) eu tive o incentivo de retomar meus estudos.

Ele atribui seu crescimento a um conjunto de forças, não apenas ao orixá, a

uma pessoa em particular ou ao grupo como um todo, mas desse conjunto de fatores.

Vai de encontro ao ensinamento do candomblé que diz que o filho de santo não é visto

apenas como indivíduo, mas como membro de uma comunidade e como tal toma parte

no todo do sistema; ele não é entregue a si mesmo, mas é parte de um todo, esse

conjunto de forças a que Eduardo se refere.

Luciana, por ter ingressado no candomblé ainda muito jovem, contava apenas

16 anos, não aponta mudanças significativas em sua vida concreta, mas diz ter sofrido

uma grande mudança quanto a sua forma de se relacionar com Deus: “eu não tinha

Page 139: A morte no candomble

131

nenhuma crença, não tinha nada que me fizesse acreditar que na verdade existia uma força ou

um Deus que movimentasse o universo”.

Após seu ingresso no candomblé e a convivência com o culto, ela diz, hoje,

acreditar em um Deus “universal e único”.

Para Fernando, o ingresso no candomblé parece ter se dado como única

alternativa de vida devido à herança espiritual que ele diz ter recebido do avô e que, da

mesma forma, transmitiu à sua filha primogênita, hoje também iniciada no candomblé.

Para ele, a vida fora do culto não tinha possibilidade de se desenvolver. Antes de

chegar à religião, perdeu tudo o que tinha, bens materiais, família, saúde; ele diz:

“cheguei literalmente a passar fome, eu saí de uma casa no Lago Sul pra morar num barraco na

Ceilândia”.

Por ter abandonado toda forma de vivência espiritual, quando se encontrava

em um período próspero, Fernando diz que, mesmo iniciado no candomblé, precisou

esperar sete anos até que sua vida voltasse ao equilíbrio e que isso lhe foi avisado e

atribuído por ele a um castigo:

O erro que eu cometi foi que eu fiz isso (abandonar a espiritualidade) por bens

materiais (....) achei que isso já bastava em minha vida, esqueci exatamente da

minha hereditariedade, do meu compromisso com a ancestralidade, e aí, sim, foi um

castigo por que eu não tive visão e não assumi o meu compromisso com essa

ancestralidade, eu os abandonei de fato (...) abandonei porque achei que o mundo

material pra mim era o que valia, então houve esse castigo durante sete anos.

Ele acredita que esses anos de “castigo” foi um período importante de

aprendizado e que a partir daí sua vida tomou um novo rumo:

Page 140: A morte no candomble

132

Você vai aprendendo a amar os orixás (...) a partir do momento que você começa a

seguir o caminho da fé, da crença e atitude, porque não basta ter fé e crença e não

tomar atitudes, dentro e fora da comunidade, cada vez mais você vai recebendo,

como num conta gotas o axé que o orixá lhe dá, poder individual para que você

construa para você e para os seus, e é fato, são vinte anos na verdade que eu comecei,

me iniciei e eu sou uma prova viva disso.

Ao reconhecer o candomblé como único destino possível, Fernando aceitou o

castigo imposto por sua “transgressão”, significando, assim, todo o período de

sofrimento anterior.

Fernando ocupa hoje posição de destaque na hierarquia do Axé Baraleji: é pai

pequeno (aquele que substitui o pai de santo em seus impedimentos) de vários filhos de

santo, já iniciou o seu primeiro iaô (tornando-se, nesse caso, pai de santo) e segue

trajetória ascendente em sua vida pessoal.

Excetuando-se o caso de Luciana, que entrou no candomblé muito jovem, os

demais participantes, Eduardo, Anderson e Fernando, reconhecem e enfatizam a

necessidade da participação ativa do indivíduo em seu processo de desenvolvimento.

Nada virá sem esforço, sem responsabilidade, sem “atitude”. Afirmam-se assim os

fundamentos do candomblé, desde o sistema de trocas – dar e receber – e em grupo,

porque o processo de troca entre o Orum e o Ayie só pode acontecer no caminho da

experiência religiosa e dentro da comunidade, sendo o indivíduo, em grande parte,

responsável por essa dinâmica, essa troca que não cessa. O ser humano encontra assim

a sua integração e contribui para a manutenção da vida enquanto cumpre suas

obrigações na comunidade, enquanto não se fecha em si mesmo, mas está disposto e

aberto ao dar, ao oferecer.

Page 141: A morte no candomble

133

Pode-se apontar aqui uma importante divergência com os princípios da

sociedade ocidental moderna, onde a individualidade é valorizada acima de qualquer

interesse coletivo e onde a cultura do ego privilegia os verbos “ter” e “adquirir” em

detrimento dos verbos “dar” e “receber”; no ocidente moderno, o sistema de trocas foi

abolido, vigorando a supremacia da moeda na compra do prazer imediato, juventude

aparente, status social e acúmulo de bens, num cenário que Ballone (2002) define como

o de materialismo dominante.

Isso fica claro, no caso de Fernando, que renunciou à vida espiritual em

virtude de uma carreira profissional ascendente, que lhe garantia o fácil acesso aos bens

materiais, onde a troca do “ter” pelo “ser”, veio de uma forma imposta: com a perda de

todos esses bens, mais outros, como o casamento e a companhia da filha. Maneira

radical de trazê-lo de volta ao caminho espiritual.

Mas é possível perceber que, mesmo para Fernando, os bens foram

restituídos. Após um longo tempo de castigo, tempo em que se dedicou “a ser” para o

orixá, ele conseguiu retomar o caminho de crescimento, reativando o sistema de trocas.

Seja como for, parece ser necessário ao fiel do candomblé, deixar de priorizar

o “sentido do ter” para entregar-se a uma vivência mais aberta ao “sentido do ser”. A

própria hierarquia do terreiro de santo determina essa necessidade: quanto mais o fiel

passou por ritos de iniciação, adquirindo status de “ser” dentro da comunidade, mais ele

se destacará dos demais, não importa o quanto eles acumulem de bens ou riqueza

material.

Page 142: A morte no candomble

134

4.3.3. As várias faces da morte na voz dos filhos de santo

Fernando é o iniciado com maior experiência, vivência e estudo de diferentes

religiões e diz ter duas visões a respeito da morte:

A visão do candomblé e a minha que é a visão do candomblé e mais um pouquinho.

Para o candomblé a morte é o momento onde tua alma e o teu espírito, o teu orixá,

o teu axé, o teu ori se desprendem desse aiye, desse mundo.

Segundo Fernando, além do corpo físico, o ser humano possui uma alma, que é

a energia vital, equilíbrio entre o corpo e o espírito, que se desfaz com a morte

(podendo se transformar em egun, no caso do candomblé); o espírito, que é uma

existência divina, vindo de outros mundos, de outras existências que retorna para o

orum com a morte e pode voltar para esse mundo em uma outra existência, ir para

outros mundos ou permanecer estagnado; para o candomblé, o retorno de um espírito a

uma nova vida só é possível através de merecimento; merecimento que pode conduzi-

lo, inclusive, a formas de existência mais elevadas. Ainda segundo a doutrina do

candomblé, não há retorno do espírito para pagamento de dívidas ou cumprimento de

carma, como professado pela doutrina kardecista. Fernando pergunta:

Como se acreditamos em um ser, Deus, Olorum, Olodumare, não importa o nome,

que nos dá a condição de viver, de ter a oportunidade de crescer e melhorar, mas que

nos coloca num estado de inconsciência daquilo que por um acaso fizemos, esse

Deus, ele está punindo a quem? (...) Ele está punindo um espírito? Você sabe quem

é seu espírito? Eu não sei quem é o meu, ninguém sabe. Então, não pode existir

carma no sentido de punição, porque você não tem consciência daquilo que você fez

de errado, então como é que você vai consertar aquilo que você não sabe?

Page 143: A morte no candomble

135

Além da alma e do espírito, segundo o candomblé, o ser humano possui o ori,

que é a inteligência, a consciência, é toda a forma de existência individualizada que se

desfaz com a morte; o orixá do filho de santo iniciado é um ancestral divino, que poderá

retornar ou não: “o orixá não é um ancestral só seu ou um ancestral só meu; um novo

descendente que tenha um caminho de orixá, se aquele filho tiver ligação direta com aquele

orixá, o orixá pode voltar”.

O axé, parte que também compõe os filhos de santo iniciados no candomblé, é

reincorporado na comunidade de santo, e o ara – o corpo se desintegra, se desfaz.

Fernando conclui:

Então a morte, dentro do candomblé, ela é o desligamento dessas cinco existências

desse mundo (alma, espírito, ori, orixá e axé), ou se dissipam ou a alma vira

egun e o espírito volta para esse mundo (...) por merecimento ou volta para o

mundo de outro orum. Daí que dentro do culto, do pensamento, do fundamento do

candomblé a morte nem sempre é uma continuidade, para ter continuidade tem que

ter merecimento.

Para Fernando, no entanto, o entendimento é de que o retorno do espírito

cumpre algo além do que o merecimento:

Como uma necessidade real de evolução do espírito sempre para um mundo melhor

(...) para mim a morte é um novo caminho, e não chamo um renascimento, é uma

transformação, uma metamorfose (...) as coisas que acontecem que alguns chamam

de desgraça, eu vejo como aprendizado, eu vejo isso como transformação da vida, ou

da morte de uma existência para a transformação de uma nova vida, eu enxergo

isso como fazendo parte do que vai ser o que as pessoas chamam de morte, mas que,

para mim, é o acúmulo de experiência do orí, do orixá, do espírito e da alma.

Page 144: A morte no candomble

136

O discurso de Fernando afirma a concepção de morte do candomblé ao mesmo

tempo em que a nega, quando diz que, em sua visão particular da morte a evolução do

espírito é sempre necessária, não se dando apenas por merecimento. Fernando afirma

que, para o candomblé, a morte não é, necessariamente, uma continuidade, mas que,

para ele o espírito, necessariamente, precisa evoluir. Nesse acréscimo que ele faz à

concepção de morte de sua religião, parece existir um desejo de que a continuidade seja

algo palpável, real, afastando, dessa forma, a visão da morte como fim e passando a

enxergá-la como um destino mais aceitável.

Anderson e Eduardo, da mesma forma, vêem a morte como o início de um novo

caminho. Anderson diz: “eu sempre encarei a morte não como um fim, eu sempre vi

continuidade na morte”.

E Eduardo: “a morte para mim é uma passagem, só uma passagem”.

Poderíamos apontar aqui, nessa contradição entre a concepção de morte do

candomblé e a dos três participantes, uma divisão, uma cisão de vários saberes, mas, o

que nos parece é que se opera o contrário: uma junção de diversas experiências, uma

integração de vivências, resultando disso não um ser dividido, mas um indivíduo que,

agregando, consegue fazer uma síntese que lhe proporciona uma forma mais

confortável de lidar com a morte.

Além das concepções sobre a morte, adquiridas ao longo do percurso traçado

em várias religiões, os participantes ainda trazem o aprendizado legado pelo mundo

moderno, onde ecoa o silêncio da morte.

Eduardo aponta que, além da concepção de morte que aos poucos vai

assimilando dentro do candomblé, traz consigo também a concepção aprendida na

Page 145: A morte no candomble

137

infância, herdada da sociedade, revelando-se aqui ator do mundo moderno, com o

acúmulo de diferentes saberes e com conteúdos nem sempre convergentes.

Anderson incorpora de forma mais aguda essa divergência de saberes e

vivências. Inserido no mundo espiritual desde a infância, passando por iniciações na

umbanda, kardecismo e agora no candomblé, trabalha como fisioterapeuta em unidades

de terapia intensiva de hospitais de Brasília. Para quem desde criança aprendeu a tratar

a morte e os mortos como realidades próximas, estar num lugar onde a morte é

constantemente negada obriga-lhe a calar a voz:

Desde a minha infância eu sempre lidei com situações de morte, eu via pessoas

mortas que conversavam comigo (...) no meu trabalho não existe espaço para você

discutir sobre qualquer coisa ligada à morte, ninguém vai discutir isso, morreu,

morte clínica, pronto, acabou, então agora a família vai sofrer e velar o morto,

ponto.

Embora reconheça o abismo entre sua concepção e sua maneira de lidar com a

morte e aquela praticada no seu ambiente profissional, Anderson não aprofunda a

diferença entre os dois pólos; assim como para Fernando e Eduardo, a idéia, e a certeza

até, de uma continuidade para além da vida, seja em que plano de existência for, fecha a

possibilidade de qualquer questionamento.

Luciana é a voz dissonante do discurso recorrente de Eduardo, Fernando e

Anderson. Para ela, a vivência da doença e morte da Ialaxé Verinha de Oxum alterou de

maneira profunda a forma de se relacionar com a morte, ela diz:

Eu entendo a morte no candomblé como sendo o inevitável por sermos matéria,

como sendo uma das forças que eu já pude sentir, vivenciar (...) da forma mais

Page 146: A morte no candomble

138

poderosa entre todas as coisas que eu já participei (...) e, realmente é inexplicável a

sensação de desespero, que pelo menos me envolveu quando participei, do medo

profundo, que me levou também a questionar alguns valores, como sendo a morte

uma coisa boa, como sendo a morte uma passagem boa, se no momento que eu

vivenciei essa manifestação energética, da sensação desse caminho da Ialorixá Vera,

ter transmitido a mim tanto medo, tanto desespero.

Luciana refere-se à realização da primeira de uma série de obrigações que se

seguiram na luta pela manutenção da vida da Ialaxé. Essa obrigação contou apenas com

a presença da Ialaxé, do Pai de Santo, do filho da Ialaxé, médico e iniciado no

candomblé e da própria Luciana. Ela continua:

Aquele exato momento quando se iniciou a tentativa mágica da manutenção da

vida, foi que me mostrou o quanto era frágil a vida, o quanto que a morte é

extremamente mais forte, porque com todo o amor que se dedicou aquele momento,

com toda a magia, com todo o conhecimento que se faz necessário na tentativa de

alguma ação de sucesso, a única sensação que eu guardei foi de medo.

Nem o amor, o conhecimento, a magia, nada foi capaz de superar a força com

que a morte se apresentou à Luciana naquele momento onde ela parece ter se deparado

com a realidade da morte, a impotência que a levou de novo, como no início da

adolescência, a questionar a existência de Deus. Referindo-se ao seu pai carnal, doente

em fase de cuidados paliativos, ela diz que embora sendo um grande estudioso do

kardecismo ele vem, ultimamente, questionando a existência de Deus e se apropria da

dúvida do pai: “se ele pode levantar esse aspecto de dúvida (...) me sinto extremamente à

vontade pra questionar a existência de um Deus”.

Page 147: A morte no candomble

139

Luciana denuncia a descontrução de tudo o que acreditava em relação à morte:

“aquela estrutura que eu criei durante os meus 36 anos, fui criando no meu aprendizado, aquela

estrutura de ser uma coisa boa a passagem, caiu por terra”.

A vivência de um ritual, forte, pela descrição e pelos efeitos causados em

Luciana, uma única vivência, foi capaz de destruir o seu aprendizado de 36 anos, foi

capaz de arrasar toda a racionalidade acumulada em relação à morte, transformando-a

em um ser que duvida:

A sensação da vivência de poder entrar em contato com a morte me deixou uma

dúvida se realmente existe uma passagem, se realmente, como ninguém voltou pra

contar, se realmente existe um aprimoramento em outro prisma, essa é uma dúvida

que eu, Luciana, tenho, dúvida de que seja uma coisa boa a passagem.

Algo falhou para Luciana nos diversos ritos que se cumpriram em favor da vida

da Ialaxé, e ela deixou de tratar a morte com a “naturalidade” anterior, a certeza que

tinha de que um dia iria reencarnar, que continuaria um aprendizado, desapareceu; a

morte, para ela, voltou a se revestir de mistério e medo. Mas ela ainda busca refúgio na

racionalidade para diminuir a ansiedade e afirma estar “estudando muito” como forma de

se preparar para as próximas perdas que terá que enfrentar, sendo a de seu pai carnal a

mais próxima e provável, mantendo a crença de que os livros e o conhecimento

poderão desvendar-lhe os segredos do enfrentamento da morte.

Ao se referir à “naturalidade” da morte, Luciana se afasta da filosofia do

candomblé e traz a concepção do ocidente moderno sobre a morte. Baudrillard (1976,

pp. 218/219) define a morte “natural” como a morte “normal, porque acontece ao final

da vida”, tendo seu conceito surgido no seio da ciência “dentro da possibilidade de

ampliação dos limites da vida”. O autor adverte que “a morte natural é a morte

colocada sob a jurisdição da ciência e que tem a vocação de ser exterminada pela ciência

Page 148: A morte no candomble

140

(...) toda pessoa, porém, tem o direito a uma morte natural e, ao mesmo tempo, o dever

dela”. Essa é a sentença em vigor no mundo moderno.

O candomblé é uma religião que valoriza a vida no aqui e agora, na existência

atual de cada ser humano. A morte permeia o culto do candomblé de forma subliminar,

seja pelas trocas realizadas nas obrigações para os orixás, seja pelas novas posições que

as pessoas vão conquistando dentro da casa de santo, sempre através de rituais de

iniciação, seja pelos estágios da vida pessoal que se dão através de finais e recomeços

constantes; no candomblé nada é estático, tudo acontece dentro de um dinamismo que

ressalta e valoriza as mudanças.

A morte é tratada de forma direta apenas nos terreiros dedicados

exclusivamente ao culto dos eguns (mortos). Nos demais terreiros de candomblé,

dedicados ao culto dos orixás, é a vida no aqui e agora que se apresenta soberana. Isso

não implica em falta de compromisso com a conduta individual e coletiva, mesmo fora

dos limites do terreiro, que é ditada por normas rígidas através da tradição e dos

códigos morais estabelecidos.

Vimos através das vivências relatadas pelos participantes da pesquisa que cada

um traz e conserva concepções de morte anteriores ao seu ingresso no candomblé.

Podemos supor que o candomblé acolhe tantas idéias divergentes sobre a morte, sem se

contrapor a elas, justamente por valorizar a existência atual de cada indivíduo que

compõe a comunidade de santo; assim como respeita as diferenças individuais e até as

valoriza, atribuindo-as muitas vezes às características herdadas dos orixás, o Axé

Baraleji parece não priorizar, para os seus adeptos, uma idéia única sobre a morte. O

candomblé possui seus fundamentos e ensinamentos sobre a morte, mas isso parece não

ser um impedimento para que cada filho de santo carregue sua concepção particular,

herdada na maioria das vezes do kardecismo e adaptada ao candomblé, uma vez que

não enxergam a existência como um carma a ser cumprido, mas uma continuidade,

uma evolução necessária ou um retorno conquistado por merecimento.

Page 149: A morte no candomble

141

Dessa forma, podemos perceber que os filhos de santo não se restringem à

concepção da morte ditada por sua própria religião. Mas vimos, também, que isso não

parece se constituir em problema, uma vez que os participantes conseguem fundir

diversos saberes sobre a morte em uma síntese que lhes satisfaz.

4.3.4. Sobre o saber e o vivido – o ritual do axexê

A falta de ensinamento sobre a concepção de morte no candomblé e sobre os

ritos que se desenvolvem durante o axexê dificultou o entendimento e a vivência desse

ritual por parte dos filhos de santo. É certo que o candomblé diz que tudo deve ser

aprendido com os olhos e os ouvidos, mas também nos parece correto afirmar que, para

os participantes da pesquisa, sujeitos da modernidade, atuantes e instruídos na cultura

ocidental moderna, a ausência do saber sobre a concepção de morte em sua religião não

lhes permitiu a introjeção do sentido do ritual do axexê; ao contrário, permitiu que os

conceitos do ocidente moderno se sobressaíssem e corrompessem este antigo ritual.

Como experiência pessoal, Eduardo e Anderson atribuem algum benefício; benefício

esse veementemente negado por Luciana, mas como experiência coletiva eles são

unânimes em afirmar que não puderam compreender o ritual como uma experiência

benéfica. Na verdade, o que nos parece é que o entendimento mantido por Fernando

acerca da concepção de morte no candomblé e do ritual do axexê, escapa aos demais

participantes e eles não puderam enxergar no ritual nada mais do que o cumprimento

doloroso de uma tradição.

