A organizaçao cultural museal VM Sperandio Rangel

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS VERA MARIA SPERANDIO RANGEL A ORGANIZAÇÃO CULTURAL MUSEAL: OS DESAFIOS E VETORES DOS PARADIGMAS TRADICIONAL E CONTEMPORÂNEO Prof. Dr. Léo Peixoto Rodrigues Orientador Porto Alegre 2007

Transcript of A organizaçao cultural museal VM Sperandio Rangel

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    VERA MARIA SPERANDIO RANGEL

    A ORGANIZAO CULTURAL MUSEAL: OS DESAFIOS E VETORES DOS PARADIGMAS TRADICIONAL E CONTEMPORNEO

    Prof. Dr. Lo Peixoto Rodrigues Orientador

    Porto Alegre

    2007

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    VERA MARIA SPERANDIO RANGEL

    A ORGANIZAO CULTURAL MUSEAL: OS DESAFIOS E VETORES DOS PARADIGMAS TRADICIONAL E CONTEMPORNEO

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais, pelo Programa de Mestrado em Cincias Sociais Organizao e Sociedade, da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Lo Peixoto Rodrigues.

    Porto Alegre

    2007

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    VERA MARIA SPERANDIO RANGEL

    A ORGANIZAO CULTURAL MUSEAL: OS DESAFIOS E VETORES DOS PARADIGMAS TRADICIONAL E CONTEMPORNEO

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais, pelo Programa de Mestrado em Cincias Sociais Organizao e Sociedade, da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovada em 29 de maro de 2007.

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________

    Prof. Dr. Lo Peixoto Rodrigues PUCRS

    ___________________________________________

    Prof. Dr Julieta Beatriz Ramos Desaulniers PUCRS

    _______________________________

    Prof. Dr urea Tomatis Petersen - PUCRS

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    Memria de Arlindo Sperandio e Clotilde Blaschke Sperandio.

    A eles, alm de agradecer a vida, agradeo a infncia livre.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Dr. Lo Peixoto Rodrigues pela sua orientao e por ter segurado o fio de Ariadne.

    Valria Sperandio Rangel pelo apoio. Mrcia Regina Bertotto pela disponibilidade. Um brinde vida de cada um!

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    Antes do compromisso, h hesitao, a oportunidade de recuar,

    uma ineficcia permanente. Em todo ato de iniciativa (e de criao),

    h uma verdade elementar cujo desconhecimento destri muitas idias

    e planos esplndidos. No momento em que nos comprometemos de fato, a

    Providncia tambm age. Ocorre toda espcie de coisas para nos ajudar,

    coisas que de outro modo nunca ocorreriam. Toda uma cadeia de eventos emana da deciso,

    Fazendo vir em nosso favor todo tipo de encontros, de incidentes

    e de apoio material imprevistos, que ningum poderia sonhar que surgiriam em seu caminho.

    Comea tudo o que possas fazer, ou que sonhas poder fazer.

    A ousadia traz em si o gnio, o poder e a magia.

    Goethe

    O museu a caverna de Plato, o sol est l fora Czzane

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    RESUMO

    Esta investigao objetiva compreender e explicitar os motivos que levam alguns poucos museus a incorporarem em sua prtica os preceitos da nova museologia em um paradigma complexo, tambm visto como ps-moderno, quando comparado com uma matriz moderna, e o que amarra os museus que no realizam essa incorporao e permanecem com o paradigma tradicional, na sociedade complexa do incio do sculo XXI. As idias que vo formar o que seria o novo paradigma tm preocupaes de ordem cientfica, cultural, social e econmica. Reafirma os recursos da museologia tradicional, que so: coleta, conservao, investigao cientfica, restituio e difuso; porm, vo alm, visam democratizao e estmulo da produo, da criao e da difuso cultural. A UNESCO props uma assemblia para debater a crise aguda dos museus, que de uma maneira geral no eram visitados. A Mesa Redonda realizada no Chile, em 1972, traou a fronteira entre a museologia das colees - paradigma tradicional - e a que percebe o museu como instrumento de desenvolvimento social. O movimento para uma nova museologia afirma a funo social do museu e o carter global das suas intervenes. A proposta nova um museu integrado para ser um instrumento de desenvolvimento comunitrio, com uma perspectiva dinmica e aberta ao futuro. Esse museu seria gerado em funo do patrimnio coletivo de uma comunidade, no com um fim em si mesmo, mas com um significado em razo do papel que possa ter ao servir essa comunidade especfica.

    Palavras-chave: Museologia. Paradigma tradicional. Novas propostas.

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    ABSTRACT

    The objective behind the present research was to understand and make explicit the reasons that have led a few museums to embody the tenets of New Museology (also thought of as post-modern when compared with a contemporary model) in their operations within a more complex paradigm, and what holds those museums that did not embody such precepts and remain loyal to the traditional paradigm, in the complex society at the beginning of the 21st century. The ideas forming that which would be this new paradigm are of scientific, cultural, social and economic concerns. These ideas reassert resources of traditional museology, namely collection, conservation, scientific investigation, restitution and dissemination, however they leap further in that they aim at democratization and fostering of cultural production, development and dissemination. UNESCO proposed a meeting to discuss the acute crisis of museums that generally were not receiving visitors. The round table of 1972 in Chile outlined the boundary between collection museology the traditional paradigm and that conception of museology that perceives museums as instruments of social development. The movement for a new museology asserts the social role of the museum and the global nature of its interventions. This new approach translates as an integrated museum that is ready to become an instrument of community development, within a dynamic perspective and set toward the future. The birth of such a museum would be based in the cultural heritage of a given community, not as an end in itself but bearing significance in terms of the role it would have in serving this particular community.

    Keywords: Museology. Traditional paradigm. New approaches.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Quadro 1 Referncias dos documentos para anlise ............................................77 Quadro 2 Formao dos OM operadores museais pesquisados ........................78 Quadro 3 Representao de categorias que iro tipificar o que chamamos de museu tradicional, do paradigma tradicional............................................................. 79 Quadro 4 Representao das categorias que iro tipificar o que esperamos encontrar nos museus que adotam os preceitos do novo paradigma da museologia contempornea.......................................................................................................... 80 Quadro 5 Sistema de Anlise para a Sociologia do Conhecimento........................81 Quadro 6 Categorizao dos Dados e Seus Temas...............................................93 Quadro 7 Quadro Tipolgico Esquemtico: Museus.............................................109

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    LISTA DE SIGLAS

    MEC Ministrio da Educao COREM - Conselho Regional de Museologia ICOM - (sigla em ingls) Conselho Internacional de Museus FAPERGS Fundao de Amparo Pesquisa do Rio Grande do Sul FAMURS/CODIC Federao e Conselho dos Municpios do Rio Grande do Sul FAMURS - Federao das Associaes de Municpios do Rio Grande do Sul CODIC Conselho dos Dirigentes Municipais de Cultura UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao e a Cultura OM - Operadores Museais ou de Museus COFEM Conselho Federal de Museologia MINC Ministrio da Cultura UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro USP Universidade de So Paulo UFSC Universidade Federal de Santa Catarina NEMU Ncleo de Estudos Museolgicos UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul FABICO Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas UNICAMP Universidade de Campinas IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    PRONAC Programa Nacional de Apoio Cultura MINOM Movimento da Nova Museologia

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    SUMRIO

    1 INTRODUO............................................................................................ 13

    2 UM PERCURSO MUSEAL E HISTRICO................................................ 20 2.1 INTRODUO........................................................................................... 20 2.2 MUSEOLOGIA, TEORIAS PRTICAS....................................................... 21 2.2.1 Os Novos Rumos da Museologia .................................................... 24 2.2.2 O Muselogo Brasileiro e Sua Formao Acadmica........................ 30 2.3 OS MUSEUS COMO ORGANIZAO SOCIAL, ALM DE CULTURAL.. 34 2.3.1 Museu e Educao, Arte e Experimentais ........................................... 43 2.3.2 O Primeiro Museu do RS e a Constituio Positivista .................... 48 2.4 CONSIDERAES .................................................................................. 52

    3 CARACTERIZAO DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO: E A POSSIBILIDADE DE CONHECER O CONHECIMENTO MUSEOLGICO ..................................................................................................................... 53

    3.1 INTRODUO........................................................................................ 53 3.2 RAZES HISTRICAS E NOMES DOS NOSSOS DIAS........................ 54 3.3 DIFUSO DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO............................. 62 3.3.1 Sociologia do Conhecimento e Novos Conceitos.......................... 65 3.4 CONSIDERAES............................................................................ 69

    4 MTODOS UTILIZADOS PARA O CONHECIMENTO MUSEAL DO RS ........................................................................................................... 70

    4.1 INTRODUO................................................................................... 70 4.2 ASPECTOS METODOLGICOS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

    E TIPOS DE ESTUDO............................................................................ 71 4.2.1 Anlise de Contedo............................................................................ 73 4.2.2 Mtodo Tipolgico Ideal Weberiano................................................... 76 4.3 SITUAO HISTRICA DA FORMAO DO PARADIGMA TRADICIONAL

    NA CULTURA MUSEUS BRASILEIROS......................................... 78 4.4 AS CONTRIBUIES DOS OPERADORES MUSEAIS ENTREVISTADOS .89 4.4.1 Organizao dos Dados Empricos ..................................................... 90

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    4.4.2 Relao entre formao e o cargo ocupado no museu, qualificao ou status poltico...................................................................................... 91

    4.4.2.1 Acesso ( Instituio, concurso ou indicao poltica)........................ 92 4.4.2.2 Qualificao X Status Poltico X Crescimento Profissional................. 96 4.4.3 Formas ou Instrumento Profissional que o museu utiliza para cumprir

    sua funo, misso ou objetivos .................................................. 98 4.4.3.1 Instrumental Terico e Tcnico........................................................... 99 4.4.4 Relao entre planejamento, gesto e polticas culturais, sociais e

    econmicas - dificuldades, obstculos para mudanas prticas necessrias para alar ao futuro museu. Extroverso do museu, espao, falta planejamento, identidade, continuidade poltica de direo ............................................................................................ 101

    4.4.4.1 Relao Gesto, Planejamento e Rupturas, Mudanas.................... 101 4.4.5 Fatores ou condies externas que se refletem na eficcia ou eficincia

    do papel que o museu deveria desempenhar .............................. 103 4.4.5.1 Desempenho e Eficincia ................................................................ 103 4.5 O MUSEU EFICIENTE PARA O SCULO XXI ............................... 105 4.6 MTODO TIPOLGICO ................................................................ 106 4.6.1 Anlise do Quadro Tipolgico ........................................................ 107 4.7 INTERPRETAO ......................................................................... 109

    5 CONCLUSES .............................................................................. 115

    REFERNCIAS............................................................................ 123

    APNDICE A Entrevista Textual............................................... 127 APENDICE B Termo de Consentimento................................... 128

    ANEXO A Organograma Museu de Etnologia da USP............. 129

    ANEXO B Organograma Memorial do Imigrante...................... 130

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    ANEXO C Organograma Museu de Comunicao Social Hiplito Jos da Costa, 1989.. ........................................................................................... 131

    ANEXO D Organograma Museu de Comunicao Hiplito Jos da Costa, 2007............................................................................................. 132

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    1 INTRODUO

    O objeto da nossa investigao o museu contemporneo, o museu como organizao cultural e social. Se o nosso interesse estivesse em apontar a primeira exposio ou o primeiro museu, poderamos pensar na Arte Rupestre. No Brasil temos o conjunto mais rico do mundo, so 25 mil desenhos, retratos da vida do primeiro habitante da Amrica, nas cavernas da Serra da Capivara, no Piau. Podemos deduzir dos registros da arte do homem pr-histrico que ele o precursor do museu, ele criou a primeira tipologia museolgica. Conceitos pertinentes ao museu atual, como a memria coletiva preservada, podem ser encontrados na ao pr-histrica. Assim como os museus, o stio arqueolgico do Piau pouco considerado, os profissionais l e c, enfrentam toda a sorte de dificuldades, um paralelismo patrimnios pr e histricos - no lado negativo.

