A Música E Os Três Tipos De Movimentos Da Alma

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    A Muska e Tres Tipos de Movimento da Alma:modalismo, tonalismo e atonalisrno

    E posstvel que haja uma maneira de analisar 0 fenOmena musical sem urnapelo expltcito a ternporalidade. Entretanto, par mais que tal analise enrique-ca a compreensao usual que se tern da musica. vista nao s6 como algapropiciador de deleite estetico, mas sobretudo como uma linguagem prenhede sentidos peculia res, have ria a! urn claro distanciamento da experienciamusical do Ocidente, segundo a qual 0tempo se identificaria com a pr6priap os sib ilid ad e e xp re ssiv a d a m u sic a.A intima relacao entre tempo e rnusica nao passou desapercebida pelatradicao filosofica ocidental. Analisando a musica em suas dimensoes rltmica,melodica e harmonica, Hegel, na EsUl ica , faz uma estreita associacao entre aintuicao fundamental do eu e a vivencia do tempo no contexte musical. Hegelverifica que a pulsacao rttrnica - a metrica de uma musica -, em conjuntocom a rnelodia e a harmonia dos sons musicais, perpassando a consciencia,permite que a intuicao fundamental do CU, como aquilo que e desperto notempo por tntermedio do som, ocorra:

    o eu real. propnamente, pertence ao tempo com 0qual, se fizermos abstracao doconteudo concreto da consciencia, ele coincide: ele nao ~ entao nada mais do queeste movimento vazio pelo qual ele se coloca como outro e suprime esta alteridade;ele nao conserva mais do que a si rnesmo, 0eu real e unico. 0 eu esta no tempoe 0 tempo e 0ser do sujeito. Mas como C0 tempo e nao 0 espac;:oque fornece 0elernento essencial onde 0 som adquire existencia e valor musicals, e como 0tempo do som e tarnbern 0 tempo do sujeitc. 0som penetra no eu, percebe-o emsua existencia simples, coloca-o em movimento eo leva em seu ritrno cadenciado,enquanto que as outras cornbinacoes de harmonia e de melodia, como expressoes

    Doutorando em Filosofia na PUC-Rio

    Q q ue n os fa::;:pensar ".6. novernbrc de 2003

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    de sentimentos, completam e precisam 0 efeito produzido sobre 0 sujeito,ccntribuindo para comove-Io e despena-lo. (Hegel, Estet ica, p. 103.)1

    Vale notar que Hegel enfatiza que a musica, vista como composite de ri tmoc ad en cia do , h an no nia e me!odia , e urn princlpio de movimento do eu . Comoqualquer outro movirnento, tambern os movimentos do eu necessitam de urncontexte que possibilite deslocarnentos, que preservern a unidade fundamen-tal do que e movimentado. No caso da musica, tal pano de fundo contextual ea tempo e e nele que 0eu se desloca, uma vez sob efeito da expenencia musicaL

    Segundo Hegel, a ritmo musical dinamiza 0 CU, que e entao acordado,confundindo-se com a proprio devir temporal e, por conseguinte, estandoessencialmente em movimento. Este movirnento subjetivo e feilo de acordocom a vivencia de senttrnentos, dada pela ae;ao conjunta da harmonia e damelodia. Con forme sejarn os matizes expressivos de tais sentiment os, 0movi-mento do eu se direcionata, tomando uma forma especillca, resultante daIorca expressiva da musica, em seus componentes melodico-harmonicos. Destaforma, pode-se dizer que, enquanto 0ritmo impuls iona 0CU, colocando-o emmovimento, - g ro sso m od o, vista aqui como consciencia individual au subje-tiva -, a harmonia e a melodia direcionam 0eu em movimento, levando-o avivencia de estados de alma determinados.

    Talvez Hegel, na citacao mencionada, estivesse descrevendo a experienciasubjetiva da audicao musical. Obviamente, a interpretacao que aqui apresen-to do texto de Hegel e livre, nao estando preocupada em analis:l-lo estrita-mente, a luz do complexo sistema filosofico eslipulado por Hegel, emborahaja 0postulado de que tal interpretacao nao esteja em exphcita contradicaocom teses hegelianas Iundamentais.!Assirn, tomando-se 0pressuposto de que 0que Hegel descreve e a vivenciapsicologica au subjetiva da musica, e pertinente lancar a hipotese de que 0tempo desta descricao possa ser interpretado nao como urn fluxo conttnuo deinstantes, algo como 0tempo metrico da experiencia Itsica, mas como aquiloque 0sujeito ou a eu vivencia como temporalidade: (: neste tempo subjetivo

    A EsUl ica nao Iaz parle das obras Iilosoficas de Hegel. Trata-se de urna coletnnea de notasmanuscrttas preparatorias para cursos ministrados na Unlversidade de Beriim, relntivos ao pert-odo de 1818 a 1829. reunidas por seu editor Hotho. A primeira publlcacao de tats manuscritosocorreu em 1835, quatro anos apos a morte de Hegel. sob 0 titulo de Varl~mngen aber dieAtSIhe l ih . As lradu~Oes de Hegel que aqui aparecerem Sao de responsabilidade do autor que,para tanto, utilizou a coletenea Irancesa E Slh triq ue . T ule s C ho is is .

    2 Para Hegel, 0 tempo ~ a s ub je li vi da d e a b st raw . Desprovida de qualquer conteudo, a consciencla- ou eu - coincide com a tempo, que nada rnais e que 0 devir inlutdo. Sobre I)pensarnentode Hegel, ver N. Hartmann, Die Phi losophic des Deut schen Idealismus, vol. 2.

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    ou interno que se da 0movimento do eu, uma vez sob 0efeito do som musi-cal. Por conta de seu subjetivismo, a concepcao hegeliana de tempo nos re-mete a Santo Agostinho.