Anderson diz:

Na verdade o ritual do axexê é um ritual de celebração, não um ritual de

sofrimento, de perda, de desespero (...) só que a gente não tem essa concepção, a gente

Page 150: A morte no candomble

142

não foi crido para entender isso, então é doloroso, eu acho que muitas vezes é

estender a dor das pessoas (...) que não estão preparadas para o ritual do axexê.

Eduardo acredita que a participação de todos no ritual tornou mais fácil a

aceitação da morte da Ialaxé, mas acha que o ritual é um processo “longo e cansativo” e

Luciana foi categórica ao afirmar que “foram sete dias de axexê, foram sete dias de tortura”.

Parece ter faltado aos participantes da pesquisa o entendimento de Fernando

de que o axexê é um ritual onde a alma faz uma opção de partir ou de se transformar em

egun, sendo essa uma escolha da pessoa falecida transmitida através do jogo de búzios.

Ele fala: “é a alma que comanda, que toma uma decisão, se ela quer continuar existindo ou não

(...) então você tem o conforto de saber que a alma está indo para opção dela”.

Mas Fernando também admite que o ritual do axexê é doloroso para os filhos

de santo pela herança que receberam da cultura cristã. Além disso, diz não desconhecer

a dor da perda de uma pessoa amada e a certeza da falta que aquela pessoa fará ao

grupo.

Luciana acrescenta que o fato da morte da Ialaxé ter se dado pela doença e não

por velhice, como é comum no candomblé, agravou a não aceitação de sua morte e

acredita que a comunidade não foi preparada nem para a morte da Ialaxé, nem para o

ritual do axexê. Ela diz: “faltou preparação pra morte (...) faltou preparação pra aquele rito

que iria se cumprir, não se tinha idéia que seria tão sofrido, não se tinha idéia de que ia ser tão

difícil”.

Luciana conhecia o ritual do axexê descrito nos livros, assim como para

Anderson e Eduardo também não era desconhecido o fundamento do rito, ainda que

superficialmente, como afirmaram ser “uma homenagem e uma celebração”.

Page 151: A morte no candomble

143

Mas Luciana diz:

Por mais que quiséssemos homenageá-la, por mais que quiséssemos fazer do axexê

uma festa alegre todo mundo carregava uma dor muito grande; eu não estava

pronta pra vivenciar aquilo, não estava (...) não teve aquilo que a gente estuda nos

livros, aquilo que é transmitido pelos mais velhos, a festa de despedida de uma

pessoa importante, teve o sofrimento e a dor daquilo que se desfaz de uma pessoa

que era extremamente importante, como mãe e não somente como Ialorixá.

Mais uma vez, nos deparamos aqui com a ausência de uma voz, de um

ensinamento, de um norte para que os filhos de santo pudessem se preparar para as

novas experiências que seriam vividas: a doença e morte da Ialaxé, o ritual do axexê e a

falta, não preenchida, do papel da Ialaxé na comunidade de santo.

Resta o questionamento a respeito da validade do ensinamento apenas através

da vivência dos rituais, uma vez que, podendo o saber também ser aprendido através

dos ouvidos, questões fundamentais como a morte não devesse ser mais explorada e

discutida dentro do culto.

O candomblé não é uma ilha transposta da África, mas uma religião brasileira

nascida da tradição africana. As casas de santo, embora mantenham uma matriz comum

e, geralmente, sejam um braço de alguma casa mais antiga e tradicional, são núcleos

independentes e por vezes recentes, como é o caso do Axé Baraleji e das demais casas de

santo de Brasília. Os filhos de santo, em sua grande maioria, não nasceram no berço do

candomblé e chegaram à religião trazendo uma bagagem religiosa e cultural que lhes

dificulta o entendimento dos rituais; por mais que um ritual não busque ser

compreendido para cumprir sua função, um ritual como o do axexê se torna mais

complexo por ter um equivalente e um comparativo nas diversas religiões

anteriormente praticadas pelos adeptos do candomblé; a cultura ocidental moderna

Page 152: A morte no candomble

144

também dita conceitos radicalmente opostos aos do candomblé no que diz respeito aos

ritos e a realidade da morte.

Parece não ter sido possível para esses sujeitos da modernidade, mosaicos de

aprendizados em diversos cultos, vivenciarem o ritual do axexê despidos de suas

experiências anteriores; talvez lhes facilitasse a vivência o conhecimento dos

fundamentos do ritual e o preparo para o enfrentamento da doença e morte da Ialaxé.

Apesar de ser um culto vivenciado em comunidade, fica a impressão de que,

nesse caso, cada um teve que se haver apenas com sua bagagem cultural e seu preparo

emocional.

Foi dito pela pesquisadora que, no que tange ao coletivo, o ritual do axexê

parece não ter cumprido sua função de reordenamento das relações sociais, uma vez

que, passados quase dois anos da morte da Ialaxé, a comunidade ainda luta para

reestruturar suas relações. Parece-nos que, individualmente, o ritual do axexê também

não pôde acrescentar muito além do sentido de cumprimento de uma tradição.

4.3.5. Uma força para transpor limites – a iniciação

Existe uma diferença marcante entre as experiências de iniciação e vivência em

relação ao orixá de Fernando, Anderson e a pesquisadora e as experiências de Eduardo

e Luciana. Os três primeiros estão sujeitos à possessão pelo orixá, o que lhes possibilita

uma gama de sensações às quais Eduardo e Luciana não têm acesso, mas se fosse

possível resumir em uma palavra a fala de todos eles, ela seria “integração”.

Anderson fala da iniciação: “é uma sensação de renascimento no contexto de uma

nova vida, eu não deixei de ser eu mesmo, me acrescentaram coisas”;

Page 153: A morte no candomble

145

Ele afirma que experimentar a figura do orixá e do erê como “outros” dentro do

próprio corpo é uma forma de integração, assim como a vida dentro e fora do terreiro

também se dá por acréscimo. Anderson continua:

Para mim, é um privilégio vivenciar o orixá e o erê porque eles trazem muitas

vezes conhecimentos que eu não conheço (...) é uma manifestação que eu não sei

definir ou como fazer para que seja mais ou menos intensa, simplesmente

acontece, como se fosse uma morte curta, temporária.

A pesquisadora descreve sua iniciação como a integração de suas várias facetas,

suas várias estórias e complementa: “é assim que me sinto agora, integrada. Depositária de

uma força divina – meu Orixá, um aliado no percurso da vida”.

Podemos confirmar suas palavras em Agraus (1983), que descreve a “fixação”

do orixá na cabeça do iniciado como uma metamorfose e não uma duplicação. A autora

diz que o “orixá é vivenciado como Outro soberano, que se apossa do filho na hora e no

modo que quiser” (p.245).

Fernando considera sua iniciação no candomblé como “uma nova experiência, um

renascimento”. Sobre essa experiência, da possessão pelo orixá, ele diz:

Você só sabe como é emprestar seu corpo para o orixá, quando você volta, isso

quer dizer que enquanto você está emprestando você simplesmente não é, nada (...)

na realidade ser tomado pelo orixá é sempre uma integração porque ele já está

dentro de você, nós somos um único ser, e ele está dentro, então ele simplesmente

aflora.

Page 154: A morte no candomble

146

Podemos escutar, na falas desses iniciados, a plena aceitação do orixá (o outro),

resultando na integração do indivíduo, ou como nos diz Augras (1983, p. 260): “o

reconhecimento da alteridade é condição indispensável para estabelecer a unidade do

ser”.

Em relação à vivência da religião e a atuação no mundo “lá fora”, Fernando

considera que elas também devem se dar de forma integrada:

Lá fora, o mundo é apenas o seu mundo, mas que você tem que transportar a tua

essência de orixá e sentir sempre a presença do orixá dentro de você, primeiro

porque ele está dentro de você (...) não tem como tentar fazer essa separação,

achar que você lá fora não tem compromisso com o orixá (...) porque lá fora é que

você tem que se comportar melhor do que dentro do axé, porque aqui dentro é fácil

(...) se você abandonar o orixá aqui dentro como é que você vai poder cobrar dele

que ele te acompanhe e te ajude lá fora, ele tem que estar contigo lá fora, você tem

que sentí-lo, venerá-lo, chamá-lo, se comportar, ser disciplinado (...) não é uma

vida fácil ser filho de orixá porque você tem uma série de preceitos que você tem

que cumprir (...) mas ele vai te dar muito mais do que aquilo que as vezes você até

acha que merecia, mas você ganha, tudo é questão de comportamento e atitude (...)

porque o orixá ele está instalado dentro de você na consciência, pode enganar todo

mundo menos tua própria consciência.

E, mais uma vez, lembramos Augras (1983, p.289): “o duplo e a metamorfose

não são aspectos antagônicos do ser: é preciso desdobrar-se para transformar-se.

Tornar-se outro, diferente em tudo e no entanto idêntico, restabelecer a duplicidade

fundamental, que doravante é síntese”.

Page 155: A morte no candomble

147

Eduardo não está sujeito à possessão pelo orixá, mas também define a

experiência de iniciação como integração: “eu não sou um figurante, eu sou uma pessoa

integrada, então tudo na minha vida muda a partir desse momento e dessa integração”.

Luciana, assim como Eduardo, não está sujeita à possessão pelo orixá e, bem

antes de sua “feitura” como joye, já participava de todas as obrigações do culto,

geralmente vetadas a filhos de santos ainda não iniciados. Esse fato fez com que ela não

visse sua iniciação como a garantia de um novo status ou o acesso a espaços sagrados

que antes já lhe eram permitidos. Ela fala de sua iniciação:

Na verdade foi fazer um acerto de contas, mas pra mim, Luciana, não houve

essa experiência – de mudança de patamar, de mudança de status – a única

mudança que eu posso dizer é que pesou mais a responsabilidade, porque antes eu

tinha o direito de errar, agora eu tenho o dever de acertar (...) pra mim mudou só

nesse sentido, mas em relação, começa uma nova vida a partir de agora pra mim

era indiferente, eu já era uma ekedi, já fazia tudo que uma ekedi fazia.

É preciso olhar para essa inversão no processo de iniciação de Luciana,

questionando se não poderia vir daí sua dificuldade de lidar com os rituais que

envolveram a doença e morte da Ialaxé. Não houve, para Luciana, a conquista do

sagrado, através da iniciação; ela “ganhou” o sagrado, para só depois se submeter à

iniciação. A diferença brutal na sua forma de reação ao ritual do axexê, em relação aos

demais participantes, e toda a desconstrução que operou sobre suas concepções de

morte e da existência de um Deus, nos fazem levantar a hipótese de que, até então,

Luciana não teria “vivido” os rituais dos quais participou, mas “aprendido” os rituais.

Recorremos a Augras (1983, p. 16), para fundamentar nossa hipótese: “o conhecimento

dos mitos, dos símbolos, dos ritos é gradual, e a aprendizagem do significado não se

Page 156: A morte no candomble

148

opera ao nível da explicação intelectual. O saber iniciático adquire-se pela vivência. O

conhecimento experimenta-se, não vem de fora”.

Vimos, ainda, que Luciana busca constantemente o apoio na racionalidade, e

que os rituais realizados em torno da Ialaxé produziram, nela, a quebra de toda certeza

anterior. É possível que Luciana tenha se deparado aqui, pela primeira vez, com a

vivência de um ritual sem a primazia da razão, sendo para ela realmente o novo, o

desconhecido.

Luciana fala da importância de sua preparação anterior, na experiência de

reclusão no roncó, durante sua iniciação. Preparação esta, que lhe faltou no ritual do

axexê:

Eu acho que os dez anos que eu passei na roça me preparam pra isso (...) eu era

extremamente feliz no momento da minha obrigação... eu não tinha essa sensação

de reclusão. Até porque eu recolhi com dois iaôs e o tempo todo eu participei da

obrigação deles, quando a obrigação não pertencia aos três, pertencia só a eles eu

participava da obrigação, então eu não tive essa sensação de reclusão, porque na

verdade eu acho que eu estava pronta para entrar no roncó.

Seguindo nossa hipótese anterior, podemos dizer que Luciana estava “pronta

para entrar no roncó”, porque já tinha participado da iniciação de vários filhos de santo,

o que lhe dava saber, por antecipação, tudo o que ocorreria no roncó; “saber” que lhe

faltou para a vivência, inédita, do ritual de axexê.

Para a pesquisadora, o tempo de convivência e participação no culto foi

importante para lhe dar segurança e confiança na realização de sua iniciação, mas

afirma que nada havia lhe preparado para o momento a ser vivido no roncó:

Page 157: A morte no candomble

149

Ocorre que, agora, as coisas estavam acontecendo comigo (...) por mais que eu

tivesse lido toda a literatura disponível sobre a iniciação e tivesse acompanhado

outros barcos anteriores, existem segredos que só são revelados para os iniciados, e

outros dos quais nem nós teremos conhecimento, já que serão vivenciados por

nossos Orixás ou por nossos Erês. Difícil a perda de controle, deixar-se levar,

numa entrega total onde apenas a confiança no Pai de Santo e nos membros do

grupo é capaz de nos permitir mergulhar nesse abismo do qual não poderemos

dar conta depois, sequer teremos todas as lembranças desse tempo de recolhimento,

desse período de morte (...) todos esses anos de preparação e indefinição me

haviam sido absolutamente necessários. Não vejo como poderia me entregar,

assim tão sem defesa, nas mãos de pessoas as quais não conhecesse e confiasse.

Uma diferença fundamental que marca as vivências da pesquisadora e de

Luciana é a experiência da possessão pelo orixá. Outra é o conhecimento anterior que

Luciana possuía de todos os procedimentos rituais. Além disso, já vimos que os rituais

a que são submetidas as pessoas de cargo são mais brandos do que aqueles aplicados

aos iaôs – iniciados que “viram no santo”.

Luciana traz um tema não abordado por nenhum dos demais participantes –

Anderson, Eduardo e Fernando – mas que também foi assunto de destaque no relato da

pesquisadora sobre sua vivência de iniciação: o preceito do kelê, período em que

diversas restrições são impostas ao iniciado. Luciana diz:

O kelê foi muito mais difícil pra mim do que o estado dentro do ronco porque eu

tive que trabalhar e nos primeiros dias posteriores que vieram da minha saída

pro mundo eu era extremamente assustada, eu tinha medo da árvore, eu tinha

medo de tudo, eu estava extremamente fragilizada, eu tinha medo da rua e não

Page 158: A morte no candomble

150

gostava de estar na rua à noite, não gostava de me expor na rua, eu sentia a

necessidade de estar num ambiente tranqüilo, num ambiente como se fosse o roncó,

que na verdade seria minha casa, eu tinha essa necessidade.

Para as pessoas de cargo, como Luciana, o período de kelê é mais curto do que o

imposto aos iaôs, iniciados que “viram no santo”. Ainda assim, Luciana sentiu o impacto

dessa imposição:

Além do que é o estereótipo de estar de cabeça raspada, de estar de ojá, de estar

com uma outra vestimenta, de não poder sentar no alto, de não poder adentrar em

alguns recintos, estas abnegações não fazem parte do mundo real, então elas te

tornam fragilizada, essa fragilidade ela vem do kelê, então o tempo máximo que

eu podia passar dentro da minha casa eu passava.

Fica bastante evidente o conflito das culturas do candomblé e do ocidente

moderno na fala de Luciana sobre a dificuldade de enfrentar o mundo profissional e a

diferença de acompanhar o período de kelê de um iniciado e a sua própria vivência,

ressaltando mais uma vez a oposição entre o saber e a experiência vivida:

O kelê faz parte do mundo da roça, não faz parte do mundo que eu trabalho,

então quer dizer deveria ser tudo mesclado, mas não é, necessariamente não é

(...) eu já tinha acompanhado o kelê do Fernando mas é diferente você ver

alguém vivenciar três meses de kelê, não era o resguardo do sexo, resguardo do

álcool, que eu nem bebo, não era o resguardo em si que me pesava, mas eu ter

que estar no mundo que me pesava, senti a dificuldade pela compreensão

cultural das pessoas sobre aquilo.

Mais uma vez, fica evidente o impacto do vivido sobre Luciana.

Page 159: A morte no candomble

151

A pesquisadora também aponta dificuldades em relação ao período e as

restrições impostas pelo kelê:

A maioria das pessoas do terreiro, e que fizeram santo antes de mim, disseram

que o período de kelê foi o melhor tempo de suas vidas, outras não me disseram

nada. Eu posso dizer que foi um tempo de sentimentos novos e ambíguos. Talvez

tivesse sido um tempo sagrado, se fosse possível permanecer no terreiro durante os

três meses do período do kelê, dedicando-me apenas ao Orixá, como era em épocas

que já se perderam no tempo. Mas, ser jogada no mundo após tantos dias de

recolhimento e afastamento da sociedade, por imposição mesmo da vida moderna

e do mercado de trabalho, não é uma boa experiência, nem simples, nem fácil (...)

sentia-me, obviamente, diferente. Destacava-me nos lugares por onde andava. O

lenço branco, cobrindo a cabeça raspada, era a peça do vestuário que me

transformava num ímã para o olhar dos outros. Para a relação com o mundo à

minha volta, essa marca foi a dificuldade maior (...) durante esses três meses,

minha rotina foi completamente alterada e meu corpo não era meu, estava

marcado. Não só pelas roupas brancas usadas, mas pelos símbolos que se carrega

no corpo (...) Não saí à noite durante todo esse período. Minha casa era meu

melhor refúgio.

E também se refere à fragilidade que parece acometer os recém iniciados:

Contribui para a dificuldade do enfrentamento da realidade moderna o fato de

que a consciência não volta instantaneamente. A capacidade de reação fica muito

reduzida, uma carência se instala e é como se, realmente, eu tivesse nascido de

novo. A rua assusta, o barulho incomoda, a multidão é intolerável.

Page 160: A morte no candomble

152

Fica evidente, no caso de Luciana e da pesquisadora, a força com que a cultura

ocidental moderna atinge as pessoas em suas diferenças. Apesar de valorizar e

reafirmar a individualidade como marca da modernidade, essa individualidade parece

destinada a seguir um determinado padrão. Como afirma Baudrillard (2000), o homem

moderno “consagrou-se a uma identidade sem fim. Identificação do indivíduo, do sujeito, da

nação, da raça. Identificação do mundo, tornado técnica e absolutamente real – tornado o que é”

(p.58).

Os fundamentos do candomblé não pertencem à modernidade, estão antes

ligados ao passado, às religiões antigas e suas práticas não são entendidas pelo

indivíduo moderno. Suas restrições e imposições são inaceitáveis para a razão ocidental

e os filhos de santo, quando destacados da multidão através das marcas gravadas no

corpo – roupa inteiramente branca, lenço cobrindo a cabeça raspada, uma forma

contida de comportamento – são imediatamente identificados como um ser estranho,

marcado por uma diferença de difícil compreensão.

Luciana reconhece toda essa dificuldade, mas é intransigente na defesa da

manutenção das tradições do candomblé, a despeito de toda dor que isso possa implicar

aos filhos de santo. Ela diz:

Eu acho que a tradição ela é necessária, pra todas as formas de comunidades

existentes, eu acredito que a tradição é que faz com que a repetição do mesmo ato

se torne uma coisa tão forte que se torne uma regra, que as pessoas façam aquilo

numa naturalidade tão forte que se torne uma cultura ... por ter realmente

abraçado com amor o candomblé e mais ainda a minha casa eu faço questão de

repetir os mesmos atos, uma para que eu não esqueça, duas pra que eu possa

transmiti-lo da mesma forma com a qual aprendi e tendo a certeza de que

mesmo repetindo várias vezes eu irei ensinar diferente do que quem me ensinou,

ou seja, em algum momento já vai se perder alguma coisa, então a tradição é para

Page 161: A morte no candomble

153

que não se percam legados, pra que as pessoas possam entender que os atos, mesmo

que de forma inconsciente durante certo momento eles fazem parte de um todo

maior (...) e porque se uma vez feito ele funcionou esse ato tem que ser repetido

sempre da mesma forma (...) toda vez que nós quebramos uma tradição por

acharmos que o tempo evoluiu e nós também temos que evoluir nós diminuímos a

nossa força, porque se perde alguma coisa; então quando eu quebro aquele ato,

pela conveniência da atualidade, da modernidade, eu perdi alguma coisa, por isso

a tradição tem que ser cumprida, mesmo que me doa, mesmo que eu não queira

participar, já que eu me imbuí na questão de ser uma sacerdotisa, de manter a

minha religião, de vê-la crescer, de ver a minha casa crescer, de ver o meu axé se

perpetuar, de ver essa religião, que trás às vezes tantos entraves, tantas nuances

mal formuladas culturalmente no mundo exterior, que elas possam ser cada vez

mais elucidadas, se tornarem cada vez mais brandas de uma forma que o

candomblé possa ser visto com bons olhos, que você possa dizer – sou do

candomblé – de uma forma natural, que nós sabemos, que no mundo que nós

vivemos não é natural, que todo mundo se refugia no mágico, mas ninguém tem

coragem de dizer que se refugia no mágico, é mais fácil dizer que é católico, mais

aceito dizer que é católico, ou então que é espírita; então é por esse motivo,

tradição, que eu cumpro ato pela tradição, que se eu não cumprir aquele ato da

tradição os que vierem posteriores a mim não cumprirão e em algum momento o

axexê vai acabar, por exemplo.

