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Após visitar a Grécia Antiga em O Minotauro, e testemunhar a morte da Hidra de Lerna, Pedrinho fica obcecado com Hércules e decide retornar com Emília e Visconde para presenciar os outros onze trabalhos do grande herói grego. Chegando à Neméia, o trio sobe em uma árvore para evitar o Leão da Nemeia, e vêem quando Hércules chega e falha nas tentativas de matar a fera com flechas e clava, já que o animal é invulnerável. Sabendo como a história termina, eles o ajudam, gritando “sufoque-o, senhor Hércules!”, o que lhes rende a amizade do herói.

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1-OLEÃODANEMEIA

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I–Hércules

Na Grécia Antiga o grande herói nacional foi Héracles, ou Hércules,comosechamoudepois.Eraomaiordetodos—eseromaiordetodosnaGréciadaquele tempoequivaleaseromaiordomundo.Por issoatéhojeviveHérculesemnossaimaginação.Acadamomento,naconversacomumaelenosreferimos,àsuaimensaforçaouàssuasfaçanhaslendárias.Delenasceu uma palavra muito popular em todas as línguas, o adjetivo"hercúleo",comasignificaçãodeextraordinariamenteforte.

A principal característica de Hércules estava em ser extremamenteforte,extremamentebruto,masdotadodeumgrandecoração.Nocalordasfaçanhasmuitas vezesmatava culpados e inocentes— e depois choravaarrependido. Disse Anatole France: "Havia em Hércules uma doçurasingular.Depoisdeemseusacessosdecóleragolpearculpadoseinocentes,fortese fracos,Hércules caíaemsi e chorava.E talvezaté tivessedódosmonstrosqueandoudestruindopor amoraoshomens: apobreHidradeLerna, o pobre Minotauro, o famoso leão do qual tirou a pele paratransformá-la em peliça. Mais de uma vez, ao fim dum daqueles feitos,olhouhorrorizadoparaaclavasujadesangue...Erarobustíssimodecorpoemoledecoração."

—Coitado!Tinhacoraçãodebanana...—EstaconversaocorrianoSítiodoPicapauAmarelo,entreaboaDona

Benta e seu neto Pedrinho. E o assunto recaíra em Hércules porque ogarotoestiveraarecordarpassagensdassuasaventurasnaGréciaHeróica,comovemcontadonoOMinotauro.

—Esevoltarmosparalá?—exclamouPedrinho.—AquelaGrécianãomesaidacabeça,vovó...

—Paraque,meufilho?— Para assistirmos às outras façanhas de Hércules. Só vimos uma: a

destruiçãodaHidradeLerna.Sãodoze...DonaBenta fezverqueo fatode teremsaído incólumesda lutaentre

Hércules e a hidra fora um verdadeiromilagre, sendo impossível que talmilagreserepetissenasoutrasfaçanhas.

—Euquasemorri demedo—disse a boa velhinha—quando, lá nacasa de Péricles, em Atenas, tive comunicação de que você, Emília e oViscondeestavamassistindoaessalutadeHérculescomatalserpentedesetecabeças...

—Nove—corrigiuPedrinho.—Oitomortaiseumaimortal.

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—Ouisso.Quasemorridemedo,porquebastavaqueumasimplesgotadosanguedahidraespirrasseemvocêsparairemtodosparaobeleléu.

Pedrinhodanavacomaquelesmedosdavovó.Semprequeelesugeriaalguma aventura nova, lá vinha ela com o tal medo e a tal pontada nocoração. Resultado: ele metia-se nas aventuras do mesmo modo, masescondido, sem licença dela. "Os velhos não entendem os novos"— diziaPedrinho. "Querem nos governar, querem nos obrigar a fazer exatinho oqueelesfazem.Esquecem-sedequesefosseassim,omundoparava—nãohavia nada novo... E note-se que vovó não é como as outras velhas. Nocomeço não quer, e opõe-se; mas se realizamos às escondidas algumaaventura, assim que vovó sabe faz uma cara de espanto e de zanga,masesquece logoazangaegosta,eàsvezesainda ficamaisentusiasmadadoquenósmesmos."ENarizinhoacrescentou:"Vovódizquenão,sópordizer,porqueotal'não'saidabocadosvelhosporforçadohábito.Maso'não'devovóquerquasesempredizer'sim'."

DonaBentaopôs-seaquePedrinhovoltasseàGréciaparatomarpartenas onze façanhas do grande herói, mas opôs-se dum modo que era omesmoquedizer:"Vá,masescondidodemim..."ePedrinhoexultou.

—Falei comvovó— foi ele correndodizer aNarizinho—e ela veiocomaquele"não"desempre,quenóstraduzimospor"sim."VoumandaroVisconde fabricar o pó de pirlimpimpim necessário. Volto lá com oViscondeeaEmília...

—Eeu?Ficochupandonodedo?—Ah,vocênãopodeir,Narizinho.Vovónãoandaboadoreumatismo,

temnecessidadedeumdenóssemprejuntodela.

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II–Preparativos

Pedrinho explicou ao Visconde os seus planos de nova viagem pelostemposheróicosdaGréciaAntiga."Vamosnóstrês,eu,vocêeEmília."

—Emíliajásabedoprojeto?— Já, e está atropelando tia Nastácia para que lhe arrume uma

canastrinha nova. Diz que desta vez vai completar o seumuseu commilcoisasgregas.

O Visconde suspirou. Sempre que Emília se lembrava de viajar comcanastra,eraeleoencarregadodetudo:decarregá-laàscostas,devigiá-la.E se desaparecia qualquer coisa, lá vinha ela com a terrível ameaça de"depená-lo",istoé,arrancar-lheaspernaseosbraços.

—Quequantidadedepóquer?—indagouoVisconde.—Aíumcanudobemcheio.O pó de pirlimpimpim era conduzido num canudinho de taquara-do-

reino,bematadoà sua cintura.Ele tomava todasasprecauçõesparanãoperderopreciosocanudo,poisdocontrárionãopoderiavoltarnuncamais.Mas como em aventuras arrojadas a gente tem de contar com tudo, oViscondesugeriuumaidéiaditadapelaprudência.

— Omelhor é levarmos três canudos, um com você, outro comigo eoutrocomaEmília.Dessemodoficaremostrêsvezesmaisgarantidos.

Emília,nacozinha,atropelavatiaNastácia.—Queroumacanastrinhanovaemaior,ondecaibamuitacoisa.Anegra,entretidaemfritarunslambaris,resmungava:—Praqueissoagora?Estoucansadadefazercoisasparavocê,Emília.

Oraéisto,oraéaquilo.Canastraagora!...Nãoservemaisaúltimaquefiz?—Muitopequena.Querouma,odobro.—Epraquê?Quetantacoisatemparaguardar?—elargandodacolher

espioubemdentrodosolhosdaexboneca.—Hum!...Estoucheirandoreinaçãonova...Essesolhinhosnãonegam.

Quevaifazer?—Nada—respondeuEmília comamaior inocência.—Sóque tenho

muitascoisasaguardareacanastrinhavelhajáestácheia.—Eusei,eusei...—resmungouapreta.—Pramim,éreinaçãonova.

Ondeé?Vá—diga...Emíliacomeçoua inventarumamentirabemarranjadademais.Todas

asmentirasdaEmíliaeramassim: tãobemarrumadinhasque todos logodesconfiavam.Anegranãoacreditouemcoisanenhuma;mas,parasever

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livredaatropeladeira,disse:—Estábom.Faço,sim.Queremédio?Vocêquandoquerumacoisafica

piorquecarrapato...—eànoite,noserão,fezacanastranovadotamanhoque a atropeladeira queria. DonaBenta apareceu e viu a negra entretidanaquilo.

—Hum!...Canastrinhanova...IssoésinaldeGrécia.Pedrinhoestácomsaudadesdemaisaventurasporlá.

—ESinhádeixa?—disseNastácia,lembrando-sedasafliçõespassadasnolabirintodeCreta,quandoandouàsvoltascomohorrendoMinotauro.

—Eujádissequenão—respondeuaboavelha—masPedrinhonãoacredita nos meus "nãos." Eles querem acompanhar Hércules em seusoutrostrabalhos...

—Credo!—exclamouapreta,semsaberque"trabalhos"eramaqueles,eNarizinhoveiopediràvovóquefalassedeHércules.

DonaBentafalou.—Ah,minhafilha,quemaravilhosoheróifoiessemassabruta!Erafilho

deZeus,ograndedeusládosgregos,edeAlcmena,amulhermaisbeladaépoca, grande como uma estátua, forte, imponente.Mas Zeus era casadocomadeusaHera,aqual,enciumadíssimacomaquelefilhodeseuesposona terra, jurou persegui-lo sem cessar. E assim foi. A vida do pobreHérculestornou-seumpurotormento,taisetaisarmadilhaslhearmavaadeusa.MaseradefendidoporZeus.HeraarmavaasarmadilhaseZeusasdesarmava—eassimfoiatéofim.

—Quefim?—quissaberamenina.—OtristefimqueHérculesteve,coitado,umheróitãobom...—ConteofimdeHércules,vovó.D.Bentacontouquedepoisdumainfinidadedeaventuras,entreasquais

osfamososDozeTrabalhos,Hérculescasou-secomDejanira,aquemamavamuito. Mas um dia, numa das suas expedições, foi dar nas terras docentauroNesso.HérculesjásehaviabatidocontraoscentaurosdoantrodeFolo e matara-os a todos, menos a esse Nesso, que fugira. Parece queHérculesnãoreconheceunessaocasiãooseuvelhoinimigo,poistendodeatravessarumrioanado,pediuaNessoquepassasseDejanira.Daílheveioadesgraça.Nesso,nomeiodoriocomaesposadeHérculesaoombro,tevea idéia de dar-lhe um beijo à força. Lá da margem Hércules viu tudo e,tomando uma flecha, zás, espetou-a no coração do centauro. Era feridamortal.Nessoiamorrer,masantesdissotevetempodedaraDejaniraumfiltro potentíssimo. Quem pusesse no corpo uma peça qualquer dovestuáriorespingadacomessefiltroenvenenar-se-iaemorreriaapiordas

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mortes. Dejanira guardou o filtro e alcançou a nado a margem ondeHérculesaesperava.

—Eocentauro?—Essemorreunaáguaelásefoiboiando...TemposdepoisHérculesse

meteu em nova aventura, na qual salvou uma lindamoça de nome Iole,levando-a consigo à Ilha de Eubéia, onde havia um altar a Zeus. Lá,querendooferecerumsacrifícioaZeus,mandouummensageiroàsuacasaemTraquis,buscarumatúnica.Chamava-seLicas,essemensageiro.Eraumabelhudo.Emvezdelimitar-seacumpriramissão,contouaDejaniratodaa aventura e falou damaravilhosa beleza de Iole, queHércules salvara elevaraparaEubéia.UmaferozondadeciúmeencheuocoraçãodeDejanira,fazendo-a lembrar-se do venenoso filtro de Nesso. E sabe o que fez?EntregouaomensageiroatúnicaqueHérculesmandarabuscar,mastodaborrifadacomotalfiltro...

—Malvada!—exclamouamenina.—Aoreceberatúnica,opobreHérculesvestiu-adescuidosamenteefoi

aoaltar fazerosacrifícioaZeus.Láchegando,começouasentirnocorpouma dor horrenda como se tivesse vestido uma túnica feita de chamasimplacáveis.Emorreutorrado.

— Malvada! — repetiu Narizinho, mas Dona Benta explicou que aintençãodeDejaniranãoforaaquela.

—Nuncaimaginouqueatúnicafossevestidapeloherói;julgouqueeradestinadaàlindaIole;demodoqueaosaberdoacontecido,desesperou-seecorreuaenforcar-senumaárvore.

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III-PertodaNeméia

No terceiro dia pela manhã já tudo estava pronto para a partida.Pedrinhodeuumapitadadepóacadaumecontou:Um...doise...TRÊS!Navoz de Três, todos levaram ao nariz as pitadinhas e aspiraram-nas a umtempo.Sobreveioofiunepronto.

Instantes depois Pedrinho, o Visconde e Emília acordavam na GréciaHeróica, nasproximidadesdaNeméia. Eraparaondehaviam calculadoopó,poisaprimeirafaçanhadeHérculesiaseralutadoheróicontraoleãodaluaquehaviacaídolá.

Opódepirlimpimpimcausavaumatotalperdadossentidos,edepoisdo desmaio vinha uma tontura da qual os viajantes saíam lentamente.QuemprimeirofaloufoiEmília:

—EstoucomeçandoaveraGrécia,mastudomuitoatrapalhadoainda...Parecequedescemosnumpomar...

Pedrinho também viu árvores em redor. Esfregou os olhos. Deixoupassarmaisalgunssegundos.Depois:

— Não é pomar. É um olival. Esta Grécia é o país das oliveiras, asárvoresquedãoazeitonas.Eparecequeestasoliveirasestãocarregadas.

Instantes depois estavam os três em estado normal. O Viscondesentara-se em cimada canastradaEmília, a qual não tiravaos olhosdasárvores.

— Maduras, Pedrinho. Por que não enche o seu embornal? Gente écomoautomóvel:nãoanda semestar sempre comendoqualquer coisa.Oautomóvelbebegasolinanasbombas;agente"manduca"oqueencontra.

Pedrinhotrepounumaoliveiradasmaiscarregadasecomeçouaencheroembornal,depoisdehaverprovadoumaecuspido,numacareta.

— Estãomaduras, sim— disse ele—mas Nastácia, que só conheceazeitonasdelata,nãoécapazdereconhecerestas.Gostomuitodiferenteehorrível. Lembra certas frutinhas do mato que ninguém come, de tãoamargasouitês.

As azeitonas só se tornam comestíveis depois de várias semanas demaceração em água de sal. Ficam então deliciosas. Mas sem isto, nemmacaco as come! Emília fez logo o projeto de uma grande produção deazeitonas,e:

—Mais,mais,Pedrinho!—nãocessavadedizereeleiajogando.Pertodalificavaaresidênciadodonodoolivaleumapastagemmuito

bonita, com um rebanho de carneiros tosando o capim. Um pastorzinho

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distraía-seatocarflauta,comumcãoaolado.Súbitoocãofarejouqualquercoisa,enfitouasorelhas—eveioparaoolival,navolada.

Pedrinhonuncatevemedodecachorros.Dominava-oscomoolhareafirmezadavoz.Assimfoicomaquele.

—Quieto, quieto, Joli!— gritou energicamente. O cachorro parou delatir e pôs-se a balançar a cauda. Depois, dando com o Visconde, "nãoentendeu." Arrepiou-se todo de medo. Era-lhe um desconhecido — e odesconhecidoamedrontaqualqueranimal.

Pedrinhotentousossegá-lo,passou-lheamãopelopescoço.—Nadadesustos,Joli.Nãoénenhumaaranhadecartolaesimonosso

grande sábio lá do sítio, o Senhor Visconde de Sabugosa — mas aexplicação de nada adiantou: o pobre cachorro positivamente "nãoentendia"oVisconde...

Láadianteopastorselevantaraeguardavaaflauta.Estavacomacaradequemdiz:"Quediabodistoéaquilo?"

Pedrinhodirigiu-seaele,acompanhadodosoutros.Emquelínguairiamentender-se? "Que acha, Emília?" E ela: "Aplique o faz-de-conta. Faça decontaquenóssabemosgregoeelenosentendemuitobem."

Assim foi. Graças ao grego "faz-de-conta" de Pedrinho, puderamconversarperfeitamente.

—Bomdia, amigo! Somos viajantes vindos dum século e duma terramuitodistantesdestesaqui.

—Destesoquê?—perguntouojovemgrego.—Desteséculoedestaterra...Opastorzinhonãoentendeu,nempodiaentender,oquelevouEmíliaa

exclamar: "Ai, ai! Vamos ter de novo aquelas mesmas dificuldades deentendimentos que tivemos com Fídias e os outros em Atenas", e nãoquerendoperdertempocomtentativasinúteis,perguntou:

—Pastorzinhogrego,podedar-nosnotíciasdoSenhorHércules?—Ointerpeladofezcaradebobo."Hércules?"Quemseriaesse.Hércules?Nuncaouvira pronunciar tal nome. Emília explicou que era um "massa bruta"assim,assim,queandavapelomundofazendoproezasdasmaistremendas.De nada adiantou a explicação. O rapaz não tinha a menor idéia deHércules. O Visconde, que estava de banda, sentado sobre a canastrinha,sacudiuacabeçaeriu-secomorisofilosóficodossábios.

— Ai dos ignorantes! — exclamou. — Como é que este moço há desaber de Hércules, se nesta Grécia nunca houve Hércules nenhum?Hérculesnãoénomegrego;éonomeromanocomoqualfoibatizadomaistarde.Oheróiqueandamosprocurandochama-seemgregoHéracles.

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Ao ouvir aquele nome tão popular naquele tempo, o pastorzinhoiluminouorosto.

—Bom, este conheço.Nãoháquemonão conheçapor aqui, tantas etantastêmsidoassuasproezas.Héracleséumheróiinvencível...

—Poiséaelequeandamosprocurando—dissePedrinho.—Amigovelho.Jácaçamosjuntos...

—Jácaçaramjuntos?—repetiuopastorzinho,espantado.—Queéquecaçaram?

—Umacobradenovecabeças,acélebreHidradeLerna.OrapaznãoentendeuporqueparaeleessafaçanhadeHérculesainda

estavanofuturo,emostrou-semuitoadmiradoquandoPedrinhocontouahistóriadoLeãodaNeméiaqueHérculesiriamatar.

— Leão da Neméia? — repetiu. — Sim, eu sei desse leão. É umterribilíssimomonstroquecaiudaluaeandaporlácomendogente.Sósealimentadegente.

—Eporqueonãomatam?—quissaberEmília.Opastorzinhoriu-sedetantaignorância.—MataroLeãodaNeméia!Quempode,seéinvulnerável?Emília ignorava a significação da palavra "invulnerável", mas não

querendopassarporignoranteaosolhosdomoçofingiuprecisarqualquercoisadacanastraefoitercomoVisconde.Eenquantoabriaeremexianacanastrinha,perguntavaameiavoz:

—Quequerdizerinvulnerável,Visconde?Respondabembaixo.OViscondecompreendeueajudou-a.— Invulnerável é oquenãopode ser feridopor armanenhuma, uma

espécie de "corpo fechado."— Emília ainda perguntou:— "E que tem apalavra "invulnerável" com ferida?"—O Visconde explicou que em latim"ferida"era"vulnera."

Emília,muitolampeira,voltouafalarcomopastorzinho.—Comqueentãoéinvulnerável?ah,ha!...Havemosdeverisso.Quero

ver se Hércules vulnera ou não vulnera esse leão da lua... Já sabe danovidade—queHérculesfoiconvidadoavirmataresseleão?

Opastorzinhonãosabiaeadmirou-se.NãohaviadúvidaqueHéraclesnuncahaviaperdidolutanenhuma,masquepoderiafazercontraumleãoemcujacarnesetanenhumapenetrava?"PobreHércules!"—exclamouele.—"Destavezvaiespetar-se...

O cachorrodopastor não tirava os olhos doVisconde, e volta emeiadavaum"au."Nuncaviraumanimalejotãoestranho,decartolinhaeaindaporcimafalante...

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—DeixeoViscondeempaz,Joli!—gritouPedrinho.OjovemgregoexplicouqueonomedocachorroeraPelópidas.—EatalNeméiaondefica?—indagouEmília.—Longe?...—Perto.Vocêsseguemporessecarreiroatéaencruzilhada.Látomam

à esquerda e vão andando, andando, até encontrarem um rio. Depoisseguemrioacimaatéumaponte.ANeméiacomeçaparaládaponte.

— Não há letreiro? — perguntou Emília, fazendo o Visconde, lá nacanastrinha,sacudiracabeçaemurmurar:"Letreiro!Queidéia!...Opobrerapaznemsabeoqueéletra,quantomaisletreiro."

E estavam nisso, quando, de súbito, um berro distante soou.Evidentementeumurrodeleãodalua,coisamuitomaishorrendaqueurrode leão da terra. O pastorzinho tremeu. Só pensou numa coisa: juntar orebanho e tangê-lo para o curral — e lá se foi no galope, seguido pelocachorro.

Ourrovinhademuito longe—daNeméia.Eles tinhamde irpara lá,pois só lá erapossível encontraremograndeherói grego. Se ficassemaliestavam perdidos, pois quem os defenderia do leão? O pastorzinho? Ah,ah... Já na Neméia talvez encontrassem Hércules, e na companhia deHérculesnadateriamatemer.

—VamosparaaNeméia!—ordenouPedrinho.OVisconde espantou-se. "Para aNeméia?Ao encontro do leão que lá

estáurrando?"—Ao encontrodeHércules— respondeuPedrinho.—Se tivermos a

grande sorte de encontrá-lo, estaremos salvos, mas aqui... Se o leão nospega por aqui, estaremos irremediavelmente perdidos. Terra de gentemedrosa.Olhecomocorreopastorzinho...

De fato,opastorzinho já ia longecomoscarneiros, comoseestivessesendoperseguidopormilleões.

ForamparaaNeméia.Seguirampelocarreiroatéaencruzilhada;depoistomaramàesquerdaatédarnumrio,esubiramrioacimaatéumaponte.

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IV-NaNeméia

—ANeméiacomeçaaqui—dissePedrinhoaochegaràponte,ecomasmãos na cintura pôs-se a examinar a paisagem. Não levou muito temponisso.Novourrodoleão,muitomaisperto,ofezarrepiar-se.

— Temos que trepar numa destas árvores — sugeriu eleprecipitadamente,edeuoexemplo:marinhouárvoreacimacomagilidadedemacaco.Emíliafezomesmo;repimpou-senumgalhobemládecima.

Lá embaixo só ficou o Visconde, todo pateta. Subir em árvore oVisconde não subia. Os sábios são desajeitadíssimos. A única solução erasuspendê-lo. Pedrinho correu os olhos em torno. Viu um cipónumgalhoperto. Conseguiu agarrá-lo, depenou-o de todas as folhas e desceu umapontaaoVisconde.

—Segurebemqueeuosuspendo.—Eacanastrinha?—lembrouopobresábio.— Deixe-a aí ao pé da árvore— resolveu Emília.— Leão não come

canastras...Assimfoifeito.OViscondeescondeuacanastrinhanumocodaárvoree

pendurou-se na ponta do cipó. Pedrinho o foi suspendendo. Já estava osabugo paramais demeio quando a sua cartolinha esbarrou num ramosecoelácaiu.Quefazer?Voltarparaapanharacartolaou...

Novo urro do leão já bem perto fez o Visconde esquecer-se dacartolinhaparasópensarnasalvaçãodapele.Umsábiosemcartolaéumacoisa feia,mas um sábio devorado por um leão é coisamais feia e tristeainda.Aárvoreeraamaisaltadali,edetroncomuitoreforçado.Aindaquetentasse,omonstronãoosalcançariaemseuspulos.

E foi a conta. Nem bem se tinham acomodado nos melhores galhos,quandoaferarugiupertíssimo—eafinalapareceu!

Que horrendo bicho! Pedrinho nunca imaginou que os leões da luafossem tão enormes, tão possantes, com tão copiosa juba e tão afiadaspresas.Parecequehaviaacabadodecomeralguém.Asmanchasdesanguenoseupêloaindaestavamfrescas.

Oleãoparoujuntoaotroncodaárvoreefarejou.Sentiuquehaviasereshumanosláemcima—chegouaentortaracabeçorraeespiar.Pedrinho,que levaraumapedranobolso,arremessou-acontraoolhoda fera!Estáclaroquenãoadiantoucoisíssimanenhuma,porqueosleõesinvulneráveistêmtambémosolhosinvulneráveis.Omonstronemsequerpiscou.Apenasbotou fora a horrenda língua vermelha e passou-a pela beiçorra, como

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quemdiz:"Sealguémandaemcimadestaárvore,meupapoestágarantido.Sento-meaquieesperoqueoalmoçodesça."

Pedrinho sondava os horizontes, ansioso pelo aparecimento deHércules. Só o grande herói podia salvá-los daquela perigosa situação. AnãoserqueEmília...

—Emília—disseeleerguendoosolhos—quefaremoscasoHérculesnãoapareça?

—Énoqueestoupensando—respondeuadiabinha.—Háopó.Masse recorrermos ao pó, ele nos leva muito longe daqui e perdemos aprimeirafaçanha.Oremédioéumsó:esperarparaveroqueacontece.

OVisconde,muitosatisfeitode ter-se livradodacanastrinha,declarouachar-semuito bem; ele não tinha amenor dúvida em ficarmorando alitodaavida.Sim,ascoisassãomuitosimplesparaosseresquenãocomem.O terrível da vida é o eterno problema da comida. "A gente come e nãoadianta nada"— costumava dizer a exboneca— "porque por mais quecomamos,temosdecomernodiaseguinte.Aiquesaudadesdotempoemqueeunãocomia!..."

O leão deitara-se, mas com a cabeça erguida, atento. Súbito, deu umronco rosnado e enfitou os olhos em certo rumo, como quem estácheirandoqualquercoisa.

—Elefarejoucarnehumana!—dissePedrinho.—SeráHércules?Era.Logodepoisovultodoheróiemergiudetrásdumagrandemoita.

Estavadearcoempunho.Iaatirar.O leãopôs-sedepé, comoque à espera.Hércules ajeitouno arcouma

seta,fezpontariaezás!despediu-acomoZeusnoOlimpodespediaraios.Asetaassobiounoareveiobaterdeencontroaopeitodoleão.Masemvezdecravar-senaquelelargopeito,entortouapontadeferroecaiu.Hérculeslançou segunda flecha, e terceira e quarta e quinta. O resultado foi omesmo.Despedaçavam-senopeitodoleãoouentortavamaponta.

— Bem disse o pastorzinho que este leão é invulnerável—exclamouEmília.—Inflechável!eobobodoHérculesnãopercebe.Melhoravisá-lo,Pedrinho.

Pedrinhobotouasmãosemconchaparaaumentarovolumedavozegritounadireçãodoherói:"Assim,éinútil.Ferronãoentranopeitodesteleão.É invulnerável...Asflechasacertaramnele,masentortamapontaousedespedaçam.Abandoneoarcoepensenoutracoisa."

Hérculesouviuatentamenteaquelaspalavrase,comonãodistinguisseomenino láentreas folhas, julgou seralgumavisodo céu,dondemuitasvezeslhevierasocorro.SeadeusaHeraoperseguia,agrandePalasAtenae

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outrasdeusasmenoresoajudavam.Aferaencaminhava-sejáemsuadireção,apassoslentosedecididos,o

olhar chamejante de cólera. Ia raivosamente atacar e devorar aqueleaudaciosohumanoqueestupidamenteaatacavaaflechaços.

—PobreHércules!—exclamouEmília.—Estáali,estáliquidado.Comohá de defender-se das garras deste monstro, se suas flechas nem lhearranhamapele?

—Com flecha não vai—disse Pedrinho—mas há a clava. VovómecontouqueaclavadeHérculesépiorqueosmartelos-pilõesdasfábricasde ferro: não há o que não amasse. Esse leão é invulnerável, mas serátambéminamassável?

Hércules havia largado o arco e tomado a clava, ou maça, feita dumtronco de oliveira, que havia arrancado com raiz e tudo — madeiraduríssima. E não esperou que o leão se chegasse até ele, também iaavançandoaoseuencontro.

Omomentoeradosmaisemocionantes.Lembravaaquelesmomentosnoscircosdecavalinhosemqueamúsicapára.Amúsicaalieraaconversados pequenos aventureiros empoleirados na árvore. Todos haviamemudecido.Quepodeapalavrahumanadizeremcircunstânciasassim?Já estavam bem perto um do outro, os dois tremendos contendores.

Súbito,o leãoarmoubotee lançou-sequenembombavoadora.Hércules,agilissimamente, regirou no ar a poderosa clava e desferiu um golpe dederrubarmontanhas.Otremendogolpealcançouoleãonoar—plaf!...bemnocentrodatesta.Oleãocaiu,tonto,masaclavasefezemvintepedaços.Umalascaveiocairaopédaárvoredospicapauzinhos.Hérculesarregalouosolhos.A feratonteara apenas, já estavanovamentedepée aindamaisameaçadora—eeledesarmado—semasuapotenteclava...Quefazer?EPedrinhoviu-olevantarosolhosparaocéu,comoquempedeinspiração.

—Dêumaidéia,Emília!—gritouPedrinho.— Se o não ajudarmos com uma boa lembrança, lá se vai o nosso

queridoHércules.Emília pensou rapidamente: "Se as flechas falharam e se a clava se

despedaçouaoprimeirogolpe,ojeitoagoraéatracar-seaopescoçodoleãoeafogá-lo."PensouegritouparaHércules:

—Atraque-secomele,SenhorHércules!Grude-senopescoçodoleãoevá apertando até que ele morra de falta de ar. O leão é invulnerável einamassável,mastalveznãosejainasfixiável...

NovamenteHérculesouviuaquilocomosefosseumasugestãodocéu,ebobamenteergueuosolhosparaasnuvenscomoagradecimento.Sim,erao

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quelherestava:atracar-secomomonstroeprocurarasfixiá-lo.Efoioquefez.Lançou-secontrao leãoaindamalsaídoda tonteiraeabraçou-opelagarganta.

Ah, que luta foi aquela! Jamais iria Pedrinho esquecê-la. O abraço deHérculeserapiorqueoabraçodemiltamanduás.Haviajuntadoopescoçodo leão como uma torquês junta o pedaço de ferro que aperta. O leãoescabujava, fazia esforços tremendos para desvencilhar-se—mas quemjamais se desvencilhou dum abraço hercúleo? Pedrinho, Emília e oVisconde"torciam."

— Aí, Hércules! — gritava o menino. — Firme, firme! Vá apertandocomochaveinglesaapertaporcadeparafuso...

—Nãoafrouxenemumminutinho!berravaEmília.—Ele jáestásemfôlego.Éapenasinvulnerável,nãoéinafogável...

AtéoViscondeajudou,cientificamente:—Ospulmõesdosquadrúpedesparamdefuncionarquandoooxigênio

nãoentra.Conserve-osemarnospulmõespordoisoutrêsminutosqueasfunçõesmetabólicasficamperturbadaseeleafrouxa...

Hérculesapertava,apertava.Omonstrojátinhaosolhossaltados,comoquerendo pular das órbitas. A língua saíra para fora quase um palmo—aquelahorrívellínguavermelhadeleãodalua.

Omonstrocomeçavaaafrouxar.Seusmúsculosforamsebambeando.—Maisumbocadinhoepronto!—gritouomenino.—Animo,Senhor

Hércules!...O herói parecia de aço. Aqueles músculos potentíssimos quase que

estalavam,detãotensos.Equealentadoera!Seupeitoperderaaformadopeitohumanonormal—viraraumasériedetremendosnósdemúsculos,cada ummaior que o outro. E foi assim por mais dois ou três minutos.Finalmenteoleãomoleouocorpanzildumavez.Estavaliquidado.Hérculesaindaomantevenoarroxopormaisalgumtempoeafinalolargou.Amassamortadoleãodaluadescaiu,aplastou-senochão.

—Morto!Mortíssimo!—berrouEmília.—Hurra!Hurra!Hurra!...Vivaoheróidosheróis!...

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V-OEncontro

Só entãoHércules percebeu que as vozes vinhamda árvore e não doOlimpo.Firmandoosolhos,deucomostrêspicapauzinhosrepimpadosnosgalhos. Mas estava tão frouxo que nada disse. Respirava ofegantemente.Seupeitosubiaedescia.Osuorbrotava-lhedapeleemgrossospingos—osuorhercúleo.

—Podemosdescer—dissePedrinho,eescorregoupelaárvoreabaixo.Os outros fizeram o mesmo. Já mais aliviado da canseira, Hércules seaproximou.

—Quemsãovocês?—foiapergunta.Pedrinho explicou que tinham vindo de um século futuro para

acompanhá-loemonzedeseustrabalhos,onzesó,porqueaumdeles—alutacomaHidradeLerna—jáhaviamassistido.Hérculesnãoentendeu.Além de burrão de nascença, como todos os grandes atletas, não podiaentenderaquelahistóriade"virdumséculofuturo."Talveznemséculoelesoubesseoqueera.Umheróidaquelessósabedehidras,leões,minotaurosemais,monstros comque temdebater-se.E feza carapalermadosquenãoentendemoqueouvem.

Emíliatomouapalavra:— Somos do sítio de Dona Benta, Senhor Hércules. Este aqui é o

Pedrinho,onetonúmeroumeprimodeNarizinho.Eestaaranhadecartola(oViscondejáestavadecartolinhanacabeça)éofamososábioSabugosa,carregador da minha canastra. Fugimos lá do sítio, montados no pó depirlimpimpim, unicamente para acompanhar os Onze Trabalhos deHérculesquenosfaltam.Játemosumnacoleção.

Hércules ficou na mesma. Olhava para um, olhava para outro e nãoentendianadadenada.Emíliacontinuou:

— Queremos ajudá-lo, Senhor Hércules, e já o ajudamos na sua lutacontraoleão.Quemdeuaidéiadoafogamentofuieu,quesoua"dadeiradeidéias" lá no sítio. Caçoam de mim, chamam-me asneirenta, dizem quetenho uma torneirinha de asneira — mas nos momentos de aperto écomigoquetodossearranjam.

Hérculescontinuavacomcaradebobo.Emíliaprosseguiu:— Podemos fazer o seguinte. O Visconde fica sendo o seu escudeiro,

como aquele Sancho que acompanhava D. Quixote. Sempre há de servirparaalgumacoisa.Euforneçoasidéias.Pedrinhodáumexcelenteoficialdegabinete,ouajudantedeordens.Osenhor fica sendoomuquedobando;

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Pedrinho, o órgão de ligação; eu, o cérebro; e o Visconde, a escudagemcientífica...

Depois de Emília falou Pedrínho, dizendo a mesma coisa com outraspalavras.

PorfimfalouoVisconde.Etantofalatóriofezqueograndeheróifossecompreendendoalgumacoisa.Compreendeueriu-se.Achougraçanaquelaestranhaassociaçãoepediuesclarecimentos. Informou-sedequemeraD.Quixote.

Emíliarespondeu:— Ah, Senhor Hércules, nem queira saber! D. Quixote é um famoso

cavaleiroandantedosséculosfuturos,umtremendíssimoheróidaEspanha—mascomumadiferença:emvezdevencernasaventurascomoosheróisdaquielesaisempreapanhando,comascostelasquebradas,maismoídodepau no lombo do quemassa de pão bem amassada— e foi por aí além.Contou as principais façanhas de D. Quixote, todas terminadas com umapancadarianolombodoherói.

— Mas se é assim— disse Hércules— por que lhe chamam herói?HeróiaquinaGrécianãoapanha,dásempre...

— É que ele é herói moderno. No nosso mundo moderno tudo édiferente.AtéoViscondeéumheróicientífico.

Hércules sentara-se junto ao tronco da árvore, comPedrinho de pé àdireitaeEmíliajásentadaemseucolo.ApoucadistânciaficaraoVisconde,tambémsentadosobreacanastrinha.Emíliafalava,falavasemparar.EtaiscoisasdissequeacabouaindamaisamigadeHérculesdoqueo ficaradoQuindim.

O sol ia descambando, mas na Grécia não se dizia sol, sim "carro deApolo."Hérculesergueuosolhosparaocéuemurmurou:

—OcarrodeApoloestájápertodofimdoseucurso.Véspernãotardanocéu.Tenhodepartir...

Pedrinho,quesabiamuitacoisadavidadograndeheróigrego,desejavafazeralgumasperguntassobrepontosincertos.

—Écedoainda,SenhorHércules.Antesdelevantarmosacampamentoqueroquemerespondaváriasperguntas.

—Fale.Pedrinho queria saber por que motivo, sendo Hércules tão forte, se

haviasubmetidoaoreiEuristeu,oquallheimpuseraaqueletrabalho."Porquenãoescangalhacomessereidumavez,comumbomgolpedeclavanacabeça,emvezdeandarcorrendoperigoparasatisfazeràsimposiçõesdomalvado?Vovónãosoubemeexplicaresseponto."

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—Ah—exclamouHérculessuspirando.—Acoisaécomprida,vemdelonge;vemdotempodeminhaloucura...

—Entãojáestevelouco?—perguntouEmília.—Queengraçado...Hérculesestranhouaquele"engraçado."Como podia alguém achar graça na loucura? Emília explicou-se

contandoocasodaloucuradeD.Quixote,queelaachavaengraçadissima.HérculesdesfiouahistóriadoseucasamentocomMégara,daqualteve

oitofilhos.—Sim,oitofilhosefilhas,eumdiaosmateiaflechaços...—Matouosfilhosaflechaços?—repetiuEmília,horrorizada.—Sim,masnãoporculpaminha—coisasládadeusaHera,quetanto

mepersegue.Essadeusamefezcairnumacessodeloucura—eeuentãomateimeusprópriosfilhosefilhas,coitadinhos...

—Comofoi?Conte...— Eu estava nessa ocasião em Tebas, donde saí para realizar uma

aventura.DeixeiMégaraemeusfilhosentreguesaoscuidadosdeAnfitrião.Minhaaventuraeraliquidarumasériedemonstrosegigantesmalvados.Eandavalidandonessetrabalho,quandoumtalLicosseapoderoudeTebase matou muita gente— e ia também matar Mégara e meus filhos. E jáestava com a espada erguida sobre a cabeça de minha esposa, quandoconcluí omeu trabalho e voltei paraTebas.Ah! foi a conta!Dei tamanhamoçada em Licos que o achatei como esta folhinha aqui —Hérculesexemplificou comuma folhinha seca apanhadado chão. Logoemseguidatrateideofereceraosdeusesumsacrifíciodeagradecimento—efoientãoqueHerameenlouqueceu.E,loucofurioso,mateinãosómeusfilhoscomotambémapobreequeridaMégara,minhaesposa...

—Quehorror!DeusamalvadaatalHera—exclamouPedrinho.—Malvada,sim.NuncameperdoouofatodesereufilhodeZeuscom

Alcmena—emeperseguesemcessar.TudoquenavidamecaiemcimavemdeHera...EdepoisdematarminhapobregenteeumeaprestavaparamatartambémobomAnfitrião,quandoaboaPalas...

— A mesma que os romanos iriam chamar Minerva —explicou oVisconde.—...mesalvoudemaisessehorrendocrime.

—Como?—Lançando-meládocéuumagrandepedracontraopeito.Apedrada

de Palas curou-me da loucura. Voltei a mim e horrorizei-me com o quehaviapraticado.Nãohámaiordesgraçaqueumbompaieumbomesposomatarosseusqueridosfilhosesuaqueridamulher.Horrorizei-me...

— Mas desde que estava louco, não tinha culpa nenhuma —disse

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Pedrinho.—Matousemquerer...—Crimeinvoluntário—explicoucientificamenteoVisconde.Hérculescontinuou:— Involuntário ou não, cometi esse horrendo crime— e o remorso

tomou conta de mim. Condenei-me então ao desterro, e fui consultar oOráculodeDelfosparasaberqualaterraparaondeexilar-me.EuporessetemponãomechamavaHércules,comoagora.MeunomeeraAlcides.FoiaPítiadoOráculodeDelfosquemmetrocouonomeesugeriuaminhavindapara as terras do Rei Euristeu. Esse rei me impôs como penitência arealizaçãodeDozeTrabalhosterríveis.AlutacontraoLeãodaNeméiafoioprimeiro.

Pedrinho sentiu uma batida forte no coração. Quis avisar Hérculesdumacoisa,masconteve-se.Depoiscompretextodeverseoleãojáestavafrio,afastou-secomaEmíliaeoViscondeedisselhes:

—OpobreHérculessabemenosdasuaprópriavidadoqueeu,quesoude séculos adiante. Vovó me contou como foi. O caso é este: HérculesconsultouaPítia,aPítialhedeuummauconselho.AdiabaandavavendidaaHera.FaztudoqueHeramanda—eporissoaconselhouaprocurarotalEuristeu, que é amaiordaspestes.Os taisDozeTrabalhos foramomeioque Hera achou de metê-lo em tremendos perigos, de modo que nãoescape.Queachamvocês:devoavisá-lodissoounão?

Emíliapensoudepressaecommuitalógica.— Não! Não deve avisá-lo de coisa nenhuma, pois do contrário ele

desobedeceàPítiaenósficamoslogrados—ficamosimpedidosdeassistiraos seus trabalhos famosos. O melhor é conservá-lo na ignorância dofuturo,mesmoporqueelevaisairvitorioso.AqueleOráculodeDelfos!Nãohápatifariamaior.APítiadeixa-sesubornar,edápalpitesdeacordocomos que melhor lhe pagam. A patifaria humana é eterna, como diz oVisconde.

—Sim,éisso—concordouPedrinho.—Heraestáconvencidadequeoherói não agüenta os tais Doze Trabalhos, a boba!... Mas Hércules vairealizá-los maravilhosamente. Melhor, mesmo, ficarmos quietos. Ele quecontinuenailusão—evoltaramparaacompanhiadoherói,comcarinhasmuitofingidas.

— Está mortíssimo, sim — disse Emília referindo-se ao leão. — Jáesfriou.Quevaifazerdele?

OcarrodeApolojáestavamaisbaixo—maispertodacocheiraondeserecolhiatodasastardes.Hérculeslevantou-se.

—Voutirar-lheapele. Jáqueesseleãoéinvulnerável,seucourodará

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umótimoescudo.Disse e encaminhou-se para o leãomorto. Tinha de escorchá-lo, mas

para issoera indispensável faca—eHérculesestavasem faca.Olhouemredor, como à procura de qualquer instrumento cortante, caco de vidro,lascadepedra.Nãoviunenhum.Pedrinhocompreendeu.

— Já sei o que procura, amigoHércules. Faca, não é? Faca não tenhocomigo.Vovónuncamedeixouandarcomfacadeponta,aquelaboba.MastenhoumbomcaniveteRodger—esacoudobolsoumcaniveteRodgerdecabo de osso queimado e lâmina afiadissima. Hércules achou graça noinstrumento, pois não havia canivetes naquele tempo. Examinou-oatentamente.Abriu-oe fechou-odiversasvezes—enumadelascortouodedo. Emília correu à canastrinha em busca do carretel de esparadrapo.Destacouafitagomadaecortouumpedaço,dizendo:

—Parapequenascortaduras,nadamelhorqueisto.Chama-sees-pa-ra-dra-poouponto-falso.Conhece?

Hérculesnãoconhecia.Deixouqueaexbonecalhecolocassenodedoatiradeesparadrapoeadmirou-sedeverosangueestancar.Ótimo!Asuaassociaçãocomostrêspicapauzinhosjáestavadandobonsresultados.Emseguidavirouoleãodebarrigaparacima.

—Vocêsseguram-nopelaspatasnessaposição,queeuvouriscá-lonoventre.

Pedrinho segurou bem firme as patas dianteiras do leão enquanto aEmíliaeoViscondefaziamomesmoàstraseiras—eHérculesriscoudumextremoaoutroapeledoleão.

OViscondeveiocomasuaciência:— Lindo golpe longitudinal!—palavra que deixou o herói na mesma.

Nuncahouvenomundoumatletaquesoubesseoqueé"longitudinal."— Hércules não está entendendo nada,Visconde — disse Emília. —

Explique-lheoqueéisso.—Umgolpe longitudinal—explicouoViscondecomtodaaseriedade

—éumgolpeaocomprido,ounosentidodocomprimento.—Eumgolpenosentidodalargura?—quissaberEmília.— Não temos para isso palavra especial— respondeu o sabinho.—

Deviaser"golpelatitudinal",porquelarguraélatitude,mastalpalavranãoexistenosdicionários.

PedrinhocontouaHérculesqueoViscondeeraumgrandegramático,oque tambémdeixou o herói namesma.O coitado nem gramática sabia oqueera...

Riscada a pele do leão com aquele lindo corte longitudinal, Hércules,

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comamãodireita,agarrouapelepelajubaecomaesquerdaseguroufirmeacarcaçadoanimal—edumsópuxãoarrancouapeleinteirinha.

—Queforçatemonossoamigo!—exclamouPedrinho,entusiasmado.—Lánosítio,paratirarapeledumboi,um"camarada"levatempo—temdeairdestacandodacarnecomapontadafaca.Hérculesdáumpuxãoepronto!...

Masnãobastaarrancarumapele,éprecisoesticá-lacomvarasepô-laaosolparasecar.QueiriafazerHércules,comanoitejápróxima?

—Eagora?—indagouPedrinho.—Queédosolparasecaressecouro?Hérculesmostrou-se indeciso.Sim,ocarrodeApolo já iaentrandona

cocheira.Sósedormissemaliparasecá-lanodiaseguinte...Entreolharam-se.Nãosabiamoquefazer.Nashistóriasdasgrandesfaçanhasestespequenosdetalhespráticosda

vida nunca aparecem, e no entanto sem atendê-los convenientemente asgrandescoisassetornamimpossíveis.Umapeledeleãotemdesersecadaaosol.Emseguidaháquesercurtida,poisdocontrárioresseca,ficamaisduraquepauenãotemutilidadeparacoisanenhuma.OViscondedeuumaboaopiniãozinha:

—Courocru,istoé,nãocurtido,nãovalenada.Sehouvesseumcurtidoraquiporperto...

Hérculessóentendiadeproezastremendas.Paraascoisinhasprosaicasdavidaeraamaiordasinutilidades.Ouviua

história do curtidor e abriu a boca, com expressão de quem está semnenhumaidéianacabeça.Emíliatomouapalavra.

— Já descobri o jeito de resolver o problema. Lá no olival ondeaterrissamos há aquele pastor de carneiros. Todo pastor entende decurtimento de couro, porque vive lidando com a pele dos carneiros quemorremousãomortos.Minhaidéiaéirmostercomele—eatépodemosdormirnaquelacasinha...

Hérculesachouexcelenteaidéia.

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VI-OCourodoLeão

—Poisvamosvero talpastor—disseele; epondoapele frescaaosombros,bemdobrada,fezmençãodepartir.

Um problema surgiu. Pedrinho podia, ainda que com esforço,acompanharaspassadasgigantescasdoherói—masEmíliaeoVisconde?Comocriaturastãominúsculasconseguiriamacompanhá-lo?AsoluçãoveiodeHércules:

—Muitosimples.Levomontadosemmeusombroscáaminha"dadeiradeidéias"emaisomeuescudeiro...

Disse e, pegando aEmília, colocou-a sentada em seuombrodireito; ecomoViscondefezomesmo,colocando-oemseuombroesquerdosobreapeledoleão.

SobrouPedrinho,queteriadeacompanhá-locorrendo.Pronto! Hércules pôs-se em marcha, e só nesse momento Emília

lembrou-sedacanastrinha.—Pare,Hércules!OViscondeesqueceuaminhacanastra...Pedrinhocorreuembuscadacanastrinhaeentregou-aaHércules,que

apassouaoVisconde.— Que há dentro desta caixeta?— perguntou o herói, retomando a

marchainterrompida.—Porenquanto,bempoucacoisaainda—masvaiacabarcheia.Aqui

dentroestãoosguardadinhosdeemergênciaqueeutrouxeládosítioetrêsunhasdoLeãodaNeméia—lembrançadesteprimeirotrabalho.

De fato,Emílianão se esqueceradearrancar e guardar ládentro trêsformidáveisunhasdofamosoleãodalua...

Durante a marcha rumo ao olival Hércules foi contando aventuras emais aventuras, enquanto Emília desfiava todo o rosário das coisasprodigiosasacontecidasnosítiodeDonaBenta.

—Quesítioéesse?—perguntouoherói.— Ah, nem queira saber! — respondeu Emília. — É a nossa Grécia

Heróica ládomundomoderno,noséculo20.Osítioéanossafazendinhagostosa.Temosopomar,temosoribeirão,temosaporteiradopasto,temosocupimpertodaporteira,temosavacaMocha...

Hérculesentendiabempoucode tudoaquilo,masestavagostandodeouvir. Era como se fosse música nova — a música dos tempos futuros.Emílianãoparava.

— E temos Dona Benta, a melhor vovó que existe, de óculos, saia

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rodada.E temos tiaNastácia, a cozinheira.Parabolinhos,nãoháoutra.EtemosNarizinho,anetadeDonaBenta,muitominhaamiga.

—Porquenãovieramtodos?—perguntouHércules.— Ah, estas façanhas são muito fortes para as duas velhas.

Medrosíssimas,coitadas!Narizinhopodiavirporqueécomonós,nãotemmedodenada.Ficouporcausadosreumatismosedaspontadasdavovó.Daoutravezviemostodos,masDonaBenta,NarizinhoeNastáciaficaramemAtenas,emcasadePéricles,noséculo5ºantesdeCristo.

Hérculesnãoentendianada.—Quehistóriaéessadeséculo5ºantesdeCristo?—perguntou.Pedrinho teve de explicar a cronologia, isto é, a marcação do tempo

antesedepoisdeCristo.—Aqui,porexemplo—disseele—vocêsestãonoséculo7ºantesde

Cristo.QuerdizerqueCristovainascerdaquiaseteséculos.Enósvivemosnoséculo20,depoisdonascimentodeCristo.

Ah, que trabalhão teve Pedrinho para explicar toda essa história deséculosantesedepoisdeCristo—eparaexplicarquemhaviasidoCristo...

— Sim— disse ele— porque todos estes deuses da Grécia de hoje,inclusiveZeus,queéhojeosupremo,tudoissovaidesaparecer.

Porque foidizeraquilo?Hérculesparou,assombrado. "Desaparecer?"Comodesaparecer,seeramosdeuseseternoseúnicos?

Até o Visconde teve de tomar parte na discussão, e por fimHérculesfingiu que entendeu, embora na realidade não houvesse entendido coisanenhuma.Eaindaestavamafalaremséculosedeuses,quandoavistaramaolongeoolival.

— Estamos chegando! — gritou Emília. — Lá está o bosque deazeitoneiras...

Aluzdodiajánofimmaldavaparaavistaremovultosombriodoolivaleacasinhadodono.Havialuzdentro.

—Queluzusamporaqui?—perguntouEmília,eaosaberqueeraaluzdos candeeirosde azeite riu-sededó e contou ahistóriado gás eda luzelétrica. Hércules não podia compreender outra luz que não a doscandeeirosdeazeiteeadosarchotes.Emíliaexplicou-secomopôde.Faloudosfósforos,unspauzinhosqueseacendemcomumasimplesesfregaçãonacaixa,efaloudosbotõesdaeletricidade,que"agenteapertaetodasaslâmpadasseacendem."Opobreheróiestavatonto.Chegaram. Encontraram a casinha fechada. A luz, interna aparecia por

umafrinchadaporta.Hérculesapeoudeseusombrososdoisengarupadosejogouapelenochão.Pedrinhoadiantou-seetoque,toque,toque,bateu.

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—Quemé?—respondeuumavozládentro.—Somosviandantesquequeremospouso—gritouomenino.Imediatamenteaportaseabriueacaradopastorzinhoapareceu.—Boanoite,amigo!—dissePedrinho.—Estámereconhecendo?—Sim,vocêesteve lánopastodos carneiros,naquelahoraemqueo

leãourrou...— Exatamente. E de lá fomos à Neméia e encontramos Héracles e

"matamos"oleãodalua.Aquiestáapele...Só então o pastorzinho deu com o vulto agigantado do herói — e

tremeu.Ficousemfala.—Nadademedos—dissePedrinho.—OamigoHéraclesédeboapaz.

Eusouoseuoficialdegabinete.Eletirouapeledoleãoeandaemprocuradequemasaibacurtir.Vocêdeveentenderdecurtimentodecouros,não?

O pobre pastorzinho gaguejou que sim, sem que seus olhos sedespregassemdotremendovultodoherói.

—Poisentãoestátudoótimo.HérculesvaideixaraquiocourodoLeãoda Neméia para que você o prepare como faz aos pelegos. Ele querservicinhobemfeito,estáentendendo?

—E tambémqueremosquenosdêpousadapor estanoite—ajuntouEmília.—Queméodonodacasa?Você?

O pastorzinho explicou que não. Os donos estavam fora, tinham idoconsultaroOráculodeDelfos.Eleficaratomandocontadetudo,mascomordemdenãodeixarentrarninguém.Pedrinhoobjetouqueotal"ninguém"nãopodiareferir-seaeles,porqueeleserameleseHéracleseraofamosoHéracles, o grandebenfeitordaGréciaqueacabavade libertar a zonadomaisterríveldosleões.

O pastorzinho, trêmulo como geléia fora do cálice, abriu a porta.Hérculesentroucomosoutrosatrás.

Casinhamodesta,dehumildesagricultores,fabricantesdeóleodeoliva.Aazeitonaeraaprincipalculturadosgregos.Nãosóausavamnacomida,como para a iluminação. Havia ali na sala uma prensa rústica de extrairazeite.

Emília,lampeiríssimacomosempre,foitomandocontadacasa.Varejouosquartos,mexeunosguardados, foi ter à cozinha.Viu láo fogoacesoeumapernadecarneironoespeto.Opastorzinhoestavapreparandooseujantar.

— Viva, viva! — exclamou ela cheirando a carne assada. —Está noponto. Mas isto aqui dá só para o pastorzinho. Pedrinho e eu. Como iráHérculesarrumar-se?

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Efoiparaasaladiscutiroassunto.—Encontreiopastorassandoumlindopernilquesódáparanós.Eo

SenhorHércules?Comovaiarranjar-se?Hérculeseraumgigantedeestômagogigantesco.Comiaumboiinteiro

com amesma facilidade comque Pedrinho comiameio frango assado. Oassuntofoirapidamentedebatido.Hérculesdeclarouqueestavacomfomee,comonãohouvesseporalinenhumboi,contentava-secomtrêscarneiros—efoiaocurralexaminarosquehavia.

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VII-OJantardoHerói

Opastorzinhoestavanamaioraflição.Trêscarneiros!Quecontairiadaraospatrõesquandovoltassem?Pedrinhotomouapalavra.

—UmheróicomoHérculesnuncapensaemdinheiro,nuncaandacomdinheiro no bolso — e nem bolso ele tem, pois vive nu, de tanga. E odinheiro que eu tenho comigo não vale nada nesta Grécia Heróica. Maspodemos fazer um negócio; sou dono aqui deste canivete que o próprioHércules acha a maravilha das maravilhas — e mostrou o canivete aopastorzinhodepoisdeabrira lâminagrande."Vejaquecorte.ÉRodger,amelhormarcainglesa.Valeseiscarneiros;mascomonãosoucigano,troco-oportrêsapenas...

O jovem grego, já sorrindo, examinou atentamente a maravilha.Experimentoualâminanumpauzinho.Quefio!

—Poisaceitoonegócio.Eatédouemtrocaosseiscarneiros.—Paraquequeroseis?—dissePedrinho.—Amanhãvou-meembora

paralonge.SómeinteressamostrêsqueoSenhorHéraclesvaidevorar.Estavamnesseponto,quandoHérculesapareceucomtrêscarneirosàs

costas, já de pescoço torcido. Ele matava carneiros como tia Nastáciamatavafrangos.Zás,trás,pronto.

Ecomoassaraquilo?Estáclaroqueláfora,poisnofogãodacasinhaeraimpossível.

Hérculesarrancouváriasárvoressecas,comraizetudo,eamontoou-as.OViscondelevoubrasasdacozinhaeacendeuafogueira.Quandotudosereduziu a tições, Hércules preparou três espetos e enfiou neles os trêscarneiros,depoisdetirar-lhesaspeleselimpá-losdasbarrigadas.Umfortecheiro de carne assada invadiu a casinha. O jovem grego olhava, olhava.Quandohaviade imaginarsemelhantecoisa?ElealidiantedeHéracles,omais famoso herói da Grécia, o matador do Leão da Neméia e autor detantasfaçanhasquecorriamdebocaemboca!...

Enquanto se assavam os carneiros, todos ficaram em redor do fogotrocando impressões e contando histórias. Pedrinho mostrou-seinteressadoemsaberdavidaali.

—Queéquevocêsgregosfazem?Comosevestem?Quecomem,alémdecarneiroassado?

Eopastorzinhoatudoatendia.Deu-lhesumaboaidéiadavidasimplesque levavamos gregosdaGréciaHeróica e indagouda que eles levavamnostaistemposmodernos.

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— Ah, nem queira saber, greguinho!- respondeu Emília. —Nós lávivemosumavidaquevocêsnãopodementender.Tudodiferentíssimo,tãodiferente que não vale a pena tocar no assunto. Quando estivemos emAtenas—nafuturaAtenasdotempodePéricles—foiumtrabalhãoparafazeraquelesescultorese filósofosentenderemumbocadodanossavidamoderna.Porfimdesistimos.Emcomparaçãocomanossaépocamoderna,vocêssãoatrasadosdemais...

Os carneiros já estavamno ponto.Hércules arrancou umdo espeto epôs-seacomê-lo,comoPedrinhocomiamangaslánosítio:davamordidasebesuntava-setododegordura.Comeuostrêscarneiroscomosefossemtrês queijadinhas. Depois limpou a boca nas costas da mão e disse queestavacomsono.Recolheu-se.

Cama para umhomemdaquele não havia. O remédio foi arrumar-lheunspelegosnochãodasala.Seispelegos—eeleaindaficoucomospésdefora!...

Num instante dormiu, tal qual criança nova que se deita e já vaifechandoosolhos.

Os outros ainda se quedaram por ali a conversar. Pedrinho contou ahistóriadalutadeHérculescomoLeãodaNeméia.