    A concepcao agostiniana de tempo apresenta a temporalidade como resul-tante de urn cerro mov imen t o do e s p f r i t o . Para Santo Agostinho, 0tempo e umadada d i s l e n s i l o da alma) ,que, evadindo-se da experiencia presente do mundo,lanca-se aos momentos de expectativa ou lernbranca, gerando assim a vivenciainterna - ou psicologica - do futuro ou do passado C C o n f i s s o e s , Xl, 23-26}.Quando nos apercebemos do tempo, ern sua triparticao passado-presente-futuro, estartamos, na realidade, experimentando urn movimento interne daalma que, saindo da intutcao imediata das coisas presentes, p r o j e t a - s e ao queesta por vir au remete-se ao que foi. Desta forma, 0 ndo-ser tanto do passadoquanto do futuro adquirem urn e : 0ser presente na alma como lembranca dosfatos passados ou como expectativa das coisas futuras. Segundo uma tal ana-lise da temporalidade, 0 tempo, entendido como Iluxo ocorrente no tripolopassado-presente-futuro, nao existe a nao ser como algo atrelado a estes d e s -l ocamen los da alma - a ja mencionada distensao - que conferem ser ao quenao e mais e ao que ainda sera; por conseguinte, 0componente subjetivo dotempo agostiniano torna-se patente:o que agora claramente transparece c que nern M. tempos futuros nem preterites.E impr6prio aflrmar que os tempos silo tres: preterite, presente e futuro. Mastalvez fosse proprio dizer que os tempos sao tres: presente das coisas passadas,presente das presentes e presente das Iuturas. Existem, pols, estes tres tempos naminha mente que nao vejo ern outra pane: lernbranca presente das coisas passadas,visao presente das coisas presentes e esperan~a presente das coisas futuras. Se mee ltcito empregar tais expressoes, vejo entao tres tempos e confesso que sao tres,

    [ . . . J Diga-se tarnbern que M. tres tempos: preterite. presente e futuro, comoordinaria e abusivamente se usa. Nao me importo nern me oponho nem critico taluso, contanto que se entenda 0que se diz e nao se julgue que aquilo que e futuroja possui existencia, ou que 0 passado subsiste ainda. Poucas sao as coisas queexprimimos com terminologia exata. Falamos muitas vezes sem exatidao, masentende-se 0 que pretendernos dizer!". (ConfiSSries, XI, 20.)

    Como se ve, em Santo Agostinho 0 tempo ~ resultado de urn movimento daalma, que da ser presente as coisas passadas e Iuturas. Essencialmente, e a

    3 Segundo Santo Agostinho : "101 tempo nao e outra coisa senao dislcnsdo; mas de que coisa 0 se]a,ignoro. Seria para adrni rar que nao fosse a da propria alma", C C o n f i s s o c s . Xl, 26.)

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    alma, distendendo-se do presente, que ocasiona esta atribuicao de ser ao quenao e mais e ao que sera; e 0 tempo ( este movimento de distensao anlrnica,esperando ou lernbrando-se a partir da experiencia direta do presente.

    Se esta distensao da alma ocorre sem necessariamente urn direcionarnentoao que foi ou ao que sera, apenas proje tando-se para fora do presente, entaotemos at urn movimento subjetivo que acarreta uma certa alteracao da dina-mica interna do tempo, entendida como atualizacao presente, na alma, dascoisas passadas e futuras. 0 que talvez tenhamos neste caso seja urn desloca-mento subjetivo que atribui ser presente nao ao que foi ou sera, mas aquiloque, desconectado de uma historia temporal na dlrecao passado-presente-futuro, se atualiza no espfrito sem ser a lembranca ou a expectaiiva; nestascondicoes, 0que a alma, ou 0eu de Hegel, presentifica sao imagens e emocoesde contextos pu ram ente possive is, deslocados do tempo compreendido comollnha de cornunicacao entre os fates passados e futuros, passando pelo tristan-te atual , Seja como for, 0 tempo ligado a este movimento interne dn alma parafora do presente, sem que isso implique em lernbrancas ou expectativas. ( atemporalidade subjetiva, que compreendo ser a mais adequada para uma ami-lise da experiencia interna proporcionada pela musica; ( talvez neste tempoque 0 ell citado por Hegel, ao coincidir com 0 puro devir, e posto em movi-mento pela acao do som musical.

    Caberia agora mostrar 05 tipos de movimento que a alma experimentauma vez despertada pel a musics. Para tanto, apela-se a uma subdivisao dosmovimenlos anfmicos, proporcionados pela musica, em tres gran des grupos,cada qual responsavel por urn espectflco deslocamento temporal da alma: osm ovim en los m odal, tonal e atona l.

    A cada urn destes movimentos, estao associadas estruturas musicaisorientadoras da propria cornposicao musical. Antes de serern caracteristicasde genero ou estilo, tais estruturas sao princtpios formats, tecniccs, que gui-am a manipulacao do som musical, entendido, como Hegel 0faz, como cons-uundo de ritrno, melodia e harmonia. Ligados a tais princtpios forma is ttpi-cos de cada movimento, estao atirudes e concepcoes em face do proprio papelexpressivo da musics. De forma simplificada, pode-se mesmo usar estas es-truturas para tripartir a historia da musica ocidental, verificando-se pertodosde prevalencia de uma alitude modal, outro em que 0 tonalismo se superpoee, finalmente, urn ultimo em que 0atonalismo ganha expressao,

    Em prirneiro lugar, cabe discorrer urn pouco sobre a musica modal, carac-terizando 0movimento temporal que a alma realiza quando sob sua influen-cia. Para tanto, e pertinente lancar a hipotese - simplificadora, diga-se de

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    passagem, da propria complexidade do modalismo" - de que a musica modal,pelo menos em uma de suas manifesracoes ocidentais mais proeminentes, acanto gregoriano, prima por realcar aspectos melodicos do sam, em detri-menlo de seus componentes ntmico-harmonicos.