Nessa fala, Luciana enfatiza a dificuldade imposta aos adeptos do candomblé,

sujeitos da modernidade, e reafirma a necessidade da manutenção da tradição como

forma de preservar o culto, ameaçado constantemente pelas mudanças praticadas nos

rituais, pelo preconceito que ainda lhe dirigem e pelas facilidades e seduções oferecidas

pelo mundo moderno.

Page 162: A morte no candomble

154

4.4. Candomblé e cultura ocidental moderna – separação possível?

O candomblé é uma religião de origem africana, trazida ao Brasil pelos negros

vindos da África nos tempos da escravidão. Por diversos motivos precisou adaptar-se a

nova realidade aqui encontrada: o impedimento da prática da religião africana durante

a escravidão obrigou os escravos a criarem um sincretismo dos orixás com os santos

católicos como forma de manter seus cultos; a distribuição dos escravos pelo solo

brasileiro, muitas vezes com a separação das famílias originais, e mesmo com a ruptura

dos laços familiares deixados na África, fez com que a religião perdesse, aqui, sua

característica de grupo consangüíneo. De lá para cá o candomblé transformou-se em

uma religião brasileira lutando para preservar e, por vezes, recuperar suas origens

africanas.

Segundo Prandi (2005), o candomblé não é uma reunião de afro-descendentes

que cultivam uma origem e antepassados em comum, mas uma religião dos orixás

fundada no Brasil pelos líderes dos primeiros terreiros aqui constituídos, onde os mitos

religiosos foram conservados, mas os costumes tiveram que ser adaptados e

reinterpretados para sobreviver nessas terras porque, segundo o autor, o mito “deve

fazer sentido não mais para o negro e todo afro-descendente, mas também para o branco que

adere à religião dos orixás” (p.168/169).

É sob a luz dessas adaptações e reinterpretações que é preciso olhar para o

candomblé e, no nosso caso, para a comunidade pesquisada. Não é possível manter um

véu de romantismo, que muitas vezes é tentador, buscando enxergar na religião apenas

os traços de um passado remoto e intocado pelas mudanças do tempo. Mais honesto é

reconhecer que, a despeito de todas as dificuldades que essa religião encontrou para

sobreviver, das perdas e mudanças que teve que empreender, desde sua chegada ao

Brasil até os dias de hoje, ela ainda se encontra viva e crescente, acolhendo pessoas de

todos os matizes, oferecendo-lhes um espaço onde elas possam construir um sistema de

mundo que lhes seja mais favorável.

Page 163: A morte no candomble

155

O Brasil conta hoje com três casas de santo consideradas como berço da

tradição do candomblé de origem Ketu no Brasil: a Casa Branca do Engenho Velho, o

Gantois e Ilê Axé Opô Afonjá, todas localizadas em Salvador, na Bahia. As demais casas

de santo do Brasil, de tradição Ketu, são braços de uma dessas três casas originais.

O Axé Baraleji, terreiro palco de nossa pesquisa, está ligado ao Ilê Axé Opô

Afonjá. O Ilê Axé Opô Afonjá foi fundado em 1910, contanto hoje com 96 anos de

existência. Embora o babalorixá Tito de Omolu tenha sido iniciado no candomblé há 52

anos, o Axé Baraleji possui apenas 35 anos de fundação em Brasília.

O que queremos ressaltar com isso é que, embora o candomblé seja uma

religião de raízes muito antigas, os filhos de santo do Axé Baraleji, e dos demais

terreiros do país, nasceram em berço influenciado pela cultura ocidental moderna.

Pudemos perceber, no decorrer de nossa pesquisa, que três dos cinco

participantes, incluindo-se aí a pesquisadora, chegaram ao candomblé não por escolha,

mas por um destino imposto pela dor. É importante destacar que esses três iniciados

“viram no santo” e lembramos Baudrillard (2002) ao dizer que o mundo moderno exige

do indivíduo e da consciência “cada vez mais autonomia, mais liberdade”, sendo

justamente dessa autonomia e dessa liberdade que aquele que experencia a vivência do

orixá tem que abrir mão. Aqui podemos apontar uma importante divergência entre o

ocidente moderno e o candomblé; enquanto o primeiro impõe a liberdade ao indivíduo,

o outro lhe exige a renúncia e os filhos de santo, nascidos na modernidade, renunciam a

essa liberdade imposta, não por escolha, como vimos, mas também por uma imposição;

imposição que vem de dentro de si mesmo, do orixá.

Após essa renúncia, essa entrega total, a sensação descrita pelos participantes é

de “integração” e a aptidão para a possessão pelo orixá é considerada por eles como um

“privilégio”.

Os outros dois participantes não “viram no santo” e foram iniciados para

desempenhar cargos específicos dentro do culto, compondo a alta hierarquia do grupo.

Page 164: A morte no candomble

156

No caso desses dois participantes, a porta de entrada para o candomblé não se deu pela

dor, podendo-se dizer que houve uma escolha, uma opção pela religião. Fica aqui em

aberto uma questão: o candomblé se impõe ao filho de santo, sujeito à possessão pelo

orixá e se apresenta como uma escolha para aqueles que não estão sujeitos a essa

possessão?

Seja como for, todos os participantes assumiram o candomblé como sua

religião e, a despeito de todas as dificuldades, seja a de conciliar as atividades da casa de

santo com suas agendas profissionais, acadêmicas e familiares, seja pelo preconceito

ainda enfrentado em relação à religião; seja pelos preceitos e impedimentos a que estão

sujeitos em determinados períodos de suas vidas e mesmo ao longo delas; seja pelo

processo de doença e morte da Ialaxé que operou uma fissura na ordenação do terreiro,

todos estão dispostos a lutar pela manutenção de sua casa de santo e de sua religião.

Mas todos são, também, produto do ocidente moderno e quando entraram no

candomblé, adultos, formados, levaram consigo uma bagagem cultural e religiosa que

ecoa entre os muros do terreiro.

Como conseqüência mais visível desse processo podemos destacar a

necessidade que os filhos de santo têm de entender, de compreender os rituais. Essa

necessidade não é exclusividade dos filhos de santo do Axé Baraleji. Parece-nos antes

uma necessidade imposta pela condição dos filhos de santo da atualidade, filhos da

modernidade, e não há mais como ser diferente; não adianta encobrir uma realidade

para preservar uma fantasia: os adeptos do candomblé não pertencem à África mítica,

nasceram aqui, são brasileiros.

Ainda que a força da palavra seja um recurso mágico utilizado pelo candomblé

ontem, hoje e sempre, a oralidade deixou de ser o único meio de conhecimento da

religião. Existe extenso material escrito por estudiosos, iniciados ou não, que dão conta

de descrever e retratar até momentos sagrados do culto. Embora alguns autores

Page 165: A morte no candomble

157

questionem a validade desses registros alegando, como Capone (2004), que “passou-se

da antiga transmissão oral, que era a base do aprendizado no candomblé, para o estudo de um

conjunto de obras “sagradas”, escritas, em sua maioria, por antropólogos brancos” (p.299), esse

fato reflete uma realidade da qual não é mais possível fugir.

Pensamos que o desafio que hoje se coloca para os sacerdotes de santo é como

preservar a sacralidade dos rituais, permitindo aos filhos de santo um entendimento

daquilo que se realiza no ato. Mas é possível, também, apontar diferenças nessa

necessidade de entendimento. No caso da iniciação de um iaô, como ficou patente na

descrição feita pela pesquisadora, toda a literatura disponível e os anos de convivência

com a religião não foram capazes de prepará-la para o que estava por vir, porque essas

são experiências muito particulares, únicas, e existem determinados segredos que os

iniciados, mesmo os estudiosos, não revelam e aos quais os estudiosos não iniciados não

têm acesso. Diversos outros rituais encontram-se nessa categoria, onde o vivido

dispensa a necessidade de compreensão, prescinde dela.

Mas o ritual do axexê, onde a necessidade de compreensão pelos participantes

se mostrou de forma tão contundente em nossa pesquisa, talvez merecesse uma forma

diferenciada de abordagem dentro da comunidade de santo. Primeiro, porque existe um

equivalente para o ritual no mundo moderno e isso, por si só, já interfere na vivência

do ritual. Segundo, porque a comunidade não estava preparada para o enfrentamento

da morte de sua Ialaxé e os participantes se sentiram perdidos duplamente: perdidos

pela falta prematura da Ialaxé e perdidos em um ritual ao qual não puderam se

entregar, porque estabeleceram uma linha de comparação com os ritos fúnebres

modernos. Com exceção de Fernando, os participantes sentiram-se privados do

entendimento do axexê, privados da compreensão da concepção de morte no candomblé

e, por isso, não conseguiram enxergar no ritual nada além do que o cumprimento

doloroso de uma tradição, refletido quase que tragicamente nas palavras da

participante Luciana: “foram sete dias de axexê, foram sete dias de tortura”.

Page 166: A morte no candomble

158

A literatura está repleta de textos sobre o ritual do axexê e os participantes não

a desconheciam. Santos (1975), em Os Nagô e a Morte e Prandi (2005), em Segredos

Guardados, entre outros, fazem uma descrição detalhada do ritual. No entanto, o que

nos parece é que faltou cumplicidade entre o grupo para permitir uma conexão entre o

saber e o momento vivido; até porque o saber do candomblé diz que os sacerdotes

morrem de velhice e a Ialaxé morreu de doença aos 53 anos de idade. Contradição que

talvez merecesse ser levantada dentro do grupo para poder ser mais bem aceita pela

comunidade de santo. Além disso, por ser uma comunidade nova, com apenas 35 anos

de fundação, os filhos de santo do Axé Baraleji não estão acostumados a conviver com

irmãos de santo em idade avançada e, também por isso, a morte não é uma constante

nessa comunidade, como é o caso de casas mais antigas como o Ilê Axé Opô Afonjá. De

qualquer forma, os filhos de santo dos dias de hoje estão mais sujeitos a morrerem por

doença ou acidente do que jamais estiveram os fundadores da religião e a morte por

velhice, embora seja o caminho mais aceitável e desejável, dificilmente poderá ser visto

ou prometido como único destino a um filho de santo.

Outro aspecto a ser ressaltado, que nos pareceu de extrema importância, diz

respeito às várias concepções de morte apresentadas pelos participantes da pesquisa.

Mesmo para Fernando, que fez uma explanação didática sobre a concepção da morte no

candomblé, ela possui um acréscimo; o que nos leva a constatar que a concepção do

candomblé sobre a morte não é compartilhada pelos filhos de santo, sendo, em alguns

casos, até desconhecida por eles. A falta desse entendimento e desse compartilhamento

de concepção de morte pelo grupo talvez possa ter sido uma das causas do abandono de

alguns filhos de santo, quando do início do processo de doença da Ialaxé e, quando de

sua morte, de outros membros da comunidade, assim como do filho e da nora da Ialaxé,

também membros do culto.

O candomblé é uma religião baseada na manutenção da vida, na concretude da

existência atual, no aqui e no agora. Enquanto outras religiões prometem a retribuição

Page 167: A morte no candomble

159

das dificuldades da vida em um outro plano ou existência, o candomblé apresenta as

formas de lidar com essas dificuldades e obter a retribuição agora.

O ocidente moderno coloca à disposição do indivíduo tudo o quanto o dinheiro

pode comprar, mas o custo emocional de tanta oferta acaba por se traduzir em falta, e o

candomblé coloca à disposição dos seus adeptos os meios para o preenchimento dessa

falta.

Mas aqui uma questão não fecha: embora o candomblé resgate esses sujeitos da

modernidade e lhes forneça instrumentos para construir uma vida de forma mais

integrada, a morte se apresenta, ao menos na situação vivida pela comunidade de santo

pesquisada, como a morte negada. E a morte negada, sabemos, é herança da cultura

ocidental moderna. Como acomodar aqui essas contradições?

I) A partir do diagnóstico da doença da Ialaxé, toda a comunidade se empenhou

nas obrigações que visavam à manutenção de sua vida; esse processo estendeu-se por

mais de um ano. Constatada a irreversibilidade do processo, a Ialaxé deixou de

freqüentar o terreiro de santo e recolheu-se em sua casa, na cidade. Ali permaneceu até

o momento de sua morte. O comportamento da família da Ialaxé difere da postura

ocidental moderna, que é a de isolar seus doentes nas unidades de terapia intensiva dos

hospitais para que morram afastados dos demais. No entanto, se a família da Ialaxé,

toda ela integrante da comunidade de santo, manteve a convivência com seu doente até

o momento final, não possibilitou a mesma oportunidade aos demais membros do

grupo religioso, intitulado e que assim se pretende, família de santo. Para os membros

da comunidade, e para os participantes da pesquisa, a casa da Ialaxé cumpriu o papel de

unidade de terapia intensiva, onde o acesso lhes foi negado. Luciana foi clara em

relação a isso:

Eu graças a Deus tive a oportunidade de me despedir dela, mas sei que muitos

dos meus irmãos não tiveram, foi errado, no meu entendimento foi errado; ela

Page 168: A morte no candomble

160

não foi preparada pra ir embora: você está indo embora, então se despeça

daqueles que estão em torno de você ... tinha que ter sido mais verdadeiro, mais

exposto, talvez tivesse sido, pra nós, filhos de santo, melhor. Eu não sei o que

seria pra ela, se ela realmente preferia não se despedir, mas se é que é dado a um

sacerdote o direito de não se despedir, quando você entra no mundo do

sacerdócio você também vai ter que aceitar a tradição daquilo que for imposto.

Embora a família consangüínea da Ialaxé tenha tido uma postura diferente

àquela praticada na sociedade moderna impôs, aos demais filhos de santo, a distância

ocidental moderna frente à morte; embrião para as dificuldades que se seguiriam no

cumprimento do rito do axexê.

II) Se a Ialaxé foi mantida isolada dos filhos de santo durante os meses finais de

sua doença – a doença negada, a partir do momento de sua morte, ocorreu o contrário e

tiveram início os longos ritos do axexê, agora com a convocação e a participação de

toda a comunidade de santo – a morte exposta. A partir desse momento tudo contrasta

com os hábitos modernos em relação aos ritos fúnebres. A Ialaxé atravessa a noite em

sua cama, como se dormisse; o ritual do sirrum com o caixão sendo levado, aberto, até o

forno crematório; os sete dias de obrigações e rituais que se sucederam.

Podemos acomodar aqui uma das contradições levantadas anteriormente. O

ritual do axexê não pôde cumprir suas funções para o grupo pesquisado porque parece

ter havido uma subversão dos costumes e dos fundamentos do candomblé. O grupo se

desfez enquanto família de santo nos meses finais da doença da Ialaxé. Obrigados a se

manterem afastados da Ialaxé nesse importante período de convivência e preparação,

quando convocados, os filhos de santo não puderam vivenciar o ritual como seria o

esperado. Havia um abismo entre esses dois momentos: enquanto filhos de santo foram

Page 169: A morte no candomble

161

obrigados a desempenhar o papel de sujeitos da modernidade, quando do afastamento

imposto da convivência da Ialaxé e, no momento de sua morte, quando reconvocados ao

papel de filhos de santo, não puderam mais se despir da pele de sujeitos da

modernidade. Por isso o axexê não pôde cumprir seu papel de reestruturação das

relações sociais dentro do grupo, com a imediata substituição das funções

anteriormente desempenhadas pela Ialaxé, por que as relações já haviam sofrido uma

ruptura que era anterior à sua morte, daí a falta de cumplicidade no grupo para a

vivência do ritual do axexê.

Pode-se então questionar se realmente faltou ao grupo o entendimento do

ritual tão reclamado pelos participantes. O que parece ter sobrado foi a imposição de

posturas praticadas pelo ocidente moderno quando o que os filhos de santo esperavam

era, justamente, o contrário: a intimidade com o grupo religioso na prática do

candomblé.

A escuta dos filhos de santo em relação à morte denuncia que, nesse caso, foi-

lhes sonegado o direito à vivência plena da religião, que é sempre coletiva, e reforçados

comportamentos comuns ao ocidente moderno, estranhos ao candomblé, o que

contribuiu para que as experiências religiosas anteriores de cada um ganhassem mais

força, gerando um discurso individual sobre a morte e obscurecendo a fala de sua

própria religião sobre esse aspecto fundamental da vida. Para os participantes da

pesquisa, no momento do enfrentamento da morte da Ialaxé, sobrou ocidente moderno,

faltou candomblé.

Page 170: A morte no candomble

162

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS O pano de fundo sobre o qual se desenvolveu nossa pesquisa aborda dois temas

ainda marginais na psicologia: morte e religião. O primeiro vem ganhando espaços

maiores, principalmente quando relacionado à velhice e a pacientes em cuidados

paliativos. O segundo é ainda encoberto de preconceitos como se do humano não

fizesse parte a dor do desamparo de saber-se entregue apenas aos seus próprios

cuidados.

Ao juntarem-se os dois temas, trilham-se os caminhos da incerteza, porque

nem um nem outro oferecem qualquer resposta definitiva a questionamentos; mas

também aqui estamos de acordo com o humano, sempre palco de dúvidas e de

experiências originais. Augras (2002) diz que o homem é natureza, história e

existência. E é a existência que lhe confere a especificidade do humano: atribuindo

significado à natureza e à história e modificando-as. Sendo “suporte da natureza e autor

da história, o homem fundamenta-se na consciência de si e do mundo” (p.20).

Ao pesquisarmos indivíduos inseridos em um grupo religioso, buscamos

compreender como eles significam suas experiências de “ser no mundo”, pertencendo a

duas culturas que se afastam e se aproximam ao longo de suas histórias. Atores do

ocidente moderno, com a realidade imposta pelo poder do consumo: consumo de

riquezas materiais, da beleza, juventude, consumo da informação, consumo de si

mesmo, consumo de todos. Nessa roda de tantas engrenagens e armadilhas, a morte

precisou ser extirpada para não frear o movimento de consumo. Depois, a morte

passou, ela mesma, através dos rituais fúnebres modernos, a objeto de consumo. As

grandes tragédias que provocam mortes coletivas, como as vitimadas por ataques

terroristas ou acidentes aéreos, também essas, se tornaram objeto de consumo através

da cobertura sensacionalista da mídia.

Page 171: A morte no candomble

163

Baudrillard (1976) diz que a morte foi banida da ordem simbólica, e que a

proposição onde a vida e a morte se permutam, “é uma verdade interdita para sempre à

ciência”. O autor resume a idéia moderna de morte, dizendo que ela “é regida por um

sistema de representações totalmente diferente: o da máquina e do funcionamento.

Uma máquina funciona ou não funciona. Assim, a máquina biológica está morta ou

viva” (pp. 212/215).

Enquanto a morte está ocorrendo fora dos domínios do lar, o homem moderno

consegue bani-la da própria vida. É somente quando ela o atinge, na intimidade da

família, que ele se depara com sua realidade e com sua solidão. Porque, nesse momento,

o mundo moderno não o acolhe, antes se afasta para não contaminar-se com tamanha

impossibilidade. Vimos, com Áries (1975), que a sociedade moderna já não permite

mais que se chore o ente morto, é preciso, antes, realizar os rituais rapidamente e

retomar o curso da vida. Retomar o curso da vida para onde? Para qual encontro final,

se não com a própria morte? Não há resposta para essas questões no mundo moderno,

porque nele não há lugar para a morte.

Anderson, participante de nossa pesquisa e profissional da área de saúde, com

atuação em unidades de terapia intensiva, resumiu de forma singular a maneira como a

morte é tratada no ocidente moderno: “não existe espaço para você discutir sobre

qualquer coisa ligada à morte, ninguém vai discutir isso; morreu, morte clínica, pronto,

acabou. Então, agora, a família vai sofrer e velar o morto, ponto”. Ele consegue

agregar, nessa fala, todas as formas de acobertamento que o mundo moderno impõe

sobre a morte.