—Ah, foi bonito! Nós lá de cima da árvore não perdíamos nem umaisca.Primeirolançouumasériedeflechas,masfoiomesmoquenada.Eraleão dos invulneráveis. As setas batiam-lhe de encontro ao peito eespatifavam-se, ou entortavam a ponta. Depois atacou-o com a clava—comatremendaclavafeitadumtroncointeirodeárvore,eaclavapartiu-seemmil pedaços, como se fosse de vidro. Depois Emília gritou: "Agarre-opelopescoçoeafogue-o!"efoioqueelefez.Atracou-seaopescoçodoleãoeestrangulou-o...

Opastorzinhoestavaassombrado.— Felizmente!— exclamou.— Esse leão andava fazendo osmaiores

estragosnopovodaNeméia.Sósealimentavadecarnehumanaenãohaviao que lhe chegasse. A semana passada comeu cinco homens, quatromulheresetrêscrianças...

UmacoisapreocupavaPedrinho:comoéque,sendoinvulnerável,oseucanivete cortara tão bem a pele do leão?Mistério. Emília veio com umaexplicaçãocomoonarizdela."ÉqueeracaniveteRodger..."—eoViscondeapresentouumaidéiamaiscientífica:"Invulnerávelenquantovivo;depoisdemortoperdeuainvulnerabilidade."

—Mas,sendoassim—lembrouPedrinho—denadavaiadiantarparaHérculesumescudofeitodessapele,jáqueapelemortaévulnerável...

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Aquelepontoficouobscuro.A dormida dos picapauzinhos na casa do olival foi das melhores.

Estavam cansadíssimos, de modo que tiveram um sono de pedra. Só ojovempastornãoconseguiufecharosolhos.Héraclesalinasala,dormindonaqueles pelegos! Héracles roncando como um boi! Héracles com trêscarneirosassadosnobucho!Muitacoisaparaumpobrepastor...

Nodiaseguinte,muitocedo,oherói levantou-see foi tomarbanhonorioquepassavaaliperto.Quandovoltoujáospicapauzinhosestavamdepéecomsaudadesdocafédamanhãlánosítio.

—Ah,tiaNastáciaaqui!—suspirouPedrinho.—Oquemaisfaltamefaznestasexcursõesésempreaquelecafédamanhã,compão-de-ló, combolinhosdemilho,combroinhasdefubá—todososdiaselainventaumacoisanova...

O"café"alinoolivalera leitedeovelha,só,semmaisnada.Emília fezcareta,mastomou-o;depoisfoiaoléuembuscadeazeitonas.Haviaporlátinasprópriasparaamaceração,semprecheiasdeazeitonasnasalmoura.

—Leitecomazeitonas!—disseela.—Estáaquium"cafédamanhã"quenuncaimaginei...

HérculesdeclarouquetinhadeiràcidadedeMicenas,ondemoravaoReiEuristeu,paradarcontadafaçanharealizada.

—Queremircomigoouficamaqui?—perguntoueleaPedrinho.— Ficar aqui fazendo o quê?— foi a resposta domenino.—Viemos

para assistir a todas as suas façanhas, SenhorHércules, não viemosparaficarcolhendoazeitonasnumolival...

—Poisentãoaprontem-sequevoupartir.Na véspera tinha vindo o Visconde sentado sobre a pele do leão, no

ombroesquerdodeHércules,muitoacômodonomaciopêlodafera.Masagora? Como poderia manter-se naquele ombro nu — manter-se a si eaindatomarcontadacanastrinha?

Emília achou melhor que Hércules conduzisse a sua canastrinha jámuito pesada para o pobre Visconde. E arranjando com o pastor umacorreia de bom comprimento, atou as pontas nas alças da canastrinha eentregou-aaoherói.

—Leve-aatiracolo,comosefosseoseubinóculo,SenhorHércules—eograndeheróigregoobedeceu:arrumouacanastrinhadaEmíliaatiracolocomosefosseumbinóculo...

Pedrinhoriu-seconsigomesmo,comoquemdiz:"Adiabinhajátomoucontadestemassa-bruta.Jáfazdeleoquequer...

Hérculesdisse aopastorzinhoquevoltariamais tarde,depoisdapele

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curtida— ou então mandaria buscá-la pelo seu escudeiro Sabugosa. Aoouvir isso, o Visconde arregalou o olho. Ter de voltar ali e levar paraMicenasaquelecourodeleãodalualhepareceuaventuramaiorquetodososTrabalhosdeHérculesjuntos.EolhouparaEmíliacomardequempedesocorro.Emíliariu-se.

—Nãoseaflija,Visconde.Nahoradouumjeitoqualquer.Partiram.Opastorzinhoficoudepénasoleiradaporta,aacompanhá-

los com os olhos. Ainda não voltara a si completamente. A estranhaaventura da véspera era das que escacham com qualquer pastor. Depoislembrou-se do canivete e riu-se. Foi buscá-lo. Tentou abri-lo. Não sabia.Lida que lida, acabou também cortando o dedo. Atou-o com uma tira depanoevoltouàporta.

Jáiamlongeosaventureiros.Pedrinhocorriaatrásdoherói,comoumcachorrinhocorreatrásdumtouro...

****

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2-AHIDRADELERNA

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I-OsCentauros

Apesar de já de língua de fora, Pedrinho não cessava de admirar amaravilhosamusculaturadeHércules.JáEmílianãodavaàquilonenhumaatenção.Oquequeriaeraprosa,esobretudoconvenceroheróideirpassarunstemposnoPicapauAmarelo.

—Nãohánadademaisnisso—diziaela.—AtéD.Quixotejáestevelá,e bem que dormiu uma soneca na redinha de Dona Benta. Você não vaisentir nenhuma diferença de clima, porque aquilo lá é uma Grécia, domesmomodoqueestaGréciaaquiéosítiodeDonaBentadaantiguidade.

— Mas há lá, então, os mesmos seres que existem por aqui? —perguntouHércules,semmoderaramarcha.

—Háenãohá—respondeuEmília.—Háporqueàsvezesosmesmosdaquiaparecemporlá,comoaconteceucomaQuimera.Enãoháporque...

Oheróiinterrompeu-acomcaradeespanto.— A Quimera? Pois esteve lá a Quimera?... Aquele monstro horrível

contraoquallutouBelerofonte?...—Issomesmo—confirmouEmília.—FoivencidaporBelerofonte,o

qual, entretanto, não amatou bemmatada. AQuimera sarou e virou umverdadeiro monstro doméstico. Ele tem dó dela, coitada, e guarda-a noquintal,comofazotioBarnabécomaqueleburrovelho.Jánãosaifogodesuaboca,sóumafumacinhadevulcãoextinto.

—EcomofoiaQuimerapararlá?quissaberHércules,aindaadmiradodetamanhoprodígio.

— Ah, isso aconteceu quando todos os personagens do Mundo dasFábulas resolverammudar-se para as "TerrasNovas", isto é, as fazendasvizinhas que Dona Benta comprou especialmente para acomodá-los— eEmíliadesfiouoprincipaldasaventurascontadasno"OPicapauAmarelo."

HérculesgostoumuitodopedacinhoemqueSanchoaparecenopaláciodoPríncipeCodadade,embuscaderemédiosparaasmachucadurasdeseuamoD.Quixote,oqualhaviatidoumencontrocomaHidradeLerna.Riu-secom desprezo. Não hámaior desprezo do que o dos heróis antigos paracomosheróismodernos.

—AtacaraHidradeLerna,ah,ah...Équeelenãosabequeessemonstrodenovecabeçastemumaimortal.Homemnenhumpoderádestruí-la—emuitoreceioqueEuristeume imponhacomoSegundoTrabalhouma lutacontraaHidradeLerna...

Depois,voltandoaD.Quixote,riu-sedenovo,ah,ah,ah...

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— Com aquele espeto comprido que ele usa quando monta emRocinante.Rocinanteéocavalodele—magrocomoumcambau.

OVisconde,ládooutroombro,cochichouaoouvidodeHérculesqueotalespetocompridoeraumalança.

—Sim,uma lança—repetiuoherói.—Chegaa ser irrisório!Masseesse tal herói saiu da luta apenas machucado, então é que a hidra nemsequer lhe deu a honra de atacá-lo com uma das suas nove cabeças—limitou-seadar-lheduasoutrêschicotadascomapontadacauda.Ah,ah,ah...

A risada de Hércules encheu Pedrinho de curiosidade. "Que será queestãoconversando?"Elenãoagüentavamaisacarreirinhanotrote.Sentia-sefrouxo.Crioucoragemegritou:

— Senhor Hércules! Pare um bocadinho. Preciso descansar unsminutos...

Oheróiparou,virouorostoedeucomoseuoficialdegabineteláatrás.Riu-see,comotivessemuitobomcoração,atendeuaopedido,domeninoquasesemfôlego.Ficouaesperá-lo.

—Omeuoficialestá frouxo—murmurou.—Muitopequenoparameacompanhar. Mas com paradas assim, quando chegaremos a Micenas?Vamos lá, senhora dadeira de idéias. Dê uma idéia que resolva esteproblema.

Emília tinha mais idéias na cabeça do que um cachorro magro tempulgasnopêlo.Resolveuocasonumápice.

—Ojeitoquevejoéum,umsó,amigoHércules:arranjarparaPedrinhoumcavalo,porqueapéjáviquenãonosacompanha.Seestádelínguadeforanocomecinhodasnossasaventuras,imaginenofim...

Depoisteveumaidéiamelhorainda.— Cavalo, não, Hércules. Um centauro!... Pedrinho a nos acompanhar

montadonumcentauro,haverácoisamaislinda?Hérculessorriu.—Oscentaurossãomonstrosindomáveis.Jáluteicontraelesesei.—Umpotrinhodecentauro—sugeriuEmília.A idéia abalou Hércules. Sim, um potrinho de centauro talvez fosse

amansável..ElejamaispensaranissonemninguémalinaGrécia.— Podemos tentar, não há dúvida. Aqui perto fica a querência duma

manada de centauros. Se entre eles houver um bom potrinho, podemoslaçá-loeexperimentaroamansamento.

EstavamnessepontoquandoPedrinhoosalcançou.—Uf!—foiexclamando,enquantosesentavanumapedra.—Estoua

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botarosbofespelaboca...—Masoremédioestáachado,Pedrinho—disseEmília ládecimado

ombrodoherói.—Hérculesvaiarranjarparavocêumcentauro...Pedrinhoarregalouosolhos.—Umcentauro?Euláagüentoandarmontadonumdessesmonstros?—Umcentaurofilhote,Pedrinho.Umpotrinhodecentauro...O rosto domenino iluminou-se. Se era um potrinho, então podia ser

viável—equegostooseu,quandodevoltaaoséculo20pudessecontaratodomundoqueasuamontarialánaGréciaforaumpotrinhodecentauro!AinvejadoJojocaedosoutros.Assuasentrevistasaosjornais...

—Eondeencontraremosisso?— Por aquimesmo— respondeu Hércules.— Eu estava contando à

dadeira de idéias que fica por estas paragens a querência dum pequenobandodecentauros.Muitoprovávelquehajaentreelesalgumnovinho...

DisseetambémsesentouemoutrapedraaoladodePedrinho,apeandoEmíliaeoVisconde.Aexbonecanãocabiaemsidetantaimportância.Asuaúltima idéia aumentaramuito a consideração em que o herói já a tinha."Dadeiradeidéias",sim,edasboas...Restavadescobriremquerumoficavaatalquerência.OViscondeaproveitouoensejoparamostrarasuaciênciafilológica.

— Querência!— exclamou.— Gostomuito desta palavra. É como láondemorooscampeirosdenominamoslugaresondeosanimaisnascemepassamosprimeirosanos.Ficamquerendobemaesses lugares, e seumcampeiroos levaparalongeesolta-os,elesvêmcorrendoparaali.Éumapalavraquevemdoverboquerer...

Mas Hércules não queria gramática, queria descobrir o ponto dereunião dos centauros, e para isso ergueu-se e pôs-se a sondar oshorizontes.Seunarizfarejava.Depoisdisse,apontandoemcertadireção:

—Deveserdestelado...—Comosabe?—perguntouEmília.—Saberpropriamentenãosei,massinto,tenhoumpalpitequeéneste

rumo—eapontou.— E são bons os seus palpites, Senhor Hércules? Lá em casa a

palpiteira-mor é tia Nastácia. Outro dia teve um palpite na Vaca e jogoudoiscruzeiros.Quaseacertou.DeuoTouro—pertinho...

Hérculesnãoentendeu,porquenaGréciasóhaviaos JogosOlímpicos,nãohaviaoJogodoBicho.

—Poisentãovamospara lá—propôsPedrinho jáansiosoporver-semontadonumpotrodecentauro.

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Foram.AumquilômetrodedistânciaHérculesentreparoueaspirouoar,comofazumcachorroperdigueiro.

—Bom—disse ele.—Estamosperto.Voudeixarvocêsocultos aquinestamoitaparaquenãomeatrapalhemnolaçamentodopotrinho.Mas...elaço?Comoarranjareiumlaço?

Nãohavia laçoporalinemsequercipó—eHércules ficousemsabercomo agir. Estava acostumado a atacar centauros com suas flechas emesmocomaclava,masagoratinhadeapanharumvivo—ecomo,semlaço? Hércules olhou para Emília com ar de quem diz: "Vamos, dê umaidéia."MasdessavezquemdeuaidéiafoiPedrinho

—Nadamaisfácil—disseele.—Lánospampasosgaúchospegamosanimaisdedoisjeitos:comlaçooucombolas...

—Queéissodebolas?—quissaberoherói.—Ah,éumaespertezadasboas.Elesarranjamtrêsbolasbemrijas,aí

dotamanhodelaranjas,easprendemaumacorreiadecertocomprimento;depoisjuntamastrêscorreiaspelaoutraponta,numnó.

—Mascomoéquecomissopodempegarcavalo?— Muito simples. Eles correm atrás dos cavalos bravos e quando

chegam acerta distância giram no ar as três correias com bolas earremessam aquilo de encontro às pernas dos animais. As bolas vãoregirandopeloareaodaremdeencontroàspernastraseirasdoscavalos,enrolam-se—elesperdemoequilíbrioecaem.

Hérculesadmirou-semuitodaesperteza.Bemrazoável,sim.Mascomoarranjartrêsbolas?

Pedrinhoresolveuoproblema.—Trêspedrasmais oumenos redondas servem—e aqui hámuitas.

Vouescolhê-las.Num instantedescobriu três pedras arredondadas, assimdo tamanho

delaranjas.Voltoucorrendo.—Estasservem,ecorreiatemosadacanastrinhadaEmília.Hércules encarregou-o de fazer as "bolas" — e em quinze minutos

Pedrinho deu conta do recado. Ficou um jogo de bolas bem tosco, masservia.Depoisfezumademonstraçãodomanejodaquilo.

Regirouasbolasnoareprojetou-asdeencontroaduasvarasfincadasacertadistância.Asbolasbateramnasvaraseenrolaram-senelas.

— Está vendo? — disse o menino radiante. — Se em vez de varasfossemaspernasdocentaurinhonacorrida,eleperdiaoequilíbrioevinhaaochão.Entendeu?

Apesardeburrão,Hércules entendeuperfeitamente; e chegou a dizer

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quesesaíssebemcomasbolasnocasodocentaurinho,iaadotarosistema.Além do arco e da clava, levaria também consigo um bom jogo de bolassemprequesaísseparaaventuras.

— Faça uma prova, Senhor Hércules— propôs Emília. —Aprenda acalcularbemaforça.

Hérculesfez.Tomouasbolas,regirou-asnoarcomoviraomeninofazerearremessou-asdeencontroàsduasvaras.

Mas foi um desastre. As duas varas foram arrancadas do chão esumiram-seaolonge,arrastadaspelaviolênciadoimpacto.

—Suaforçaégrandedemais,SenhorHércules—disseEmília.—Temquelançá-lassócomumaforcinha...

O herói repetiu a experiência e por fim acertou o "ponto de bala" daforça.

—Ótimo!—disseele.—Agoramevou.Fiquemaquibemquietinhos,quenãomedemorarei.

EHérculespartiunorumodaquerênciadoscentauros,comasbolasaoombro.

OViscondefilosofouqueolaçodelaçaranimais,asbolasdeembolá-los,as armadilhas de apanhá-los vivos, tudo são produtos da inteligência emsua lutacontraa forçabronca.A forçanão temesperteza,éburríssima,eporissoacabasemprevencidapelaespertezadainteligência.

Emíliaassanhou-setoda.Espertezaeinteligênciaeramcomela.—Seidisso,Visconde.DepoisquedomeioQuindimeagoratomeiconta

deste Hércules, estoumais convencida que a verdadeira força é a cá domiolinho...

Conversarammilcoisas.OsabugoinformouqueasegundaaventuradeHérculesiaseropegacomaHidradeLerna,façanhaaqueelesjáhaviamassistido.

—Valeráapenarepetir?—Paramim,não—disseEmília.—Écoisavistaejácontada.Podemos

acompanharoSenhorHérculesatéLerna,elá,enquantoelemataaHidra,nósnosdivertiremoscomqualquercoisaquehouver.

Eassimficouassentado.Umahorapassaramalidentrodamoita,projetandoistoemaisaquilo.

Pedrinhoaproveitouapausaparaumasoneca.Súbito,umrumorestranho.Correramparafora.Olharam.LálongevinhavindoHérculesatracadoaumcentaurinho. Ah, bem que ele pinoteava e corcoveava, mas que animalnaquelesmundosjamaisescapoudasunhasdoherói?Pedrinhosuspirou.

—Seébravoassimaquelepotro,nãoseioqueserádemim...Sóseeu

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aplicarapeia...Ele chamava assim uma correia atada às duas patas traseiras dos

cavalosdemodoaimpedi-losdedisparar.Apeiaembaraçaolivrejogodaspernas.

Hérculeschegou,rindo-se.— Deu tudo certo — disse ele. — Encontrei um bando de oito

centauros, comestepotrinhonomeio.Fuimeaproximandoagachado,demodoquenãomepercebessem.Quandomeviaboadistânciaparalançaras bolas, ergui-me de repente e volteei-as rápido no ar. Os monstrosassustaram-seefugiramnumgalopelouco.Opotrinho,comoomaisfraco,galopava na rabeira. Eu, zás! Lancei as bolas com o mínimo de forçapossível. As bolas assobiaramno ar e pegaram-no pelas pernas. O pobreanimalzinholevouomaiortombodesuavida.Reboloupelochãocomoseestivessevirando cambalhotas.Osoutros sumiram-seao longe, enquantoeu alcançava este antes que tivesse tempo de desembaraçar as patas. Eagarrei-o.Cáestáasuamontaria,Pedrinho.

—TemosquelheaplicarapeiadisseEmília.Hércules ignoravaoque fosse.Pedrinhoexplicoue aplicouo sistema.

Apesardosvalentescoicesdopotro,conseguiupear-lheaspatastraseiras,demodoadeixá-losemmovimentoslivres.

— Pronto, SenhorHércules!— gritou omenino depois de acabado oserviço.Podesoltá-lo.

—Esefugir?—Nãofoge,não.Noprimeirotrancoquederparafugir,caiporterra,

domesmomodoquequandofoiembolado.Hércules afrouxou o braço. O centaurinho desembaraçou a cabeça e,

supondo-selivre,deuumarrancoparaescaparnogalope.Ah,quemdisse?Saiu tudo exatinho como o menino previra. A peia agiu que nem deencomenda, e o potrinho rolou no chão, vencido. Ergueu-se, fez novatentativa para escapar no galope e foi novo tombo. Terceira tentativa,terceirotombo.Ecomojáestivesseexaustodetantaluta,sossegou.

Depois de descansar uns instantes, respirando ofegantemente, opotrinhoaindafezduasoutrêstentativasdefugamasosnovostombosquecaiufizeram-nocompreenderqueeratudoinútil.Estavavencido...

—Podemontar—gritouHércules.Ainda com medo, o menino aproximou-se do centauro. Fez uma

tentativaparasaltar-lhesobreo lombomasopotro refugou, fugiucomocorpoePedrinhocaiu.

— Coragem! — gritou Hércules. Tente de novo — e foi agarrar o

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rebeldepelopescoço.Dessavezomeninoconseguiumontar.—Possolargá-lo?—perguntouHércules,queaindaoconservavapreso

pelacintura.—Pode!—respondeuPedrinhocorajosamente,eHérculeslargou-o.Ah,ospinotesqueoanimalzinhodeu,oscorcovoseasnovasquedas!

MasPedrinhoeraumverdadeirodomadordecavalobravo.Tantosehaviaexercitadolánosítiocomopangaréeoutrosanimaisnovos,queficouemcimadocentauroquenemumcarrapato.

—Agüenta, Pedrinho!— gritava Emília entusiasmada.—Mostre paraesseboboqueemoutravidavocêjáfoicowboydecinema.

Até o Visconde, sempre tão calmo e científico, se entusiasmou. Batiapalmas,dançava.

Os centauros são homens e cavalos ao mesmo tempo, e como têm apartedianteirahomem, comcabeça,peito ebraçosdehomem,pensamesentemcomooshomens.Efalam.

O centaurinho, convencido de que fora domado, aquietou-se e falou.Perguntou porque lhe faziam aquilo. Emília explicou tudo tão bemexplicadoefez-lhetaisetaispromessas,queelenãosósossegoucomoatéchegouasorrir.

—Pois é isso—concluiu ela radiante.—Podemos te levar lá paraosítio:JátemosorinoceronteeoBurroFalanteeaVacaMocha.Evaiveroqueévidaboa,meuamor!Agentebrincadetudo,atédeviagemaocéu.

Daíapoucoestavammaiscamaradasdoquesetivessemnascidojuntos.Hérculesnãovoltavaasidoespanto.Queprodígioseramaquelastrês

criaturasdotalséculo20!Tinhamidéiasmelhoresquetodasas idéiasdaGrécia. Resolviam problemas dos mais complicados. Chegavam até arealizar prodígios ainda maiores que as suas façanhas. Domesticar umpotrinhodecentauro!...QuemnaGréciaHeróicajamaispensaranisso?

E seus olhos não se despregavam do maravilhoso quadro: Pedrinho,Emília eoViscondebrincando como centaurinho—brincando, comoascriançasbrincamdecorre-corre,esconde-esconde,chicote-queimado...

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II-EmMicenas

AviagemdaliparaMicenasfoiumregalo.Estavaresolvidooproblemado transporte não só de Pedrinho como dos outros dois e da canastra.Todos e tudo no lombo daquele novo amigo conquistado graças àsexcelentes idéias de Pedrinho e tão bem engambelado pelas lábias daEmília. Até o Visconde, que nunca havia brincado por causa da suagravidade de sábio, resolvera brincar também — e brincava muitodesajeitadamente,mascomgrandeprazer.

EmíliacochichouparaPedrinho:— Veja o milagre! O nosso Visconde era um verdadeiro caixão de

defunto,detãosério—pareciaatéoBurroFalante,quejamaisbrincouemtodaasuavida.Agoraestáatébobo,afazercoisasdepalhaço...

Depoisdemuitocaminhar,avistaramaolongeumacidade.—Micenas!—exclamouHércules.LámoraoReiEuristeu.Vamostodos

juntosaopalácioouvoueusó?—Todosjuntos!—berrouEmílialádecimadocentauro.—Querovera

caradessemalvado.—Porquemalvado?—perguntouHércules.ObomHérculesnadasabiadaterríveltramacontraelecozinhadaentre

osdeusesdoOlimpo.ForaporinstigaçãodeHeraqueoOráculodeDelfosomandoudirigir-separaMicenas,quando,depoisdasualoucuraassassina,oherói pensou em castigar-se com o desterro. A razão era a seguinte.EuristeuvieraaomundoantesdeHércules,eHerahaviapedidoaZeusqueconcedesse ao futuro rei uma graça, qual a de "dominar a todos os seusvizinhos." Como Hércules fosse nascer logo depois nas proximidades deMicenas,tinhadeficarsubmetidoaEuristeu,eissoporumdecretodoDeusSupremo—decretoquenemessepróprioDeusSupremopodiarevogar.Atramóia de Hera deu certo. Embora fosse o tremendíssimo herói quesabemos,tinhaopobreHérculesdeficarsempresubmetidoaEuristeu.Eorei títere vivia lhe ordenando que executasse tais e tais trabalhos,escolhidosentreosmaisperigosos,paraquedeummomentoparaoutroele acabasse vencido e destruído. O primeiro trabalho de que EuristeuencarregouHérculesfoioquejávimos:iràNeméiaedarcabodoleãodalua. Se por acasoHércules voltasse com vida, Euristeu o encarregaria deoutroaindamaisperigoso—eassimatédarcabodele.TudoporinstigaçãodaciumentaHera...

Os picapauzinhos sabiam disso, porque eram do século 20, mas

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Hérculestudoignoravae,portanto,nadasuspeitavadaquelaconspiração.Aentradados expedicionários emMicenas foi omaior acontecimento

jamaisocorridonaquelacidade:Hérculesnafrenteeumcentaurinhomuitorisonho atrás, com três criaturas no lombo — uma compreensível: ummenino, embora vestido exoticamente; e duas incompreensíveis: umaminiatura de menina, aí de três palmos de altura; e uma "aranha decartola." Como naquele tempo não houvesse milho, já que o milho éorigináriodaAméricaesóseriaconhecidonaEuropadepoisdeCristóvãoColombo,ninguémpodiaadivinharqueocorpodetalaranhanãopassavadeumsabugodeespigademilho.

A notícia correu e o ajuntamento nas ruas foi se tornando cada vezmaior. Nas proximidades do palácio, os expedicionários tiveramde abrircaminhonamultidão.

OReiEuristeuficoudesapontadíssimocomavoltadoherói,poisestavamaisquecertodesuamorte.SeoLeãodaNeméiaerainvulnerável,comopoderiaalguémescapar-lhedasunhas?

— Sim, Majestade — disse Hércules. Matei-o, sim. Matei o Leão daNeméia...

Euristeusofismou.—Equeprovasmedádisso?Trouxeapeledoleão?—Eu ia trazer— respondeuHércules—mas "eles" acharammelhor

queeuadeixassenumcurtidor.— Eles quem?— berrou o rei, mal dominando a sua cólera, filha do

despeito.— O meu oficial de gabinete, a Emília "dadeira de idéias" e o meu

escudeiroSabugosa...O rei nada entendeu e ainda mais colérico ficou. E quase estourou

quandoHérculesfezaapresentaçãodostrêspicapauzinhos.—Aquiestãoeles—Pedrinho,EmíliaeoVisconde...Oscortesãosaproximaram-sedoreiederam-lhechádeerva-cidreira.

Euristeusossegouumpoucomais.—Masapele?Querosaberdapele.Façoquestãodeverapele.— Verá, Majestade— respondeu Hércules com amaior paciência—

massódepoisdecurtida.Jádetermineiaomeuescudeiroquefossebuscá-lanocurtidor, lápertodaNeméia,quandoestiverpronta.Coisadepoucotempo.

Emíliaresolveumeterobedelho.—Majestade—disseespevitadamentecomoeraseucostume—nãoé

sóapelequemostraqueumleãofoimortoasgarrastambém...

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Oreificounamesma.Emíliacontinuou:—Eu trouxe em minha canastra de viagem três unhas desse leão. E

voltando-separaoVisconde:"Vábuscarminhacanastrinha."O Visconde foi e voltou com a canastrinha às costas, bufando. Emília

abriu-a,tirouastrêsunhasdoleãoeapresentou-asaorei.—Unhasdeleão,isto?—exclamouoestúpidosoberano.—Esporasde

galovelho,issosim.Nãomeenganam,não.Queroapele.Hércules conformou-se e prometeu apresentar-lhe a pele dentro de

alguns dias. Apesar de toda a sua má vontade, Euristeu foi obrigado aconcordar.

Deixandoopalácio,tratouHérculesdeacomodar-seemMicenas.Comoocurtimentodumapelelevadias,eleeraforçadoaficarporalimatandootempo.Emíliateveumaidéia.

—Enquantoestamosparados,podemos fazerumacoisa:umcircodecavalinhos!Hérculeslevantarápesosincríveiseentortarábarrasdeferro.O centaurinho poderá fazermuita coisa, pular arcos, dar coices, além deque só sua presença já é um acontecimento. Esta cidade nunca viu nemsombradecentauro.

Mas Pedrinho achou bobagem pensarem tal coisa. Um herói comoHérculesprestar-seaexibir-secomohérculesdefeira!

—Oboméirmosesperarnumcampoaberto.IstodecidadesnãoserveparaHércules.Elenãocabenelas,ficadesajeitado,semmovimentos...Temque hospedar-se numa hospedaria como todomundo. Na hora do jantarcomoé?Vêmumascomidinhasparaamesa,quenãolhechegamnemparaacovadumdente.Nãomesaemdalembrançaoscarneirosassadosqueelecomeunoolival.Três,Emília,três!...

—Poisvousugerir-lheasua idéia,Pedrinho: irmosacampar longedacidade,numpontoondehajarebanhos.Etambémvoulhedizerumacoisa:quequemcomecomtamanhafúria,temquepagar.Issodecorrermundosem dinheiro no bolso não está certo. No olival você teve muita sorte:pagou os carneiros com o canivete—mas agora? Você não pode andardandotudooquetemparapagaroqueoheroísmocome.

Hércules tinha saído para acomodar o centaurinho numa estrebaria.Poucodepoisvoltou.Emíliafez-lhe"gestodesubir"—oudesersubidaaoseuombro.

Eraassimqueconversavacomotremendoherói,bempertinhodeseusouvidos.

—Hércules—disseaover-seláemcima.—Nãopodemosficarnestacidade. Não há espaço para você, não há carneiros para assar, o

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centaurinho vai ficar triste. Melhor irmos para um campo. Ar livre.Horizontes.Olivais.Carneirada.Riosparabanho...

—Era no que eu estava pensando— respondeuHércules.—Nãomeajeitoemcidades.Nuncameajeitei.Nãopossopôrospésnaruasemquecomecea juntar-segente.Tenhomedodequedesúbitomevenhaalgumacessodecóleraeeuosarrase...

Outro ponto sobre que discutiram foi a conveniência demandaremoViscondeparaoolival.

—Elequefiqueláaguardandooaprontamentodapele.—Evaimontadonocentaurinho?—Oh,não!—exclamouEmília.PorcoisanenhumanomundoPedrinho

entregaria o potro ao Visconde. Ele é sábio, Hércules, e os sábios sãopéssimoscavaleiros.Caíalogoeadeus,potro!Meioameioestámuitonossocamarada,mas...

—Meioameio?—interrompeuHérculessementender.— Sim, foi como batizei o potrinho. Está nosso camarada, mas de

repentevemasaudadedavidalivreebota-se.—Massenãovainocentauro,oescudeirinhotemdeirapé—eapé

levaumanoparachegarlá.—Apé,sim—concordouEmília—apéelelevaráumanoparachegar

aoolival.Masapó?Hérculesnãoentendeu.—Apó?—Sim.Seemvezdeirapé,eleforapódepirlimpimpim?OVisconde

trazconsigonacinturaumcanudodessepó.Conforme o tamanho da pitada, o pó leva a gente paramais perto ou

mais longe— e num instante. É zás, trás— pronto! A maior maravilhamodernaéonossopódepirlimpimpim.Querver?—eEmíliachamoupeloVisconde.

—Escuteaqui,sabinho.Resolvemosquevocêváesperarocurtimentodapelelánoolivalequepartaimediatamente.

—Nocentauro?—perguntouoVisconde.Emíliadeuumagargalhada.—Issoéoquevocêquer,maroto,para irbrincandopelocaminho—

maspensaqueoEncerrabodesdeixa?—Masseeunãofornocentaurinho,nãopodereitrazerapele...—Oranãopode!Nuncavicoisamaissimples.Bastavestirapelenum

carneirograndeeesfregarumapitadadepódepirlimpimpimnonarizdele—ocarneirovemchispando,comapeledequeestávestidoeaindacom

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vocêmontado.Eaquichegando,Hérculescomeocarneiro.O rostinho do Visconde iluminou-se. A solução pareceu-lhe

maravilhosa.EmíliaaindafezváriasrecomendaçõesesaiucomoViscondeafimde

ver nas lojas um presentinho para o pastor. De volta disse a Hércules,referindo-seaopó:

—Reparecomoistochispa.O Visconde tirou da cintura o canudinho de pó, tomou uma pitada e

um,dois...TRÊS!Desapareceucomoporencanto.

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III-OViscondeDesgarra-se

Ninguém notou o seguinte: quando o Visconde cantou o TRÊS e iaaspirando a pitadinha de pó, Emília, sem querer, esbarrou nele, fazendoqueunsgrãosdepócaíssemporterra.Coisadasmaisinsignificantes,quenemEmílianemViscondeperceberam—mas,bastouparaqueoVisconde,emvezdeiracordarnoolival,fosseacordarempontomuitodiferente:emSerifo, um lugarque elenem sabiaonde era, e acordoubememcimadotelhadodumpalácio.

Foi isso uma grande sorte, pois se caísse numa rua seria fatalmentecaçado e levado para algum jardim zoológico. Todos ali na Grécia oachavam com muito jeito de aranha. Mas havendo, sem que ninguém ovisse, aterrissado naquele teto, estava salvo — e se aspirasse umapitadinhamaisbemcalculadairiapararnoolival.

Aconteceu,porém,umacoisaextraordinária.OViscondeeraumsábio,eossábiosgostamdesaber.Quislogosaberquetelhadoeraaqueleequemmoravanopalácio.Algumrei?

O Visconde já de algum tempo andava transformado. Mudara muito.Perderaacasmurriceantiga,ria-se,diziagraças—echegouatéadançardecontentamento — coisa que deixou Emília muito apreensiva. Pois essamudançanoViscondeestavaserevelandotambémalinotelhado.Emvezde tirar da cintura o canudo de pó e tomar a pitadinha que o levasse aoolival,sópensavanumacoisa:levantarumatelha,esgueirar-separaoforrodacasaeládecimaespiaroquepudesse.Quantoàidaaoolivalembuscadapeledoleão,nissonempensou.

Visconde teve de fazermuita força para recuar uma das telhas. Suouparaoconseguir.Epassandopelafrestaentrounoforrodopalácio.Tudobastante escuro ali, naquele intervalo entre as telha do telhado e o forropropriamentedito.Mesmoassimencontrou várias rachinhas, pelas quaispodiaespiaroquesepassasseládentro.

Era o palácio do Rei Polidectes, o qual se achava celebrando umbanquetepormotivodeseunoivadocomHipodâmia.Nessafestareuniam-se os principais chefes guerreiros do país e vários heróis entre estes ograndePerseu.Estavamàmesadobanquete,muitoalegreserumorosos,jábastante bêbados. Em dado momento Perseu perguntou ao rei quepresentedesejavareceberdetodoseles.

—"Cavalos!"—respondeuPolidectes.— "Posso até presenteá-lo com a cabeça da Medusa!" — exclamou

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Perseu,jáperturbadopelosvinhos.—Darumcavaloépoucoparamim.Todosriram-sedetamanhabasófia,porquea talMedusaeraohorror

doshorrores.Mas ficaramsériose comdódePerseuquandoo reidisse:"Poisbem.Traga-meacabeçadaMedusa,emvezdumcavalo."

AMedusaeraumaGórgona!SómesmonaGréciapoderiaaparecerumacoisaassim.OViscondesabiadahistóriadasGórgonasepôs-searecordar.

—Eramtrêsirmãs:Esteno,EurialeeMedusa.Asduasprimeirastinhampropriedades divinas: não estavam sujeitas à velhice nem à morte. MasMedusaeramortal.Equefeia,quehorrendamegera!Tinhaorostosempreconvulso pela cólera e a fazer esgares. Os cabelos eram fios de bronzeentrelaçados de serpentes coleantes. Nariz chato, dentes de porco,alvissimos,eunsolhosmuitoredondos,quechispavamrelâmpagos.Negra.Vivia a lançar gritos— e eram os mais terríveis e espantosos gritos daantiguidade. E ainda tinha asas e braços de bronze. O pior da Medusa,porém,eraoseupoderdereduzirapedratodasascriaturasemquefixasseosolhos.

Impossível monstro mais hediondo e mais perigoso porque com umsimplesolharpetrificavaàdistânciaqualquerheróiquepretendesseatacá-la.

O banquete correu na maior animação até tarde da noite e por fimcomeçaramadispersar-se.OViscondepensou láconsigo: "PerseuvaiversetrazacabeçadaMedusaeeupossoassistiraessafaçanha"—etratoudesair para a rua. Como não houvesse iluminação de lampiões naquelestempos, o Visconde podia andar desembaraçadamente pela cidade, semmedodequeodescobrissemepusessemnummuseu.

Osúltimosconvidadosiamsaindo,eentreelesoherói.OViscondetinhade acompanhá-lo de longe, mas como, assim no escuro? Em resposta àssuasdificuldades,anuvemquetapavaaluaseesgarçouecaiusobreaterraumlindoluar.

OViscondepôs-seaseguiroherói.Perseucaminhavadecabeçabaixa,comoquemestáimersoemprofundacisma.Foiandandoatésairdacidade,eencaminhou-separaumapraiaaliperto.OreinodeSerifoeranumailha.

Lánapraiasentou-senunsarrecifes,comacabeçaentreasmãos.Nummomentodeentusiasmoalcoólicoforafazeraquelabravataeagoraarcavacom as conseqüências: tinha de levar ao Rei Polidectes a cabeça daMedusa... Mas como, se Medusa petrificava com o olhar quem dela seaproximava?TudoistooVisconde,escondidoaliatrásdelelheialendonaexpressãodorostoenaspalavrasquedevezemquandolheescapavamdaboca.

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Eestavanissoquando,derepente,surgeHermesouMercúrio.Hermeseraomensageirodosdeuses,oleva-e-traz.

—Queéqueopõetristeassim,Perseu?—perguntouHermes.Oheróicontouasuadesgraça.— Num banquete a nós oferecido perguntamos a Polidectes que

presentes queria receber. "Cavalos"— foi sua resposta— eu, já toldadopelovinho,prometi,sabeoquê?AcabeçadaMedusa...

Hermesanimou-o.—Para tudohá jeito,Perseu.Vouajudá-lo,e fareique lánoOlimpoa

deusaPalastambémoajude.Palasésuaamiga.Esentando-seaoladodoherói,começouaformularumplano.—Escute.HáasGreas,tambémfilhasdeForcis,comoasGórgonas.São

três:Penfredo,ÊnioeDero,eastrêssópossuemumdenteeumolho,dosquais se servem cada uma por sua vez. Você tem de ir procurá-las; e nomomento emqueuma for passandoo olhopara outra, temde agarrá-lo,bemagarrado.Elasvão ficarnamaiorânsiaparaque lhes seja restituidaaquelapreciosidade—eentãovocêimpõecondições.

—Quecondiçõesdevoimpor,Hermes?—Bastauma.Que indiquemocaminhoque levaàmansãodasninfas

possuidorasdosobjetosnecessáriosparaavitóriasobreaMedusa.—Quaissãoessesobjetos?—A coifa deHades que torna invisível quem a põe na cabeça; umas

sandáliasdeasaseumsurrão.—Paraqueessesurrão?—Éum surrãopróprio para conduzir a cabeçadaMedusadepois de

cortada.Façatudocomodigo,queirácobrir-sedefamacomumdosfeitosmaisprodigiososdestestempos.

OVisconde tudovia e ouvia. Prestoumuita atençãona vestimentadomensageirodosdeuses,quejáconheciadaquelavezemquecomPedrinhoe Emília penetrou noOlimpo.Hermes usava asas no calçado, para andarbemdepressa.Mensageirovagarosonãovalenada.

Bom.Hermesnão tinhamais nada a fazer ali.Despediu-se e lá se foi,velozcomoumpatinador.

Perseu estava radiante. Nunca um socorro divino chegara tão nomomento.E,levantando-sedapedra,pôs-seacaminhorumoàmoradadastrês Greas. O Visconde seguia-o rente— e teve de fazer prodígios paraacompanhá-lo.EnquantoPerseudavaumapassadaosabugotinhadedaroito. Por felicidade o herói não mostrava pressa nenhuma — iacaminhando vagarosamente. Afinal chegaram. As Greas estavam na sala

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examinandoumpontode tricô.Enquantoumaoviacomoolhoúnicodacasa, as outras esperavam a vez, completamente cegas. Depois o tricômudava de mãos e o olho também e assim as três se arrumavam paraenxergar.

Perseu entrou e apresentou-se— e enquanto uma o via com o olhoúnico,asoutrasdemonstravamamaiorsofreguidãoparareceberoolhoevê-lo também. "Dá cá o olho! Dá cá o olho!" diziam as duas cegas,espichandoasmãosparapegarapreciosidade.

Outramãotambémespichou—equandoaqueestiverausandooolhotirou-odaórbitaeestendeu-oparaasirmãs,quemoapanhoufoiPerseu.

O "fecha" foi tremendo. Gritaria histérica. Desmaios. Todas falavam aum tempo e ninguém se entendia. Por fim o herói conseguiu tomar apalavra.

— Escutem, tontas! Vou restituir oolho. Para que quero este olho setenho dois? Está claro que vou restitui-lo—mas só seme ensinarem ocaminhodamansãodasninfas...

— As que guardam os objetos necessários para a vitória sobre aMedusa?perguntaramastrêsaomesmotempo.

—Sim—respondeuPerseu.Elasrelutaram.Acharamqueeratraição.Perseuprocurouconvencê-las.

DissequeaMedusaeraummonstroquejáhaviafeitoadesgraçademuitagente. Se ele conseguisse cortar-lhe a cabeça, era umgrandebempara omundo.

As três Greas conferenciaram entre si, aos cochichos e por fimconcordaram.

—Poisnãohádúvida.Vamosrevelarocaminhoparaamansãodetaisninfasevocênosrestituiráonossoolho.

—Fechado!—exclamouPerseu.E assim foi. Elas ensinaram-lhe o caminho e ele lhes restituiu o olho

preciosíssimo.OVisconde,atrásdaporta,tudoviaeouvia.

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IV-ACabeçadeMedusa

Nas aventuras heróicas é o mesmo que na vida comum moderna. Omeiodeconseguirqualquercoisaédescobrirojeito.

Medusa abusava do seu poder porque até então só heróis poucoespertostinhamidocombatê-la.Atacavam-nacomoseatacassemumaferaqualquer—eiamficandoreduzidosaestátuasdepedra.ComPerseunãoiaserassim,porqueaprenderaojeitocertoeúnico.

O caminho para a mansão de tais ninfas era dos maiscomplicados.Tomavaporali,viravaacolá,torciaàesquerda,agoraàdireita.SómesmoseguindoumroteiroescritocomooqueasGreashaviamdadoaPerseu.

Afinaloheróichegouepediuastrêscoisas.Asninfasnãoopuseramamenor resistência. Parece que tinham ordem de entregar aquilo aoprimeiroquealcançassechegaratélá.

OVisconde,semprerente,espiandotudo,commuitascautelasparanãoservisto.Medodojardimzoológico...

A luaestavaquaseno fimde seu curso.Maisunsmomentoseo sol asubstituirianocéu—coisaqueparaoViscondeeraodiabo.Vinhadaíoseu interesse emque o herói concluísse a aventura daGórgona antes doamanhecer.Eláiaeletrotandoatrásdoheróijánapossedostrêspreciososobjetos. Não ficavamuito longe a casa ou o antro deMedusa. Anda queanda,trotaquetrota,chegaram.

Perseu espiou. Medusa estava dormindo despreocupadamente. Quehorrendaera!Apesardevaloroso,oViscondesentiu-sedepernasbambas.Tevedeagarrar-seàparede.

Perseufoientrandocomasmaiorescautelas,apesardeternacabeçaacoifaqueoinvisibilizava.Quandochegouàdistânciaprópria,tirouafacadacintura e com um golpe de mestre decepou a cabeça do monstro. Emseguidameteu-anosurrão.

Pronto!Estavarealizadaumadasmaioresfaçanhasdaantiguidade.O Visconde teve ensejo de ver bem como era a tal famosa cabeça da

Medusa.Osolhosnãoviu,porqueelaostinhafechados:morreradormindo.Mas viu-lhe os cabelos de bronze entremeados de cobras. Era umverdadeironinhodecobras,dasquaissóapareciamacabeçaemetadedocorpo.Ascaudasficavaminseridasnocourocabeludo,comoraizdecabelo.Horrendo,horrendo...

QuandoPerseudeixouoantrodaGórgonadecapitada,osdedoscor-de-

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rosa da aurora começavam a anunciar a vinda do sol. O Visconde pôs odedonatesta.

—Inútilcontinuaracompanhandoesteherói—refletiuconsigo—Jávioprincipal.O resto vai ser a entregada cabeçadaMedusa ao rei, o qualficarácomcaradebobo,admiradíssimodafaçanhadePerseu.Nãoprecisovermais.

Eassimpensando,tiroudacinturaocanudinhodepódepirlimpimpimemediunapalmadamãoadosenecessáriapara irdaliaoolival.Feitooque, aspirou-o — e pronto! Foi aterrissar diante da casinha. O pastorguardavaasovelhaslánopasto,etocavaamesmaflautadaqueledia.

OViscondeencaminhou-separaele.Quandoiachegando,ocachorroopercebeuepôs-se,comospêlosdo

dorso arrepiados, a recuar, e a rosnar na linguagem do "medo aodesconhecido",própriadoscães.

Opastorzinhoolhou.—Oh,aaranhadecartolaporaquioutravez?Queveiofazer?—Verseapeledoleãojáestápronta.Hérculestemdeapresentá-laao

rei como prova de que, de fato, matou o leão. Do contrário o rei nãoacredita.

—Pronta?—exclamouopastorzinho.—Vocêpensaqueistodecurtirumapelegrossacomoados leõesécoisaquese façaassimdopéparaamão?Levatempo,meucaro.Levaaindamaisumasemana,pelomenos.

—Umasemana?—repetiuoViscondecoçandoacabeça.—Issonomínimo.Podeatélevarmais.Depende.Nuncacurticourode

nenhumanimaldalua.Épossívelquesejamdiferentesdosnossosaqui.—Equeficoeufazendotodaumasemananesteolival?—perguntouo

Visconde.— Isso é com você. Poderá ajudar-me na tosa dos carneiros, que vai

começaramanhã.Poderácolherazeitonas...OViscondenãogostoudenenhumdosdoisalvitres.Iapensarsobreo

assunto.Derepenteopastorzinhoolhoubemparaeleedeuumarisada.—Escute,aranha.Dizvocêqueveiobuscarapeledoleão?—Éverdade.Paraissovim.Opastorquasemorreudetantorir.— Ah, ah, ah... Uma pulga de animalejo desse tamanho lá pode com

aquelecourodeleão,omaiorqueaindavi?Oraváselavar...O Visconde explicou-lhe a idéia da Emília: costurar a pele sobre um

carneirobemgrandeedar-lheacheirarumapitadadopó.

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—Quepóéesse?—perguntouopastorzinho.O Visconde explicou pachorrentamente os maravilhosos efeitos do

maravilhosopó,masnãoconseguiuconvencê-lo.—Vásaindocomessashistórias!disseorapaz.—Pó...Pó...Caradepó

temvocê,suabaratatonta!e,depois,sefosseverdade,entãoachaquemeialevandodaquiumcarneiroassimsemmaisnemmenos?Pensaqueistoaqui é a casa da sogra, onde entra todo o mundo e todos fazem o quequerem?Outrooficio.

OViscondeexplicouquetinhadeserassim,porqueouelelevavaapeledoleãocomumcarneirodentroouHérculesdanavaevinhabuscá-la—eopastorzínhobemsabiaque,nessecaso,emvezdeperderumcarneiroeleiriaperdertrês...

O argumento valeu. Os melhores argumentos são os que ameaçam obolsodascriaturas.

Foramverseapeleestavanoponto.DecaminhooViscondeperguntou:—Quetaninoemprega?—Tanino?—repetiuojovemgrego,quepelaprimeiravezouviaessa

palavra.—Sim,otaninodecurtume...O pastorzinho engasgou. Ele não usava tanino nenhum para curtir

couro,porquenaquelestemposesseprocessoaindanãoforainventado.OViscondeexplicou.

—Quandovocêmorde certas frutas verdes, não senteuma coisaque"pega"na boca? Pois é o tanino da fruta. À medida que ela vaiamadurecendo, vai o tanino se transformando em outras coisas; masenquantoa frutaestáverdeo taninoémuito forte.Nabananaverde,porexemplo.Otaninoestáaliemquantidade!Poiséessetaninoasubstânciaquelánomundomodernooshomensusamparacurtiroscouroscrus,ou"verdes",comodizemostécnicos.Oscourossãomergulhadosduranteumoudoismesesnumasoluçãofortíssimadetanino,e ficamcurtidos, istoé,nãomaisapodrecem,comoocourocru,eaindasetornamimpermeáveisàáguaemacios.Masaqui?Dequemodovocêscurtemcouros?

Enquanto falavam iam andando de rumo ao "curtume." O Viscondeadmirou-se. Era a primeira vez que via curtir couro pelo sistema dofumeiro. Havia uma cova no chão com muita lenha acesa, uma covatampadademodoacanalizara fumaçaparaumaaberturaouchaminé.Esobre a chaminé estava estendida a pele do leão, esticada por varas emantidasuspensaporquatroesteios.

—Entãoéassim?Nofumeiro?...

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—Exatamente.Opastorzinhoexaminouoestadodapele.—Aindanãoestánoponto—disse."Ele"querserviçobemfeito.—Quantotempovaidemorar?O pastorzinho apalpou o couro, cheirou-o, experimentou-o entre os

dentesecomapontadalíngua.Depoisrespondeucomamaiorsegurança:—Seisdias.Emseisdiasdeixoistoumabeleza.O Visconde arrenegou. Ficar ali seis dias caçando moscas, a matar o

tempo?...Seopastorzinhofossedemaiscultura,essetempodeesperanãoqueria

dizernada.MasqueadiantavaaumsábiocomooViscondeconversarcomumignorante?EoViscondepensouemSócrates."Ah,seeleestivesseaqui!Atéumanoeuesperaria,naprosacomessegrandefilósofo,semperceberapassagemdotempo."

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V-Meioameio

Enquanto lá no olival oViscondeprocuravameios dematar o tempo,nacidadedeMicenas,HérculesacolheramuitobemoconselhodeEmíliaeestavasepreparandoparaamudança.

—Sim,ocampoaberto...Oarlivre...Oshorizontes...Ascarneiradas...Esse ambiente para uma criatura excepcional como o herói, no qual

tudoeraimenso—ascóleras,aslutas,oapetite,asvenetas...Hérculessósesentiabemquandosoltonaplenaelarganatureza.

Partiram.Pedrinhona frente trotavano graciosopotro semi-humano,comEmíliaeacanastranocolo.

Hércules vinha atrás, a sorrir, com os olhos no lindo quadro. Ele jáestavaquerendobemàquelascriaturasdoséculo20.Ecomoasadmirava!A inteligência daquele menino, a habilidade e a esperteza de Emília, aciência do seu escudeiro saído em busca da pele do leão... Notável, tudonotável...EMeioameioeratambémumencanto.

Hércules sempre vivera em luta com os centauros, já tendo abatidomuitos. Mas pela primeira vez via bem de perto e a cômodo um dessesentes,econhecia-onaintimidade—enadaencontrouemMeioameioquejustificasseoseuantigoódioaoscentauros.Sim,seeramunsbrutos, issovinhaapenasda faltade educação.Quediferençaentre eles eoshomenstambém sem educação? E Hércules, com toda a sua burrice, "teve umaidéia", talvez a primeira idéia de sua vida: que é a educação que faz ascriaturas.

Saídos da cidade, Hércules tomou certo rumo e foi ter a uma belacampinaaduasléguasdali.Topografiaondulante,belostrechosdeflorestanas baixadas pasto rasteiro nas mansas encostas. Um rio de águascristalinaspassavaporali.

— Que lindo ponto para uma fazenda! — exclamou Pedrinho. — Sefossemminhasestasterras,euerguiaacasanaqueletope—eindicoucertaelevaçãoapoucadistânciadorio.

Hércules chegou até à margem e bebeu pelas mãos em cuia. Bebeucomoumelefante.Pedrinhoteveaimpressãodaexistênciadentrodeledeverdadeira"caixadágua"—eparaenchê-lasómesmonosribeirões.

Beber e comer. Hércules tinha bebido, precisava agora comer. O seuapetite estava já de bom tamanho. Pôs-se a sondar os longes daquelapradaria.Nãotardouasorrir:tinhavistoumrebanhodecarneiros.

—Láestáomeualmoço—disseeleevoltando-separaocentaurinho:

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—Váláemetragatrêscarneirosdebomponto.Ocentaurinhopartiunogalope.Emíliaestranhouaquelasem-cerimônia.—Comová láe traga?—disseela.Aquelesanimais têmdono.Quem

quercarneiros,compra-os.NãoentendoestamodaaquinaGrécia.Hérculesdeuumarisadahercúlea.—Ah,ah,ah...Comigoéassim.Quandoquero,pego.Issodecompraras

coisascomdinheiroéparaosquenãopodempegá-las.—Enãoacontecenada?—Claroquenão— respondeuo herói.—Láno olival, por exemplo:

queaconteceudepoisquecomiostrêscarneiros?Nada.Pedrinhoentrounaconversa.—Sim,masissofoiporqueeupagueioscarneiros.Hérculesfezcaradesurpreendido.—Comquemoeda?—DeiemtrocadoscarneirosomeucaniveteRodger,afiadoquenem

navalha.Hérculescomoveu-seaosaberdaquilo.Opobremeninosacrificarauma

prendaqueridaparasanarabrutalidadequeele,Hércules,haviacometido,qual a de tomar os carneiros sem consentimento do dono. E sentiu queaquelemeninojáeraumprodutodaeducaçãoqueaele,Hércules,faltava.Aidéia da educação que momentos antes havia concebido estava aaperfeiçoar-seemseucérebro.EHérculesdisse:

—Estouachandobonitoessesistemaderespeitaroqueédosoutros.Bonito, sim. Sóhoje botei o pensamentono caso—e aprovo. E se aindafosse criança como você, era o caminho que eu ia seguir. Na idade quetenhojánãopossomudar.Muitodifícil...

—Querdizerquevaicontinuarpegandooquequersemdarsatisfaçãoaodono?

—Sim.—Porquê?—Porqueé tarde.Avarinhanova,o jardineirovergae lhedáestaou

aquela forma — mas que jardineiro dá forma ao tronco duma oliveiravelha?

Meioameiohaviaalcançadoorebanhoeabatidoacoicestrêscarneiros.Os outros fugiram por aqueles campos, tomados do maior pânico. Nadamaisimprevistoqueaapariçãodeumcentaurinho.

Minutos depois Meioameio chegavacom os três carneiros às costas.Jogou-osaospésdoherói.

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Hérculessorriuobomsorrisoda fomequevêchegaroprato.Masnahora de abrir os carneiros surgiu uma dificuldade. Não havia faca ePedrinhoestavasemoseupreciosocanivete.Quefazer?

Emíliasalvouasituação.—TenhonacanastrinhaumalâminaGillette—efoibuscá-la.QuandoaapresentouaHércules,oheróiarregalouosolhos.—Queéisto?—Umalâminaboaparaabrircarneiros—respondeuEmília.Hércules tentou pegar na lâmina, mas deixou-a cair. Fina demais,

delicada demais para aquelas mãos tremendas. E veio-lhe uma risadahercúlea.

—Ah,ah,ah.Entãoquervocêabriroscarneiroscomestacoisinhatãomimosa?Quebobagem!

Mas Pedrinho iamostrar que não era bobagem. Apesar da sua velharepugnância pelo sangue, foi ele quem abriu os carneiros. Só fez isso. Oresto,atiradadapeleedasentranhas,foiserviçodocentaurinho.

—Porquenãotrouxequatro?—perguntou-lheHércules.— A ordem foi para três— respondeu o obediente Meioameio, que

tambémestavacomfomeeesperançosodequepelomenosumquartodecarneHérculeslhedaria.

E foi oqueaconteceu.Depoisde assada todaaquela carnaria, oheróimediuMeioameiodealtoabaixoedisse:

—Paravocêumquartobasta—edeu-lheumquartodecarneiro.—Evocê,Pedrinho?Evocê,Emília...Sirvam-se.

Pedrinho e Emília juntos comiam tão pouco em comparação com osseuscompanheiros,queHérculesarregalouosolhosaoveromeninotirarasuaparte.

—Sóisso?—Istomeencheopapoporumdiainteiro—eaindasobraparaencher

opapinhodaEmília...Foiumregaloaquelealmoçoaoarlivre,àmargemdoribeirãodeáguas

cristalinas.Hérculesconfessoujamaistercomidoumacarnetãodeliciosa.—Quefizeramvocêsnestecarneiroqueficoutãobom?—perguntou.—Équetrouxemosdacidadeumaboadosedesal—respondeuEmília.

—Nósdostemposmodernosnãocomemoscarnesemsal.Hércules nunca prestava atenção a essas pequeninas coisas, emuitos

boisecarneirosassadoscomerasemsalnenhum.Agoraestavaverificandocomoacarnemelhoracomosalgamento.

Vendoaquilo,Emíliasuspirou:

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—Aiquesaudades...—Dequem,Emília?—DetiaNastácia.Estouimaginandoomaravilhosoassadoqueelafaria

com estes carneiros, se estivesse aqui conosco. Ah, aquilo é que écozinheira.

Hérculesinteressou-sepeloassunto.—Queméessadama?—Não é damanenhuma— respondeuEmília.—É simplesmente tia

Nastácia,amaiorquituteiradomundo—etaiscoisascontoudasproezasculináriasdanegra,queumfiodáguacomeçouapingardabocadoheróiedocentaurinho.