    O museu nasceu na Grcia Antiga e foi modificando-se pelo caminho. Passou pelo enciclopedismo e pelas colees: resultado de pilhagens, composto de raridades, curiosidades e riquezas, chegando na era da informao, desafiado a cumprir uma mediao comunicacional entre as referncias patrimoniais e a sociedade.

    O conceito de museu vem sofrendo alteraes e mudanas que variam entre instituio e processo. Neste incio de sculo, o museu como instituio, que foi criada para estar a servio da sociedade, deveria dispor de recursos humanos, tecnolgicos e de mercado, porm seus agentes devem construir de forma concreta as condies objetivas para que isto acontea.

    Hoje, ao descrever o Estado da Arte dos museus, digamos, espera-se que o museu produza conhecimento, a instituio existe para a salvaguarda da herana cultural da sociedade, atua no sentido inverso destruio. Deve planejar valores humanitrios e atravs de pesquisas gerar nova herana. O museu deveria ser reconhecido como um lugar de aprendizagem, um privilegiado espao de lazer, sendo um verdadeiro cone urbano. O museu, ao apresentar-se como um frum de

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    debates, esparrama-se para dentro da sociedade e para fora dos seus muros, e na denominada extroverso do museu que se realiza o "Estado da Arte".

    No h resgate da histria, nos museus s h indicadores da memria, porque temos fragmentos que contam partes da histria, como exemplo, seja da cidade, seja de um movimento social, ou de outros fatos, o museu rene esses indicadores, h um fio condutor ideolgico perpassando toda a cadeia operatria entendida como o equilbrio entre a salvaguarda e a comunicao, significando o paradigma da gesto museolgica.

    O poder de quem chancela o que ser preservado e o que ser relegado ao esquecimento uma seleo altamente ideolgica e de grande responsabilidade social; das inconseqncias de aes j havidas em tais atos, a humanidade ressente-se em vrios momentos do processo histrico. Lembramos as grandes esttuas gigantescas de Buda, destrudas com pretextos religiosos, no ano de 2001, por extremistas Talebans no Afeganisto, e existem muitos outros exemplos. Ao nosso lado, na poca da II Guerra Mundial, as comunidades de imigrantes, localizadas no Vale do Sinos, sofreram muitas perdas culturais, dentre essas a crucial: no ter liberdade de usar a lngua materna.

    Para alguns muselogos, a Museologia uma disciplina do conhecimento cientfico em construo. a base em que so gerados os conceitos para os museus atuarem com qualidade e eficincia. O conhecimento desses postulados, ou teorias, deveria ser requisito para a prtica de todos que desempenham funes nas organizaes museais. A capacitao dos profissionais e a articulao entre eles so fundamentais para o planejamento e construo dos caminhos museolgicos melhor ladrilhados.

    A partir da pesquisa e da anlise dos resultados desta dissertao, a prpria comunidade museolgica porto-alegrense poder se valer sobre questes pertinentes produo e gerao dos servios, para os quais os museus existem. Tanto para a comunidade tcnico-cientfica como para a academia, a presente pesquisa adquire relevncia por buscar analisar, com critrios cientficos, uma organizao social o museu mais antiga do que o ensino superior no Brasil e que passa por dificuldades de toda ordem. Parecem no encontrar o caminho para bem

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    atuar nos dias de hoje, esto em descompasso com a sociedade da informao e da tecnologia.

    H vrios trabalhos acadmicos sobre as organizaes museais nas reas da Comunicao, da Educao e na rea da Informtica, mas escassos trabalhos no mbito das Cincias Sociais, mais objetivamente da Sociologia das Organizaes. Aps a anlise dos dados empricos, espera-se seja possvel incluir os museus brasileiros nessa generalizao.

    Esta dissertao pretende realizar, sob o olhar terico da sociologia do conhecimento, uma investigao no campo dos museus. Os museus, de maneira geral, esto muito aqum de seu potencial como organizao a servio da sociedade e de seu desenvolvimento; seja para comunicar, informar ou para entreter, caractersticas, essas, que definem um verdadeiro museu contemporneo.

    Percebendo-se o museu com esse olhar, referido acima, com as vrias proposies voltadas para o social, v-se um espao de relaes. A anlise do processo da organizao dos museus na realidade cultural brasileira, e especialmente na gacha, busca demonstrar que os museus permanecem como um campo de possibilidades muito mais do que de aes.

    Vivendo imersos no objeto, acreditamos estar capacitados para realizar a investigao cientfica, essa idia uma presuno e um engano. O que temos em ns so muitos preconceitos e senso comum. At que consigamos separar as noes das pr-noes, j teremos percorrido um caminho de aprendizado, compreendido porque necessitamos do orientador para conduzir a bom termo a investigao.

    O problema central de pesquisa constituiu-se no questionamento de qual seria o motivo de no acontecer a ruptura no paradigma museolgico tradicional; por que no se estabelece o novo paradigma, compreender e explicitar os motivos que levam alguns poucos museus a incorporarem em sua prtica alguns preceitos da museologia contempornea em um paradigma complexo, tambm visto, por autores contemporneos, como ps-moderno; e quais as condies dos outros museus,

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    que no realizam essa quebra e persistem no paradigma tradicional, na sociedade complexa do incio do sculo XXI. A crise pr-paradigmtica existe, a resposta crise seria a troca de paradigma. Esse tema tambm objeto da investigao.

    Nossos questionamentos, dentre outros, ao incio da caminhada eram estes: Como se d a organizao dos museus e instituies afins no que concerne ao corpo diretivo e funcional? Existe plano diretor, ou estatuto, ou elaborao de relatrios setoriais? A instituio trabalha com pesquisa no acervo institudo e no captado a incorporar? Mostrando assim que valoriza o patrimnio como fonte de informao e no como um fim em si mesmo. Existe pesquisa na captao de acervo? Ou aceito tudo o que aporta no museu, sem critrio, sem observar a poltica e a misso da organizao? O Estado do Rio Grande do Sul, a Unio e o municpios oferecem organogramas para as instituies que mantm. Ou, ao invs disso, cada uma age isoladamente. Os questionamentos iniciais apontam a posio dos museus, quanto insero no paradigma contemporneo ou no paradigma tradicional.

    Existem, dentro do conhecimento museolgico, dois tipos de paradigmas. Para definirmos o que chamamos de Paradigma Museolgico Contemporneo, que contm o movimento da Nova Museologia, devemos pensar em processos e em relaes do Homem. O paradigma contemporneo prope um museu que seja um instrumento para o desenvolvimento comunitrio, a partir de uma base institucional, mas construindo novos tipos de relaes: aprendizagem, entretenimento, comunicao, lazer e muitas outras, resultantes da interao com os anseios da sociedade. Em contraposio ao outro paradigma museolgico tradicional, que corresponde ao paradigma cientfico tradicional em sua linearidade, de saber cumulativo. O paradigma tradicional narra a histria factual dos heris e vencedores, o museu tem as caractersticas de guarda e exposio permanente, com o objetivo principal de educar escolares.

    Tambm faz parte da nossa problemtica e compe os objetivos da nossa investigao a necessidade de compreender e de explicar o fato de que no so levados em considerao os paradigmas museolgicos. Compreender e explicitar os motivos que levam alguns poucos museus a incorporarem em sua prtica os

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    preceitos da nova museologia em um paradigma complexo, tambm visto como ps-moderno, quando comparado com uma matriz moderna, e o que amarra os museus que no realizam esta incorporao e permanecem com o paradigma tradicional, na sociedade complexa do incio do sculo XXI.

    Outros objetivos que elencamos, so: analisar a comunidade museolgica gacha e os grupos sociais que nela atuam no que concerne ao museu como organizao social. Explicar quais so os fatores que facilitam ou dificultam a incorporao dos novos paradigmas. Verificar quais os museus que incorporam tais paradigmas e por que o fizeram. Verificar sobre as pessoas que trabalham em museus, em Porto Alegre, a qualificao com que atuam: com boa qualificao, com baixa qualificao ou sem qualificao na rea. Verificar igualmente quais as reas afins que esto representadas nas equipes, quais so estas reas. Compreender as conseqncias da falta de formao especfica. Compreender os motivos por que isto se d: h poucos cursos, esto localizados no centro do pas, h demanda, ou no h interesse pela formao. Averiguar se seria essa uma das causas importantes, da no incorporao dos preceitos do Novo Paradigma nas suas prticas profissionais.

    A presente dissertao est organizada da seguinte maneira: est constituda em cinco captulos, sendo o primeiro este captulo introdutrio que busca situar a organizao deste trabalho.

    No captulo dois que denominamos UM PERCURSO MUSEAL E HISTRICO, realizamos justamente uma caminhada atravs dos autores que nos propiciaram o conhecimento do processo da museologia como cincia que est em pleno desenvolvimento. Nos documentos buscamos compreender o discurso cientfico, se est descolado do discurso e principalmente da ao dos operadores museais. Objetivamos nos informar sobre as tendncias que os intelectuais, que atuam na museologia, esto imprimindo em seus ltimos trabalhos: a busca da cientificidade, a busca do alargamento dos horizontes, a compreenso de que a sociedade, para o sculo XXI, a sociedade da incluso e vimos que isso o que apresenta o discurso da maioria desses tericos. Examinamos a instituio da problemtica formao acadmica da comunidade museolgica brasileira, que deixa

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    a desejar, por falta de escolas em todos os nveis, da estrutura educacional brasileira. Sobre as funes dos museus que nos dias atuais deveriam ser voltadas diretamente para o social, ultrapassando o chamado pblico escolar, a grande maioria dos gestores dos museus, deixa entrever que desconhece ou, desconsidera a vocao pedaggica do museu para ensinar a todos os pblicos. Atravs de informao e da comunicao realizadas via exposies de seus acervos e de divulgao de pesquisas ou aes inditas e inovadoras, podem cumprir essa vocao de maneira abrangente, incluindo vrias idades e vrios pblicos. Vemos o mais antigo museu - Jlio de Castilhos nascido dentro do perodo positivista gacho, uma particularidade da poltica do Rio Grande do Sul em relao aos outros Estados federados. H possibilidade de aprofundar a investigao para compreender a desescolarizao dos museus e a conseqente explicao da identidade da Escola e do Museu. A importncia deste captulo conhecer a museologia.