“Não existe espaço para discutir sobre qualquer coisa ligada à morte, ninguém

vai discutir isso”: a morte foi banida da cena da vida.

Page 172: A morte no candomble

164

“Morreu, morte clínica, pronto, acabou”: o ser humano é visto como a idéia da

máquina, descrita por Baudrillard – ou funciona, ou não funciona; o homem é reduzido

à sua forma biológica, despido de significado enquanto ser humano.

“Então, agora, a família vai sofrer e velar o morto, ponto”: a morte é sempre a

morte do outro. Cabe à família, ao outro, sofrer, velar e enterrar seu morto. Ele já não

pertence mais ao mundo, nem a dor da família diz respeito ao resto da sociedade.

O significado da morte na cultura ocidental moderna, atestada pela leitura de

diversos autores, pôde ser confirmado nessa vivência de Anderson: a morte deixou de

existir para o sujeito moderno, o que se impõe hoje é o silêncio da morte.

Guiados por esse silêncio, chegamos aos fiéis do candomblé, que nos abriram

sua voz e sua alma, contando suas histórias, deixando transparecer suas dificuldades e

questionamentos. A morte fala no candomblé, e para essa comunidade de santo falou

alto pela morte da Ialaxé do Terreiro, mãe de santo de todos os participantes. Não

encontramos um discurso único sobre a morte; nem ao menos encontramos um

discurso puro, orientado pelos fundamentos do candomblé. O que se viu foi uma

costura de saberes, de vivências em diversas religiões, de crença numa continuidade

que o candomblé não privilegia. O que se pôde apreender aqui foi que a morte não é

ignorada; ela está presente nos rituais do culto e na fala dos participantes, onde a

certeza da continuidade traz conforto e paz, ou essa incerteza se apresenta como uma

dor ainda a ser acomodada, no caso de uma de nossas participantes.

No candomblé, a morte faz parte do sistema de trocas da vida, está presente. O

fiel do candomblé se veste de branco às sextas-feiras, dia consagrado a Oxalá, orixá que

dá a vida e a morte. O leigo acredita que é uma homenagem à paz. Não é. O branco,

para o candomblé, é a cor da morte e o iniciado se veste semanalmente com sua cor, em

sinal de respeito.

Page 173: A morte no candomble

165

Os rituais de morte do candomblé superam os rituais modernos em tempo e

significado. São longos e sofisticados e buscam, além de dar caminho ao espírito do

morto, trazer ensinamentos àqueles que ficam: o ritual do sirrum, caminhar e recuar na

estrada da vida até o encontro final com a morte; a quebra dos pertences do morto para

não só desliga-lo das coisas desse mundo, mas também mostrar aos outros essa

ruptura; o ritual do axexê, a morte compartilhada, revisitada por sete dias consecutivos,

buscando reordenar as relações sociais dentro da comunidade; a refeição coletiva, o

mais velho cedendo lugar ao mais novo, na ininterrupta renovação da vida.

Se o ritual do axexê da Ialaxé do Axé Baraleji não pôde cumprir sua função

coletiva para o grupo pesquisado, tão pouco se mostrou vazio de significado e

aprendizado para nossos participantes. Todos eles ressaltaram a importância do ritual

e pareceram gratos por terem tido a oportunidade de vivenciar um ritual tão complexo

e raro nos dias atuais.

Além dos aspectos relacionados à morte, vimos que os fiéis do candomblé

desempenham seu papel no mundo moderno, atendendo a todas as atribuições e

exigências da contemporaneidade, desenvolvendo suas atividades profissionais,

acadêmicas e sociais. Ao mesmo tempo, compõem uma casa de santo, com pais, mães,

irmãos e uma hierarquia rígida que destoa das normas modernas. Na vivência da

religião decretam a “morte do ter”, imposição do ocidente moderno, e acolhem a

vivência do “ser” para o orixá.

Isso não significa abrir mão de conquistas materiais, pelo contrário: o fiel do

candomblé busca o crescimento em todos os níveis da vida, mas implica em uma

mudança de atitude. No mundo do candomblé as regras de poder do ocidente moderno

são quebradas e substituídas por outras, impostas pelos orixás.

Page 174: A morte no candomble

166

Essa imposição, no entanto, não se traduz em dificuldade para nossos

participantes. Antes lhes significa a vida, permitindo a construção de um sistema de

mundo mais favorável do aquele que conheciam até então. E se o candomblé atravessa

os séculos conquistando adeptos é porque, como nos diz Prandi (1991),“deve oferecer

coisas muito valiosas no mercado de bens simbólicos”.

Vimos como foi possível para Fernando dar sentido aos seus sofrimentos para,

a partir daí, reconstruir uma vida plena e integrada. Como Eduardo foi capaz de

retomar projetos abandonados há décadas, por ser reconhecido, e se reconhecer

membro de uma comunidade. Vimos como Anderson, profissional com atuação em

unidades de terapia intensiva, calado pelo silêncio médico frente à morte, consegue dar

expressão às suas próprias concepções de morte e como Luciana, assaltada pela dúvida

após a morte da Ialaxé da casa, ainda preserva os valores mais caros da tradição do

candomblé.

Sujeitos da modernidade questionam o saber que se aprende no vivido,

reivindicando ensinamentos formais acerca dos rituais religiosos. Mas o próprio grupo

nos deu a confirmação de que essa exigência não se sustenta em relação às práticas

ritualísticas e ao saber iniciático. Luciana, participante que foi a voz dissonante do

grupo frente à realidade da morte, “conheceu” diversos rituais do culto antes de

“vivencia-los”, inclusive o de iniciação. Se isso não causou prejuízo ao seu desempenho

dentro da casa de santo, cobrou um custo alto de Luciana na experiência do vivido com

que se deparou nos rituais de morte da Ialaxé.

Filhos de santo do candomblé, convivem com os orixás de forma integrada. E

buscam também integrar suas várias vivências, seus diversos papéis, formando uma

síntese capaz de lhes assegurar uma vida melhor.

Por todas as falas e experiências desses indivíduos que, ora se aproximam, ora

se afastam, aprendemos que o candomblé é uma religião de convergência: não exclui

Page 175: A morte no candomble

167

saberes, não exclui posições ou pontos de vista, acolhendo em seu berço todas as

possibilidades do humano.

Outras questões se apresentaram no decorrer da pesquisa. Por escaparem ao

nosso objeto de estudo, ficam registradas, até que um novo momento possa lhes dar a

voz: ainda dentro dessa comunidade poderia ser aberto o diálogo com filhos de santo de

outro extrato social e nível educacional diferente dos participantes da pesquisa, para

escutar-lhes as diferenças ou ampliar as convergências a respeito dessa vivência de

morte e do ritual de axexê, que para o grupo pesquisado impôs o cumprimento doloroso

de uma tradição.

A relação de poder imposta por uma hierarquia rígida determinada pelo tempo

de culto entra em conflito com as regras do mundo moderno, onde o poder econômico

se impõe, e essa luta é travada dentro do terreiro, quase sempre de forma velada. Nessa

batalha estão bastante claros os opostos das duas culturas: candomblé x ocidente

moderno; interessante seria poder observar e tentar compreender como se desenrola

esse embate nas comunidades de santo.

O fato de três participantes da pesquisa, que “viram no santo”, terem

ingressado no candomblé pela porta da dor e, os demais, não sujeitos à possessão pelo

orixá, afirmarem terem entrado pelo amor ou pela curiosidade, nos levou a levantar a

hipótese que fica aqui carente de resposta: o ingresso e permanência na religião é uma

imposição para os filhos de santo sujeitos à possessão pelo orixá, e uma escolha para

aquelas pessoas que não estão sujeitas a essa possessão?

As conseqüências da imposição do kelê foram retratadas como de extrema

dificuldade para as participantes do sexo feminino, enquanto os participantes do sexo

masculino sequer mencionaram esse importante período da obrigação de iniciação; esse

poderia ser o ponto de abertura para um estudo das questões de gênero no candomblé.

Poder-se-ia, ainda, traçar um ponto de intersecção entre a tradição da oralidade

no candomblé e a necessidade de conhecimento alegada por esses filhos de santo, atores

Page 176: A morte no candomble

168

do século XXI, buscando identificar até onde essa necessidade é legítima ou fruto do

hábito moderno do consumo de informação.

Questões acerca da mudança de algumas tradições do candomblé, como a

inserção do hábito moderno da cremação, por exemplo, poderiam ser bastante

exploradas, a fim de compreendermos até onde a cultura ocidental moderna pode

avançar sobre a cultura do candomblé sem desfigurar-lhe ou ameaçar-lhe a existência.

E, por último, levados pelas diferentes motivações de chegada à religião e

diferentes formas de lidar com a morte observada, os participantes da pesquisa

deixaram em aberto a possibilidade de um estudo através do enfoque psicodinâmico,

que não foi por nós explorado, uma vez que nossa pesquisa objetivou olhar para o tema

da morte sob o viés da psicologia, mas focada em sua dimensão cultural.

Page 177: A morte no candomble

169

6.GLOSSÁRIO

Abassê – Pessoa responsável pela preparação das comidas rituais e pela cozinha de um

terreiro.

Abiã – aspirante; literalmente, o que vai nascer.

Adoxu – iniciado que recebeu o oxu, sacralização da cabeça através da feitura do orixá.

Aiye – terra, mundo dos homens; a existência física e palpável.

Alabê – título que designa o chefe da orquestra dos atabaques encarregado de entoar

os cânticos das distintas divindades.

Alguedá – prato fundo de barro.

Ara – corpo.

Assentamento de santo – o mesmo que assento, altar do orixá. Objetos ou elementos

da natureza (pedra, árvore, etc.) cuja substância e configuração abrigam a força

dinâmica de uma divindade. Consagrados, são depositados em recintos apropriados de

uma casa-de-santo. A centralidade do conjunto é dada por um otá, pedra-fetiche do

orixá.

Assentar o santo – preparar o corpo da inicianda para servir de moradia ao orixá.

Axé – força sagrada dos orixás; força vital que move o mundo.

Axé Baraleji – nome da casa de santo comandada pelo Babalorixá Tito de Omolú,

localizada em Santo Antônio do Descoberto, entorno do DF.

Axé Opô Afonjá – Ilê Axé Opô Afonjá: nome de uma das casas de santo mais antigas e

ainda existentes no Brasil, em Salvador, e origem de tradição do candomblé Ketu.

Axexê – rito fúnebre em que os assentos dos orixás do morto são quebrados e

despachados juntamente com o despacho de seu espírito ou egum.

Axogum – iniciado masculino, encarregado do sacrifício ritual de animais.

Babalaô – sacerdote do oráculo de ifá, adivinho.

Babalorixá – pai de santo; autoridade máxima de um terreiro e dirigente do culto no

candomblé.

Barco – termo que designa o grupo dos que se iniciam em conjunto. Suas dimensões

são variáveis. Há barcos de mais de vinte iniciandos e "barcos-de-um-só". Através do

barco se consegue a primeira hierarquização dos seus membros na carreira iniciática.

Como unidade de iniciação gera obrigações e precedências imperativas entre os irmãos-

de-barco ou irmãos-de-esteira.

Barracão – salão em que se fazem as cerimônias de dança pública dos orixás.

Page 178: A morte no candomble

170

Bolar no santo – declaração em público do orixá que quer a iniciação de seu filho. A

outra forma dele dizer que seu filho deve ser iniciado é através do jogo de búzios.

“Bolar", ou "cair no santo", é indício da necessidade da futura iniciação. Geralmente

acontece quando a pessoa participa de um "toque de atabaque" e o orixá a incorpora,

ainda no estado denominado de "bruto". A pessoa passa por um desmaio ou perda dos

sentidos. Nesse momento o orixá se faz presente. Por não ter sido devidamente feito,

não há reações, tais como, andar ou algum tipo de comunicação, mesmo através de

simples atos como de balançar a cabeça respondendo as perguntas feitas.

Bori – obrigação dada à cabeça; primeiro rito de iniciação no candomblé.

Cabaça – fruto do cabaceiro. Sua carcaça é freqüentemente utilizada nos cultos afro-

brasileiros como utensílio ou instrumento musical.

Carrego – herança de obrigação religiosa de outra pessoa; obrigação religiosa em

geral.

Dofona (o) – hierarquia de um mesmo barco de iniciados; designação para o primeiro

ou mais velho iniciado de um barco.

Dofonitinha (o) – hierarquia de um mesmo barco de iniciados; designação para o

segundo iniciado de um barco.

Ebomi – iniciado no candomblé que já atingiu a senioridade, literalmente, meu irmão

mais velho; Pessoa veterana no culto; título adquirido após a obrigação de sete anos.

Egun – espírito de morto, antepassado.

Egungun – o mesmo que egun.

Ekede – cargo honorífico circunscrito às mulheres que servem os orixás sem,

entretanto, serem por eles possuídos. É o equivalente feminino de ogã.

Emi – vida, sopro vital.

Erê – espírito infantil que acompanha o orixá do iniciado. Termo que caracteriza um

estágio de transe atribuído a um espírito-criança.

Exu – orixá mensageiro, dono das encruzilhadas e guardião da porta de entrada da

casa; sempre o primeiro a ser homenageado.

Fazer o santo – iniciação ou processo em que os duplos sobrenaturais dos elementos

psíquicos da pessoa são fixados em um objeto simbólico e sua contraparte é fixada na

cabeça do iniciado.

Gantois – terreiro fundado em Salvador, Bahia, em 1849; localizado no Bairro da

Federação.

Ialaxé – titulo honorifico geralmente ostentado pela própria mãe-de-santo,

significando "mãe-do-axé" ou "zeladora-do-axé".

Ialorixá – mãe de santo; autoridade máxima do terreiro, do sexo feminino.

Page 179: A morte no candomble

171

Iansã – orixá dos raios, dos ventos e das tempestades.

Iaô – primeiro grau da carreira iniciática dos que entram em transe de orixá; termo

que designa o noviço após a fase ritual da reclusão iniciatória. Em iorubá significa

"esposa mais jovem".

Iapaoka – orixá feminino, considerada mãe de oxossi.

Iyabá – qualquer orixá feminino.

Iemanjá – orixá dona das águas, senhora do mar; mãe dos orixás.

Ifá – orixá do oráculo.

Iku – a morte.

Ilê – casa.

Ilê axé – casa de santo; casa sagrada.

Ilê Owow Omo Omolú – literalmente, casa dos filhos de Omolú; terreiro de

candomblé localizado em Santo Antônio do Descoberto, entorno do Distrito Federal.

Maé – ajudante do pai de santo na administração dos recursos mágicos. Segunda

pessoa na hierarquia do Axé Baraleji.

Irmã de barco – irmã de esteira; pessoas que se iniciaram em conjunto.

Ixã – vara de madeira utilizada para manter os eguns (espírito dos mortos) à distância.

Jogo de búzios – oráculo do candomblé.

Joye – ekede que recebeu o adoxu.

Kelê – colar de contas que as iniciandas trazem no pescoço; sinal de sujeição.

Ketu – subdivisão da nação dos nagôs; é a maior e a mais popular "nação" do

candomblé, religião afro-brasileira.

Lesse Egun – culto dos eguns, culto dos mortos.

Lesse Orixá – culto dos orixás.

Mãe Pequena – auxiliar do pai ou mãe de santo, segunda na hierarquia.

Mariow – folha nova da palmeira de dendê; usa-se geralmente desfiada.

Nanã – orixá do fundo dos lagos, dona da lama.

Odu – signos do oráculo iorubano, formados de mitos que dão indicações sobre a

origem e o destino do consulente. Odus são divindades enviadas por Orunmilá para

ajudar os homens.

Ogã – cargo sacerdotal masculino do candomblé; cargo superior, mestre.

Ogum – orixá da metalurgia, da agricultura e da guerra.

Ojá – pano branco que as filhas de santo usam na cabeça, como um lenço.

Ojé – sacerdote do culto dos mortos.

Oloducê – grande caçador dos tempos míticos.

Olorum – literalmente, dono do céu, dono do Orum.

Page 180: A morte no candomble

172

Omolú – orixá das pestes, da varíola, das doenças contagiosas.

Opaxorô – longo bastão de prata usado por Oxalufã. Cajado.

Opô Aganjú – Ilê Axé Opo Aganjú; terreiro de candomblé localizado em Salvador, BA.

Ori – cabeça, destino.

Orixá – divindade, deus do panteão ioruba.

Orum – céu, mundo sobrenatural, mundo dos orixás.

Orunmila – orixá do oráculo.

Osé – semana, limpeza semanal dos assentamentos de santo. Em alguns terreiros a

limpeza é realizada mensalmente.

Ossaim – orixá das folhas; orixá que cura com as ervas.

Oxaguiã – Oxalá jovem.

Oxalá – o mais poderoso dos orixás no candomblé brasileiro; orixá da origem e da

criação.

Oxalufã – Oxalá velho.

Oxum – orixá das águas doces, do ouro, da beleza e da vaidade.

Oxum Omim Ladê – nome do orixá da mãe de santo do terreiro Axé Baraleji, Verinha

de Oxum.

Oxossi – orixá da caça.

Padê de Exu – oferenda destinada a Exu composta de farofa de farinha de mandioca

com dendê, água ou aguardente.

Panã – a festa da quitanda dos iaôs; literalmente, final do castigo.

Palha da Costa – tipo de palha proveniente da Costa da África, com que se designa a

região sudanesa da África Ocidental (Golfo da Guiné). Usa-se trançada em diferentes

artefatos litúrgicos.

Pai de Santo – babalorixá; autoridade máxima de um terreiro e dirigente do culto no

candomblé.

Pai Pequeno – auxiliar do pai ou mãe de santo, segundo na hierarquia.

Pegigã – responsável pela conservação dos altares dos orixás.

Quartinha – vasilha de cerâmica ou barro, onde se coloca água diante do altar do

orixá; espécie de pequeno vaso com tampa.

Roncó – literalmente, caminho; nome do quarto onde o iniciado permanece sem o

contato do mundo profano até o término da sua iniciação.

Roupa de ração – roupas simples para uso durante as obrigações e permanência no

terreiro.

Sabagi – quarto contíguo ao roncó, ante-sala.

Sirrum – rito fúnebre nas nações de candomblé jejes.

Page 181: A morte no candomble

173

Terreiro (casa de santo) – local de culto, designa também a comunidade de

candomblé.

Tojú – nome sagrado da Joye Luciana.

Xangô – orixá do trovão e da justiça.

Page 182: A morte no candomble

174

7. REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Page 186: A morte no candomble

178

8. ANEXOS

8.1. Íntegra da fala dos Participantes – Entrevista semi-estruturada

Participante 1: Anderson

Sexo masculino, 26 anos. Professor Universitário e Fisioterapeuta.

Oito anos de participação no candomblé. Seis anos de iniciação. É filho de Oxalá,

Iaô do Axé Baraleji.

Quando eu era criança, com mais ou menos uns seis anos de idade, numa viagem de família, no

Espírito Santo, minha irmã passou mal na praia, no mar, dentro da água, ela ficou

desacordada e a gente a resgatou, salvou ela, e na mesma madrugada, na madrugada desse dia,

eu vim a ter uma crise convulsiva sem febre, sem nada. Quando voltamos a Brasília, fomos

fazer exames e não se diagnosticou nenhuma doença, mas mesmo assim a gente continuou

fazendo tratamento como se fossemos epilépticos, os dois. Minha irmã teve essa crise uma única

vez e eu, quando a gente voltou pra Brasília, eu continuei tendo várias crises sucessivas. Fiz o

tratamento medicamentoso com anticonvulsivante, essas medicações pra crise convulsiva, só que

não controlou. Um tio meu que era espírita, que freqüentou muito tempo o Alan Kardec e a

umbanda, convenceu os meus pais a me levarem para tomar um passe num centro umbandista e

assim eu fui; isso devia já ter uns nove anos de idade. Quando eu entrei na casa eu apaguei, eu

apaguei, eu realmente não lembro o que aconteceu e parece que eu tive uma crise e dessa crise

uma entidade se manifestou, um espírito dizendo se chamar pai Tomas, que era um preto velho

e ele deu algumas orientações a respeito do que estava acontecendo comigo. Nesse momento, eu

tive uma crise, como eu tinha rotineiramente em casa, e na rua também, e ele se manifestou e deu

o nome dele e contou toda uma estória do que estava acontecendo comigo: que era uma questão

espiritual, que tinha que ser trabalhada, que tinha que ser cuidada e que minha irmã não tinha

mais tido porque na verdade era algo ruim que tinha na nossa família, que a gente tinha

herdado, e que tinha vindo para minha irmã, só que, como eu também tinha uma mediunidade

aflorada, meu orixá pegou essa responsabilidade pra ele e tirou das costas da minha família.