—Umdiahádeconhecê-la,SenhorHércules.Nãopercoaesperançadevê-loaparecerlápeloPicapauAmarelo.Lembre-sedequejámeprometeu.

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VI-APeledoLeão

Lápelofimdosextodiaestavamsentadosàbeiradoribeirão,naprosade todas as tardes, quando subitamente um animal estranhíssimo"apareceu"acertadistância.Nãoveiodeoutrolugar,nãofoichegandocomoumanimalcomum.Apareceu!Epeloaspectonãolembravanenhumanimalconhecido. Tinha um vago jeito de leão, por causa da juba,mas um leãodesengonçado, com as patas bambas, ou melhor, com oito patas: quatroexteriores, enormes, bambas, verdadeiras patas de leão, e outras quatromaisdelicadasefirmescomoasdoscarneiros.

—Queestranhomonstroseráaquele?—exclamouHércules,passandoamãonoarco.

FoiEmíliaquemadivinhou.—Jásei!—berrouelaantesqueoheróilançasseaflecha.Éapeledo

leãodalua!...Hérculesnãoentendeu.—Como?Quehistóriaéessa?—Sim—respondeuEmília.—OViscondeestavaatrapalhado como

problemadetrazerapeleeeuentãodeiessaidéia:"Vocêcosturaapeleemcima dum carneiro dos maiores e esfrega-lhe no nariz uma dose dopirlimpimpim.—Ele vemvoandoe comele apele." Juroque é isso—ecorreunadireçãodoestranhoanimal.

Exatamente.Eraumcarneirorevestidodumapelecurtida;eagarradoao pêlo da juba, uma esquisita aranha: o Visconde de Sabugosa! Tinhamvindo juntosos três:o carneiro, apeleeo sabugo.MasoViscondeaindaestavadesacordado.VoltouasinosbraçosdaEmília.

— Coitadinho... Deve estar sofrendo do coração. Já custa a sair dodesmaiodopirlimpimpim...

Pedrinhodescoseuapeledoleãoesoltouocarneiro,quepermaneceuboboeapalermadoapontodenemsairdo lugar.Hérculesaproximou-se.Tomouapele.Examinou-a.

—Ótimo!DestavezEuristeuvaidar-seporconvencido...—e jogouapelesobreoombro.

Desde aquelemomento nuncamais iria o herói abandonar a pele doLeãodaNeméia.Passouausá-lacomoescudo—edemuitosgolpesesseescudo o livrou, porque era invulnerável. Pedrinho verificou esse ponto.Não conseguiu abrir nela nem sequer um furo com a ponta das setas deHércules.

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Comoentãooseucaniveteacortaranaqueledia?Podiaserpormuitacoisa.Talvez a invulnerabilidade "cochilasse" naquele momento e fosseapanhadadesprevenida.Ocasoéqueapele"vulnerável"dodiadamortedoleãoestavadenovo"invulnerabilíssima".

—Bom.TenhodevoltaraMicenasparaapresentaristoaorei.—Eu,sefossevocê—disseEmílianãoapresentavanada.Iachegandoe

esfregandoapelenacaradele.Aquelereiantipáticooqueprecisaédisso:umaboaesfregaçãodepelenasfuças...

Hérculeslásefoicomapeleaoombro.OViscondeviu-seimediatamenterodeadoeespeculado.Todosqueriam

saberdassuasaventurasnoolival.— Aventura no olival não tive nenhuma, mas de caminho para lá

aconteceu-meacoisamaisinesperadaeprodigiosa...—Quefoi?—indagaramtodosnamaioransiedade.O Visconde gozou aquilo e não teve pressa em contar. Queria irritar-

lhesaindamaisacuriosidade.—Ah,umacoisaquenemqueiramsaber.Umacoisatremenda!...Emília,indignada,agarrou-opelopescoço.—Contejátudo,depressa,senãoeuodepeno...OViscondecontou.—Decaminhoparalácaíemcimadotelhadodumpalácio...—Como?Entãoerrounocálculodapitada?— No cálculo não errei, mas agora me lembro que no momento de

aspirar o pó você deu uma cotoveladinha sem querer. Bastou isso. Unsgrãosdepó caírame eunãoaspirei apitada certa.Resultado: emvezdeaterrissarnoolival,aterrisseinotelhadodopaláciodeumrei...

—ComoháreisnestaGrécia!—observouEmília.—Atéparecelivrodecontosdacarochinha...

—Aterrisseinotelhadoeresolviespiar...—eoViscondecontoutudoquanto vira no palácio do Rei Polidectes, e foi contando, até referir-se àcabeçadaMedusa.

Aoouviressapalavra,Pedrinhoarrepiou-se,poissabiadahistória.—AcabeçadaMedusa?—exclamouele.—PoistevePerseuacoragem

deespontaneamenteofereceraoreiacabeçadessaGórgona,emvezdeumsimplescavalocomoosoutros?

—Eleestavabêbedo—resolveuEmília.—Poisofereceu—continuouoVisconde—econtoutudo:asaídade

Perseu para fora da cidade, suas meditações lá na praia, sentado norochedo;oaparecimentodeHermes...

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AofalaremHermes,Emíliaperguntou:—Aindausaaquelasasinhasnospés?—Sim—respondeuoVisconde—e tambéminventouumamodade

asinhasnocapacete.MasapareceuHermes,sentou-seaoladodelee...E o Visconde contou tudo quanto já sabemos. Ao chegar ao ponto da

entrada de Perseu na casa da Medusa, descreveu com cores tão vivas acabeçadohorrendomonstroqueEmíliadesmaiou...

—Olheoquevocêfez,Visconde!—ralhouPedrinho,amparando-a.—Emíliajánãoéaquelamesmadeoutrora,dotempodeboneca,quandonãotinhanemuma iscadecoração.Virougentinhaedasque têmcoraçãodebanana...

Mas não demoroumuito o desmaio da criaturinha. Com uns borrifosdáguavoltouasi.

OViscondecontouoresto,massemcarregarmuitonascores,demedodeoutrodesmaio.

—Efoiassim—concluiuele—quetiveasortedeveroqueninguémnomundo viu. Ver, ver, ver... Ver aMedusa viva, dormindo! Ver o heróicortar-lheacabeçadumsógolpe,antesqueelativessetempodeabrirosolhos petrificadores. E vê-lo botar aquela cabeça de cabelos de cobradentrodosurrãomágico...

Tudo isso eu vi, e ninguém nomundo viu nem verá. A minhamaiorglóriavaiseressa...

AcuriosidadeemtornodetãoprodigiosaaventuranãosesatisfezcomanarrativadoVisconde.Emíliareclamavadetalhes.

—Comoeraainserçãodoscabeloscobras?—Tinhamacaudaenfiadanocourocabeludo.—Emoviam-se,essescabelos-cobras?—Logoqueentramos,Medusaestavadormindoeas cobras também.

MasdepoisquePerseuadecapitou,ascobrasacordaram,assanhadíssimas,enãopararammaisdesemoverdumladoparaoutro.

—Comasbocaseaslínguasdefora?— Sim. Umas boquinhas muito vermelhas e aquelas lingüinhas

nervosas.—EosolhosdaMedusa?— Não pude vê-los, porque a encontrei dormindo. Mas são muito

redondos.—Epetrificavamaspessoas...—Sim,issopossoatestar.AlipelasredondezasdoantrodaMedusavi

muitas estátuas de pedra estranhíssimas, cada qual numa atitude de

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ataque.Umatinhaobraçoerguido,nogestodequemvaiarremessarumalança. Outra era a dum bonito herói com o arco distendido e a flechaapontada. Outra era de outro herói com a clava no ar. Eu não entendiaquilo. Julguei que aquela paragem fosse algum grande parque emabandono,aindacheiodeestátuasdepedra.Depoiscompreenditudo:eramosheróisquehaviamprocuradodestruiraMedusaequecomumsimplesolhardosseusterríveisolhosredondoselatransformaraempedra.

—Quehorror!Equantasestátuasdessasviulá?—quissaberPedrinho.O Visconde franziu a testa, como quem calcula mentalmente. Depois

disse:—Umascem...—Cem?...— Talvez haja mais. Umas cem visíveis. Deve haver muitas outras

ocultaspelomato.Pedrinho ficou cismativo. Estava ali uma coisa que ele queria ver: o

parquedeheróispetrificadospelotremendoolhardaMedusa...Depoismudaramdeassunto.Pedrinhoperguntou:— E como se arranjou com o pastorzinho para que cedesse sem

pagamentoessecarneirão?—Provei-lhe amaravilha que é o pó de pirlimpimpim e dei-lhe uma

dose. Mas tenho medo de que o bobinho haja desrespeitado as minhasinstruções e a estas horas esteja a umasmil léguas de lá, em um séculomuitodistantedeste.

Estavam nesse ponto de prosa, quando Hércules apontou. Vinha devolta.

Todosficarammuitoatentos,àesperadasnovidades.—Eentão?—exclamouPedrinho.Hérculestinhaoarpreocupado.— Aconteceu exatamente o que eu receava — disse ele. — O rei

mostrou-se visivelmente contrariado quando verificou que a pele eramesmodeleãoedumaespéciedeleãoquenãohánaterra.

Logo,sópodiaseroleãocaídodalua.Eentãomedisse:—"Muitobem,grandeherói.Vejoqueédeverasvalenteeforte,equehá

degostardesairaoencontrodeinimigosaindamaisfortesqueoLeãodeNeméia.Ordeno,portanto,que seapresteevádestruir aHidradeLerna.Essemonstroandaaarrasaraldeias,eafazerestragoshorríveis.Informe-sedetudoetraga-meaquiascabeçasdahidra...

—Eissoopreocupa,Hércules?—perguntouEmília.— Sim, porque essa hidra tem nove cabeças, uma das quais imortal.

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Comoumentemortalcomoeupodevencerumimortal?OspicapauzinhosjáhaviamassistidoaessafaçanhadeHérculesepois

não compartilhavam dos receios do herói. Mas nada disseram. Seria amaiordascomplicaçõesexplicar-lheahistóriadaprimeiraestadadelesalinaquelamesmaGréciaHeróica.EEmíliadisse:

—Ótimo.Poisvamosatrásdessaporcariadehidra. JuroqueHérculesvai matá-la bem matada e limpar aqueles pântanos de Lerna de tãohorrendomonstro.Mas como essa aventura não nos interessa, apenas oacompanharemosatélá;eenquantoelemataacobra,nósbrincaremosdepega-pegacomMeioameio.

Eassim foi.PartiramdaliparaLerna só fazendopousoparadormirecomer.

Quandoavistaramospântanos,Pedrinhodisse:— Amigo Hércules, como a aventura da hidra não nos seduz, vamos

acamparaqui,eaquificaremosàsuaespera.Vá,mateahidraeemseguidavenhaterconosco.Nósoesperaremoscomtrêscarneirosassados.

Hérculesafastou-se,muitotristedeterdedeixaracompanhiadeseusnovosepreciososamigos.Devezemquandovoltavaosolhosparatrás.Daúltima vez que o fez pareceu-lhe que estavam inventando um brinquedonovo.

Eeraverdade.Emíliahaviadito:—Chegade cartola! Istonãopassadumpedaçoqueimado.Temosde

variar.Obrinquedodehojevai sera "ciranda-cirandinha"—eensinouaMeioameiocomoera.

Ocentaurinhovivianomaiorenlevo.Lánorebanhoeleeraoúnicodasua idade, demodo que vivia sorumbático por falta de companheiros debrinquedo.vMasali, ohdelicias!Emília, uma loucanobrinquedo, chegavaaté a ficar fora de si. Pedrinho não o eramenos— e oVisconde, no seucomeçode loucuraheróica,deradebrincarcomtalespetaculosidadequechegouadarnavista.

—Pedrinho— cochichou Emília— não acha que o Visconde está seexcedendo?

—Sim,achoqueestámuitomudadoequecontinuaamudar...—Poisissoestámepreocupandobastante—confessouEmília.—Ele

também é um heroizinho e todos os heróis passam por um período deloucura.NãoviuD.Quixote?

— É verdade, sim, Emília. D. Quixote, Rolando, e até o nosso amigoHércules,quasetodososheróisenlouquecem.SobrealoucuradeRolandoatéháaquele célebrepoemadeAriostoquevovó tem lánumaediçãode

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luxo,comdesenhosdeGustavoDoré,"OrlandoFurioso."OrlandoéonomedeRolandoemitaliano.

Dali a pouco estavam na ciranda-cirandinha, e quem cirandava commaiorfúriaerajustamenteoViscondedeSabugosa,oex-graveecartoludosabinholádositio.Aténemmaisdecartolaandava.ComumpontapéhaviajogadoavelhacartolinhanospântanosdeLerna,berrando:

—Chegadecartola!Istonãopassadumpedaçodecanudodechaminécom abas. Por que cartola? Para que cartola?— e pôs-se a dançar umarumba...

*

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3-ACORÇADEPÉSDEBRONZE

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I-ACorçadePésdeBronze

AHidradeLernatinhafamadepossuirmuitascabeças—masquantas?As opiniões variavam de sete a cem. E o numero certo só ficouperfeitamente estabelecido depois da façanha de Hércules. Só então aGréciasoubequeahidratinhanovecabeças,oitomortaiseumaimortal.

MasHérculestiverareceiodeenfrentarahidrasozinho,eforaembuscadoseuamigoIolau.Enquantoisso,naquelepradoquemarginavaopântanoospicapauzinhosbrincavam.

Meioameio estava numa verdadeira lua-de-mel com os seus novosamigos. Como os achava delicados! Como eram gentis e bons desentimentos!Nadadecoices,comoláentreosbrutíssimoscentauros,nadadeviolênciasearbitrariedades.EMeioameiosonhavacomosencantosdotalsítiodeDonaBentasobrequetantofalavam.Ah,seelesepilhasselá...

Mascomoosbrinquedosdaquelediaatépassassemdaconta,emcertomomentotodosafrouxaram.

— Chega!— disse Pedrinho deixando-se cair na grama (e os outrosfizeramomesmo.)—Estouquenãoagüentomais...

—Eutambém—ajuntouEmília.—Eeudei tantascambalhotas—disseoVisconde—queestoucom

umadorzinhanopescoço.Estiraram-se no chão e dali a pouco todos dormiam — exceto o

Visconde.Osameaçadosdeloucuracomeçamassim:perdendoosono.Ocentaurinhotambémdormiu,masdespertouantesdosoutrosesaiu

poraliaforanogalope.Ao cair da tarde, quando depois de haver matado a hidra, Hércules

reapareceuacompanhadodeIolau,sóoViscondelheiriadarosparabéns.Pedrinho e Emília continuavam num sono de pedra. Hércules fez aapresentação:

—OViscondedeSabugosa,meuescudeiro.Iolauespantou-se.—Seuescudeiro,Hércules?Umaaranhadessas...—Pois,meucaro,éaaranhamaissabidaquepodehaver.Falacoma

competênciadosgrandesmestresdeAtenas.Querver?Evoltando-separaoVisconde:—Vamos,amigoescudeiro,digaumasabedoriaaquiparaoIolau...OViscondenãovacilou,edeclarouemmuitobomgrego:—PANTAREI,OUDENMENEI.

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—Queéisso?—perguntouHércules,queemmatériadepensamentosfilosóficoseraoquenoséculo20nóschamamos"umabesta."

— Estas palavras querem dizer "tudo passa, nada permanece." SãopalavrasdograndefilósofoHeráclitodeÉfeso,quevaiviraomundonoano576antesdeCristo.

Iolau refranziu a testa: sinal de que não estava entendendo.Hérculesexplicou:

—Háaquiumembrulhodeséculosparadianteeparatrásqueeunãoentendopormaisqueelesmeexpliquem.TambémvivemàsvoltascomumtalCristo eum tal Sítio ládum tal "século20."Ouço a conversinhadelescomoquemouveamúsicadasterrasexóticas.Bempoucopesco.

—Eaquelaanãzinhaali?—perguntou IolaumostrandoEmília,aindaferradanosono.

—Ah,essaéaminha"dadeiradeidéias..."—Quê?—Sim,équemmedáidéias...—Epodeláteridéiasumpingodegenteassim?—Fiquesabendo,Iolau,quedessacabecinhabrotammaisidéiasdoque

vespasdumavespeira—ealgumasexcelentes!Aidéiademataroleãodalua por estrangulamento veio dela. Foi quando os conheci. Estavamtrepadosaumaárvore,eeu,jásemflechasemmeucarcásecomumaclavareduzida a estilhaços, não sabia o que fazer, quando uma vozinhaalambicadasoou:"SenhorHércules,agarre-opelopescoçoeafogue-o"—efoioquefiz...Chama-seEmília,eparecequeéMarquesadeRabicó,oucoisaassim.Quandoestãobrigados,sóatratamdeMarquesa.

—Eestebelomenino?—Ah,esteéomeuoficialdegabinete...—Oficialdegabinete?—Coisaládeles.Éumcompanheirinho,umauxiliar:Meninoexcelente,

tão educadoque às vezes atéme envergonha. Parece incrível,mas tenhoaprendido muita coisa moral com esse menino. E até coisas técnicas.Ensinou-me um meio excelente de derrubar centauros na corrida — econtouminuciosamenteahistóriadacapturadocentaurinhopormeiodasbolas.

—Pegouentãoumcentaurinho?—Oestranhonãoétê-lopegado,équeessecentaurinhoestáhojetão

nosso amigo, e progride tanto em educação, que ando com remorsos dehaver outrora matado tantos centauros. Eles são gente como nós, Iolau,apenasmaisrústicos,maisselvagens.Masseos trouxermosparaonosso

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convívio, ficarão iguaizinhos a nós mesmos— e Hércules expôs a Iolauaquelasua"idéiasobreaeducação",aúnicaque jamaisbrotounacabeçabroncadoherói.

—Eondeestáocentaurinhodomesticado?—perguntouIolau.—Poraí.Olhe!...Lávemelenogalope...Realmente,Meioameiovinhanavoladacomoquemviuqualquercoisa

prodigiosa.—Quehá?Ocentaurinhoestavatãoofegantequemalpodiafalar.—Eu...eusaínogalopeporessemundoaforae...fuidarnumbosque

muitoestranho.Pareciaumparqueabandonado,talonúmerodeestátuasdepedraqueseerguiamemcertoponto:estátuasdeheróisnoataque,unsesticandooarco,outrosarremessandoalança.Compreenditudo.EuestavanaterradasGórgonas,láonde"ele"viuPerseucortaracabeçadeMedusa—eaodizer"ele"apontouparaoVisconde.Eentãomeveioacuriosidadedeespiarocadáversemcabeçadamonstra.

Iolauarregalaradesmesuradamenteosolhos.—Cadáversemcabeça?PoiscortaramacabeçadaMedusa?— Sim— interveio o Visconde.— Assisti a tudo. Vi tudo commeus

olhos. Perseu cortou aquela cabeça toda cobras e guardou-a num surrãomágico...

—Paraquê?—Paralevá-ladepresenteaoReiPolidectes...OassombrodeIolaueratamanhoqueelenãoconseguiafecharaboca.

A Górgona decapitada, afinal!... Aquilo era o piormonstro da Grécia, porcausadoolhopetrificador.

—Continue,Meioameio—disseHércules.Ocentaurinhocontinuou:— Pois é. Eu estava evidentemente nas proximidades do antro da

Górgona, conforme indicavam aqueles heróis de pedra— os heróis queforam matá-la, e ela de longe, com um simples olhar, transformou emestátuas...Eafinaldeicomoantro.Fuientrandocautelosamente.Súbito,ah,Zeus, que horrendo quadro! Estendido no chão, o corpo sem cabeça daMedusa...

OViscondeinterveio:—QuandoPerseuadecapitouelaestavanacama...—Pois encontrei-ano chão—disseo centaurinho.—Nessasmortes

assimhásempreestrebuchamentoeocorpoferidomudadelugar.Estavano chão. Eu olhava, olhava... Olhava sobretudo para o corte vermelho do

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pescoço.Subitamente,imaginemoqueaconteceu!Aquelecortecomeçouamexer-se... começou a alargar-se como se qualquer coisa fosse saindo dedentro.Eessacoisaafinalsaiu.Eraumcavalobranco...Umcavalodeasasenormes,amaislindavisãoquealguémpossaimaginar...

— Pégaso! — exclamou Pedrinho, que acordara e viera juntar-se aogrupo.BemdissevovóqueolindoPégasoeraum"produto"daGórgona...

Meioameiocontinuou:— Pois vi o prodigioso cavalo de asas sair de dentro do cadáver da

Medusa!...Vicomestesmeusolhosecusta-meaacreditar...—Equefezele,depoisdesairdedentrodocadáverdaMedusa?—quis

saberEmília,quetambémseaproximara.— Fez como fazem as borboletas quando deixam o casulo: ficou uns

instantesasecarasasasúmidaseaexperimentarosmúsculos,atéqueporfimtentouovôo.

—Evoou?— No começo tentou só. Quem nunca voou atrapalha-se no começo.

Tem que ir aos poucos. Mas tivemedo de queme acontecesse qualquercoisaedispareiparacá.

PedrinhofaloudavisitadeBelerofonteláaosítiodeDonaBenta.—QueBelerofonte?—perguntouHércules.OmeninoexplicouqueBelerofonteeraonomedoheróicorintioqueem

breve iria conquistar edomarPégaso, fazendodeleo seuanimalde sela.Poisesseherói,montadoemPégaso,haviaaparecidolápelosítioeficadonacasinhadeDonaBentaduranteváriosdias.PégasoforapostonopastodoBurroFalante,ondetambémestavaoRocinantedeD.Quixote.Issonoséculo20depoisdeCristo.

HérculespiscouparaoIolaucomoquemdiz:"Essaéalinguagemdeles.Falam sempre nessas coisas misteriosas — "sitio, vovó", "D. Quixote","antesedepoisdeCristo..."

Súbito,umberrodaEmília:—Láestáele!...Pégaso!...Jácriouforçaeestáseelevandonocéu...Todos olharam na direção indicada e de fato viram uma coisa,

deslumbrante: Pégaso no vôo!... Suas grandes asas brancas lembravam omovimentodasasasdosgaivotõesdomar.Queserenidade,quemajestadedevôo!...Muitacoisabonitahánomundo,muitacoisabela.MasquemnãoviuPégasovoandonãoviuacoisamaisbeladetodas.Osolbatianaquelabrancuradeasasetornava-asdeslumbrantes...

Pégasoseguiunoseuvôo, semprea subir, a subiremespiral, atéquedesapareceu atrás das nuvens. Os picapauzinhos, portanto, assistiram à

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estréiadePégasonocéutãoazuldaGrécia...

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II-EmMicenasdeNovo

Levaramtodaumahoraacomentaramaravilhadasmaravilhas.DepoisHérculesfalou:

—Basta.TemosagoradevoltaraMicenas.Eletrazianumasacolaascabeçasdahidra—oito,segundodisse.—Oito,Hércules?—reclamouEmília.—Eanona?—Ah,essanãopudetrazer.Eraaimortal.Tivedeenterrá-labemfundo,

ecolocarumaenormepedraemcima.Continuaviva,masnoseiodaterra.Emílianãogostoudaquilo.—Aquelereiantipáticoécapazdeencrencar—disseela.—Écapazde

exigiraapresentaçãodanonacabeça...— Isso não— tornou Iolau—porqueEuristeu não sabe que a hidra

tinhaexatamentenovecabeças.A lendacorrenteoradizumnúmero,oradizoutro:vaideseteacem.

NadaaconteceudaliatéMicenas.VoltaemeiaHérculeseIolauerguiamosolhosparaasnuvens,naesperançadeveremPégasopormaisumavez—masinutilmente.

Iolauadmirava-sedatransformaçãoqueseiaoperandonogêniodeseuamigo. Nada mais da bruteza antiga. Estava sociável, alegre, brincalhão,sempremuito atento às ideiazinhasdaEmília, aquele espirrode gente. Equefamiliaridadetinhaelacomotremendoherói!Era"vocêparalá,vocêparacá",comosesedirigisseaPedrinhoouaoVisconde.Eoheróigostavadaquilo...

Ao avistaremMicenas, Hércules disse a Pedrinho que fosse esperá-locomosoutrosláno"camping",enquantoeleentravanacidadecomIolauparadarcontasaEuristeudasegundafaçanharealizada.Esepararam-se.Pedrinho e o bando partiram para o "camping"; Hércules e o amigoentraramemMicenas.

A notícia do Segundo Trabalho de Hércules já havia explodido comobomba, começando a circular de boca em boca. Quando o herói foi apalácio,jáoreisabiadetudo.

Euristeuestiveracarrancudo,aexcogitarumnovotrabalhoparaaquelemalditoheróiquedefatotinhajeitodeserinvencível.EconsultouumseuministrodeEstado,célebrepelasmanhasepatranhas.

—Eumolpo—disseorei—Hérculesnãotardaavirprocurar-meparadar conta de sua peleja com a Hidra de Lerna, mas já sei de tudo. Elevenceu-a como tambémvenceu o Leão daNeméia. Que terceiro trabalho

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possoimpor-lhe?Eumolposegurouoqueixo,arefletir.Depoissorriu.—Achei!...—dissemuito contente.Hércules venceuo leãoe ahidra,

monstrosbrutescosquesóvaliampelaforça.MasseolançarmoscontraafamosaCorçadePésdeBronze?

—ACorçaCirinita?—Sim,alindacorçadechifresdeouroepésdebronzeládotemplode

Ártemis,noMonteCirineu.Essacorçaéconsagradaàdeusa,demodoqueÁrtemis a protege. Tem grande fama, porque nada nomundo corre commaiorvelocidade—enãosecansa.Podecorrerumanointeirosemparar—etemospésdebronzejustamenteparaisso—paracorrerotempoquequiser sem necessidade de descanso para o casco. Hércules é pesadão.Escorahidrae leões.Masduvidoquepegueumacorça tãoveloze, aindamais,protegidapelairmãdeApolo...

Euristeuaprovaraimediatamenteainsidiosaidéia,demodoqueestavatodoamávelerisonhoquandoHérculesapareceu.

Fingindonãosaberdenada,disselogodecomeço:—Então,Héracles?Venceuahidratambémou...—Venci-a, sim,Majestade,eaqui tragoaprova—respondeuoherói

abrindo o saco e mostrando as horríveis oito cabeças domonstro. Faltauma, a nona, justamente a imortal. Essa tive de esmagá-la, queimá-la eenterrá-labemfundo,comumaenormepedraemcima.

—Meusparabéns,Héracles!Muitoprazermedávê-lodenovoforteeperfeitocommaisumTrabalhorealizado.Tuasproezas justificama famaque tens. Aqui emMicenas o povo só fala emHéracles, só quer saber deHéracles.Eaindaficarámaisapaixonadopelograndeherói,seHéraclesmetrouxeraqui,vivinha,aCorçaCirinita.

Hérculesempalideceu.Sabiadafamadessacorçainvencívelnacorrida.Maslembrando-sedasua"dadeiradeidéias"edosmaiscompanheirosdeaventuras,consolou-selápordentrocomum"Quemsabe?"edisseaorei:

— Perfeitamente,Majestade. Espero ter a honra de trazer, aqui, bemvivinha,afamosaveadadospésdebronze.

LogoqueHércules saiu,Euristeuesfregouasmãosedisse aovelhacoEumolpo:Destaveznãomeescapa...

Quando o herói ia chegando ao "camping", todos lhe voaram aoencontro,encarapitadosnocentauro.

— SuaMajestademeteu-me agora num sério embaraço. Quer que eutragaacélebreCorçaCirinita.

—Queéisso?

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—UmacorçaládumtemplodeÁrtemisnoMonteCirineu,masnãoumacorçacomum.Alémdeprotegidíssimadadeusa,temoschifresdeouroeospésdebronze.Querdizerquenãogastaoscascospormaisquecorra—etem famade correr tão rápida comoo corisco. EsteTrabalho vaimedarmaistrabalhoqueosoutros.Quevaleminhaforçacontraavelocidade?

Todos puseram-se a refletir porque o caso realmente ofereciadificuldadeseaspectosnovos.

Pedrinhofoioprimeiroafalar.— Escute, Hércules. Lá no sítio de vovó eu vivo lidando com os

caçadores vizinhos e deles aprendimil coisas. Caçar essa corça deve terrelação com o que lá chamamos "caçar veado",mas com uma diferença:veadocansanacorridaeestaveadinhadepésdebronzenãopodecansar.Assimsendo,minha idéiaénão incluira caçadadecorçanacategoriada"caçadeveado",esimnadepaca...

Hércules não sabia o que era paca. Pedrinho explicou o melhor quepôde.—Epaca,Hércules,agentecaçadummodomuitodiferente:esperando

queelavolteparaatoca...—Masacorçanãotemtoca!—Nãoháservivoquenãotenhaasuatoca.Atéeu,oViscondeeEmília

temosanossa—disseomeninoapontandoparaacabanaderamagens.—Chamo toca ao lugar certo em que o animal, quando se cansa de corrermundo,vemparadescansar.Podemosprimeiramentefazerumatentativade pegar a corça na corrida — e para isso dispomos de Meioameio. Sefalhar,entãorecorreremosaométododa"esperanabocadatoca".

Hérculesachourazoávelapropostae,paracaçoarcomaEmília,disse:— Este meu oficial de gabinete está me saindo melhor que a

encomenda. Suas idéias até parecem superiores às daminha "dadeira deidéias..."

Emíliafezfocinhodepoucocaso.—Ah, ah, ah ... Vocênãome conhece. Lelé (e desde aquelemomento

passou a tratá-lo assim.) Dou idéias nas ocasiões gravíssimas, quando operigo é grande. Nessas coisinhas sem importância da vida diária, deixoque o cérebro de Pedrinho funcione— e assim não canso o meu. Vocêaindahádever,Lelé,comosãoasminhasgrandesidéias...

Pedrinho cochichou ao ouvido de Hércules que quando se via emgrandes apuros, sem saber o que fazer, Emília lançava mão do "faz-de-conta",oqueémuitofácil.Depoistevedeexplicaraoheróitodaatécnicadofaz-de-conta,queHérculesachoumaravilhosa.

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—Edácertoessetalfaz-de-conta?—Está claroquedá,mas é um recursode vencidos.A gente sódeve

recorrer ao faz-de-conta quando se sentir na última extremidade — naultimíssima...

Hérculesficouacismarnaquilo.

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III-OMonteCirineu

No dia seguinte levantaram acampamento e lá se foram de rumo aoMonte Cirineu. Viagem linda. Em certo ponto deram com um bando deninfasquesaíamdobosque,tontasdeterror,perseguidasportrêssátiros.

—Lelé!—berrouEmília.—Nãodeixemonstrostãofeiosatropelaremascoitadinhas...

Hérculesnãodissenada.Sacoudocarcástrêssetasedobrandooarco,despediuumaatrásdaoutra—záz!zás!zás!...Ostrêssátirosrolaramporterra, mas embolados apenas, não mortos. As flechas não os haviamtrespassado.

Hérculesadmirou.Quê?Poisentãosuasflechasjánãoatravessavamumsátiro?

Emíliaexplicou,comomaiorlampeirismo:—Fuieu,Lelé,quetireiapontadeváriasflechasdeseucarcás.Deixei

metadecomponta,metadesemponta.—Paraquê?—Paraissoqueaconteceu.Nãoseriaumaestúpidamaldadedarcabo

dos pobres sátiros? Assim, com a minha idéia das flechas sem ponta asninfassesalvarameelesficaramapenasmachucados.

—AchoqueEmíliatemrazão—ajuntouPedrinho.—Nadademortesinúteis.Paraquê?

Hérculesnãogostoumuitodaquelareinaçãomasresignou-se.Sefossediscutir,seriapior.OsargumentosEmílianoseramcomoflechasdeponta:dosquematamasobjeções.

Foramverossátiroscaídosláadiante.—Sãomeioameiostambém!—exclamouEmília.—Corpodehomeme

pernasepésdebode—echifresdebodenatesta...—E catingudos!—observou Pedrinho tapando o nariz.—Omesmo

cheirodaquelebodeládafazendadoCoronelTeodorico...Ostrêssátirosjaziamporterra,estropiadospelossetaçosdeHércules,

massemferidadesangue.Gemiamcomadordamachucadura.— Olhem quem está espiando! — exclamou em certo momento o

Viscondeetodosviramlánafímbriadobosqueobandodeninfascomosolhosfixosneles.

Hérculesdisse:—Assimquesairmosdaqui,corremtodasparacáevêmcuidardestes

sátiros.Asninfasfogemdossátirossóporcoquetismo.Narealidadepelam-

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seporeles.Ondehásátirosháninfas,eondeháninfashásempresátiros...E assim foi. Logo que todos se afastaram dali, as ninfas vieram na

carreira ao encontrodos sátiros caídos.Depois os levaramabraçosparadentrodafloresta.

Continuaram a viagem. Como era agradável viajar na Grécia! Umadelíciadeclima,umadelíciadepaisagem.Devezemquandocruzavam-secomviandantesapé,ehaviaparadasparaumaprosinha.

Foi numa dessas paradas que vieram a conhecer os donos do olival,umafamíliacompostademarido,mulheretrês filhos.OvultoagigantadodeHérculesassustaraohomem,fazendo-ocolocar-seàfrentedaesposaedosfilhoscomoparadefendê-los.Eaodarcomocentauro,ficoucommaismedoainda,brancoquenempapel.

Pedrinhointerveio:—Somosdepaz,amigo.EsteéograndeHéraclesqueandaarealizaros

seusfamosostrabalhos.JámatouoLeãodaNeméiaeaHidradeLerna...EcáoMeioameioéumgrandeamiguinhonosso...

—MatouoLeãodaNeméia?—repetiuohomemcomassombro.—Sim.Porqueseadmira?— É quemoro lá nas vizinhanças. Saímos em peregrinação a Delfos,

paraconsultaaoOráculodeApoloe...Emíliaenterrompeu-o:—Ah,então jásei.Moramnoolival,ondeháumpastorzinhocomum

rebanho,nãoé?—Exatamente!—exclamouohomemcomafisionomiailuminada.—

Comosabedisso,menininha?—Équeestivemosláeatédormimosemsuacasa.Oassombrodohomemnãotinhalimites.—EoSenhorHéraclestambém?—Claroquesim.—Mas...nãohálácamaquelhesirva.—Dormiuemseispelegosestendidosnochão.—Bom.Sóassim.Ecomovãoosmeuscarneiros?—Ótimos.Sóquedesapareceramquatro.—Quatro?Como?—Opastorzinhocontaráoquehouve.Hércules já estava dando sinais de fome e Pedrinho propôs que

acampassem ali e Meioameio fosse incumbido de obter a bóia. Emíliaconvidouosdonosdoolivalaalmoçaremcomeles.

Meiahoradepoisestavamtodosperfeitamenteacamaradadosdiantede

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quatrocarneirossobreasbrasas,eoassombrodohomemnãotevelimitesquando viuHércules sozinho dar cabo de três. Sua esposa cochichou-lhebaixinho: "Está explicado o desaparecimento dos quatro carneirosnossos...”

Depoisdoalmoço,Hérculesgostavade tirarumabreve soneca,oquefezsemnenhumacerimônia.Osdonosdoolivalficaramsentadosjuntodelevendo a juventude divertir-se. Meioameio estava empenhado em fazercabriolasdetodojeitoparaassombrodosmeninosdoolival,osquaisnãocabiamemsidetantogosto.

—Deixa-memontarumbocadinho?atreveu-seadizerumdeles,vendoPedrinhoencavaladonocentauro.

—Venhaparaagarupa.O menino foi, e boa galopada deram por aqueles campos! Quando

voltaram, Hércules, já desperto, estava se espreguiçando "Ahhhh!..." umespreguiçamentohercúleoqueassustouocasal.

— Bom, criançada! — gritou o herói erguendo-se. — Toca a andar.DaquiaoMonteCirineuaindaéumbompedaço.

Despediram-se.OhomemagradeceuaHérculesahonraquelhederadeescolher sua casa para dormir, e ofereceu-lhe os seus préstimos e os dafilharada.

Separaram-se.—Adeus!Adeus!Voltemlá.Vãopassarunsdiasconosco!...—gritavam

delongeostrêsmeninos.EPedrinho,decimadocentauro,respondia:— E vocês apareçam pelo sítio de vovó. Está chegando o mês das

tangerinas...A última etapa do percurso foi vencida com certa lombeira. Isso de

carregartantoscarneirosnobuchonãotornaagentemaisleve...—Seráaquelemorro?—perguntouemcertopontoEmília.Era,sim.EraaqueleoMonteCirineuelogodepoisavistaramotemplo

deÁrtemis.—QueméessaÁrtemis?—perguntouEmília,eosabuguinhocontou:—ÁrtemiséonomedumadasgrandesdeusasdoOlimpo,filhadeZeus

eirmãdeApolo.ÉaDianadosromanos—aDianaCaçadoraqueagentevênosdesenhoscomarconamãoecarcásdeflechasatiracolo...

—Eacompanhadadumcachorrooudumaveadinha—rematouEmília.DonaBentamemostrouumaDianaassim.

—Exatamente—disseoVisconde.MasanossaÁrtemiséumadeusameiomasculina.Nãoquer saberde trabalhosdemulher, tricô, bordados,cozinha. Seu gosto é a caça. Vive caçando e não tem medo de nenhum

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animalferoz.Voaatrásdelesnasflorestasevara-oscomosseusdardos.—Queédardo,Visconde?—Umapequenalançadearremessar.—EcomoéentãoqueonoivodafilhadoEliasTurcoescreveuaquela

cartaqueNarizinhoviu,comestafrasequemeficounacabeça:"Teusolhosdardejam..."

— Bom — explicou o Visconde — dardejar quer dizer arremessardardos.Apalavraaíestáemsentidofigurado.Osturcostêmosolhosmuitofortes,muito brilhantes, e os daquela turquinha parecem emitir raios deluz.OCandinho,noivodela,achouraiosparecidoscomosdardoseusouapalavra"dardejar..."

Meioameio havia parado bem diante do templo — um lindo templogrego, todo colunas na frente e em cima aquele triângulo do frontão.Pedrinhoapeou,desceuosoutroseficoudenarizparaoar,contemplandoasesculturasemaltorelevo.

OViscondeabriuobicoedisse:—Esse alto-relevodo frontão representa amatançadasNióbidas, ou

filhasdapobreNíobe.Todos puseram-se atentos, inclusive o centaurínho. O Visconde

continuou:—Níobe, filha de Tântalo, casara-se com um grande herói tebano de

nomeAnfião, e tivera nove filhos, cada qualmais bonito.Mas cometeu aimprudênciadeorgulhar-sedissoeandarsegabandodesersuperioremfecundidadeàmãedeÁrtemis.Resultado:estadeusaqueémuitovingativa,resolveu dar cabo da bela ninhada. Invadindo a casa de Níobe, matou aflechaçostodasassuasfilhas,enquantooirmãodeÁrtemis,Apolo,faziaomesmoatodososfilhoshomens,queandavamporfora,caçando.

EssasesculturasrepresentamagrandetragédiadeNíobe...MeioameioabriaabocasemprequeoViscondeabriaasuatorneirinha

de ciência. Que fenômeno prodigioso! — pensava lá consigo o potro decentauro.Comodentrodumaaranhadaqueletamanhocabiatantacoisa!EdumavezemqueperguntouaEmíliaarazãodofenômeno,elarespondeu:

— Porque ele é um sábio. Sábio quer dizer isso: cheio de ciência. OViscondeéumsabugodemilhoqueemvezdetergrãosdemilhoporfora,tem grãos de ciência por dentro. É só darmos corda e a caixa demúsicapegaatocar...

Hérculeshaviaentradonotemploparaoferecerumsacrifícioàdeusa.Emíliateveaidéiadefazeromesmo.

—Vamos,Pedrinho,oferecerumsacrifícioaÁrtemis?Aquiamodanão

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érezar,ésacrificar.—Equeésacrificar?—perguntouomenino.Emília deu a palavra ao Visconde, o qual respondeu: "Sacrificar é

oferecer um holocausto no altar de um deus. E holocausto quer dizerqueimar totalmente uma vítima". Essa palavra vem de "holos", que querdizer "todo", e "Kaio", quequerdizer "euqueimo."Para serholocaustoéprecisoquehajadestruiçãopelofogodavítimainteirinha..."

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IV-ACorça

OVisconde fez umapreleção completa sobre os sacrifícios gregos, oumelhor,antigos,porquetodosospovosdaantiguidadeusavamessemeiode aplacar a cólera dos deuses ou conquistar-lhes o favor. "Eles eramingênuos" — disse o sabuguinho. "Julgavam que o fumo das carnesqueimadas nos templos ia ter aos narizes dos deuses e os aplacava oucomovia." Contou que depois esse costume foi mudando. Em vez dequeimaranimais,queimavamplantasaromáticasouderramavamvinhonofogo; depois passaram a depositar oferendas nos altares— costume quemuito agradou aos sacerdotes, os quais, na qualidade de "espoletas" dosdeuses,ficavamcomasoferendas—eoViscondefoiporaíalém.

Nãohavendonemsequerumpomboparasacrificaràdeusa(coisaaliásquePedrinhonãoadmitiria), a idéiadaexboneca foiqueimarnoaltardeÁrtemistrêsfiosdecabelosdacaudadocentaurinho.Meioameiocomoveu-secomalembrança.Trêsfiosdecabelosdesuacaudaqueimadosnoaltardadeusa,queamor!

Hércules já ia saindo do templo—e eles, com a prosa, não puderamverificarquesacrifíciooheróioferecera;ejáiamentrandonotemplocomostrês fiosdecabelosobreasduasmãosemsalvadaEmília,quandoum"bé"soou.Um"bé"daveadinha...

—Acorça!—gritouHérculese todosseatiraramnadireçãodo"bé",ainda a tempo de verem no ar o risco dos três pulos com que a corçavenceuadistânciaque iadaliatéobosquepróximo.Seuschifresdeourobrilharamaosol,equandosuaspatasdebronzebatiamnalgumapedradochãoosomeradesino.

—Estánobosque!—exclamouHércules.—Vamoscercá-lode cincolados, já que somos cinco — e colocou seus quatro companheiros emquatropontosestratégicos,ficandoeleaocuparoquinto.

Obosqueerapequeno,umsimplescapãodematonomeiodapradariacircundante.

—Eagora—continuou—temosque ir fechandoocírculo.Elahádetentarfugirporumadascincodireções—equemsabeseconseguiremosagarrá-lanopulo?

Eassimfizeram.Cercaramobosqueeforamapertandoocírculo,mais,mais,mais, demodo que a corça, bem lá nomeio do capão demato, oupulavaforadocírculoconstringenteouseriaagarrada.

Acorçapercebeuojogoecompreendeuoplano.Maserrounumponto:

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contou só quatro perseguidores. Não incluiu entre eles o Visconde, nemsequer prestou amenor atenção nesse heroizinho. Quem, nomato, podeprestaratençãoaumsabugodemilhoaindacompalhinhasnopescoçoesemcartola?EcomonãohouvesseprestadoatençãonoVisconde,acorçaresolveufugir justamentepelosetordoVisconde."Elesesqueceram-sedebotar alguém ali..." devia ter pensado consigo mesma. Mas não fugiunaquelestremendospulosquedavano limpo,vistocomodentrodamataos embaraços sãomuitos— cipós, galhos, ramagens. Arremessou-se aospulinhos, e num deles caiu justamente em cima do Visconde, o qualagarrou-seaumadassuaspatasdebronze.Acorçanempercebeuoquefora.Eracomosealgumasimplesmaçarocadepalhahouvesseenganchadoem seu pé, e lá continuou nos pulinhos até ver-se em campo aberto. Aíparouevoltouacabeça,porquesentiuqueamaçarocaaindaestavapresaàsua perna. Fez uns movimentos de coice e nada — a maçaroca nãodesgrudava.Acorça, então, raivosa, firmouapatae comoschifrinhosdeouroarrancouoViscondeearremessou-oparatrásmassemperceberquesetratavadumservivo,inteligenteeagente.Elásefoipelapradariaafora,aospulosdevintemetroscadaum.Osoutroscaçadores,percebendoqueacorçajáhaviasaídodobosque,trataramdereunir-se,naesperançadequeumdelesahouvesseagarrado.

—Olá,olá,aquitodos!—gritouHérculesetodoscorreramparaondeeleseachava.

—Então,Pedrinho?—Nada...—Nãosaiudoseulado,Meioameio?—Não...—Nemdoseu,Emília?—Não...Quemistério aquele?A corçadevia ter-se escapadoporumdos cinco

lados...SóentãoPedrinholembrou-sedoVisconde.— Falta o Visconde! — gritou. — Ainda nada sabemos do setor do

Visconde.Mas que fim levara o Visconde? Pesquisaram em todas as direções, e

nada.Voltaramaobosqueeexaminaramminuciosamenteosetorque lhetinhamdado—enada.

Pedrinhoeramuitohábilemdescobrircoisasnasflorestas,detantoqueas freqüentava lá no sítio de Dona Benta. Não tardou a perceber, peloamassado da vegetação, que o setor de fuga da corça fora justamenteaquele.Epôdeacompanharosrastrosdacorçaatéàsaídaparaocampo.Os

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rastrosamiudavam-seemcertoponto.— Aqui ela parou uns instantes e pererecou. Houve qualquer coisa

aqui...Pedrinho estava certo. Fora ali que a corça arrancara com o chifre a

"maçaroca"presaàsuapatadebronze.Pedrinhocontinuavanoexame.— E daqui — disse ele — ela partiu no galope. Há estes rastos de

pererecamentoemaisnada.Opróximorastodeveestarnesterumoavintemetrosdedistância—edefatoavintemetrosdaliencontrounovorastodacorça.

—MasoVisconde,Pedrinho?—insistiuEmília.—Seráqueacorçaolevounosdentes?Eleémilhoeasveadassãomilhívoras...

—Quemprocuraacha—respondeuPedrinho—epuseram-setodosaprocuraroViscondealinamacega,porquenobosquenãohaviaomenorsinaldele.

Súbito,pá!opezinhodeEmíliadeuumatopadanumacoisanemduracomo pedra nem mole como queijo. Ela abaixou-se para ver o que era,recuouoscapinzinhosedeuumberro:

—Heureca!AcheioVisconde!...Estáaqui,mascompletamentemortoeamarrotado.

Todoscorreramparalá,edefatoviramoViscondemortoedestroçado,sujo de terra, com várias palhinhas do pescoço arrancadas. Pedrinhoagarrou-o e auscultou-o, para ver se o coração batia. Um riso de triunfoacendeusuacara.

—Vivo!... Vivo, sim!... O coração está fraquinho,mas batendo. Foi umdesmaioapenas.Masqueéqueteriaacontecido?

—Numdospulosacorçacaiubememcimadeleeamassou-o,foiisso—disseEmília.

—Sefosseisso,tínhamosdeencontrá-lolánobosque;nopontoemquehaviaficado,enãoaquitãolonge.Comoveiopararaqui?Eisomistério.

Meioameio foi no galope aum riachoperto a fimde trazer água.Queáguamilagrosa!BastaramunsborrifosnorostodoViscondeparaqueeleabrisseosolhinhosevoltasseasi.Olhouparatodos,aindatontoepateta.Depoisdisse:

— Foi com o chifre. Foi com o chifre de ouro que a malvadinha mearrancou.

—Está"variando"—cochichouPedrinhoparaEmília,maslogodepoisviuquenão:oViscondeestavamaseracontandomuitocertooquehaviaocorrido.

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—Elarompeudomeulado...Vinhaemcimademim...Euagarrei-apelopée fecheiosolhos.Parecequeelanempercebeu.Continuoudepuloempuloatésairdomato,masaquinocampomeviuagarradoaoseupezinhodebronzeesacudiu-onoar.Comoeunãoolargasse,veiocomochifre...emearrancoudaliemejogoulonge.Perdientãoossentidos.

Aconsternaçãofoigeral,nãosópeloqueaconteceraaoViscondecomopelo fatodeacorça,depoisdeunsmomentosnasunhasdeumdeles, terconseguidoescapar.

— Que pena, ter tomado pelo setor do Visconde, justamente o maisfraquinhodogrupo!Ah,seviessedomeulado...

Hérculesmostrava-sedesapontadíssimo.Perderaaquelaoportunidadeúnica, e agora? Como descobrir a corça outra vez? Naquele seu galopedesapoderado, onde estaria ela naquele momento? E por mais quepensassenocasonãoconseguiaformularidéianenhuma.

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V-OPlanodePedrinho

Sentaram-se todos eles nos degraus do templo para o estudo dasituação. O centaurinho propunha-se a seguir os rastos da corça, e apersegui-lanomaisloucodosgalopes,seacasoaencontrasse.

Pedrinhoobjetouqueerainútil.—Poissedecadapuloelavencevintemetros, comopodeumcavalo

alcançá-la?Emíliaadvertiu-odequeMeioameionãoeracavalo.—Eudissecavalo—justificou-seomenino—porqueparaosefeitos

dacorridaeleécavalo—eMeioameioconcordou.Oproblemaerasaberquedireçãotomaraacorça.Osrastos,visíveisno

chão até certo ponto, perdiam-se dali por diante. Ela tanto podia ter-sedirigidoparanorte comopara sul,para leste comoparaoeste.Edevia jáestarlongíssima.

—EseconsultássemosoOráculodeDelfos?—lembrouEmília.Pedrinhonãoachousempénemcabeçaasugestão.— Vale a pena tentar, sim, Emília. E podemos mandar para lá o

Visconde, no pó de pirlimpimpim. Num instante ele vai e volta. Como jáesteveemDelfoseconheceoOráculo,hádearranjar-semuitobem.

— Não sei— duvidou Emília. — O Visconde esteve lá apenas como"oferenda"quefizemosaossacerdotes.ComaPítiaelenãolidou.

—Nãolidoumassabecomosedevefazer.Ossábiossabemtudo.Hércules,queestavasemidéianenhumanacabeça,tambémaprovoua

lembrançadaEmília.Quemsabe?TudoerapossívelnaquelaGrécia.Assentado o plano, Pedrinho deu ao Visconde todas as instruções e

mandou-o tomar a pitada. Hércules o havia informado com precisão dadistânciadaliatéDelfos,demodoqueoViscondenãoerrounocálculodopó,indoaterrissardireitinhonosarredoresdacidade.

Mas — ai! um grande transtorno o esperava. Já ia ele entrando noTemplodeDelfos,quando,porazar,deunosolhosdomesmosacerdoteaquemPedrinhooentregaracomooferenda.Osacerdotearregalouosolhoseexclamou:

—PorApolo!OscavalosdeDiomedesmecomamseestaaranhanãoéamesmaqueme fugiu ládaTesouraria—ezás!agarrouoViscondepelaspalhinhasdopescoço e encaminhou-separaodepósito.Opobre sabinhonemsequeresperneou.Paraquê?Numasituaçãodaquelas,nadamaisinútilque o esperneamento. O sacerdote abriu o depósito e jogou-o para cima

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dummontãodeoferendas:blocosdeouro,estatuetaspreciosas,peçasdesedabordada,frascospreciososdeperfumes,muitoâmbar,muitomarfim,incensoemirra.

PedrinhohaviacalculadoqueemumahoraoViscondeia,consultavaoOráculoevoltava,masjásehaviampassadotrêshorasenada.ChegouporfimahoradojantarenadadeVisconde.

Meioameiopôs-seaprepararoassadodeHércules—quenessediaeraum garrote de dez arrobas. Os outros, sentados em redor do braseiro,debatiam o estranho caso do Visconde. Que lhe poderia ter acontecido?Cadaqualformulavaumahipótese—efoiEmíliaquemacertou.Depoisdemuitoparafusar,disse:

—JuroqueeleestáguardadonaTesouraria!—Queidéia!—exclamouPedrinho.—Porquê?—Comcertezaumdaquelessacerdotesqueolevaramparaodepósito

dasoferendasoreconheceu—eotrancafioudenovo.—Mas...—Sim—continuouEmília—porqueoViscondetemodefeitodeser

dessascriaturasquedãomuitonavista.Éexóticodemais.ImpossívelqueseapresentassediantedoOráculosemqueossacerdotesoreconhecessem.QueméquevêoViscondeedepoisseesquece?...

Pedrinhoficoupensativo.Quemsabe?...— E agora, Pedrinho, nós é que temos de ir a Delfos, não só para

consultaraPitiacomoparasalvarpelasegundavezoVisconde.— Issonão!—gritouPedrinho.—Eleestá comumcanudodepóna

cintura.Comumapitadinhaescapadeláaindaquemilsacerdotesocerquem.—Perfeitamente.MascomooViscondenãoaparece,ésinaldequeos

sacerdoteso"desarmaram"antesdeprendê-lonodepósito.Pedrinhonãoentendeuo"desarmaram".Emíliaexplicou:—Tomaram-lheomisteriosocanudinhodacintura.Hércules continuava com a cabeça completamente vazia de idéias.

Estava tãoaborrecidocomaperdadoescudeiroqueàsvezes lhevinhamímpetosdeiraDelfos,arrombaragolpesdeclavaaportadaTesourariaearrancardeláoVisconde,bemnasbarbasdossacerdotes.

A refeiçãodaquela tarde foi dasmais tristes.Apesarda excelênciadoassado,todosocomeramporcomer,comopensamentolongedali.

Pedrinhoestavacomarconcentrado,piscandomuito:sinalde intensapreocupação.Porfimassentounoplanoproposto.

— Sim, Emília, não há remédio. Temos de ir nós dois a Delfos. Do

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contrário perdemos o Visconde. Ele que não aparece é que está sem ocanudinho—edequevalenestaGréciaumViscondesempó?

— Pois vamos — resolveu Emília. Podemos partir amanhã cedo. OOráculoabreàsdezhoras.Osonodaquelanoite fezpendantcomo jantar:umsono inquieto, com

pesadelos,desagradável.AtéHérculescustouapregarosolhos.Sóquandoosprimeirosgaloscantaraméqueosonoovenceu.MasapreocupaçãodeHércules não era apenas o caso do seu escudeiro e sim também comoapanharacorça.

Namanhã seguinte Pedrinho discutiu com Emília sobre o presente aofereceraossacerdotesdaPitia,porqueossacerdotesnãofazemnadadegraça. Com eles é ali no "quem não paga não tem." E só aceitavam boaspagas. Que poderiam os dois picapauzinhos oferecer aos orgulhosossacerdotesdoOráculodeDelfos?

—Apeledoleãodalua!—lembrouEmília.—Oh,masvocêpensaqueHérculesvaiconsentiremdesfazer-sedessa

maravilhosapele-escudoinvulnerável?Nunca...—Seidisso,Pedrinho,maspodemosdarumjeito.—Quejeito?—Deixeocasocomigo.Minutos depois estava Emília contando a Hércules que lá no século

vinteasdamasusavampelesdemuitosanimais, inclusiveumatalraposaprateada,queerararissima.Eporcausadovalordessaspelesoshomensforam descobrindo os melhores meios de preservá-las, de livrá-las debichinhosebolor.

—Sim,porquedádóverumapele rara, comoporexemplo,essa sua,queéúnicanomundo,começarderepenteaperderopêloatéficaraíumapelepelada,semvalornenhum..

—Equefazemparaaconservar?—perguntouHércules,jácommedodeperderasuapreciosapele-escudo.

—Desinfetam-nasdequandoemquando—respondeuEmília—etevede explicar o que era desinfecção, coisa desconhecida naqueles tempos.Depois falou nos vários desinfetantes de cheiro forte, e nas ervasaromáticasque envenenamcomo cheiro aspequeninas traçasdaspeles.Faloutãobemsobreaqueleassunto,queHérculesacaboucomoelaqueria:pedindoquelhedesinfetasseapele.

Emíliacitouomelhorprocessoausarestenderapeleaosolcomumacamadadefolhasdecheiroporcima.Osolfaziaqueoaromadasfolhasseinfiltrasseporentreospeloseporosdapele,etc.,etc.

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Logodepoisláestavaapeledoleãoestendidasobreumagrandelajeetotalmentecobertadefolhasaromáticas.

IssooqueHérculespensava,porquearealidadeerabemoutra.Sobrealaje sóhavia folhas emais folhas, sempelenenhumaembaixo.Apeledoleãojáestavabemenroladaeembrulhada,prontaparaircomelesaDelfos.

Hércules, coitado, não desconfiava de coisa nenhuma, mas porprecauçãoEmíliaaindadisse:

—Enãomexalá,Lelé,senãoestragatudo.Quempõeasfolhasemcimadapele,essemesmotemdetirá-las.Écomoseusalánomundomoderno.

Resolvidoocasodaoferenda,sólhesrestavacalcularbemcalculada,apitadinha de pó— e pronto! Mestre que era em tais cálculos, PedrinhodespejounapalmadamãodeEmíliaaquantidadeexataefezomesmonasua.EmseguidaUm...Dois...eTRÊS!...

—Zunnn...InstantesdepoisdespertavamnosarredoresdeDelfos,amesmacidade

aquetinhamidonotémpodasaventurascomoMinotauro.Recordaram-sedetudo,eatéreconheceramcertascarasvistasnaquelaocasião.

—OOráculo já está aberto?—perguntouPedrinho aumpassante, ecomo a resposta fosse afirmativa encaminharam-se para o Templo deApolo.

ComovinhamgentesdetodasascidadesgregasparaconsultaraPítia,mesmoàquelahoraamultidãojáeragrande.