    No captulo terceiro que chamamos: A CARACTERIZAO DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO: E A POSSIBILIDADE DE CONHECER O CONHECIMENTO MUSEOLGICO o foco foi verificar em que medida podamos nos apoiar na sociologia do conhecimento para construir nossos objetivos. A sociologia do conhecimento, desde muitos anos, vem se estabelecendo como uma teoria sociolgica; por um perodo esteve esquecida, foi revigorada em dois momentos, com tericos inovadores como o norte-americano Robert Merton e com a publicao do trabalho do fsico Thomas Kuhn. Usamos as categorias sociolgicas de anlise estabelecidas por Merton, para a sociologia do conhecimento, na categorizao, descrio e anlise. Sobre a importncia do captulo: dele dependeu a cientificidade da investigao, sem a lente da teoria sociolgica nossa investigao estaria comprometida, com vis de senso comum. O captulo terico fundamental em uma dissertao.

    Ao quarto captulo chamamos MTODOS UTILIZADOS PARA O CONHECIMENTO MUSEAL DO RS, porque procuramos fazer uma combinao de mtodos para que obtivssemos, na anlise sociolgica, maior consistncia. A tcnica da anlise de contedo mostrou-se uma tcnica produtiva. A dimenso emprica aliada conscincia crtica, forjada no processo pedaggico, embasa as

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    aes deste captulo. No mtodo tipolgico weberiano, encontramos uma interpretao segura. A anlise vai ser feita em outro patamar, muito longe do senso comum.

    Dentre os novos temas de discusso na rea da museologia, est a Comunicao, que hoje uma das principais e que vem ocorrendo entre os autores museais contemporneos. Comunicar para ns, com relao ao museu, significa transversalmente, educar. O museu deve educar vrios pblicos, pois vivemos na poca da educao continuada. O papel do museu, nos dias de hoje, agregar o passado com uma perspectiva de futuro. As concepes de museu e de museologia, que embasam o paradigma museolgico contemporneo, podem ser considerados como novos horizontes.

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    2 UM PERCURSO MUSEAL E HISTRICO

    2.1 INTRODUO

    Apresentamos neste captulo um panorama da Museologia e de como ela vem se constituindo. Optamos por uma separao entre teoria, conceitos e prticas, visando clareza e objetividade na leitura.

    Examinaremos alguns dos documentos que so os principais marcos da Museologia, optando por: Rio de Janeiro, 1958; Santiago do Chile, 1972; Quebec e Mxico, 1984; e Caracas, 1992. Esses so documentos que resultaram em cartas e moes fundamentais na sistematizao da Museologia.

    O recorte temporal tem incio na data da Revoluo Francesa (1789), marco histrico, com a formao dos Estados Nacionais. A criao dos grandes museus nacionais, na forma como chegaram at hoje, pelo menos em essncia, fruto da ideologia da revoluo.

    Examinamos a chegada da Famlia Real de Bragana (1807) porque, com essa famlia, chegaram os, hoje chamados, equipamentos culturais: a imprensa, a biblioteca, o Jardim Botnico e os museus. A Histria dos museus brasileiros tem incio com esse episdio. As experincias, com formas alternativas de organizao museal, tm incio com o movimento que problematizou a questo tradicional x novo na dimenso terico-metodolgica. Por fim, o mais antigo museu gacho e a sua formao no perodo Republicano Positivista.

    Os dois vetores para o exame dos paradigmas referentes a museologia, abordados nesta dissertao - paradigma tradicional e paradigma contemporneo -so temas recorrentes dos profissionais da rea. A originalidade e o ineditismo que imprimimos nesta investigao est na anlise sociolgica amparada pela sociologia do conhecimento.

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    2.2 MUSEOLOGIA, TEORIA E PRTICAS

    Para alguns profissionais, a Museologia uma disciplina cientfica, para outros, uma cincia em construo. De qualquer forma, tanto como uma ou como outra, , por certo, uma rea do conhecimento. Podemos afirmar que a base em que so gerados os conceitos para os museus atuarem com qualidade e eficincia.

    A publicao de documentos em carter regular desde 1978, por parte do ICOFOM1, foi de total importncia para que a Museologia, como um campo de conhecimento, tivesse se estabelecido com definies, metodologia e sistema determinado. A formulao desse sistema viria a legitim-la como disciplina universitria tendo sido um dos objetivos perseguido pelo ICOFOM, segundo Suely Cervolo

    Paralelamente aos aspectos formativos havia a faceta propriamente cientfica. Para fundament-la, Z. Z. Strnsk buscou inspirao na Teoria Geral dos Sistemas, (concebida pelo bilogo Ludwing von Bertalanfly), procurando demonstrar as vantagens dessa aplicao - um modelo terico ento contemporneo da moderna cincia - aos museus. Os resultados apontavam no seu entender, o traado da Museologia como cincia especial e independente, possibilitando observar os museus em relao com o meio e no mais isolados em si mesmos, ou seja, a realidade do museu como um todo (CERVOLO, 2004, p.262).

    A autora analisa a formao da teoria museolgica cujos modelos inspirados na cincia contempornea podero ter critrios prprios. Os estudos sobre a teoria da Museologia, porm, no se restringem ao ICOFOM. As associaes mais antigas, como a britnica Museums Association (1889) e a norte-americana American Association of Museum (1906), por sua vez, assim como o comit ligado ao ICOM2 e UNESCO, tm ultrapassado as fronteiras geogrficas e demonstram preocupao com aspectos profissionais de formao, e com o aspecto cientfico.

    O Brasil recepciona e respeita as determinaes internacionais atravs do ICOM, diviso Brasil, sendo que o associado aceita respeitar o Cdigo de tica do

    1 International Committee for Museology (Frum internacional para o debate museolgico).

    2 International Council of Museums, criado em 1946, Organizao No Governamental ligada UNESCO, ONU.

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    profissional e a Deontologia deste organismo pode ser constituda por figura fsica ou jurdica. No entanto, ressaltamos que pequeno o nmero de tcnicos das instituies museais do Rio Grande do Sul que so associados a entidades da categoria, mesmo que estejamos tratando de uma profisso regulamentada3.

    Constata Peter van Mensch (1983), poca presidente do ICOFOM, que, nos anos 80 do sculo XX, desenvolvia-se uma viso mais apropriada da Museologia em vrios locais, como: Unio Sovitica, Tchecoslovquia e Repblica Democrtica Alem. A institucionalizao do ICOFOM propicia a reunio e sistematizao da produo destes pensadores dispersos. Ressalta que, desde os anos 1960, vinha acontecendo, em pontos distantes do mundo, um estoque de teoria museolgica com o objetivo de desenvolver e firmar a museologia como uma disciplina cientfica. O principal objetivo para a criao do ICOFOM foi alcanado; mas, mesmo assim, at que a museologia fosse aceita como cincia pelo ICOM, passaram-se alguns anos. Depois de observarem muitos simpsios, seminrios nacionais e internacionais e publicaes, em 1980, os membros do comit declararam que, tendo por base a teoria da cincia, ela uma disciplina cientfica em estgio embrionrio (CERVOLO, 2004, p.250).

    O grupo de estudos originalmente teve o objetivo de fazer do museu um objeto de estudo e legitim-lo como disciplina acadmica. Acontece que esse objeto de estudo deslocou-se de uma museologia de museus para uma relao especfica do homem com a realidade, concepo de Zbynek Z. Stransk e Ana Gregorav. Na presidncia de Tomislav Sola, o comit defendeu, em 1982 em reunio do ICOFOM em Paris, uma abordagem ainda mais abrangente que a dos colegas: a Museologia abrange todo um complexo de teoria e prxis que envolve a conservao e o uso da herana cultural e natural (In, MOURA SANTOS, 1996, p. 92). Essa uma definio bem clara e Moura Santos ressalta que Sola usa o conceito de herana em um sentido amplo.

    Antes do ltimo quartel do sculo XX, dizia-se que a museologia era a cincia de organizar os museus. Waldisa Rssio Camargo Guarnieri4, museloga

    3 Lei n 7.287, de 1984, regulamenta a profisso de Muselogo (ver mais na p. 13).

    4 Ser citada, daqui em diante, como Waldisa Rssio, porque assim era conhecida.

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    brasileira desaparecida em 1991, definiu o objeto de estudo da museologia. Para ela, o fato museal o objeto da museologia e a relao que se estabelece entre o homem (sujeito) e o objeto (bem cultural) num cenrio denominado museu ou fora dele. O fato museolgico a relao profunda entre o homem conhecedor e o objeto que parte da realidade, a qual o homem pertence e sobre a qual ele age. Essa relao compreende vrios nveis de conscincia [...] (RSSIO, 1978, p.4).

    Como uma cincia no nascedouro, com proposta interdisciplinar, a Museologia tomou emprestadas as metodologias das cincias do homem e da sociedade e ficou atrelada s Cincias Sociais e Filosofia. Era necessrio saber seus limites e fronteiras para evidenciar as inter-relaes com outras disciplinas, entre elas a Filosofia do Conhecimento, a Antropologia Social e Cultural, a Cincia do Ambiente, as Cincias Polticas e a Cincia da Informao (CERVOLO, 2004).

    Nos relata Waldisa Rssio (1978) que, Ana Gregorov, museloga russa, referncia entre os autores europeus que debatem e praticam a Museologia, atravs de um raciocnio analgico, afirma que a medicina no a cincia dos hospitais, a educao no pensa a escola e a Museologia no a cincia dos museus. Partindo desta perspectiva, a autora defende a Museologia como a cincia que estuda a relao especfica entre o homem e a realidade. Scheiner, na mesma linha argumentativa anterior, como membro do comit do ICOFOM, define:

    A museologia a cincia dos processos complexos de coleo, preservao, deduo, pesquisa, exposio etc. A comunicao dos objetos mveis autnticos, os quais, como fonte primria, comprovam o desenvolvimento da natureza e da sociedade, propicia tambm a pesquisa e transmisso da investigao e do conhecimento desses objetivos, bem como da experincia humana (SCHEINER, 1989, p.63).