Então, ele pegou toda essa carga negativa que havia da nossa descendência e trouxe para ele

como uma responsabilidade espiritual, isso foi o que essa entidade disse quando eu tinha nove

anos de idade, e que eu deveria buscar alguma orientação espiritual pra dar uma continuidade

a esse caminho, e assim foi feito. Eu continuei nesse centro, mas também freqüentei o Alan

Kardec. Fiz alguns estudos no Alan Kardec, cursos da doutrina kardecista e continuei na

Page 187: A morte no candomble

179

umbanda; na umbanda eu fiz a educação mediúnica, onde trabalhei muitos anos com as

entidades da umbanda. Em um determinado momento na umbanda, eu me tornei o pai pequeno

dessa casa que eu freqüentava, isso com dezessete anos de idade. Era, então, a segunda pessoa

responsável pela casa, só que minhas entidades me orientaram que meu tempo ali estava se

extinguindo e que iria ter outros caminhos que eu iria ter que trilhar, só que eu não sabia que

outros caminhos, porque eu nunca tinha pisado num terreiro de candomblé, nunca tive o

interesse de ir a um terreiro de candomblé, nunca tinha ido nem tinha sido convidado, muito

pelo contrário, eu tinha muito preconceito ao candomblé. Mas minhas entidades falaram que eu

iria acabar saindo dessa casa, e foi o que realmente aconteceu: eu me desliguei dessa casa. Então,

eu continuei trabalhando com as minhas entidades, só que não busquei lugar nenhum, não

busquei outra casa, não busquei outro centro, não busquei nada, continuei trabalhando e

atendendo as pessoas que vinham, e aí ocorre o seguinte, estava fazendo o curso de fisioterapia

na época, minha graduação, e surgiu uma oportunidade de eu fazer um estágio em Salvador,

num dos hospitais de maior referência dentro de uma área que eu gosto, que é a área que eu

estou atuando hoje em dia, que é de terapia intensiva. Fiquei mais ou menos um mês e meio em

Salvador, um mês no hospital e tirei mais quinze dias pra passar férias. No meu período de

férias em Salvador, eu fui ao Pelourinho e perguntei se havia alguma casa de umbanda que eu

pudesse conhecer; eles falaram que de umbanda não, mas que havia uma casa de candomblé que

é uma referência no Brasil, o Ilê Axé Opo Afonjá. Lá, eu conheci mãe Stela. Ela jogou os búzios

e me disse: “você caminhou de Brasília a Salvador, Oxossi te trouxe de Brasília a Salvador pra

que você encontrasse o seu caminho”. Aquilo me bateu muito forte porque era realmente o que as

entidades com as quais eu trabalhei durante muitos anos me falavam, que eu não iria buscar,

que iria aparecer para mim alguém, alguma situação que iria me fazer dar continuidade a

minha. Como eu morava em Brasília, ela recomendou que eu buscasse duas pessoas em Brasília

– Railda de Oxum ou Tito do Omolú, que é o meu atual pai de santo. E assim, eu voltei pra

Brasília, só que eu não procurei ninguém, eu não fui atrás nem de Tito do Omolú e muito

menos de Railda de Oxum. Só que ocorreu o seguinte, eu continuava freqüentando o centro

kardecista, que é a fraternidade Alan Kardec em Taguatinga, e tinha a mocidade jovem, que é

um grupo jovem que se reunia aos domingos e a gente saiu num domingo qualquer e fomos todo

mundo pra um rodízio de pizza; isso já tinha se passado pelo menos uns seis meses de eu tendo

retornado de Salvador, e nesse rodízio de pizza conheci várias pessoas, e uma delas era filho

carnal de pai Tito do Omolú. Conversamos um pouco e surgiu o papo de religião, e ele

comentou que ele era de candomblé, que ele era filho de um pai de santo daqui de Brasília, que

se chamava Tito do Omolú. Quando ele falou que o nome do pai dele era Tito do Omolú, eu

estava em pé, simplesmente sentei na cadeira e fiquei calado, comecei a rir, eu não falei

absolutamente nada. Mas nessa hora realmente me deu um estalo, eu pensei: gente, eu não fui a

Page 188: A morte no candomble

180

Salvador correr atrás disso, eu voltei a Brasília e não corri atrás disso, a coisa mais uma vez

está batendo na minha porta, falando pra eu procurar, pra eu seguir, então eu vou conhecer.

Então, eu fiz amizade com esse rapaz e um dia ele me convidou um dia pra ir à casa de santo.

Conheci Pai Tito e ele falou pra eu marcar um jogo de búzios, só que eu nunca marquei esse

jogo, e aí eu comecei a bolar no santo, e foi quando eu vim a saber o que era bolar no santo,

experiência que eu já tinha desde os meus seis anos de idade. Numa sexta-feira, ao amanhecer

do dia, ele fez um jogo pra mim, e disse que eu era filho de Oxalá, e me falou um pouco desse

orixá, me falou um pouco sobre o que representava o candomblé, falamos um pouco sobre a

religião e começou a ter essa afinidade. Então, normalmente, a gente fala que ou chega pela dor,

ou chega pelo amor; eu acho que não cheguei nem pela dor, nem pelo amor; eu digo que eu fui

encontrado pelo candomblé; eu não estava sofrendo, não estava com doença, não tinha nada; eu

cheguei meio que num chamado, porque eu não fui atrás, ele veio atrás de mim, dentro de um

contexto que já havia me sido dito, isso as minhas entidades falavam: olha você vai ter a

continuidade de um novo aprendizado, dentro de uma nova escola, dentro da espiritualidade, e

foi assim que eu realmente cheguei à religião.

Eu me formei, melhorei de emprego, estou trabalhando, continuo trabalhando, continuo

estudando, eu acho que continuou a lei natural do que eu buscava, independente do candomblé,

eu continuei fazendo meu curso de graduação, terminei, já trabalhava na época, continuei

trabalhando e as coisas foram se encaminhando, dentro do que eu fui buscando também, eu não

sei se, necessariamente, a religião me influenciou, porque eu nunca coloquei a religião como

ferramenta pra abrir portas pra minha vida; eu acho que se abriram que bom, mas eu não as

utilizei como ferramentas para isso, diretamente não. Eu acho que influenciam, mesmo porque

meu estado de espírito me motiva a buscar novos horizontes, mas não necessariamente; eu acho

que a religião pode ser um instrumento, ou não, depende muito da postura da pessoa, depende

muito do que ela faz por ela mesma, antes da religião; a religião, eu acho que é um adendo, algo

a mais, e não a base pra isso, e para mim foi, também, dar seguimento a um processo espiritual

iniciado na infância.

A morte, pra mim, ela nunca foi algo que me assustasse, nem antes, nem durante, nem depois do

axexê de mãe Vera. Nunca foi algo que me assustasse. Desde a minha infância eu sempre lidei

com situações de morte. Eu via pessoas mortas que conversavam comigo. Era minha tia que

morria, e que antes de morrer ela veio e apareceu pra mim, e conversou comigo; minha avó que

morreu, e eu a via dentro de casa, e conversava com ela; isso quando eu era criança, e

conversava com ela normalmente, quando ia dormir ela ficava no meu quarto, ela me colocava

pra dormir, então, eu tive, acho que pela minha infância, na época eu achava muito esquisito,

Page 189: A morte no candomble

181

muito estranho, mas eu tinha uma presença muito grande de pessoas que já morreram dentro da

minha vida, eu via, eu conversava, eu me assustava, elas me assustavam, eu chorava, eu

pressentia, então, isso, acho que me trouxe uma proximidade com a questão vida e morte muito

grande. Assim, nunca me foi um problema, então, eu sempre encarei a morte não como fim, eu

sempre vi continuidade na morte, porque eu vi pessoas mortas que conversaram comigo.

É um pouco complicado, porque a nossa cultura, a cultura ocidental, ela não é como a cultura

oriental, em que isso é na verdade natural, a morte é algo natural pra eles e muitas vezes até

motivo de celebração. Para nós, é exatamente o contrário, é motivo de tristeza, é o fim, é a

perda, que a pessoa quer extirpar aquele momento da vida dela o mais rápido possível, pra que

ela sofra o mínimo possível. Então, eu vejo isso quase todos os dias, eu vejo com certa tristeza,

porque eu acho que é muito mais saudável você entender a morte como algo natural, e sofrer

menos com isso, do que a postura ocidental, de você ter a morte como uma coisa sofrida, ou como

um fim. Eu vejo como uma coisa triste, eu acho que as pessoas poderiam, não pensar como eu

penso, mas, talvez, buscar menos a questão materialista da coisa, e mais a questão espiritual da

vida. Eu acho que seria mais fácil viver, eu acho que seria mais feliz viver, mais agradável

viver, do que a visão ocidental da morte como o fim de tudo.

A minha postura é me calar, me fechar, porque as pessoas ali pensam diferente de mim, então eu,

dentro do serviço em si, da prática da coisa, no meu trabalho, não existe espaço pra você discutir

sobre qualquer coisa ligada à morte, ninguém vai discutir isso, morreu, morte clínica, pronto,

acabou, então, agora, a família vai sofrer e velar o morto, ponto.

O ritual de axexê do candomblé, eu acho muito complicado dentro do contexto da nossa

sociedade, porque os próprios filhos de santo não têm, não cresceram dentro de uma mentalidade

que os favorecesse a entender o ritual. E o tempo, que muitas vezes nós mesmos passamos dentro

da casa de candomblé, não nos favorece, também, a muitas vezes compreender a amplitude que

esse ritual quer nos passar ou deveria nos passar. Então, é um choque, é um choque, porque se

nós tivéssemos essa criação, essa bagagem, eu acho que seria muito bom, porque, na verdade, o

ritual do axexê é um ritual de celebração, não um ritual de sofrimento, de perda, de desespero. É

um ritual de partida, mas de partida pra um outro mundo, e que existe uma continuidade, que

são os oruns, e que aquele espírito é eterno, só que agora num outro plano. Mas a gente não tem

essa concepção, a gente não foi criado pra entender isso, então é doloroso, eu acho que, muitas

vezes, é estender a dor das pessoas. O problema não é o ritual do axexê; o problema são as

pessoas, que não estão preparadas para o ritual do axexê. O ritual do axexê vem antes das

pessoas, ele é mais antigo do que nós, somos nós que não estamos inseridos nesse contexto. Esse

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182

axexê da mãe Vera, eu não gostei; esse em específico eu não gostei porque, não pela minha pessoa

em si, somente, mas pelo contexto em que ele aconteceu, a maneira com que ele foi feito, as

pessoas, o sofrimento das pessoas que estavam ali inseridas, e é o que eu falei, foi realmente o

choque, as pessoas que estavam participando daquele axexê não estavam preparadas pra aquele

tipo de ritual, então, eu acabei sofrendo.

Mas eu concordo que o tempo, o tempo, sim, ele ajuda, então eu acho que o ritual do axexê, por

ser mais prolongado, ele te leva a refletir, elaborar aquela perda, a buscar instrumentos de se

reestruturar e de se apoiar mutuamente, porque na verdade não é o ritual do funeral, que daqui

a pouco terminou o funeral, enterrou o caixão, e vai todo mundo pra casa, não; lá, na verdade, é:

terminou o ritual daquele dia, amanhã se continua, então, aquela pessoa que realmente está

sofrendo mais perda, ela vai ter o amigo, vai ter o irmão, vai ter o pai, vai ter todo um contexto

em volta que, realmente, vai lhe dar apoio. Agora, saber se, realmente, esse apoio foi eficaz nessa

situação, eu não posso afirmar.

No meu caso operou uma diferença porque, realmente, durante o ritual do axexê, eu pude pensar

no tempo que eu conheci a mãe Vera, do tempo da partida dela, todo esse período, e filtrar as

boas lembranças, e aquilo que me fazia bem em pensar em mãe Vera. Talvez, se fosse só o

momento do caixão e do cemitério e ir embora, eu não pararia pra pensar em tudo isso, em todas

as coisas que eu pensei; nesse sentido, o ritual me ajudou em muita coisa, a refletir sobre “n”

coisas que eu vivi junto com ela.

É difícil ter algum parâmetro porque a gente não lembra de quando a gente nasceu; então, a

gente perdeu o referencial do que é nascer. Eu não tenho meu referencial do que é nascer, você

não sabe o que é nascer, ou sente, ou lembra do que é nascer, a gente não lembra; então, na

verdade, a iniciação é uma sensação de renascimento no contexto de uma nova vida: eu não

deixei de ser eu mesmo, me acrescentaram coisas, então se renascer, se morrer para renascer é,

não perder a sua individualidade, mas acrescentar muitas outras coisas ao seu eu, eu realmente

renasci, e isso foi muito bom pra mim, me trouxe muito aprendizado.

Eu acho que se integra, acho que se integra, a minha postura aqui fora não é a minha postura

lá dentro, mas a religião me ajuda a entender, a compreender e a enfrentar a vida aqui fora de

uma maneira diferenciada, então, ela me influencia aqui fora, ela me acrescenta aqui fora, não

são dois papéis que não estão no palco ao mesmo tempo, eles estão no palco ao mesmo tempo, eles

estão interpretando a mesma peça, que é a peça da vida, só que são dois papéis: é o iaô Dofono

Anderson e o Anderson filho, profissional, professor, mas elas, elas interagem, elas interagem.

Page 191: A morte no candomble

183

No meu caso eu acho que é muito boa, porque eu acho que eu me relaciono bem com essas outras

personalidades, digamos assim, porque elas trabalham e eu trabalho pra elas de maneira

construtiva, então, na verdade eu não as atrapalho e elas não me atrapalham, a gente se soma,

num ideal único.

Existem momentos em que eu estou nessa situação em que eu, realmente, não consigo me

lembrar, então, é uma experiência de morte, que eu já tinha na umbanda, também: são ensaios

de morte; esse tipo de situação vai fazer com que a pessoa fale: “tem algo além da minha

consciência, do meu controle; então, existe algum poder, alguma força, algum sei lá o que, que

consegue me tomar e me dominar em um ponto, ou seja na visão, ou seja na audição, ou seja no

corpo físico, na movimentação ou seja em tudo, para mim isso é um privilégio, vivenciar o orixá

e o erê, porque eles trazem muitas vezes conhecimentos que eu não conheço, elas trazem

informações que eu não conheço, então, eles me fazem ter mais a certeza de que existe um outro

plano, uma outra força, algo que é superior ao meu eu, e que nesse estado de transe isso se aflora,

é uma manifestação que eu não sei definir ou como fazer para que seja mais ou menos intensa,

simplesmente acontece, como uma morte curta, uma morte temporária.

Page 192: A morte no candomble

184

Participante 2: Eduardo

Sexo masculino, 41 anos. Empresário e economista.

Doze anos de participação no candomblé. Seis anos de iniciação. É filho de

Oxossi, Ogãn do Axé Baraleji.

Eu acredito que, essa simpatia pelo candomblé, posso atribuir a uma herança de família.

Quando criança, freqüentei muitos terreiros, muitas casas de santo, não no candomblé, mas de

umbanda, através de meu pai, minha mãe. Participava dos rituais, gostava. Mas durante

minha adolescência, eu procurei vários caminhos, na igreja católica, na igreja protestante,

messiânica, e não me encontrei em nenhum desses lugares. Participei, freqüentei, inclusive até a

igreja mórmon, e não me encontrei em nenhum desses lugares. Mesmo depois de eu ter

participado de vários cultos, vários rituais, várias iniciações dentro de cada um desses

segmentos, eu não me encontrei e, com o passar dos anos eu fiquei sem freqüentar nenhuma casa

religiosa. E, então, eu tive a oportunidade de conhecer o candomblé. Por curiosidade, eu fui

numa casa de candomblé, comecei a visitar, participar das festas, e fui me integrando. Quando

eu vi, já estava participando do culto e me iniciei no candomblé, como nós dizemos, eu fiz

santo.

Minha vida, antes de entrar para o candomblé, eu posso resumir dizendo que era uma vida

vazia, sem objetivo, sem crença; mas depois que entrei para o candomblé, aconteceu essa guinada

em minha vida, mudou completamente. A minha vida profissional mudou completamente, houve

um progresso muito grande profissional na minha vida depois que eu entrei paro o candomblé.

Eu, com certeza, afirmo que essas mudanças positivas que ocorreram na minha vida foram em

virtude dos conhecimentos, na crença, que me fizeram progredir, isso eu tenho certeza absoluta.

Minha vida, antes do candomblé, era uma vida comum, pacata, trabalhar, ir pra casa, de casa

pro trabalho e só. Eu tinha objetivos de vencer na vida, mas a força, o empurrão que eu

precisava para minha carreira ir para frente, a busca do encontro comigo mesmo se deu no

candomblé. Inclusive os meus estudos, que estavam paralisados, há vinte anos que eu não

estudava, depois de eu me iniciar no candomblé eu tive o apoio, eu tive o incentivo de retomar os

meus estudos e hoje eu estou concluindo minha graduação. Esse incentivo, eu posso dizer que

vem um pouco das pessoas, um pouco do orixá; é uma mistura, pouco de cada, não é

especificamente só do orixá, ou só de uma pessoa, só da comunidade, é um pouco de tudo, um

conjunto que te dá essa força, e faz com que você toque o barco pra frente. Minha vida agora é

completamente diferente; o candomblé,em relação a outras religiões, e eu conheço várias outras

religiões, ele te cobra muito pouco, ele te deixa bem à vontade, e por amor ao orixá, você se

Page 193: A morte no candomble

185

dedica; você deixa fluir a sua integração com o orixá, você começa a se integrar, sentir falta

daquilo ali, e não tem aquela cobrança de você tem que ir, você tem que fazer, você tem que

contribuir, não tem essa cobrança, é uma coisa bem natural, espontânea.

Eu me considero uma pessoa integrada com o Orixá, eu não sou um figurante, eu sou uma

pessoa integrada, então tudo na minha vida muda a partir desse momento e desse encontro

comigo mesmo, dessa integração, tudo depende daquilo, a crença está em primeiro lugar, e essa

crença me leva pra frente.

Eu tenho várias concepções sobre a morte, várias concepções; tem aquela concepção que a gente

aprende desde criança, que a gente herda da sociedade; tem a concepção da casa de santo, que a

gente vai aprendendo aos poucos. Poucas pessoas têm a oportunidade de conviver com uma

morte dentro de uma casa de santo, é uma coisa rara. Geralmente, as pessoas de santo vivem

mais, são pessoas já bem velhas, morrem de velhice, são raras as pessoas que tem a oportunidade

de participar, de conviver com a morte de um membro da casa de santo. Eu tive essa

oportunidade, de conviver com duas pessoas, com uma Ialorixá e com uma Iaô. Tive essa

experiência, da morte de duas pessoas da mesma comunidade; foram duas mortes distintas: foi

uma irmã de santo, que fez santo junto comigo, e que veio a falecer de um crime bárbaro, essa

eu senti bastante a morte dela, mas encarei com naturalidade, acreditando que era o caminho

dela morrer desse jeito, então, eu aceitei com mais naturalidade, depois de me conscientizar que

aquele era o caminho dela, que aquele era a missão dela, ela teria que passar por aquilo, e foi

daquele jeito, que tinha que ser. Já a morte da nossa Ialorixá foi uma morte mais demorada,

uma doença que se estendeu por dois anos até o falecimento, já era uma morte esperada; não foi

igual à outra, que foi uma fatalidade; então, eu encarei com naturalidade, era uma doença

genética, de família, ela teve vários familiares que morreram dessa doença. Passamos dois anos

tentando todos os recursos possíveis pra prolongar a vida dela, mas já era sabido que não tinha

jeito de evitar, devido à gravidade da doença, então, encarei com naturalidade, também. Eu não

sei se porque o meu orixá de cabeça é um orixá que não teme a morte, e eu não sei se por esse

motivo eu, também, não tenho medo da morte, a morte pra mim é uma passagem, é só uma

passagem, eu encaro ela com muita naturalidade, e vejo como uma passagem; não temo a morte,

não tenho receio dela... Acredito que quando a pessoa morre ela vai para um outro plano e

acumulando as experiências aqui vividas, ela possa ser útil em outra esfera, outra dimensão.