Pedrinho, com a pele ao ombro, dirigiu-se ao vestíbulo onde sediscutiam as oferendas. Descansou o rolo no chão e disse a um dossacerdotes:

—Podemeatenderaquimesmonumcasoespecial?Osacerdotefranziuatesta,curiosodoquepoderiaser.—Fale,menino.Pedrinho explicou que estavam com grande urgência; precisavam

consultaraPítiaevoltarcomamaiorpressa.—Hámuitaspessoasnafrente—respondeuosacerdote.— Mas se fizermos uma oferenda valiosíssima, como jamais houve

outra?—Equepodeseressapreciosidade?—ApeledoleãodaluaqueHérculesmatounaNeméia—ePedrinho

desenrolou diante do sacerdote atônito a maravilhosa pele, única nomundo. O sacerdote cheirou-a, apalpou-a, correu a mão pela pelagemmacia.Eraumgrandeconhecedor.Freqüentemente lidavacomoferendasdepelesdetodasortedeanimais—maspelecomoaquela jamaisvira.E

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chamouumcompanheiro,edepoisoutro,ficandoostrêsacochichar.Porfimreuniram-seemredordapeletodosossacerdotesdotemplo.EmíliapiscavaparaPedrinho.

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VI-SegundoSalvamentodoVisconde

Depois de todos aqueles cochichos, o sacerdote aproximou-se dePedrinhoedeclarou:

—Aceitamosasuaproposta.SerálevadoàpresençadaPítianestestrêsou quatrominutos— e elemesmo foi guardar na Tesouraria a preciosapele. De caminho notou que havia uma frase escrita na parte pelada docouro.Tentouler.Nãoconseguiuedeliberouláconsigo:"Depoisdefechadooexpedientevireidecifraristo."Etrancouapeleládentro.A fraseescritanuma línguaqueninguémdomundoantigopoderia ler,

porqueerauma língua futura,diziao seguinte: “Visconde: palpitamosquevocê está preso ai na Tesouraria e privado do pó. Vai uma pitada numembrulhinho bem no fundo da orelha desta pele. Nummomento em que osacerdoteabriraporta,aspireopómasdepoisdebemembrulhadonapele,porqueéprecisoqueseescapemosdois,vocéeapele.Pedrinho."

De volta da Tesouraria, o sacerdote levou Pedrinho e Emília para orecinto da Pítia, que lá estava de camisolão branco diante da trípode afumegar.

Pedrinho, que já conhecia todo aquele cerimonial, aproximou-se delacomEmíliapelamãoedisse:

— Desejo saber em que rumo está correndo a Corça Cirinéia que ograndeheróiHérculesestáencarregadodepegar;etambémdesejosaberseelavolta.

APítiaouviuaperguntacomamaioratençãoedepois,estendendoosbraços, debruçou-se sobre aquela fumaça, aspirando-a. Ficou logo emestadodeembriaguezefalou:"Depoisdechegaràterradoshiperbóreos,ocoriscovoltaráparasuadeusa."

Estavaterminadaaconsulta.Osacerdotefezaomeninogestoparaqueseretirasseecedesseolugaraoconsulenteseguinte.

—Queachadaresposta,Pedrinho?—perguntouEmílialogoqueseviunarua.

—Nãoachonadaporquenãoseiondeéaterradoshiperbóreos.SóoVisconde poderá me esclarecer. Temos de esperar pelo Visconde. Ele élerdo,comotodosossábios,masimpossívelquenãosintaocheirodapeleenãodesconfie.Esedesconfiar,estáclaroquevaiexaminá-laedarácomomeurecadoescrito.

—Masquedosedepóvocêcalculou?—Ah,penseimuitonisso,sim.Pusumaverdadeirapulgadepitadinha,

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anecessáriaparaeleescapardeláecairnossubúrbiosdacidade.Temosdeiresperá-lolánaestradagrande.

Eassimfizeram.Plantaram-seàbeiradaestradagrande,muitoatentos,sempreaolharemtodasasdireçõesaversederepenteoViscondeeapeleaterrissavam.Olanceeraarriscadíssimo.SeantesdopôrdosoloViscondenão reaparecesse com a pele, tudo estava perdido: teriam então uma sócoisaafazer—voarparaosítiodeDonaBenta,abandonandoaaventuradosDozeTrabalhosdeHércules.EraessaaopiniãodePedrinho.

—EdeixamosaquioMeioameio?—objetouEmíliaquasecomcarinhadechoro.

—Que remédio? Porque de uma coisa eu tenho certeza: se Hérculesdescobrequenóslhefurtamosapele,enosvêdenovopelafrente,ah,dá-lhe uma daquelas cóleras hercúleas e ele nos achata com o pé, comoachatouocaranguejo.

Emíliasuspiroucomosolhosnosol.Quehorasseriam?— Calculo em três já passadas — disse Pedrinho. — O tempo está

voandoeaqueleestupordoViscondenãodásinaldesi.Comcertezanemviu pele nenhuma e está estudando cientificamente alguma baratinhagrega...Parecementiracabeluda,masassimqueacabouPedrinhodepronunciar

essaspalavras,eisqueumacoisacaiapoucospassosdali—plaf!Umapele!Apeledoleão.PedrinhoeEmíliacorreramparalá.Abrem-naedãocomoViscondedentro,aindatonto,apassaramãopelosolhos!— Avé! Avé! Evohé... — berrou Emília, fazendo que vários passantes

olhassemparaelaerissem.Depois de bem voltado a si, o Visconde contou tudo quanto havia

acontecido.—Poisé—disseele.—Assimqueaterrissei,tontoaindaqueeuestava,

senti um agarramento. Eram as duas mãos dum sacerdote que meseguravamdejeitoanãomedeixaromenormovimentolivre."Estesbichosàs vezesmordem", pareceu-meouvi-lodizer—e lá se foi comigopara aTesouraria.Antesdemelargarlá,examinou-medealtoabaixoedeucomomeu canudinho de pó atado à cintura. Tirou-o, cheirou-o sem aspirar,provou um bocadinho com a ponta da língua. "Que será isso? Talvez oalimentodesteinseto.Mascomofoiquedaoutravezmefugiudaqui?Nãocompreendo..."eafinalfechou-menaTesouraria,nomeiodumamontanhadepreciosidades.

—Equais foramosseuspensamentos lánaTesouraria,Visconde?—quissaberEmília.

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—Eu pensei o que podia pensar: que dando por falta demim, vocêsfatalmente viriam procurar-me; e que chegando cá a Delfos, fatalmentedescobririamomeuparadeiro;equedescobrindoomeuparadeiro...

—Jásei,Visconde—interrompeuEmília.—Ecomodescobriuonossorecadoescritonapele?

—Pelocheiro.Malosacerdotelargouláapele,sentiumafortecatingade leãonoar. "Macacosme lambamse istoqueacaboudeentrarnãoéapele do leão da lua!" E levantando-me fui ver. Sim, era ela mesma,reconhecia logo. E por felicidade dei como recado, porque a pele estavaenroladacomopêloparadentro.Orestonãoéprecisocontar...

—Oque é preciso é voltarmos incontinenti.O carrodeApolo já estábempertodacocheira...

Sim.OrelógiodeparededeDonaBentadeviaestardandoquatrohoraslánosítio.Pedrinhocalculouduaspitadasdepóedistribuiu-aspelasduaspalminhas de mãos estendidas. Depois calculou uma terceira para si.Aspiraramastrêspitadasaomesmotempoezuann!...foramdespertarnoMonteCirineu,apoucosmetrosdalaje.

— Emília — disse Pedrinho logo que a tontura passou— vá com oVisconde verHércules e entretenha-o enquanto eu coloco a pele debaixodasfolhas.Equandoeuderumassobiodedoisdedos,podevir.

EmíliapegouoViscondepelamãoefoicorrendonadireçãodotemplo.Encontrou Hércules dormindo ao sol, feliz como um lagarto. Quando nosonooheróiesquecia-sedetodasassuasinquietações.Meioameioestavaausente,comcertezaembuscadojantar.

Emília pegou do chão uma palhinha e fez cócegas no ouvido deHércules.Oherói deuumgrande tapa em simesmoedespertou. E ficouunsinstantesapatetadoaoverdiantedesioseuprodigiosoescudeiroalicomaboneca.

—Então,meucaro,quefoiqueaconteceu?Emíliatomouapalavra.Erapreciso falare falare falaratéquesoasseoassobiodePedrinho—eelafaloupeloscotovelos.Contoutudodetudoemaisalgumacoisa.EquandonofimHérculesdisse:"Bom.Estouciente.Precisoagorairrecolheraminhapele"—Emíliadeuumagranderisada.

— Está ciente, Lelé? Ah, como é ingênuo! Tenhomuita coisa ainda adizeredamaisaltaimportância,como,porexemplo...

Mas não precisou inventar mentiras: o assobio de Pedrinho haviasoado.

—Queassobioéaquele?—indagouoherói.—ÉdePedrinho.Estánoschamandonalaje.

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Hérculesrumouparalá,acompanhadodaEmília.Pedrinho,demãosnacintura,olhavamuitoatentoparaacamadadefolhas.

—Possoretirarapele?—perguntouelelogoqueoheróichegou—enavozde"sim",esparramouas folhasesuspendeua lindapele.Hérculeslevou-aaonariz.Fezumacareta.

—Extraordinário! Como é quedepois depassar horas e horas ao solsobumacamadadefolhasodoríferas,estapelesómostraamesmacatingade sempre? Estou vendo que nas peles invulneráveis nem os cheirospenetram...

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VII-Vitória

Depoisdesossegadosquantoaopontoprincipal,queeraarestituiçãodapele,PedrinhochamouoViscondeparaumaconsulta.Queriasaberqueeramoshiperbóreos."

OViscondesabia.—Hiperbóreos: os antigos chamavam assim aos povos do norte, das

terrasglaciaispertodoPólo.—Bom—dissePedrinho.—Entãoa respostadoOráculoquerdizer

queacorçavainumacarreiraatépertodoPóloesódepoisvoltacáparaestetemplo.Ainterpretaçãoestádasmaisfáceis.

Epôs-se a raciocinar. Se a corça ia e voltava, nadamais inútil doquesaíremdali.Emvezdecorreremmundoàstontas,comocegos,semquasenenhumaprobabilidadedeencontraracorça,ocômodo,obom,ocerto,oagradável,eraficaremacampadosaliatéqueelavoltasse.

Outra: se a corça vencia vintemetros de cada pulo, era fácil calcularaproximadamentequanto tempo levariapara ir evoltar.ElesestavamnaGréciacujalatitudeéde...

—Visconde:qualalatitudedaGrécia?—AGréciaficaentre37e40grausdelatitudenorte.—EasterrashiperbóreasqueaPítiafalou?—IssoéoarquipélagodeSpitzberg,láentre76e80grausdelatitude.

A distância daqui até lá é duns 40 graus; quer dizer que passa de 5milquilômetros.

Pedrinhocoçouacabeça.Cincomilquilômetros!Quepenahavertantosquilômetrosnomundo...Depoiscalculouavelocidadedacarreiradacorça,achando200quilômetrosporhora.Mesmoassimelalevaria52horasparair e voltar.Não eramuito. Podiamesperar ali.Mas apesar de haver feitopoucocasonofaz-de-contadaEmília,Pedrinhoresolveurecorreraeleparaencurtaroprazo.

—Sim—disseparasimesmo.—Faz-de-contaqueacorçavoltadepoisdeamanhã—ecorreuadizeraosoutrosquecombaseemseusestudosenosdoVisconde,acorçaestariadenovoalidepoisdeamanhãàtarde.

Hércules não duvidou. Ele já não duvidava de nada que os seusmaravilhososcompanheirinhosdissessem.

—Ecomovamosfazerparapegá-la?—Aplicaromeusistemadeesperarapacanatoca.Nocasodacorça,a

toca éo templodeÁrtemis.Podemosesperá-la aíno campo, cadaumde

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nósnumdospontosdepassagemmaisprovável.Emília já estava ali, muito atenta, de mãos na cinturinha. Ao ouvir

aquilo,deuumarisada.Depois:—Masseotemploéatoca,porquenãoaesperarmosdentrodatoca?Hércules assustou-se com a idéia. Seria uma profanação, um

desrespeitoàvingativaÁrtemis.MasEmílianãocedeu.— Tenho um jeito que acomoda tudo— disse ela.— Armamos uma

redeàentradadotemplo.Aentradanãoébemdentrodotemploeadeusanãopodedizernada.

Hérculesaindacoçouacabeça, indeciso,masPedrinhoeEmília foramcuidardarede.

—Hádehaverpaudeembiranocapãodemato—disseomenino.—Vou ver — e correu para lá. Meia hora depois voltava com uma boaquantidadedeembiraexcelente.Chamouosoutros.

—Temosdedesfiar todaestaembirae torcerumacordinhaassimdagrossura dum barbante — e puseram-se ao trabalho. Hércules ajudava,segurandoapontadocordelqueosoutrosiamtorcendo.

Meioameiomostrou-semuitohábilnaquilo.Umahoradepoisestavamcomumnovelodecordelmaisquesuficienteparaaredenecessária.

Pedrinho imaginou-a no formato dos sacos de filó que usam oscaçadores de borboletas. Também lembrava certas armadilhas de pegarpeixe.

—Talqualumcovo—disseraoVisconde.Prontaarede,armaram-naentreascolunasdafachadadotemplo,num

ponto por onde a corça fatalmente passaria. Armaram-na só paraexperiência,porquearedenãopodia ficaralidoisdiasàesperadacorça.Emboranãofosseumtemplomuitofreqüentado,voltaemeiaapareciaporláumououtrofiel.

Muito bem. Tudo estava perfeitamente estudado e preparado, eHérculesjásorrianoantegozodavitória.

Ojantardaquelatardefoidosmaisalegres,porqueestavamnovamentetodos reunidos e absolutamente certos da vitória. Mais umas horas epronto!OmalvadoEuristeuiriaficarcomacaradeasno.

O dia seguinte foi só de brincadeiras e galopadas no centauro. MasPedrinhonotou que oVisconde estava se tornandomuito "variável."Orabrincava,oranãobrincava,equandosaíadobrinquedoeraparaficarcomo olho parado. Emília cochichou para Pedrinho: "Será um grandetranstornoseeleenlouqueceaqui..."

—Porquehádeenlouquecer,Emília?Nãosejaagourenta.

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—Équeossintomasestãoseamiudando.DurantetodoocasodeDelfosoViscondecomportou-secomamaiorperfeição,semamenorloucurinha,mashojenãoestábem.

—Vovódizqueosloucostêmperíodosdelucidezeloucura—lembrouomenino.—Deveserisso.

Dormirammuitobemaquelanoitetodos,menosoVisconde.Osabugopassou-adeolhinhosarregaladoseparadosnumponto,piscandomuito.

..........................................

Eafinalchegouograndediadavitória,odiaemquetinhamdeapanhar

vivaaCorçadePésdeBronze.LogopelamanhãPedrinhoveiocomumaboaidéia:pôrMeioameiode

sentinela na estrada, com instruções para espantar qualquer visitante dotemploqueaparecesse.

—Fique dentro domato damargem, escondidinho.Quando apareceralgumfiel,dêumpuloparaaestradaeamedronte-ocomoquiser.Coices,sóemcasodeúltimanecessidade.

Meioameioriu-se.—Não vai ser preciso. Este povo tem tal pavor dos centauros, que a

simples vista de um os faz correr aindamais rápidos que a corça. Bom.Estavamsósnocampo,livresdeimportunos,epodiamarmararede.Peloscálculos de Pedrinho só lá pela tarde a corça chegaria, mas precauçãonuncaédemais.E foiótimoquepensasseassim,porqueacorçaveio trêshorasantesdocálculodePedrinho.

Eleshaviamacabadooalmoçoeestavamdeitadosporali, cochilando,sempensamentonenhumnacabeçaquandoEmília,trepadaaumaárvore,gritou:

—Sentido!Estouvendoumpuloagrandedistância.Pedrinho explicou a Hércules que os olhos de Emília sempre foram

famosos.CertavezchegouatéaenxergarumapulganodragãodeS.Jorge,lánaLua.Eseelaestavavendopulos,entãoeramesmoacorçaquevinhavindo.

O toque de "Sentido!" fez que todos se levantassem e se colocassem,bemescondidos,nospontosquePedrinhohaviadeterminado.EmcimadaárvoreEmíliacontinuavaaverpulos.

—Éela,sim!Vemdepuloempulo,evaificandomaiorzinhaàmedidaqueseaproxima.Nesteumminutoestáaqui.

Como custou a passar aquele último minuto de espera! Emília ainda

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gritou:—Oschifresdeourorebrilhamaosol.Elaestápulandooribeirão...Doribeirãoalieramcemmetroscincopulos.Etodosviramacorçadar

esses cinco pulos finais e mergulhar no templo, justamente no pontodesejado:—ovãodasduascolunasentreasquaisforaarmadaarede.

—Estánopapo!...—berrouPedrinhovoandoparalá.Todososeguiram,eláderamcomacorçanaredeePedrinhoemcima

dela, talqualnodiaemqueseatirousobreapeneiradosaci.Bemqueacoitadinhatentarafugir,aoperceberquecaíranumlaço—masseuchifredeouroenganchou-senasmalhasdarede,oquedeuaPedrinhotempodechegareatirar-se.Senãofosseaqueleabençoadoenganchamento,omaiscertoerateracorçaescapadopelasegundavez—eaí,então,nuncamais!...

Pedrinhonãoseesqueceradetecercomorestodasembirasumaboacorda—e lá estava ele comasmãospordentrodasmalhasprocurandoatarapontadessacordanaqueleschifrinhosdeouro.

Depoisdissofeito,levantou-seedisse:—Pronto!Podemosretirá-ladarede.Vendo-se livre da rede, o animalzinho julgou-se livre de tudomais e

disparou—masapontadacordaestavabemseguranamãodePedrinho,oqual a derrubou com um sacão violento. A corça ainda fez duas ou trêstentativasdefuga,masbrevesedeuporvencidaebaixouacabeça.

Todosarodearam.Emíliaergueu-lheumadaspatasebateucomumapedrinha para ver se era bronze mesmo. O som foi de sino. Depoisexaminou os chifres de ouro. Que belos e como ficariam bem em seumuseuzinho!

—Hércules—disseela—queroquemecorteoschifresdestacorça.OtalEuristeunãosabecomoelaé.Ficapensandoqueémocha.

MasHérculesnãoaatendeu—efoiaúnicavezemquenãoatendeuaumpedidodaEmília.Arazãoeramuitoclara.Seeleserrasseoschifresdeourodacorça,ficavamostocos—edepoisEuristeuiriaacusá-lodeladrãodaqueleouro.Hérculeseraburrão,masmuitohonesto.

No dia seguinte partiram para Micenas com a corça na corda. ComoPedrinho seguisse montado em Meioameio e lhe ficasse incômodo irsegurando a ponta da corda, teve a idéia de amarrá-la no rabo docentaurinho — e assim fez. A entrada dos heróis em Micenas causousensação. Hércules na frente; depois o centauro com os picapauzinhosmontados; e por fim, pela cordinha, a famosa Corça de Pés de Bronze eChifresdeOuro,cujaexistênciaeranotórianaGréciainteira.

—Isto,sim,équeéumheróideverdade!—disseumavoznomeiodo

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povo.—JámatouoLeãodaNeméia,jáliquidouaHidradeLernaeagoratraz

a corcinha do Monte Cirineu. Que trabalho poderá haver nomundo queHéraclesnãorealize?

QuandooheróientrounopaláciodeEuristeucomacorçaCirinaicanosbraços, Sua Majestade, mortificado de paixão, fulminou com os olhos opobreministroEumolpoquelhesugeriraaqueleTrabalho.

—Salve,Majestade!— começouHércules.—Aqui tendes a Corça dePés de Bronze e Chifres de Ouro que vivia sob a proteção da gloriosaÁrtemis—esoltoualinasaladotronoomaravilhosoanimalzinho.

O despeito de Euristeu em virtude de mais essa vitória de Hérculestranspareciaemseusolhos.Masprocuroudominar-seedissesecamente:

— Felicito-o. Amanhã determinarei o Trabalho seguinte— e fazendogestodefimdeaudiência,desceudotronoefoiconferenciarcomEumolposobreoquefazerdaqueleinvencívelherói.

Depois de sair do palácio, Hércules reuniu-se aos meninos, que oesperavamnarua,edisse:

— O rei ainda não me deu nenhuma incumbência nova. Temos deesperar.

—Aquiouno"camping"?—Estáclaroqueno"camping".Tocaparalá.Comquealegriavoltaramaoqueridoacampamentolápertodoribeirão

deáguascristalinas!Comquefelicidadeseespalharamporali,procurandoascoisasdeixadas,matandoassaudades!

—Temosdemelhorarnossacabana—propôsEmília.—Nósviramosemexemos nesta Grécia, mas a nossa verdadeira residência é aqui — ecomeçaramaestudarareconstruçãodacabana.

—Eporque—dissePedrinho—emvezdereconstruiressamiserávelchoupana de palha, não havemos de fazer uma casinha como a que osMeninosPerdidosconstruíramparaWendy?

Aidéiaencantouatodos,eorestododiapassaramnamaioratividade,reunindomateriaisdeconstrução.Aflorestaforneceumuitacoisa,eoquenãohavianaflorestaeracompradonoArmazémFaz-de-ContaqueEmíliaabriuàbeiradaestrada.Láadquiriramtelhasparaotelhado,evidraçasjáprontas,etábuasparaoassoalho,demodoqueacasinhase foi tornandoumabeleza.

—NafrentequeroumafiladecolunascomoadotemplodeÁrtemis—reclamouEmília.

—Masqueédascolunas?

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—Voumandarumadúzia ládomeudepósito—e foicomascolunasfaz-de-conta do Armazém de Emília que o arquiteto Pedrinho ergueu afachadadaconstrução.Emíliaexigiuainda,sobreascolunas,umfrontãoaotipododetodosostemplosgregos,comesculturas.

—Queronofrontãoumauto-relevoquerepresenteasprincipaiscenasdacaçaàcorça.Esculturasdemármore.

—Equemvaiesculpirisso?— Lá nomeu armazém também vendo esculturasmaravilhosas— e

Pedrinho construiu o frontão e colocou lá as maravilhosas esculturasvindasdoArmazémdaEmília.

Hércules não largava dos meninos e babava-se de gosto ao vê-losbrincar.Nasuavidadeherói,sempreemlutacomtodasortedemonstroseguerreiros, nunca tivera tempo de prestar atenção nesses bichinhos tãointeressantes chamados "crianças." E das crianças o que mais agora ointeressava era o "tal de brinquedo." Parece que a única preocupaçãodobicho criança é brincar e brincar e brincar. E no brinquedo usammuitoaquelamaravilhadofaz-de-conta.Agentegrandenãosabeoqueéisso,porissoagentegrandeé tão infeliz.Hércules começoua compreenderqueamaior maravilha do mundo é realmente o faz-de-conta — isto é, aImaginação,osonho.

Acasinhanovajánãoeracasa—eratemplohabitável.Temploporforae casa de morada por dentro. Mas os templos têm que ser dedicados aalguém.

—Templodequedeusoudeusa,Pedrinho?—perguntouEmíliadepoisdetudopronto.

O menino pensou. Os deuses e deusas da Grécia andavam fartos detemplos,tantoshaviaporlá.Omelhoreradedicaremaqueletemplozinhoàvovó, coitada, tão longe dali e com reumatismo. Emília concordou — eimediatamenteviusurgirnafachadadotemploumletreiroentalhadoemmármorefaz-de-conta:TEMPLODEAVIA.

Emílianãoentendeu.—AVIAévovóemlatim—explicouPedrinho.—Masalínguaaquiéagrega.Ponhaaívovóemgrego.—Eraoqueeuqueriafazer,masnãoseienãoquerodarogostodeme

informarcomHércules.Seeledescobrirquenãoseinemcomoévovóemgrego,ébemcapazdeperderaféemtodaaminhasabedoria...

Que deliciosa noite passaram na casinha nova! Hércules dormiu aorelento,comodecostume,eocentaurinhotambém.Issofezqueasensaçãodesegurançadospicapauzinhosfosseimensa.Guardadospôrumsemideus

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eporumcentauro!Quemaispoderiamdesejar?Nodiaseguintechegouummensageirocomumpergaminho.Hércules,

queeraanalfabeto,pediuaPedrinhoqueolesse.Omeninodesdobrouoroloeleuoseguinte:—SuaMajestadeoReiEuristeu,deMicenaseTirinto,ordenaaoseusúdito

Héracles que siga imediatamente para Erimanto, na Psófida, a fim dedescobriromonstruosojavaliqueandaaassolaraquelasparagens.Ecomoassim quer, assim manda. EUMOLPO, Primeiro-Ministro de Sua MajestadeAltíssima.

Hérculesarreganhouumsorriso.Seeraum javali,entãose tratavademassa-bruta, e de massa-bruta ele jamais teve medo. Para Hércules operigoestavaemtrabalhoscomoodacorça,contraaqualasuaforçaerainútil, um trabalho que requeria muita inteligência. Se vencera comtamanha facilidade a Corça de Pés de Bronze, isso fora em virtude dacolaboraçãodePedrinhoedosoutros.

"Sim",refletiaconsigooherói."ElesrepresentamaInteligênciaeeusódisponhoda Força. Emmuitos casos a Forçanada vale e a Inteligência étudo — como no da corça. Mas um javali, ah, ah, ah... São ainda maisbroncosdoqueeu...”

Depoisdeuordemaosoutrosjáreunidosemseuredor:— Aprontem-se que amanhã de madrugada vamos partir para o

Erimanto.Emílialembrou-sedacasinha.—Eficalargadaaquiestenossoamordecasinha?— Que remédio? Mas espero que ninguém ousará pôr as mãos nela,

sabendoqueénossa.Todosaquitememosmeusmúsculos...EHércules concluiuo seupensamento comuma "piada"muito fina, a

primeiraeúltimadesuavida:—Esealguémestragaracasinha,aplicamosofaz-de-contaeoestrago.

desaparece...Emíliatevedeengoliroremédioqueelatantoreceitavaparaosoutros,

masapesardissofoiláàcasinhaepregouumletreirodepapeldeverdade(papelnão:costasdopergaminhomomentosantesrecebido),oqualdiziaassim:

ESTACASATEMDONO.AIDEQUEMMEXERNELA!...SERÁESMAGADO

PELO PÉ DE HÉRACLES, COM A MESMA FORÇA COM QUE ESMAGOU OCARANGUEJO...

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No dia seguinte, às quatro e meia da madrugada, partiram para oErimanto.

***

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4-OJAVALIDEERIMANTO

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I-OJavalideErimanto

HérculeseseuscompanheirosláiamderumoàArcádia.NessapartedaGrécia ficava o Monte Erimanto, que vinha sendo assolado por umgigantesco javali. Cada vez que o monstro descia para os vales era parafazerestragoshorrorosos.Daíopavordosseusmoradoreseopedidodesocorro que endereçaram ao Rei Euristeu: "Majestade, haja por bem darjeitonesta fera,poisdocontrárioestamosperdidos."EcomesperançadequeHérculesperdessenaluta,Euristeumandou-ocombateroferozjavali.

A Arcádia era a regiãomais atrasada de toda a Grécia, por sermuitomontanhosaeporissomesmopoucopovoada.Aindústrianãoiaalémdapastoril. Sempre que um poeta grego fazia um poema bucólico, era naArcádiaquepunha a cena. Se outroprecisavadumpastor, ia buscá-lonaArcádia,E comopassardo tempoaArcádia ficouparao restodaGréciacomoosímbolodobucolismo,davidasimpleserústica.AtéhojeapalavraArcádia lembra pastores tocando flauta para os carneiros ouvirem epastorasdecestinhasnobraçoatrásdasmargaridasdocampo.

Quem deu essas noções sobre a Arcádia foi o Visconde, que andavapassandobemdodesarranjocerebral.Pedrinhonãosabiaseelesararadetodoouseestavaatravessandoum"períododelucidez."

—Easpastorastambémusavamgrandeschapéusdepalhadeabalarga—lembrouEmília.—VipastorasassimnumlequeantigodeDonaBenta.

O Visconde contou que os poetas são uns mágicos: tomam as sujaspastoras da realidade e as transformam em mimos de criaturas, comaçafatesdefloresaobraço,pezinhosbemcalçados,saiarodadaeoclássicochapéudepalhapresoaoqueixoporumabarbeladefita.Fazemdelasumacoisa de leque e de poema, mas as pastoras de verdade são muitodiferentes, coitadas: são mulheres do povo, grosseiras por falta deeducaçãoetrato—enemsombraimaginamcomoaparecemfaceiríssimasnostaislequesepoemas.

Nesse ponto da conversa Hércules, que seguia na frente parou parafalarcomumviandante.QueriasaberondeficavaaresidênciadocentauroFolo,seuamigo.

—Folo?—repetiuoviandante.Moraporaqui,sim,coisadeumaléguanesterumo.Masestáaíumacoisaqueeunãosabia:queHérculestivesseumamigocentauro...

—Tenhodois, esseFolo e odenomeQuiron, quemoranaMaléia—respondeuoherói.—Confessoomeuantigoódio aos centauros, doque

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aliásmearrependo,poisviquecomumpoucodeeducaçãoelessetornamexcelentescriaturas,comoonossoamigoMeioameio.

Opassantenãosabiaquemera.Hérculesexplicou:—Umcentaurinhonovoquecapturamoseamansamos.Lávemele...e

apontouparaMeioameioquevinhanavoladacomoscarneirosdoalmoçoaosombros.

Oviandanteficouapavorado,poiseraaprimeiravezqueviaumdessestremendos seres. Folo morava por lá, mas o nosso homem nem sequerpassavaporpertodeseusdomínios.

Enquantoo centaurinhopreparavao almoço,Hérculesdeixou-se ficarsentado ali, a conversar com o passante, isso depois de ter feito aapresentação de Pedrinho, do Visconde e da Emília. Grande admiração eespanto do homem, sobretudo diante do Visconde, que ele achouparecidíssimocomumaaranha.

—Eessecanudocomabasqueeletemnacabeça?— Chama-se "cartola"— respondeu Emília.— É o chapéu usado no

mundo moderno pelas pessoas importantes—presidentes de República,ministros,doutores,sábios.Estezinhoésábio.

Depois de informar-se de muita coisa do "tal mundo moderno", ohomem pediu a Hércules que lhe contasse por miúdo a sua atuação nocélebrecasodochoqueentreosCentauroseosLápitas.Hércules,porém,tinhavergonhade contar coisasdaGréciapertodo seuescudeiro, oqualsabia de todos os assuntos muito mais que ele — e deu a palavra aoVisconde.

—Escudeiro,conteaestehomemoquesabedoscentauros.Eosabuguinhocontou.—Antesdemaisnada—disseele—temosdevercomooscentauros

surgiram nesta Grécia. A coisa começou no Olimpo, certa vez em que osdeuses estavam se banqueteando com a ambrosia e o néctar. Entre oscomensais figurava um criminoso asilado no Olimpo: Íxion, o Rei dosLápitas,oqualerafilhodeZeuseumaninfa.

—Asiladoporquê?—indagouPedrinho.— Porque havia matado o sogro, e Zeus, com dó do filho assassino,

asilou-onamoradadosdeuses.MasêsseÍxioneradochifrefurado.Emvezde ficar quietinho, sabem o que fez? Pôs-se a namorar Hera ou Juno, aesposadeZeus.

—Quedesaforo!—exclamouEmília.—EZeus?—Zeusestavademuitobomhumorquandopercebeuacoisa,eemvez

de zangar-se com o patife, teve uma idéia: mandou que uma nuvem

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tomasseaformadeJunoecorrespondesseaonamorodeÍxion.—Quecoisaengraçada!—exclamouPedrinho.—Estouvendoqueo

Olimpodosgregoséumverdadeiroteatro.— Se é! E por isso não tem conta o número de dramas, comédias e

tragédiasdaliteraturaclássicaemqueoenredoéumapassagemqualquerlánoOlimpo.

Nuncahouvenomundomaiormanancial de casosprodigiosos, e issoporque o Olimpo era filho da Imaginação grega, a mais rica de todas asimaginações da antiguidade. Esse caso de Íxion até hoje é recordado.Quandoalguémtomaumacoisaporoutra,ousoédizer-se: "Ele tomouanuvemporJuno."

—Equeaconteceu?—AconteceuqueÍxionnamorouanuvemedepoisandousegabando.

Zeus, então, encheu-se de cólera e arremessou-o ao Tártaro, que era oinfernodosgregos,ondeMercúrio,porordemdeZeus,oamarrouaumaroda que iria virar eternamente — uma roda a que também estavamamarradasinúmerasserpentes...

—Masquetemtudoissocomoscentauros?—Temqueoscentauroscomeçaramassim.Nasceramdosamoresde

ÍxioncomessanuvemeumdiadeclararamguerraaofilhodeÍxiónqueosucedera no trono, reclamando sua parte na herança. Esse filho de Íxiontevemedo da luta e fez com eles um acordo; depois convidou-os para afestadeseucasamentocomHipodâmia.Agrandeencrencanasceudaí.OscentauroseramtambémfilhosdeÍxion,dessesquepuxamaopai.Nomeioda festa ficaram com as cabeças muito esquentadas e puseram-se anamorar a noiva. Depois quiseram raptá-la, e também as outras moçaspresentesnafesta.

—Queescândalo!—Equedesastre!—exclamouoVisconde.—Imaginemqueentreos

convivasestavamtrêstremendosheróis:aquiomeuamoHércules,TeseueNestor.

Esses heróis se atracaram com os insolentes centauros, mataram amuitos e expulsaram da Tessália os restantes. Foi então que vieramrefugiar-seaqui,nestasmontanhasdaArcádia.

Hérculesestavadebocaaberta.Comoéqueaquelaaranhinhapernudasabiatantacoisacerta?Talvezfossesortilégio"daquilo"queelenãotiravada cabeça e no mundo moderno se chamava "cartola." Daí a grandeveneraçãoerespeitodoheróipelacartolinhadoVisconde.

DepoisfalaramemFolo,ocentauroamigoqueoheróidesejavavisitar,

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eHérculesvoltou-separaMeioameio.—Escute.VamosdaquiàmoradadeFoloeépossívelqueencontremos

porláoutroscentauros.Tenhoreceiodequevocêsintaavozdosangueequeiranosabandonar...

Ocentaurinhodeuumagargalhada.—Ficar por aqui entre estes brutos?Nunca!... Depois do que ouvi de

PedrinhoeEmília,sóumlugarnomundomeserve:osítiodeDonaBenta.—Entãopossoficarsossegado?Semreceiodequevocênosfujaefique

aquiporestasmontanhascomosseusiguais?—Claroquepode.Fiz talamizadecomPedrinhoquenadanomundo

nosseparara.Hérculessossegou.

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II-LutacomosCentauros

À tarde chegaram à morada de Folo, o qual, com grandesdemonstraçõesdecontentamento,veioàporta receberoamigo.Eramnaverdadevelhoscamaradas.Foloadmirou-semuitodeoveremcompanhiade um centaurinho, e mais ainda ao saber do modo como Hércules opegara.

Depois demuita prosa, Folo abriu um barril de vinho para festejar oaparecimentodoherói.Eraumvinhoexcelenteedecheiromuitoforte—cheiroqueoventolevouatéàflorestaondeestavamosoutroscentauros.

— Hum!...— fez um deles, farejando o ar.— Aposto que Folo abriuaquelebarrildevinhoquerecebeudepresente.Issoquerdizerqueestádevisita.Quemserá?

E,conversavaiconversavem,surgiuentreelesaidéiadeumataqueàmoradadeFolopara"raptar"obarrildevinho.Armaram-sedemachados,pausegrandespedrasepartiramemdesapoderadogalope.QuemosviufoiEmília,comosseusolhínhosdetelescópio.

—Estou vendo!—gritou ela do alto duma grandepenedia.—Estouvendoumbandodecentauros!TalvezsejamosparentesdeMeioameioqueoqueremtomardenós.AviseaoLelé,Visconde!—eenquantooViscondecorriaaavisaroherói,Emília,depezinhanapontadospés,olhava,olhava.

—Obandovemvindonogalope!Unstrazemmachados,outrostrazempausepedras.Vêmdenarizparaoar,farejandoobarrildevinhoqueFoloabriu...

Hércules estava de prosa com o seu amigo centauro, sem nadadesconfiardofuracãoemmarcha.OViscondeaproximou-secomorecado.

—SenhorHércules,aEmíliamandadizerqueoscentaurosvêmvindonogalope.

Hércules deu umpulo, já em guarda e demão no carcás. E enquantoFoloperguntavaoqueera,elesacavaasflechassempontaejogava-asaumcanto.Sóqueriaasbempontudas.

— Os centauros vêm vindo! — repetiu Hércules. — Vamos ter lutaferoz.

— É que cheiraram esta vinhaça— disse Folo.— Eles são a própriaintemperançaempessoa.

Nessemomentochegouatéelesotropeldoscentauros,cadavezmaispróximos. Hércules passou a mão na clava e esperou. As flechas ele asusavaparaosataquesàdistância.

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Os tremendos monstros chegaram e pararam de brusco diante damoradadeFolo,comoparamcavalosnogalopequandoocavaleirocolhedumtrancoasrédeas.Omaisalentadodetodosavançouedisse:

— Sabemos do barril de vinho e queremos beber. O cheiro nos foilevadopelonossoamigovento.

FoloexplicouqueabriraaquelebarrilparaobsequiaroseuvelhoamigoHéracles,quetinhavindovisitá-lo.

O nome de Héracles provocava ódio e pavor entre os centauros, demodoqueaoouvi-loobandocaiuemguarda.Ecomo já tivessembebidonaquele dia e estivessem com as cabeças quentes, a arrogância osempolgou.Ochefedisse:

—Ótimoqueotenhamosencontrado!Entrenóseesseheróihávelhascontasaajustar.Porsuacausaestamosreduzidosànossaatual condiçãoaquinestasagrestesparagens.Elequesaltecáfora,senãoéopoltrãodospoltrões.

Mal disse isso e, como uma bomba voadora que cai do céu, Hérculesexplodiunomeiodeles.Suaclava,pesadacomoumamontanha,alcançouochefe dos centauros pelo ombro e "apeou-o" isto é, fê-lo vir ao chãoestrebuchando.Vendoaquilo,osoutrosatiraram-secontraoheróicomasarmasquetraziam,masfoiomesmoqueagredirorochedodeGibraltar.Oherói unia a força à agilidade; com esta desviava-se dos golpes e com aforçagolpeavaumavezsó.Cadaclavadaeraumcentauronochão.Caíramassim quatro, e os dois restantes fugiram. Hércules ainda teve tempo deespetarumdelescomumaseta.

Folo ficousentidíssimodaquilo,porqueeraparenteeamigodoscincocentaurosmortos.Que loucos!Que imprudentes!Virematacaraquem?AHéracles,oinvencívelheróiquejáoshaviadestroçadonafestadosLápitas.Loucos, loucos!... Tinha agora de enterrá-los — e Folo reuniu todos oscorpos num certo ponto para o funeral. Depois foi em busca do fugitivoalcançadoàdistânciapelasetadeHéracles.Tomouocadávernosbraços.Asetaestavacravadaemsuascostas.Foloarrancou-a,masaofazê-loferiu-senamão.Foiaconta.Daliapoucoestorcia-seemdoresemorriaumamortehorrorosa.OvenenoqueHérculesusavanassetaserainfalível.

O triste fimdeseuamigocentauroencheudedorocoraçãodoherói.Hérculeschoroucomoumacriança,apesardaspalavrasdePedrinho:

—Nãoadianta,Hércules!OqueadiantaéfazermososfuneraisdeFoloeenterrarmosocadáverdosoutros.

Emíliacensurou-ocomamaiorseveridade:—Esseseugênioexaltadonãodácerto,Lelé.Porqualquercoisinhafica

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foradesi,enxergatudovermelhoelávemahecatombe.Matarcincolindoscentauros, que judiação!Bastavadar-lhesumaboa sova.De sova a gentesara, mas quemmorre desaparece para sempre. O bom sistema é o dosamericanosnasfitasdecowboys.Quandochegaahora,opegaétremendo,édosquefazemagentesetorcernacadeira.O"bom",depoisdeserquasevencido, acaba vencendo e pondo o "mau" nocaute.Mas ninguémmorre!Eraoquevocêdeviafazeraqui:pôrnocauteestescentauros,massó.Quedireito tem uma criatura de tirar a vida de outra — não é mesmo,Visconde?

—Sim—respondeuoescudeiro.EntreosmandamentosdaLeiháumquediz:"Nãomatarás."

—EstávendoLelé?Atéoseuescudeirinhosabequeissodematarésóquando se trata de hidras de Lerna ou de leões da Lua. Matar cincocentaurosécontratodasasleis,porque-hápoucoscentaurosnomundo,eno dia em que todos desaparecerem omundo ficará vários pontosmaissemgraça.

Oheróificouenvergonhadíssimodesuaação,econcordouqueeraumbruto,indignodeterumescudeirocomooViscondedeSabugosa.

Depois do sermão moral da Emília e duma prédica do sabuguinho,Héraclesdisse:

—Muitobem.Oqueestá feito, está feito.Vamosenterrarcomtodaasolenidade o meu querido Folo e depois prosseguiremos em nossapenetraçãorumoaoErimanto.

OenterrodeFolofoiumatocomovente.Pedrinhofezumdiscursoaopédacova,tãobonitoqueHérculesesvazioutodaasuareservadelágrimas.

Emíliaaparouumadessaslágrimasnumvidrinhodehomeopatialádasuacanastra,eescreveunorótulo: "Lágrimahercúlea, recolhidapormimmesmanodiadoenterrodeFolo."Aciganinhanãoperdiaensejodetirarpartidodetodososacontecimentos.

MasesseencontrodeHérculescomosseiscentaurosnãofoioúltimo.Tempos depois o herói esqueceu as censuras da Emília e o sermão doVisconde, e teve outro encontro com o resto dos centauros, aos quaisatacouaflechaçosefezfugirparaaMaléia.LámoravaQuiron,omaissábiodetodososcentaurosetambémamigodeHércules.AcóleradeHércules,porém, não respeitou coisa nenhuma: foi para a Maléia e mesmo nosdomínios de Quiron continuou a perseguição dos centauros fugidos. Ecomo aconteceu que uma das suas setas acertasse por acaso emQuiron,maisesseseuamigoveioamorrerporcausadacóleradoherói.

OdesesperodeHérculesnessaocasiãonãotevelimites,eparavingara

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morte deQuiron voltou-se contra o resto dos centauros com fúriamaiorainda. Muito poucos se salvaram: só os que conseguiram alcançar umpromontórioondeodeusdaságuas,Netuno,ostransportouparaaIlhadasSereias.Efoinessailhaqueseextinguiuacuriosaraçadoscentauros,filhosdoReiÍxionedanuvemEqueeletomouporJuno.

Bom,mas isso se deu tempos depois, não foi tragédia assistida pelospicapauzinhos. A parte a que eles assistiram foi apenas a luta entreHércules e os seis centauros beberrões, atraidos pelo barril de Folo.Pedrinho não quis que Meioameio visse aquilo, para que não fossetestemunhadomassacredetantosparentes.

Edurantetodootempotratoudemantê-loafastadodoantrodeFolo,oraa fazer isto,oraa fazeraquilo,semprecoisasdistantes.Umadelas foiinformar-se lápelosarredoresdoMonteErimantoseomonstruosojavaliaindaandavamuitoferoz.

—Cada vezmais calamitoso—veio dizerMeioameio depois de umagalopadaaté lá.—Dizemosmoradoresdasvizinhançasqueaindaontemdesceu omonte com a velocidade duma avalancha de pedras que rolampela encosta abaixo. Por onde passou ficou uma estrada aberta noarvoredo.Elegalopavaàscegas,preferindoderrubarasárvoresadesviar-se...

—Querdizerqueéumtanquedecarne—observouomenino,fazendoqueMeioameioperguntasseoqueeratanque.

—Tanque éum javali de açoque lánosnossos temposmodernososhomensusamnaguerra.Tambémnãosedesviamdeárvores:derrubam-nasepassam-lhesporcima.

Meioameioficouaruminaraquilo."Javalideaço!Comoeralápossívelumacoisaassim?"

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III-RumoaoErimanto

Nodiaseguinte,bemdescansadodalutadavésperaejácomacabeçafresca, porque os seus remorsos só duravam algumas horas, lá partiuHérculesdenovo.

Os três picapauzinhos, montados emMeioameio, seguiam ao lado doherói,entretidosnocomentáriodosacontecimentosdavéspera.

— Pobre Folo!— dizia a exboneca. Quando havia de pensar que porcausa da tal fera do Erimanto ia ter uma morte horrível e tão fora detempo?Masseráeternamentelembradolánomeuséculo20...

Hérculesnãoentendeu.—Porquê?—Porque levo emminha canastra um souvenir dele: a ponta de sua

cauda.Hérculesriu-se.— Pelo que vejo, Emília, o seu museuzinho é a maior maravilha

moderna...—EémesmoLelé.Hálácoisasquenenhummuseunomundotemnem

terá, como,por exemplo,umvidrinhodenéctardoOlimpo,um trincodeportadoquartodeDonaAspásia...

Pedrinhoarregalouosolhos.—Atéissotrouxedelá,Emília?Enãonoscontounada...—Nãoconteiparaquenãose implicassemcomigo,mas tenho láesse

trinco,eopédefrangodeseisdedosetantasoutrascoisasquesóindoláevendo.

PedrinhocontouaHércules todaahistóriadaEmílianoscomeços,notempo emque era bonecadepano emuda, e faloumuitode sua célebretorneirinhade"asneiras."

— Era uma danada naquele tempo. Assim que abria a boca, lá vinhauma asneira — e bem engraçada às vezes. Lembro-me de uma. Nóstínhamos ido ao País das Fábulas, onde encontramos Monsieur de LaFontaine caçando fábulas para o livro que escreveu. Era um homem jábastanteantigo,do tempoemque seusavamcalçõesde seda, sapatosdefivelasecabeleirasdecachos.Emíliaachoumuitosemjeitoaquelehomemdecabeloscompridos,porqueissodecabeloscompridosécoisademulher.Eindoentãoàsuacélebrecanastrinhatiroudeláuma"pernadetesoura",quedeudepresenteaofabulista.LaFontaineolhoubemparaaquilo,eriu-se."Paraquequeroistobonequinha?"Eelamuitolambeta:"Paracortaroseucabelo."LaFontaineadmirou-se."Comocortaromeucabeloseéuma

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tesouradeumapernasó?"EaEmíliasoltouaasneirinha:"Poiscortedeumlado só..." Eram assim as asneirinhas dela, coisas absurdas, sem nemcabeça. Hoje está mudada e mais sábia que um dicionário, mas mesmoassimderepentedáumaabridinhanatorneira...

Emílianãoprestavaatençãoàconversa,todaabsorvidanocantodeumrouxinol.Quandoaavezinhaparou,bateupalmas.

— Viva! Viva! Derrota longe os sabiás lá do sítio. Parece que vaiinventandoasmúsicas...

O Visconde, que em entendidíssimo em música de passarinhos,confirmouo"parece"daEmília.

— Sim—disse ele.—O rouxinol não repetemúsica, não é como osoutrospassarinhosqueaprendemumcantoepassamavidaarepeti-lo.

—Mas o canário não é assim. Aquele belga de Pedrinho, lá no sítio,cantainventadamente—lembrouaexboneca.

—Parece—disse o Visconde.—O que ele faz é cantar umamúsicamuito comprida,mas depois que chega ao fim volta ao começo. E assimtodososoutrospassarinhosládaroça,osabiá,opintassilgo,o"soldado"...Achoqueorouxinoléoúnicoquenãorepetemúsica,eporistotemtantafama.ÉamaravilhadoI

mundopassarinheiro.Umacaixinhademúsicavivaeencantada.Assimque o diamorre e vem se aproximando a noite, ele começa a cantar nossombriosdamata,ecantacadavezmaistristeatéqueanoitecai.Nãoháquemouçaasuamusicaenãofiquemelancólico.

O rouxinol que provocara aquelas considerações começou a cantarnovamente. O Visconde ergueu o dedo, em gesto de "parem e escutem."Todospararameescutaram.

—Sim,nãopodiahavermúsicamaissaudosa,nemmaisbemexecutada.Nãohaviaumerrinho,nãohaviaamenordesafinação.Oprodigiosocantordepenasiaimprovisando,inventandoasuamúsicadedespedidadaluzdosol.Pelaprimeiraveznavida,Hérculesdeuatençãoaorouxinol—eaquelamúsicamexeucomelelápordentro.Eraa"educação"—e"suaidéiasobreaeducação"lhevoltouàcabeça,fazendo-opensarestepensamento:"Estespicapauzinhosestãomeeducando...

Quando o rouxinol emudeceu, todos ficaram por algunsminutos semdizernada,aindamagnetizadospeloenlevo.DepoisoViscondefalou:

—Tudoaquinestepovo temumaexplicaçãopoética.Sabemcomoosgregosexplicamoaparecimentodorouxinoledaandorinha?

Ninguémsabia.OsábioalierasóoVisconde,oqualtossiuopigarroecontouahistóriadeFilomelaeProgne.

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— Estas duas moças, filhas de Pândion, rei de Atenas, eram muitoamigas,dessasquenãoselargam.CertodiaPrognecasou-secomTereu,reida Trácia, de quem teve um filho de nome Ítis. Mas nem essemenino aconsolavadaausênciadeFilomela.Quesaudades!Eradasquequantomaisotempopassa,maisapertam.UmdiaPrognenãoagüentoumaisedisseaomarido: "Vá a Atenas e tragaminha irmã, pois do contráriomorrerei desaudades." Tereu foi, mas era um mau sujeito esse tipo. Ao dar comFilomela,umabelezadecriatura,apaixonou-seviolentamente;eaotrazê-la,tentounomeiodocaminhoobrigá-laafugircomele.Filomela,cheiadeindignação,repeliuaquelapropostaabsurda—esabemoqueaconteceu?

—Tereusuicidou-se!—disseEmília.—Matou-a!—dissePedrinho.—Raptou-aàforça!—disseHércules.—Suspirou!—disseMeioameio.OVisconderiu-se.—Todoserraram.Tereunemsesuicidou,nemamatou,nemaraptou,

nemsuspirou.ComoFilomelanãoparassedechoraregritar,elecortou-lhealíngua,edepoistrancou-anumvelhocasteloabandonadoquehaviaporali, deixando-a sob a guarda de gente de sua confiança. E continuou aviagemsozinho.ChegandoemcasafezumarmuitotristeecontouaPrognequea"coitadinhadaFilomelahaviamorrido."

— Imaginem o desespero de Progne!— disse Emília.— Eu, quandovoltarparaosítio,nemcontoessahistóriaparatiaNastácia...

OViscondecontinuou:— A coitadinha da Filomela ficou sem a língua mas não ficou sem

cérebro, de modo que não fazia outra coisa senão pensar num meio demandar aviso à sua irmã, desmascarando aquele monstro. Mas avisá-lacomo? Pensa que pensa, afinal descobriu um jeito: fazer um compridobordado com uma série de cenas que fossem representando toda a suahistória.SePrognevisseessebordado,compreenderiatudoeviriasalvá-la.E assim foi. Depois de terminar o lindo bordado, jogou-o por uma dasjanelinhasdatorre.Jogou-oaovento—eobordadofoicairbemnomeiodaestrada.Não tardouqueunsviajantesacaminhodaTráciaovissemepegassem. "Que lindo! Que maravilha!..." exclamaram. "Uma coisa belaassimmereceserlevadadepresenteàrainha",equandochegaramàTráciaforam ao palácio oferecer à rainha amaravilha. Assim que Progne viu obordado, seu coraçãopalpitou: reconheceuospontosque emmenina elamesmahaviaensinadoàsuairmãFilomela;eatentandonasériedecenasdo bordado, compreendeu tudo: Filomela não estava morta, como havia

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ditooinfameTereu,esimpresanocastelo.—Quebom!—exclamouEmíliabatendopalmas.—ApostoqueProgne

vaisalvá-la.—Issopoderáfazer—dissePedrinho.—Masalíngua?Quemconserta

umalínguacortada?Continue,Visconde.—Então—continuouoVisconde—duranteumadasgrandesfestasa

Dionisos, que o Rei Tereu dava todos os anos, Progne aproveitou-se dabarafunda para disfarçar-se e correr ao castelo velho, onde subornou osguardas,entroueraptouairmã.Cáfora,disfarçou-atambémetocaparaopalácio em festa! Entraram sem que ninguém as visse. O rei estava sebanqueteandonumdessesbanquetesdos reisantigosquevaramhorasehoras e vão até àmadrugada. E Progne, então... Que imaginam que essarainhafez?

—ConsertoualínguadeFilomeladisseHércules.—Deu-lheumafacaparaquematasseorei—dissePedrinho.—Desmascarouoreiseumarido—disseMeioameio.—Nada,nada!—declarouoVisconde.—Progneestavatomadadetal

ódiopelomaridoqueimaginouamaisterríveldasvinganças:ajudadapelairmã,matouomeninoÍtis,filhodeTereu,ecortou-lheacabeça...

—Quemonstra!—berrouEmília.Queculpatinhaocoitadinho?—Nenhuma,estáclaro.Masésabidoqueoódioéassim:nãorespeita

coisanenhuma.OódiodePrognecontraomaridoestendeu-seaomenino,que era um produto dessemarido, uma espécie de prolongamento dele.Muitobem.Tereuestavanobanquete,jácomacabeçatontadetantovinho,demodoquequandoviuentrarFilomelacomumacoisaempunhojulgouquefossevisão.Esfregouosolhos.Olhoudenovo.Sim,eraelamesma...Acunhadaadiantou-seejogouparacimadamesaacoisaquetrazianamão.Tereuarregalouosolhos:eraacabeçadeseufilhinhoÍtis!

Hércules estava comovidíssimo. Quis dizer qualquer coisa masengasgou.

—EquefezoReiTereu?—perguntouEmília.— Ficou uns instantes apatetado. Depois sacou da espada e investiu

contra seu próprio irmão Drias, também ali presente, certo de que esseirmãoeracúmpliceemtudoaquilo.AtravessouopobreDriascomaespadaeatirou-seemperseguiçãodasduasirmãs.

—Ematou-astambém?—Não teve tempo.OsdeusesdoOlimpo, achandoqueaquela família

precisava de conserto, transformaram Filomela em rouxinol, Progne emandorinha,ÍtisemcorruíraeTereuempoupa.

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—Issoéqueésaberfazerascoisas!Filomelaqueporterperdidoalínguanãopodiafalar,viroualinguinha

de ouro de toda a passarinhada! Mas se eu fosse Zeus virava Tereu emurubu.Eraoqueelemerecia.

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IV-AFênix

Dorouxinolaconversapassouparaoutrasaveseporfimrecaiusobreacélebrefênix.

—Oh,afênix!—exclamouHércules.—Jáouvifalar.Dizemqueviveséculos.Tem o tamanho da águia e na cabeça um topete dum vermelho

vivíssimo. As penas do corpo, também vermelhas, com exceção das dopescoçoquesãodouradas.

—Easdacauda?—Essassãobrancas,entremeadasdealgumascordesangue.—Quelindadeveser!—exclamouPedrinho.Já era noite quase fechada. Hércules ajeitou-se por ali mesmo para

dormir, e os picapauzinhos procuraram o abrigo duma gruta de pedra.Meioameio deitou-se na entrada da gruta. Era ele o guarda-noturno dosseusamigosdoséculo20.

Os sonhosdaquelanoite foram sonhos "ornitológicos", comodissenodia seguinte o Visconde, e foi explicando: "Ornitologia é a ciência queestuda as aves. Logo, quem sonha com passarinho tem um sonhoornitológico..."

AoretornaremàviagemparaosmontesdoErimanto,aconversavoltouaomesmoassuntodanoiteanterior:aves.

—Contemaisalgumacoisadafênix,Lelé!—pediuEmília—eoheróicontou.

—Oquemedisseram foioquenarreiontememais isto:a fenix temolhosbrilhantescomoestrelas...

—Quelindo!...—Equandosentequeahoradamorteestáchegando,começaajuntar

nomatoramosdeplantascheirosas,resinasegravetos;ecomaquilotudofazumaespéciedeninhodentrodoqualseacomoda.IssoantesdocarrodeApolo aparecer no horizonte. Quando aparece e seus raios começam aesquentar,aqueleninhoresinosopegafogoeviraumagrandefogueiranaqual a fênix é completamente consumida, só ficando um montinho decinzas.Eaíentãoéqueaconteceoprodígio:nomeiodaquelacinzaapareceumovo,doquallogosaiumanovafênix.Essafênixjuntatodaaquelacinzaevaidepositá-lanoaltardoSol,nacidadedeHeliópolis.

— Que lindo! — exclamou Emília. A fênix renasce de suas própriascinzas!—EnãohánenhumafênixaquiporestaGrécia,Lelé?

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— Às vezes aparece alguma, vinda de outras terras. Mas não é avegrega.

MinutosdepoisdessaconversaEmíliagritou:"Alto!..."etodospararam.ElatrepouaoombrodeMeioameioealidepé,comamãoemviseira,pôs-seasondaradistância.Eiafalando:

—Estouvendomuito longeumaaveaamontoarumninho-fogueira...Belíssima,sim...Todacordepitanga,comtopetemuitovivoerabobranco...

— Será uma fênix? — exclamou Pedrinho, já assanhado— e Emíliacontinuou:

—Não sei,mas está fazendo direitinho como Lelé disse. Traz para oninho-fogueiraplantasodoríferas...O Visconde suspirou. Estava achando aquilo um pouco demais. Que

daqueladistânciaEmíliavisseaavetrazerplantasparaoninho,aindaválá.Masdeclararqueasplantaseramodoríferas?Seriapossívelquealémdosolhinhosdetelescópioelapossuíssetele-olfato?