    Para se estruturar uma melodia, e necessaria ter certos princtpios queorientern a ordenacao das notas - au sons rnelodtcos basicos - de umaescala. Em linhas gerais, uma escala esta definida quando se estipulam asdistancias intervalares entre notas dispostas em ordern crescente de alturasau frequencias? .

    A bern da simplicidade, aqui 56 abordarei a musica modal que nos foitransmitida pela tradicao helenica. Segundo os greges classicos, cada escala- ou tom - encerra dentro de si modos , que nada mais sao do que disposi-coes de intervalos descendentes pertencerues a escala. Tal dtsposicao intervalardefine uma sequencia numerica que, adicionada a crtterios expressivos deexecucao e a uma hierarquia entre os seus graus constitutivos, caracteriza urnethos , urn estado de espirito instigado pela melodia modal. Para deixar issomais claro, tomemos como exemplo 0tom hipolldio, de genero diatonico" , queconsiste em uma escala descendente, duplamente oitavada, indo de ld ala:

    18.- sol- f a - mi - re- do- si-Ia -501- f a - mi- re - do - si -lao

    4 Uma interessante apresentacao do modalismo, visto em sentido bern mats ample do que aquit rnostrado, cnconrra-se em J . M. Wisnik, 0 Sa m e 0Stn lid o - Uma Outra Hist6rio da s Mc1sicos,cap. II.

    S Bern arnplamerue, uma escala e urn conjunto de sons ordenados consoante a suas alturas oufrequencias relativas, isto e, conlorrne 0 numero de vibracoes periodicas por segundo de cadasom que a constitul. Urn in tervalo entre sons de freqO~nciaf e]', sob 0ponto de vista ftsico, e arelacao pt. Musicalmente, urn intervalo e medido pela unidade tom, a qual admire submultiplose multiples, como 0 quarto de to m ou 0 trttono - intervale de tres tons. Em geral, adota-se aconvencao de represenrar urn intervale musical de urn tom pelo numeral "1", e os seussubmultlplos ou multtplos por numerals que correspondam a divisao ou a muhipllcacao efctu-ada com 0 tom inteiro - assim, 0 quarto de tom Sf! represents pelo numeral -1/4" e 0 trnonopor "3". 'Iais dlstancias musicais tanto podem ser contadas indo de uma nota mais grave pamurna mais aguda - intervale ascenderue -, como saindo de urna mais aguda a outra matsgrave - intervale descendente. Alern dtsso, quando.jisiccmente a relacao intervalar e igual a 2,o intervale anslogo musical e 0de urns oi tava ou de sets tons intetros (ver R de Cande, HisMriaUniversal da Mc1sica, pp. 455-456).

    6 0cornplexo sistema musical grego nos [oi legado, princtpalmente, pela obra de Aristoxeno deTarento, do seculo IV A.C. Segundo Aristoxeno, a base da musica grega e urna escala descen-dente de sons conunuos - isto e, urna em que, entre duas notas sucessivas. h~ tntervalosmenores que 0mete-tom -, na qual, entre a nota mais grave e a mais aguda, ha urns distanciaintervalar de doze tons imeiros - ,s ca la d u pl am e n " oilovoda. Tal escala - OU 10m, conforme adenominacao grega - era construida mediante a j ustaposicno de quatro retracordes - conjun-to de quarro sons em escala -, gcrando-se assirn, conforme a natureza mtervalar de tal tetracorde,os g~n,ros da escala. Baslcamente. havia ires generos conhecidos entre os gregos antigos: 0

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    Nesta escala hipohdia, se tomarmos a oitava descendente que vai de m r ami, verificarernos que ela ins tancia a estrutura intervalar

    1 1 Ih 1 1 1 In ,isto e, na passagem de mi para re, descemos urn tom; de re para d6 , mais

    urn tom e descido; de d6 para s i , meio tom e abaixado e, uma vez completan-do a oitava descendente, teremos seguido 0caminho aritmetico indicado pelasequencia acima descrita.

    Qualquer improvisacao melodica que utilize uma sequencia de notas ob-ttda de urn tom pela observancia do referido padrao aritmetico, acentuandona improvisacao, tal qual urn ponto de referenda melodico, a nota que iniciae encerra a oitava e uma in s landa (Qo do modo d6rico . (De Cande, 2001, p. 91.)

    Conforme a tradicao musical grega, cada modo e responsavel per urn ethos ,um estado de animo instigado pela audr ,ao musical". A alma, posta em movi-menta pela melodia modal, sa i do rnstante presen te - con forme a distensaoagostiniana - e vivencia uma realidade descolada do [luxo temporal, que aatinge sob a forma de emocoes e imagens - a experiencia estetica de urnethos , de urn estado antmico associado a um modo. Ap6s a acao da musics, aalma volta a linha do tempo, avaliando 0 instante em que se encontra -intutdo pela atencao as coisas presentes - como 0 termino de seu desloca-mento subjetivo.

    Uma vez propiciando urn deslocamento para fora do presente e a vivenciade imagens e emocoes desconectadas do dinamismo temporal, as rnelodias

    d ia t"n ic o - distanclas intervalares do tetracorde sendo 1 1 'h-, 0 cromdt ico (F~ III If.,) e 0enarm"n i co (2 ,(. %). Cada tom grego tern algumas notas que sao [ixas, sendo estas as duasnotas Iimurofes - a prirneira e a ultima. que silo a mesma nota em oitava dupla->, assim comoo quarto e quinto graus (paramese e mese) presentes na oitava central do tom- isto e. a oitavadescendente que vai da ultima nota do primeiro tetracorde ate a ultima nota do terceiro tetracorde.As outras notas do tom sao variaveis, preencheudo-o conforme 0 intervalo caractertstico dog~nero que se quelra. 0 tom hipolfdio tern como natas fixas 0 fa (no caso, colncidentemente, asduas nota limnrofes e a mese sendo iguais) e a si (paramese); em g~nero diatonico, 0 tomhipolidio transforma-se na escala que vai, descendenternerue, de I d a ld, percorrendo somenteno l a s brancas , isto e. sem sustenidos ou bemois (R. de Cande, op . cit. pp. 87-94).