A questão da participação no ritual do axexê, eu acho que tem dois casos: pessoas que recém

chegaram, que ainda não estão integradas na sociedade, e tem pessoas mais antigas que, não sei

se por causa da ignorância, não deixam a coisa fluir naturalmente, fazem do ritual uma

repetição, aprende por repetição e por participação, então, eu acredito que algumas pessoas não

Page 194: A morte no candomble

186

tem uma bagagem cultural pra entender o significado de um ritual e faz por repetição, porque

todo mundo fez. Se você perguntar: porque é feito desse jeito? Eles não sabem responder. Ah,

não sei, todo mundo faz, sempre fez desse jeito; e têm aqueles mais curiosos, que são mais

instruídos, e que procuram saber o porquê que tão fazendo aquilo ali pra poder aprender o

significado; eu acho que a partir do momento em que você entende o significado das coisas você

começa a integrar a comunidade como um todo.

Os rituais fúnebres da sociedade moderna são diferentes do candomblé. No candomblé é

completamente diferente, é um ritual muito longo, de acordo com o cargo que a pessoa falecida

ocupava. Aqui fora, os rituais fúnebres, são precedidos de um velório, que geralmente dura uma

noite, e no dia seguinte a pessoa é sepultada, existe rituais de missa, orações que são feitas, e no

dia seguinte a pessoa é sepultada, rapidamente. No candomblé, além do ritual de sepultamento

ou cremação, existem os rituais religiosos que nós denominamos de axexê, para que o seu

espírito parta em paz. No axexê, os bens materiais da pessoa falecida, são destinados, através do

jogo de búzios, é dado destino a essas coisas materiais que essa pessoa usou quando viva: roupas,

jóias, os bens materiais em geral.É um processo mais longo e muito cansativo, não é um

processo fácil não, é feito em cima de obrigações, onde participam todos os filhos de santo da

casa, pessoas de fora também participam, é um ritual aberto...

Pra mim, essa experiência, essa vivência desse ritual fúnebre, foi um ritual em que, com a

participação de toda a comunidade, ficou mais fácil a aceitação da passagem dessa pessoa desse

mundo para outro mundo. Esse ritual é muito longo, mas com a participação de toda a

comunidade, eu acho que se tornou mais fácil a aceitação da passagem dessa pessoa e para mim,

com certeza, se tornou mais fácil.

Page 195: A morte no candomble

187

Participante 3: Luciana

Sexo feminino, 36 anos. Professora de Educação Física e estudante de Direito.

Vinte anos de participação no candomblé. Sete anos de iniciação. É filha de

Iapaoka, Joye do Axé Baraleji.

Eu vim conhecer uma casa de candomblé através de um amigo, o Fernando, que hoje é Maé

dessa casa. Vim numa festa de Xangô, exatamente em 1986, eu tinha 16 anos e fiquei muito

encantada. Claro que, com 16 anos, com a base que eu tinha kardecista, que minha mãe carnal e

meu pai carnal são kardec, eu fiquei muito encantada com todo o folclore, todo o místico que

envolvia a arrumação, a ornamentação de uma casa de candomblé. O Axé Baraleji não é hoje a

estrutura que era em1986, o barracão ainda estava em construção, foi uma das fogueiras

maiores que eu vi serem construídas nessa casa pra festa de Xangô, e aquilo tudo me encantou

muito, então na verdade foi esse encantamento pela vestimenta do orixá, uma relação muito

profunda que eu senti em relação ao orixá Oxum, de mãe Vera, Ialorixá da casa do Axé

Baraleji, que me trouxe ao mundo do candomblé. Então a minha chegada no candomblé veio

dessa forma, sendo que minha mãe, meu pai, eles eram clientes, na verdade, do Tito, Pai Tito,

que eu conhecia de uma forma muito informal na casa de Taguatinga. Então, eu entrei a

primeira vez numa casa de candomblé como uma visita, como todas as pessoas entram, através

de amigos, e fui me envolvendo com os preparativos, com as coisas que pertencem ao mundo da

festa do candomblé e quando foi em 1989, aí eu já estava casada com o Fernando, já pertencia

de alguma forma, como uma visita, mas já participava de todo o ritual que precede o ato do

candomblé. E só em 90, depois da feitura do Fernando, foi que eu fui iniciada, em 91, então,

quer dizer, meu ingresso na casa de candomblé foi como uma visita, a minha paixão foi por esse

orixá, amor ao orixá Oxum, por Omim Ladê, que é a santa de Mãe Vera, e daí pra frente foi

uma longa estrada.

A tradição diz que as pessoas vêm por amor, porque já conheciam o candomblé e se instalam

numa casa de santo, para mim foi um outro; eu acredito que eu me encaixe mais na questão do

amor, do que na questão da dor; eu era uma jovem, não tinha problemas pessoais que me

trouxessem, me levassem pro candomblé, não bolava no santo, ou seja, não passava mal, digamos

assim, na rua ou em outros lugares pra que eu procurasse uma ajuda espiritual no sentido de

harmonizar as energias; não por problemas financeiros, eu era uma estudante, mas sim por ter

ficado deslumbrada realmente com aquela energia que envolveu aquele momento no candomblé.

Eu freqüentava o kardec, que é uma coisa bastante diferente do rito do candomblé, mas que

procura de alguma forma obter uma estrutura em relação a ajudar as pessoas, em relação a

Page 196: A morte no candomble

188

propiciar uma estabilidade emocional, financeira, espiritual, tanto como o candomblé, mas ele

mexe com energias diferentes do candomblé. Na verdade, houve uma grande mudança quando

entrei para o candomblé, porque eu era kardec pelos passos da minha mãe e do meu pai, mas dos

12 anos de idade aos 15 anos de idade eu não tinha nenhuma crença, não tinha nada que me

fizesse acreditar que na verdade existia uma força ou um Deus que movimentasse o universo.

Fui batizada, fiz primeira comunhão por que estudei todo um período num colégio católico,

então quer dizer, você se acostuma com aqueles atos, com aquela tradição, mas não encontrei no

catolicismo um berço que me aconchegasse, não consegui acreditar na pureza das atitudes

daquelas pessoas, nem naquele Deus, que acredito, hoje, ser universal e único, que aquelas pessoas

naquele momento cultuavam, fosse bom. Dos 12 até os 15 anos, que é o período que precede a

minha entrada no candomblé, eu fui extremamente revoltada com as coisas que pertencem ao

mundo material, no sentido de ver a pobreza, como que um Deus cria a pobreza, como que um

Deus deixa as crianças morrerem por falta de atendimento, por não terem condições de serem

tratadas, como é que ele cria a miséria, quer dizer, são coisas que eram muito conturbadas na

minha cabeça.

Nesse período, talvez pela falta de maturidade, eu não acreditava de forma alguma que existia

uma força que você deveria reverenciar, ou que você deveria agradecer, ou que você deveria

pedir ajuda; eu achava que as pessoas conseguiam as coisas porque batalhavam por elas. À

medida que eu fui adentrando no candomblé eu fui conhecendo um mundo energético, digamos

assim, eu entendo o candomblé como uma energia, como a materialização da energia, como o

culto que mais mexe com as formas energéticas que elas emanam literalmente da natureza; esse

Deus passou a existir de uma forma energética como se ele pudesse ser uma energia cósmica e

que ele pudesse, de alguma forma, favorecer o andamento das coisas, até porque eu não tinha

nessa época, nesse primeiro período que eu entrei pro candomblé, eu não conseguia vislumbrar

um Deus no candomblé, na verdade eu conseguia entender que existia uma energia que me

atraia de alguma forma, que me tirava daquele status de não acreditar em absolutamente nada.

Hoje, eu até acredito que exista uma forma de energia no cosmo e que as pessoas denominam de

Deus.

Hoje eu ainda continuo achando que essa adoração que os evangélicos tem, que o católico tem,

em relação a um Deus ela é cultural, no sentido de que as pessoas buscam uma solução pro seus

problemas, buscam um amparo pro seus problemas, mas eu não acredito que exista um Deus que

tenha colocado as pessoas no mundo com o motivo delas definharem ou delas prosperarem, eu

não acredito nessa imagem cultural que as pessoas tem, eu acredito que o mundo é formado por

energias, as pessoas lamentavelmente nascem e morrem, de pessoas mais ricas ou mais pobres,

Page 197: A morte no candomble

189

elas vem pra um aprendizado pessoal. Eu acredito muito que a essência humana, que também é

energia, a alma que também seria uma forma de energia ela vem pra um aprimoramento.

Na verdade, o candomblé vê a morte como sendo início e fim; ele vê o odu iku que rege a

manifestação da morte como sendo início e fim, o odu mais poderoso. A morte é um dos

elementos mágicos que mais movimenta o rito do candomblé, porque é a única verdade certa do

ser humano, que é a passagem dele, de alguma forma, por esse aspecto chamado morte. Eu

entendo a morte no candomblé como sendo o inevitável, por sermos matéria, como sendo uma

das forças que eu já pude sentir, vivenciar, principalmente com a morte da Ialorixá da casa, da

forma mais poderosa entre as manifestações de todas as coisas que eu já participei ao longo de

pelo menos aí uns 16 anos, e, realmente, é inexplicável a sensação de desespero, que pelo menos

me envolveu quando participei, do medo profundo, que me levou também a questionar alguns

valores, como sendo a morte uma coisa boa, como sendo a morte uma passagem boa, se no

momento que eu vivenciei essa manifestação energética, da sensação desse caminho da Ialorixá

Vera, ter transmitido a mim tanto medo, tanto desespero, no sentido da participação dos ebós

que envolveram a pessoa dela, então pra mim, como sentimento, a morte é uma das coisas mais

fortes que existem na natureza, é como se ela pudesse ser materializada de alguma forma, não

sei como, fosse uma abertura num momento da vida de cada pessoa, que tirasse dela aquela

energia e, lamentavelmente, a experiência que se guardou em mim, que hoje me faz me

perguntar muito, porque que as pessoas tem tanto medo de morrer, talvez, de alguma forma

carreguem isso dentro da sua própria matéria, porque que elas sentem tanto medo, porque

realmente é uma situação desesperadora. Então, aquele momento, aquele exato momento quando

se iniciou a tentativa mágica da manutenção da vida, foi que me mostrou o quanto é frágil a

vida, o quanto que a morte é extremamente mais forte, porque com todo o amor que se dedicou

aquele momento, com toda a magia, com todo o conhecimento que se faz necessário na tentativa

de alguma ação de sucesso, a única sensação que eu guardei foi de medo.

Eu ainda guardo a concepção do kardecismo, de certa forma quando você é filha de pais kardec,

você não tem como não guardar esses fatos da vida ser um aprendizado, que nós somos um ser

em evolução, que nós viemos de outras experiências de vida, da história da humanidade que

sucessivamente esses fatos irão acontecer em algum espaço e tempo futuro. Não tem como você

nascer num berço kardec e não ter esses valores dentro de você, mas hoje como eu vivencio talvez,

a próxima perda que eu venha a ter seja a do meu pai carnal, por fatores de doença e por ele ser

um homem Kardec, por eu conversar com ele e ele também dizer: “minha filha, talvez Deus não

exista”, ele que é um profundo estudioso da religião kardecista, se ele pode levantar esse aspecto

de dúvida, eu que ainda não vive a metade de vida dele e não tenho o conhecimento que ele

Page 198: A morte no candomble

190

abarcou ao longo dos anos de estudo, me sinto extremamente à vontade pra questionar a

existência de um Deus.

Porque que eu permaneço no candomblé? Eu tenho uma resposta muito forte, a nível consciente,

de todas as coisas que, principalmente, eu peço ao Orixá Oxum, no sentido do meu caminho

profissional, no sentido de antecipação de fatos da minha vida pessoal, no sentido da proteção

da minha família, no sentido de alguma forma fica muito confuso na minha cabeça, mas que

consegue em sonho, ou em intuição, me adiantar fatos como se eu pudesse resolver as coisas no

anterior dos fatos acontecerem, na verdade eu tenho alguns fundamentos muito confusos, e após

a partida de mãe Vera esses fundamentos dentro de mim se tornaram mais conturbados porque é

como se de alguma forma, Orixá Oxum que eu cultuo pudesse estar mais próximo da minha

pessoa, não sei explicar muito bem... mas dentro do candomblé eu tenho essa resposta, de alguma

forma existe uma energia, seja ela dado o nome que for, Oxum, Deus, Ifá que é o dono de todos

os caminhos, seja qual for essa forma de energia, ela me responde.

Com certeza, se o candomblé não tivesse em mim uma resposta positiva, de acreditar, de

manifestação, de realmente poder antecipar, de poder prever, de poder acertar, com certeza, por

mais amor que eu tivesse a Oxum, que é o Orixá que eu mais cultuo, eu não ficaria aqui.

Porque eu tenho a necessidade de ter a certeza daquilo que eu faço.

Minha relação com a morte mudou depois da partida de Mãe Vera. Mudou, porque eu sempre

me preparei no sentido de que um dia eu vou reencarnar, a matéria Luciana, a matéria Toju,

vai desaparecer e até então eu tinha um pólo de que eu passaria para uma outra dimensão e ali

eu continuaria um aprendizado, mas isso era uma sensação que eu tinha boa em relação a uma

passagem, a sensação da vivência de poder entrar em contato com a morte me deixou uma

dúvida se realmente existe uma passagem, se realmente, como ninguém voltou pra contar, se

realmente existe um aprimoramento em um outro prisma, essa é uma dúvida que eu, Luciana,

tenho; dúvida de que seja uma coisa boa a passagem.. Se fosse uma passagem, porque o medo,

porque a sensação de desespero, eu sabia que aquela senhora, no momento daquele ato mágico

não ia morrer, era uma sensação presente em mim, a ponto de eu perder os movimentos, a ponto

de eu ter uma respiração ofegante, a ponto de eu entrar em sudorese, reações orgânicas do meu

organismo, por uma sensação de uma energia desconhecida, que trouxe a minha energia pessoal

medo; aquela estrutura que eu criei, durante os meus 36 anos, fui criando no meu aprendizado,

aquela estrutura de ser uma coisa boa a passagem, caiu por terra. Eu estou estudando muito pra

que eu possa compreender um pouco mais, me preparar um pouco melhor até pra perder aquele

que com certeza, ou talvez não, mas pela lei natural vou perder ...

Page 199: A morte no candomble

191

Eu acho que quando você abraça uma tradição religiosa, você abraça, também, tudo aquilo que

envolve todos os momentos dela; todos os momentos que envolvem o candomblé são totalmente

mágicos, tanto na hora do nascimento de um iaô, quanto na hora quando o iaô parte. A

sensação da morte da Ialorixá, da qual em vida eu fui Ekedi, da santa a qual eu fui

consagrada, ela se mistura muito, porque não tem como separar. Então, o axexê foi importante?

Foi importante porque era uma homenagem, nós aprendemos culturalmente que o axexê é uma

última homenagem, que todas aquelas pessoas com quem aquele determinado sacerdote conviveu,

você tem o direito de se despedir dele, de uma forma alegre porque ele viveu tudo, ele presenciou

tudo que ele poderia presenciar; esse é o rótulo do axexê; eu posso considerar que foi esse o rótulo

do axexê de minha mãe? Não, não posso. Não pude vivenciar isso dessa forma, porque existia

uma dor muito grande pela partida dela, no caminho que foi embora pela doença e não pela

velhice, já há aí uma interrupção, talvez do que nós chamamos de natural.

Na questão do axexê em si, pra mim foi uma experiência boa e ruim ao mesmo tempo. Boa no

sentido de que nunca participei de um axexê de uma Ialorixá; já participei de axexê de pessoas

de menor hierarquia do candomblé... Mas no axexê de Mãe Vera, por mais que quiséssemos

homenageá-la, por mais que quiséssemos fazer do axexê uma festa alegre todo mundo carregava

uma dor muito grande. Todo o momento que a gente remexia nas fotos, que a gente ia pegar

nas roupas, eu mesmo me repisei milhões de vezes, eu chorei demais durante todo o momento,

então quer dizer, eu estava pronta pra vivenciar aquilo, não estava... Eu acho que não faz

sentido eu prestar uma homenagem num momento que eu não tenho condição de prestar essa

homenagem. Aquele momento de sofrimento, por isso estou narrando esse fato pra que você

entenda como eu entendo, que aquele procedimento de sete dias, só causava mais sofrimento, que

na verdade se desligar de uma pessoa, não existe magia pra isso, só mesmo a vivência de cada

um, a experiência de cada um, o que cada um entende como precisar da pessoa, como vida, como

conhecimento, como ensinamento, passagem, aquilo que cada possui que vai fazer o sofrimento

maior ou menor, então na verdade as pessoas ali tinham enfoques diferentes, até porque nós

como entidades de candomblé somos muito novos, provavelmente os próximos, tomara que

demore bastante, mas os próximos serão talvez diferentes pra cada um, mas esse o axexê não

teve aquilo que a gente estuda nos livros, aquilo que é transmitido pelos mais velhos, a festa de

despedida de uma pessoa importante, teve a do sofrimento e a dor daquilo que se desfaz de uma

pessoa que era extremamente importante, como mãe e não como somente Ialorixá,

Nós não moramos numa ilha africana, então, por exemplo, pra uma casa centenária como o Axé

Opo Afonjá que tem muito mais velhos do que os novos, que se perde pela idade um após o outro,

aquilo seja uma grande despedida, a pessoa viveu 90 anos, bravo, vamos homenageá-la de todas

Page 200: A morte no candomble

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as formas possíveis, não, a gente estava perdendo uma pessoa literalmente, a sensação que eu

tenho quase certeza pra todos aqueles que viveram com ela muito tempo foi de uma perda

irreparável, como eu poderia estar feliz e alegre, como eu poderia caracterizar o axexê uma

festa de felicidade? Muito difícil, foram sete dias de axexê, foram sete dias de tortura, você não

tinha a escolha de não participar, então, pra mim, foi uma tortura. Como que aquilo pode ser

caracterizado como uma festa de despedida ou uma festa de alegria? Então, estávamos

preparados pra essa festa de axexê? Não tenho como caracterizar o axexê da minha mãe dessa

forma, não consegui fazer isso, mas eu acho que ele é importante porque ele é tradição, como em

qualquer religião, e a tradição é feita pra ser cumprida, então ela deve ser cumprida.

Faltou preparação pra morte; ninguém queria a partida dela, não se preparou a casa pra

partida dela, acho que tudo isso foi um aprendizado pra todos nós, valeu por esse motivo, porque

foi um aprendizado, então se hoje um velho da minha casa for morrer a casa tem que se

preparar pra que ele parta, se for por doença que permitam que todos os filhos se despeçam dele,

que permitam que, todas as pessoas que consideravam aquela pessoa importante, não importa o

motivo pelo qual as pessoas estejam indo até a pessoa se despedir, bonito ou feio, se é pra

verificar se está morrendo mesmo ou se ainda vai viver muito tempo, digamos assim, não

interessa, o que vai no âmago de cada um é problema do ori de cada um, da consciência de cada

um, com seu próprio orixá, com seu próprio caminho, com seu próprio destino, não é um

problema daquele que está indo embora, então eu acho que foi um aprendizado. Faltou

preparação pra aquele rito que iria se cumprir, não se tinha idéia que seria tão sofrido, não se

tinha idéia de que ia ser tão difícil;algumas pessoas nem chegaram a se despedir dela com ela

ainda viva, mesmo que fosse um olhar, mesmo que fosse um abraço....

Eu graças a Deus tive a oportunidade de me despedir dela, mas sei que muitos dos meus irmãos

não tiveram, foi errado, no meu entendimento foi errado; ela não foi preparada pra ir embora:

você está indo embora, então se despeça daqueles que estão em torno de você, se iludiu talvez por

envolver muito sentimento, de que em algum momento, por um passe de mágica, tudo voltaria à

estaca zero; então tinha que ter sido mais verdadeiro, mais exposto, talvez tivesse sido, pra nós

filhos de santo, melhor. Eu não sei o que seria pra ela, como pessoa, se ela realmente preferia não

se despedir, mas se é que é dado a um sacerdote o direito de não se despedir, quando você entra

no mundo do sacerdócio você também vai ter que aceitar a tradição daquilo que for imposto; eu

sou uma joye, quando chegar a mim o meu tempo eu também vou ter que entender isso, então,

hoje eu tenho essa concepção e espero conseguir transmitir aos mais novos essa concepção.