    Scheiner exclui, explicitamente, o patrimnio imvel como objeto de estudo da Museologia. Ns pensamos que o conhecimento mnimo dos postulados, ou teorias deveria ser requisito para a prtica de todos que desempenham funes nas organizaes museais.

    Questes relativas s outras funes museais, como a preservao, a investigao e a comunicao dos testemunhos culturais e do meio ambiente,

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    interessam Museologia, porque esses testemunhos so representaes da memria, so suportes de informaes (CHAGAS, 1996, p.181). Esse autor trabalha ainda a questo da memria. Para ele, a memria no museu uma construo e, portanto, poder ser usada para a libertao ou para a represso. A memria no o passado, mas sim a sua representao, seleo e esquecimento. A definio mais atual encontrada do que seja o museu cunhada por Chagas (2005):

    Na forma como hoje so compreendidos, os museus operam com trs funes bsicas: a investigao, a preservao e a comunicao de bens culturais (representaes de memria). Estes bens culturais ao serem submetidos a um processo de musealizao de longa, mdia ou curta durao, adquirem novos valores, passam a ter o poder de representar, ganham uma dimenso simblica. Transformados em documentos os bens culturais musealizados ganham uma aura de autoridade e de autenticidade, assumem o poder de testemunhar e em muitos casos o valor de cultura passa a ser confundido com valor de culto (CHAGAS, 2005, p.16).

    O valor de culto significa a sacralizao dos objetos, podendo significar, igualmente, elitizao. A diversidade museal nos trinta ltimos anos foi ampliada. Reconhecer que essa ampliao contou com o aporte terico e prtico da nova museologia importante. No entanto, o que surgiu como avano e como convite para novos caminhos, tambm se conformou e se viu prisioneiro de suas prprias teias e armadilhas (CHAGAS, 2005, p.17). Abordando o conceito de vanguarda, geralmente associado s artes e bastante controverso, Chagas (2005) conclui que o que era vanguarda, h alguns anos, hoje est ao lado de todo o cabedal terico e prtico tradicional dos museus.

    2.2.1 Os novos rumos da museologia

    Resultado de reflexo conjunta de profissionais da museologia, cinco dos importantes documentos desta rea foram produzidos no Continente Americano, no sculo XX, e so eles: O Seminrio Regional da UNESCO sobre a Funo Educativa dos Museus, realizado no Rio de Janeiro em 1958; a Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972; o Atelier Internacional da Nova Museologia, na cidade de Quebec, no Canad, em 1984; a Reunio de Oaxtepec, no Mxico, em 1984; e a Reunio de Caracas, na Venezuela, em 1992, todos elaborados em conjunto com o Conselho

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    Internacional de Museus - ICOM. Os principais documentos da rea possibilitam-nos avaliar o desenvolvimento das discusses.

    O documento do Rio de Janeiro (1958), indicando que o museu deve ser uma extenso da escola para a educao formal, foi um importante passo. At ento, somente as colees demandavam o fazer museolgico. O seminrio carioca recomenda que o museu volte-se para fora, para educar. Mostra preocupao com a exposio museolgica e com os recursos didticos usados. poca, levantou problemas pertinentes. Depois de cinco dcadas, com as transformaes sociais ocorridas, esse documento tornou-se obsoleto.

    A UNESCO props uma assemblia para debater a crise aguda dos museus, que, de uma maneira geral, no eram visitados. A Mesa Redonda realizada no Chile, em 1972, traou a fronteira entre a museologia das colees, que caracterizamos como um dos elementos do paradigma tradicional5, e a museologia que percebe a instituio como instrumento de desenvolvimento social, local de aprendizagens variadas e interdisciplinaridade, que caracterizamos como sendo de um paradigma museolgico contemporneo.

    Voltada para a discusso do papel do museu na sociedade, a Declarao de Santiago (1972) resulta de uma reunio interdisciplinar pioneira e levanta a questo da interdisciplinaridade no contexto museolgico. Esse documento prope que a museologia passe a estudar a relao que o homem tem com o Patrimnio Cultural. Introduz a idia do museu-ao, instrumento de transformao social (PRIMO, 2002).

    O documento de Santiago foi o que trouxe as maiores inovaes conceituais no contexto museolgico. A noo de museu integral foi pensada para que esta organizao seja a ponte entre a comunidade e o patrimnio global. No ano de 1984, aconteceram dois eventos significativos, em Oaxtepec, no Mxico, e a reunio de Quebec, no Canad. O documento sntese da reunio do Mxico reafirma vrias das questes apontadas em Santiago. Ampliando-se a noo de patrimnio cultural,

    5 Paradigma tradicional, museu estruturado institucionalmente que atua a partir de colees fechado em si mesmo.

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    a museologia reafirmada como integrada ao contexto social, econmico e poltico, por isso, deve atuar associada s descobertas e avanos cientficos. Considera indissolvel a relao territrio patrimnio comunidade. Na anlise dos dois documentos (Mxico e Quebec), fica clara a fissura entre o paradigma tradicional e o movimento para uma museologia contempornea. Para Judite Primo, museloga, professora do curso de mestrado da Universidade Lusfona de Lisboa, em Quebec criada a dicotomia entre a nova museologia e a museologia tradicional. Na opinio de Primo, a Declarao de Quebec tem a primazia de institucionalizar o movimento, porque ele vinha acontecendo h algum tempo e as novas formas de museologia, propostas so: Ecomuseu, museu de vizinhana, museu comunitrio, museu de rua e outras (PRIMO, 2000).

    Os adeptos da nova corrente criam, em 1985, o MINOM - Movimento da Nova Museologia. Este movimento contesta o saber isolado da museologia tradicional, postulando a interdisciplinaridade e a reflexo crtica. Dissemina a idia de uma museologia direcionada para a sociedade em oposio quela museologia tradicional de colees.

    A museologia deve procurar, num mundo contemporneo que tenta integrar todos os meios de desenvolvimento, estender suas atribuies e funes tradicionais de identificao, de conservao e de educao, a prticas mais vastas que estes objetivos, para melhor inserir sua ao naquelas ligadas ao meio humano e fsico. Para atingir este objetivo e integrar as populaes na sua ao, a museologia utiliza-se cada vez mais da interdisciplinaridade, de mtodos contemporneos de comunicao, comuns ao conjunto da ao cultural e igualmente dos meios de gesto moderna que integram seus usurios. [...] Neste sentido, este movimento, que deseja manifestar-se de uma forma global, tem preocupaes de ordem cientfica, cultural, social e econmica (DECLARAO DE QUEBEC, 1984).

    As resolues da Mesa Redonda do Chile no eram seguidas, principalmente, pela ala jovem dos muselogos que estava insatisfeita com o monolitismo das instituies e a marginalizao das experincias que vinham ocorrendo, ou, pelo menos, estavam em pauta, desde 1972. A Declarao de Quebec no traz grandes novidades em relao reunio de 1972 no Chile. Sua importncia, porm, deve-se a ter reconhecido o movimento pela Nova Museologia, que propunha uma prtica mais ativa, socializadora e dialgica.

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    Entre outros preceitos, o museu integrado proposto em Quebec um instrumento para o desenvolvimento comunitrio, com uma perspectiva dinmica e aberta ao futuro, gerado em funo do patrimnio coletivo de uma comunidade, no com um fim em si mesmo, mas com um significado em razo do papel que possa ter ao servir essa comunidade especfica, so reiterados pela Declarao de Quebec e que vinham desde Santiago, porm, no haviam alcanado as prticas museais. A estava um outro ponto do descontentamento da comunidade museolgica. Nos anos posteriores, surgem vrias tentativas de trabalho com os citados princpios de Quebec. Porm, as novas prticas museais a despeito de inmeros projetos e iniciativas, no lograram concretizar-se satisfatoriamente na Amrica Latina (ARAUJO E BRUNO, 1995).

    Dentre os muselogos, com produo acadmica e bibliogrfica, que contribuem para o surgimento de um pensamento museolgico brasileiro, citamos: Mrio Chagas, UNIRIO; Maria Clia Teixeira Moura Santos, UFBA; Maria Cristina Bruno, USP. Os trs compreendem a museologia como nica e deixam claro o que pensam sobre a existncia concreta de uma nica museologia, com diferentes formas de trabalhar e apresentar os museus.

    Na dcada seguinte, nova reunio dos associados ao ICOM, desta vez em Caracas. Ao final do encontro, na Declarao de Caracas (1992), aparece o reconhecimento de que, seja qual for a natureza do seu acervo, o museu atue fundamentalmente como canal de comunicao. Na perspectiva dessa declarao, Maria Cristina Bruno argumenta que necessria a redefinio das prticas museogrficas tcnicas expositivas junto a um repensar sobre o conhecimento produzido nas [...] diversas reas cientficas existentes nos museus. Este conhecimento se insere no processo de construo da Museologia como Disciplina (ARAUJO E BRUNO, 1995, p.47).

    Maria Clia Teixeira Moura Santos diz que na Museologia o conhecimento se forma com a trade estabelecida pelo sujeito que conhece, o objeto do conhecimento e o conhecimento como produto do processo cognitivo (MOURA SANTOS, 1994).

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    Mrio Chagas compartilha essa noo com Moura Santos. Para ele, a Museologia se forma a partir do trinmio identificado e denominado por ele de ternrio matricial, por ser matriz de anlise conceitual (CHAGAS, 1990). O que, segundo o mesmo, movimenta esse ternrio matricial a relao a estabelecida: entre o homem/sujeito e o objeto/bem cultural num espao/cenrio.

    Houve, com a criao do movimento da Nova Museologia, em 1985 e alguns anos mais, uma radicalizao entre o paradigma tradicional, que visava a educao como principal objetivo, e as novas propostas, pois pensavam que haveria uma espcie de terra arrasada - uma revoluo - de to maravilhados que todos estavam com as novidades; porm, no foi isso que se viu, muito pelo contrrio, a tradio hegemnica mostra a sua fora e permanece. As equipes incorporam apenas alguns elementos novos, de forma que difcil determinar os limites entre as propostas e eles vo se tornando de contornos borrados ou menos definidos.

    O francs Andr Desvalles tem uma posio particular e interessante sobre o assunto de haver uma ou duas museologias. Para ele, o movimento de 1984 nada mais do que um retorno museologia. Na sua abordagem a museologia retorna a alguns princpios que havia deixado para trs e que tinham envelhecido (DESVALLES, 1989).

    A trajetria dos conceitos nos documentos atesta o fortalecimento da museologia. A sociedade se transformou e a Museologia, como cincia e atravs dos seus tcnicos, gerou toda uma discusso terica sobre a velha e a nova museologia. Uma forte tendncia atual a vertente que converge para uma museologia social, com a principal caracterstica da valorizao do homem como sujeito participativo da sua realidade. Devido atuao do ICOFOM, prosseguem as discusses em torno da construo do conhecimento na museologia.