—Está pronto o ninho-fogueira!— continuouEmília.—Agora a aveajeitou-senomeiodaqueles"combustíveis"eestárezandodemãospostas,àesperadequeumraiodesolvenhaincendiá-la...

Embora Hércules acreditasse cegamente no que a exboneca dizia,também começou a achar aquilo "demais"— e deu ordem aMeioameioparacorreratéláeverseeraassimmesmo.

O centaurinhopartiunogalope, comoViscondeno lombo,porqueosverdadeiros sábios nunca perdem ensejo de verificar o que podem. EenquantoMeioameiogalopavanadireçãodafênix,Emíliacontinuavaaver"coisas",masjápreparandoumaescapatória.

—UmaveznoDesertodoSaaradisseamarotinha—euviumacoisalinda:umchafarizlámuitolonge.NãopodiahaverencontromaislindonoSaaradoqueodeumchafariz,paragentequeestavamorrendodesede,comonós...

Pedrinhopensouemdesmascararaexboneca,dizendoquetudoaquiloerainvenção.EmíliajamaishaviaestadoemSaaranenhum;masdedódelalimitou-seadizer:

—Essechafarizdeviaserumadaschamadas"miragens"tãofreqüentesnosdesertos.Osviajantessedentosvêemoásisecoisasondenãoháoásisnemcoisanenhuma.

Hércules ficou na mesma, porque na terra grega não havia desertos,nemoásis,nemmiragens.Emíliacontinuou.

—Ebempodeserqueaquela fênixsejaumamiragem...Não!Nãoé!...Esperem,esperemumpouco...Estámasépegandofogo!Pronto!Oninho-

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fogueirapegoufogo!...Afênixestáseconsumindonaschamas...O centaurinho acabava de chegar ao ponto indicado e por mais que

olhasse não percebeu fênix nenhuma. O Visconde sorriu consigo,murmurando:"AquelaEmília..."Ecomonadaachassem,voltaram.

—Nãoencontramosavenenhuma—disseMeioameioaochegar.—EueoViscondedemosumavoltaporláenemsinal.

Hércules,jámeiodesconfiado,olhouparaEmília,aqualbotouasmãosnacinturaedeuumagargalhadagostosa.

— Nunca vi dois sarambés maiores! Quando chegaram lá, a fênix jáhaviasidodevoradapelo fogo.Emvezdeprocuraremuma"ave",deviamterprocuradouma"cinzinha",masapostoquenempensaramnisso.

MeioameioolhoumuitodesapontadoparaoVisconde.Realmente,elesnãotinhamtidoaidéiadeprocurarcinzinhanenhuma...

— Pois, meus grandes bobos, o que se deu foi isto: enquanto vocêsgalopavam para lá, a fênix desapareceu consumida pelas chamas e ficoureduzidaaumpunhadinhodecinzas.

Querendotiraraprovadaquilo,HérculesdeuordemaMeioameioparavoltar e verificar a existência da cinzinha.Meioameio partiu, e enquantogalopavaparaláEmília"continuouaver.

—Quebeleza!—exclamoufazendocaradeadmiração.—Estouvendoa maravilha das maravilhas... A cinza está se juntando... está tomandoforma... É a fênix que renasce de suas próprias cinzas. Pronto! Estáformadinha...Agoracomeçouaexperimentarasasas.Vaivoar...Voou!...

Hércules estava de boca aberta. Que maravilha, aquela criaturinha!Enquanto isso Meioameio e o Visconde chegaram novamente ao pontoindicadoepuseram-seaprocurarcinzinhas.Nemsombra!Nãohavianemcheirodecinza—evoltaramdesapontados.

— Nada encontramos, Hércules — disse Meioameio ao chegar; e oVisconde confirmou: — Não há lá nem sequer sombra de nenhumacinzinha.

Emíliadeunovagargalhada.—Osbobos!...Comopoderiam terencontradocinza, sequandovocês

estavam no meio do caminho a fênix renasceu e lá se foi pelos ares?Queriamqueelaficasseparada,àesperadosdoissarambés?

DessemodoEmíliaembaçouatodoscomasuaprodigiosaespertezaeatéPedrinhoficounadúvida."Quemsabeseémesmoverdadetudoquantoela disse?" Apenas um não duvidou da Emília: Hércules. Não duvidounaquelemomentonemnunca.Ficaratãoescravodaquelacriaturinha,queeraEmíliadizer,eraelejuraremcima,comoseelafosseopróprioescudo

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dadeusaPalas.O incidente foioassuntodaconversaentrePedrinhoeHércules,num

momentoemqueosdoisseafastaramdorestodobando.— Emília faz coisas que atrapalham a gente — disse Pedrinho. —

Aquela história da pulga que ela viu nas escamas do dragão de S. Jorgeparececaçoadapura—masquemsabe?Tudoépossívelnestemundo.Essecaso da fênix, hoje. Ela veriamesmo a fênix incendiar-se e renascer dascinzasouestavanosenganando?Impossívelsaber.

Hércules,porém,jánãotinhaamenordúvida.—Naminhaopinião,viu.Elacontoutudotãocertinho...—Ah,Hércules,vocênãoconheceaEmília.Éumdosmaioresmistérios

dostemposmodernos.Nasceubonecadepano,feiaemuda,feitalápelatiaNastácia,efoiindo,foi"evoluindo",atéficarnoqueé.

Hércules não tinha vergonha de perguntar o que era quando nãoentendiaalgumapalavra,eperguntouoquequeriadizer"evoluindo."

—Evoluirémudarcomaperfeiçoamento.Umacoisaquemudamasnãoseaperfeiçoa,nãoestáevoluindo.Aáguadumrioestásempremudandodelugar,masnãoevolui;porquemudasemaperfeiçoar-se,entendeu?

Hércules fez um esforço para entender e parece que entendeu, poisdisse:

— Nesse caso, eu também estou evoluindo. Minhas idéias estãomudando.

—Paramelhorouparapior?—Paramelhor...

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V-Pã,odeusdaArcádia

AArcádiatinhaoseudeusespecial.Ospicapauzinhosficaramsabendodisso depois do encontro dum velho viandante. Não era nenhum velhotonto,masumgrandevelhodotipo"filósofo".OViscondeagarrou-oenãoolargou o tempo inteiro, porque os sábios gostam de conversar com ossábios.

Oprincipalassuntodaconversaforamosdeuses,esobretudoodeusdaArcádia.

—Sim—disseraovelhoemcertomomento—estaArcádiatãorústicatemumdeussódela:Pã.

O Visconde tinha suas noçõezinhas sobre Pã, mas ignorava ospormenores e a verdadeira especialidade desse deus. O velho viandanteproporcionou-lheumaaulasobreoassunto.

—PãéodeusespecialdaArcádia,oguardiãodestesrebanhoseoseumultiplicador.Étambémoprotetordospastores.

—VeiodoOlimpo?—indagouoVisconde.— Não. Pã nasceu nestas paragens, e dummodomuito interessante.

CertavezHermes,omensageirodosdeuses,aterrissouporaqui,bemnoscampossagradosdeCilene, e seapaixonou loucamenteporuma formosaninfa.Apaixonou-seatalpontoqueseofereceucomopastoraDriops,opaidaninfa.

— Que graça! — exclamou Emília. — Ele, um deus do Olimpo, aempregar-secomopastordeovelhas...ePedrinhorecordouocasodoJacódaBíblia,queporamoraRaquel,filhadeLabão,contratou-seporseteanoscomopastordasovelhasdofuturosogro,efindooprazocontratou-sepormaisseteanos.Sóassimconseguiucasar-secomRaquel.

—PoiscomodeusHermesaconteceucoisaparecida—disseovelho.—TevedeservirdepastornosrebanhosdeDriopsparaobteramãodesua filha.Afinal casou-se—eodeusPã foio resultadodesse casamento.Mas Pã nasceu com pés de bode e chifrinhos na cabeça. Todos sehorrorizaram com o fenômeno, menos Hermes. Assim que o estranhomeninonasceu, tratoudevoarcomeleparaoOlimpoa fimdemostrá-loaosseuscompanheirosdedivindade.Embrulhou-onumapeledelebreeláse foi. QuandonoOlimpo abriu a pele e exibiu o filhote, houve risadas ecaçoadas—ederam-lheonomedePã.

OdeusinhodepésdebodefoicrescendoaquinaArcádiaeficoumoço.Masmuito feio, opobre, comaquelespés e aqueles chifres:Asninfas

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metiam-no a riso, o que o fez jurar que nunca em seu coração amariamulhernenhuma.Mas certodiaCupido travou comeleuma luta corpo acorpo e, apesar de ser apenas um menino, venceu-o. As ninfas queassistiram à cena deram grandes gargalhadas. E o pobre Pã não teveremédiosenãoamar.

—ComtiaNastáciatambémfoiassim—berrouEmília.—QuandoeuaespeteicomumadasflechasdeCupido,levouasmãosaopeito,revirouosolhosparaocéuepôs-seasoltarsuspirosdeamor...

Ovelhotambémnãoentendeuaquilo,econtinuou:— Começou a amar, e logo depois encontrou a ninfa Sirinx, que só

queriasaberdacaçaetinharecusadoamãodetodasasdivindades.Pãfoise chegando e dizendo que queria ser seu esposo. Sirinx não disse nada,saiu correndo por ali a fora— e Pã atrás. Mas como era um deus e osdeusescorremmaisqueasninfas,acaboualcançando-aláadiante.

—Eagarrou-a!...— Ah, não!... Assim que a ia agarrando, Sirinx virou uma touceira de

caniço...Emília cochichouparaPedrinho: "Apostoqueo tal caniçoera taquara

doreino."—E dessa touceira de caniço começou a levantar-se um cantomuito

suave e queixoso. Pã comoveu-se e cortou sete canudos de váriostamanhos;depoisemendou-osemcera—efoiassimquenasceuacélebreflautadePã,instrumentoquenuncamaiseleiriaabandonareficariasendooseudistintivo.

—Porquenuncamaisabandonouessaflauta?—quissaberEmília,eovelhorespondeu:

—Porqueassimqueausava,fluíamdetodososbosquesninfasemaisninfas,paradançaremredordele.EntreessasninfashaviaumadenomePítis, quediantedasmúsicasdePã semostravamais enternecidaque asoutras.Evaientão,eodeusfeiosentedenovoofogodoamoraarderemseucoração.Etocandonaflautacommaiorsentimentoainda,vaiandando,vaiandando,rumoaumlugarsolitárioondehaviaumaltorochedo.Lásesenta bem no píncaro e continua a tocar. Atraida pelamúsica, Pítis vemvindo,eparamelhorouvi-losenta-seaseulado.Pã,coitado,perdeacabeçaefaz-lheumadeclaraçãodeamor.MasaninfaeraanamoradadeBóreas,oterrível vento norte, o qual, enciumadíssimo, toma-se de grande furor esopraumarajadaparacimadeles.

—Bóreassoltouumpé-de-vento,eusei!—disseEmília.— E tão forte foi essa rajada que a pobre Pitis perdeu o equilíbrio e

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tomboudo rochedoabaixo,despedaçando-senaspedras.Osdeuses lánoOlimpo, que tudo viam, apiedaram-se da coitadinha e transformaram osseuspedaçosempinheiros—umpinheiroquecresceentrepedras.DesdeessediaPãtomouopinheirocomoasuaárvoreepassouaandarcomumacoroadefolhasdepinheiroenganchadanoschifres.

—Querdizerqueeleamavaenãoconseguiacasar?—Exatamente.Seudestinoeranuncapoderunir-seàcriaturaamada,

comomaistardenocasodaninfaEco,filhadoAredaTerra.CadavezquePãtocava,essaninfarepetiaasúltimasnotas lá longe.Pãvoavapara láetocavadenovo—eEcorepetiadenovoasúltimasnotas,massempreaolonge,comoseestivessemofandodele.

Emíliadeuumarisadagostosa.—Deusmais bobonunca vi! Pois nãopercebia que a tal Econão era

ninfanenhumaesimissoquechamamoseco?Conteaquiaovelhooqueéeco,Visconde.

Osabuguinhoexplicouqueecoeraareflexãodumsom."Osomdádeencontroaumobstáculoereflete,istoé,voltaparatrás."

Ovelhoprosseguiu:—PoisodeusPãnãosabiadissoelevoumuitotempoacorreratrásda

ninfaEco...—Eeuseidessedeusmaisumpedacinhoquevocênãosabe—disseo

Visconde para o velho. — No reinado do imperador romano Tibério,reinadoquevaiseramuitosséculosdedistância-tempodaqui,ocapitãodeumnavioancoradonumportodoMediterrâneoouviráumavozmisteriosaqueclamará:"OgrandedeusPãmorreu!"Edesdeaíninguémmaisouviráfalarnele.

—Issonãosei—disseovelho—porqueécoisadofuturo.SóseiquehojeodeusPáaindaexisteecontinuaamultiplicaroscarneirosecabrasdesta Arcádia, a proteger os pastores, e a perseguir a ninfa Eco com asmelodiasdesuaflautadesetecanudos.

DepoiscontouocomeçodahistóriadaninfaEco.—Ah—disseele—Ecohaviasetornadotãofaladeiraeinventadeira

decoisas,queadeusaHeraenfureceu-seecondenou-aaumcastigomuitointeressante: só repetir os últimos sons do que acabasse de ouvir. Dessemodo amentirosissima Eco parava dementir, porque só podia repetir ofinzinhodoqueouvisse.

—Entãofoidaípordiantequeelaviroueco—disseEmília.OViscondeexplicouqueosom"eco"temessenomeporcausadaninfa

Eco e não o contrário, como supunha a Emília. O velho concordou e

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Hérculesroncou.Sim,porquedurantetodaaquelaaulademitologiaograndeheróinão

fezoutracoisasenãodormireroncar.Estavamdescansandoàbeiradumafonte, junto à floresta. Lá dos campos de pastagemvinhamos "més" doscarneirosdaArcádia.

—UmdiaemqueEcosaiuàcaça—continuouovelho—deucomumrapazdamaisperfeitabeleza:Narciso filhodoReiCefise. Imediatamenteseu coração se encheu de amor — mas como declarar esse amor, se ocastigodeHeraaimpediadefalarantesdele?AcoitadasópodiarepetirasúltimaspalavrasqueNarcisodissesse...

—Quehorror!—exclamouPedrinho.—Sóagoracompreendoacrueldadedessecastigo...—Sim,opiorpossível—concordouovelho—comoapobreEcoiria

verificar. Narciso se perdera na mata e não vendo nenhum dos seuscompanheiros gritou: "Não há alguém por perto de mim?" "Mim" —respondeu Eco de trás dum rochedo. Narciso olhou em redor e não viuninguém. "Se há" — gritou de novo, "então juntemo-nos!" E Eco, muitoalegre,repetiu"juntemo-nos!"eapresentou-seaosolhosdeNarciso.Masorapazteveumadecepção.Esperavaversurgirumdosseuscompanheiroseo que apareceu foi a importuna e insistente ninfa. E repeliu-a, dizendo:"Pensaqueeu teamo?"ApobreEco foiobrigadaa repetiro "eu teamo"finalefugiunomaiordesespero.Desdeentãocaiuemprofundatristezaefoiemagrecendoeseconsumindoatéficarsóossos;quandochegouaesseponto, Zeus transformou-a em pedra e deixou que sua voz ficasse nomundoarepetirasúltimasnotasdossonsrefletidos.

Emíliabateupalmas.— Gosto dos gregos porque em tudo botam uma historinha. Para o

Visconde e os sábios modernos o eco é a tal reflexão dos sons. Para osgregoséavozdaninfaEcotransformadaempedra.Cemvezesmaislindo...

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VI-OMonteErimanto

Efoiassim,comparadaspelocaminhoeconversascomviandantes,queogrupoalcançouaregiãoondeseerguiaoMonteErimanto.Láestavaele!Coberto de vegetação, mas listrado, de alto a baixo, como se grandespenedoshouvessemdescidopelaencosta.Hérculesexplicou:

—Aquelas faixas de vegetação arrasada correspondemàs decidas dojavalirumoaovale.Vejamqueviolênciatemoímpetodessemonstro...

Pedrinho observou que nos tempos modernos só os tanquesconseguiam produzir efeitos assim — e teve um trabalhão para dar aoheróiumaboaidéiadotanque.

—Masqueéqueospuxa?—queriasaberHércules,emuitoseadmiroudarespostadePedrinho:"Ostanquesnãosãopuxados,sãoempurradosdedentroporumgrandenúmerodecavalosinvisíveis,chamadosH.P."

Hérculesficouacismarnaquilo.Muitobem.EstavamemfacedoErimanto,omontehabitadopeloferoz

javali.Tinhamde conferenciar sobreoque fazer.A idéiadeHércules eraavançar contra a fera e matá-la a flechadas ou golpes de clava, masPedrinhoapresentouumaobjeção:

—Mataedepois?ComovaiprovaraoReiEuristeuquedefatomatouojavalidoErimantoenãooutrojavaliqualquer?

—Levoapele—disseoherói.— A pele! A pele!... Peles de javali não faltam no mundo. O rei tem

direitodeduvidar.—Quedevofazerentão?—Levarojavalivivo!Hérculescoçouacabeçaeficouapensar.Depoispediuaopiniãozinha

daEmília.—Evocêqueacha,Emília?—Acho omesmoque Pedrinho. Um javali vivo convencemuitomais

queumapeledejavali.—Evocê,Visconde?—Idem,idem—respondeuoVisconde—eexplicouqueestapalavra

latina "idem" queria dizer "o mesmo." A Meioameio o herói nadaperguntou,porquenãodavamuitaconfiançaaocentaúrinho.Refletiumaisunsminutoseresolveu:

—Poisficaassim.Nãoomatarei.Apanhá-lo-eivivo.Mascomo?AquiPedrinhoentroucomoseujogo,mestrequeeraemarmadilhasde

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caçador.Lembrou-selogodomundéu.—Sócommundéu,Hércules!—Equeéisso?—Omundéuéumfossodeboaprofundidadecobertodepauscomuma

camadadeterraefolhassecasporcima.Constrói-seomundéunocarreirodoanimal, istoé,numcaminhopor

ondeeletenhafatalmentedepassar.—Equeacontece?—Acontecequequandooanimalvempelocaminho,derepentepisana

tampafalsadomundéuetudoaquiloafundaparaoburacocomelejunto.O rosto de Hércules iluminou-se. Como era engenhosa e clara aquela

astúcia!— Sim— disse ele. — Adotemos o sistema, que parece ótimo — e

encarregouPedrinhodedeterminaromelhorpontoparaaconstruçãodomundéu.

Nadamaisdifícil,porqueomundoégrandeea caçaperseguidapodepassar por aqui, por ali ou por acolá. Como armar o mundéu na trilhacertinhaqueacaçavaiescolher?

Isso era trabalho de muita dedução, como os de Sherlock Holmes, erealmente deu serviço ao miolo dos três picapauzinhos. Em que pontoarmar o mundéu? Pela faixa de vegetação amassada nas encostas doErimanto via-se que o monstro não tinha carreiro certo. Ora rasgava afloresta num ponto, ora a rasgava em outromuito distante do primeiro.Comoadivinhar?Eestavamnamaiorindecisão,quandoEmíliaresolveuocaso.

— Grandes bobos! — disse ela. Quando as coisas encrencam dessemodo,vocêsbemsabemquesóháumremédio:aplicarofaz-de-conta—etomando a frente dobando caminhou até certo pontoda encosta e dissecomamaiorsegurança:"Fazdecontaqueéexatamenteporaquiqueaferavaipassar.

Hércules nada entendeu daquilo, e Pedrinho não quis entrar emgrandes explanações. Apenas disse que o faz-de-conta era um sistemainfalível,massóaplicávelcomoúltimorecurso.

Determinadoopontoondearmaromundéu,atarefadeescavarochãocoube ao herói. Hércules lascou um tronco de árvore para fazer umacavadeira,ecomelaabriu,numinstante,umenormefossodesetemetrosdelarguraporoutrostantosdecomprimentoeprofundidade—echamouPedrinhoparaversebastava.

—Sim—disseomenino,depoisdemedircomosolhosa fundurado

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fosso.—Nãohájavali,nemanimalnenhum,quevençasetemetrosnopulo.—Comonão?—contestouEmília.Qualquertigreouveadopulamuito

maisqueisso.Pedrinho explicou que realmente pulavam muito mais, porém

aproveitando-sedoimpulsodacarreira.Lánofundodofosso,semespaçopara correr e ganhar impulso, o animal pulador ficava como que sempernas.Pedrinhoeramestreempulos.

Emíliaconcordou.Depois de pronto o fosso, Hércules, sempre dirigido por Pedrinho,

quebrou galhos e os foi colocando par a par sobre a boca do fosso. Emseguida jogouterrasobreaquelaestivaecobriua terracomfolhassecas.Pedrinho.colaborounapartefinaldaobra,consistenteemdeixaracamadadefolhassecas"bemnatural",demodoqueojavalinãodesconfiasse.

Emíliachegouaespalharporcimaumasfloressilvestres.—Bom!—dissePedrinhodepoisde armadoomundéu.—Épreciso

agora torcermos cordas bem fortes, por que temos de içar o bicho aí dofundo — e mandou Meioameio buscar embiras em quantidade. Eles jáhaviam torcido cordas na aventura da Corça de Pés de Bronze, demodoqueoserviçoandoudepressa.Pedrinhoprecisavadequatrocordas,duascompridasefortíssimasou"cordasdeguia",comoasdenominava;depois,umamenorpara"peia"daspatasdoanimal;eaúltimaparaa"focinhêira".

Hércules ficousentado,avê-loprepararapeiaea focinheira,emboranãocompreendessemuitobemaquilo.

Prontas que foram as cordas, Hércules mandou-os ficaremescondidinhos numa gruta próxima. "Nada de trepar em árvores, porqueessejavaliderrubacomamaiorfacilidadequalquerárvore."Edepoisqueosviubemabrigados,plantou-seatrásdomundéuerompeuemberrosdedesafioaojavali,queevidentementemoravanotopodoErimanto.

—Porcalhão.Venha,setemcoragem!AquioaguardaHércules,oheróiinvencível!...

Obobodojavali,lánoaltodoErimanto,caiunaasneiradeouviraquiloeenfurecer-se.EstáclaroquenãotinhaamenornoçãodequemfosseotalHércules, e no caso só viu um humano qualquer que tinha o topete dedesafiá-lo,aele,ojavaliinvencível.Elançou-secomamaiorimpetuosidadenadireçãododesafio,arrasandoaflorestaemsuapassagem.Obarulhofoide avalancha. Grandes árvores estalavam e abatiam-se como se fossemdébeisplantasdejardim.

PorviadasdúvidasHérculessemantinhadeclavaempunho,umaclava

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nova feitadomelhorpaudaquelesarredores.Masà sua frente jaziabemocultoomundéudePedrinho...QuandoojavalidivisouovultodeHércules,faíscasdeganaespirraram

de seusolhosvermelhos—eele avançouparaoherói em linha reta.Derepentetchibum!Pisounatampafalsaelásefoiparaofundodofosso,decambulhadacomtodaaquelapaulamaefolhariaseca.

— Hurrah! — berrou Pedrinho ao ouvir o estrondo e, montado emMeioameio,partiunogalopede rumoaomundéu.Lá estavaomonstroaroncar e a debater-se, tonto da queda e sem a menor idéia do que lheacontecera. Em seguida chegaramEmília e o Visconde, e ficaram todos àbeiradofosso,aespiaromonstrocolhidonomundéu.

— Cara de coruja! — berrava Emília. — Faça avalancha agora, se écapaz...

Depoisdegozaremporalgumtempoafúriaimpotenteeodesesperodojavali, trataram de laçá-lo com as duas cordas compridas — e aí quemresolveuocasofoioVisconde.

—Desçalá,ecorraalaçadanapatadomonstro—ordenouPedrinho.Ah,paraessasproezasarriscadasobomerasempreoVisconde,nãosó

pornãoatrairaatençãodapresacomoporser"consertável."Cadavezquelhe acontecia alguma, tia Nastácia tomava do paiol um sabugo novo erefazia-o.OViscondeeraafênixdoSítiodoPicapauAmarelo.

Apesardetodooseumedo,osabuguinhodesceuaofundodofossoefoipassando a laçada pelo pé do javali. Omonstro bem que o viu,mas nãoligou a mínima importância. Um animal naqueles apuros não ligaimportânciaamilhos.

Presoquefoiojavalipelopé,Hérculesosuspendeucomoosguindastesdos portos suspendem as grandes cargas; e quando as patas traseirasficaramdejeito,Pedrinhoamarrouapeia.DepoisdisseaHércules:

—Deixe-o cair de novo no fundo do buraco. Temos agora de laçá-lopelopescoçoesuspendê-lodemodoqueeupossacolocarafocinheira.

Eassimfoifeito.DessaveznãofoiprecisooauxíliodoVisconde.Depoisdealgumastentativascomalaçada,Hérculescolheuojavalipelopescoçoepuxou.Láfoi lentamentesuspensopeloguindastehercúleo—ePedrinhopôdeajeitar-lhenofocinhoaengenhosafocinheira.

—Pronto!—gritou.—Podesacá-loforadumavez,Hércules!Com um puxão o herói sacou do fôsso o monstro peado e

enfocinheirado.Meioameioseguravaapontadaoutracorda,demodoqueobicharoco jánadapodia fazer.Umacordaomantinhadumladoeoutracorda o mantinha do lado oposto. Mesmo assim o javali estrebuchou e

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corcoveoucomoburrobravo.

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VII-RumoaMicenas

Depois demuito pinote e corcovo o javali do Erimanto compreendeuqueerainútilresistir.Estavacompletamentefrouxo.

—Bom—disseHércules.—Podemosagoralevá-loaMicenas.Eusigona frente segurando-o pela corda do pescoço, e Meioameio segue atrás,segurando-opelacordadopé—efoiassimqueotremendíssimojavalidoErimantochegouacidadedeMicenas,comgrandeassombrodapopulaçãoemaiordesapontamentodoReiEuristeu.

—Pronto,Majestade!—disseHérculesao surgirdiantedo rei comaterrívelferanacorda.

Euristeu, sentado no trono, tremeu de medo. E se aquelas cordasarrebentassemeojavaliselançassecontraele?

Mas não houve nada disso. Eumolpo deu ordem para a rápidaconstrução duma jaula, e uma hora depois o javali do Erimanto estavasolidamenteengaioladoeexibidonapraçapúblicaàsmultidõescuriosas.

AnotíciadesseQuartoTrabalhodeHérculescorreupelaGréciainteiracomavelocidadedoraio.DesdeAtenasatéEspartasósefalavadaquilo,elánoOlimpoadeusaHerateveumfaniquito.Malditoherói!Pelaquartavezsaía incólume duma terrível trama contra ele preparada. E a implacávelperseguidora pôs-se a pensar em um novo trabalho, dessa vezabsolutamente acima das forças de qualquer herói. Qual seria? pensou,pensou...Depoissorriuedisseconsigo: "Jásei!..."—emandouHermes,omensageirodosdeuses,levarumrecadoaEuristeu.

Enquanto isso, Hércules e os picapauzinhos voltavam ao "camping" àbeira do ribeirão. Lá encontraram tudo como haviam deixado. NinguémousaratocaremcoisanenhumadacasinhadaEmília—oudoTemplodeAvia...

No dia seguinte Hércules recebeu chamado urgente do palácio deEuristeu.Foi.

—Àsordens,Majestade!...Euristeu estava risonho—sinal dequeonóvoTrabalho ia sermuito

maisduroqueosprimeiros.Eumolpo,renteaotrono,babava-sedegosto.—Hércules—disseEuristeu—muitobemtesaístenafaçanhacontra

ojavalidoErimanto,eagoratenhonovaincumbênciaadar-te.—Àsvossasordens,Majestade!—respondeuoheróihumildemente.Euristeucontinuounomesmotomamável:—QueroquevásaoreinodeAugiasvisitaressecolegaequelimpesas

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suasfamosascavalariças.Hércules voltou ao "camping" muito apreensivo. "Que será? Que me

reservaráamimoReiAugias?"EquandoPedrinho lheperguntouqual iaseroQuintoTrabalho,respondeu:

— Uma visita, meu caro! Apenas uma visita e umas vassouradas.Euristeu encarregou-me de ir ter com o Rei Augias e de lhe limpar ascavalariças.

—Queméele?—Umreipossuidordeinumeráveisrebanhosdecavalos...—Sóisso?Sófazeralimpeza?—Só...

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VIII-AFugadoJavali

Quelindaamanhãdodiaseguinte!OcarrodeApologalopavanocampoazuldocéusemnuvens.Hércules,

depoisdobanhonoribeirão, chamouPedrinhoparadebateraviagemaoreino do Rei Augias. E estavam nisso quando um mensageiro a cavaloapontouaolonge.Vinhanomaiordosgalopes.

—Queserá?—murmurouPedrinho.Ocavaleirochegoueapeoubemdiantedeles.Estavaquasesemfala.—Quehá,homem?—perguntouHércules.Omensageirotomoufôlegoefalouentrecortadamente:—Há...háqueojavali...arrebentouajaulaefugiu...—Fugiu?—Sim...Fugiueestáfazendoosmaioresestragosnacidade...Investecontratodagenteeestraçalhaosquepega...Osguardasdorei

atacaram-no,mas em vão... SuaMajestade Euristeu não sabemais o quefazeremandapedirsocorroaHércules...

O herói pôs-se de pé e correu embusca da clava. Depois pendurou atiracoloocarcásdeflechasetomouoarco.

—Poisvamosverisso!—gritouefoicorrendoparaacidade.Os picapauzinhos ficaram tontos por uns instantes, sem saber o que

fazer.Depoisdecidiram-se.TinhamdeacompanharoseuamigoHércules.Meioameiojáestavaprontopararecebê-losnolombo.

O cavalo do mensageiro, assustadíssimo de ver o centauro, haviadisparadoporaquelescamposafora.Opobrehomemficouapé.

—Monteaquinagarupa!—gritoulhePedrinho,eajudou-oacolocar-sena garupa do Meioameio. E o centauro, com aquela penca de gente nolombo,lásefoinogaloperumoaMicenas.

Ao entrar na cidade, Hércules dera com a população tomada deverdadeiro pânico. Uns escondiam-se nos porões, outros trepavam aotelhadodascasas.

Depoisqueosguardasdorei foramdestripadospelasterríveispresasdo javali, ninguém mais ousava atacá-lo. Só pensavam em fugir ouesconder-se.

— Onde está ele? — perguntou Hércules ao ministro Eumolpo, queavistouatremerdemedoemcimadotelhadodopalácio.

—Napraçadomercado!—gritouoministro.Hérculesencaminhou-separaapraçadomercado,ejádelongeavistou

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omonstrofazendoosmaioresestragosnasverduras.Emseuredorhaviamuitoscadáveresdeguardasdestripados,algunsaindavivosegemendodecortarocoração.

—Esperaquetecuro!—rosnouHércules,firmandoamãonocabodaclavaeavançou.

Ojavalireconheceu-o.Largouasverduraselevantouacabeça,osolhosjáchamejantesdecólera.Iadestroçaraqueleimprudenteheróicomohaviadestroçadoosguardasdorei.

NessemomentoMeioameio,quevieraemdesapoderadogalope,entrounapraça,demodoqueospicapauzinhospuderamassistiràbatalha.

Equebatalhatremendafoi!OjavaliinvestiucontraHérculeseHérculesoesperoucomaclavaerguida.

— Chegamos a tempo de assistir ao primeiro round! — berrouPedrinhopondo-sedepénolombodocentauro.

—ApostoquenoprimeirogolpejáHérculesoabate.Masnãofoiassim.Ogolpedoheróipegouaferaemplenocrânio,mas

parecequeocrâniodojavalieradeaço.Aclavarachoupelomeio...—Aclavarachou—berrouEmíliaeomonstronemdeusinaldesentir.

Sócomflechas.Hérculesquerecuee...FoioqueHérculesfez.Dandoumtremendosaltoparatrás,colocou-sea

vintemetrosdojavali,demodoapoderajeitarnoarcoumaflecha.Esticoua corda e zás!... A flecha espetou no toitiço domonstro,mas não cravoufundo, nem alcançou centro vital. Apenas serviu para enfurecê-lo aindamais—eojavaliinvestiuparacimadoheróicomoímpetodeumabombavoadora.

Hérculesdeuoutrosaltoparatrásedespediusegundaseta,aqualnãoproduziumaiorresultadoqueaprimeira.

O javali deu um bote traiçoeiro e quase apanhou o herói com suaspresasafiadíssimas.

Eumolpo, lá de cima do telhado, estava radiante. "Desta vezHérculesestáperdido.Ojavalivaidarcabodele"egritouparaoReiEuristeu,queatudoassistiadobalcãodopalácio:"AclavadeHérculesfalhoueasflechastambémestãofalhando.Tudovaiindootimamente."

Euristeu,lánobalcão,sorriu.AsituaçãodeHérculesnãoeraboa,eissoporquenapressadepartirlá

do acampamento errara na escolha das flechas, pondo no carcásjustamenteasdequeEmília tinhaarrancadoaponta.Sódepoisdehaverlançado a segunda seta é que o herói percebeu a causa do desastre.

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Desastre,sim,porquenuncaemsuavidadeheróiacontecerasemelhantecoisa: lançar duas flechas contra um corpo de animal e não vê-lo cairestrebuchando.E se estava semas suas famosas flechas tãomortais, quefazer?EHérculessuoufrio.

Súbito,Pedrinhoempalideceu.— Estou compreendendo tudo! Ele está lançando contra o monstro

justamenteasflechasqueEmília"humanizou."Eagora?Evoltando-separaEmília:—Eagora, suamexedeira?Semclavaesem flechasdepontaonosso

amigoHérculesestádesarmado...Emíliaassustou-se.Seucoraçãozinhopuloucomocabrito ládentrodo

peito. O remédio era um só: recorrer ao faz-de-conta. E ao ver Hérculeslançarcontraomonstroaterceiraseta,gritou:

—Fazdecontaqueessaédeponta!Remédiomilagroso! A seta cravou-se no toitiço do javali ao lado das

outras duas,mas comum efeitomuito diferente. Omonstro dá umurro,revira os olhos e descai sobre as patas traseiras como um animaldescadeirado.Depoisafocinhou.

Estavavencido...— Hurrah! Hurrah!... — berrou Pedrinho — e de cima de todos os

telhadoshurrasdelirantesestrugiram.EEmíliacantouo"Avé!Avé!Evoé..."que ela não sabia o que significava, mas achava um gritomuito próprioparaocasiõesassim.

Osmicenianosescondidosnofundodascasasouabrigadosemcimadostelhados começaram a afluir à praça e breve uma grande multidão sejuntou em redor do javalimorto. Cada um dizia uma coisa ou dava umaidéia.Súbito,umboatoentrouacircular:queHérculesandavaassociadoauma pequenina feiticeira dotada de forças maravilhosas. O rumor tiveraorigemnamexericagemdohomemquevieranagarupadeMeioameio;deláassistiraeleatodaalutaeouviraogritomágicodaEmília:"Fazdecontaqueessaédeponta."

—Sim,foiela!—diziaohomemparaopovo.—Euvitudomuitobem.SódepoisdeseugritomágicoéqueasflechasdeHérculesvoltaramasermortais.Antesdissoespetavamojavalienãolhecausavamomenordano—esurgiuaidéiadeumamanifestaçãopopularàestranhacriaturinha.

Aqueles rumores não tardaram a chegar aos ouvidos do rei, o qual,furioso com a intervenção da pequena feiticeira, deu ordem aos seusguardas para que a prendessem. Vendo as coisas nesse ponto, Pedrinhotomouumaresoluçãodeverdadeirochefe.

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—Tocaparaoacampamentoenavolada!—gritou.— Já, já!...—eocentaurinho rompeu no galope. Minutos depois todos apeavam muitocontentesjuntoaoTemplodeAvia.

—Nãogostodepovonemdereis—dissePedrinho.—Écomamaiorfacilidade que eles passam dum extremo a outro. Nada como este nossoisolamento aqui, bem guardados como estamos pela clava de Hércules epelonossoamigocentauro.Mas...quefimlevouHércules?

Pedrinhoolhouem todas asdireções enãoviu sinaldoherói. Súbito,Emíliagritou:"Láestáele!...VemsaindodaFloresta."

Sim. Hércules vinha saindo da floresta, onde se internara a fim deescolhermadeiraparaumanovaclava.

— Bom! — exclamou Pedrinho já sossegado. — Se Hércules estáconosco,nadamaistemosatemer.

***

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5-ASCAVALARIÇASDEAUGIAS

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I-AsCavalariçasdeAugias

—SeascavalariçasdeAugiasexigemumHérculesparaasualimpeza,entãoessereitemcavalosquenãoacabammais.

—Sim,possui-osinúmerosealémdissoéladrãodecavalos.—Como?— Certa vez um tal Neleu mandou quatro excelentes animais, já

vencedoresemváriasprovas,disputarumacorridadecarrosnacapitaldoreino de Augias. Sabem o que Augias fez? Gostou muito dos cavalos,elogiou-osparaoauriga...

—Queéauriga?—Cocheiro.Elogiou-osparaoaurigaecomomaiorcinismolhedisse:

"Podeirembora.Estescavalosficamsendomeus.”—Quepatife!—exclamouEmília.Eupregava-lheumcoice...Equefez

doscavalos?—Pôsjuntocomosdemais,lánasuaimensacavalariça.NessepontodaconversaPedrinhocomeçouaabrirnacaraosorrisode

quemdescobriuapólvora.—Jáestoupercebendoonegócio!disseele.—Essereidevia teruma

grande idéia na cabeça. Diga-me uma coisa: era fértil a terra lá onde elemorava?

—Sim.Muitofértil.Pedrinhoatrapalhou-se. Sua idéia foraqueAugias estavaacumulando

estercoparafertilizaroreino;masseasterraseramférteis,então,então...— Então ele era um grande porco! — resolveu Emília e deu uma

cuspidinhadenojo.QuemestavacontandoaospicapauzinhosahistóriadeAugiaseraum

viandante. Em todas as aventuras pela Grécia eles encontravam, nos"momentos psicológicos", um viandante de aspecto venerável, que tudosabia e tudo explicava. Da primeira vez ninguém desconfiou de coisanenhuma; mas a coincidência daquele encontro em quase todas asaventurasfezqueahipótesedaEmíliafosseaceita:"EleéumemissáriodePalas, ou Minerva, a deusa da sabedoria; repare que aparece como poracaso nos momento que temos necessidade de saber qualquer coisa dahistória antiga ou da vida deste país." E Emília botou-lhe o nome deMinervino...

AréplicadeEmília,achandoqueAugiaseraumgrandeporco,fezqueovelho Minervino sorrisse; ele já estava acostumado com aqueles

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desbocamentosdaexboneca.— Não sei se o Rei Augias é isso, menininha, só sei que os seus

estábulossãoimensoseestãocomumacamadadeestercocomonuncafoivistaigualnomundo.

—Nomundoantigopodeser—objetouEmília.—Lánonossomundomoderno "tivemos" as camadas de guano do peru, que, segundo diz oVisconde,atingiamametrosdeespessura.AsdascavalariçasdeAugiasnãodevemsertãoespessas,poiscomoentãopodemoscavalosentrarlá?Hãodebatercomacabeçanoforro...

—Não sei— disse o velho viandante—nada vi commeus própriosolhos,mas ouço falar nisso. E agora vai para lá Hércules, com ordem deEuristeuparalimparascavalariçasdeAugias.Estoucuriosodevercomoonossoheróisedesempenharádessamissão.

Emíliacuspiudenovo,comcarinhadenojoedisse:—NãovougostardesteQuintoTrabalhodeLelé.Muitosujo...Eocheiro

detantoestercodeveserhorrível.Apalavra"cheiro"teveapropriedadedearrancaroViscondedotorpor

emqueseachava.Osabuguinholevantou-seeaproximou-sedaEmíliacomos olhos muito arregalados e com o dedo no ar repetiu várias vezes amesmapalavra:

—Ocheiro...Ocheiro...Ocheiro...Todos julgaram que o Visconde houvesse enlouquecido de uma vez,

masnão.Elehaviaapenasresolvidoumproblema—oterrívelproblemaqueo

preocupava desde a véspera: "Por que razão havia Euristeu dado aqueletrabalho aHércules?" Sim, porque issode limparuma cavalariça,mesmoenorme comoadeAugias, não eraum trabalhona alturadeHércules, jáquesóexigiaforçafísicaepaciência.Comumaboaturmadetrabalhadoresarmados de enxadas e pás, qualquer empreiteiro pode limpar todas ascavalariçasdomundo.MasquandoEmíliafalouem"cheiro",acabecinhadoViscondeiluminou-se.

— Sim, o cheiro!... Sim, o mau cheiro daquilo!... Deve ser um cheirovenenosoemortal,umaespéciedegásasfixiante!...

Euristeu lembrou-se de encarregar meu amo desse Trabalho nãoporque seja um Trabalho acima das forças de qualquer homem comum,mas porque as venenosas emanações do esterco revolvido vão afinaldestruirmeuamo...

OVisconde,comobomescudeiro,sótratavaHérculesde"amo",talqualSanchocomD.Quixote.

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Aoouviraquelemonólogo,Pedrinhobateupalmas.—BravosaoSherlock!Descobriutudo!...Sim,sópodeserisso.Equevai

aconselharaoseuamo,Visconde?— O emprego de uma boa máscara contra gás, daquelas usadas na

GrandeGuerra.—Eondearranjatalmáscara?—Vocêconstróiuma.—Eu?...—exclamouomenino—epôs-searefletir.Játinhavistouma

dastaismáscaras.Nãoeracoisamuitocomplicada.Acontecia,porém,queasmáscarasdependemdosgases,istoé,paratalgástalmáscara.Ora,nãoconhecendoeleogásdas cavalariçasdeAugias,nãopodia construirumamáscara de confiança, certa, segura, havendo a possibilidade de o pobreHércules levar a breca com máscara e tudo. O problema era maiscomplicado do que parecia. Por fim, cansado de pensar naquilo, disseconsigomesmo:"Nahoraveremos"emudoudeassunto.

—Escute,Minervino—pediuemseguida.—Conte-nosmaishistóriasdesseAugias.

OvelhoviandantecontouqueAugiaseraumdosArgonautas;edepoisteve de contar a história dos Argonautas; e para contar a história dosArgonautas teve de referir-se ao Tosão de Ouro. Pedrinho, que ja ouvirafalarnoTosãodeOuro,quissaberoqueera.Oviandanteexplicou:

—Umpelegodecarneiro...Foi um desapontamento. Pedrinho esperava coisa muito mais

misteriosa.—Sim—disseoviandante.—Umpelego,masquepelego!...Provinha

docarneiromágicoquelevoupelosaresFrixoeHele...—Quemeramessesdois?—quissaberEmília.Oviandântecoçouacabeça,desanimado;depoisdisse:—Estas histórias emendam-se de talmaneira uma na outra que não

têm fim. Para explicar o caso dos argonautas tenho de ir recuando,recuando...Bom,Frixoeraumheróibeócio...

—Comobeócio?Bobo?—Não.Osbeóciosnãoerambobos,eramapenasosnativosdaBeócia,

uma das partes da Grécia. Mas, por amor de Palas, Emília, pare com asperguntas,senãotenhoqueirrecuandoatéaoscomeçosdomundo.Frixo,umheróibeócioque juntamente comsua irmãHele fora indicadoparaosacrifício ao tempo de uma grande seca na zona, era dono de umaverdadeirapreciosidade:umcarneirodevelodeouro...

—Queévelo?—quissaberEmília.

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—É pêlo— respondeuMinervino, jámeio danado, e prosseguiu:—possuía esse carneiro de velo de ouro, que lhe fora dado por sua mãeNéfele.Efoinessecarneiromágicoqueosdoisirmãosfugirammomentosantesdeseremlevadosparaoaltardosacrifício.Fugiram,eaopassaremdas terras da Europapara as daÁsia,Hele perdeu o equilíbrio e caiu nomar.

—Elesiamvoando?—Sim,oscarneirosmágicosvoam.Caiu no mar e desde aí aquela nesga de mar passou a chamar-se

Helesponto,emhomenagemàpobreHele.OViscondemeteuobedelhinhoparadizerquenostemposmodernoso

Helespontomudaradenome,passandoachamar-seDardanelos.—EFrixo?Quefez?—perguntouPedrinho.— Frixo continuou no vôo e desceu na Cólquida, onde sacrificou o

preciosocarneironumtemplodeAres.O Visconde explicou que esse Ares era o mesmo deus Marte dos

romanos.—Sacrificouocarneiro,tirando-lheapele,deu-adepresenteaEtes,o

reidaCólquida.Etesficouradiante,porqueeraumapreciosidadesem-parnomundo,eguardou-openduradodeumvelhocarvalho,comumterríveldragãojuntoaotronco,desentinela.

—QuemsabeseessedragãonãoéomesmoqueS.JorgelevouparaaLua? sugeriu Emília, mas Pedrinho tapou-lhe a boca: "Deixe Minervinofalar."

Oviandanteprosseguiu:—Ocasoespalhou-se imediatamentepelaGrécia inteira,despertando

asmaioresinvejas.TodososreisgregospassaramasonharcomoTosãodeOuro—entreelesPélias,oreideIolcos.EssePéliastinhaumsobrinhoqueeraherói...

— Pelo que vejo, isto de heróis nesta Grécia Antiga é uma profissãocomoadecapangalánonossomundomoderno...

—Nãoatrapalhe,Emília!Continue,Minervino.—Sim,Jasão,otalsobrinhodePélias,jáestavacomfamadeheróiepor

issoPéliasoencarregoudagrandeempresa:iràCólquidaeapoderar-sedoVelo de Ouro, custasse o que custasse. Isso foi o começo da célebreexpediçãodosArgonautas.

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II-OsArgonautas

—EquefizeramessesArgonautas?—quissaberEmília.—EmbarcaramnonavioArgo...— E daí lhes vem o nome de Argonautas — observou sabiamente o

Visconde.—Nautaquerdizernavegador.Argonautas sãoosnavegadoresdoArgo.

Minervino olhou para o Visconde com espanto. Como sabia coisasaquelaaranhadecartola!DepoiscontouqueatéHéraclesfaziapartedessegrupo de navegadores—Hércules, Castor, Pólux, Orfeu, Telamon, Peleu,todoscomandadosporJasão.

—Eraumgrupodeheróisdosmaisluzidosevalentes—etinhadeserassim,dadasastremendasdificuldadesdaempresa.AordemdoreiaJasãoeraparalhetrazeremoVelodeOuro"custasseoquecustasse."

—Ecomofoiqueelespegaramopelego?Comoselivraramdodragão?— Ah, a história é comprida! — respondeu o viandante. — O rei da

Cólquidatinhaduasfilhasfeiticeiras,umadenomeCirce,muitofamosa,eoutradenomeMedéia, que ia ficar famosíssima justamentepor causadaexpediçãodosArgonautas.QuandooArgo,depoisdemuitasvoltas,chegouà Cólquida, Medéia conheceu Jasão e apaixonou-se. Foi um namoro querendeu grandes coisas. Jasão contou-lhemuito em segredo ao que vinha,istoé,quevinharoubaroVelodeOuro.Medéiaassustou-se.OdragãoeradefatoterríveleinvencíveleacabariadevorandotodososArgonautas,sepor acaso o atacassem de frente. Era preciso recorrerem à astúcia. "Voufazer uma coisa"—disseMedéia. "Soumágica; sei de drogas para tudo etenhoumaquefaráodragãoadormecer;essedragãoestáguardandoovelojustamenteporquetemapropriedadededormircomumolhoevigiarcomoutro—eentãovocêfurtaovelo."

—Estouvendo—disseEmília—quenessaaventuradosArgonautasoverdadeiro herói não foi Jasão nem nenhum de seus companheiros. FoiCupido...

—QueméCupido?—perguntouoviandante.O Visconde explicou que Eros, o deus do Amor, iria chamar-se mais

tarde Cupido, "porque todos estes deuses gregos de hoje vão mudar denome; Zeus passará a ser Júpiter; Hera virará Juno; Palas passará a serMinerva — e assim por diante. Até o meu amo Héracles passará a serHércules."

—Hum!...—exclamouoviandantecomoquemafinalcompreendeuma

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coisa.—EstouagoraentendendoporquevocêsotratamdeHércules...— Sim— disse o Visconde.—Meu amo é Héracles para vocês aqui

destaGréciaHeróica.Nosnossos temposmodernos ele éHércules, comoEroséCupido...Continueláasuahistória.

Oviandantecontinuou:—PoisgraçasaofiltroqueMedéiadeuaodragãoéqueoseunamorado

conseguiu apeledo carneiro.Opobredragão, pelaprimeira vezna vida,adormeceucomosdoisolhos...Obtidaapele,oqueaosArgonautasrestavaera fugiremdali comamaior rapidez—e lázarpouoArgocom todas asvelassoltas,levandoabordoMedéia.

—Fugiucomonamoradoentão?— Fugiu e foram juntos para Iolcos, onde se casaram e ela realizou

mágicasfamosas.—Conteuma—pediuEmília.—AmaisfamosadetodasasmágicasdeMedéiafoio"remoçamento"

dovelhoEson,paideJasão.Medéiapicouovelhoempedacinhoseferveutudonumagrandecaldeira.EdovaporfezquebrotasseumEsonvivinhoemoço...

—Quemaravilha!—exclamouaexboneca.—ImaginesepilhássemosMedéialánosítioparapicareferverDonaBentaetiaNastácia...QuelindonãoseriaDonaBentaaí comvinteanose tiaNastácíaumamucama todarequebradadedezenove...EquemaishouvecomMedéia?

—Ah, nemqueira saber!...Nãohouve o que ela não fizesse, inclusivedarcabodePélias,tiodeJasão,quehaviaocupadootronodovelhoEson.Medéiausoudumaengenhosaesperteza:convenceuas filhasdePéliasdeque também podiam remoçar o pai por aquele processo da fervura nacaldeira.Asmoçasqueopicassemepusessemopicadinhonumacaldeira;elaMedéia se encarregaria de fazê-lo renascer jovem e bonito. As bobasassimfizeram:mataramepicaramopaieferveramtudonacaldeira.Masquandochegouahoradereviveraquelepicadinho,Medéiadeuumagranderisada...OqueelaqueriaeraveroReiPéliasmortoparaqueoseuesposoJasãoocupasseotrono...

—Quedanada!—exclamouEmília.—Edeucertoapatifaria?—Falhou,porqueantesdeJasãopegarotrono,umirmãodePélias,de

nomeAcasto,pegou-oprimeiro...eMedéiaeomaridotiveramdefugirparaCorinto.MasseeuforcontartodaahistóriadeMedéia,nãoacabomais.Eramesmoumadanada,comodisseestamenininha.

—EosArgonautas?VolteàhistóriadosArgonautas—pediuPedrinho.

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—Ah,osArgonautasaindafizerammaisqueMedéia,emsuasfamosasviagens do Argo. Mas não vou contar nada disso. Contei o que conteiunicamenteparamostrarquemeramessesfamososaventureiros,entreosquaisfiguravaonossoAugias,reidaÊlide—ohomemdoesterco.

NessepontodahistóriaapareceramHérculeseMeioameioquetinhamsaído juntosparaacaçaaoalmoço.Vinhamvindocomumnovilho—eoalmoçodaquelediafoinovilhoaoespeto.

Hércules continuava preocupado com a incumbência que lhe deraEuristeu:limparascavalariçasdeAugias.Comofazerparaarealizaçãodesemelhante coisa? E, cansado de pensar naquilo, pediu a opinião dospicapauzinhos.

—Queachadomeucaso,Emília?—perguntouàexboneca.—Aindanãoachonada,Lelé.Estouruminando...—Evocê,escudeiro?—perguntouaoVisconde.Osabuguinhoexpôsasua teoriadosgasesvenenosos,que fatalmente

escapariam dos estábulos quando tamanha massa de esterco fosseremovida—eHérculearregalouosolhos.Achoumuitopropósitonaquilo.

—Evocê,oficial?—perguntoudepoisaPedrinho.Pedrinhotambémestavacommedodasemanaçõesmefíticasdoesterco

eandavaapensarnummododeremoverdelongeaqueleguano.Assimseevitariaaaspiraçãodosgases.

—Tudodependeda situaçãodas cavalariças—respondeuomenino.Se,porexemplo,houverumrioperto,quecorraemnívelmaisaltoqueodascavalariças,háummeio...

—Qual?—perguntouoherói,ansioso.—Desviar o curso desse rio, demodo que ele jorre para dentro dos

estábuloseleveparalongeaestercariatoda...O rosto de Hércules iluminou-se. Estava ali uma idéia realmente

maravilhosa.Sim, jogandoumrioparacimadoestercoocasoseresolviaperfeitamente. E mais uma vez o herói assombrou-se da extraordináriainteligênciadaquelepicapauzinho.Mastinhaquever.TinhaquefalarcomAugias, obter dele autorização para a limpeza e depois examinar osarredores a fim de descobrir um rio de nívelmais alto. E a debateremoassunto lá prosseguiram na viagem rumo à Élide, depois de comidointeirinhoonovilhoassado.

NamanhãdooutrodiaentraramnasterrasdeAugias.Jádelongeviramoseupalácio,emaisadianteastaiscavalariças.Oh,eramimensas!Davampara conter mais de mil cavalos. Pelos campos vizinhos pastava umacavalhadasoltaquenão tinha fim.Nãohaviadúvida:aqueleAugiasdevia

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seromaiorladrãodecavalosdaGréciaHeróica.

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III-OReiAugias

Chegados à capital, Hércules mandou que os picapauzinhos oesperassem em certo ponto fora da cidade e foi sozinho falar com o rei.Encontrou-oexaminandoumnovolotedelindoscavalosrecebidosnaquelemomento.

— Majestade — disse Hércules reverentemente — aqui estou emtrânsitoedesejavafazerumavisitaàsfamosascavalariçasdequetantosefalanaGréciainteira.

Augias tinha orgulho de suas cavalariças e gostava demostrá-las aosvisitantes. "Pois não" — respondeu — e foi ele mesmo mostrá-las aHércules.

Imensas! Davam para abrigar mais de mil, talvez dois mil cavalos, eHércules notou que a camada de esterco era não só espessíssima comoduracomoumchãodeterrabatida.Eabordouoassunto:

—Majestade,porquenãofaznestascavalariçasumalimpezaemregra?Tantoestercoassimacumuladonãopodefazerbemaosanimais.

—Sim, jápensei—mas limpá-las como?Meushomens têmmedodemexer nisso — medo de envenenamento. E noto que meus cavalos jáandamaressentir-se.Tenhodelimpá-las,sim,mascomo?

Hérculescorreuosolhospelasredondezaseperguntoucomoquemnãoquer:

—Majestade,nãoháaquiporpertoalgumrio?Oreiestranhouapergunta,masrespondeuquesim—quepassavamali

porpertodoisrios,oAlfeueoPeneu.Hérculesentãoanimou-seedisse:— Pois, Majestade, proponho-me a limpar completamente estas

cavalariças,sobumacondição...—Qual?—Pagar-meoserviçocomdezporcentodacavalhada.Augiassegurouabarbaeficoupensando—ficoupensandonummeio

de tratar o serviço por aquele preço e depois passar a perna no herói. Episcandooolhorespondeu:

—Poisaceitoonegócio.Vocêmelimpaascavalariçaseempagamentorecebeadécimapartedosmeusanimais.

Hércules, porém, sabia que os reis não são criaturasmerecedoras demuitaconfiançaeexigiuumatestemunhaparamaiorgarantiadocontrato.E como estivesse presente o jovem Fileu, filho de Augias, pediu-lhe quetestemunhasseoajuste.Fileuconcordou.Ficoucomotestemunhaefiador

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dopai.—Poismuitobem—disseHércules.—Amanhãcomeçareioserviço—

e, despedindo-se de Augias, voltou para o lugar onde havia deixado ospicapauzinhos.

—Pronto!—disseaPedrinho.— Já contrateio serviçoda limpezaeamanhãtenhodemetermãosàobra.

—Eindagoudaexistênciadorio?—Sim,existemdois,oAlfeueoPeneu.—Denívelmaisaltoqueascavalariças?— Imagino que sim, mas não sei. Temos que verificar isso — e de

ordemaoescudeiroSabugosaparatiraralimpoaqueleponto.OViscondeeraumsábioque sabia tudo, inclusivemedironíveldum

lugaremrelaçãoaoutro,comofazemosengenheiros.PediuaPedrinhoqueo pusesse sobre o lombo deMeioameio e lá se foi no galope. Uma horadepoisvoltavacomboasnotícias.

—Fizoscálculosnecessários—disseele—emeuamopodeficarcertodequeosdoisrioscorremtrêsmetrosacimadoníveldascavalariças.

—Comooverificou?—quissaberoherói.—Pormeiodecálculosgeométricosetrigonométricos—respondeuo

sabugo científico, deixando o herói na mesma. O pobre Hércules nemsequerdesconfiavadaexistênciadaGeometriaedaTrigonometria.

—Mas—continuouoVisconde—mediovolumedaságuasdosrioseverifiquei que só juntando os dois poderemos ter o enxurro necessáriopararemoveraestercariatoda.

Juntarnomesmo leito as águasdosdois rios era coisamuito simplesparaum "massabruta" comoHércules, porquedependia apenasde forçafísica. Mas... e se depois de juntas as duas águas a torrente resultantecorressenoutrorumoquenãonodascavalariças?