Na iniciação, as pessoas não tinham acesso ao sagrado, e no momento da iniciação passam a ter

acesso ao sagrado, ou seja, dali começa uma nova vida dentro do sagrado, ou um outro enfoque

que eu acredito é que no momento em que você participa de uma iniciação, você por ser iaô,

Page 201: A morte no candomble

193

tenha a manifestação mais inteira do Orixá na sua pessoa; como eu sou uma joye, não passei

nem por uma coisa e nem pela outra; porque nem por uma coisa nem pela outra? A questão de

não ser iaô é fácil de ser explicado porque eu não viro no santo, então é um sentimento que eu

não vou poder ter dentro de mim, e a relação que eu tinha com o sagrado ela já existia antes da

minha feitura. Eu fui oborizada em 91, então, quando eu me oborizei eu tenho a sensação de

que eu passei a pertencer a um novo caminho, no sentido de participar do sagrado de uma forma

mais vivencial. Desde o meu primeiro bori eu passei a ter contato com o sagrado, a entrar nos

cômodos sagrados, a entender o que era um assentamento, a entender como que acontecia a

feitura de um iaô. Quando eu vim a fazer a minha feitura, há 7 anos, eu já participava de tudo

do sagrado; na verdade o sagrado é que estava pesando sobre os meus ombros, atrapalhando a

minha vida, no mundo digamos lá fora, na minha vida profissional, na minha vida dos meus

compromissos, financeiramente, ou seja, na verdade existia uma cobrança do sagrado em torno

da minha feitura; mas todos os atos que pertenciam ao sagrado, eu Luciana, antes de ser Tojú

já participava. Minha feitura, na verdade, foi fazer um acerto de contas; a única mudança, que

eu posso dizer, é que pesou mais a responsabilidade, porque antes eu tinha o direito de errar,

agora eu tenho o dever o de acertar, eu, Luciana como consciência, como pessoa, dentro dos

princípios de educação que eu trago da minha casa, pra mim mudou só nesse sentido, mas em

relação, começa uma nova vida a partir de agora pra mim era indiferente, eu já era uma ekedi,

já fazia tudo que uma ekedi fazia, pra mim não teve esse enfoque.

Eu acho que os dez anos que eu passei na roça me prepararam para isso, eu era extremamente

feliz no momento da minha obrigação, e deixava pra trás um filho pequeno, que tinha 1 ano de

idade, a única sensação que eu tinha era saudade da minha família, da minha filha, do meu

esposo, mas eu não tinha essa sensação de reclusão, eu não tive essa sensação de reclusão. Até

porque eu recolhi com dois iaôs, e o tempo todo eu participei da obrigação deles, quando a

obrigação não pertencia aos três, pertencia só a eles eu participava da obrigação, porque eu já

participava antes, eu participava antes continuei participando depois, então eu não tive essa

sensação de reclusão, porque na verdade eu acho que eu estava pronta pra entrar no roncó, então

o que acontece, pra mim, naquele exato momento não houve essa sensação de reclusão. O meu

kelê, o kelê foi muito mais difícil pra mim do que o estado dentro do roncó, porque eu tive que

trabalhar e nos primeiros dias posteriores que vieram da minha saída pro mundo eu era

extremamente assustada, eu tinha medo da árvore, eu tinha medo de tudo, eu estava

extremamente fragilizada, e assim, o kelê não tinha peso, porque fazer certo pra mim é normal,

ter que tomar banho, ter que rezar, ter que vir pra roça é normal, não tenho essa sensação de

peso, mas eu tinha medo da rua e não gostava de estar na rua à noite, não gostava de me expor

na rua, eu sentia a necessidade de estar num ambiente tranqüilo, num ambiente como se fosse o

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roncó, que na verdade seria minha casa, eu tinha essa necessidade. Então pra mim o kelê foi

muito mais difícil, os 21 dias de kelê foram muito mais difíceis do que os 26 dias no roncó, não

pelas abstinências, mas eu sentia muito medo da rua. É como se uma energia que me envolvia,

em relação ao kelê, me fazia querer não estar no meio daquelas outras pessoas; além do que é um

estereótipo de estar de cabeça raspada, de estar de ojá, de estar com uma outra vestimenta, de

não poder sentar no alto, de não poder adentrar em alguns recintos; estas abnegações não fazem

parte do mundo real, então elas te tornam fragilizada, como no seu trabalho você não está em

contato com aquelas pessoas, como no seu trabalho você está o tempo todo sentando no chão, essa

fragilidade ela vem do kelê, então o tempo máximo que eu podia passar dentro da minha casa

eu passava. O kelê faz parte do mundo da roça, não faz parte do mundo que eu trabalho, então

quer dizer deveria ser tudo mesclado, mas não é, necessariamente não é. Pra mim, o kelê teve

um peso muito forte, ainda mais eu que trabalho na área de educação física; tinha que estar

exposta ao sol, tinha que estar exposta a muita gente, tinha que usar determinados tipo de roupa

que eu não poderia, não queria estar usando que era calça cumprida, nenhum educador físico dá

aula de saia, então, a tradição que envolve o kelê é que era conturbada pra mim. Eu já tinha

acompanhado do Fernando, mas é diferente você ver alguém vivenciar três meses de kelê, não

era o resguardo do sexo, resguardo do álcool, que eu nem bebo, não era o resguardo em si que

me pesava, mas eu ter que estar no mundo que me pesava. Senti dificuldade pela compreensão

cultural das pessoas sobre aquilo.

Eu acho que a tradição ela é necessária, pra todas as formas de comunidades existentes, eu

acredito que a tradição é que faz com que a repetição do mesmo ato se torne uma coisa tão forte

que se torne uma regra, que as pessoas façam aquilo numa naturalidade tão forte que se torne

uma cultura, por isso eu digo, eu menciono que tem que ser feito porque é a tradição, e por ter,

realmente, abraçado com amor o candomblé, e mais ainda a minha casa, eu faço questão de

repetir os mesmos atos: uma, para que eu não esqueça, duas, pra que eu possa transmiti-lo da

mesma forma com a qual aprendi e tendo a certeza de que mesmo repetindo várias vezes eu irei

ensinar diferente do que quem me ensinou, ou seja, em algum momento já vai se perder alguma

coisa, então a tradição é para que não se percam legados, pra que as pessoas possam entender

que os atos, mesmo que de forma inconsciente durante certo um momento eles fazem parte de um

todo maior, por isso, eu sou tão sistemática, a ponto de ser chata quanto aos horários das coisas,

quanto a forma como elas se procedem, como isso não é assim porque não foi assim que eu

aprendi, e porque se uma vez feito ele funcionou, esse ato tem que ser repetido sempre da mesma

forma. Então, a tradição é importante? Ela é muito importante. Toda vez que nós quebramos

uma tradição, por acharmos que o tempo evoluiu, e nós também temos que evoluir, nós

diminuímos a nossa força, porque se perde alguma coisa; se o momento mágico está na noite e se

Page 203: A morte no candomble

195

eu faço o ato durante o dia alguma coisa se perdeu, nem que sejam todas as magias que

envolvem a noite, nem que sejam todos os espíritos que rondam pela noite, nem que seja aquele

exato momento mágico que o cosmo está preparado pra receber aquela determinada energia,

então quando eu quebro aquele ato, pela conveniência da atualidade, da modernidade, eu perdi

alguma coisa, por isso a tradição tem que ser cumprida, mesmo que me doa, mesmo que eu não

quisesse participar, já que eu me imbuí na questão de ser uma sacerdotisa, de manter a minha

religião, de vê-la crescer, de ver a minha casa crescer, de ver o meu axé se perpetuar, de ver essa

religião, que trás às vezes tantos entraves, tantas nuances mal formuladas culturalmente no

mundo exterior, que elas possam ser cada vez mais elucidadas, se tornarem cada vez mais

brandas de uma forma que o candomblé possa ser visto com bons olhos; você possa dizer: sou do

candomblé, de uma forma natural, que nós sabemos, que no mundo que nós vivemos não é

natural, que todo mundo se refugia no mágico, mas ninguém tem coragem de dizer que se

refugia no mágico, é mais fácil dizer que é católico, mais aceito dizer que é católico, ou então

que é espírita, então, é por esse motivo, tradição, que eu cumpro ato pela tradição, que se eu não

cumprir aquele ato da tradição os que vierem posteriores a mim não cumprirão, em algum

momento o axexê vai acabar, por exemplo.

Page 204: A morte no candomble

196

Participante 4: Fernando

Sexo masculino, 49 anos. Empresário e advogado.

Vinte anos de participação no candomblé. Dezessete anos de iniciação. É filho de

Oxalá, Pai Pequeno e Maé do Axé Baraleji.

Na verdade, minha iniciação começou no ventre da minha mãe; sou descendente de africanos;

meu avô nasceu no Congo, foi para Bahia, e minha mãe, como primogênita tinha a herança

genética espiritual de dar continuidade ao trabalho do meu avô – coisa que ela não o fez, por

uma série de motivos, e saindo da Bahia para o Rio ela também não deu continuidade, e passou

a ter ojeriza a todo o culto religioso, principalmente de origem afro, e eu, como filho

primogênito, neto primogênito, acabei herdando essa herança genética espiritual do meu avô,

que também veio de seus ancestrais africanos, de tal sorte que, aos 14 anos de idade, eu percebi

que eu já era iniciado na religião de forma inconsciente; tive que tomar algumas providencias

porque minha mãe começou a ter sérios problemas de saúde e, aos 14 anos de idade,

eu,voluntariamente, a levei num centro espírita, na época, de umbanda; e lá, eu via algumas

manifestações de minha mãe, coisa que ela sempre teve ojeriza, e daquele momento em diante, eu

vi que eu tinha que fazer alguma coisa pra ajudá-la. Então, a intenção foi ajudá-la, só que eu

acabei me envolvendo cada vez mais, e hoje, eu vou fazer, na realidade, 35 anos de convivência

com esse mundo espiritual. Aconteceram vários fatos, até que aos 15 anos, quando saí de casa,

em todo o lugar que eu fui bater, eu acabava batendo na casa de um religioso, espírita,

espiritualista, ou alguns dos cultos de origem afro, e aos 18 anos de idade, foi quando no Ceará,

eu conheci um Senhor, chamado seu Francisco, que à época tinha 72 anos de idade, esse senhor

começou a me ensinar um pouco sobre o mundo espiritual; ele fazia verdadeiros milagres, e eu

acreditei nele, assim, como outras pessoas, e daquele ponto em diante eu comecei a entender um

pouco o meu caminho, porque eu pouco conhecia sobre o candomblé, mas estava começando a

conhecer sobre o mundo espiritual, esse entendimento é que, no Ceará, eu fui conhecer outras

casas, casas essas que mexiam com a chamada quimbanda, que é uma umbanda pesada que

mexe com magia negra e voltei a trabalhar na umbanda. Do Ceará, eu acabei vindo morar em

Brasília, e em Brasília, eu fui ser kardecista; passei 6 anos como kardecista, fazendo trabalhos

espirituais magníficos, aliás, sendo usado como instrumento para esses trabalhos e, após esses 6

anos, um amigo espiritual como nós chamamos, um espírito iluminado, falou que minha missão

ali tinha terminado, que eu teria que começar, parece redundante, começar o início de um novo

caminho, que seria o meu verdadeiro caminho, que naquele momento eu estava terminando um

aprendizado, e foi aí que eu entendi porque que eu passei por tantos lugares, e aprendi muito,

inclusive aquilo que não se deve fazer, que não se deve cultuar, e foi quando em 1986,

exatamente em fevereiro de 86, um pouco antes do carnaval de 86, me lembro como hoje, eu

Page 205: A morte no candomble

197

passei muito mal, acho que umas 3 semanas antes do carnaval, passei muito mal e apaguei,

comercial da 310 Sul, simplesmente apaguei, e acordei dentro de uma casa que vendia artigos

de santos, que era a casa de hoje meu Pai Tito de Omolú, aonde no segundo andar ele jogava

búzios; eu acordei lá, desmaiei na porta da loja dele e daí começou esse novo caminho que já

haviam me revelado antes. Então o caminho religioso, é um dito que se tem principalmente

dentro do candomblé, ou você entra pelo amor ou pela dor e noventa e nove por cento das pessoas

entram pela dor, essas dores elas doem em vários lugares; em 1986, como eu estava dizendo, eu

acabei lá na loja do Pai Tito, e acabei sendo conduzido para a roça de santo uma semana

depois, e já fazendo o meu primeiro oborí. Na realidade eu voltei à origem de meus ancestrais

que era o meu avô e aos seus ancestrais. Até então, eu não conhecia o Pai Tito; fui levado até ele

pelos Orixás, uma forma meio estranha, mas como não encontrei o caminho fizeram com que eu

encontrasse, porque, assim de repente, você estar desacreditado de tudo, porque assim que eu

deixei o kardecismo, que era para buscar esse novo caminho, só que não me falaram qual era

esse novo caminho, eles nunca falam, você normalmente acaba descobrindo isso a base de

algumas dores, e na época a minha concepção sobre candomblé, que era equivocada, não era

muito boa e não passava pela minha cabeça entrar para o do culto religioso nagô, ioruba, que é

uma das origens do candomblé.

Fiz um oborí e me senti outro homem, e aí comecei a me preparar para uma iniciação, iniciação

essa que deveria ocorrer um ano após e acabou ocorrendo três anos após, mas fazendo um

parênteses, por que desses momentos de dores? Quando eu sai do kardecismo, eu,

profissionalmente, estava muito bem, pensei que voltar as origens era voltar para umbanda;

comecei novamente, por um breve período de 6 meses com a umbanda, e como profissionalmente

eu estava muito bem, minha ignorância sobre o assunto ainda era tamanha, eu não sabia que

era tão ignorante, fez com que eu abandonasse toda a parte espiritual; eu simplesmente peguei

todas as minhas coisas de santo da umbanda, os patuás, as imagens, botei tudo numa caixa,

despachei pro Rio de Janeiro, falei que não precisava de nada daquilo e, chegando lá, eu

despachei tudo no mar, e simplesmente falei que não precisava de nada disso, dar continuidade a

nada porque isso não poderia representar muita coisa já que eu tinha muita fé em Deus, sempre

acreditei em Deus e isso bastava. Grande equívoco, pelo menos dentro do meu caminho, porque

eu tinha uma responsabilidade de uma herança genética espiritual que eu deveria dar

continuidade, e aí começou, era empresário antes, morava bem, cheguei a literalmente passar

fome, eu sai de uma casa no Lago Sul pra morar num barraco na Ceilândia, não tive coragem

de levar a minha mulher e a minha filha, que hoje também é filha de santo, porque também é

caminho dela por ser minha primogênita, que também tentou abandonar, sofreu algumas

conseqüências, mas eu não interferi no caminho dela porque eu aprendi que eu não poderia

interferir, como ninguém interferiu no meu caminho, porque é uma opção, é uma escolha, um

Page 206: A morte no candomble

198

livre arbítrio. Em seis meses eu perdi tudo que tinha, inclusive a primeira família, eu já era

casado e o casamento se foi, a filha se foi, voltou pro Ceará, eu perdi os bens materiais todos,

comecei a ficar muito ruim, dessa conseqüência foi que aconteceu o desmaio, e como eu não

encontrei o caminho, fizeram com que eu encontrasse, então, esse é o parêntese.

Com a iniciação eu comecei a perceber, três anos após esse primeiro contato com o candomblé,

que é o obori, foi que eu fui até avisado, pelo próprio erê que a gente chama, que é o orixá

criança, que tendo em vista alguns erros de percursos dentro das minhas opções, dentro da

minha escolha eu teria que mostrar para o que vim e isso levaria sete anos. O meu próprio erê

deixou um recado para mim dizendo que levaria sete anos para que a minha vida começasse a

se ajustar, exatamente porque eu não tive competência, à época, de discernir o caminho, e

abandonei tudo na verdade, coisa que eu não poderia ter feito, tendo em vista a minha origem

hereditária, minha origem espiritual ancestral. O erro que eu cometi foi que eu fiz isso por bens

materiais, porque eu estava muito bem profissionalmente, não dependia financeira de ninguém,

de nada, e achei que isso já bastava em minha vida, esqueci exatamente da minha

hereditariedade, do meu compromisso com a ancestralidade e aí sim, foi um castigo porque eu

não tive visão e não assumi o meu compromisso com essa ancestralidade, eu os abandonei de

fato, não os abandonei por simplesmente ter uma opinião diferenciada da religião, ou ter ido

pra uma outra religião, abandonei porque achei que o mundo material pra mim era o que valia,

então houve um castigo durante sete anos.

Com o tempo você vai aprendendo a amar os orixás e a partir do momento que você começa a

seguir o caminho com fé, crença e atitude, não basta também ter fé e crença e não tomar atitudes,

dentro e fora da comunidade, cada vez mais você vai recebendo, como num conta gotas que o

axé, que o orixá lhe dá, ele vai lhe dando a conta gotas força e poder individual para que você

construa para você e para os seus, e é fato, são 20 anos na verdade que eu comecei, me iniciei e

eu sou uma prova vida disso, como conheço dezenas, centenas de pessoas que também são provas

vivas disso e do contrário, pessoas que manipularam esse poder de forma equivocada , que

falaram demais, porque existem muitos segredos e você só vai tendo acesso a esses segredos de

acordo o tempo e com a sua dignidade com o axé e com o teu orixá, com o teu compromisso com

ele, é que ele vai liberando ensinamentos, ensinamento esse que vem através de irmãos, de

babalorixá, vem através de conhecimento que você não sabe da onde apareceu, simplesmente

veio, você acaba aprendendo,e o mais importante é que você não fica obrigado a usar isso apenas

dentro da comunidade, lhe é permitido usar isso no seu mundo lá fora para benefício próprio,

contanto que você não use isso de uma forma egocêntrica e a forma como você usa não venha a

prejudicar a ninguém, então você é proibido inclusive de usar em benefício próprio esses

Page 207: A morte no candomble

199

conhecimentos, esses poderes, se por acaso para ter algum benefício você prejudique alguém, isso

também você tem punição para isso. Só que o orixá ele te prova a todo o dia, a toda a hora, nós

que somos filhos de santo, que somos sacerdotes, nós normalmente temos muito mais problemas e

pedras no nosso caminho do que as outras pessoas, mas cada pedra dessa, na realidade, ela é um

aprendizado, ele é um ensinamento, todo, todo ele, ele te testa, aí ele vai testar a sua fé, ele testa

a sua fé, porque ele quer saber se você está pronto pra próxima gotinha que ele vai lhe dar, para

o próximo passo que ele vai lhe dar, para que você cresça; por muitas vezes esse sacrifício que ele

lhe impõe, que por muitas vezes você não sabe de forma consciente, o beneficiado não é você, é

um filho, é um pai, uma mãe, que você passa a ser, naturalmente, você passa a ser o esteio e o

alicerce da sua família, normalmente.

Minha iniciação, entro do culto do candomblé, foi uma nova experiência, um renascimento,

como eu já tinha essa experiência, de forma bastante diferente dentro da umbanda, como do

próprio kardecismo, elas funcionam de forma diferente. A sensação é diferente, a forma de

incorporação é diferente, a forma como acontece depois é diferente; são energias bastante

diferenciadas; depois que você é iniciado existe um processo, vou fazer uma analogia com a

criança, você para andar, primeiro você tem que aprender a engatinhar; porque você aprende a

engatinhar? Pra que você comece a iniciar um equilíbrio sobre o seu próprio corpo, depois você

começa a andar meio desequilibrado, aí começa a andar, e mesmo andando você precisa de

sempre os pais, pra você não bater na quina da mesa, etc., etc., então dentro da incorporação, que

na verdade, é bom deixar bem claro, que não existe incorporação, o processo é diferenciado; você,

quando inicia essa iniciação ela tem que objetivo? Fazer uma comunicação mais estreita da sua

pessoa, do seu eu, do seu espírito com a sua origem ancestral .... então você vai buscar aquele

orixá que é o seu ancestral divino......ele passa a reviver dentro de você, você recebe todos esses

axés que levam de 14 a 32 dias esses rituais sagrados..... Você fica, por muitas vezes, você fica

21 ou 30 dias inconsciente. Me lembro que quando eu fui feito eu entrei para a iniciação

quando acordei tinha a guerra do Golfo Pérsico, tinha havido uma maxi valorização do dólar,

confisco do Collor, moeda tinha mudado, o mundo estava de cabeça pra baixo e eu não

participei de nada disso e onde eu estava? Você só sabe como é emprestar seu corpo para o orixá

quando você volta, isso quer dizer, enquanto você está emprestando, você simplesmente não é,

nada.. Você não tem o estado de consciência de nada. A tomada pelo orixá ela é uma integração.