    Propostas lanadas pelo movimento, institucionalizado em 1984, da Nova Museologia so hoje, em parte, incorporadas por outras correntes contemporneas, como territrio, patrimnio, comunidade participativa e o entendimento do museu como ao para um eco-desenvolvimento (PRIMO, 2002). As premissas do paradigma contemporneo, que preconiza um museu integral e integrado com a

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    sociedade, construdo conjuntamente com a sociedade e no apenas para a sociedade, possuem vrias faces, tendncias ou, ainda, possibilidades, por exemplo: indgenas, parceiros dos tcnicos, participando de todo o processo da criao e montagem de ambincias (dioramas) que iro representar uma caada na mata na exposio Nativos amazonenses. Podemos ainda fazer referncia a outros exemplos: nibus-museus e estandes do museu em uma feira levando parte do museu at o pblico; a experincia do eco-museu de Itaipu preservando a histria e o entorno circundante barragem de Itaipu.

    Os documentos, moes e cartas representam momentos chave e todos tiveram, a seu tempo, a sua importncia; mas ressaltamos que, na grande maioria dos casos, a integrao preconizada na capital Caracas entre o museu e a sociedade, parece estar somente em nvel de discurso. Acreditamos que, com deciso poltica, essa integrao seja possvel e consider-la como uma utopia talvez seja radical, mas est muito longe de ser regra geral. Ao tentarmos um olhar abrangente, vemos os museus de tipologia histrica, os de cidade e os conhecidos como museus de cotidiano mergulhados em problemas de toda ordem. Pensamos que os museus de cincias e de artes em geral so, privilegiados e preferimos, por isso, deix-los parte.

    Alguns dos princpios de Quebec surgem isolados aqui e acol. Porm, as novas prticas museais, a despeito de inmeros projetos e iniciativas, no lograram concretizar-se satisfatoriamente na Amrica Latina (ARAUJO E BRUNO, 1995).

    Relativamente ao documento da ltima dcada do sculo XX, a Declarao de Caracas do ano de 1992, reunio que encontrou os museus latino-americanos imersos em crises, tanto conjunturais como estruturais, a inovao fica por conta da determinao da misso primeira do museu que a comunicao com a sociedade e tambm pela a questo da gesto com qualidade em museus. O reconhecimento de que, seja qual for a natureza do seu acervo, o museu deve atuar fundamentalmente como canal de comunicao com a sociedade uma recomendao importante, porm o alargamento do conceito de museu integral, da Mesa Redonda de 1972, para museu integrado ao social ou comunidade, fica, a nosso juzo, no mesmo patamar de importncia.

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    2.2.2 O Muselogo Brasileiro e sua Formao Acadmica

    Em 1932, Gustavo Barroso criou no Brasil o curso de Museus, que funcionava junto ao Museu Nacional. Foi criado, mais ou menos, mesma poca do curso de Cincias Sociais e habilitou tcnicos para todo o pas at o final dos anos 1970. Quando foi fundada a UniRio, em 1979, foi transferido para essa universidade que desde ento continua a formar muselogos.

    A Mesa Redonda de Santiago do Chile 1972, percebendo a carncia de formao de pessoal no mbito da Amrica Latina, recomendava a criao de cursos de nvel secundrio e universitrio para a formao de pessoal.

    Na Bahia, o curso de Museologia foi instalado na Universidade Federal (UFBA) em 1970. Com cargas de disciplinas na rea das Cincias Humanas, esse curso foi reformulado no final do sculo XX e continua prestando servios sociedade na formao de agentes qualificados.

    O ensino da Museologia no Brasil, nos anos 80 e 90 do sculo XX, estava assim constitudo: dois cursos de graduao no Rio de Janeiro (UniRio e Estcio de S), um na Bahia e outro em So Paulo. O curso mantido pela FESP/SP (1985) foi criado pela experiente museloga Waldisa Rssio e questionava antigos conceitos, tendo sido o primeiro a sugerir novos caminhos terico-prticos. O Instituto de Museologia de So Paulo firmou os seguintes princpios:

    1. A Museologia uma cincia do homem e da sociedade; 2. O conhecimento museolgico , no mnimo, um conhecimento cientfico e deve

    ser ensinado com o rigor do pensamento (cientfico) inerente s cincias; 3. A Museologia constitui um campo especfico do conhecimento (lgico, racional,

    sistmico) que no prescinde de sua prtica;

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    4. A Museologia, como cincia, ocupa-se do FATO MUSEOLGICO (dentro de um processo) e usa o mtodo INTERDISCIPLINAR;

    5. O ensino (a formao) que prope o Instituto se processar interdisciplinarmente, como interdisciplinar o trabalho em museu (base institucional necessria).

    Esse curso tcnico da FESP/SP (1985) no teve continuidade. Hoje, no Rio de Janeiro, funciona somente o curso de graduao na UniRio. A Faculdade Estcio de S encerrou a graduao nos anos 90 (sculo XX). Em So Paulo h um programa de especializao na USP. Nessa mesma universidade houve mestrado, o nico do pas, mas como ocorrera com o curso tcnico, no teve continuidade.

    No Brasil, ao redor de 1980, teve incio a valorizao de novas profisses. No ano de 1984, quando a conjuntura brasileira era um regime poltico de exceo e setores da populao, estudantes, trabalhadores, polticos e movimentos sociais, entre outros, saam s ruas para os panelaos, buzinaos e comcios pelas Diretas J, o Congresso votou a Lei n 7.287 que regulamentava a profisso de Muselogo.

    Todos os profissionais com formao universitria, em cursos de reas afins, como: histria, jornalismo, letras, pedagogia, que nessa data estavam desenvolvendo seus trabalhos em museus, dormiram com uma profisso e acordaram com duas: acordaram como muselogos provisionados pela lei. Salvo o perodo de exceo, previsto na Lei e que vigeu de 1984 at os posteriores cinco anos, a titulao era obtida cursando graduao ou mestrado. Os cursos de curta durao, como as especializaes, preenchem lacunas, cumprem a tarefa proposta que a de formar tcnicos. No substituem uma formao de cursos mais longos com currculos mais abrangentes, inclusive, como comentado antes, no definem a profisso.

    O nmero de unidades museolgicas no Brasil hoje de cerca de 2000, sendo 75% pblicos e 25% privados (dados do MINC/Museu/2004). A relao museus, cursos de formao muito baixa. A carncia dessa rea ilustrada pelo fato de que a USP, universidade modelar do maior estado brasileiro, no firmou a formao de profissionais (SEPLVEDA SANTOS, 2000). As regies Sudeste e Sul

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    possuem 70% do total de museus brasileiros, o Estado de So Paulo tem 366 instituies museolgicas e o Rio Grande do Sul, 3516.

    Em Santa Catarina, na Universidade Federal (UFSC), trabalham com curso de ps-graduao no Ncleo de Estudos Museolgicos (NEMU) desde 2002. H poucos anos, a UNISINOS esteve com a grade curricular formada para o primeiro curso de graduao em museologia, mas desistiram. Participamos como convidados da apresentao do projeto, infelizmente a realizao ficou somente nas reunies e atas. Na UFRGS, especificamente na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao FABICO est na pauta a criao de uma graduao; enquanto isso no sai, existe a especializao. A especializao na UFRGS vinculada ao Instituto de Artes da universidade, possui um vis curricular, dirigido aos museus de artes.

    Na PUCRS, em 1991, a Especializao em Museologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH) teve uma nica turma, com as seguintes disciplinas que fizeram parte do currculo: Tcnicas de Comunicao para Museus; Teorias da Cultura; Introduo ao Marketing Aplicado a Museus; Princpios de Administrao de Museus; Metodologia da Pesquisa em Museologia; Museografia; Museologia; Cultura Brasileira; Antropologia e Comunicao; Cultura e Comunicao.

    Foi criado em de abril de 2006 o mestrado na UniRio. Fica sendo o nico curso de ps-graduao no Brasil. No mesmo ano 2006, no Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Pelotas fez chamada para o vestibular da primeira turma de graduao em Museologia. , pelo menos, um sinal de movimento, tanto o mestrado fluminense, como a graduao gacha.

    Aps a formao acadmica, apresenta-se a questo do mercado de trabalho. A maioria dos profissionais atua sem conhecimentos suficientes das especificidades do campo da Museologia e da Cultura. Nas instncias federal, estadual e municipal, os profissionais atuam em cargo em comisso isto , constituem-se de cargos de natureza no tcnica obrigatoriamente.

    6 Poltica Nacional de Museus: Relatrio de gesto 2003-2006. MinC/IPHAM/DEMU, 2006, e (www.museus.gov.br).

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    Para a qualificao das equipes funcionais, foram realizados dois concursos para funcionrio tcnico em cultura; um estadual, em 1992, outro municipal, em 1994 (o primeiro, aproveitou a maioria dos egressos da especializao da PUC/1991). Nesse provimento de quadros tcnicos que, talvez, encontre-se o n grdio ou pelo menos um dos ns da questo que nos preocupa. No houve outros concursos pblicos depois desses que citamos. O concurso da Prefeitura Municipal de Porto Alegre teve o objetivo de provimento de 20 vagas na rea da Cultura e nomeou apenas um tcnico em museus.

    Acreditamos que so raras as instituies museais em que h preocupao terica e metodolgica. Outro problema o acesso a uma boa bibliografia. H bons livros em ingls, o que dificulta o estudo, embora, com a facilidade das redes da INTERNET, tenhamos oportunidades de acesso a bibliotecas especializadas. Uma exigncia dos cursos de formao certamente a interdisciplinaridade, inerente ao gestor cultural7. Tudo isso aponta para uma necessria avaliao da profissionalizao, da capacitao qualitativa dos profissionais da rea da cultura em geral e dos museus em particular, porque h necessidade notria de profissionais com conhecimentos em questes econmicas, jurdicas e administrativas.

    Sabe-se do fortalecimento do Terceiro Setor8 neste incio de milnio. A formao do profissional passa a ser responsabilidade do poder pblico e do privado e ambos deveriam suprir essa lacuna. H indicadores de que a demanda de profissionais qualificados existente. As leis de incentivo cultura, nos anos 1990, foram reestruturadas e os profissionais no esto habilitados para fazer projetos e preencher formulrios complicados. Aparece nas equipes provisrias que so arregimentadas, ao redor de um projeto especfico, a figura do produtor cultural, uma espcie emergente de profissional no Brasil no novo mercado da indstria cultural. O gerenciamento com base em planejamento estratgico passa da administrao para a cultura, o que acarreta a necessidade de profissionais com

    7 A este respeito ler CUNHA, Maria Helena. In: BRANT, Leonardo. Polticas Culturais. vol. 1. So Paulo: Manole, 2003.

    8 O Terceiro Setor constitudo por organizaes privadas sem fins lucrativos que geram bens, servios pblicos e privados. Tem como objetivo o desenvolvimento poltico, econmico, social e cultural no meio em que atuam.