—Tambémestudeiesseponto—disseoVisconde.—Atopografiadoterrenonosfavorece.Seaságuasforemencaminhadasparataletalrumo,entrarãoporumagargantaquevaidespejarajusantedascavalariças.

Hércules tonteou comaquele "jusante"de engenheiro...Masentendeumaisoumenos.Seeraassim,entãoestavaocasoresolvido.Comaságuasdo Alfeu reunidas às do Peneu obtinha ele um volume torrencial com aforça suficiente para arrastar toda aquela estercaria — e tratou de irrealizarotrabalhodajunçãodaságuas.

Enquanto isso, lá no palácio o Rei Augias esfregava as mãos,contentíssimo. "Se ele executar a tremenda empreitada, eu resolvo ograndeproblemaquetantomepreocupa;masissodepagaroserviçocom

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adécimapartedemeusanimaismeparecemuitacoisa..."Eficouarefletirno meio de lograr o herói. Nesse momento entrou na sala do trono umintrigantedenomeLepreu,oqualdisse:"Jádescobritudo,Augias.HéraclesveiocáporinstigaçãodoReiEuristeu..."

— Por instigação de Euristeu?— repetiu Augias.— Hum!... Isto temáguanobico...—edeuumarisadagostosa,comoquemacabadedescobrirasoluçãodumproblema.

—Dequeestáarir-se?—perguntouLepreu.— Uma boa idéia que me veio — disse Augias, mas calou-se, não

revelouoseupensamento.No dia seguinte ao meio-dia já os trabalhos de escavação estavam

prontos;sófaltavaromperumabarreiraparaqueosdoisriossejuntassem.Ospicapauzinhos forampara juntodoherói,a fimdeassistiremà junçãodas águas. Chegada a hora, Emília contou: UM... DOIS e... três! Na voz deTrês, Hércules pregou um tremendo pontapé na barreira. A terra vooulonge e as águas do Alfeu e do Peneu se juntaram com grande fragor. Eescachoando numa espumarada cor de terra vermelha, rolaram emtorrentepelagargantaqueiateràscavalariças.

NessemomentoPedrinhoteveumaidéiadeprimeiraordem.—Hércules,Hércules!—gritouele.—Vocêesqueceu-sedumacoisa:

arrombar as paredesdas cavalariças na face emque a água vai bater. Senão fizer isso, a enxurrada passa dos lados e todo o seu esforço estaráperdido.

Hérculesviuqueeramesmoefoivoandoparaascavalariças.Tinhadearrombaraparedeantesqueoenxurrochegasse—coisamuito simples,poisquesóexigiaforça.Commeiadúziadepontapésdemoliuasparedes.Logo depois a torrente de lama chegou e foi enveredando pelo romboaberto.Oscavalospresosládentrofugiramespavoridos,enquantoaáguaia arrancando enormes placas de estercaria velha, revolvendo aquilo earrastandotudoparalonge.

Umahoradepoisnãohavianaquelesestábulosnemcheiroda imensaporcaria acumulada.Hércules então tratoudebarrar as águas reunidas efazê-lasnovamentecorrerpelosvelhosleitosdoAlfeuedoPeneu.

Pronto!EstavarealizadomaisumdosfamososTrabalhosdeHércules:alimpezadascavalariçasdeAugias.Só lherestavaagora ir tercomoreiecobraropreçodaempreitada.

Hérculesfoiprocurá-lo.—Pronto,Majestade!Asvossascavalariçasacham-semaislimpasqueo

chãodestepalácio.

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Augiasestavacontentissimodaquilo,mascomofosseumgrandepatifenão tinha amenor idéia de cumprir o trato. E veio com a desculpamaisindecentedomundo.

— Sim — disse ele. — Reconheço que o trabalho de limpeza foirealizadodemaneiraperfeita,eempagadesseserviçoqueroterogostodeofereceraoamigoHérculesumexcelentecavalodesela.

—Umcavalodesela?—repetiuoherói,atônito.—Comoisso?Nossotratofoiopagamentododécimodacavalhada.

Augiasriu-seenegoucomomaiorcinismo.—Nãomelembrodeterfeitosemelhanteacordo...Eileu,ofilhodeAugias,estavapresente.Eraummoçohonesto,quenão

haviapuxadoomaucaráterdopai.Aoouviraquilo,adiantou-seedisse:— Perdão, meu pai! Fui testemunha do trato. Meu pai prometeu a

Héracles,emtrocadalimpezadascavalariçasadécimapartedacavalhada.Augias mordeu os beiços, danado com a intervenção daquele "mau"

filho,eagarrou-seaoutropretexto.—Sim,podeserqueeuhajafeitoessacombinação.Minhamemóriaàs

vezes falha. Mas se acaso a fiz, não sou obrigado a cumpri-la, porque oSenhorHéraclesveiocálimparasminhascavalariçasporinstigaçãodoReiEuristeu,eportantonãomesujeitoàssuassugestões.Sequerumcavalodeselaempagadoserviço,escolha-o.Senãoquer,entãoqueseponhadaquiparaforaimediatamente—evocêtambém,Fileu!Umrapazdasuaidade,filho de rei, que não sabe agir politicamente nada merece de seu pai.Ponham-sedaquiparaforaosdois!

Hérculestevevontadederacharaquelereipelomeio,masconteve-se.Disseapenas:

—Istonãoficaráassim,Majestade.Dentrodealgunsdiasdareiaminharesposta—eretirou-se.

QuandoospicapauzinhossouberamdoinfameprocedimentodeAugias,encheram-sedamaisnobre indignação.Emíliaquisaplicarumgolpe faz-de-conta.Hérculessossegou-os.

—Qualquercoisaquefizermosparaesterei,elelançarácontranósosseus soldados, que sãomuitos, e estaremosperdidos.Minha resposta vaiser outra. Vou formar um grande exército, a cuja frente virei destronarAugiasecolocarnotronoomeuhonestoamigoFileu.—disseapoiandoamãosobreoombrodomoço.

Se fôssemos contar a história inteira da formação do exército deHérculesteríamos,sóparaisso,deenchermilpáginas.DiremosapenasqueHércules formouoseuexércitoeveioatacaroReiAugias.OVisconde foi

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encarregadodoserviçoda Intendênciamilitar;Pedrinhoassumiuocargode chefe doEstado-Maior—eEmília encarregou-se da espionagem.Masapesardetodaaquelaexcelenteorganização,alutaacabouemdesastre,eisso por causa dum acidente que ninguém esperou: a súbita doença deHércules.Antesdetravar-seabatalhaoheróicaiudecamacomumafebrealtíssima.

OseufielescudeiroSabugosatevede largara Intendênciaevir tratardobomamo.Tomou-lheopulso,examinou-lhealíngua.

—Está saburrosa, sim—disse o sabuguinho.—Os sintomas são deenvenenamento. Meu amo envenenou-se com os gases mefíticos dascavalariçasdeAugias.Atéeusentidordecabeçanaqueledia.

—Eeu,umatontura—declarouEmília.—Eeu,umaaziadeestômago—declarouPedrinho.—Eeu,umcalafrio—declarouMeioameio.— Pois é — concluiu o Visconde. Tudo isso, efeitos dos gases letais

daquelainfameesterqueira.Mascomoestávamosmuitolonge,respiramosapenasummínimodegás.Jámeuamotevedeaproximar-separaarrombarasparedesefoientãoqueseenvenenou.

— E por que só agora se manifestaram os efeitos dos gases? —interpelouPedrinho.

—Porquenumorganismo forte comoodemeuamoumveneno levasemanasparaagir.Asdefesasorgânicasdos sereshercúleos são tambémhercúleas.

Meioameioestavadebocaabertadiantedaciênciadosabuguinho.Aquela inoportuna doença de Hércules foi um desastre, porque o

exércitoseviuprivadodeseugrandechefeefoifacilmentederrotadopelasforçasdeAugias.

Hérculestevedefugireficarocultonumbosquedurantetodaadoença.Comosedebateunoincêndiodafebre!

Comodelirou!...Eteriamorrido,senãofosseoacertodasdrogasqueoVisconde lhedeuabeber,preparadascomervasdalimesmo—mentruz-de-sapo,digitalis,beladonaeoutras.

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IV-SegundaExpediçãodeHércules

Doze dias durou a doença de Hércules. No décimo terceiro a febrecomeçouacedereoViscondedisse:

—Meuamoestásalvo!Oregozijofoiimenso.Meioameiosaiunogalopepeloscamposvizinhos,

a corcovear, a dar coices para o ar, a espojar-se na relva, feliz como umpotrinhonovo.Durante os doze dias da doença doherói,Meioameio nãoarredarapéalidesuacamadefolhassecas.

PedrinhofoiquemouviuasprimeiraspalavrasdeHérculesjásalvodoperigo.

—Ondeestoueu?—perguntouoconvalescente.—Quehouve?—Eaosaberqueoseuexércitoforadestroçadoeeleestavaocultonumafloresta,choroudepaixão.OViscondedeu-lheumchazinhode erva-cidreiraparaacalmá-lo.Hérculescaiuemsonolênciaprofunda.Nodiaseguintepuloudacama,jácompletamentebom.

—Eagora?—perguntouEmília.—Agora,figurinha,agoratenhodelevantaroutroexércitoefazercom

o Rei Augias o que fiz com a parede de sua cavalariça;mandá-lo para obeleléucomumbompontapé.

Hércules havia aprendido com a Emília a palavra "beleléu" e volta emeiaaplicava-a.

A organização do novo exército foi fácil e rápida, porque já tinham aexperiência do primeiro. O Visconde voltou a dirigir o Serviço deIntendência e Pedrinho passou de chefe do Estado-Maior a Ajudante deOrdensdoGeneralHércules.

—Equeaconteceu?—Ah,aconteceuqueoexércitodeAugiaslevouamaiorsurradequehá

memórianaGréciaAntiga.Augiasfoiarrancadodeseutronoejogadopelajanelacomosefosseumcacodetelha.Caiuaduzentosmetrosdedistância,espatifando-setodo.

Depoisdatremendavitória,oheróiindagoudoparadeirodeseuamigoojovemFileu.

—EstánaDulíquia—informaram-no.HérculeschamouMeioameioedisse:—VávoandoàDulíquiaetraga-mecáFileu.—OndeéaDulíquia?—perguntouocentaurinho.—Nãosei—berrouHércules.—Pergunte.Vánumpéevoltenoutro.

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Meioameio saiu com velocidade dum vendaval. Duas horas depoisvoltava cobertode suor espumarento,mas comFileuno lombo.Hérculesabraçou-oedisse:

—Augiasestámortoeseuexércitoderrotado.Onovoreiévocê—efincou-onotrono.

Depoisdisseaoescudeiro:.—AviseaospovosdaÉlidequeonovoreiéFileu.OViscondechegouà janela,pediuaPedrinhoqueoerguessenoar, e

comsuavozdemilhogritouparaamultidãoaglomeradadefronte:—Reimorto,reiposto!VivaSuaMajestadeoReiFileu!—Viva!Viva!—aclamouamultidãocomomaiorentusiasmo,porque

ninguémnaÉlidegostavadeAugias.EassimterminouasegundaexpediçãodeHércules.—Bom.Eagora?—perguntouPedrinhodepoisdetudoterminado.—AgoratemosdevoltaraMicenas.PrecisodarcontaaEuristeudarealizaçãodemaisesteTrabalho.Emília,queandava"poraqui"comotalEuristeu,desabafou.—PorquenãovailáenãofazcomeleomesmoquefezcomAugias?—Impossível,figurinha!EuristeuéprotegidodeHera...Foi nesse instante que o Visconde de Sabugosa deu o primeiro sinal

positivo de loucura. Estava sentadinho por ali ouvindo a conversa dosoutros, de cartola na cabeça, como sempre. Aquela cartola fazia parte doVisconde, não era como o chapéu comum dos homens que é posto nacabeçaetiradoquandodentrodecasa.OViscondenãotiravadacabeçaacartola nem nas igrejas. Também não cumprimentava a ninguém pelosistemade"tirarochapéu".Diziasó"Olá",fazendoumgestinhodeadeus,ainda que o cumprimentado fosse o próprio Júpiter. Também comia edormiadecartolanacabeça.Poisnaquelatardetudomudou.AssimquedabocadeHérculessaiuonomedadeusaHera,osabuguinhotiroudacabeçaa cartola e jogou-a longe. Depois deu uma gargalhada histérica eresmungou: "Hera!Hera! Era uma vez uma vaca amarela que entrouporumaportaesaiuporoutra.Quemquiserqueconteoutra..."

Todos estranharam aquilo — aqueles modos e aquelas palavras tãoimpróprias de um sábio. E mais ainda quando o Visconde segurou aspalhinhasdopescoço, comose fossembarbasrepartidasaomeio,edissecomarsatisfeito:"Asarmaseosbarõesassinalados..,barõeseviscondes.Viscondes e condes deMonteCristo. CondesdeMonteCristo e duques emarquesas,ecomendadores,ecoronéisecabos-de-esquadraeeu...eeu...eeu.Bumba-meu-boi!Zubumba!OsZombis...osZombis...osZombis..."eseus

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olhospareciamquerersaltardasórbitas.Não havia a menor dúvida: o pobre Visconde de Sabugosa

enlouquecera! Já de algum tempo vinha mostrando certos sinais deperturbação dos miolos, ma com intervalos de perfeita lucidez. Agora,porém, a incoerência de suas idéias já não deixava nenhuma dúvida.Louco...Louquíssimo...

A consternação foi geral.Hércules suspirouumavez, edepoisoutraeoutra.PedrinhoficouprofundamenteapreensivoeEmíliadanou.

— Em vez de enlouquecer lá no sítio, onde temos todos os recursos,este estrepe vem enlouquecer justamente aqui, para nos atrapalhar aviagem! E paramim essa loucura é fingimento. Como sabe que todos osheróis acabam loucos, ou passam durante a vida por um período deloucura,está"bancando"olouco,paraficarigualaHércules,aRolando,aD.Quixote...

Pedrinhoameaçou-adeumbeliscãosecontinuasseafazertãomáidéiadopobresabuguinho.

—NãohánadanavidadoViscondequejustifiquesemelhantehipótese,Emília.OViscondesemprefoihonestíssimo,incapazdumamentira...

—Mentiusim—berrouEmília—naquelavezdopau-falante!— Mentiu à força, coitadinho. Você obrigou-o a mentir.

EspontaneamenteoViscondejamaismentiunemumaiscadementiraemtodaasuaexistência.Paramimeleéomodelodossabugos.

—Mas issonãoé razãoparavirnosatrapalharcomuma loucura tãoforadepropósito—insistiuEmília.—Querficarlouco?Váficarlouconacasadesuasogra...

OViscondenãodavaomenor tentoaoquedelediziam.Continuavaapronunciarpalavrassemnexo,quasesemprecientíficas:"AmetempsicosetemsuasraízesnaÍndia...Asobrevivênciadomaisforte...Hormônios...Favade Santo Inácio..." isso emmeio a uma série de gargalhadas histéricas earrepiantes. Depois, ah, depois fez tal qual D. Quixote quando o famosoheróidaManchasedespediudeSanchoparaficarderetiroepenitêncianana montanha. D. Quixote despediu-se de Sancho e pôs-se a virarcambalhotas,emfraldasdecamisa...PoisoViscondefezamesmacoisa;deuumasériedecambalhotaseficouafazerexperiênciadeandarcomasmãosnochãoeospésnoar...

Nesse ponto Pedrinho não reteve as lágrimas — chorou, e Hérculesdesviouorostoparaquenãovissemalágrimaquetambémlheveio.MasEmília,nada!Nadadecomover-se.Estavaarir-seironicamenteeacaçoardopobrezinho.

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— Cambalhotas mais feias nunca vi. Um verdadeiro sábio nãoenlouquecedesse jeito tãobobo.Senão fossemassuasdefesasorgânicas(PedrinhoeHércules),euoagarravaagoraedepenava...

Aoouviraquele"depenava",oViscondeinterrompeuascabriolasepôs-se a tremer como geléia. Era o antigo pavor que mesmo na demênciareaparecia:ovelhomedodeser"depenado"desuaspernaseseusbraços.TantoEmíliaoameaçoucomisso,desdeoscomeçosdavidadoVisconde,queoterrorficouincrustadoemseusubconsciente—eagora,naloucura,manifestava-se naquele tremor. Depois o coitadinho caiu de joelhos,começouarezareafazerpelo-sinais.

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V-OLouco

—Pronto!—exclamouEmília.Agoraéqueestáperdidodeumavez.DonaBentadizqueasloucurasreligiosassãoincuráveis.

OVisconderezavanummurmúrioimperceptível.Pedrinhoaproximou-separaouvir.Erampalavrasincoerentesdeloucovarrido:"FavadeSantoInácio... Erva de Santa Maria... Xarope de São João... Melão-de-são-caetano..."

Emíliateveumaidéia.—Esperem!...Esperem!...Jásei...Eleestánossugerindoumacoisa:que

há remédios no mundo e que se lhe derem um bom remédio talvez ocurem.

Pedrinhoachourazoávelaquilo.— Sim. Pode ser. Mas que remédio podemos dar ao Visconde? De

medicinaeunãoentendonada.—Leléhádeentenderalgumacoisa.Pergunte-lhe.PedrinhoperguntouaHérculesseentendiaderemédios.—Não,masseiondemoraumhomemqueéomaissabidoemdoenças

ecurasdetodaaGrécia.—Quemé?—OgrandeEsculápio,oheróidamedicina.—Eondepoderemosencontrá-lo?— Esculápio é um filho de Apolo que foi educado pelo meu amigo

Quiron,nacidadedeEpidauro.TudoquantoQuironsabiadaartedecurar,transmitiu-o ao moço — e Esculápio revelou-se um desses alunos queficamsabendomaisqueosmestres.NotempodanossaexpediçãoparaaconquistadoPelegodeOuro, omédicodoArgoera ele, e durante toda acampanha foi quem nos curou todas as feridas e males. E sei que suaciêncianuncaparoudecrescer.JánotempodoArgoconseguiaressuscitarmortos...

—Ressuscitarmortos?—repetiuPedrinhocomassombro.— Sim — reafirmou Hércules. — Diante de meus olhos ressuscitou

vários companheiros, como Licurgo, Tíndaro, Glauco, e mais tarderessuscitou Hipólito, vítima da Rainha Pedra. Podemos dar um pulo atéEpidauroparaumaconsultaaessesemideusdamedicina.SeEsculápionãocuraromeuescudeiro,quemocurará?

—Sim—repetiuPedrinho.—Paraquemressuscitagentemorta,curarumaloucurinhacomoadoViscondedeveserbrincadeiradecriança.Mas

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comolevaropobreVisconde?Osloucostêmqueandaramarradosouemcamisas-de-força.

— Ou em gaiolas! — berrou Emília. — Na loucura de D. Quixote oremédiofoiumaboajaula.

Pedrinhonãoachou foradepropósitoa idéia.Se levassemoViscondesolto,issoiriaexigirumavigilânciapermanente,diurnaenoturna—coisamuito cansativa.Masumaboagaioladispensava tal vigilância—e assimpensando,foicortarvarasnaflorestaparaconstruiragaioladolouco.

Que momento doloroso o em que, depois de feita a gaiola, PedrinhoagarrouoViscondeebotou-oládentrocomosefosseumpassarinho!

Até Emília se comoveu. O pobre demente ficou de pé, agarrado àsvaretasda gaiola, gritando: "O binômio de Newton!... O quadrado dahipotenusa!... A cabefeira de Berenice..." — tudo coisas científicas. Osverdadeirossábiossótêmumacoisadentrodesi:ciência,emaisciência.

—Elesempre foiassim—disseEmília.—Daquelavez lánosítioemque ficou com "obstrução de álgebra", o Doutor Caramujo abriu-lhe abarrigaetirouummundodeletras,sinaisecoisasalgébricas.Foientãoqueviqueossábiostêmumverdadeirorecheiodeciêncianastripas...

Outradificuldadeseapresentou:comolevaratéEpidauroaquelagaiolacom o louquinho dentro? Meioameio opôs dificuldades. Com a gaiola nolombo ele não poderia galopar, ficaria comosmovimentos embaraçados.QuemresolveuoproblemafoiHércules.

—Possolevá-loatiracolo,comolevoaminhaaljavadesetas—efoioquesefez.Pedrinhoarranjouumacorreiaecomelaamarrouagaiolinhanaaljavadoherói...

AviagematéEpidaurofoimuitotriste.Hérculesjáhaviacriadoamoraoseuescudeiro,eosoutrosestavamapreensivos,commedodequeolouconão agüentasse a caminhada e falecesse no caminho. Emília resmungavacomonegravelha,apesardasadvertênciaseameaçasdePedrinho.

— Hei de contar a vovó essa sua maldade, Emília. Todos aqui, atéMeioameio,estamostristíssimoscomocasodoVisconde—sóvocê,emvezdetristeza,estáqueésógana...Coisamaisfeianuncavi...

—Não nasci para enfermeira—disse a diabinha.—Acho que quemficardoenteouloucodeveirparaacasadesuasogra.—MasoViscondenãoquisficardoente!—berrouPedrinho.Ficoulouco

semquerer,emvirtudedosgasesvenenosos.—Porquenãotapouonariz,comoeu?—Esquecimento,Emília.Vocênãoignoraqueosverdadeirossábiossão

muitodistraídos.Eleesqueceu-sedetaparonariz.

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—Poisquemseesquecedetaparonariznumaocasiãocomoaquelaébem merecedor de que os outros também o esqueçam à beira dumaestrada...

EassimdiscutindochegaramaEpidauro.Hércules indagou da residência de Esculápio e recebeu uma

desanimadorainformação.Esabemdadaporquem?Pelofamosoviandanteque aparecia nos momentos mais oportunos. Quem o viu primeiro foi aEmília.

—Olhemquemressuscitou:Minervino!...—Onde?—Lávemaonossoencontro...Nada mais certo. O misterioso viandante aproximou-se e saudou-os

comoavelhoscamaradas.—Então,poraqui?QuequerememEpidauro?Hércules contou a história da loucura de seu escudeiro e disse que

tinhamvindoconsultarofamosoEsculápio,osemideusdamedicina.Oviandantesuspirou.—Ai de nós!...— disse num gemido.—O grandemestre da arte de

curarjánãoresideentreosgregos...—Paraondefoi?Oviandanteapontouparaocéu.—Zeusotransformounumadasconstelaçõesdaabóbadaceleste...—Porquê?—Ah,meuamigo,Esculápioaperfeiçoou-sedemaisnasuaciência,edaí

lhe veio a perdição. Não se limitava a só curar os doentes, tambémressuscitavaosmortos.E tantasressurreições fez,quePlutão,odeusdosinfernos, inquietou-se e foi queixar-se a Zeus: "Esculápio está baixandomuitoapopulaçãodomeureino.AbarcadeCaronte, transportadoradosmortos, já não encontra passageiros." Zeus franziu a testa. "Por quê?"-perguntou.EPlutãorespondeu:"PorqueEsculápioandaaressuscitartodososquemorrem."Zeusrefletiuconsigoqueaquiloerade fatoumagrandeirregularidade na ordem das coisas. Se Esculápio devolvia a vida aosmortos,entãoestavasetornandoumdeuscomoosdoOlimpo—e,cheiodeciúmes,fulminou-ocomumraio.Depois,reconhecendoograndeméritodofulminado,transformou-onumadasconstelaçõesdocéu.

—Emqualdelas?—NaconstelaçãodaSerpente.—PorquedaSerpenteenãodoJacaré?— Porque o Galo, o Cão e a Serpente haviam sido consagrados ao

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grandeEsculápio.—MasporqueoGalo,oCãoeaSerpenteenãooRato,oCoelhoeo

Hipopótamo?—insistiuEmília.Oviandantecalmamenteexplicou.—PorqueoGaloeoCãocorrespondemaossimbolosdaVigilância—e

osbonsmédicosdevemestarsemprevigilantesàcabeceiradosenfermos;eaSerpenteporqueéosímbolodaPrudência,qualidadeindispensávelaosmédicosdepeso.

Pedrinho observou que nomundomoderno a Serpente ainda era umdossimbolosdamedicina.

Hérculesficoudesapontadíssimocomaqueledesfecho.JáqueEsculápionãoexistia,quefazerdoseuescudeirinholouco?

Emíliabateunatesta:sinaldeidéiadeprimeiraordem.— Já achei a solução!— berrou.— Esculápio não existe, mas existe

Medéia.Levemos-lhe o Visconde. Ela pica-o em pedacinhos, ferve tudo num

caldeirãoedovaporextraiumViscondenovo,moço, lindoesemloucuranenhuma.

Osoutrosentreolharam-se.Nãohaviadúvidaqueeraumasolução.—MasondeencontraremosMedéia?—perguntouPedrinho.—Minervinohádesaber—disseEmília—eolhouparaoviandante.O velho sorriu, como quem de fato sabia do paradeiro de Medéia. E

Hércules tambémsorriu,masdeoutracoisa;daestranhacoincidênciadetambémtersidoMedéiaquemocuraradasualoucura.

—Sim—disse.—FoiMedéia quemme curouda loucura emTebas,masignoroonderesidehojeessagrandemágica.

—EstánumacidadedaÁtica,casadacomovelhoReiEgeu—informouoviandante.

—Poisentãovamosparalá—determinouHércules.

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VI-NoPaláciodeMedéia

Foi outra viagemmuito penosa e triste a que fizeram em procura dagrandemágica.Afinalchegaram.Medéiareconheceuoheróiqueanosanteselahaviacuradodaloucuraeperguntou-lheaoquevinha.

Hérculesrespondeu:— Andamos peregrinando em procura de quem restabeleça o meu

escudeiroSabugosa.—Quetemele?—Loucura.Respirouosmausgasesdas cavalariçasdeAugias e ficou

desarranjadinhodacabeça.—Poistraga-oàminhapresençarespondeuMedéia—eassombrou-se

quando Hércules abriu a gaiolinha a tiracolo e tirou de dentro o pobresabugocientífico.

—Isto?...EntãoéistooescudeirodograndeheróinacionaldaGrécia?...MuitocustouaHérculesconvencê-ladequesefisicamenteoVisconde

eraaquilosó,emciênciaeraumsábiomaiorquetodosossábiosdeAtenas—econtou-lhediversaspassagenzinhascientíficasdoVisconde.

Medéia olhouparaHércules com certadesconfiança, comoquemestápensando:"Seráqueeunãoocureibemcurado?Seráqueestánovamentedemiolomole?"Esódepoisdotestemunhodosoutros,dePedrinho,EmíliaeatédeMeioameio,équedeliberouconsertaroVisconde.

—Dê-meissoaqui—disseela—epegandooViscondearrancou-lheosbraços, as perninhas e a cabeça; depois picou o tronco inteiro com umafaca.

Lançou tudonumacaldeira e acendeuo fogo.Comalgunsminutosdefervuraopicadinhoficounoponto.Umvaporgrossoergueu-sedacaldeira.Medéiarezouassuaspalavrasmágicas—ecomomaiorassombrotodosviramsurgirumViscondedeSabugosanovinhoemfolha,jovemecorado,semamenorsombradeloucuranosmiolos...

—Pronto!—disseelaentregandoaoheróioescudeiroconsertado.—Pode levá-lo,masempagaqueroumacoisa: e cochichou-lheaoouvidooquedesejavaempagamentodacuradoVisconde.

—Oh,impossível!—respondeuoherói.—Impossívelporquê?—teimouMedéiaeHérculespuxou-adebanda

paraumprolongadocochicho.Emília estranhou aquela conspiração em que volta e meia os dois

olhavam para ela, mas nunca veio a descobrir a causa. Fora o seguinte.

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Medéia,comoboafeiticeira,jáhaviadescobertoogrande"segredomágico"de Emília, e estava, pedindo ao herói que lhe desse como pagamento dacura do Visconde "aquela criatura tão maravilhosa." Mas que "segredomágico"eraessequeinteressavaatéaumagrandefeiticeiracomoMedéia?Simplesmenteo"faz-de-conta"comoqualEmíliasolucionavaoscasosmaisdifíceis.Ahistóriadaaplicaçãodo"faz-de-conta"nalutaentreHérculeseoJavalidoErimantojáhaviachegadoatéaosouvidosdeMedéia.

E foi uma felicidade que Emília não viesse a saber da proposta deMedéia,poisquedocontráriohaviadequerer ficarnopaláciodagrandefeiticeira para picar gente e ferver o picadinho no caldeirão mágico. Sódivertimentosassimencantavamrealmenteadiabinha.

Enquanto Hércules conversava com Medéia, Emília e Pedrinhoexaminavam e reexaminavam o Visconde novo. "Vire de costas"— diziaum.—"Agoraváatélá"—diziaoutro.—"Dêumacarreirinhanumpésó"—mandouEmília—eoVisconde saiupulandonumpé só, comoo saci,coisaquenuncahaviafeitoemsuavida.

—Ótimo!— exclamou Emília.—Medéia nos deu um Viscondemaisesperto e ágil que um macaco. Resta saber se é sábio como o Viscondevelho.Pergunte-lhequalquercoisadeciência,Pedrinho.

Eomeninoperguntou:—Quantosdedostemumamão-de-milho?—Cinqüenta!— respondeu o belo viscondinho, e explicou: "Mão-de-

milho"éumamedidademilhoaindaemespigas.Cadamão-de-milhotem25 pares de espigas. Logo, as espigas são os dedos da mão-de-milho. Ecomo25paresdeespigassão50espigas,amão-de-milhotem50dedos!...

PedrinhoabriuabocadiantedaespertezadoViscondefervido—etevevontade de pedir aMedéia que tambémo fervesse a ele em sua caldeiramágica.

ImaginemquePedrinhonãosairia!HérculesnãopôdepagaraMedéiaopreçodacuradoVisconde,tevede

ficar devendo. Despediu-se dela e retirou-se segurando Emília pelamãozinha—demedoquenoúltimoinstanteaterrívelfeiticeiraaraptasse.

Nadamaistinhamafazerali.EratempodevoltaremaMicenasafimdequeoheróidessecontaaEuristeudaexecuçãodoQuintoTrabalho.

Puseram-se a caminho, e no dia seguinte tiveram mais uma vez apreciosa companhia do tal viandante. E o estranho é que ele apareceujustamentenahorinhaemqueEmíliadesejousaberahistóriadeCirce,airmãdeMedéia...

— Que pena Minervino não estar aqui para nos contar a história da

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Circe!—haviaditoaexboneca—ecomoporencantoMinervinoapareceu.Umacoincidênciaassimeraparaespantarqualquercriatura—masqueéqueespantavaospicapauzinhos?Emvezdearregalarosolhos,Emíliadissecomamaiornaturalidade:

—Conte-nos,Minervino,ahistóriadaCirce,irmãdeMedéia...Eoviandantecontou.—Ah,Circefoiamaisfamosafeiticeiradetodosostempos.Suahistória

étodaumromance...—Poisleia-nosesseromance—pediuEmília.MinervinolimpouopigarroefaloudaIlhadeEaondemoravaCirce.—Quemaravilhosa ilha!—disse ele.—Opalácioda feiticeira eraum

puro encanto. Impossível maior luxo. E lá dentro vivia Circe umaverdadeiravidade sonho, cantando,dançandoou fazendopreciosíssimosbordados no meio de numerosos leões, tigres, lobos e outros animaisselvagens...

— Que história é essa? — exclamou Emília, intrigada. — Não estouentendendo...—Circeerapossuidoradeumabelezasem-par—explicouoviandante

—demodoqueviviaatraindoheróisparaasua ilha.Masassimqueelesdesembarcavam,elaostocavacomasuavarinhamágicaeosviravanoquequerialeões,tigres,lobos...QuandodevoltadaGuerradeTróiaonaviodeUlisses aportou naquela ilha, a curiosidade de muitos companheiros doherói fez que eles fossem espiar a famosa feiticeira — e Circe zás!transformou-osemporcos.

—Emporcos?Coitados...—Sim,emporcos.Masumqueescapoudatristesinafoicontartudoa

Ulisses.EsteUlisseseraoverdadeirosímbolodahabilidadehumanaedaastúcia. Ao saber da sorte dos companheiros, refletiu, e tratou deaconselhar-se comHermes, de quem era protegido.Hermes deu-lhe umaplantamágicaqueodefenderiadetodosossortilégiosdeCirceeinstruiu-odetudoquantotinhaafazer.ElávaiUlisses,muitofrescodavida,paraopaláciodeCirce.Etaisetantasfezcomsuashistóriasemanhasqueacabouenfeitiçando a feiticeira. A boba ficou perdidinha de amor por ele. Ora,quem ama nada nega ao objeto amado — e Ulisses conseguiu que afeiticeira "desvirasse" os seus companheiros transformados em porcos.Voltaramaserhomensoutravez.UlissespassoutodoumanonailhadeEa,enlevado na beleza de Circe; e depois, com muito jeitinho, conseguiulicençaparadarumpuloatéàIlhadeÍtaca...

— Eu sei! — disse Pedrinho. — Ítaca era a terra desse herói, onde

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moravaasuafielesposaPenélope,sempreafazeraquelebordadoquenãoacabavamais.

—Porquenãoacabavamais?—quissaberEmília.—PorquePenélopedesmanchavadenoiteopedaçofeitodedia.—Eparaqueessabobagem?Pedrinhodanou.— Boba é você com tantas perguntas. Não sabe então a história de

Penélope, que vovó contou? Penélope era a fiel esposa deUlisses, o qualhavia ido com todos aqueles heróis deHomero para a famosaGuerra deTróia,aqualduroudezanos.Terminadaaguerra,levouUlissesoutrosdezanosemviagenspormareaventurasmaravilhosas,antesdechegaràsuaIlhadeÍtaca...

—EapobredaPenélopepassoutodoessetêmpoaesperá-lo?Mulhermaisbobanuncavi!...

— Sim — disse o viandante. — Ela era um símbolo de fidelidadeconjugal.

—Abobanúmerouméoqueelaera!—berrouEmília.—VinteanosaesperarummaridoquenãofaziaoutracoisasenãonamorartodasasCircesdocaminho!Ah,sefosseeu...

— Sim, Penélope esperou-o com a maior paciência —prosseguiuMinervino—eparaganhar tempoe iludirosnumerosospríncipesqueacortejavam...

—Porqueacortejavam?—Todosqueriamcasar-secomelaafimdeocuparotronodeUlisses.E

elaentão...— Já sei! — interrompeu Emília. — A palerma ficou a fazer o tal

bordadoquenãoacabavamais—atalteiadePenélope.AgoramelembroqueDonaBentanoscontouisso.

Minervino quis saber quem era essa tal Dona Benta de quem volta emeiaospicapauzinhosfalavam.Emíliaexplicou:

—Ah,meuamigo,DonaBentaéumaCircedostemposmodernos,umafeiticeiraládanossaIlhadoPicapauAmarelo...

—Tambémtransformaheróisemanimais?—Não!Fazocontrário.Transformaanimaisemseresracionaiselindos

dealma.AvarinhadecondãodeDonaBentachama-seBondade.Foicomessa varinha que ela me transformou de boneca de pano em gente, etransformouumrinocerontedaÁfricanoQuindime fezdoBurroFalanteum verdadeiro filósofo— e Emília foi inventandomil coisas sobre DonaBenta,metadeverdadeiras,metadefantasias.

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Pedrinho admirou-se da imaginação da exboneca e cochichou para oVisconde:"Elaestámelhordoquenunca!Pareceatéquefoifervida..."

E assim, nessa prosa encantada em que se misturavam feiticeiras edeuses, heróis e bichos, invençõezinhas da Emília e mitologias deMinervino,obandodeHérculeschegouaMicenas.

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VII-OReiAntipático

O acampamento à beira do ribeirão estava exatinho como o haviamdeixado.

O viandante gostou muito do Templo de Avia e das costeletas doscarneiros "achados" pelo centaurinho. Hércules foi espadanar-se na águadoribeirão,emmaisumdosseusbanhoshercúleos.Hercúleos,sim,taisetantaseramascabriolasqueelefazianaágua.Pareciaumboto.

Pedrinho,espiandoacanastrinhadaEmília,encontrouládentrováriasnovidades muito curiosas: um pacotinho de esterco das cavalariças deAugias, um vidrinho do caldo da fervura do Visconde e até umamentiramitológica:umpedaçodateiadePenélope.

Depoisdobanho,HérculesfoiaMicenasfalarcom"oantipatia",queeracomoaexbonecachamavaEuristeu.EssereijáestavanoconhecimentodetudorelativoaoQuintoTrabalhodeHércules.Comooheróidemorasseaaparecer,anotíciadesuagrandeproezatinhachegadonafrente.NaGréciainteira não se falava emoutra coisa senão na limpeza das cavalariças deAugiasenadestruiçãodessemaureipelosegundoexércitodoherói.

Emília aproveitou o ensejo para "apertar" o misterioso viandante eforçá-loacontarquemera.

—Amimninguémmeengana—disseaexboneca.—JuroquevocêéummensageirodoOlimpo,umaespéciedeHermesdadeusaMinerva...

O viandante abriu a boca. Não podia compreender como aquelacriaturinhahouvessepenetradoemseusegredo.

—Comosabe?—perguntou.—Oracomosei!...Seiporqueadivinhoascoisas.Issodevocêaparecer

justamentenos"momentospsicológicos"edesabertantacoisadahistóriaedalendadestepaís,issomefezdesconfiar...

Minervinoacaboucontandotudo.—Sim—disseele—souummensageirodePalas,e fiquemsabendo

queégraçasaessadeusaquevocêsaindaestãovivos...—Porquê?—exclamouPedrinho,assustado.—PorqueHerajásabetudoeestádanadacomoauxílioquevocêsvêm

dando a Hércules. A verdadeira razão do herói já ter realizado cincotrabalhos sem que nada de mal lhe acontecesse, está unicamente numacoisa:naajudaquevocêslhetêmdado.OcasodoJavalidoErimanto,porexemplo, deixouHera impressionadíssima; e commeuspróprios ouvidospilhei-adizendoaHermes:"Éaquelafeiticeirinhaquemeestáestragandoo

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jogo.Possuiumtalismãmágico,o tal "faz-de-conta", comoqual jásalvouHércules de várias situações perigosissimas."Disse e encarregouHermesderoubardáEmíliaessetalismã...

—Que coisa!—exclamouPedrinho, assustado.—Então oOlimpo jáestáaincomodar-seconosco?

—Seestá!...Nãodiscutemoutroassunto.AtéZeusandainteressadoemvocês,masa favor.HeraestácontraeporcausadissoPalasmedestacoupara, sob a forma de viandante, guiar vocês nos passos perígosos e irneutralizandooudesmanchandoasarmadilhasdeHera.OgrandeempenhodessadeusaédarcabodeEmília.

Aoouvirsemelhantecoisa,Emíliaavermelhoudecóleraedesabafou:—Fortebisca!OViscondeentrounodebateparaadverti-ladeumacoisamuitoséria.—CuidadocomaNêmesis,Emília!—disseele.SóMinervinoentendeuoVisconde,elhedeurazão,dizendo:—Sim,Nêmesis é a divindade da justiça e é também a divindade que

castigaosculpadosdahybris.—Hybris?—repetiuPedrinho.— Hybris é o pecado da "insolência na prosperidade." Quando uma

pessoaficamuitoimportanteecomeçaadesprezarosoutros,eaorgulhar-se muito de seus dons, comete o pecado dahybris— e lá vem Nêmesiscastigá-la,abater-lheoorgulho.Emíliaandaorgulhosademais,gabando-sedemais. Isso é hybris. E se é hybris, da que tome cuidado coma deusaNêmesis!...

— E não está aqui você para proteger-me contra tudo por ordem deMinerva?

—Estou,sim,masmeuspoderesnãosãoilimitados.Sevocêpassardaconta,quepodereifazer?Nêmesisépoderosíssima.

Emíliaencolheu-se,umtantoamedrontada.MomentosdepoisPedrinhodescobriu-a queimando umas ervas-secas em cima duma pedra. "Que éisso?" perguntou-lhe. E a diabinha: "É um altar da grande deusa Hera, àqualestouoferecendoumsacrifíciodeplantasaromáticas."

PedrinhopiscouparaomensageirodePalas.LánopaláciodeEuristeu,Hérculesnempôdefalar.Assimqueabriua

boca para dar conta da realização do QuintoTrabalho, "o antipatia" ointerrompeucomumgesto.

— Já sei de tudo—e estoumuito descontente comodesfechodesseúltimoTrabalho.MinhaordemfoiapenasparaquelimpasseascavalariçasdeAugias,nãoparaqueoexpelissedotrono.Esperoquedaquipordiante

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façaoquemandoenãoseexcedaemfaçanhasnãoencomendadas.— Assim será, Majestade — respondeu o herói humildemente. — E

agora?EuristeujáhaviacombinadocomEumolpoonovoTrabalhoa impora

Hércules, um Trabalho muito mais perigoso que os cinco primeiros: adestruiçãodasferocíssimasavesdoLagodeEstinfale.

—Onovotrabalhoqueheiporbemimpor-te,Hércules—dissecomamaiorsolenidadeEuristeu—éiresaEstinfaledestruirosavejõesdepenasdebronze.Ésó—efezgestodefimdeaudiência.'

Hérculesnadasabiadetaisaves,masnãodeixoudeficarapreensivo.SeEuristeuomandavaatacá-las,entãoéquenãoeramavescomuns.Esenãoeramavescomuns,entãocomoseriam?

Devoltaaoacampamento,Pedrinhocorreu-lheaoencontro.—Eagora,Hércules?Oheróirespondeu:— Tenho de voltar à Arcádia para destruir as aves do pântano de

Estinfale...—Queavessãoessas?—Nãosei...Hérculesnadasabiadetaisaves,masMinervinodeviasaber.Quenão

sabiaomisteriosomensageiro?Pedrinhofoiconsultá-lo.—Amigo,quesabedasavesdoLagoEstinfale?Euristeuacabadedar

ordensaHérculesparairdestruí-las.Minervinoempalideceu.— As aves do Lago Estinfale? Oh, sei... São aves monstruosas e

invencíveisporcausadonúmeroedaspenas...—Daspenas?—repetiuPedrinhosementender.— Sim, possuem penas de bronze, penas enormes, pesadíssimas e

cortantes como facas. Essas aves só se alimentam de carne humana, dospassantes que transitam por perto do lago. De grande distânciaarremessamtaispenascompontariasegura—eaidoviandanteporelasalcançado!... Na minha opinião este Trabalho é muitíssimo mais difícil eperigosoqueosoutros.

—Porquê?— Por causa do número de aves—mais de mil. Imagine todas elas

arremessando contraoherói suasvenenosaspenasdebronze.Bastaqueumaacerte...

—MasdelongeHérculespoderámatá-lascomsuasflechas.Minervinosorriu.

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—Hérculeséumeelassãomil.Paracadaflechaqueoheróilance,elaslançammilpenasafiadas.Dequemaneirapoderáeleresistir?AchoocasomuitosérioevouaconselharHérculesanadafazerantesqueeudiscutanoOlimpooassunto.

Pedrinhoficouseriamenteapreensivo.Sim,aqueleTrabalhoeramuitodiferente dos outros. Até então Hércules tivera de enfrentar um inimigoúnico; agora tinha de enfrentar mil ao mesmo tempo. Tudo mudava deaspecto.EPedrinholembrou-sedasformigasqueapesardetãominúsculasvencempelonúmero.

Minervinodeuapalavradeordem:—Combinemosumacoisa,vocêspodemirjáparaaArcádia,masnada

façamsemouvir-me.Vouconsultarminhadeusaedepoisireiprocurá-los.—Onde?— Nos arredores da cidade de Estinfale. Nada façam sem minhas

instruções.Disseeafastou-se.

***

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6-ASAVESDOLAGOESTINFALE

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I-AsAvesdoLagoEstinfale

O lagopantanosodeEstinfale ficavanaArcádia, pertoda cidadezinhado mesmo nome. Era um lago como outro qualquer daquele tipo. Certamanhã, porém, ocorreu uma curiosa novidade: o lago estava cheio dunsestranhosavejõesaquáticos.

O contentamento dos estinfalinos foi grande. As aves aquáticas emregrasãoboasparacomer,comoospatos,asmarrecas,asbatuíras—eoscaçadoreslocaisseassanharam.Logodepoispartiurumoaolagoumgrupodunscinqüenta,armadosdearcoeflechas.Iamembuscadojantar.

De longe já os caçadores viram a superfície das águas cheia dos taisavejões,muitomaiores que os cisnes. E de uma cor esquisita, como a dobronze — uma cor metálica. Que aves seriam aquelas? Os homensaproximaram-se cautelosamente, agachados, escondidos pela vegetaçãomarginal; quando viram as aves ao alcance, fizeram boa pontaria elançaramsuasflechas.

As flechas, entretanto, acertavam nas aves e ricocheteavam como sehouvessem batido de encontro a corpos sólidos. Nova série de flechasforam arremessadas, igualmente sem efeito nenhum.Davamde encontroaopeitodasavesericocheteavam.

Ocasoespantouseriamenteaqueleshomens,emaisaindaveremqueemvezde semostraremassustadas, comoéo comumquando caçadoresatacam as aves aquáticas, aquelas se puseram a arrepiar as penas e ainvestigarcomosolhosmuitovivos,comoquetomandoaposiçãodosseusatacantes. Evidentemente iam passar de agredidas a agressoras. E comopareciambelicosas!

Que fazer? Os caçadores entreolharam-se. Por fim resolveram tentarmaisumarevoadadesetas—emaiscinqüentasetasvoaramrumoaopeitodosavejões.Eoqueentãosucedeufoioassombrodosassombros.

Os avejões, mais arrepiados ainda, romperam numa gritariaatordoadora; depois sacudiram as enormes asas como se quisessemdesembaraçar-se das penas — e mil penas vieram cair em cima doscaçadores.Quehecatombe!Nãoficouumsódepé.Todoscaíramcomoquefulminados. As penas arremessadas eram de bronze e cortantes comofacas...

Em seguida as aves acudiramnumgrande açodamento e emminutosestraçalharamedevoraramtodosaquelescorpos.Eramavesantropófagas.

Como os cinqüenta caçadores não reaparecessem em Estinfale, a

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populaçãoinquietou-se.Novoshomenspartiramemprocuradosprimeiros— e também não voltaram. Só depois da destruição de duzentos outrezentosestinfalinoséqueacidadecompreendeuoquesepassava.

O pânico foi imenso. Não tinha fim a choradeira das mulheres quehaviam perdido tão tragicamente os seus homens. Apenas um conseguiusalvar-see láapareceuemEstinfalecomduaspenasdebronze.Ah,comoaquiloandoudemãoemmão!Todosqueriamvê-las,cheirá-las,prová-las.Eficouassenteumponto:o lagoestavacoalhadodetremendíssimasavesdepenasdebronzecomedorasdecarnehumana...

Que fazer? A luta era impossível. Tornava-se necessário recorrer aosheróis,porquesóosgrandesheróis,Hércules,Teseu,Perseu,Jasãoeoutros,sabiam lutarevencerosmonstros.Mensageiros forammandadosàcortedos reis com pedido de socorro— e foi então que Euristeu pensou emHércules.Ah,dessavezoheróisucumbirianaempresa.

Enquantoisso,asavesdolagocontinuavamnafainadecaçarcaçadores,pastores e gentedo comum, fossehomemmulherou criança.Viandantesincautos, que nada sabiam daquilo e passavam pela beira do lago, eramimpiedosamentelaceradospelaspenasdebronzeeemseguidadevorados.Amatançatornou-sehorrorosa.

Estavam as coisas nesse pé quando Hércules chegou a Estinfale. Aalegriadoshabitantesfoienorme.Ninguémláignoravaquemfosseoherói.SuavitóriasobreojavalidoErimanto,montanhanãolongedali,corriadebocaemboca.

Hérculesfoiconferenciarcomochefedacidade.—Sim,chefe,aquiestouamandadodeEuristeuparadestruirasaves

depenasdebronze.—Dequemodovaiatacá-las?—Comasminhassetasmortais.Ocheferiu-se.— Seta nenhuma tem efeito contra essas aves, porque são revestidas

duma verdadeira couraça de penas de bronze. Nossos caçadores tiveramensejodeverificá-lo—ejánãoexistem,osimprudentes...

Hércules riu-se. As flechas dos homens comuns eram uma coisa; assuas, algomuito diferente.Nunca houve ser vivo, homemou animal, queresistisse a uma só das suas setas — e apesar da advertência domensageiro de Palas o herói resolveu fazer naquele mesmo dia aexperiência. Depois de acomodar Meioameio, Pedrinho e os mais num"camping"àbeiradacidade,partiusozinho,dearcoempunho,comaaljavabemcheiadesetas.Eteveocuidadodeexaminá-las,umaauma,paraver

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se aEmília não as tinha “humanizado."OmeiodeEmília "humanizar" asflechaseraquebrar-lhesaponta...

Hércules aproximou-se do lago o mais cautelosamente que pôde,agachado,oraocultoporumtufodevegetação,oraporumapedra.Dessemodo chegou a um ponto de onde pôde observar à vontade os avejões.Grandes,sim,enormes,ecordebronze.Estavamcalmos,vogandoserenosna superfície turva do lago.Minutos antes haviam apanhado e devoradotodaumafamíliadeviajantesdescuidosos.Hérculesescolheuumasetadepontabemaguçada,firmou-anacordado

arcoeretesou-seaomáximo.Fezpontariaezas!...A flechaassobiounumsilvodeserpenteefoibateremplenopeitodaavemaispróxima.

—Blen!...Ochoqueproduziuumsomdesinodebronze,masnadadasetacravar-

senoalvo;desviou-separaadireitae láadianteafundounaágua.Aquelesomdesinofoiumtoquederebate.Todasasavesoouviramearrepiaram-se;mas como não descobrissem onde estava o imprudente caçador, nãohouvenenhumarremessodepenasdebronze.Limitaram-seapermaneceralertas,espiandodetodososlados.

Hérculesficouapreensivo.OmensageirodePalasestavacerto.Comasflechas não poderia vencer os avejões, nem tampouco os venceria com asuapoderosaclava.Comoentraremsemelhantepântanocomaclavaempunho?Atolar-se-iaeasavesodevorariamvivo.MelhoraceitaroconselhodeMinervino—edeliberouiresperá-lonoacampamento.

Hércules afastou-se do pântano com asmesmas cautelas com que sehavia aproximado; e como ao lado dos esqueletos dos caçadoresmortosvissemuitaspenasdebronze, apanhouumadasmenorespara levá-ladepresenteàEmília.

Ao chegar ao acampamento encontrou o centauro assando os trêscarneiros de todos os dias, com os outros sentados por ali em redor dofogo.Pedrinhoergueu-se.

—Eentão,Hércules?Queresolveu?—perguntouomenino.Oheróiemitiuumsuspiro.—Nadaainda.Verifiqueiumpontobemaborrecido:minhassetasnão

varamaspenasdebronzedostaisavejões.Batemnelas,arrancamumsomdesinoericocheteiam.Ecomotambémnadapossofazercomaclava,nãosei...

— Bem disse o mensageiro que era um Trabalho muito difícil! —lembrou Emília.—Agora o que Lelé tem a fazer é esperar pela volta deMinervino.

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II-Amor,Amor...

Ninguémtinhaamenoridéiadequantotempoteriamdeesperaralinosarredores de Estinfale. Podia ser uma hora, podiam ser vários dias.Pedrinho deliberoumontar um acampamento como o deMicenas e paraisso saiu em Meioameio para a escolha do sítio mais adequado. Breveencontrouumbemajeitadinho,comribeirãodeáguascristalinas, florestapróximaecarneirosaolonge.AArcádiaeratodaumcarneiral.

Asúnicaspessoasporaliexistenteserampastoresepastoras,algumasbem jovens e bonitas. Depois de instalado o acampamento, volta emeiasurgiam pastorinhas curiosas que vinham espiá-los, a princípio muitomedrosas,depoisacamaradadas.

Issodeuemresultadoumacoisade todo imprevisível eprodigiosa.OVisconde,cujocarátermudaramuitodepoisdafervura,começouasentirlápor dentro umas comichões estranhas. De vez em quando suspirava,reviravaosolhos.EmíliadesconfiouefoidizeraPedrinho:

—Estámeparecendoumacoisa:oViscondeestáamando!...—Quê?— Amando, sim. Cada vez que aparece por aqui aquela graciosa

pastorinhadenomeClimene,ele fica todoatrapalhado,comoquemsenteumacoisaquenãosabeoqueé.Paramimtrata-sedeamor...

—Impossível,Emília!Nuncahouvemilhoqueamasse...— Também nunca houve milho que falasse e soubesse ciência, e o

Visconde fala e sabe ciência. Ele "mudou", exatamente como eu mudei.MudouporefeitodafervuradeMedéia.

Pedrinhopôs-seacismarnaquiloeaobservaroVisconde.LogodepoisapareceuClimene,umagarotadedezanos,comumlindo

presentedequeijoeazeitonas.Ogostodessapastorinhaeracontarcoisasali da Arcádia e indagar de como era a vida no mundo moderno. AshistóriasdosítiodeDonaBenta,queEmílianarrou,andavamalheviraracabeça.

Que linda menina a Climene! Pele dum lindo moreno claro e perfilperfeitamentegrego,comoclássiconarizemlinhareta.Emílialembrou-sedaquelaescravaAglaéládacasadePéricles.Omesmotipo,omesmomododefalareatéasmesmascuriosidades.Seumaiorprazereramontarcomosoutrosnocentaurinhoparagalopadaspeloscampos.

AssimqueaClimeneapareceucomoqueijoeasazeitonasoViscondecorou. Pedrinho pôs-se a observá-lo disfarçadamente. Sim, o Visconde

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"ficava outro" perto da pastorinha. Se ia falar, engasgava. Se ia andar,tropeçava. E não tirava os olhos dela. Em certo momento afastou-se dogrupo, e foi colher um buquezinho de flores silvestres, muitodesajeitadamente,queveioofereceràmenina.

Climene foi o primeiro amor do Visconde de Sabugosa—primeiro eúltimo. Nunca mais a tirou do coração. Tudo lhe eram pretextos paraprocurá-la, para ensinar-lhe coisas de ciência. E não cessava com ospresentinhos. Climene acabou notando aquela assiduidade e disse-o àEmília.

—Porqueéqueeletantomeolhaelidacomigo?Emíliariu-se.—Ah,Climene!OViscondeeraumacoisaantesdáfervuraeestámuito

diferenteagora—econtouocasodapassagemdoViscondepelacaldeiradeMedéia.Atéaqueledia,eraumsábiocomooutroqualquer.Sócuidavadeciência.Masderepenteenlouqueceu,eentãonósolevamosaopaláciodagrande feiticeiraparaumaboa fervurano caldeirãomágico.Dovaporque saiu, a famosa Medéia fez um viscondinho novo, muito diverso doprimeiro.Elehojeaindagostadeciênciaesabecoisas—masaciência jánão é tudo para ele, comono começo. E isso, sabe por quê? Porque estáamando.

—Amando?—repetiuameninamuitoadmirada.—Sim.Estáperdidinhodeamorporvocê...Climene abriu a boca. Eramuito criança ainda e nada sabia do amor.

Emíliatevedeexplicar-lhetudo.—Equedevofazer?—perguntouClimene.—Oh,devecorresponderaoamordoVisconde.Quandoelepiscar,você

piscatambém—eexplicou-lheo"pisco"donamoro.Equandoelesuspirar,você também suspira. E se ele revirar os olhos, você também revira osolhos.

—Equandomederumbuquezinhodeflor?—Vocêbeijaasfloreseprende-asnovestido.Tambémpode,devezem

quando,dar-lheumaflor...OnamorodoViscondetornou-seodivertimentodeEmíliaePedrinho

durante horas de espera ali no "camping" de Estinfale. Até Hérculespercebeuojogoeencantou-se.

Hérculesestavacomeçandoaficarseriamenteapreensivo.Trêsdiasjáse tinham passado e nada de Minervíno aparecer. Uma idéia lhe veio àcabeça.Chamouooficialdegabineteedisse:

—Estoucommedodumacoisa:queHeratenhadescobertoafunçãode

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Minervinoeestejaaatrapalhá-lo.Lembre-secomoelenosapareciatãodeprontonasviagensanteriores—eagora,nada justamenteagoraquenosprometeuvir.Receioquelhetenhaacontecidoalgumacoisa.

O herói estava certo. Os repetidos aparecimentos de Minervino noOlimpo fizeramqueHera desconfiasse. Ele aparecia por lá e ficava peloscantosaoscochichoscomPalas,aprotetoradeHércules.EtantasHerafez,queafinaldescobriuafunçãodaquelehomem:eraoleva-e-trazdePalas,oseumensageirosecreto.

—Hum!—rosnouavingativadeusa.—Esperaquetecuro—echamouHermes.—Escuteaqui.Palasanda

tramandocoisascontramim,para favorecerHércules.Viveaoscochichoscomaquelemensageirolá—eapontouparaMinervino.—Queroquevocêviremoscaepousepertodelesparaouviroqueconversam.

Hermes assim fez. Viroumosca e foi pousar no ombro deMinervino,naquelemomentomuitoentretidocomPalas.—Elejáestálá?—haviaperguntadoadeusa.(EleeraHércules.)—Deveestar—respondeuMinervino.—Separamo-nosemMicenas,

depoisqueEuristeuoencarregoudedestruirosavejõesdoLagoEstinfale.Eu,porém,aconselhei-oairparaacidadedessenomeeanadafazerantesde receber instruções minhas — e cá estou para receber as ordens dagrandePalas.Aquelasavessãoindestrutíveispelosmeioscomunsflechaseclava—por causa das penas de bronze que as revestem. SeHércules asataca,ei-loperdido.Nestemomento jádeveoheróiestaracampandonosarredoresdeEstinfale,àminhaespera.