Primeiro, porque o orixá, para poder interagir com você, lhe tomar, você precisa ter se doado

primeiro, ter trazido ele da sua origem, por opção, e ele está dentro de você, então, na realidade,

ser tomado pelo orixá é sempre uma integração, porque ele já ta dentro de você, nós somos um

único ser, e ela está dentro, então, ele simplesmente ele aflora, vai crescendo dentro de você.

Então, o candomblé, é uma religião aonde você passa a ter contato praticamente que físico com o

Page 208: A morte no candomble

200

orixá, e quando a pessoa está virada no santo outros tem a oportunidade de abraça-lo, sentir

aquele calor, aquela energia, ou um frio, então você sente e dá a oportunidade a outros, mesmo

que não sejam do culto, de sentir aquela vibração, aquela energia, a maioria das pessoas que não

são filho de santo ou que não seguem o culto sentem a mudança do ar, dentro do culto que é feito

para o público, e mesmo aqueles que não viram no santo, que tem cargos ou funções como ogan,

joye, ekede, adagã, pegigã, alabê, e outros mais que não viram no santo, que eles tem postos, que

o fundamento é justamente pra que eles ajudem a cuidar do orixá, até mesmo esses, que não

viram, acabam sentindo toda essa energia, essa vibração, então isso só pode ser prazeroso , você

saber que você faz parte de um todo, todo esse que tem origem divina que você está sendo útil,

mas que você entenda isso, compreenda e sinta isso dessa forma você tem que ter amor por aquilo

que você faz, por aquilo que você optou, pelo orixá, pelo axé, se não você não vai ter esse

sentimento; há algumas pessoas que não tiveram a graça de alcançar esse sentimento e que não

tem a oportunidade de sentir isso, as vezes se sentem cansadas, porque é uma troca de energia,

orixá é uma energia que na realidade ele funciona como uma simbiose. E podemos ter contato

com o orixá, sentindo essa energia, às vezes, ela traz uma paz muito grande, às vezes ela traz

calor, às vezes ela trás frio, ao sentir isso você passa a ter uma crença, tem uma fé, na existência

do orixá, mas tem que crer no poder, crer até onde ele pode, aí você começa através dos

sentimentos e ao mesmo tempo dos sentidos, a ter essa comprovação e aumentar a sua crença, isso

pra quem é filho e para quem não é filho, eu, no meu modo de ver, para mim é uma dádiva,

servir o orixá, emprestar o corpo, para mim, sempre foi muito prazeroso, mesmo que por muitas

vezes eu fique cansado, porque o orixá as vezes ficam horas, duas, três, quatro, cinco, dez, doze,

vinte e quatro horas no ar e como ele precisa da sua energia também, as vezes você acorda

desgastado, mas é por pouco tempo, logo depois essa tua energia ela vem em dobro, ou triplicado

porque ele lhe reabastece, então ele lhe agradece e diz usei a sua, agora tome a sua e mais a

minha e mais um pouco e você fica muito forte para o mundo.

É um grande equívoco das pessoas, que se predispõe a entrar no caminho do sacerdócio do

orixá,fazerem essa separação entre o mundo dentro de uma roça de santo, do axé, e o mundo lá

fora; é um grande equívoco que eles cometem, porque o fato de você atingir a maioridade, sair

de casa, morar sozinho, ter a sua vida independente não quer dizer que seus pais deixaram de

ser seus pais e que você deixou de amá-los, é a mesma coisa, então lá fora o mundo é apenas o

seu mundo mas que você tem que transportar a tua essência de orixá e sentir sempre a presença

do orixá dentro de você, primeiro porque ele está dentro de você, mesmo que você queira tira-lo

você não vai tira-lo, a não ser que você decida abandona-lo, aí você não vai tirá-lo, ele é que

vai sair; então, não tem como, e tentar fazer essa separação, pra que você de repente começa a

ter uma vida fora dos limites lá fora por achar que você lá fora não tem compromisso com o

Page 209: A morte no candomble

201

orixá é exatamente o grande erro que a grande maioria comete, porque lá fora é que você tem

que se comportar melhor do que dentro do axé, porque aqui dentro é fácil, aqui dentro você está

convivendo dentro de uma energia de axé, com pessoas com os mesmos propósitos, com os

mesmos objetivos da comunidade, queira ou não queira você é vigiado pelo orixá, se sente

vigiado pelo orixá, por irmãos de santo, então aqui é fácil você manter um comportamento ou

uma disciplina, lá fora que é o mais difícil e lá fora é que você tem que contar com o orixá e lá

fora que você tem que realmente se sentir e servir o orixá, para que ele possa também lá fora te

dar alguma coisa, se não se você abandonar o orixá aqui dentro como é que você vai poder

cobrar dele que ele te acompanhe e te ajude lá fora, ele tem que estar contigo lá fora, você tem

que senti-lo, venera-lo, chama-lo, se comportar, ser disciplinado, dentro do culto do candomblé

exige muita disciplina, hierarquia, comportamento, preceitos, coisas que você não pode, não deve

comer, em determinados dias, em respeito ao orixá, coisas que você não pode fazer, abstinências,

as vezes de sexo, as vezes de álcool, não é uma vida fácil ser filho de orixá porque você tem uma

série de preceitos que se você quiser ser um bom filho, se você quiser receber aquelas gotinhas você

tem que cumprir, se não você não vai ter, em conseqüência disso o teu crescimento pessoal,

profissional, ele também vai retardar, porque você assumiu um compromisso e o compromisso é

para com o orixá, é para com o axé, não é você, você está se abnegando da tua própria vida

para o orixá e para o axé, acabou. Agora, dependo do teu comportamento, da conduta dessa

abnegação é que ele vai te retribuir, lhe dar força, lhe dar axé para que você conquiste muito

mais do que você imaginou que poderia conquistar, sempre com algum sacrifício, porque é um

aprendizado mas ele vai te dar muito mais do que aquilo que as vezes você até acha que

merecia, mas você ganha, tudo é questão de que, comportamento e atitude, principalmente o

coração, quando falamos de coração falamos da nossa consciência, porque o orixá ele está

instalado dentro de você na consciência, pode enganar todo mundo menos tua própria

consciência, então o orixá reage a emoção, se tua emoção, o teu sentimento é de carinho, de amor,

mesmo que você cometa erros, cometeu um erro involuntário ou mesmo que tenha cometido de

forma consciente, mas que reconheça o erro e que busque não errar de novo, o orixá ele não vai

te castigar, você ta retardando um pouquinho um caminho mas ele não vai te castigar, e se você

não reconhecer o erro ele vai te mostrar de uma forma dolorosa que você errou, mas porque que

tem que ser dolorido, porque marca, aí você dificilmente vai cometer esse erro de novo

Vamos começar pelo axexê. Primeiro que o ritual não são sete dias; o ritual completo são 21

dias de axexê, o ritual que houve aqui, no caso da nossa mãe Vera, ali não foi uma morte,

aquilo foi um novo caminho, o nosso Pai de Santo, Tito de Omolu, ele fez um ritual secreto

antes para que não precisasse ficar vinte e um dias, então ele fez um ritual secreto onde

participaram três pessoas, e se teve um ritual de no mínimo sete dias. O ritual completo são

Page 210: A morte no candomble

202

vinte e um dias, na realidade, esse ritual, ele também da mesma forma da iniciação, é a

iniciação de um novo caminho do espírito, e do novo caminho, que aí é uma opção da pessoa

depois que morre, da alma, que existe alguns segredos que eu não vou poder contar...

Quando a pessoa vem a falecer, há uma separação; você tem o corpo, que é a matéria, que tem

uma energia; você tem a alma, que é a energia catalizadora, que traz o equilíbrio entre o corpo

e o espírito, a própria vida é a alma, a alma é a energia que faz a sua mente funcionar, que faz

todos os seus órgãos funcionarem, ela é que sente, que te dá as sensações, os sentidos.... O

espírito,é a bagagem de experiência que você traz desse mundo e de outros mundos. A alma é o

centro de catalização de energia do equilíbrio do corpo, e é o elo de ligação entre o corpo e o

espírito; e o espírito é uma partícula divina, que não é o orixá, orixá não é espírito. Tem mais o

axé, pra o iniciado você tem o axé que é exatamente aquilo que vai dar sustentação ao corpo, a

alma, ao espírito, ao ori e ao orixá, a base de tudo é o axé.

Se você partir do conceito que o orixá é um ancestral divino, que foi denominado orixá por nós,

todos têm, porque todos temos ancestral, se você for considerar como culto religioso, em que você

cultua um orixá, tem o dever ou caminho de cultuar o orixá, aí sim, nem todos têm orixá; agora,

o orixá sendo um ancestral, todos temos ancestrais, que não necessariamente você tenha que

cultuá-lo ou seguir o caminho do orixá...

A alma, ela pode seguir dois caminhos, ou ela pode se desfazer ou ela pode se tornar um egun; é

alma que comanda, que toma uma decisão, se ela quer continuar existindo ou não, há uma

interferência do espírito com relação a isso, dependendo da decisão dessa alma, se ela vai

continuar, tem um ritual onde vai-se até os vinte e um dias para que ela fixe essa consciência e

se torne um ser vivo, sem corpo. Esse ser vivo sem corpo, dependendo do acúmulo de experiência

dela, do propósito que ela queira existir, ela pode levar um ano ou cem anos aprendendo ainda a

ser um bom egun. Ele tem a consciência da pessoa que viveu adquirindo novas experiências,

normalmente esses seres eles são utilizados num outro ritual que se chama egungun... Nós por

exemplo dentro do nosso ilê axé nós temos o nosso lesse egun, porque pro nosso Pai, pra ele é

permitido, é uma coisa que não deve se brincar nunca, você ta mexendo aí sim, com mortos, o

egun é um morto, o espírito não.

O orixá ele volta, ele tem um caminho pré determinado, também tem um caminho de

aprendizado, e ele é um ancestral, mas não é um ancestral só seu ou um ancestral só meu, todas

as pessoas trazem uma ancestralidade; um novo descendente que tem um novo caminho de orixá,

com aquela ancestralidade ele vai, se aquele filho tiver ligação direta com aquele orixá, ele vai

voltar e isso pode ser imediato ou como pode levar centenas de anos....ele traz experiência, mas

não experiência do ser humano, um outro tipo de visão, de visão de orixá, de ser divino.

Page 211: A morte no candomble

203

Se a alma escolher ficar, virar egun o ori vai junto, se decidir não ficar, não virar egun, o ori

vai embora.

O axé se reincorpora exatamente na casa, e se a alma decidir virar um egun ela também

incorpora aquele axé, ai passa a ser uma troca, porque aquela alma, mesmo que ela decida virar

egun, ela pode vir a se desfazer se não tiver o axé, com o tempo, mas ela é sempre obediente ao

axé e a quem a deixou continuar a existir, não a viver, a existir....

O Axexê é doloroso por uma questão cultural, nós temos a cultura cristã, católica, nós temos

essa cultura que tem dois mil anos, então, o axexê, ele passa a ser mais doloroso exatamente por

causa da cultura, mas a partir do momento em que o Omo Orixá, o filho de orixá, tem a

consciência do que é um axexê, e do que ele representa, ele não é tão doloroso, pelo contrário, ele

acaba lhe trazendo conforto em saber que aquele que você ama, ou que você conviveu, ou que

você gosta, está num processo claro, não doloroso, em que ele está indo para um caminho em que

ele, alma, espírito, optaram, e que estão de forma consciente fazendo aquilo que eles realmente

querem e que sozinhos não poderiam, exatamente porque eles estão presos a uma iniciação. Eles

estão presos a iniciação porque eles ficaram presos a uma ancestralidade, que é um poder muito

mais forte do que o próprio axé, porque o axé é a concentração de poder da ancestralidade, de

vários orixás, de vários caminhos, então você tem o conforto de saber que ela está indo pra opção

dela, da própria alma, e ao mesmo tempo você sabe, tem a certeza do descanso; então, é um

alívio, na realidade; mas para nós é óbvio que é dolorido, é doloroso para nós que amamos a

pessoa, porque nós somos egoístas no nosso sentimento, gostaríamos de ter aquela pessoa presente,

não gostaríamos de perdê-la, mas é puro egoísmo, e porque aquela pessoa vai fazer falta

realmente.

Então existem duas visões, a visão do candomblé, e a minha, que é visão do candomblé e mais

um pouquinho. Para o candomblé, a tua alma e o teu espírito, a morte, na realidade, é o

momento aonde a tua alma e o teu espírito, o teu orixá, o teu axé, o teu ori, se desprendem deste

ayie, desse mundo; agora, o direito a reencarnação, o kardecismo diz que vai reencarnar para

melhorar, etc., no candomblé, você para voltar a este mundo ou ir para um outro mundo você

tem que conseguir esse direito, você tem que fazer muito, e tem que ser um bom Omo Orixá para

que você possa ter direito a retornar; o espírito tem que adquirir o direito de voltar, para esse ou

para outro; não são todos que reencarnam, podem voltar, ou ficar estagnado.

Então, a morte, dentro do candomblé, ela simplesmente é o desligamento dessas cinco existências

desse mundo: ou se dissipam, ou a alma vira egun, e o espírito volta para esse mundo por

Page 212: A morte no candomble

204

merecimento, não por castigo, como é a crença kardecista, mas por merecimento, ou volta para o

mundo de outro orum. Daí que dentro do culto, do pensamento, do fundamento do candomblé, a

morte nem sempre é uma continuidade, para ter continuidade, tem que ter merecimento.

Na minha forma de enxergar é um pouco além disso, porque após todas essas experiências,

espirituais, religiosas, que eu tive a felicidade e a oportunidade de ter, eu já vejo o retorno como

além de merecimento, uma necessidade real de evolução, do espírito sempre para um mundo

melhor; porque a maior herança, o melhor presente que você pode dar aos seus descendentes é

exatamente a sua experiência de vida, é o seu ensinamento, em todos os aspectos que você possa

imaginar, então, para mim a morte é, na realidade, aonde você cumprir o seu papel, deixou

ensinamentos, ou tentou deixar, e parte para um outro caminho de evolução, para continuar

aprendendo e para voltar a ensinar, ou aqui, ou em outro mundo. Para mim a morte é um novo

caminho, eu não chamo um renascimento, é uma transformação, para, inclusive, com todo o

conhecimento que eu adquiri dentro do culto religioso, do sacerdócio, cada vez mais eu tenho

certeza que é uma transformação. Por quê? Se você analisar que o Orixá, que é o seu ancestral,

voltou para o orum dele, e que tem a necessidade ou vai voltar depois, e que adquiriu uma

experiência usando a tua matéria e a tua alma, o teu espírito aqui; se você analisar que a minha

alma pode optar em ser um egun, e aqui continuar, e o espírito ter outra vida, ter vida própria.

O espírito tem o caminho dele, o orixá tem o caminho dele, a alma tem o caminho dela, o corpo e

vai servir de adubo, de micróbio, lá pra alguma coisa; então é uma transformação, uma

metamorfose, e que tudo isso que nós estamos vivendo em corpo, alma e espírito se transformam,

e sempre com um conhecimento a mais, uma experiência a mais, então isso não pode ser doloroso

para nós; as coisas que acontecem, que alguns chamam de desgraça, eu vejo como aprendizado,

eu vejo isso como transformação da vida, ou da morte de uma existência para transformação de

uma nova vida, eu enxergo isso como fazendo parte do que vai ser o que as pessoas chamam de

morte, para mim é o acúmulo de experiência do ori, do orixá, do espírito e da alma.

Dentro do culto do candomblé nós não acreditamos em carma, e procuramos fundamentar

porque não acreditamos. Como, se acreditamos em um ser, Deus, Olorum, Olodumare, não

importa, que nos dá a condição de viver, de ter a oportunidade de crescer e melhorar, mas que

nos coloca num estado de inconsciência daquilo que por um acaso fizemos, esse Deus, ele está

punindo a quem? Se estivermos num estado de inconsciência e não sabemos, ele está punindo um

espírito? Você sabe quem é teu espírito? Eu não sei quem é o meu, ninguém sabe. Então, não

existe carma no sentido de punição, porque você não tem consciência daquilo que você fez de

errado, então como é que você vai consertar aquilo que você não sabe? Então isso é uma filosofia

religiosa, ou um fundamento religioso que para nós, do culto religioso do candomblé, ele não tem

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muito fundamento; se nós estamos aqui pra pagar aquilo que não sabemos que temos pra pagar,

então aonde é que está a evolução?

Independente de crença, ou religião, a conspiração divina ela é constante. A troca, é uma

conspiração divina, aonde um está trocando com o outro, aprendendo, onde uma palavra toca lá

na alma, que capta, armazena e transfere ao espírito, porque é a alma que dá a energia vital

para o seu pensamento, para seu raciocínio, para tudo que funciona no teu corpo, é a alma, não é

o espírito. Então a alma armazena, o espírito absorve, e leva quando desencarnar, então, essa

conspiração divina é constante, e é uma das coisas que o culto do candomblé tenda ensinar aos

filhos, que essa troca ela é constante, na vida lá fora, num bate papo, seja num botequim, seja

numa escola, seja com um filho, nós que somos pais, mães, aprendemos tanto com nossos filhos.

Nós tentamos mostrar que a relação com o Orixá, à aproximação com o Orixá, o sentimento, a

emoção com o Orixá, o sentimento do cumprimento do dever, o aprimoramento do sentimento

para que chegue ao amor verdadeiro pelo Orixá é que permite que o Orixá lhe torne sensível o

suficiente para perceber a vida e a existência, e aprender a não temer a morte.

Page 214: A morte no candomble

206

8.2. Termo de consentimento livre e esclarecido

Eu, _________________________________, concordo em participar, por minha livre e

espontânea vontade, da pesquisa A escuta do filho de santo sobre a morte – entre o

silêncio do Ocidente moderno e a fala do Candomblé.

Declaro ter sido esclarecido(a) e informado(a) de que a pesquisa oferecerá subsídios

para a dissertação de mestrado em psicologia da Universidade Católica de Brasília –

UCB, desenvolvida pela mestranda Dalva Barbosa, e visa investigar a visão que o fiel

do Candomblé tem da morte.

De livre e espontânea vontade responderei às perguntas da entrevista sobre minha

vivência no Candomblé, que será gravada, transcrita e analisada. Estou ciente de que

na pesquisa será utilizado pseudônimo, quando houver referência ao nome de qualquer

um dos participantes do culto, e que não serei, portanto, identificado no trabalho

escrito ou apresentado.

Declaro também estar ciente que, durante a pesquisa, se tiver dúvida, serei

esclarecido(a), assim como terei a liberdade de recusar a participação ou retirar meu

consentimento em qualquer fase da pesquisa. Tenho garantia de sigilo aos dados

confidenciais envolvidos na pesquisa e minha participação está livre de qualquer

remuneração ou despesa.

____________________

Entrevistado(a)

Page 215: A morte no candomble

207

8.3. Solicitação de autorização

Ao

Ilê Axé Owom Omo Omolu

Ilmo. Sr. Babalorixá Tito de Omolu

Prezado Senhor,

Solicito autorização para a realização de entrevistas semi-estruturadas com os

fiéis desse templo, a fim de investigar as semelhanças e diferenças na forma de ver a

morte entre os iniciados no Candomblé e a visão da sociedade ocidental moderna de um

modo geral.

As entrevistas, bem como a observação de rituais do culto, facultadas ao olhar

leigo, destinam-se a embasar a dissertação de mestrado em psicologia da Universidade

Católica de Brasília – UCB, desenvolvida pela mestranda Dalva Barbosa, sob

orientação da Profa. Dra. Marta Helena de Freitas e co-orientação da Profa. Dra.

Ondina Pena Pereira.

Comprometo-me a não descrever fatos ou informações ocorridas nesse templo

sem a devida autorização e não revelar, sob nenhuma hipótese, segredos de culto nele

realizados.

Agradeço antecipadamente sua colaboração,

______________________

Dalva Barbosa

Autorizo:

_____________________

Babalorixá Tito de Omolu

Brasília ____/____/2004.