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    outro perfil. Havia perspectivas de mudanas no cenrio cultural brasileiro, tanto no que se refere produo como ao consumo cultural.

    2.3 OS MUSEUS COMO ORGANIZAO SOCIAL, ALM DE CULTURAL

    No final do sculo XVIII, fortaleceu-se a noo de que os poderosos nobres no eram os nicos donos das riquezas. Com a ruptura social que resultou da conjuntura da Revoluo Francesa (1789), foram destrudos muitos monumentos. Antes de uma destruio maior, para salvaguardar as riquezas artsticas (pelo temor de pilhagens), foram criados espaos neutros, que abrigariam o esplio da nobreza at ser encontrada uma soluo. Nasceu, assim, na Frana, a instituio museu, como a conhecemos (GONALVES, 2004).

    A Histria Contempornea considera a Revoluo Francesa (1789) o marco entre a sociedade feudal e a sociedade moderna. Alguns anos antes, as colnias inglesas da Amrica do Norte proclamaram independncia da metrpole (1776). Havia outros processos histricos paralelos importantes, podemos citar a Inglaterra, que era a sede de uma revoluo sem armas, que conhecemos como Revoluo Industrial, entre outros movimentos sociais da poca.

    A nacionalizao do patrimnio francs deu-se com o confisco dos bens do Clero e da Coroa. No perodo regido pela Conveno, Diderot publica um esquema em detalhes para a criao de um museu nacional no nono volume da sua Encyclopaedia (COELHO, 1999). Os bens de carter cientfico, histrico e artstico, pertencentes nao, foram colocados disposio do povo. Esses patrimnios, antes privilgio de poucos, deveriam ter novas funes. As riquezas artsticas, que simbolizavam a expropriao que a nobreza e a monarquia haviam exercido ao longo dos sculos sobre o povo, eram vistas por esse povo com um sentimento negativo. Por outro lado, os nobres de menor grandeza percebiam as artes em geral como tesouros de usufruto seus, e tambm lanavam olhares reprovadores, com cimes, dessa partilha (SUANO, 1986).

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    Seria, ento, a Revoluo Francesa que abriria, definitivamente, as portas desse patrimnio ao pblico em geral. Na transio, propriamente dita, desse mundo medieval para o moderno, o Palcio de Versalhes morada da famlia real francesa at a Revoluo e ele prprio smbolo da nobreza foi destinado sede do Museu do Louvre (1793), reunindo importante acervo artstico (JULIO, 2002). Esse embrio do museu moderno se irradia desde a Frana, mas o patrimnio histrico na Europa consagrou-se bem mais tarde, nos anos 50 do sculo XIX, como se pode depreender do texto de Ribeiro (2005):

    A noo de patrimnio envolve a construo de identidades coletivas e nacionais a servio da consolidao dos Estados-naes modernos que, conforme Ribeiro (2005) segundo Maria Ceclia Londres Fonseca, apresentavam as seguintes funes simblicas: reforar a noo de cidadania, no sentido de utilizao de bens em nome do interesse pblico; identificar smbolos que representariam a coeso nacional; os bens patrimoniais constituiriam o mito de origem da nao, objetivando a legitimao do poder, a conservao de bens se justificaria pelo alcance pedaggico, para instruir os cidados (1997:59-60). Para ela, a sistematizao das aes de preservao foi possvel porque atingiam um interesse poltico-ideolgico, alm do cultural (RIBEIRO, 2005, p.44).

    Conforme Ribeiro (2005), a ideologia dominante na poltica dos dirigentes est nos interstcios da constituio da sociedade moderna, do nascimento do indivduo e da instituio museal, pois os grandes museus das capitais europias nasceram na mesma poca em que as naes modernas. Depois do Louvre, hoje gerido pelo Estado francs, nascem o Museu de Viena, o Museu Britnico e o Museu Nacional de Culturas Populares no Mxico. As transformaes no mbito do poder trazem a participao dos segmentos sociais, antes excludos, na rea cultural. Criar museus significava, naquele momento, educar o povo, mesmo que neste momento educar significasse permitir a visitao. Os grandes museus nacionais nascem voltados para a educao do povo, essa era uma preocupao nova para a sociedade.

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    Quando passou a ser conhecido o Novo Mundo, com as grandes navegaes, o processo cultural iniciado na Renascena europia ainda estava em desenvolvimento. Foram necessrios cerca de trs sculos para que o Brasil viesse a ter o seu primeiro museu.

    Ao transferir-se para o Brasil em 1807, a Corte fez-se acompanhar por uma equipe de artistas, desenhistas, pintores e botnicos que iriam documentar o Novo Mundo e a produo, ou parte dessa produo, foi canalizada para o Museu Real. No ano de 1808 foi editado o primeiro jornal9, abriram-se teatros, bibliotecas, academias literrias e cientficas e foi criado o Jardim Botnico.

    Entretanto, Fausto (2000) alerta para a falsa idia que poderamos formar sobre as transformaes ocorridas com a presena da Corte. Muita coisa mudou, porm a marca do Absolutismo estava presente. O jornal, por exemplo, tinha um carter quase oficial, submetido, como outras publicaes, a uma comisso de censura incumbida de examinar os papis e livros para que nada se imprimisse contra a religio, o governo e os bons costumes (FAUSTO, 2000, p.127). De qualquer forma, a vinda da Famlia Real teve impacto na rea cultural brasileira. Por iniciativa de D. Joo VI, foram criados, no Rio de Janeiro, os museus da Escola Nacional de Belas-Artes, iniciado com a Escola Real de Cincias, Artes e Ofcios em 1815, e o Museu Real em 1818. O Museu Real brasileiro nasce inspirado nos museus europeus, que eram dedicados Histria Natural. O Museu Real no Rio de Janeiro, o Museu Goeldi em Belm do Par (1866) e o Museu Paulista (1895), os trs foram criados para abrigar as colees da exuberante e extica natureza tropical.

    O Museu Nacional da Quinta da Boa Vista est sediado no antigo Palcio Imperial, morada da famlia real at a Proclamao da Repblica. Na Frana, a morada da famlia real se transformou no primeiro museu nacional; no Brasil acontece algo similar. Essas duas instituies so apontadas por Chagas (1996) ao relacionar memria e poder. No se pode comparar processos histricos, visto que Frana e Brasil so pases completamente diversos. Na Frana a revoluo trazia a

    9 A produo de 1808 at 1822, Imprensa Rgia, classificada como obra rara nas normas bibliogrficas.

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    transformao completa da estrutura da sociedade e das classes sociais. A ideologia e a poltica tinham novos conceitos, como liberdade e igualdade. A corte portuguesa era conservadora e atrasada em relao a outros pases europeus, como Inglaterra e Frana, para citar apenas dois. Ela imprimiu esse conservadorismo Colnia.

    Os fundamentos das organizaes culturais brasileiras se encontram no Perodo Imperial. O cientificismo e o racionalismo eram duas caractersticas do iderio das instituies, decorrentes da ideologia da nobreza no poder. A nobreza portuguesa, para Rssio (1979), assumira ares burgueses.

    A origem aristocrtica do museu, dado seu surgimento antes da Independncia e da Repblica, um tema amplamente discutido pela museloga brasileira Waldisa Rssio. Para a autora, essa origem ajuda na compreenso da mentalidade colonial, ou colonizada, que fez parte do paradigma norteador do surgimento do museu brasileiro como instituio. Rssio (1979) questiona se a origem europia e aristocrtica foi superada e conclui que isso talvez ainda no tenha acontecido10. O museu, que no Perodo Imperial era dedicado pesquisa e um benefcio da aristocracia, permaneceu elitista como veremos. Portanto, culturalmente, no existiram mudanas significativas na sociedade da poca, como se v no estudo do socilogo Fernando Henrique Cardoso.

    A sociedade brasileira durante a monarquia, tinha as bases assentadas na coroa, na escravido, e na grande propriedade, porm as cidades j apresentavam um crescimento da populao que mesmo considerando a precariedade da informao censal disponvel, esta populao (livre e escrava) distribua-se entre um conjunto de profisses que indicam j uma relativa diferenciao estrutural e a presena de estratos sociais que no se resumem s categorias sociais fundamentais da estrutura social, isto , aos senhores e escravos.No plano poltico, as crises que antecederam Repblica ligaram-se, em parte s transformaes que vinham ocorrendo na correlao das foras sociais do pas (CARDOSO, 1997, p.17-25).

    A organizao civil da sociedade brasileira configurou-se a partir da proclamao da Repblica. Os senhores de terra e de engenho perderam parte de sua privilegiada posio. O incremento, nas cidades, de profissionais liberais e o aumento da atividade poltica e da burocracia vieram a concorrer para a constituio das foras sociais. Os primeiros anos da Repblica (1889) foram, na verdade, uma

    10 Ver: RSSIO, Waldisa.(1979).

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    continuao do cotidiano imperial, alterando-se apenas a nomenclatura: o que era imperial passa a ser nacional.

    Aos poucos, surgiam as sociedades literrias e cientficas do incio da Repblica. Os museus dessa poca ainda tinham a chancela das provncias, sendo, assim, provinciais. Os museus no Brasil vieram antes dos cursos jurdicos e 120 anos antes das primeiras universidades. Eles eram os nicos centros de investigao cientfica brasileira nesse largo perodo. A rigor, no houve nenhum avano com o advento da Repblica; A Constituio Republicana (1891) no trouxe referncia cultura, no houve alterao na poltica oficial. A referncia cultura veio na segunda Constituio, no ano de 1934, e foi reforada na Carta do Estado Novo de 1937.

    Aps meses de debate, a Constituinte promulgou a Constituio, a 14 de julho de 1934. Ela se assemelhava de 1891 ao estabelecer uma Repblica federativa, mas apresentava vrios aspectos novos, como reflexo das mudanas ocorridas no pas. [...] trs ttulos inexistentes nas Constituies anteriores tratavam da ordem econmica e social; da famlia, educao, e cultura; e da segurana nacional (FAUSTO, 2000, p.351).

    Figurar na Carta Magna no era garantia - e ainda no - de que problemas de natureza social fossem resolvidos, porm indicava a existncia das demandas sociais e a responsabilidade do Estado para com elas. O Estado usou a educao e a cultura para, atravs de um conjunto de princpios filosficos, polticos e doutrinrios que orientam os governos, passar a sua ideologia ao conjunto da sociedade.