Palasficoumomentosarefletir.Depoisdisse:—Sim,semaminhaajudaHérculesnadaconseguirá.Aquelasavesde

bronze são um estratagema de Hera, que as pôs naquele pântanojustamentecomoarmadilhaparaHércules.Masandocácomumaidéia.SoudonadaquelescímbaloscomqueHefaistosmepresenteou.

Osomdobronzedessescímbalosétãoterrívelquenãoháouvidosqueo suportem. Vou mandar meus címbalos para Hércules. Ele que seaproximedolagoevibre-oscomtodaaforça.Asaves,atordoadas,fugirãopara longe, porque nem sequer as aves de penas de bronze suportam avibraçãodoscímbalosdeHefaistos.

Disse e foi buscá-los. Embrulhou-os num pedaço de nuvem edisfarçadamenteentregou-osaomensageiro.Minervinopartiu.

A mosca sentada em seu ombro imediatamente voou e, depois deassumiraformadeHermes,apressou-seemcontartudoàvingativaesposadeZeus.

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—Hércules sóusarádesses címbalos seeudeixarde seradeusadasdeusasrosnouHera—Vácolocar-seàportadoOlimpo,Hermes.Quandoomensageiroaparecer,arremesse-omontanhaabaixo,demodoqueroleporentre aspedras e sedespedace.Ah, Palas!Tunão sabes comquemestáslidando...

Hermescumpriufielmenteasinstruçõesrecebidas.Correuacolocar-sena porta do Olimpo, e quando Minervino apareceu, com os címbalos,arremessou-omorro abaixo com um grande tranco. O pobremensageiroroloupelaescarpadaencostadoMonteOlimpo,dandodepedraempedraefazendo-seemmilpedaços.

MasPalas, espertíssimaqueera,percebeuamanobraeacudiu-odummodo curioso: fazendo que os seus pedaços fossem cair bem dentro dacaldeira de Medéia. A grande feiticeira, que estava a ferver um novopicadinhohumano,levousustonomomentodecondensarosvapores.Emvez de um "rejuvenescido", apareceram dois — o que lhe haviamencomendadoeumnovo,totalmenteimprevisto.

—Quemévocê?—perguntouMedéiaaMinervino,quevoltaraàvidanovoemfolha,jovemecorado—eaosaberdetudoafeiticeiraalegrou-se.ElaeraamigadeHércules,aoqualjásalvaradaloucuraequeestavaalhedeverorejuvenescimentodo"escudeiro."

Minervino, ainda tonto da fervura, pegou os címbalos de Palas, alicaídosaopédacaldeira,eencaminhou-seatodapressaparaEstinfale.Foiencontraroherói aopédobraseiro, comendoo assadode todososdias.QuemprimeirooavistoufoiEmília.

—Lávemum lindomoço!—disseela, aovê-loaparecer lá longe.—Quemserá?—Todosolharam.Sim,ummoçodebelaaparência, comumembrulhodebaixodobraço.Ninguémalioconhecia.

Minervinoaproximou-seedisse:—Pronto,Hércules.Aquiestou,conformeprometi.Oheróinãoentendeu.—Quemévocê?—Nãomeconhecemais,Hércules?Nãoconhecemaisomensageirode

Palas?Todosriram-se.—OmensageirodePalaséumvelho—disseoherói.—Vocêémoço.— Fui velho — explicou Minervino mas o caldeirão de Medéia me

rejuvenesceu—econtoutodaahistória.Depoisparadocumentarassuaspalavras,desembrulhouoscímbaloseentregou-osaHércules.

—Aquitem—disseele—osprodigiososcímbaloscomqueHefaistos,

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odeusdofogoedosmetais,presenteouminhadeusaPalas.ElaosofereceaHérculescomooúnicomeiodeafugentarasavesdepenasdebronze.

—Como?—indagouoherói,semnadacompreender.— Se estes címbalos forem vibrados à beira do Estinfale, as aves de

bronze,atordoadas,abandonarãoopântanoesesumirãoparasemprenoespaço.

Pedrinho aproximou-se para ver o instrumento. Era um triângulo deferro com uma série de campainhas do mais sonoro bronze que aindahouvenomundo.Hefaistos,quetinhaosegredodetodososmetais,jamaisfundiraumtãopoderosocomoaquele—ejustamenteporissooofereceraa Palas, a sua grande amiga do Olimpo. Emília teve a má idéia deexperimentarosomdumadascampainhasenelabateucomumalascadePedra. Apesar da pancadinha ter sido na realidade insiguificante, o somproduzido deixou-os completamente atordoados por mais de uma hora,coma impressãodehaveremensurdecido. Imaginem-seoefeitode todasaquelas campainhas tocadas ao mesmo tempo pela força hercúlea dograndeherói!

—QueméHefaistos?—quissaberEmília—eomensageirodePalasexplicou.

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III-OEsparramodasAves

—Hefaistos,menininha,éumdosfilhosdeZeuseHera.Comonascessemuitofeio,suamãe,furiosa,arremessou-odoOlimpoabaixo.

—Quepeste!—exclamouEmíliamasbateunaboca,comoquemretiraaexpressão.—Istoé,quedanada...

— Sim, Hera horrorizou-se com aquele filho e arrojou-o do Olimpoabaixo,bememcimadaIlhadeLemnos,ondehaviaumvulcão.LácresceuHefaistosevirouferreiroequeferreiro!...Umferreirocomonuncahouveoutronomundo,cujaforjaeraovulcão.

OViscondecochichouparaClimenequeaquele ferreiroeraconhecidonomundomodernoporVulcano.Minervinoprosseguiu:

— Nessa forja gigantesca ficou ele a trabalhar os metais —todos osmetais,inclusiveobronzemaravilhosocomquefezestescímbalos.EeraaHefaistos que Zeus encomendava os seus raios. Periodicamente o divinoferreirogalgavaamontanhadoOlimpopara levaraZeusnovos feixesderaios e consertar os que entortavam. Construiu suas oficinas dentro daterra,juntoaovulcão,elátrabalhavacomosCiclopes,osgigantesdeumsóolhonomeiodatesta.TodasasafamadaspeçasdemetaldanossagrandeGrécia têmsido fabricadaspor ele. Foi elequem fezo tronoeo cetrodeZeus.FoiquemfezocarrodeHélios...

OViscondeexplicouaClimenequeHélioseraococheiroqueconduziaocarrodosol.

—...oescudodeAquiles,etantascoisasmais.Comofossemuitofeioecoxo,atítulodecompensaçãodeu-lheZeuscomoesposaAfrodite,adeusadaformosurasuprema.

OVisconde cochichouparaClimenequeAfrodite era amesmaVênus,mãedeErosouCupido.

—Mas— continuouMinervino— em trabalho nenhumHefaistos seaprimorou tanto comona têmperadobronzedestes címbalos—e vocêsacabamdeterprova.ComapancadinhaqueEmíliadeunumdeles,quaseficamostodoscomostímpanosarrebentados.

—MasporquecargasdáguaesseHefaistosfezsemelhantepresenteaPalas?—quissaberPedrinho.

—Ah,porquenãohádeusaqueHefaistosmaisqueira,vistocomoveioaomundojustamenteporintermédiodêle.

—Como?—Certa ocasião fora Zeus assaltado por umador de cabeça horrível.

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Remédio nenhum a aliviava. Por fim, levado pelo desespero, mandouchamar Hefaistos lá na Ilha de Lemnos. "Que desejas demim, Zeus?"—perguntou o ferreiro."Quero que me fendas o crânio com um golpe demalho, porque já não suporto a imensidão desta dor." Hefaistos nãodiscutiu; ergueuomalhoedesfechou sobrea cabeçadodeusdosdeusesumgolpetremendo,talodeHérculesnocrâniodojavali.

—EosmiolosdeZeussaltaramlonge...—disseEmília.— Não. Da cabeça de Zeus não saíramos miolos; saiu Palas Atena,

armadinha de escudo e lança. Daí a ligação entre Hefaistos e a minhagrandedeusa.

Minervino ainda contou muita coisa do ferreiro coxo, enquanto iamastigandoonacodecarneassadaquePedrinholhedera.

—Bom—disseHérculesdepoisdefindaahistória.—Tenhodecuidardaminhamissão.Vouaolagoatordoarasavescomestescímbalos.Fiquemvocêsaquietapemomaisquepuderemosouvidos.

— Com quê? — indagou Emília. — Se houvesse uns chumaços dealgodão...

Nãohaviaalgodão,masnaflorestaabundavammusgos.Meioameiosaiuno galope embusca dum sortimento. Todos atafulharamos ouvidos commusgo. Hércules fez o mesmo e lá se foi de rumo ao pântano, com oscímbalosdebaixodobraço.Emíliatrepouàárvoremaisaltadetodasparaespiaracenadelonge,e

ládecimafoidescrevendoaosoutrosasperipéciasdafaçanha.Pareciaumspeakerderádioadarcontadumjogodefutebol.

—Lávaiindoele!...Firme,garboso,lindo...QueamordeatletaéonossoLelé!...Jáchegouàbeiradolago.Estácorrendoosolhospelasaves,comoadespedir-sedelas...Asavesjáoviram.Começamaarrepiar-se...

Nessemomento um som terrível encheu os ares. Apesar de terem osouvidos tapados e estarem tão longe, todos se sentiram completamentesurdos. Emília lá do alto continuava a gritar embora ninguém mais aouvisse.

— Começou!... Está sacudindo os címbalos com uma força tremenda.Parecequeagentevêosomespirrardobronze...Asavesestãoaflitas...Nãocompreendem o que há. Estão tapando com toda a força os ouvidos...Inútil... O som dos címbalos vara qualquer obstáculo... Agora as avescomeçaram a pererecar como doidas... Sim... Parecem baratas em dia dechuva, quê não sabem se corremou voam... Algumas já estão voando... Eoutras...Eoutras...Eagoratodas...Todas,sim!...Todaslevantaramvôoelávão subindo para as nuvens... Vão ficando pequeninas... Pontos no

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espaço...pronto!Desapareceram.Hérculeshaviaparadodevibraroscímbalos.—Vamosaoseuencontro!—gritouPedrinho.—Onossograndeherói

acabaderealizarmaravilhosamenteoseuSextoTrabalho.Foram-lhe ao encontro, ainda com osouvidos surdos e uma zoada lá

dentro.Acharam-nocaídoporterra,comomorto.Pedrinhosacudiu-o:— Hércules! Hércules!... Que há, amigo Hércules? — e o herói nada,

mudocomoumpeixe.—Seráquefoiferidoporalgumapena?—sugeriuEmília,masoexame

feitonãoreveloucoisanenhuma.—Ele está em "estado de choque" por causa da violência do som—

disseoVisconde.—Temosdedeixá-loemrepousoporumaouduashoras.Mas não foi assim. Só no dia seguinte Hércules voltou a si daquele

"estadode choque" causadopela violênciado somdos címbalosdePalasAtena.Masficoucomoseacabassedesairdeumpesadelo.

Pedrinhotomouoscímbaloseembrulhou-osmuitobemnopedaçodenuvem, dizendo: "Se isto fica a descoberto, de repente recebe umapancadinhaporacasoenospõenovamentesurdos."

Eomensageiro?Sumira-semisteriosamente.O som dos címbalos não os atordoara apenas a eles ali nas

proximidadesdopântano.Alcançaratambémacidade.Não houve por lá quem não ensurdecesse. Mas depois de

completamenterestauradaanormalidadedostímpanos,nãohouvequemnão corresse a visitar asmargens do lago. Que desolação!... Esqueletos emais esqueletos, de gente comida pelas aves antropófagas. E umaquantidadedepenasdebronzepelochão!Cadaquallevouumaparacasa,comolembrança.

Minervino havia partido para o Olimpo e lá estava a cochichar comPalasnumcanto.

— Ah, deusa! Nunca vi trabalhomais bem feito. Assim que Hérculescomeçou a sacudir os címbalos, o som "foi demais"; as aves entraram aagitar-secomoquetomadasdesúbitaloucura.Eforamlevantandoovôoetodassesumiramnoespaço.

—Paraondeiriam?—Afastaram-serumosul.Comcerteza,paraosfundõesdaÁfrica.DepoiscontouotrancoqueHermeslhehaviadadoedecomocaírabem

dentrodacaldeiradeMedéia...

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—Sei, sei—dissePalas.—Vi tudoe foiporagênciaminhaquevocêcaiuemtalcaldeira.MaisumavezsaiuHeraderrotada.

AalegriadapopulaçãodeEstinfalefoiimensa.Estavamlivresdamaiordas calamidades. Houve festas em honra do grande herói e seus amigos.Climene não largava mais do bando, cada vez mais cortejada peloVisconde... e também por Pedrinho. Ah, que cena melancólica foi a da"desilusão do Visconde", quando percebeu que tinha um rival e era esserivalorealmentegostadoporClimene!ApastorinhacorrespondiaaoamordoViscondeporbrincadeira.Gostarmesmodeverdade,sódePedrinho.

QuandoHérculesfalouempartir,houveresistências.—Porquetãocedo?—disseomenino.—Étãosimpáticaestacidade

deEstinfale...O Visconde suspirou e falou em ficarmais uns dias para "estudos do

dialetogregofaladoali"—eatéClimenepuxoubrasaparaasuasardinha.—Eseasavesvoltarem?—disseela.—Eu,se fosseHércules, ficava

poraquiaindaalgumtempo—porprevenção...Dedódostrês,oheróiretardouavoltapormaistrêsdias.Porfimdisse:—Chegadenamoros.TocaparaMicenas.Houve despedidas comoventes. Abraços. E por instigação da Emília o

ViscondedeuumbeijinhoemClimeneoprimeiroeúltimodesuavida...

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IV-AVolta

A viagem de volta correu sem novidades. Como Emília mostrasseinteresseemconheceravidadoheróidesdeoscomeços,oViscondetomouapalavra.

— Estive ontem conversando sobre o assunto com o mensageiro dePalas,epossocontaroqueouvi.

—Poisconte.ComofoionascimentodeHércules?OViscondecuspiuopigarrinhoecomeçou:— A mãe de Hércules era a mulher de maior beleza de seu tempo.

Chamava-se Alcmena. Um dia deu à luz duas crianças gêmeas: Íficlo eAlcides,que foioprimeironomedonossoherói.Mas Junodesconfioudaalegria de seu divino esposo. Aquele Ínteresse de Zeus pelos gêmeoscausou-lheciúmes—eapartirdalientrouapersegui-los.Aprimeiracoisaquefezfoidarordemaduashorríveisserpentesdeescamasazuisparaquefossemaoberçodascriançaseasdevorassem.

—JunoouHera?—interrompeuEmília.—Hera é amesma Juno. Eu prefiro dizer Juno porque o nome Hera

confunde-secomoverbo"era"eàsvezesatrapalhaahistória.Osmeninosestavam no melhor dos sonos quando as serpentes se insinuaram noquarto, comosolhosvermelhosde fogoeas línguasde fora.Aescuridãoeracompleta;ninguémpodiavê-las.Comosalvarasduascrianças?Masláno Olimpo, Zeus descobre a maldade de Juno e faz que uma claridadeintensailumineoquarto.Osgêmeosacordamofuscadospelaluz—edãocomascobras!...

—Imaginemosustodoscoitadinhos!—exclamouEmília.—Edepois?—Íficlo foioquedespertouprimeiro.Dáumgritodepavore fogena

disparada.SóentãoAlcidesacordou.Acordoumasnãofugiu,porqueoseudestinoeranãofugirdeperigonenhum.

Em vez de fugir, agarra nas duas serpentes pelo pescoço e começaasfixiá-las como fez ao Leão da Neméia. As serpentes enrolaram-se nele,tomadasdehorríveisconvulsões,massuasmãosnãoafrouxavamoaperto,demodoqueelasnãotiveramoutroremédiosenãomorrer.

—Bravos!Bravos!...—berrouEmília.—Umfilhinhoassimatéeuqueriater.EatalAlcmena,mãedeles?Não

feznada?— Alcmena dormia num quarto próximo. Ao ouvir o grito de Íficlo,

despertouseuesposoAnfitriãoemaisgentedopalácio.Corremtodospara

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oquartodascrianças—e ládãocomaquelequadrohorrível:opequenoAlcides agarrado ao pescoço das duas serpentes, uma em cada mão!Alcmenasoltaumgritodehorror,masopequenoAlcidessorrielança-lheaospésasduasserpentesmortas...

—QuegostoparaAlcmena,terumfilhinhoassim!...Edepois?—DepoisAlcmenafoiconsultarumgrandeadivinhodaquelestempos,

o famoso Tirésias, para que lhe tirasse a sorte do menino. Tirésiasconcentrou-seefalouquenemoOráculodeDelfos:

"Vossofilhovai tornar-seumherói invencíveleacabarátransformadonuma das constelações do céu, mas isso depois de haver cá na terradestroçadoosmonstrosmaistremendosesobrepujadoosguerreirosmaistemíveis. O Destino lhe impõe Doze Trabalhos de grande vulto. Por fimmorrerá devorado pelo fogo de Nesso — e então sua alma irá vivernoOlimpo.

—Etudosaiucertinho?— Sim. Tirésias não se parecia com as tiradeiras de sorte do nosso

mundo moderno, que erram muito mais do que acertam. Tudo quantodeclarou se cumpriu fielmente. Depois da leitura da sorte do menino,Alcmena sossegou e tratou de criá-lo damelhormaneira. A educação deAlcides foi orientada por Linos, filho de Apolo, o qual lhe ensinou asciênciaseasletras.

Emília fez focinho irônico e disse que não dava nada por aqueleprofessor,vistocomoHércules,emmatériadeciênciaseletras,valiamenosqueumsabugocientífico.OViscondeexplicou:—Équeasciênciasensinadasnãoeramasdonossomundomodernoe

simasciênciasdaluta,ouaartedaluta,porquealutaémaisartedoqueciência.Ensinou-lhe todosos truquesdosgrandes lutadores, as rasteiras,como aplicar um bom swing no queixo do adversário, como fazer todasessascoisasdequePedrinhotantogosta.Tambémlheensinouamanejaraclavaeanãoerrarumsóflechaço.Eensinou-lheagovernaroscarrosdecorrida,aenristaralança,adefender-secomoescudo,aatacaroinimigoelivrar-sedeseusgolpes,aorganizarumexército.Nãohouveoquelhenãoensinasse.

—Apostoquehouve!—disseEmília.—Apostoquenãolheensinoualereescrever.

— A leitura e a escrita de pouco adiantam aos heróis. Em geral sãoanalfabetos. Com eles é ali no muque e na agilidade, só. E assim se foiformandoAlcides,demodoanãodeixaremmáposiçãoograndeTirésiasquelheleuofuturo.Umpoetagrego,denomeTeócrito,contanumdosseus

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poemasqueacamadeAlcidesmeninoeraumapelede leão,equedesdemuitonovoalimentava-sede carneassada, emvezde sopasdepão, leitecondensadoeoutrasdelicadezasmodernas.Ejáentãocomiamaisqueumcarregador.

—Hoje,trêscarneiroséaconta—disseEmília.—Nãofazpormenos.Naquelediaemquesócomeudois,atétivedódele.Quefometevedenoite!

OViscondecontinuou:—Masasuatremendaenergiatinhadecausardesastres—edaitantas

mortes ou homicídios que lhe enchem a história. Tornou-se um grandematadordegenteebichos—esabemquemfoiasuaprimeiravitima?

—Quem?—OseuprópriomestreLinos...—Bemfeito!—exclamouEmília.—Quemomandouensinar-lhetanta

"ciência"?EporquematouLinos?—Ocasofoiassim.QuerendoLinoscertavezavaliarosprogressosdo

discípulo,pediu-lhequeescolhesseomelhor livrodumaestante cheiadeverdadeiras obras-primas das letras gregas. E vai Alcides e escolhe oManual do Perfeito Cozinheiro dum tal Simão. Linos, danado, passou-lheumadescompostura.EojovemAlcides,perdendoacabeça,pegoudeumacitara,queestavaaoalcancedesuamão,eaplicouemLinosumdosgolpesqueessemestrelhehaviaensinado.Matou-o.

—Irra!Quegênio!...—exclamouPedrinho.— Era um crime aquele, dos que as leis punem— e lá vai o nosso

Alcidesparaotribunaldejustiça.Lásedefendeucitandoumacélebre"Leide Radamanto" que não considerava crime o homicídio cometido contraumatacante.Linosoatacara compalavrasviolentas; ele responderacomumacitarada.Foiabsolvido...MasAnfitrião,commedodeoutrasfaçanhascomoaquela,enviouorapazparaoMonteCiteron,aviverentrepastores— e foi lá que o desenvolvimento de Alcides se completou. Em Citeronmatou o primeiro leão — um terrível leão que andava a desbastar osrebanhosdoreidosTéspios.Começanestepontoasuaverdadeiravidadeherói.

— Para mim começou com o asfixiamento das cobras, quando aindaestavanoberço—quisEmília.

—Seja—disseoVisconde.—MasasgrandescoisasdeAlcidesvieramdepoisdamortedesse leão. IndoaTebas, encontrouessa cidadevencidapeloReiErgino,oqualimpôsaostebanosopagamentodumtributoanualdecembois.

Hércules chegou à cidade exatamenteno dia emque os emissários de

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Erginoestavamareclamaroscemboisdoprimeiropagamento.— "Que história de bois é essa?"— foi ele dizendo— e ao saber da

imposiçãodeErgino, agarrou os emissários e cortou-lhes os narizes e asorelhas."DigamláaoReiErginoqueoscemboissãoestesnarizeseestasorelhascortadas."OfensamaisgravenãoerapossíveleErginolevantouumexército para atacar os tebanos. A grande força desse exército estava nacavalaria, mas o nosso herói, à frente dos tebanos, usou dum recurso:forrou de enormes pedras a única passagem entre montanhas por ondepoderiamentraroscavalarianos.IssoatrapalhougrandementeoataquedeErgino,oqualfoibatidoemorreunaluta.Ostebanos,então,impuseramaoreino de Ergino o pagamento dum tributo de duzentos bois. Graças aHércules a situação invertera-se. Muito gratos da sua preciosa ajuda, ostebanos consagraram ao herói vários templos e lhe erigiram diversasestátuas.Umadelas,HéraclesRinokloustes,ou"oquecortanarizes";eoutradedicada a HéraclesHipodetes, ou "o que barra os cavalos." E ainda porcimaoreideTebasconcedeu-lheamãodesuafilhaMégara.

—Sei,sei!—exclamouPedrinho.Amesmaqueelematouduranteoseuperíododeloucura.

—Sim.Mégaradeu-lhetrês filhos,e tudoestavacorrendomuitobem,quandoJuno...

— Ja estava demorando! Juno era dessas que não esquecem nemperdoamnunca.Umaperfeitame...iadizendoEmíliamasengoliuorestodapalavra"megera."EmíliaandavacommedodeJuno.

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V-MaisFaçanhasdeHércules

OViscondecontinuou:— A loucura de Hércules foi um artifício de Juno. A deusa o

enlouqueceradepropósito,paraqueelematasseaesposaeosfilhos—ejávimoscomoissosedeu.EmconseqüênciadessedesastreéqueHérculessecondenouasimesmoaoexílio,indopararnasunhasdeEuristeu.

TudoistocontouoVisconde,bemacomodadonolombodeMeioameio,enquantoseguiamderumoaMicenas.

Hércules, lá atrás, marchava calado, remoendo qualquer idéia. Emílialançou-lheumaolhadelaedisse:"EmqueseráqueLeléestápensando?"

—Apostoquenojantar—respondeuPedrinho,medindocomosolhosaalturadosol.—Jáestamosnahora.

Logo adiante, à beira de um riozinho, detiveram-se para cuidar dosestômagos.

Meioameio saiu no galope para "prear" os carneiros do costume e ospicapauzinhosforamconversarcomoherói.

—Emqueéqueestápensando,Lelé?—perguntouEmília.Hérculesfezcaradequemacordadeumsonho.Ficoudeolhosparados

porunsinstantes.Depoisdisse:— Estava pensando no mais que inventará Hera para me perseguir.

Tenhomedodumacoisa:queapesardaproteçãodeZeusedePalas,Heraacabevencedora.Nãodescansa!Nuncavi ódio igual.Desdeodia emquemateiasduasserpentes, jamaiscessoudeconcebermeiosdedarcabodemim.EháaquelaprevisãodeTirésiasquemepreocupa...

—AtaldatalfogueiradeNesso?— Sim. Não posso compreender o que seja. Fogo — fogueira —

chamas...Dequemodopossomorrerqueimado?Tenhohorroraofogo...—Ah,ofogoémesmoumapeste!—disseEmília.—Certavez,nodia

deS.João,lánosítio,queimeiodedocompólvoraecomodoeu!SóquandotiaNastáciamolhouaqueimaduracomqueroseneéqueadorpassou.

— Pólvora? Querosene? — repetiu Hércules, que pela primeira vezouviataispalavras.

—PedrinhoeoViscondeseaproximaram.— Visconde — disse Emília — conte ao Lelé o que é pólvora e

querosene.OViscondefaloucomoumverdadeirofilósofo.—Apólvora—disseele—foiainvençãoquedeucabodosheróis.Nos

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tempos modernos não pode haver heróis como estes cá da Gréciajustamenteporqueapólvoranãodeixa.A força físicapoucoadianta.Comumtiroatéummeninoderrubaumgigante.

—Tiro?...—Sim.Otiroéumestourodapólvoradentrodumcano—eoVisconde

explicou como pôde o mecanismo do tiro. Falou das espingardas, dosrevólveres,doscanhões,dasbombasaéreastudoartesdapólvora.Maspormais que explicasse, Hércules ficava na mesma e vinha com perguntasdesanimadoras.

—EntãoumleãocomoodaNeméia,ouumahidradenovecabeças,ouumjavalicomoodoErimanto,vocêsláoderrubamcomotaltiro?

—Brincando,Lelé!—gritouEmília.—Atéos rinocerontes e hipopótamosdaÁfrica, que sãodosmaiores

bicharocosqueexistem,umcaçadorqualquerosderrubacomumabalanacabeça.

—Bala?—Balaéamensageiradotiro.Háotiro,queéavozdapólvora;elogo

queotiroestoura,lávaiamensageira"bala"cravar-senoinimigoepronto!Eleestrebuchaemorre...

—Equetamanhotemessamensageira?—Oh,àsvezesébempequenina.ParaabaterumleãodaNeméiaouum

javalidoErimanto,bastaumabalinhadestetamanho—emostrouodedopolegardePedrinho.

Hércules assombrou-se. Não podia conceber semelhante prodígio.Comoumacoisinhatãominúsculapodiadarcabodummonstro?Emíliaria-se.

—Équeessasmensageirasvaramtudoquantoexiste.Varamescudos,varamcouraçasepenetramnocorpodosatirados.

—Hérculessorriue,apontandoparaapeledoLeãodeNeméia,queporserinvulneráveltraziasempreconsigo,perguntou:

—Varaistotambém?—Sevara!...Brincando...—Como,seestapeleéinvulnerável?— Invulnerável hoje, aqui, para setas e lanças. Para uma bala de

carabinaourevólver,étãovulnerávelcomoumfigopodre...EmíliafalouemfigoporqueMeioameiovinhachegandocomumacesta

defigos—equedeliciososestavam!—BonscomoaquelesdacasadePéricles—disseEmíliacomendoum.

—Estáummel.

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—E também arranjei mel— disse o centaurinho apresentando umaânforaquehaviatrazido.—Etambémestasmaçãs...

Foiumafesta.Atéoheróiregalou-se—eaconversarecaiusobrefrutas.PedrinhocontouahistóriadetodasasfrutasdosítiodeDonaBenta—asjabuticabas,asjacas,asameixas,asgrumixamas,aspitangas,ascabeludas...

—Temosláaschamadasfrutastropicais—disseomenino.—AquinaGréciasóháasfrutasdaszonasfriasetemperadas—maçãs,uvas,peras.Etâmaras,Hércules,háporaqui?

HérculescontouquenaGréciasóhaviatâmarasimportadas.— Também lá onde moramos só há tâmaras importadas. Vêm em

latinhas.Hérculesquissaberoqueera"latinha".A dificuldade de conversar com os gregos estava em que eles não

podiamteridéianenhumadascoisasmodernas."Lata", "garrafa", "caixa de fósforo",”cigarro"... Como explicar essas

coisas para quem nunca as viu? Mas de tudo quanto os picapauzinhosdisseramoquemais interessouaoherói foramascarabinaseoscanhõesmodernos.Quandosoubequeumcanhãolançavaumabalaenormíssimaamuitosquilômetrosdedistância,abriuaboca.Emaisaindaquandosoubequeasbalas"estouravamquandocaíam."

— Então — disse ele — daqui deste ponto os guerreiros modernospodemdestruirumacidadecomoMicenas,queficaadezléguas?

—Brincando!—respondeuPedrinho.— Nas lutas do nosso mundo o inimigo recebe balas sem enxergar

quemasatira—efaloudosbombardeiosaéreos.—Ah,quecustofoifazê-locompreenderoqueeraumavião!—Avesdeferro?ComoasdoEstinfale?— Pior, mil vezes pior. São aves enormíssimas que voam a grandes

alturas com velocidades prodigiosas, e lá de cima despejam bombas oubalas de tamanhos incríveis. A cidade de Berlim foi destruída por váriosdiasdechuvadebombas"arrasa-quarteirões."

—Quequerdizerisso?—Querdizerquecadabombaarrasavaumquarteirãointeiro...Hérculesnãoparavadeassombrar-se.Depoisperguntou:—Masentãoavidalánotalmundomodernoéumhorror.Sechovem

sobreascidadesbombasdocéu,comosearranjamasmulheresecrianças?—Vãotodasparaobeleléu.Ficamreduzidasafarelo.Aquia lutaésó

contraosmonstrosououtrosguerreiros.Jáafúriadasbalasnãodistingue:

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pega o que encontra. O grande brinquedo dos nossos temposmodernosconsiste emdestruir, destruir, destruir. Cidades inteirasdesaparecememhoras.Populaçõesinteirassãoestraçalhadas.PorissoéquenósgostamostantodaGrécia,tãobonita,cheiadeheróisquesóatacammonstros,cheiade deuses amáveis, de pastores e pastorinhas, de ninfas nos bosques, denáiadesnaságuas,defaunosesátirosnoscampos.

PedrinhoconfirmouaspalavrasdaEmília.—Sim,meucaroHércules.ParanósmodernosestaGréciaétãobonita

quepormeugostoeumemudavaparacá.ComovovógostoudaAtenasdotempo de Péricles! Até hoje ela suspira quando se lembra da semanapassadalá.HouveumapanatenéiaemqueNarizinhotomouparte—evovótambém,metidanumvestidovelhodeDonaAspásia...Pormim,eunãosaíanuncamaisdaqui.AchoaGréciaoencantodosencantos.Umsuco!

Hérculesrecaiuemcismasdeolhoparado...O jantar daquele dia foi o melhor de todos. Além dos assados do

costume,tiveramumaesplêndidasobremesa.DepoisoassuntocaiusobreaaventuradetiaNastáciacomoMinotauronaIlhadeCreta. Isso fezqueoheróisereferisseaoqueandavacorrendonabocadopovo.

— Fala-se muito num touro enfurecido que anda por lá a fazer osmaioresestragos.Meureceioéquedepoisdestemeutrabalho,Euristeumemandedarcabodessetouro...

— "Receio", Hércules? — exclamou Emília. — Pois então Hérculesreceiaalgumacoisa?

Oheróiexplicouquesetratavadum"tourolouco",eeletinhamedodosloucos.

— Depois do meu período de demência, fiquei com um verdadeirohorroràloucura.Agentenuncasabecomoumloucovaiagir.Osloucosmedesnorteiam e me causam uma sensação muito desagradável deinsegurança...

—Comosbêbadostambéméassim—dissePedrinho.—Éoquevovóvivedizendo.Eporfalarembêbado,Hércules,seráverdadeoquecontamdodeusBaco?Quevivebêbado?Lánonossomundomodernochamamosaosbêbados"devotosdeBaco..."

QuemcontouaospicapauzinhosahistóriadeBaconão foiHércules,esim o mensageiro de Palas, que inopinadamente reapareceu naquelemomento.

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VI-Dionisos

AntesdeMinervinotomarapalavra,oViscondeexplicouquenaGrécianuncahouvenenhumBaco.Essenomeéromano.

NaGréciahouveDionisos, quemais tardeos romanos transformaramemBaco.

—Quehistóriaéessa—observouEmília—dostaisromanosmudaremonomedetodososdeusesgregos?

—Ah,depoisqueosromanosdominarameconquistaramaGrécia,elesreformaramtudoeforammudandoosnomes.DionisosvirouBaco.

Minervino, que não sabia nada disso, por serem coisas do futuro,admirou-semuito.DepoiscontouahistóriadeDionisos.

—Essedeus—disseele—éfilhodeZeusedeSemele,aqualveioamorrer fulminada meses antes que ele nascesse. Zeus então tomou omeninoecolocou-odentrodesuaprópriacoxa,ondeodeixou ficaratéodiamarcadoparaonascimento.

—Quecoisa!—exclamouEmília.EssestaisdeusesdoOlimponascemdetodososjeitos.PalasbrotoudacabeçadeZeus.AgoraesteDionisossaide sua coxa... Isto me faz lembrar a cartola daquele prestidigitador queapareceu lánavilanocircodecavalinhos.Nãohaviaoquenãosaíssedesuacartola:marrecos,pombos,coelhos...

Minervinocontinuou:— Assim nasceu Dionisos e foi educado pelas ninfas de Nisa. Mas

educadoàssoltaspelomundocomoumverdadeiroselvagem.Quevidaasua!Maispareciaumheróiqueumdeus.Visitoumuitosreis, fez-seamarpor Ariadne na Ilha de Naxos, tomou parte na famosa guerra entre osdeuses eos gigantes, comandouumaexpediçãoà Índia.Tinhanomesemquantidade: Nísio, Brômio, Ditirambo, Evio, Baco, Zagreu, Sabázio... Eandava seguido duma alegre comitiva de sátiros, faunos, ménades,bacantes,silenoseatédodeusPã.

—Quepândegonãodeviaser!—comentouEmília.—Enãofoioinventordovinho?—Indiretamente—respondeuMinervino—porqueauvaéatribuídaa

ele. Vinho não passa de caldo de uva fermentado. Daí o ter-se tornado odeusmais popular de todos, o deus das alegres festas em que hámuitovinhoetodosficamdecabeçatonta...

Estas histórias iam sendo contadas durante a marcha para Micenas.MinervinoseguiaaoladodeMeioameio,demodoapoderconversarcomos

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picapauzinhos enquanto caminhavam. E ainda estava ele a falar deDionisos,quandochegaramaumaaldeiaemfestas, justamenteumafestadionisíaca,istoé,commuitadançaalegreemuitovinhomaisalegreainda.Hérculesdeuordemdealto.SeriacuriosomostraraospicapauzinhoscomoeraumafestapopularnaArcádia.

Napraçaprincipaldaaldeiatodoopovoestavareunidoparaassistiraodesfiledumaprocissãocômica.Nafrentevinhaumbodeenfeitadodeflôrese coroas; a seguir dançarinos emúsicos tocando flautas e citaras. E unscantavamepulavam.Ehaviaosquegritavamcomoquetomadosdedelírio.Depois a procissão parou diante dum tablado tôsco onde estava sendolevada uma representação teatral muito cômica. Mas tudo no maiorentusiasmo.

Minervinoiaexplicando:—Eisaalegriadionisíaca.Háumacontaminaçãogeral.Todosvibram

dealegria.Sãoasfestasdequeopovocomumgostamais.Pedrinhoobservouqueaquilodeviaseraorigemdocarnavalmoderno,

edeuaMinervinoumaidéiadocarnavalmoderno.—MasláodeusdocarnavalnãoéDionisos,esimMomo.Osdevotosde

Momoregalam-se,pulamedivertem-secomoaqui,excitadospeloálcoolepelo “ar”. Fantasiam-se de todos os jeitos, com máscaras no rosto e asvestes mais extravagantes. Estou vendo que as coisas do mundo sãoeternamenteasmesmas;sómudamdenome.

O Visconde assanhou-se e resolveu tomar parte na representação.Galgandootablado,pôs-setambémapular,dançarecantar.Ecomotodosachassemmuitagraçanaquelaesquisitíssimaaranhadecartola,tornou-seoheróidafesta.Depoisderam-lheumgoledevinho.OViscondebebeudeum trago— e começou a "exceder-se". Fez coisas dematar de vergonhaDonaBentaetiaNastácia,seelassoubessem.

—Quemoviuequemovê!—exclamouPedrinho.—OnossoVisconde,que era tão grave e sisudo, está agora um perfeitomalandro. Até bebe...Imagineselhepegaovícioedáempaud'água

—AssimquechegarmosaosítiotemosdefazertiaNastáciareformaroVisconde — disse Emília. — Este está cafajéstico demais. O bom era oantigo...

Hérculesgostavadevinhoequasebebeutambém.Emílianãodeixou.—Nada, Lelé! Você comvinhona cabeçaháde tornar-se a peste das

pestes.Écapazdefazerasmaioresloucurasedarcabodetodaestapobregente.Nãoqueroquebeba!

Hérculessuspirou.

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Comojáfossetarde,resolveramdormirnaquelaaldeia.Nodiaseguinte,antesqueapopulaçãosaíssedacama,jáestavamdenovoacaminho.

—Estouachandoumardequarta-feiradecinzas—observouPedrinho—econtouaomensageirodePalascomoeramasquartas-feirasdecinzaslánomundomoderno,quandotodagentequetomavapartenasfestasdocarnavalapareciacomcarade ressacaeumgostinhodecabodeguarda-chuvanaboca.

Minervinoaindacontoumuitacoisadasfestasdionisíacasedasoutrasfestaspopularesdoshelenos.Naqueletempoaspalavras"Greciaegrego"não existiam. Aquilo ali ainda era a "Hélade", e os seus habitantes sechamavam"helenos."

—Por que é assim?—quis saber a Emília—e foi oVisconde quemexplicou. Apesar da sua ressaca, o sabuguinho ainda estava funcionandomuitobem.

—HouveporaquiumchefedetribodenomeHelen,filhodeDeucaliãoePirra,oqualsefezreidaEtiótida.Porcausadissoseussúditospassarama chamar-se helenos, e estas terras todas da Grécia passaram a serconhecidascomoaHélade,ouopaísdoshelenos.

—Masdondevieramesseshelenos?—quissaberPedrinho.— Diz a história que procediam do Cáucaso, onde a raça é branca e

muitobonita.Emigraramdeláparaaquinotempodospelasgos,queeramumaespéciedeíndiosdaqui,ouhabitantesprimitivos.Comofossemmuitovalentes e inteligentes, os helenos submeteram os pelasgos e sesubstituiramaeles.

—Comoláemnossaterraosportuguêsessesubstituiramaosíndios—cochichouEmíliaparaHércules—aquemandavaensinandomuitacoisadahistóriaamericanaemgeral:Bolívar,Washington,FreiCaneca.

OViscondecontinuou:— Foram os romanos quem mais tarde descobriram esse nome de

Grécia. A mania deles era mudar o nome das coisas, e muitas vezesmudavam para pior, porque Hélade me parece muito mais bonito queGrécia.

A prosa foi logo depois interrompida por um incidenteverdadeiramentemaravilhoso.Emcertoponto,aodobraremumacurvadaestrada, deram com um enormíssimo gigante a gemer sob um pesotremendo. Era Atlas!... Era o gigante Atlas, condenado a sustentar o céusobreosombros...

O espanto dos picapauzinhos não teve limites. Todos ficaram com osolhos tão arregalados que quase lhes caíam das órbitas, e Emília pela

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primeira vez na vida tremeu. Minervino explicou que Atlas era um dosgigantes, ou titãs, que haviam feito guerra aos deuses do Olimpo. Foramvencidos e castigados. A Atlas, Zeus condenou a ficar toda a vidasuportandonosombrosopesodoscéus.

Hérculesaproximou-sedeleeperguntouporquegemiatanto.—Ah,herói!—respondeuogigante—Gemoporqueestouansiosopor

ir roubar umdospomosdo JardimdasHespérides e nãoposso. Se largoisto,océucaisobreaterraeesmaga-a.

Hércules, herói de melhor coração que jamais houve no mundo,apiedou-sedotitãedisse:

—Pois vá embuscadopomodeouroqueeu fico sustentandoo céu.Masnãodemoremuito.

Atlassorriue,passandoocéuparaosombrosdoherói,desapareceu.—Emília ficouassombrada.Apesardesaberda força imensadoLelé,

jamaissupôsquechegasseàqueleponto.Sustentarocéunosombros!...Ecommedodequeelenãoagüentasseecaísseesmagadoaproximou-see:

— Não abuse dessa maneira, Lelé! Largue disso. O condenado asustentarnosombrosocéu foiogigante,nãovocê—masHérculesnadarespondeu:nãopodianemfalar.

Aquilo assustou os picapauzinhos. E se Atlas não voltasse? Ou sequandovoltassejáHérculesestivesseesmagadopelopeso?MasfelizmenteAtlasvoltou.Vinharadiante,comopomodeouronamão.

—Pegueocéudepressa,queLeléjáestásemfala—nãoagüentamais!—gritoulheEmílianamaiorimpaciência.

Atlaspiscouvelhacamente.—Arcaroutravezcomessepeso,euqueconseguilivrar-medele?Ah,

ah,ah...QuemétoloquepeçaaZeusqueomateeaCarontequeocarregue.Emíliaviuascoisasmalparadas.Seaqueleestafermonãoretomasseo

seu posto, Hércules arriaria a carga — e lá desabava sobre a terra aimensidadedos céus, com todas as estrelas, planetas, cometas—e comoera? Nem uma perninha de pulga escaparia ao mais completoesmagamento.FoioqueEmíliaexplicouaogiganteAtlas.

—Sevocênãoseguraocéu,já,já,queacontece?Leléarreia,coitado,eocéu vemabaixo, e o primeiro esmagado vai ser justamente você, que é omaisgrandalhão.Aluabatenessasuacabeçaantesdebaternasnossas.

EapontandoparaHércules,quejádavasinaisdeexaustão:—Nãovêquesuasforçasjáestãonofim?Maisunssegundosepronto

—Leléarreia...Tenhadó,pegueumbocadinhoenquantoeletomafôlego.Atlas, na sua imensa burrice de gigante, resolveu "pegar o céu um

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bocadinhoenquantoHérculestomavafôlego"—erecolocou-oaosombros.Quealívio!Aover-selibertodetamanhopeso,oheróicaiusentado,sem

falar,pálidocomoamorte.Emíliaabanou-onorosto,deu-lheáguaabeber.Hércules foivoltandoasi.Assoprou-se, talqualoVisconde.Osangue foi-lhevoltandoaorosto.Porfimfalou:

— Apre!... É peso... Estou como que esmagado por dentro. Mais unssegundosearriavaacarga.

Cinco minutos se passaram. Achando que Hércules já devia estarsuficientementedescansado,Atlaschamou-o:

—Venha,amigo!Bastadefôlego...Emílialevouasmãozinhasàcinturaedisse:—Boboalegre!...Quemvaificaraítodaavidaévocê,porquefoivocê,

nãoLelé,quemserevoltoucontraosdeuses.Agüente!...Aoouvirisso,Atlasteveumacessodefúria,emesmodecéuaosombros

espichou a mão para agarrar Emília e torcer-lhe o pescoço. Com essemovimentoaabóbadacelestevacilou,quasecaiu...Foiuminstanteterrível.Hércules,deumpulo,escorouocéudumlado—enquantoPedrinhoquasearrancavaobraçodeEmíliacomopuxãoquelhedeu.

Operigopassou.TodosrespiraramOcéuhaviavoltadoaoequilíbriodesempre,bemfirmenoombrodeAtlas.

Pedrinho ainda estava com o coração aos pulos, do tremendo perigopassado.Custou-lhevoltaraonormal.NistoviuEmíliaarrumandoqualquercoisa na canastrinha. Espiou. Era o pomo das Hespérides! Atlas o haviadeixadocairnochãoeela,maisquedepressaoapanharaeescondera...

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VII-EuristeuEnfurece-se

FoiumalívioquandochegaramdenovoaoacampamentodeMicenas.— Uf! ... — exclamou Emília. — Escapamos de boa. Tive medo que

depoisdocasodogiganteaindanosacontecessemaisalguma.NãoháoquenãoaconteçanestaHélade...

Oherói estavaderrancado.O esforçoque tinha feitopara sustentar océu fora omaior de toda a sua carreira. Chegou e caiu na relva para umsono de vinte e quatro horas. Esqueceu-se até de comer. Os grandescansaçostiramafome.

Enquanto Hércules dormia, os picapauzinhos ocuparam-se das coisasdocostume.PedrinhodeuordemaMeioameiopara"cavar"seiscarneiros.

—Sim,porqueafomedeHércules,quandoacordar,vaiserdupla.Tragaseis,ousete...

O sonodeHércules foiomaisprolongadode suavida.Vinteequatrohoras!Meioameiovoltoucomacarneirada.Matou-os,assou-oseali ficoucom aquela carnaria toda à espera de que o herói acordasse. Só no diaseguinte,lápelasonze,Hérculesabriuosolhos.Espreguiçou-se.

—Onde estou eu?—disse estremunhado—mas aodar comos seiscarneiros no espeto sorriu e seu jantar foi verdadeiramente hercúleo. Sódeixouosossos.

— Que sono, Lelé!— exclamou Emília.— Pensei que não acordassemais.

Oheróisorriu.— Sono de quem teve de sustentar o céu às costas...— disse ele.—

Achaqueébrincadeira?—EorestododiapassaramalinoacampamentorecordandoasperipéciasdoSextoTrabalho.

Pedrinhoobservou:—Acontecemporaquicoisasqueláemnossomundoninguémacredita

nempodeacreditar.AaventuradogiganteAtlas,porexemplo.Quemláemnossomundovai acreditarnumacoisa assim?Começaque láAtlasnãoégigantenenhum,esimumlivrãocomumasériedemapas—Europa,Ásia,África,AméricaeOceania...

—EétambémonomedeumossoacrescentouoVisconde—umadasvértebrasquesustentamacabeça.

—EétambémonomedumamontanhadonortedaÁfrica—lembrouaindaPedrinho.—Ah,cadavezgostomaisdestaGrécia.Que terra!Vaiagenteporumcaminho ede repenteque vê?Um titã sustentandoo céu...

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BemdizEmíliaqueistoéaterrado"nãoháoquenãohaja..."Hérculesconfessouqueestavasentindoumadornascostas.—Pudera!— exclamouPedrinho.—E bom será que não esteja com

qualquer quebradura lá por dentro. Você abusa, Hércules. Um dia seestrepa...

Hércules ainda ignorava que o pomo de ouro estivesse com Emília.Quando soube, quis ver. Tomou-o na mão, contemplou-o longamente edisse:

—VocêsnãocalculamoquetemhavidonestaGréciaporcausadestespomos...Hácertostesourosqueconstituemumaverdadeiradesgraçaparao mundo. Todos querem possuí-los — e sobrevêm guerras, lutas,calamidades.Estespomostêmdadooquefazeraosheróis—eoprimeiroquesailádoJardimdasHespérideséjustamenteeste...

Emília estava commedo de perder a preciosidade. Pensou, pensou, eporfimteveumaidéia:esconderopomodentrodeumacascadelaranja.Assimcamuflado,ninguémofurtaria.Masondealaranja?

— Não há laranjas por aqui, Minervino? — perguntou ela aomensageirodePalas.

—Sim,há.Alaranjaéumafrutacomumatodosospaísesdestesmares.Estes mares queria dizer o Mediterrâneo e os pequenos pedaços do

Mediterrâneoquetêmtantosnomes:MarTirreno,MarAdriático,MarEgeu,MarNegro.Todasasterrasbanhadasporessesmaressãolaranjíferas.Mascomo ali por perto do acampamento não houvesse laranjeira nenhuma,EmíliapediuaMeioameioque,quandoencontrassealguma,nãodeixassedelhetrazer.

—Queroumalaranjaumpoucomaiorzinhaqueopomo...Nodiaseguinte,bemdescansado, foiHérculesparaMicenasdarconta

ao soberanoda realização daquele últimoTrabalho. Ao saber que o heróihaviaespantadoparalongeasavesdoEstinfale,Euristeumordeuobeiço.

—Minhaordemnãofoiessa!—berrouerguendo-sedotrono.—Minhaordem foi para que destruísse aquelas aves. Se se limitou a espantá-las,logoasteremosláoutravez.

—Não há perigo,Majestade. A lembrança do som daqueles címbalosfaráquenuncamaisvoltem.

—Quecímbalos?—OscímbaloscomqueHefaistospresenteouagrandedeusaPalas.Euristeu,quedenadasabia,arregalouosolhos.—Ecomoosobteve?—Diretamente do Olimpo,mandados por Palas por intermédio dum

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mensageiro.Euristeu olhou para Eumolpo, ali muito lambeta ao lado do trono. O

caso se complicava. Se Hércules andava assim tão protegido por Palas,então Hera tinha de tomar outras providências. E Euristeu esfriou.Conhecendo o poder de Palas, tevemedo de que essa deusa, na fúria deproteger Hércules, acabasse dando cabo dele, Euristeu. Tinha de pensarnaquilo.

—Bom,seéassim—disseparaHércules—apareçaaquiamanhã.VoupensarnoassuntoeverqualonovoTrabalho.

Hércules voltou ao acampamento e no dia seguinte lá compareceuperanteorei,cujoarjánãoeraodavéspera.Maisalegreeconfiante,comoquemestádeidéiasnovas.Arazãodamudançaeraqueemsuaconferênciacomoministro Eumolpo este lhe havia falado assim: "Há uma coisa quetalvez Hércules não consiga realizar: a destruição do Touro de Creta."Euristeu ignoravaoque fosse. "Que touroéesse?"perguntou.EEumolporespondeu: "Ah, Majestade, é um touro gigantesco que está tomado deloucura. Um touro louco! Se um simples cão hidrófobo é o que sabemos,imagine-se um touro louco! Impossível que desta vez Hércules saiavitorioso."Euristeusorriudiabolicamente—e foiàesfregarasmãosquerecebeuoherói.

— Às ordens de Vossa Majestade! — disse Hércules, humilde comosempre.—AquiestouparareceberamissãoqueVossaMajestadehajaporbemconfiar-me.

EEuristeu,comumrisomaunabocafeia:—QueroqueváàIlhadeCretaemetragavivooTouroLouco.Só.Hércules retirou-se bastante aborrecido. Touro louco! Depois de seu

período de loucura viera-lhe um incoercível medo aos loucos. Mas quefazer? Eram ordens do rei. Tinha de cumpri-las — e voltou para oacampamentocomanoticia.

—TemosagoradeiraCreta!—gritoudelongeparaospicapauzinhos.HáláotalTouroLouco.Euristeuquerqueeulhetragavivoessemonstro...

Emíliabateupalmas.—Creta?AilhadoMinotauro?Queamor!...Eujáestavacomsaudades

dessa ilha onde passamos dias tão interessantes— e contou a Hérculestoda a história de tia Nastácia quando esteve detida no labirinto doMinotauro.

Hérculesespantou-se.—Como?Poisentãoentraramnolabirintoeconseguiramsair?Issome

pareceumportento,porquequemláentranuncamaisencontraaportade

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saída.—Poisnósentramosesaímos.EdescobrimosládentrotiaNastáciaa

fazer bolinhos e o tal Minotauro gordo como um porco de tanto comerbolinhos—edesfiouahistóriainteira.

— Hoje — disse ela — o coitado deve estar magríssimo e portantomuitomaisperigoso.Quandoterámaisdaquelesbolinhos?

Hércules quis saber o que eram “bolinhos", e Emília os pintou tãogostososquelheveioáguaàboca.Oheróisuspirou."Bolinhos","pipocas","cocadas de fita", "manjar branco", "quindins", "rosquinhas"— ah, comodeviam ser deliciosos os doces e quitutes daquela cozinheira cujo nomevivianabocadospicapauzinhos!

—Sim—disseEmília.—TiaNastácia é aCirceda cozinha.Pegaumpatoefazum"patocomarroz"queédagentecomereberrarpormais.Eparadoces,então,nãoháigual.DonaBentadizqueelaéuma"doceiradocéu..."

Meioameio,quetudoouvia,lambeuosbeiços.O dia seguinte passaram-no em preparativos. O Templo de Avia foi

reformado e enfeitado com uma série de placas comemorativas dosTrabalhosrealizados.

Pedrinhofincouemredordotemploumaporçãodeestacas,cadaumatendonapontaumaesculturatosca:umleão,umahidra,umjavali,umaavedepenadebronze,umacorça—masengasgounarepresentaçãodoQuintoTrabalho:a limpezadascavalariçasdeAugias.Como figuraraquilonumaescultura?

Emíliaresolveuoproblema.—FazdecontaqueascavalariçassãoumcavaloeosRiosAlfeuePeneu

sãodoiscachorrosqueseatiramcontraocavaloefoiassimquePedrinhofigurouemsuaesculturaoQuintoTrabalhodeHércules.

Emseguidapôs-se adiabinhaapensarna "defesa"dopomodeouro.Nãoeraconvenienteandarcomelenacanastrinha,viajandodeumpontoparaoutro.Muitomelhorguardá-lobemescondidoalimesmo.Efoioquefez.PediuaPedrinhoquecavasseumburacobemfundo.Ajeitouládentroo pomode ouro e a pena de bronze. E depois de tudo bem coberto comterra,mandouqueHérculesbotasseumagrandepedraemcima.

***

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7-OTOURODECRETA

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I-OTourodeCreta

OcasodotourodeCretafoiconseqüênciadabrigaentreumdeuseumrei.Masantesdeoabordarmos,temosdeverparaqueméacartinhaqueoVisconde está escrevendo. Hércules havia pingado o ponto no seu sextoTrabalhoederaordemde levantaracampamento.EnquantoMeioameioePedrinhocuidavamdisso,EmíliaremexiaemsuacanastrinhaeoVisconde"elaborava"umacarta.

—Paraquemestáescrevendo,Visconde?—perguntouaexbonecaseminterromperaarrumaçãodeseusguardados.

—ParaDonaBenta—respondeuosabuguinho.Emília continuou a lidar com os seus bilongues ainda por uns vinte

minutos— e o Visconde sempre trabalhando lá com a carta. De repenteEmíliadesconfiou:

—Quecartinhatãocompridaéessa,Visconde?—ecorreuparaver,OVisconde tapou-a com a cartola. Emília deu um peteleco na cartola eagarrouacarta.NãoeraparaDonaBenta,não.EraparaaClimene...

—Ah,malandro!...Escrevendocartinhadeamor,hein?—epôs-sealerenquantooViscondeapanhavaacartolaealimpavacomocotovelo,muitovexadoedesapontado.

Emílialeu:

"Idolatradacriança!Écomocoraçãodespedaçadodemágoasquetomodapenapara

traçarestaslinhas.Tuaimagemnãomesaidaimaginação.Emtudotevejo,Climeninha.OlhoparaosolhosdeHérculeseoquevejosãoosteusolhos,Climeninha.Olhoparaaquelasflorestaseoquevejosãoosteus cabelos, Climeninha. Minha vida virou uma tristeza. Não achograçaemnada—nemnaEmília...

Nesse ponto Emília interrompeu a leitura e encarou-o com olhinhos

duros.— Nem em mim, hein? Julga que ando fazendo graças para os

estafermosacharem?...—ebotou-lhealíngua.Depoiscontinuoualer:"Hércules não pára, coitado. Tem agora de ir a Creta atrás dum touro

hidrófobo.Hidrófoboquerdizerlouco,istoé,loucopropriamentenão,porque"hidro" você bem sabe que é "água" no lindo idioma grego; e "phobos" étambémoutralindapalavragregacomsignificaçãode"horror".Hidrófobo:que tem horror à água. Mas lá no nosso mundo o povo ignorante chama

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"louco"aoqueé"hidrófobo".Emília interrompeu a leitura para observar quenas cartas de amor o

galãnãodevedarliçõesdelíngua.—Pedantismodestetamanhonuncavi,SenhorVisconde.AClimeneéo

que lá nomundomoderno chamamosuma "burrinha do campo". Bonita,sim, de rosto, mas crassa na ignorância... Crassa, crassa... Que é crasso,Visconde? Minervino disse ontem que Hércules é de uma "ignorânciacrassa".

OViscondeexplicouqueapalavra "crasso"vemdo latim"crassus"—espesso, grosso, pesado. Ignorância crassa quer dizer ignorância grossa,cascuda.Emíliacontinuou:

—PoisaClimeneéassim:ummimodenariz,mascrassalápordentro—eoSenhorViscondecomessashidrofobias!...

Nemquero ler o resto— tome a carta. E ponhaumP. S.meu, assim:"Emíliamandadizerqueentrouporumaportaesaiuporoutra."Sóisso.

—Porquê?—indagouoVisconde,desnorteado.—Quequerdizercomisso?

—Nada.—Entãoporquememandaescrever?—Paraequilibrar,Visconde.Conheçoaquelamenina; Juroqueelavai

pularporcimadetodasassuashidrofobiasegostardomeuP.S.Paraumabobadaquelasagentesódeveescreverbobagens.

Outracoisa:comovaimandaressacarta?—Pelopirlimpimpim.Esfregoumaiscadepónonarizdelae...Emíliaarregalouosolhos, como fulminadapor súbita idéia.Ficouuns

instantesassim.Depoisberrou,nomaiorentusiasmo:— Que maravilha!... Parece incrível que eu já não houvesse tido essa

idéia. Assim como o pirlimpimpim transporta gente, também poderátransportarcoisas.Ésóesfregarumaiscadepónonarizdascoisas!...