    7 Segundo Pindaro de Tebas, do seculo V a.C, os modos de uma escala sao expressoe s leg1timas dequalidades au estados da alma. Par conseguinte, ao musico caberia, em suas improvisacoes, aarte da imitacao (mimesis) destas qualldades, dando-lhes forma senstvel, sor.ora; em suainteligibilidade, tais qualidades sao supra-senstveis, uma vez que se constituern em estruturasaritrneticas fixas (ver Lovelock, H isM ria C on cis a d a M u sic Q. p. 14; De Cande, ibid, pp. 7172).Um dos seguidores de Plndaro, Damon de Arenas, fai a grande propalador desta doutrina,tendo sida por seu intermedio que Platao romou ciencia da visao mimenca da rnusica, expondo-a em seus dialogos Republ ica e As Leis (De Cande, ibid, p, 73).

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    modais servem a contento como m oto res de su b[im a~ do espiritua[, podendogerar uma ruptura com a transitoriedade das coisas senstveis, elevando a es-ptrito a contemplacao e a experiencta afetiva com as r ea lid ad es e temas . Nao foia toa que a musica liturgica crista, sistematizada princlpalmente por SantoAmbros io (sec. lV a .C ) - e G regorio Magno (sec. VI a.C) - adotou 0modalismocomo princtpio diretivo", exaltando os modos que suscitassern a p a z eternc,cdestia l - 0ethos proveniente da conternplacao, pela musica, do ser infinitede Deus. Santo Agostinho, que com muita probabilidade foi testernunha au-ditiva de tal rnusica liturgtca, assim se express a sobre os efeitos em sua almada melodia modal sacra de seu tempo, exernpliftcada nos canticos liturgicos:

    Os prazeres do ouvido prendem-me e subjugam-rne com rnais tenacidade, MasV6s desligastes-me deles, libertando-me. Confesso que ainda agora encontro algumdescanso nos canticos que as vossas palavras vivificam, quando sao entoadas comsuavidade e arte. Nao digo que fique preso por eles, Mas custa-me dcixa-las quandoquero. Para que essas melodias se possam introduzir no meu interior, erncornpanhia dos pensamentos que lhes dao vida, procuram no meu coracao urnlugar de certa dignidade. Quando ouco cantar essas vossas santas palavras commais piedade e ardor, sinto que 0 rneu esptrito tambem vibra com devocao maisreligiosa e ardente do que se fossern cantadas de outre modo. Sinto que todos osafetos de minha alma encontrarn, na voz e no canto, segundo a diversidade decada urn, as suas pr6prias modulacoes, vibrando em razao de urn parentescooculto. (Conj issoes , X, 33.)

    Embora Santo Agostinho aqui se refira a musica vocal praticada na igreja,percebe-se urn compromisso com um rnovimento da alma, instigado por umamelodia que a leva a vivencia de urn ethos. Isto a faz presente na observacao deque as mesma palavras santas, cantadas com "rnais ardor e piedade", fazem 0espfrito vibrar com mars d ev o(d o reH gio sa . Apesar de ta l trecho nao indicar cla-rarnente que se trata de palavras entoadas melodicarnente em urn m od o pied o-so , indica 0principia de que a alma se m ovrm enta para Deus com uma in te ns id a-de proporcional d rdig iosid ade da m elodia . Alern disso, a mesma alma se reco-nhece nas melodias cantadas por rneio de afetos, 0 que e urn dos aspectosfundamentals do modalismo.

    Como forma geral do rnovimento subjetivo incitado pela rnusica modal,proponho urn esquema que procura conectar a experiencia de tempo em San-

    8 Ver W lovelock, op . ciC,pp. 13-16

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    to Agostinho e a teoria do e thos musical, conforme sua apreseniacao grega.Seja dada uma melodia cornposta em um modo que instigue 0ethos X - vistocomo a experiencia subjetiva ou psicologica suscitada por tal modo. No intcioda apreciacao auditiva de tal melod ta , a alma esta em re po uso , atenta aos fatospresentes. Com 0 decorrer da experiencia estetico-rnusical, com tal modoposto em movimento melodico, sai do cstado inerte, depreende-se do instan-te e e l evada a vivenciar, sob a forma de em ocoes e imagens, 0ethos X . Durantea apreciacao de X , a alma se distende do mundo, desligando-se do presente.Quando a execucao melodica da-se por encerrada, retorna ao fluxo linear dotempo, deixando 0 ethos X em urn instante cuja posteridade em relacao aoinstante anterior e reconhecida ja pelo apelo a lernbranca. Esquernaticamente,o rnovirnento modal tern a seguinte forma, ilustrativa do percurso felto pelaalma enquanto envolvida pelo modo instigador do ethos X:

    Em TI. a alma esta no mundo, atenta aos fa tes presentes. Ao internal izar amelodia modal, a alma desloca-se, suprimindo 0 instante, passando a experi-encia do e tho s X . Ao final da apreciacao melodica, voila a intuir de formadireta a rnundo; e isto fa z com que a alma se posicione no instante T2Apesar de tal esquema parecer, a princlpio, uma reducao desprovida desentido de uma expe rien cia este tica e psic ologica - 0postulado rnovimentomodal da alma - a urn simbolismo vazio, logo se verificara, tratando-se doatonalismo, que nao e de todo impertinente 0use de tal recurso esquernatico.Mas, antes disso, cabe descrever agora 0m o vim en to to na l.