    No ano do centenrio da Independncia do Brasil (1922), com iderio de Gustavo Barroso, foi criado o Museu Histrico Nacional. Encerrava-se o tempo do museu enciclopdico, que vigorou do final do sculo XIX at 1920. Esse museu enciclopdico era um local de ensino e produo cientfica e cumpriu o seu papel (ABREU, 2004).

    Os movimentos nacionalistas, de 1922 e 1924, espalharam sua ideologia pelo mbito social e cultural. O Museu Histrico Nacional foi exclusivamente criado para guarda da memria da Nao e constituiu-se no divisor de guas entre os

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    museus enciclopdicos, criados no Brasil pela Famlia Real e lugar para o acervo composto por elementos da natureza; esse museu, dali em diante, deveria cuidar tambm dos objetos representativos da Nao, vinculados idia de brasilidade e identidade.

    Gustavo Barroso, alm de ter organizado esse museu, incorporou poltica do mesmo o discurso nacionalista, conservador e elitista do governo. Segundo Myrian Seplveda dos Santos (2004), esse o motivo da grande maioria da populao ter ficado afastada do museu brasileiro.

    Gustavo Barroso ao criar o Museu Histrico Nacional, foi responsvel pelo estabelecimento de um marco que anunciava uma nova era de museus nacionais no Brasil. O acervo deixava de ser constitudo por elementos da natureza e passava a ser de objetos que representassem a histria da nao. Esta, entretanto, privilegiou o legado da elite brasileira, assim, como seus feitos histricos, mantendo a parte a participao popular. A homenagem tradio e ao Imprio serviu tambm de base ao discurso nacionalista conservador e elitista que Barroso vinha defendendo h alguns anos. Como conseqncia, a grande maioria da populao ficou simplesmente do lado de fora do museu (SANTOS, 2004, p.56).

    Essa pesquisadora sintetiza a idia de afastamento da populao do museu, como j fizera Rssio (1979), de que o museu criado pela corte portuguesa deixara o povo do lado de fora. Notamos pelos relatos que na Repblica isso continua a acontecer.

    Depreendemos que Gustavo Barroso teria sido coerente com a sua poca e a poltica que criou. Em vrios textos que tratam da Histria do Brasil aponta-se que a Repblica foi feita pela elite, o povo no foi chamado para participar, ficou de fora. A Nao era jovem e guardar essa memria, naquele momento, era importante. O que causa estranheza o fato de no ter havido a narrao de outros ngulos dessa histria. Teramos, desde ento, a diversidade social e cultural contempladas nos museus brasileiros, e no, exclusivamente, a histria oficial. Para ser museu, ento, no basta ter uma exposio e se autodenominar como tal? No, mas isso acontece. No interior do Brasil, muitos museus no possuem organizao formal, nem sequer um decreto de criao. Todo museu deveria ter documentao legal, pelo menos um termo de criao, reas ou setores especficos, planejamento, pessoal tcnico e um inventrio do que se encontra sob sua guarda para estar organizado. A organizao

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    bsica, entre outras conseqncias, habilita a instituio para captao de recursos pblicos ou privados. O Relatrio da Comisso Mundial de Cultura e Desenvolvimento Nossa Diversidade Cultural , organizado por Javier Prez de Cullar no ano de 1997, deparou-se com a realidade de que no se conhece o patrimnio para que se possa proteg-lo; sendo que conhecer o primeiro passo para a salvaguarda.

    Conhecer tambm significa identificar o que pode ser salvo, bem como o que deve ser salvo. Porm poucos pases tm inventrios de seus patrimnios culturais que permitam o estabelecimento de alguma ordem de prioridade - e de seletividade. O Conselho Internacional de Museus reconhece, por exemplo, que um grande nmero de museus do mundo ainda no capaz de catalogar completamente seus prprios acervos. O Plano Delta, elaborado na Holanda em 1988, constitui uma iniciativa destinada a preencher esse vazio surpreendente, quando pesquisadores descobriram, atnitos, que poucos museus dispunham de um inventrio adequado (CULLAR, 1997, p.263).

    As conseqncias negativas da falta de inventrios so enormes, como foi constatado pela Comisso. Costuma-se pensar que para termos um inventrio h a demanda do emprego de tecnologia e muitas tabelas e grficos complicados. A divulgao de que uma simples listagem (um rol) serve para sabermos o nmero de artefatos e quais so essas peas, e que isso em essncia um inventrio, poderia ser produtivo. H, naturalmente, outras maneiras mais ou menos sofisticadas de realizar um inventrio.

    No processo, que as chamadas casas de memria social viveram desde o sculo XIX e parte do sculo XX, as exposies eram feitas com todo o acervo, essa prtica transformava a exposio em um confuso amontoado de coisas, que no se comunicavam entre si e muito menos com o pblico, sem uma linha mestra de pensamento, sem um tema e, sobretudo sem uma pesquisa. No museu tradicional no h reserva tcnica11, porque todo o acervo histrico cultural est exposto na nomeada exposio permanente. A reserva tcnica uma sala de dimenso diretamente proporcional ao tamanho do acervo, ou deveria ser. Abriga peas tridimensionais e, a nesse espao, o acervo, hoje se sabe, dever estar com condies ambientais controladas, requisitos de uma poltica de conservao preventiva. O conceito expositivo inerente s exposies permanentes pressupunha

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    a cultura e a histria com narrativa linear, como a narrativa da histria de cunho positivista. A antroploga Regina Abreu destaca:

    O bem cultural autntico como representao metafrica da totalidade nacional desnaturalizado e a sua face ideolgica e ficcional descortinada. Gonalves est atento para a dimenso literria e provisria de ideologias que procuram se firmar como verdades calcadas em noes positivistas da cincia. Neste sentido, apoia-se na reflexo de Hayden White acerca dos mecanismos de produo da moderna historiografia e na fixao da idia presente em toda a histria linear de que todas as naes devam obrigatoriamente ter um passado (ABREU, 2004, p.40).

    O passado, que o museu narra com a histria linear de que fala Abreu (2004), apresenta esse passado sem crtica ao contexto da relao das peas com o homem que as construiu e as utilizou na poca em que elas faziam parte do cotidiano. Posteriormente quando as peas so retiradas do cotidiano e levadas para os museus o trabalho a realizado para as exposies, fragmentado e sem planejamento. Nos museus geridos pelo Estado, h carncia de polticas pblicas que sejam o fio condutor que integre as aes, sejam essas educativas, de lazer ou de entretenimento. A orientao seria dada pela misso e objetivos das organizaes. Integrao essa, tanto na poltica do museu em particular, como em outra mais ampla e abrangente, que seria a poltica cultural do Estado.

    O museu tradicional expe sem abordagem crtica, sem contextualizao. A palavra permanente j diz: trata-se de alguma coisa contnua e constante, isto , sem renovao. O acervo reunido e mostrado sem estabelecer dilogo entre as peas, e, principalmente, sem aprofundar a pesquisa social, cultural e histrica que deve preceder a exposio, desde o momento em que a equipe tcnica elege um tema para expor. O objetivo do museu esgota-se na preservao e exposio para contemplao.

    Os museus contemporneos esto frente a vrios desafios: a insero da tecnologia, a falta de tcnicos, os critrios e parmetros para a questo da educao. Essa educao, pretendida pelos museus, ser para escolares para

    11 Reserva Tcnica um conceito das novas prticas, proteger em espao prprio o acervo no exposto, que aguarda restauro ou futura exposio.

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    vrios e variados segmentos de pblico em diferentes momentos? Como se efetivar essa educao? Essas questes o museu deve responder na prtica.

    Aparecem trabalhos isolados em alguns museus brasileiros, com critrios dos paradigmas contemporneos. So criadas exposies interativas; alguns museus histricos se adaptam com a incorporao de temas desenvolvimentistas; os antigos discursos laudatrios do heri, elementos da histria factual, so trocados e aparecem temas ligados nova historiografia, a chamada Histria do Cotidiano, Micro Histria ou Nova Histria. Entretanto, o que parece comum maioria dos museus apresentar mudana apenas no que se refere ao trabalho expositivo, sem modificar a filosofia de trabalho e a poltica institucional.

    O museu, pensado como ideal para a sociedade do incio do novo sculo XXI precisa unificar os discursos com as prticas, ou seja, com as aes para ento ser realmente um valioso instrumento de comunicao do homem no processo de desenvolvimento. Neste sentido, pensamos que no est havendo um uso eficiente, e eficaz, dessa valiosa instituio. Os profissionais da rea afirmam que, apesar de alguns avanos, os museus continuam carentes de polticas pblicas culturais coerentes e de recursos financeiros. A crise prossegue; talvez a hegemonia do paradigma tradicional seja um dos motivos, se que ele continua hegemnico.

    Do ato de colecionar, dos gabinetes de curiosidades at chegarmos aos museus especializados passaram-se sculos. As artes e as curiosidades dividiram-se e, com o passar do tempo, criaram-se os museus de artes e os museus de histria natural separados (GIRAUDY, 1977). Nas ltimas dcadas do sculo XX, firmaram-se no mundo dois estilos diferentes de museus: um que enfatiza uma rea especfica como arqueologia, biologia; outro que trata de um s tema ou coleo particular. Podemos citar os museus especializados em um nico stio histrico, como as Misses Jesuticas, em So Miguel das Misses, Rio Grande do Sul ou os museus biogrficos, como o Museu Casa de Rui Barbosa e Museu Casa de Santos Dumont.

    Assim veio o museu sendo apresentado sociedade ao longo dos sculos XIX e XX: o museu e sua exposio permanente, com pouqussimo pblico. Uma

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    nica visitao era suficiente para conhec-lo, no deixando motivao alguma para retorno ou segunda visita. O leitmotiv do paradigma tradicional foi a exposio permanente. Com o objetivo de um trabalho dinmico, os temas se pluralizam e surgem novas snteses. Novas investigaes, mesmo que o acervo tenha permanecido igual, pode apresentar outro aspecto ou outro lado da questo. O potencial de informaes que se obtm dos objetos, ou atravs deles, proporciona novas interpretaes, novas leituras.

    O Cdigo de tica Profissional do ICOM12 foi aprovado em 1986 em Buenos Aires. Em 2001, foi revisado em Barcelona, na Espanha, e suas emendas foram aprovadas em Seul, na Coria do Sul, em 2004. No Cdigo encontra-se a definio de museu: um museu uma instituio permanente, sem fins lucrativos, a servio da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao pblico, que adquire, conserva, pesquisa, divulga e expe testemunhos materiais e imateriais dos povos e seu ambiente (ICOM, 2006, p.6).