    Nao julgo ternerario afirmar que 0 tonalismo surge de uma especie dedesdobramento dos princtpios modais, Mais precisamenre, a musics ociden-tal comeca a ser guiada por uma atitude tonal quando privilegia, em detri-memo dos outros, os modos j6nico ou e6lio, com uma relativa superioridadedo jonico".

    9 Alcrn do modo jonlco, 0mod o e6/io tambem [oi Incorporado ao tonalismo. Tal modo consiste nadlstribulcao in tervalar 1 1 / 1 1 1 1 /1 1 1: t 0 modo que esta associado, por exemplo, a umalrnprovisacao realizada em uma oitava que va de 14a la, uo qual a tradicao tonal atribuiu urnf lhos de dramat i c i dade ou tristeza (ver Nattlez, J . J . Music a nd D isc ou rs e. T ow a rd , Semiology o jM u s i c , pp. 118-126). A lese de que. mesmo considerando 0modo eolio como parte integraruedo tonalismo, ha uma clara prevalencia do modo jonlco, reside no fato de que 0modo eolio,como apropriado pelo tonalismo, sofreu uma especle de joni f i ca ,40: eleva-se melo-tom a setimamenor ou eolia para que, assim, as rnesrnas possibilidades rnelodico-harmonicas do modo jontco[aeam-se presentes no modo menor.

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    ja tomando as defintcoes modais hodiernas, 0modo [onico e a distribui-~ao de tons e semitons quando se ascende uma oitava musical indo de d6 a d6 ,considerando somente as notes brancas ou sem acidentes, isto e, notas semsustenidos au bernois:

    do -re- mi - fa - sol-hi - si - do.ISlO e, 0 modo jonico consiste na sequencia de tons 1 1 l i z 1 1 1 l i z , que e

    a estrutura formal da escala maior da musica ocidental moderna. Em suadistribuicao intervalar, a modo jonico coincide com 0 dorico grego, com adistincao de que 0 primeiro consiste de intervalos ascendentes, enquanto 0ultimo de descendentes.

    Quando se adotou 0jonico como 0modo por excelencia da composicaomusical, 0que realmente foi endossado nao foi tanto urn ethos jonico, mas aspossibilidades de, com tal modo, se efetivar nuances expressivas que ate en-tao estariam ausentes da estetica modal: suscitar no ouvinte a experiencia deemo{"oes conlradit6r ias , que causariam a vivencia iruema de uma tensdo, abran-dada em seguida pela resolu{"ao da contradicao que Ihe e causa. Com istoquero dizer que 0movirnento tonal e aquele que, mediante urna acentuacaodos aspectos harmonicos da musica - urna determinada logica de encadea-menta de acordes, pautada na resolu{"do em urn acorde perfeito maier ou me-nor de uma tensao ocasionada, geralmente, pelo usa de urn trttono -, provo-ca na alma urn deslocarnento que a faz sair do instante presente para sedirecionar a experiencia de urn dado ethos que se subdivide em momentostlicos antagcnicos, gerando-se assirn urn incomodo na alma que 56 se resolvequando a integridade do ethos inicial e recomposta,

    Em linhas gerais, a forca expressiva da musica tonal, atraves de uma mani-pulacao adequada dos modos jonico e eollo, pautada em urn jogo de encade-amento de acordes - uma novidade introduzida pelo tonalismo--, resideem explorar os aspectos contraditorios da alma, h armon iza nd o-o s, r es olv en do -a s . Enquanto na atitude modal prevalece 0 movirnento da alma que, ao sairdo tempo presente, se direciona a urn ethos indiviso, no tonalismo a alma eposta em contato com tres aspectos de urn mesmo ethos: dois que, par contade instigarem aspectos contraditorios da alma, causam-lhe tensdo e urn que are laxa, por resolver a contradicao anterior. De acordo com 0 esquema antert-ormente apresentado para 0movimento modal, 0 tonalismo induziria 0 se-guinte percurso:

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    Em T J , a alma esta no instante presente. Ao iniciar a sua distensao porefeito da acao musical, t levada ao estado P - 0 ethos jonico ou eolio -, 0que e conseguido pela acentuacao harmOnica de urn acorde perfeito maior oumenor chamado de 16nica , correspondente ao primeiro grau dos modos jonicoou eolio. Em seguida, apercebe-se afastando-se de tal ethos, sendo levado auma posicao P ', a qual se assernelharla a urn desenvolvimento expressive de P.Para tanto, enfatiza-se urn movimento harmOnico que vai do acorde de tonicaate outro tambern perfeito maier que corresponde aos quintos graus jonicoou eolio, conhecido pelo nome de dominante . Mediante modulacoes que par-tern do acorde de dominante ate 0 de subdom inan te - associ ado aos quartosgraus jontco ou eolio - a alma agora e levada a sentir-se em urna posi(aoantipndica a anteriormente ocupada; vivencia agora a posicao P", propulsorade urn reposicionamento em direcao a P. Na passagem de P" a P', explora-se 0lrilono, que e a distancia intervalar de tres tons, existentes entre os graus IVeVII do modo jOnieo ou escala rnaior. Tal intervalo aeentua a oposicao afasta-mento-aproxima(ClO, em relacao aos primeiros graus jOnico ou colic, que aalma experimenta estando em P' e depois em P". Por conta disto, 0 trHono-como outros intervalos ehamados de dissonanles- suscita a experiencia este-tica da contradicao, da rensao e ntr e p 61 0s contrdrios, suavemente resolvida porurn retorno ao ponto inieial do movirnento: 0 repouso harmonico no acor-de de tonica. Ap6s este caminho por tres rnomentos do ethos P, a alma encer-ra seu movimento para fora do presente, voltando a intuir os raws instanta-neos em T2.Hegel, em sua ja citada Estetica, preconiza que a mu sic a id ea l e aquela que,embora possa despertar aspectos contraditorios da alma - como a alegria e atristeza -, proporciona urn movimento interne pautado pela medida, alemde instigar uma alegria equilibrada:

    Seu dever [0da musical ~ tambern 0 de rnoderar I...as afeccoes da alma [... J . seeta [a alma] nao deseja, como uma bacante, ser arrastada ao rutdo desordenado eao tumulto turbilhonar das paixoes, ou permanecer nas aflfcoes do desespero,Pelo contrario, nas passagens de alegria e contentamento, assim c omo na maisprofunda dor, a alma deve permanecer amda livre e feliz nos desenlaces rnelodicos.Tal e a caractertstica da [... J musica ideal, da expressao melodica de Palestrina,Durante, Lotti, Pergoleze, Gluck, Haydn, Mozart. A alma jamats perde a calmanas composicces destes mestres. 0 sofrimento nao ~, por isso, nelas menosexpresso; mas ele se esvai em uma harmonia interior. Uma clara medida impedecada movimento de se precipitar em algum extreme, e mantem todo I...J conteudoem uma forma bern ligada.(Hegel, op. cir., p. 111).

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    Embora a rnusica ideal de Hegel leve a alma a experimentar emocoes contra-ditorias, como a alegria e a tristeza, ela 0 faz de forma equilibrada, a qualrealca uma a le g ria r ep o us an te que, tal qual urn ima, atrai para si as tensoes davivencia subjetiva de paradoxes. E interessante salientar que Hegel mencionaque a verdadeira m usica - exernplificada, em suas palavras, por compost-coes de autores em que a atitude tonal, em maior ou menor intensidade, sefaz marcante - t dotada de uma "harmonia interior" que dissipa a tristeza,uma vez que esta t urn momenta de urn percurso subjetivo cuja referencta e aalegria. Como observa Jose Miguel Wisnik, 0 ethos do modo jonico e alegre ,bri lhan!e e vivaz; e, por conta desta alegria radiante, ele teria catdo nas grat;asdo homem setecentista, preocupado que estava em romper com as tradicoesmusicals legadas pela igreja crista, baseadas no uso de modos circunspectos eausteros ' D. Assim, Hegel teria notado a d ln ar nic a e xpr es siv a da mnsica tonal,com seu jogo de oposicoes ocorrendo dentro de uma atmosfera de alegria evivacidade - a predominancia da atmosfera jonica em relacao as demais,indusiva a eolia, trisle e sombria .

    Par intermedio da s in ta xe to na l, a alma deixa 0 instante presente, indo aoencontro de estados de esptrito que revelam uma de suas caracter tst icas fun-dam enta is: a cont rar iedade de s ua c o nd i~ ito . A grande contr ibuicao da perspec-tiva tonalista foi a exploracao expressiva de oposicoes sugeridas pela propriadtsposicao de tons e semitons npicas do modo jOnico. Tal estetica do antago-nismo que se resolve harmoniosamente - ausente na musica modal - esintetizada na expressao "tensao-relaxarnento", uma especie de smtese desefeitos no esptrito des prmcipios tonais postos em execucao,o movimento tonal, como descrito aqui, admite inumeras variacoes. To-davia, 0pressuposto de que um p610 de reso lucao de tensoes esteja orientan-do a alma enquanto esta se desloca em uma temporalidade subjetiva e a pro-priedade invariante da atitude tonal. Sempre que a alma se movimentar guia-da pela tnangulacao

    sendo Po e thos jOnico ou eolio, pode-se afirmar que 0 seu movimento estasendo proporcionado por urn d in am ism o to na l. Por conseguinte, qualquer mo-vimento da consciencia instigado pela musica e que se desenvolva sern tal

    10 Alem do lado semdnt ico do modo [orrico - 0 seu ethos -, Wisnik acentua que tarnbern aspossibilidades harmonicas presentes na estrutura j 6n i ca teriarn sido decisivas para que tal modoprevalecesse sabre os dernais, inclusive a eolio (Wisnik, o p . c it. , pp. 126-132)

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    triangulacao Sera atonal . Dai a modalismo, com seu movimento caractertstico,no qual a alma deixa a instantaneidade para gravitar, sem afastamentos e apro-ximacoes , em torno de urn dado ethos , constituir uma especie de "atonalismo".o tonalismo, como diretriz de orieruacao composicional, varreu 0seculo XIXe atingiu a exploracao maxima de suas potencialidades no inicio do seculo XX.Entretanto, isto nao impediu que alguns compositores tivessem certcs comporta-mentos desviantes em relacao a estetica tonal. DeWagner a Stravinsky, passandopor Debussy, a presenca de obras em que a tnangulacao tonal e deixada de ladoem nome de atitudes modalistas ou mesmo de uma cornpleta ruptura com aspremissas tonais e patente. Isto toma-se compreensivel se entendernos que, den-tro do proprio tonalismo, as ferramentas para a sua implosao ja estao dadas, bas-tando, a tanto, que 0 p ou so to na l, dissipador de tensoes, seja abandcnado. Se nomovlmento tonal a repouso e esquecido, abrindo-se 0movimento tnangular

    tem-se entao urn movimento da alma que, saindo da atencao do tempo pre-sente, e levada a distender-se conforrne a esquema seguinte