    Alm dos museus clssicos, tambm stios e monumentos naturais, arqueolgicos e etnogrficos e os stios e monumentos histricos, instituies que conservem colees e exibam exemplares vivos de vegetais e animais, como os jardins botnicos e zoolgicos, aqurios e viveiros, os centros cientficos e os planetrios, os institutos de conservao e galerias de exposio que dependam de bibliotecas e centros de arquivos, os parques naturais, as organizaes nacionais, regionais ou locais que estiverem minimamente organizadas com estatuto, misso e objetivos so museu por definio.

    2.3.1 Museu e Educao, Arte e Experimentais

    Desde o surgimento na Revoluo Francesa, o museu viveu dois sculos com um nico objetivo: educar13. A ligao direta com as escolas para

    12 Traduo organizada pelo Comit Brasileiro do ICOM Conselho Internacional de Museus Gesto 2003-2006. 13 Esta educao baseada na transmisso do conhecimento e da experincia do professor, com o objetivo de produzir aumento de conhecimentos nos

    alunos (BORDENAVE, 1989).

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    complementar a educao formal foi um objetivo perseguido pelo museu durante muito tempo. No ano de 1958, tivemos a reunio do RJ, a educao pode ser propiciada aos seus pblicos, porm no exclusivamente ao pblico de escolares. O museu no escola, deveria pretender antes ser fonte de conhecimento, do que querer educar pelo educar e assim correr o risco de ser usado como veculo doutrinrio. No complexo conjunto de atividades que o museu desempenha, a atividade educativa , h muito tempo, reconhecida internacionalmente. Na Amrica Latina e, particularmente, no Brasil esta atividade ultrapassa a perspectiva complementar s escolas, para assumir um papel central. A questo que se estabeleceu se refere aos processos na educao formal e os limites na escolarizao dos museus. O debate aponta ainda os nveis de sobreposio de competncias. O impasse est estabelecido, o museu, em grande maioria, no faz divulgaes e fica esperando as escolas. Quando e se as escolas manifestam interesse e realizam uma visita, geralmente para um passeio integrado a um circuito onde a visita em um shopping a maior atrao.

    Do Instituto de Geocincias da UNICAMP, a pesquisadora Maria Margaret Lopes, no texto A Favor da Desescolarizao dos Museus, posiciona-se fortemente sobre esse tema, como se nota no prprio ttulo do artigo em que ela argumenta:

    O que norteia nossa reflexo a discusso do sentido mais geral dessa contribuio dos museus educao: manuteno, reforo, extenso da instituio oficial escola e de seus mtodos de ensino e avaliao, que todos, sem exceo, consideramos no mnimo, problemtica; ou tentativa de contraponto, que possa talvez at contribuir para futuros questionamentos da ordem estabelecida, de modo que as crianas e os adultos tenham, acesso a outros horizontes culturais alm da rua, da escola e da tev, quando possvel. [...] contribuio do museu com ou sem, ou apesar da escola para o processo de construo do conhecimento em nossa realidade. Trata-se de os museus serem valorizados como mais um espao, mesmo que institucional e por isso com seus limites de veiculao, produo e divulgao de conhecimentos, onde a convivncia com o objeto realidade natural e cultural aponte para outros referenciais para desvendar o mundo (LOPES, 1994, p.60).

    Deve-se observar que manuteno, reforo e extenso da instituio escola no so metas ou objetivos dos museus. Pode ser que nos museus os trabalhadores percebam que a relao museu-escola seja uma justificativa para a prpria existncia do museu.

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    Os museus experimentais, nos anos 80 do sculo XX, surgem por toda parte e muitos foram somente uma experincia controversa, como o caso do mais citado ecomuseu14 francs em Creusot-Montceau-les-Mines, agrupa dezoito municpios da regio, descentralizado, extra-muros, constituindo uma rede ligada histria social, enfim um museu vivo, reinserido no prprio contexto (GIRAUDY, 1990).

    Alm dos museus tradicionais, os anos 80 e 90 do sculo XX apresentam novos modelos e tentativas experimentais, algumas que no vingaram. O museu sem acervo um exemplo. No Mxico criado o museu sem acervo, com a proposta de expor sucessivamente temas individuais, partes do sistema da cultura popular. Outro exemplo a no exigncia de uma edificao para ter um museu. Aparecem os museus a cu aberto, os ecomuseus, os museus de comunidade.

    O centro cultural George Pompidou, de Beaubourg em Paris, um deles. Construdo com a arquitetura chamada High-Tech, estilo interiormente caracterizado pelo uso de modelos industriais e comerciais. Resposta direta da Revoluo Romntica de 1968 na Frana. Esse centro possui quatro departamentos: biblioteca, exposio de arte moderna, instituto de pesquisa acstica e design. Ponto de referncia permanente da cultura do sculo XX, em vrias partes do mundo, inclusive no Brasil. Foi concebido e inaugurado para ser um espao de contestao cultural francs. Laboratrio de documentao e pesquisa histrica, servios, documentao, colees, exposies e manifestaes. Trs clulas adjacentes vo se ligar s primeiras: clula pedaggica, exposies itinerantes e de fotografia, ligadas documentao e ao acervo. Nos anos 70, sculo XX, era reconhecido como uma grande abertura cultural, no apenas destinado aos iniciados, mas ao grande pblico e isso foi uma novidade.

    Cidades inteiras transformam-se em museus vivos, como Veneza na Itlia, e Ouro Preto no Brasil. O Louvre, o museu francs mundialmente famoso, surpreende o mundo com a pirmide de vidro, e definida por Umberto Eco (1962) como obra

    14 Ecomuseu, maneira de trabalhar onde o conjunto de entorno natural e patrimnio cultural est

    integrado, no h descontextualizao do patrimnio;

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    aberta, obra do passado que sofre uma transformao (um acrscimo para atualizar) mantendo a essncia, pois em caracterstica ela fechada.

    Grandes exposies temporrias e itinerantes, como as dedicadas a Picasso, Matisse e outros Impressionistas (colees fechadas) fazem um circuito internacional arrebatando visitantes aos milhares. Pessoas, que de outra forma nunca veriam vis vis essas obras, tm a oportunidade de conhec-las. As exposies so objeto de muitas crticas, algumas a favor outras contrrias. Inegvel que a exposio um grande show de mdia, com venda de reprodues, vdeos e outros objetos que contribuem para a popularizao daquele artista. Identifica-se aqui a indstria cultural15, fonte no desprezvel de recursos para os museus (COELHO, 1999, p.271).

    Como paradoxo, edificaes espetaculares tornam-se moda. Novos estilos aparecem nas grandes capitais. Antigas edificaes como o prdio que abrigou o Banco do Comrcio, na Praa Senador Florncio, Praa da Alfndega, hoje Santander Cultural, temos aqui dois lados muito claros para serem observados. A instituio bancria, com capital espanhol e misto, quer fazer a sua histria no solo gacho, mesmo tendo adquirido junto com o palcio e o banco, ento Meridional, o acervo histrico, teve por este acervo apenas desconsiderao. Prope exposies de Arte Contempornea. Com grande mdia, freqentes coquetis de abertura de mostras, que devem agradar ao seu segmento de pblico, apresentam a Arte Contempornea do Brasil e de outras origens. Nada mal, se tambm estivesse considerado o acervo da mais antiga casa bancria gacha e a coleo numismtica com peas raras e de valor. O acervo histrico em questo, est em um corredor em precrias condies, empoeirado e sem manuteno. Sinal dos tempos de globalizao.

    A projetao de edifcios espetaculosos para abrigarem museus, que sero atrao certa pela arquitetura, proliferara em vrios pontos do mundo, nos Estados Unidos, Japo, Alemanha e Frana, ou em Sidney, na Austrlia, com a sua pera. O turismo cultural e as artes esto auxiliando cidades ps-industriais como Bilbao na

    15 Expresso cunhada pelos tericos da Escola de Frankfurt, fundada em 1923, Theodor Adorno e Max Horkheimer, significando a produo cultural vinculada a atividades econmicas.

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    Espanha, mergulhadas em uma fama de terrorismo que afasta os visitantes, a encontrarem o caminho para a prosperidade. O projeto de museu Guggenheim do arquiteto Franck Gehry para Bilbao, um modelo de franqueamento. Este modelo dissemina a prtica da franquia, at ento exclusiva da rea comercial, para a rea cultural e irradiando para vrias partes do mundo. No Rio de Janeiro, a sociedade civil organizada foi contra a abertura de uma franquia dessas. O grupo social em questo foi pr um projeto que fosse nosso, brasileiro, e contra pagamento e importao de idias. No Brasil, to rico em criatividade e histria, com os nossos equipamentos culturais carentes, a opinio geral aprovava a idia em si, mas, com produo local e no estrangeira.

    Em verdade, esse modelo foi responsvel pela revitalizao de Bilbao. Polticos e empresrios investiram em infra-estrutura cultural que atrairia turistas e lanaria fundaes para uma complexa economia da indstria de servios, informao e cultura (YDICE, 2004, p.38). difcil um julgamento sem conhecimento detalhado do projeto do Rio. O Rio de Janeiro com sua exuberante beleza natural por um lado e, por outro, com aspectos do Brasil Colnia que se pode perceber nas ruas do centro histrico, so apenas duas dimenses de porqu o Rio merece toda ateno das autoridades governamentais no que for relativo ao Turismo Cultural brasileiro.

    O profissional de museus de arte tem dupla dificuldade: alm do conhecimento da Museologia, ele precisa dominar um conjunto interpretativo sobre arte, para isso deve ter slida formao intelectual (SEPLVEDA SANTOS, 1999). Para grande parte das pessoas museu associado com arte, significa alguma coisa diferente de outros museus de antropologia, de cincias, histricos alm da aura das obras artsticas, pode ser porque pensam que ele no abrigo exclusivamente de coisas velhas. percebido pelas pessoas quase como um templo. Isto uma barreira ao leigo que no o visita, pois considera que a arte algo longe da sua realidade. A arte seria alguma coisa erudita e com acesso s para alguns privilegiados. Nos museus de arte, surge a tendncia de considerar suas colees com valor patrimonial cultural equivalente ao valor patrimonial econmico. A compra e a venda de arte, a exemplo do MOMA de Nova Iorque, em outras tipologias de museus, a transao econmica impensvel, o patrimnio histrico considerado

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    sem valor venal. Para Loureno (1999), os museus de arte apresentam uma dificuldade extra dado o valor monetrio de suas obras, ficam sujeitos aos esquemas duvidosos de que o poder econmico se vale no geral [...] critrio tico-moral (LOURENO, 1999, p.13).

    A curadoria de exposio um conceito que cria uma especializao, dentro da especializao profissional. Nos museus de arte, na organizao das exposies das Bienais de Arte, usada h muito tempo. Nas mega-exposies e nos centros culturais esto trabalhando cada vez mais com o curador de exposio.

    Uma exposio um discurso. Um curador faz esse discurso junto com o artista e a obra. A posio do curador alvo de crti