    Oescartando-se a retorno ao centro tonal, acentua-se na alma a tensao, osaspectos contradit6rios, sem que os mesmos sejarn harmoniosamente dissi-pados11 0 que se verifies entao e a enfase no antagonismo inconcluso, 0 quedeixa a alma em cantata psicologico com sua natureza contraditoria. Sob taiscondicoes, a alegria equillbrada da musics ideal de Hegel nao mais se Ia zpresente como pano de fundo do deslocamento amrnico e, ao inves disso, aconsciencia submete-se a uma eSfelica da rensdo, da contradicao nao resolvidapela recorrencia a uma tonica.o dodecafonismo serial de A. Schoenberg'? e 0 atonalismo em sua expres-

    sao mais sisternatizada. Bern sinteticamente, enquanto 0 tonalismo se amparavano pressuposto de que as dissonancias presentes do modo jonico ou eolio, em

    11 Anton Webem (1883-1945). compositor austrlaco da escola dodecafonica, sobrc a tmplosao dosistema tonal, diz 0 seguinte: "era tao excitante voar em dtrecao as mais longtnquas regioestonais, para depots retornar ao ninho a co nc he ga ru e d a tonalidade original! E , d e repente, nao sevoltou mais - csses acordcs astutos tornaram-se equtvocosl Era muito agradavel tudo isso, maslina lm enre nao se conslderou imprescindlvel retornar a tOnica" ( Webem em: Wisnik, ib id . pp.164-165).

    12 A musicn dodecafontca abandona por complete a sintaxe tonal, substltuindo-a pm uma bascadana rnanipulacao de series de doze sons da escala c ro rn atic a - a escala que se obtern. por exem-

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    especial as que decorrern do trttono vertical, sao natura /mente levadas a desapa-recer em urn repouso no acorde de tonica, a que sugere uma estetica em que asoposicoes que se inserern na alma, por uma dinamica tonal, sao quase queapenas mom en lo s d is tin to s de urn rnesrno e thos , 0 atonalismo dodecafontco deSchoenberg pretendia uma musica em que as dissonancias fossem elevadas acategoria de diretivas do movimento da alma. Assim, as consonancies queporventura aparecessem no percurso atonal da alma em rnovirnento, teriam deser vistas como aspectos acidentais; a tensdo seria a ver-dadeira referencta domovirnento instigado pelo atonalismo schoenberguiano. Hans Eisler, urn dosdisc!pulos de Schoenberg, assim se expressa sabre a nova estetica dodecafonica:

    Para 0ouvinte nao iniciado, a rnusica de Schoenberg nao soa bela porque espelhao mundo capitalista, tal qual e, sem adornos, e porque de sua musica emerge aface do capitalismo com os olhos do capitalismo Iixamente apontado para n6s[ . . . J Quando sua musica e ouvida nas salas de concerto da burguesia, estas salas janao sao [os lugares onde alguern se emociona com sua propria formosura], e sirn,e nelas que se e forcado a pensar sobre 0 caos e a feiura do mundo. (Eisler,em:Leibowitz, op . cit., p. 22.)

    Descartando 0 carater pohtico-panfletario das observacoes de Eisler - ex-pressamente condenado pelo proprio Schoenberg'{-c-, fica 0chamado a este-tica dodecafontca calcada na es t ranheza , oriunda de uma melodia e harmoniarascantes , sem repouso tonal. Uma vez que 0dodecafonismo se guia por umatotal equivalencia dos doze sons da escala cromatica, dispostos em seriesconstruldas com alto grau de liberdade, mas utilizadas com regras fixas, urnnpico mo vim e nto d od ec af6 nic o seria oseguinte:

    plo, ascendendo-sc uma oitava atraves de intervalos sucesslvos de meia-tam. 0 criador dododecafanismo fai Arnold .Schoenberg (1874-1951), compositor judeu-austrtaco que, no perto-do de 1913 a 1923, desenvolveu tal sistema afim de romper com p rt nc tp to t ona is . Sabre 0ser ial i smode Schoenberg, e seu estrito atonalismo, Wisnik nos diz: "0 dodecafonismo recusa, antes de rnaisnada.ou definitivamente, a escala diatonlca 1 a estrutura intervalardo modo jontco]. 0 seu Iunda-mente t a aplicacao intensiva da escala cromatica, cujos doze semitons lguats serao usados demodo a evltar s i s t emar i cameme a emergencia de notas polarizadoras c de hierarquia mtervalares,1 . . . 1 Na consrrucao da serie deve-se evuar, em principio, aqueles intervalos estruturadores daordern tonal, como a oitava, a quinta e a terca, com sua tendencia ao acorde perfeito. Em vez disso,tende-se as setimas maicres, as nonas e as es segundas menores, aos trttonos, pontos mais atritantesdo sistema Intervalar cromatico" (Wisnik, ib id , p. 165).

    13 Em carta a ]. Rufer, datada de 18 de dezembro de 1947, Schoenberg manifesta 0 seu descoruen-tamento com as opintoes pollticas de Eisler, 0qual, segundo Schoenberg, deveria se prcocupar

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    Em T j a a lm a esta a ten ta ao presente ; d is tende -se , en tao , em urn m ovi-m ente qu~ a faz passa r por doze atmosJeras sucessivcs, pincadas quase quelivrem ente da esca la c rom a tlca , d otadas de plena autonornia , sem que nenh u-rna desta s exerca qua lque r papel de im a a tra tivo ou repouso. Com i550 , ao.p er co rr er e sta s alm osferas U icas - doze nuances express ivas, com co loridos em atizes pr6prios - a a lm a nao experirnen ta aJasta men tos ou ap rox im a(oes emre ia p2 0 a u rn p on to d ete rm in ad o: com o nao h a um a re fe renc ia m elod ica ou h ar-m onica - is to , e, c omo ha ausenc ia de urn ethos oriundo de urn m odo queorien te a m elod ia ou de urn en tre lacam ento de acordes des tinado a urn fech o,a urn re torno pa ra um a tonica -, 0mo vim e nto sc ho en be rg uia no , o ca sio na -do tanto por e lem entos m elod icos quanto h arrnonicos, e c onstitu td o d e sal-las, de posicoes que en tre s i rnante rn um a re lacao de desconLinu idade . A unid a -d e da a lm a s6 e rec upe ra da e m T 2, quando voila a in tu ir a instan te , ligando-oa TI pela faculdade unificadora da m em 6ria .

    A tensao que d isto surge e 0resu ltado de um a espec ie de Jragmenta(uo daa lm a que , durante sua projecao pa ra fora do ins tan te presente , ve-se d ilu tdaem doze pa rte s desconexas , independ ente s entre s i; a perda in tenc iona l de umponto de referenda tona l desinlegra a a lm a em se u d eslo ca m ento d od ec afonic o.

    J : in tere ssante nota r que a lm a, posta em m ovirnento por um a m usicad od ec afonic a, ex perim e nta um a instiganle perda de sua unidade , de sua in te -gridade , que s6 e adquirida novam ente com 0re to rn o d a a te nc ao aDp re se nte .V oltando ao in tu ir 0 tem po presente , a a lm a resolve, por assim d ize r, asdescontinuidades que viveu durante sua d is te ns ao a to n al. Retom ando a a ten-cao pa ra 0 que de fa to e no m undo, a a lm a con5egue rea rticu lar-se , re in te -grando os seus fragm entos , postos em re levo pe la es te tica dodeca fontca .o pr6prio Sch oenbe rg pe rcebe ra que 0 a tona lism o , e m se us prim o rd ios ,

    te r ta de abrir m ao de pecas de grande duracao, d e longos rnovirnentos pa rafora do tem po presente . Devido a seu e fe ito perturbador, a s obras a tona iste r ta rn de se r curta s , pa r com a da fa lta de urn e lem ento que lh es confe risseunidade , de um a tonica que pe rm itisse descansa r a a lm a de tensoes . Sobreisto , Sch oenbe rg nos d iz:

    Em rninhas primeiras obras no novo estilo]o atonalismo incipiente de Schoenberg,ainda nao caracterizado como serialismo dodecafontco] Ioram sobretudo fortesos impulsos expressivos que me guiaram 1 . . . 1 na elaboracao formal. mas tarnbern,

    rnais com a muslca e menos em reformat mundo (R. Lcibowttz . ibid, p. 23). Hans Eisler erarnernbro ativo do partido cornunista alernao, sendo de sua autorta Hino da ja extima Alerna-nha Oriental (0. M. Carpeaux, 0 Uvro de Ouro da His16ria d a M u sic a, p. 473).

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    e nao em ultimo lugar, urn senrido da forma e da logica he rdado da rradicao ebern educado pela aplicacao e pela consciencia. Estas Iormas se tornararn posstveisgrar;asa uma resmcao que me impus desde 0 prirneiro instante, iSIO C, 0 de merestringir as pequenas pe cas, fato que na epoca justificava a mim mesmo comouma reacao ao estilo "longo". Hoje posso explica-lo melhor, como segue: aabstencao face aos meios rradicionais torna imposstvel projetar grandes formas.pois elas nile podem existir scm uma articulacao precise. (Schoenbergern.Leibowitz. ibid. p. 95,)

    Par descartar 0principia de resolucao tonal, 0atonalismo proporciona naalma a vivencia intensa de tensoes que nao se hannonizam na enfase de urnponto referencial - a tonica. Entretanto, as harmonias e melodias atonaisencontram no proprio retorno ao instante a sua resolucao; repousando notempo presente, a alma volta para si esquecendo-se de suas contradicoes,integrando-se por rneio da intuicao direta do mundo. Tal qual urn pousotonal doador de unidade, 0 retorno a temporalidade subjetiva faz com que aalma se lance novamente em urn movirnento ordenado que va t da atencaopresente a lernbranca au a expectativa, Por conseguinte, a alma que se movi-menta para fora do tempo d i s sonan!cmen te , precisa do instante temporal COmoo remedio que cura as feridas expostas em seu trajeto por tensoes atonais.Conforme Schoenberg: "0 tempo cura todas as feridas, mesmo aquelas aber-tas pelas harmonias dissonantes". (Schoenberg em: Leibowitz, ibid, p. 29)

    Referencias Bibliograficas:

    Carpeaux, O. M. a Livro de Ouro da H istaria da M usica , Rio de janeiro, Ediouro: 2001;De Cande, R. H isl6 ria d a M usica U niversa r, vols. 1 e 2. Traducao de Eduardo Brandao.Sao Paulo, Martins Fontes: 2001;Hartmann, N, D ie P h ilo so ph ic d es d eu ts ch en Id ea rism us , vol 1, Berlim, DeGruyter: 1929;Hegel, G. F . ESf he tiq ue . T ex te s Choisis. Dirigee par C. Khodoss e j. Laubier, PressesUnlversitaires de France, Paris:1964;Leibowitz. R Schoenberg . Traducao de Helie Ziskind. Sao Paulo, Perspectiva:198l;Lovelock,W. Hisl6ria C on cisa d a M usica . Traducao de AlvaroCabral. Martins Fontes:Sao Paulo:1987;

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    Nattiez. J . M. M usic a nd D isco urse . T ow ard a Se mio lo gy o f M u sic . Translated by CarolynAbbate. Princeton University Press, New Jersey: 1990;Santo Agostinho. Conjlss{}es.COlei;3.0Os Pe ns a do r es . Traducao de}. Oliveira. S.J.. e A.Ambrosio de Pina, S.J. Sao Paulo. Abril Cultural:2000;Wisnik, J . M. 0 Som e 0 Sentido -Uma Dutra Histtlria da s Milsicas. Sao Paulo, Compa-nhia das Letras:1989.