EacabeçadeEmíliacomeçouafervercomasnovaspossibilidadesdotransporte pirlimpimpinesco que ela via diante de si. Até o pomo... Até apenadebronze...

Sim... podia "expedi-los" para o sítio de Dona Benta por meio dopirlimpimpimedessemodocessavamassuaspreocupaçõesalinaGrécia.

— Visconde, Visconde! — gritou ela agarrando o sabuguinho eabraçando-o. — Sabe que inventou, sem querer, uma das maioresinvençõesmodernas?Mande a carta da Climene já, emande dentro umapitadinhadopóparaaresposta,comexplicaçãosobreomododeusar...Ese nós recebermos a resposta da Climene, então fica provado que o

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ViscondedeSabugosaéomaiorinventordetodosostempos...OViscondeaindanãohavia terminadoacartaaClimene,mas tevede

mandá-la assimmesmo, incompleta e sem jeito, tamanha era a ânsia deEmíliaemverificararealidadedagrandeinvenção.

Hérculesládelongegritou:—Estamosnahora.Tocaapartir!MasEmíliadiscordou.—Não,nãoherói!...Impossívelpartirmoshoje.Estouempenhadanuma

experiênciaformidável.Corraaqui.Hérculesaproximou-sedeEmília.—Quehá?—Háisto—eEmíliaexplicou-lheaidéiadoVisconde,deremeteruma

cartaparaEstinfalepeloprocessodopirlimpimpim.Hérculesnãoentendeu.—Como?Emíliaexplicou:— O pirlimpimpim age pelo nariz. A gente aspira o pó e pronto. O

Visconde teve a idéia de esfregar uma isca de pirlimpimpim no nariz dacarta. Seproduzir efeito, se a carta fizer fiune sumirnoespaçoe chegardireitinhaaoendereço,então,então,então...—eEmílianempôdeconcluir,detãocomovidaqueestava.

—Então, quê?— indagouHércules, com toda a sua burrice de heróinacional.

Emíliaencarou-ocomardedó.— Que crasso você é, Lelé!... Pois não percebe que se isso acontecer

estarádescobertoummeiomaravilhosoparaotransportedascoisas?SeacartafordireitinhaechegaràsmãosdeClimene,esearespostadeClimenetambém nos vier direitinha... — e Emília nem pôde concluir. Pôs-se achorar.Chorodeemoção.ChorodeMadameCuriequandoviubrilharnoescuroaprimeirapartículaderadium.

Hérculescontinuavacomoseuarpasmado.Emíliadanou.—Poisnãovê,homemdeDeus,queseopirlimpimpimlevarumacarta

podelevartudomais,atéumelefante?Hérculesarregalouosolhos.Estavacomeçandoacompreender.Depois,

aplicandoocasoaoseucaso,disse:—Sim...Émesmo!...PodemosatétrazerotourodeCretacomumaboa

pitadadepó!...—Poisestáclaro!Podemostrazerotouro,podemostrazeratéaIlhade

Cretainteira,comolabirintoetudo.Eissoseráamaiordasrevoluçõesde

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todosostempos!Sósintoumacoisa:queaidéiatenhasidodoViscondeenãominha.Euéquemereciatertidoessaidéia...

Pedrinhoaproximou-se,eaosaberdagrandeidéiatambémvibrou.—MeuDeus!—disseele.—Seacoisadercerto,omundoficasendo

nosso,Emília!Nãohaveráoquenãopossamosfazer.Meioameio, que estivera cuidando dos preparativos da viagem,

aproximou-seedisseaoherói:—Pronto.Jáarrumeitudo.Podemospartir.—Aviagemestáadiada—respondeuHércules.—Temosdeaguardar

aexperiênciadoVisconde.Osabuguinhotiroudacinturaocanudodepóederramounapalmada

mão uma isca. Depois, commuitas cautelas, esfregou o pirlimpimpim nonarizdacartinha,jágalantementesobrescritada:

Exma. Senhorita Climene, gentil pastorinha residente emESTíNFALE(naArcádia)

Assim que a carta sentiu no nariz a ação do pó, espirrou o fiunnn edesapareceu.

Todosbaterampalmas, inclusiveoherói.A coisa ia indootimamente.Restava apenas que viesse a resposta — e com que ânsia esperaram arespostadaClimene!Pedrinhoduvidou.

— Não vem resposta nenhuma — disse ele. — Climene não sabeescrever; ela mesma me disse. São ignorantíssimos aqueles pastores daArcádia.

—Mastemumaamiguinhaquesabe—gritouEmília—aCloé,filhadochefedospastores.

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II-TudodeuCerto!

Orestododiafoipassandonamaiorinquietação.Emílianãotiravaosolhos do céu, na esperança de ver uma cartinha cair de súbito ali noacampamento.

Ehaviaapostas."Apostoqueelavaicairaqui”—diziaum."Eeuapostoque ela não cai, fica pairante no ar como folha seca ao vento", — diziaoutro. A ânsia era geral, e talvez mais em Hércules do que nos outros.Estava pensando no touro. Euristeu queria o touro vivo. Ora, era muitolonge a tal Creta, separada do continente pelo mar, de modo que oproblemadetrazerumtourodeCretaatéMicenas,eaindamaisumtourolouco,ocupava-lhetodosospensamentos.SeainvençãozinhadoVisconderesolvesse o problema, seria ouro sobre azul... Hércules chegou até aperder a fome. Quando à tarde o centaurinho assou os três carneiros docostume,oheróisócomeudois.Pelaprimeiravezsobravacomida.

O carrodeApolo ia descambandonohorizontequando a respostadeClimenechegou.Chegoucomoumafolhasecaqueoventotraz.Chegou,deuvárias voltas no ar e foi cair bem junto aos pés do Visconde. Todos seprecipitaram.QuemaagarroufoiEmília.Coitadinha!...Estavatãotrêmuladeemoçãoquenempôdeabriracarta.

—Abra,Pedrinho.Pedrinhoabriu.DeviaseraletradaCloé.

"AmiguinhoVisconde:Chegou sua carta! Como fiquei contente... Cloé a leu para mim.

Sintomuitosuasaflições.Cloédizqueahistóriada"hidrofobia"estácerta.Aquitudonamesma.Asavesdolagonãovoltaram.Oassuntode todos ainda é omesmo: as aves de penas de bronze. Cloé vaimeajudar a fazer como você diz: esfregar o pozinho no nariz destaresposta.Nãoconteianinguémestecaso—sóaCloé.Demedoqueme tomem como feiticeira. Adeus. Muitas lembranças ao SenhorPedrinhoeaoSenhorHércules.TenhosaudadesdasgalopadasquedeinolombodeMeioameio.SuacriadaobrigadaClimene"

Que delírio!... Emília pulava, dançava, dizia palavras sem sentido. O

Viscondebeijavaacartinhaeapertava-adeencontroaocoração.Pedrinhosonhava mil sonhos cada qual mais louco, e Hércules sorria: estavaresolvidooproblemadotransportedotouroloucodeCretaatéMicenas!SóMeioameio não deu demonstrações de entusiasmo. Sua inteligência não

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alcançava as tremendas conseqüências que da invenção do Viscondepoderiamadvirparaomundo.

Hércules, já de coração sossegado, foi comer o último carneiro,completando assim a ração normal de três. Em seguida deu ordem departida.AviagemaCretaeralonga.Nãoconvinhaperderemmaistempo.

Emília propôs que em vez de partirem a pé, como das outras vezes,partissem“apó”.

— Sim, todos aspiramos uma pitada de pirlimpimpim e num fiunnnestamosemCreta.

Hérculestonteoucomaidéia.Masseriaopósuficientementeforteparalevá-loaele,quepesavadezarrobas?

PedrinhocontouqueatétiaNastáciajátinhaidoàlua"apó".Dissequepara o pirlimpimpim um peso como do herói “era canja." Mesmo assimHérculesestavairresoluto.Quemoforçouadecidir-sefoiaEmília.

—Nadamais fácildoqueexperimentar,Lelé. Seopónãopuder comvocê,nósvamos"apó"evocêvai"apé".Experimentemos.

Hérculesconcordou.Pedrinhotiroudacinturaoseucanudoepôs-seacalcularasdosesea

distribuir aspitadas.ParaHérculesdeuquatro.Depois ensinou-lhe comofazer.

—Todostemosdeaspiraropirlimpimpimaomesmotempo,quandoeucantartrês.Vemofiunnnepronto.

—Esevocêsforemeeuficar?—aindaobjetouoherói.—Nessecaso,voltamoseseguiremostodosapé.

Hérculesaceitouessasolução.Pedrinhodisse:"Poisentãoaprontem-sequevoucantarosnúmeros"—ecomeçou:"Um...Dois...eTrês!"NavozdeTRES,todosaspiraramopóeofiunnnsoouviolento.

........................................

OprimeiroaacordaremCretafoiPedrinho.Abriuosolhos,tonto.Viu

todosalijuntos,masaindadesacordados.OsegundoqueabriuosolhosfoioVisconde.Os outros continuavamemestadode "choque", comodizia osabugo.

—Seráquedeipódemais?—refletiumPedrinhoefoisacudirEmília.Aexboneca arregalou os olhos, tontinha, tontinha. Depois Meioameiodespertou.SófaltavaHércules.

O tremendo herói estava aplastado no chão, como morto. Ospicapauzinhos o rodearam. Deram-lhe tapas no peito. De um rio perto

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trouxeMeioameioáguanasmãosejogou-lhenacara.Emíliaespetou-oemváriospontoscomumespinho.Nada.NadadeHérculesacordar!

—Seráquelhedeidosefortedemais?—murmurouPedrinhojámeioinquieto. — Hércules nunca aspirou este pó. Quem sabe lhe fez mal aocoraçãoeestámorto?

O Visconde encostou o ouvido ao peito de Hércules para auscultá-lo.Sentiuobaterdocoração..

—Vivinhoestá—gritouosabugo,—masoseuestadodechoqueédostremendos.TudocomHérculeséenorme:oseuapetite,asuaforçafísica,osseussonos...Temosdeesperar.

Eesperaram.Maisdeduashoraspassaramaliaoladodoherói,àesperadequeelevoltasseasi—enadadeHérculesvoltarasi.Asituação iasetornando séria.Pedrinhoarrependeu-sedoque tinha feito.E seHérculesmorresse?Nemesiseracapazdevirjustarcontascomeles...

Vendo as coisas nesse pé, Emília tomou uma resolução extrema.Ajoelhou-se,demãospostas,epediucomtodoofervor:"Palas,deusalinda,valei-nos nesta aflição! Mandai-nos socorro pelo vosso diligentemensageiroMinervino!"

Omilagreoperou-se:Minervinonão tardou a aparecer! E apareceu jáciente de tudo e com o remédio na mão. Curvando-se sobre o heróiadormecido, derramou-lhe na boca entreaberta várias gotas de filtromágico. Foi a conta.O herói abriu umolho.Depois abriu o outro.Depoissuspiroueporfimsentou-se.

—Ondeestoueu?—foramsuasprimeiraspalavras.—Talvezna IlhadeCreta—respondeuPedrinho.Certezanão tenho.

Nãoháporaquiletreiros.Mínervinoconfirmouasuposição.EstavamrealmentenaIlhadeCreta.

E enquanto Hércules voltava totalmente a si, contou que lá do Olimpo adeusa Palas havia acompanhado tudo com o maior interesse, e vendoHércules por tanto tempo sem sentidos, lhe tinha dado ordem de virsocorrê-lo.

— Estes atletas — disse Minervino têm em geral o coraçãohipertrofiado,demodoquedrogasqueparaumacriaturadocomumnãofazemmal,paraelessãomuitasvezesvenenos.Vocêsagiramcomgrandeimprudência. Desse modo ainda acabam liquidando com o grande heróinacionaldaGrécia...

—Gotasdoque,essasquelhepingounaboca?Deelixirparegórico?—quissaberoVisconde.

— Os deuses do Olimpo não revelam aos mortais o segredo de seus

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filtros.PalasAtenadeu-meestefrascosemdizeroquecontinha.Emília tirou-lhe da mão o frasco para ver se trazia rótulo. Depois

cheirou.Ficounamesma.OsfiltrosdePalaseramrealmenteimpenetráveisparaascriaturashumanas.

Hércules já estava completamente restabelecido, e ao saber do longodesmaio e da intervenção da deusa alegrou-se. Evidentemente, Heratentara destruí-lo,mas fora obstadapela sua protetora—e erguendo osolhosparaocéuagradeceucomumolharapreciosaintervençãodePalas.

Depois:—ComqueentãoéistoaquiaIlhadeCreta?—Sim.EstamosemCreta—respondeuMinervino.—Eotouro?—Aindanãomugiu—disseEmíliamasnãotarda.Sintoumaaurade

loucuranoar.Nembemfalou,eummugidohorrendosefezouviraolonge.Hércules

pôs-seempé,jádeclavaempunho.Seusolhoschamejaram.Seusmúsculosseretesaram.

MasPedrinhoadvertiu-odequetinhadelevarotourovivo.Nada,pois,declavanemflechas.

—Sim—disseHércules,recordando-se.—Euristeuexigequelheleveotourovivo...

Puseram-seaplanejaracapturadotouro.Pedrinhofoideopiniãoqueomelhormeioera laçá-lo, como lánomundomoderno fazemosvaqueirosdo sertão. Hércules não tinha prática de laço. Teve de receber lições domenino.

—Mas antes demais nada—disse precisamos trançar um laço—eexplicoucomosefazemoslaços."Toma-seumcourodeboiecomumafacabemafiadavai-secortandoneleumtentosemfim...”

—Quequerdizertentosemfim?indagouHércules.— Tento sem fim é uma tira que a gente corta em forma de espiral,

como quando descascamos laranja. Fica uma tira compridíssima. Eprecisamosdequatrocourosparaobterquatrotentosdomesmotamanho.Depoisésótrançá-los.

—Trançardetrêseusei—gritouEmília.—Dequatro,não.Pedrinhosabiatrançardequatro,eseMeioameiolheobtivessequatro

courosdeboieleseencarregariadetudo:decortarostentosetrançá-los.Otouromugiuoutravezaolonge.Hércules,nervoso,apertounovamenteopunhodaclava.Pedrinho pediu a Meioameio que saísse de galope e só voltasse com

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quatrocourosdeboi;eexplicou:—Couroscrus.Curtidosnãoservem.Ecourossemburacosdeberne.Minervino ignorava o que era berne, porque na Grécia não havia

semelhante praga — e ficaram a conversar sobre bernes e carrapatosenquantoocentaurinhopartiaagalopeporaquelescamposafora.

A Ilha de Creta era "bovinífera", como disse o Visconde, isto é,abundante embois.Tudoali eraboi.OMinotauroeraumboi-homemouum homem-boi. E para Emília até o Rei Minos tinha jeito de ser umverdadeiro"boireal".

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III-APegadoTouro

Minervinocontouahistóriadesserei.—ErafilhodeEuropa—disseele—esobrinhodeCadmo...—Oqueinventouoalfabeto?— Sim, Cadmo goza a fama de ter sido o criador do alfabeto. Ele e

EuropaeramfilhosdeAgenor,umreidaFenícia.CertodiaemquealindaEuropapasseavacomsuasamigaspelaspraiasdaFenícia,eisquedesúbitoaparece um touro demaravilhosa beleza que vinha raptá-la. E de fato araptou.EssetouroeraopróprioZeusmetamorfoseadoemtouro.

Emília cochichouparaHércules que "metamorfose" era omesmoque"virar"ecitouumcaso:"Eu,porexemplo,memetamorfoseei,dabonecadepanoqueeranagentinhaquesou.

Minervinoprosseguiu:—ObelotouroarrebataEuropalánaFeníciaefogecomelaparaaqui.

OReiMinosnãopassadoprodutodesserapto.Minos,Minos!...Umgranderei.Éolegisladordailha,foiquemalivroudospiratassaqueadoresefoioaprisionador do Minotauro. Quando esse monstro surgiu e pôs-se adevastarailha,MinosincumbiuDédalodaconstruçãodofamosolabirinto—eprendeuoMinotauroládentro.

MinervinoiacontarmaiscoisasdeMinos,quandoMeioameioapareceucomosquatrocourosencomendados.Jogou-osaochãopertodePedrinho."Pronto!"Pedrinhoexaminou-oseachou-osótimos."Nemumburaquinhode berne. Vão dar uns tentos ótimos. E faca? Sem faca bem afiada, nemHérculesdesdobraumcouroemtentos."

—Precisodeumafaca!—berrouomenino,etodosficaramaolharunsparaosoutros.QuemsalvouasituaçãofoiaEmília.

—Faca não tenho em minha canastra, mas tenho aquela perna detesouraquedei parao Sr. LaFontaine e ele felizmentenão aceitou.Bemamoladinha, substitui qualquer faca. Veja minha perna de tesoura aí nacanastra,Visconde!

Pedrinho, que eramestre em amolar, descobriu por ali uma laje bemlisa,naqualdeixouapernadetesouraafiadacomonavalha.

Hércules olhava, olhava. A diligência daquele menino o enchia desatisfação.

Depois começou Pedrinho a "desdobrar os couros em tentos." Suou,coitado, e teve de ser ajudado por Meioameio. Horas depois estavamprontos quatro tentos compridíssimos. Restava trançá-los— e Pedrinho

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"trançoudequatro"àvistadetodos,paraquetodosaprendessem.Hérculesolhava,olhava.Meioameio vinha revelando muita habilidade. Aprendia com rapidez

incrível e desse modo confirmava aquelas idéias de Hércules sobre aeducação. O dia inteiro passaram naquilo e também metade do diaseguinte.Eafinalficouprontoolaço,umformidávellaço,porquePedrinhocortaraostentoscomumcentímetrodelargura.

—Experimente,Hércules.Vejaseistoagüentaapegadeumtouro.Hérculesexperimentoueadmirou-sedaresistênciadaquela"cordade

couro".Estavam nisso quando sobreveio uma agitação. Gritaria ao longe.

Passou um homem a correr. E depoismulheres e crianças, todas com arespavorido.

Pedrinhocorreuainformar-sedoquehavia.—Otourolouco!Otourolouco!...—eraoquetodagentegritava,sem

interromper a fuga. "O touro louco está devastando a nossa aldeia,destruindonossascasas...”

—Porqueonãomatam?—indagouPedrinho.—Impossível!...—respondeuumdoshomens.—Essetouropareceum

raio.Investecomoumcorisco.—SabequeHéraclesestáaquieveioespecialmenteparalivrarailha?Na voz de Héracles, o homem parou olhou para o menino, muito

espantado. Não havia entre os helenos quem não conhecesse o grandeherói—eseeleestavaemCreta,razãojánãohaviaparafugas.Eohomemgritouparaosoutros, enum instanteumamultidão inteira se reuniuemredor de Pedrinho. "Diz este menino que Héracles está aqui, vindo parapegarotouro.""Héracles?OfilhodeZeuseAlcmena?Ondeestáele?"

Pedrinho levou aquela multidão à presença do herói, e todos seassombraram. As caras iluminaram-se como lampiões que se acendem.Héraclesali!...Estavamsalvos!...

Pedrinhotomouapalavraedisse:— Povos de Creta! As vossas desgraças chegaram ao fim. O grande

Hérculesveiodocontinentecom fimexpressodeagarrarvivoesse touroque assola estas paragens. Já trançamos o laço de couro cru com queiremoslaçá-lo.Interrompeiavossafuga.Amanhãestareisreconstruindoosvossoslares.BemsabeisqueHéracleséinfalível.QuemdestruiuoleãodaNeméia?Ele.Quemmatou ahidradeLerna?Ele.Quemcaçouo javali doErimanto?Ele.Quemapanhouacorçadepésdebronze?Ele.Quemlimpouas cavalariças de Augias? Ele. Quem afugentou do Estinfale aquelas aves

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antropófagas? Ele. Quem vai libertar a Ilha de Creta das devastações dotourolouco?Ele...

Amultidãorompeuemaplausosdelirantes.Salvos!Salvos,afinal! ...SeHéracles estava ali, então nada mais tinham a temer... E as mulhereschoravameoshomensdançavamnumdelíriodecontentamento.

Súbito,nomeiodaquela festa,ummugidopavoroso.Omonstrovinhavindo.Estabeleceu-seopânico.Asmulheresdebandaramcomascriançasemuitoshomensfizeramomesmo.SóosmaisinteligentesficaramalijuntodeHéracles,poisestariammilvezesmaissegurosnacompanhiadoheróiinvencíveldoquebobamenteacorrerempeloscampos.

Emília trepou a uma árvore. Seus olhinhos telescópicos faziamdela amaispreciosadasespias.Eládecima"irradiava"informações.

— Estou vendo só a poeira do touro, bem longe ainda, mas nestadireção. Sim... É ele mesmo... Começo a distinguir a ponta dos chifres eagora todaacabeça...Orestodocorposome-sedentrodanuvemdepó...Vemvindodonosso lado...Quando encontrauma casinha, investe contraelaecomumachifradamanda-aparaobeleléu...

Pedrinho já havia entregue a Hércules o laço e dava-lhe as últimasinstruções sobre o melhor modo de manejar a laçada. "Você dá váriasvoltasnoar,porcimadacabeça,esóarremessaquandootourochegarauns trinta passos de distância. A laçada tem que cair certinha sobre oschifres,istoé,temqueabarcaroschifres.Eentãovocêpuxacomtodaforça—cerraalaçada.Oresto—comoensinei:Vocêdáumavoltadolaçonumtroncodeárvoreesegurafirmeaponta—evaipuxando,vaipuxando,atéforçarotouroaencostaroschifresnotronco.”

Pedrinhoeramestrenaquilo.Nãofaltavanuncaaosrodeiosanuaisdasfazendas vizinhas do sítio deDona Benta e, escondido da vovómedrosa,aprendera a laçar garrotes, já bem taludos e até potros de um ano.Hércules,porém,nuncahavialaçadocoisanenhuma,demodoquesesentiabastante atrapalhado e com medo de falhar. Que fiasco, se ali diantedaquelepovoeleerraogolpeeotouroescapa!Emília continuava a "espicar", e agora "espicava" como um speaker de

rádioquandoabolavaiseaproximandodogol.—Vemvindo...Vejo-lheocorpo inteiro...Que touro,meuDeus!...Bate

longe o Beethoven do Coronel Teodorico... Tem pêlo de zebu Guzerate...Encontrouumcupim...Ocupimvooupelosares...Chegou!...Éhora,Lelé!...Dribleejogueolaço.

Hércules já estava girando no ar a laçada, à espera de que Pedrinhodesseosinal.Pedrinhodeuosinal:

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—Agora!...Hérculesarremessouolaço,maserrou...Alaçadacolheuotouropelas

ancas, indo pegar um toco de pau que havia por ali. Sobreveio o pânico.Toda aquela gente debandou. Uns treparam na árvore de Emília. Outrossumiram-se no galope. Hércules largou do laço e apanhou a clava. Iareceber o touro em luta peito a peito. Ia fazer asneira— estragar tudo.Pedrinhointerveioatempo.

—Não,Hércules!Nadadeclavas.Eulaçoessebicho—evelozcomoumraiotomouolaço,deualaçadaepôs-seagirá-lanoar.

Nafúriaemquevinha,otourovarouporalisemalcançaroherói,quesedesviaraagilmente,comofazemostoureirosnaarena.Otouroenganadoemaisfuriosoaindafezmeia-voltaeinvestiunovamente,masdessavezoarremessodalaçadacolheu-opeloschifres.Estavaseguro.Pedrinhojogoua ponta do laço para Hércules e voou para cima da árvore de Emília.HérculesdeuumavoltanotroncoefezcomoPedrinholhehaviaensinado.Desviava-se dasmarradas do touro e ia estirando o laço, demodo que otourofosseficandocadavezmaispeado,maispróximodotronco.Eassim,encurtaqueencurta,breveotouroseviucomatestacoladaaotronco,istoé,comotroncoentaladoentreseuschifres.

—Hurra!Hurra!...—berrouEmília.—VivaPedrinho!VivaHércules!...Otourobufava,babava,urrava,faziaosmaistremendosesforçospara

arrancar-se dali — inutilmente. O laço de quatro tentos que Pedrinhotrançaraeradosquetouronenhumrebenta,eestavaagüentandofirme.Otouro,afinal,exaustodoesforço,aquietou-se.

—Jánãotugenemmuge—berrouEmília.—Hurra!Hurra!...Oscretensesquehaviamfugidocomeçaramavoltar,elogoaliemtorno

daárvoregrandemultidãoseformou.Unsqueriamlincharotouro.Outrosdiziam-lheosmaisfeiosnomes.Hérculesinterpôs-se.

—Não.Respeitemosovencido.Tenhoordensparalevá-loaMicenas.Umadificuldadesurgiu.Osqueestavamempencadosnaárvoretinham

medodedescercomaqueletouro láembaixo.MasEmíliadeuoexemplo:atirou-separaosbraçosdeHércules.Osoutrosfizeramomesmo.Aalegriaeraimensa.

Todosfalavam.Cadaqualdiziaumaasneiramaior.Hércules devia estar vexado, porque afinal de contas o herói da festa

fora Pedrinho, não ele. Mas seu coração era generoso demais para darabrigoasentimentosinferiores.Emvezdesentirciúmes,pegouopequenonosbraçosedisse:

—Euqueriaterumfilhocomovoce,Pedrinho!—ebeijou-o.

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Emília não se conteve: chorou de emoção; e até o Visconde, que eramilhofervido,enxugousualagrimazinha...

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IV–ORastreamento

Depoisqueopovosedispersou,Hérculesdisse:—Muitobem.AprimeirapartedesteTrabalhoestáconcluída.Temos

agoracuidardoestômagoedescansar...AmanhãpartiremosparaMicenas.Meioameio saiu no galope do costume para prear os três carneiros,

enquanto Emília ficou de cochichos com Minervino. Pedia-lhe qualquercoisa. Que coisa? O frasquinho vazio do filtro de Palas. Para quê? Paraenchê-locomababadotourolouco.Seumuseulánosítioiaenriquecer-setremendamentecomasmaravilhasquelheestavamarenderosTrabalhosdeHércules.

Depois do jantar Pedrinho lembrou que o touro também tinhaestômago.Eraprecisoalimentá-lo—eMeioameiofoiarrancarumagrandebraçadadecapim,quejogouaopédaárvore.Hérculesdeuumafolgazinhanolaçoparaqueotourovencidopudessecomer.

Que noite foi aquela, passada sob as estrelas da ilha do Rei Minos,empanturradosdecarneiroassadoeglória!Nãohouvesonhos.Sósonoedosmaispesados.Sonotãopesadoqueninguémpercebeunadadoquesepassou.

—Passou-seentãoqualquercoisaduranteanoite?—Sim.QuandolánoOlimpoaimplacávelJunoviuqueotourodeCreta

estavavencidoeHérculescontinuavaincólume,acóleralheestufouopapo.E chamando um ratinho mandou-o que corresse até lá, roesse o laço esoltasse o touro. O ratinho obedeceu, demodo que pelamanhã, quandoHérculesacordou...

—Queédotouro?Nãohaviatouronenhumnopalanque...Foi o maior desapontamento jamais ocorrido na Grécia. A vingativa

Juno vencera. Todo o esforço do herói e de Pedrinho estava perdido.Tinhamdecapturaromonstronovamente.

Mas para onde se dirigira o touro? Pedrinho sabia "rastrear", isto é,seguir o rastro dos animais. Aprendera essa arte sutil com um velhocampeirodoCoronelTeodorico.Rastrearemchãodeterradesnudaéfácil,porque os rastros ficam impressos na lama ou pó — mas ali, naquelescampos revestidosde capimmimoso?Sómesmoummestre rastreadorePedrinhodenovoassombrouoheróicomasuahabilidade.Peloacamadodo capim e outros sinais que só os rastreadores percebem, pôde iracompanhandoorumolevadopelotouroemfuga.

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Trabalhodepaciênciaedemorado,masfeliz.Pedrinhoseguianafrente,rastreando,eosoutrosatrás.Eassimforamindo,indo...

Súbito,umencontro imprevisto:Teseu,ograndeherói!OencontrodeTeseu e Hércules lembrou a Pedrinho o encontro do explorador StanleycomoDr.Livingstone,lánocentrodaÁfrica.

—TeseudaÁtica?—disseHérculesestendendoamãoparaTeseu.—HéraclesdaHélade?—disseTeseu,apertandoamãodeHércules.Osdoisheróisabraçaram-seepuseram-seaconversar.Hérculescontou

que viera à ilha por causa do famoso touro louco, e Teseu contou queestavaaliparadarcabodoMinotauro.

— Do Minotauro? — exclamou Pedrinho com espanto. — Pois essemonstroaindavive?

—Sim—respondeuoheróidaÁtica,eaquiestouparalibertarestailhadetãohorrendomonstro.Nãotemcontaonúmerodevítimasquejáfez.ORei Minos houve por bem encarregar-me da missão. Mas quem é estemenino,Héracles?

Hércules fez as apresentações e contou da maravilhosa ação do seu"oficialdegabinete"PedroEncerrabodesdeOliveirana capturado tourode Creta, o qual, infelizmente, graças ao camundongo de Hera, tinhaconseguido libertar-se e fugir. Depois apresentou Emília de Rabicó, e oViscondedeSabugosa,oseu"escudeiro."

Teseuachougraça.—Eaquelecentaurinhoquelávemcomcarneirosaoombro?Hércules contou tôda a história da captura do jovem centauro e dos

maravilhososprogressosquevinhafazendo.Teseu estava simplesmente tonto com aquelas novidades; chegou a

abrirabocaaosaberdaaventuradospicapauzinhoscomoMinotauro.— Com que então viram vocês o Minotauro? Conseguiram entrar no

labirintoesair?—Sim—respondeuEmíliaedesfioutodaahistória,contouo truque

doscarretéisdelinhaqueusou,istoé,quefoidesenrolandoàmedidaqueentrava,demodoapoderemguiar-senasaída.

Teseunãosabianadadecarretéis.Emíliacorreuàsuafamosacanastraetrouxeum.

—É isto. Linha número 50, J. P. Coat.Muito boa para pregar botões.Mede200jardas,ou138metrosnamedidadecimalqueusamosnomundomoderno.Tenhotrêscarretéis.Possocederum...

Teseuaceitou.Quediaaquele!Ospicapauzinhosnãocessavamdeadmiraroheróida

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Ática.EmboranãotivesseaimponênciadeHércules,Teseurevelavamaiorbeleza.Equeinteligência!...

Minervinodesfiou-lheahistória,enquantoosdoisheróisdevoravamoscarneiros.

— Ah, meus amiguinhos, vocês tiveram hoje a honra de travarconhecimento com o herói que quase eclipsou a glória de Héracles. Suaorigem é real, pois é filho de Egeu, rei de Mégara. Foi Teseu quemconquistouaÁtica—ecomoprêmio teveacidadedeAtenas,aglóriadaHélade.SuasaventurasheróicasquasequeseequiparamàsdeHércules.Aprimeira foi a luta contra Corineto, quematava os viajantes a golpes declava. Corineto quer dizer "o que combate com clava." Teseu matou-o eapossou-sedesuaterrívelclava—nuncamaisabandonando-a.AÁticaeravítimademalfeitoresfamosos,comoEsciron,queobrigavaosviandantesalavar-lhe os pés no alto dum penedo e depois os arrojava aomar, ondeeram comidos por uma tartarugamonstruosa; como Sinos, que atava osviandantes a uma árvore encurvada até o chão e depois, largando-a, osarremessava longe, despedaçando-os; como Procusto, que "ajustava" asvítimasaotamanhodoseuleito,oracortandoumpedaçodaspernas,oraesticando-as com a maior violência; como Cercion, que obrigava todomundo a lutar com ele e depois matava os vencidos. A todos Teseudestruiu,comaplicaçãodasmesmastorturasqueesseshomensperversostinhaminventado.

— Que peste o tal Procusto! — observou Pedrinho. — Já ouvireferênciasao"leitodeProcusto",masnãosabiaoqueera.

—EquemaisfezTeseu?—quissaberEmília.Minervinocontinuou:— Ah, não tem conta! São infinitas as proezas de Teseu, e sempre

norteadasparaobem.Eleéoamigodasliberdades,ocastigadordostiranosemonstros.FoiquemdeucabodeFea,ajavalinadeCromion,mãedaquelejavalidoErimanto,vencidoporHéracles.Eatéseidecoisasqueaindanãoaconteceram,masvãoacontecer.

—Comosabe?—perguntouEmília.— Porque freqüento o Olimpo, e lá ouço o que os deuses conversam

sobre as coisas do porvir. Este touro de Creta, por exemplo. O que vaiacontecerestáescritonaspáginasdofuturo.

—Estápredeterminado—dissecientificamenteoVisconde.Minervinoriu-seda"aranha-de-cartola"econtinuou:—Héracles levarávivoaEuristeuestetourodeCreta,masEuristeuo

soltará novamente. E o touro louco irá numa corrida furiosa até aos

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arredores de Maratona, e assolará aquela região. O Rei Egeu mandarácontra ele o herói Androgeu, futuro vencedor de todos os concursos devárias Panatenéias — e esse herói sucumbirá na empresa. Teseu entãoatrever-se-áairatacarotouro,eoagarraráaunha,eolevaráparaAtenas,ondeopassearápelacidade;depoisosacrificaráaoApolodeDelfos.Masisto ainda são coisas do futuro, como também a luta de Teseu contra asamazonasetantasetantascoisasmais.AgoraveioeleaestailhaparadarcabodoMinotauro.

—EvaivenceroMinotauro?—Sim...Terminadaarefeição,osdoisgrandesheróissedespediram.Teseuláse

foi com o carretel de linha nº 50 na mão e Hércules e Pedrinhocontinuaramnorastreamentodotouro.

Váriosdiassepassaramassim,semqueomeninoperdesseapistadotourodeCreta..Eforamandando,andandoatéquederamcomaentradadofamoso labirinto. O chão ali estava desnudo, de modo que os rastos dotourosemisturavamcomrastodegenteeoutrosanimais.

Pedrinhodesnorteou.Nãopodiagarantirqueotourohouvesseentrado.— Pode ser que sim, pode ser que não— disse ele para Hércules. O

melhoréentrarmosparainvestigar.O herói vacilou. Entrar no labirinto era fácil, mas como sair? Aquele

labirintodava ládentromilvoltas,e foraconstruido justamenteparaquequementrassenãopudessemaissair.Emíliasossegouoherói.

—Nãotenhamedo,Lelé.Paranósesselabirintoé"canja".Jáestivemosládentro,fomosatéondemoraoMinotauroedepoissaímoscomamaiorfacilidade.

—Como?—Pormeiodalinhadosmeuscarretéis.Tenhotrêsnacanastra.—MasnãoosdeuaoheróidaÁtica?—Deium.Aindarestamdois.Doisbastam...

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V-Dédalo

A entrada no labirinto de Creta processou-se exatamente como daprimeira vez, quando lá estiveram em procura de tia Nastácia. Emíliaseguiu atrás de todos, desenrolando a linha. Por que atrás? Porque seseguisse na frente, os outros podiam embaraçar a linha nos pés e estavatudoperdido.Emíliaeramuitoprevidente.

Foram entrando. Eram corredores e mais corredores, uma coisa semfim.Emcertopontoalinhadosegundocarretelacabou.Eagora?

Pedrinho resolveu o caso. Fez fogo, obteve carvão e mandou que oVisconde viesse de carvãozinho em punho riscandoo chão. Hércules nãocessava de admirar aquele menino. Que engenho! Que habilidade paratudo!Tãosimplesaidéiadocarvão...

Afinal chegaram ao fim, exatamente lá onde da outra vez ospicapauzinhoshaviamencontradooMinotaurogordíssimodetantocomerosbolosdetiaNastácia.Mas,emvezdeMinotaurooqueviramlá foiumhomem...

Hérculesabordou-o.—Queméstu?EsperoencontraroMinotauroedoucomumhomem...— SouDédalo— respondeu o interpelado. Tive um atrito com o Rei

Minosefuiencerradoaqui...—Dédalo?—repetiuHérculescomardeespanto.—Dédalo,omesmo

construtordestelabirinto?—Exatamente.Estoupresonaarapucapormimpróprioconstruída...O espanto foi geral. Dédalo preso na armadilha que ele mesmo

concebera!Quecoisaprodigiosa!...O Visconde lembrou o caso do Doutor Guillotin, aquele francês que

inventoua guilhotinae afinal acabouguilhotinado; e tambémveio comocélebrecasodo tourodebronzedePerilo.EssePerilometeu-seumdiaamau, e concebeu a idéia de um novo suplício: um touro de bronze oco.Punha-se lá dentro a vítima e acendia-se um grande fogo embaixo. Aosentir-sequeimadovivo,o supliciado rompiaaosurros—eaassistênciatinhaaimpressãodequeeraotouroqueestavaurrando.

—Quebisca!—exclamouPedrinho.—Monstromauassimnuncavi.— Pois esse malvado recebeu o castigo que merecia —continuou o

Visconde.—Como?—Periloconstruiuotouroocoemuitolampeiramentefoioferecê-loao

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tirano Fálaris. O tal Fálaris, que era outra peste, exclamou: "Ótimo!Façamosaexperiência",emandouacenderfogodebaixodotouroemeterládentroaopróprioPerilo.

—Bem feito—berrou Emília.—Eu fazia exatissimamente amesmacoisa.

Dédalosuspirou.—Pois foi o que amimme aconteceu. Construí por ordemdeMinos

estelabirintoeagoracámevejopreso,tambémporordemdeMinos...—Mas teve uma grande sorte— disse Pedrinho.— Vamos salvá-lo.

Bastaquenosacompanhe,quelogoestaráforadaqui.Dédaloriu-secomgrandetristeza.— Impossível. Eu, que sou o construtor deste labirinto, sei que quem

neleentranãosaimais...—Bobagem,Dédalo.Aquiestamosnósquejáestivemoscáesaímos.E

agora entramosdenovo e vamosdenovo sair—e explicouo truquedalinhainventadopelaEmília.

Dédaloabriuaboca.Depoispediram-lhenotíciasdoMinotauro.— Já não existe. Esteve cá ontemumherói tremendo, que se atracou

comomonstroematou-o.—Teseu!...—gritouPedrinho.—Eondeandaele?Jásaiu?...—Ah,não!Nemsairá.Deveandarperdidoaíporessescorredoressem

fim.— Pois havemos de salvá-lo também, disse Pedrinho. E o touro de

Creta?Dédalonãoentendeu.Pedrinhoexplicou:—O touro louco, sim.Nósoestamosperseguindo. Jáopegamosuma

vez a laço e o amarramos a uma árvore.Mas Junomandou de noite umratinho roer o laço — e o boi fugiu. Estamos agora atrás dele. Viemosseguindoosrastosatéàentradado labirinto.Talvezhajapenetradoaqui,nãosei.

Dédalofoideopiniãoquenãohaviaentrado.—Asseguroquenãoentrou.DepoisdamortedoMinotauro,osilêncio

temsidocompleto.Sehouvesseentradoeuteriaouvidoseusurros.—EocadáverdoMinotauro?Ondeestá?Dédalolevou-osaopontoonderesidiaoMinotauro.—Ei-lo!...Sim.LáestavaoMinotauroestendidoporterra,morto,mortíssimo.—DequemodoconseguiuTeseuvencê-lo?

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—Emlutacorpoacorpo.Atracou-secomeleeestrangulou-o.QueheróitremendoéTeseu!...

LongamenteestiveramaliaexaminaroMinotauromorto.—Sim—observouEmília.—Éomesmoquevimosdaquelavez,mas

muitomaismagro.DepoisqueraptamostiaNastácia,ficousemquitutes...HérculesacertoucomPedrinhoumplanoparasalvarTeseu,enão foi

difícilencontrá-lo.Dédalotinhanacabeçatodooplanodaquelaconstrução,demodoquefezváriasdeduções,comoasdoSherlockHolmes,edepoisdemeiahoradepesquisadeucomoheróidaÁtica.

Quefestafoioencontro!OpobreTeseujáestavadesanimadoeexaustodetantoandarporaquelesmalditoscorredoresdespistantes,masquantomaisandavamaisemaranhadoficava.

Tudo correu bem. Uma hora depois estavam todos fora do labirinto.Facílimaforaasaída,graçasaoriscodecarvãodoViscondeeaofiodelinhadosdoiscarretéisdaEmília.

Aover-sedenovorestituídoàluzdodia,Teseulevantouosolhosparaocéu e fez um agradecimento a Palas, a deusa de Atenas. Depois abraçouHércules; também abraçou o Pedrinho e o Visconde e deu um beijo naEmília.

— Obrigado, amigos! Graças a vocês, acabo de ressuscitar. Sim,considero o meu caso um verdadeiro caso de ressurreição, pois já meconsideravaabsolutamentemorto...

—Porquenãousouocarretelqueeudei,herói?—perguntouEmília.—Usei-o,masbrevea linha se acabou.Duzentas jardas époucopara

esteinfernallabirinto.Dédalodissequesóumalinhade800metrospoderiairdaentradaaté

ao ponto final. Com um carretel só, de modo nenhum Teseu poderiaarranjar-se.

AsdespedidasdeTeseu eDédalo foramcomoventes. Cadaum seguiunumrumo.Depoisqueseafastaram,HérculesolhouparaPedrinho.

—Eagora,oficial?Perdemosapistadotouro...Pedrinhovoltouaexaminarochão.Súbito,deuumgrito.—Acheidenovoorasto!Elechegouatéaquimasnãoentrou—efez

veraHérculesoverdadeirocaminhotomadopelotouro.—Poiscontinuemosanossaperseguição—disseoherói.OcarrodeApolojáiadescambandoeoestômagodeHérculesjáestava

a reclamar carneiros. O centaurinho partiu no galope para a preia docostume,enquantoosoutrossesentavamàmargemdumriacho.

—Quediacheio!—observouPedrinho.—Quantacoisa!...

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—EquelindoheróiéTeseu!—disseEmília.—Quearinteligente...Estáme lembrando aquele atleta que Narizinho viu em Atenas e tanto aencantou.

Hércules não deixou de sentir uma ponta de ciúme diante daqueleentusiasmodeEmíliapelabelezadoheróiático.Maslánoíntimodeu-lherazão.Osdeuses fizeram-no,aele,Hércules,musculosodemais,excessivoem tudo. Isso lhe assegurava a posição de Herói Nacional da Grécia—omaiordetodos,oinvencível.Masprivava-odabelezasempardoheróideAtenas...

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VI-OHerói-Menino

Aperseguiçãoaotouroloucoconsumiumaisdoisdias.Noterceiro,pelamanhã,oencontrodumviandanteveioconfirmarasdeduçõesdePedrinho.Aquelehomemouviraumurroestranhoemcertadireção—eapontou:

—Lánaquelerumo.Suponhoqueseocultounocapãodematoquesevêdaqui.

Encaminharam-setodosparaobosque.Hérculesàfrente.Logodepoisouviramumurro.

—Ele!—exclamouPedrinho.—Aquelavozéminhaconhecida...Hérculespediuolaço—masqueédolaço?Ocentaurinhoesquecera-o

na entrada do labirinto. Enquanto Meíoameio ia no galope em busca dolaço.Hércules, de clava empunho, foi avançando cautelosamente. Súbito,novoberromaispróximo—eotouroapareceu.

Apareceuna fímbriadobosque.Omesmoolharchispante,osmesmosbufos. Escarvava o chão com fúria. Ao dar com o herói, urrou de novo einvestiu em sua direção com ímpeto de bomba voadora. Hércules, de péfirme,esperou-odeclavaerguida.MasPedrinhoadvertiu-onovamente:

—Nadadeclava,Hércules!Nãoseesqueçadequetemdeopegarvivo.Oheróilembrou-sedasordensdeEuristeuelargouaclava.Iaagarraro

touroaunha.Otouroaproximou-secomumavelocidadeincríveleinvestiu.Hérculeso

esperoufirmecomoumrochedo.Ah,quecenaaquela!...Quandoamarradado touro colheu o herói pelo peito, um som balofo quebrou o silêncioreinante—bá!Mas o touro havia encontrado um contendor digno de si.Suamarradafoicomoumgolpedemartelo-pilãodeencontroaumblocodeaçoinamolgável.Otouroestacou.Osbraçosdoheróiohaviamcingidopelos chifres — e Pedrinho sentiu um frêmito de entusiasmo diantedaquelaverdadeiraesculturaviva:osdois gigantes imobilizados, comosesubitamente transfeitos empedra.Nenhumdosdois semoviauma linha.Imóveis,imobilíssimos,comoquecongelados...

Os picapauzinhos deliravam. Aquela cena valia todas. O tremendoesforçodeHérculesneutralizavaotremendoesforçodotouro.Nenhumdosdoispodiamover-se,mudardeposição.EassimiriamficaratéaoregressodeMeioameio.

Um galope. EraMeioameio que vinha vindo. Ao ver de longe o heróiatracadocomotouro,seugaloperedobrou.

—Pronto!—disseaochegar,jogandoorolodolaçoparaPedrinho.

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O pequeno herói do Picapau Amarelo tomou-o, fez a laçada e correuparao touro.Mas comopodia colherna laçadaos chifresdo touro, seoschifresdotouroestavamcolocadosaosflancosdeHércules?Emíliagritou:

—Lace-opelopé!...Era uma sugestão de bobinha. Uma laçada pelo pé escapa com o

primeirotrancodeumboi.Pedrinhoialaçá-lopelopescoço.Issoeracontratodas as regras dos rodeios, mas o único jeito naquele momento — e,desfazendoalaçada,lançouaargolaporcimadocangotedotouro.Restavaagoraalcançaraargolacaídanochãodooutroladoerefazeralaçada.Mascomopuxaraargolacaídadooutrolado?Sehouvesseporaliumavaradegancho...

—OViscondeaqui!—berrouPedrinho—eEmíliaempurrouemsuadireçãoo sabuguinho.Pequeno comoera,podiapegar a argola e trazê-lapara o lado de cá, passando por baixo do pescoço do touro. O Viscondetremia. O touro podia esmagá-lo com uma patada. Não tinha coragem.Emíliaveiodeláedeulheumtranco.OViscondefoicairbememcimadaargola. Encheu-se de ânimo. Agarrou a argola e, passando por baixo dapapadadotouro,veioentregá-laaPedrinho.Pedrinhoenfiouaoutrapontadolaçonaargolaeassimrefezalaçada.JogouentãoapontadolaçoparaMeioameioegritou:

—Corraeestique...Meioameioassimfez.Pegounapontadolaçoedisparou.Alaçadafoise

fechando. Fechou-se completamente. O monstro estava seguro pelopescoço.

— Corra uma volta do laço nessa árvore aí! — gritou Pedrinho; eMeioameio correu uma volta do laço em torno ao tronco da árvoreindicada. — Agorasegure firme! — gritou Pedrinho. Meioameio seguroufirme.

—Pronto,Hércules!Podelargarotouro.Hércules desprendeu-se daqueles chifres e deu um grande salto de

banda.Otouro,liberto,urroueinvestiucontraoherói.Hérculesdeunovosaltodebanda—eassimváriasvezes,enquantoMeioameioiaencurtandoolaço.Momentosdepoisestavaotouronovamentecomacabeçajuntodaárvore,comodaprimeiravez—masoapertodalaçadaemseupescoçooiaestrangulando.Eraprecisotransferiralaçadadopescoçoparaoschifres.Como?

Pedrinhopensoudepressa.Oúnicojeitoerafazeroutralaçadanaoutrapontadolaçoepassá-lapeloschifresdotouro.Efoioquefez.Presootouroao tronco pela laçada dos chifres, e bem amarrado, podiam afrouxar a

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laçada que o prendia pelo pescoço. Meioameio executou habilmente aoperação—enãosemtempo.O touro jáestavadeolhosesbugalhadosesemfôlego.Sedemoramdoisoutrêsminutosmais,adeustourodeCreta!...

Pronto! Lá estava o tremendo animalão novamente seguro e bemseguro. Emília bateu palmas. Hércules sorria e o Visconde assoprava-setodo. Ainda não estava completamente refeito do ato de heroismo querealizarasemquerer.

Hércules abraçou Pedrinho. Pela segunda vez reconheceu que umgarotocomoeleeranovidadenaGrécia.

— Muitos heróis temos tido por aqui, oficial; mas herói-menino, oprimeiroqueapareceunaHéladefoivocê.

EmíliareclamouumbomabraçonoVisconde.“Eletambémcontribuiumuito,Lelé.Foiquempassouaargoladoladodeláparaodecá.”

Hércules apertou a mão do sabuguinho, dizendo: “Meu Valenteescudeiro!”

Ótimo. Estava tudo ótimo. Restava apenas vigilarem de noite paraprevenir novo roimento do laço pelo camundongo de Juno. Emília teve aidéia de botar um gato preso ao tronco, mas onde encontrar um gatonaquele ermo? A idéia vencedora foi a do Visconde: esfregar o laço comsucodeerva-de-rato,queévenenosíssima.Ecomoninguémsoubessequeervaeraaquela,osabuguinhocientíficoexplicou:—Aschamadaservas-de-ratosãomuitas,todasdafamíliaPalicurea.Há

aPalicureastrepensdefloresamarelasemcacho;háaPalicureanoxia,queérubiácea. Há a Palicurea nitotianoefolia, outra rubiácea classificada porMartius. E há a Palicurea rigida, também chamada"Douradinha-do-campo..."

Emíliaquasedeunele.— Estupor!... Em vez de tanta exibição de ciência, melhor que vá

correndoaobosqueverseencontraqualquerdessasPalicureas...OViscondefoieencontrouumpezinhodaPalicureaofficinalis, tãoboa

comoqualqueroutraparaenvenenarosratinhosdeJuno.Amassouaquelasfolhasentreduaspedraschatas,fêzummingauedeu-oaPedrinho.

—Bastaqueesfregueistonolaço.Foi o que Pedrinho fez— e namanhã seguinte puderam observar o

maravilhosoefeitodareceitinhadoVisconde: láestavaaopédotroncoocadáverdocamundongodeJuno...

Muitobem.AprimeirapartedaqueleTrabalhodeHércules fôra feita.Restavaasegunda,talvezamaisdifícil:conduziraqueletouroatéMicenas.A Ilha de Creta erguia-se a uns cem quilômetros do continente. Como

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atravessar esses cem quilômetros doMediterrâneo com aquele touro nolaço?

Puseram-seaestudaroproblema.Emíliapensounopirlimpimpim.Comumaboaesfregadeladomaravilhosopónofocinhodotouro,iaelenumsófiunnnparaMicenas,maspara isso eranecessárioqueHércules tambémaspirasseopó.

E Palas se opunha. Palas havia terminantemente proibido ao heróirecorrer novamente ao tal pó transportador, visto como o seu coraçãohipertrofiadopoderianãoresistir

—EsefizéssemosMeioameioseguircomotouro?—sugeriuPedrinho.Hércules opôs-se.Meioameio era aindamuito novo.Não agüentaria o

touro lá na chegada. Idéia vem, idéia vai, ficou assentado o seguinte:Hérculesatravessariaoscemquilômetrosdemaranado,puxandootouro,eelesiriam"apó"esperá-lonumapraiadocontinente.

Eassimfoi feito.Logodepoisdoalmoço,Pedrinhodistribuiuasdosesdepirlimpimpim,muitobemcalculadasparaumfiunnnatéaoextremodopromontóriodeMaléia.Láesperariampeloheróicomoboi—eseguiriamporterraparaMicenas.OpromontóriodeMaléiaficavanapartedaHéladechamadaLacônia;MicenasficavanapartechamadaArgólida.

Hércules desamarrou da árvore o touro e lá seguiu com ele rumo aomar, enquanto os outros aspiravam as doses do pirlimpimpim. InstantesdepoisdespertavamnumapraiadopromontóriodeMaléia.

—OndeestaráHérculesnestemomento?—refletiuPedrinho,logoqueseviulivredatontura.Muitolongedomarainda...Queacha,Visconde?JáteráHérculeschegadoàpraia?

—Oh,não!Pelosmeuscálculos,eletemdecaminharumastrêshoras.—Equantashoraslevaránadando?O Visconde respondeu que um bom nadador pode vencer cem

quilômetros em vinte horas— e pôs-se a discorrer sobre a natação. EmcertopontoEmíliainterrompeu-o.

—EaquelahistóriadeLeandroeHero,queDonaBentacontou?— Ah, isso foi muito triste — respondeu o sabuguinho. —Havia em

SestosumasacerdotisadeVênusdenomeHero,muitomoçaelinda.Sestosera uma cidadezinha situada na margem européia do Helesponto, esseestreitoquehojesechamaDardanelos.Dooutro ladodoestreito ficavaacidadedeAbidos,ondemoravaLeandro.EsterapazconheceuHeronumafestadeVênuseapaixonou-seetodasasnoitesatravessavaoHelespontoanadoparaveranamorada.

—Quelarguratinhaoestreitonaqueleponto?

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—Milequinhentosmetros—disseoVisconde.TodasasnoitesHeroacendiaum fogonoaltodummorroparaguiarLeandro.Mas láemcertaocasiãoelepassousetediassemaparecer.Setevezesacoitadinhaacendeuofogoenada.

—Quehouve?—HouvequeLeandro,numadassuastravessias,foiapanhadoporum

temporaleafogou-se.AsondaslevaramoseucadáveràspraiasdeSestos.Ao ter conhecimento disso a pobre Hero lançou-se ao mar e morreutambém...Emíliaengoliuumsoluço.

Osabuguinhocontinuou.Contouquemais tardeopoeta inglêsByron,queandavapelaGrécia, tentoueconseguiurepetira façanhadeLeandro.AtravessouoHelespontoanado,exatamentenomesmolugar.

—Enãomorreuafogado?— Não. Foi morrer da febre apanhada em Missolonghi, uma cidade

gregaqueaindanãoexistemasvaiexistir.AhistóriadeHeroeLeandroentristeceuospicapauzinhosecomoveuo

jovemcentauro.— E se Héracles não agüenta e também morre, como Leandro? —

lembrouEmília.Estoucommedo...

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VII-ALoucuradoRei

Mas tudo acabou bem.No dia seguinte, pelamanhã, forampara cimaduma grande pedra aguardar o aparecimento do herói. O mar mansoestendiadiantedelesassuaságuasazuis.MinutosdepoisEmília,queeraagrande"enxergadeira”,gritou:

—vendodoispontinhos lá longe...Dirigem-separacá...Duascabeças,umadehomem,outradeboi...Sãoeles,sim...

E erammesmo. Dali uma hora Hércules safou-se do mar, puxando otouroporumchifre.

Que festa foi a recepção do herói! Hércules chegou cansadíssimo,completamenteexausto.Felizmenteotouroestavamaiscansadoainda,senãoteriafugidopelasegundavez.

AviagemdaliatéMicenascorreucheiadeperipéciaselancesheróicos.O caminho que seguiram passava pela parte leste da Arcádia— emuitoinsistiuoViscondeparaumaparadinhaemEstinfale.Mascomoessaurbeficassemuitoforademão,oVisconde,suspirando,tevededesistirdasuaesperançadereverapastorinhaClimene...

Afinalchegaram,enaformadocostumeospicapauzinhossedirigiramaoacampamentoenquantoHérculeslevavaotouroparaacidade.

Que prazer encontrarem-se de novo naquele amável retiro, com oribeirãoamurmurejarcomodecostumeea florestaverdinha láperto!Otemplo de Avia não fora bulido por ninguém. Perfeito como o haviamdeixado. Lá se erguiam as estacas com as esculturas comemorativas dosTrabalhos de Hércules. Pedrinho fincou mais uma e pregou no topo asétimaesculturarepresentandoHérculesatracadocomotouro.

Depoisteveumaidéia:—Esedéssemosumpuloatéacidade?Foram. Encontraram Micenas num grande tumulto por causa da

chegadadoherói.TodosjásabiamahistóriadotourodeCreta,eestavamcorrendoparaapraçadomercadoa fimdevê-lo.Hérculesamarrara-o lánumpálanqueeforaapresentar-seaorei.

— Pronto, Majestade! — disse ele na sua voz mansa de herói bemcomportadodiantedasoberania.—CumprifielmenteamissãoqueVossaMajestadehouveporbemconfiar-me.OtourodeCretaestáamarradonumesteionapraçadomercado.

Euristeu fechou a carranca. Que responder? Estava já cansado dasvitóriasdoherói. IndubitavelmentePalas tinhamais forçadeque Juno.E

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Euristeu consultou com os olhos o ministro Eumolpo, sempre ali muitolambetamente ao pé do trono. Eumolpo, que já tinhana cabeça umnovoTrabalhodestinadoaoherói,cochichoutrêssegundoscomosoberano.

EuristeudesenfarruscouacaraedisseparaHércules:—Muito bem. Agora o que tem a fazer é ir dar cabo dos cavalos de

Diomedes.Hérculesnãosabiaquecavalosfossemaqueles.Eumolpoexplicou:—Diomedesé reidosbistônios, naTrácia.Possuiuns cavalosque só

comem carne humana. Diomedes alimenta-os com os náufragos que astempestadesarrojamàscostasdoseureino.SuaMajestadeordenaqueváseliquidescomessescavalosantropófagos.

Hérculesbaixouacabeçarespeitosamente,murmurando:—Assimseráfeito,Majestade!Disseesaiu.Euristeu ficou a conferenciar com Eumolpo. Estavam tramando

qualquercoisa.Depoisordenouaumdosguardas:—VáàpraçadomercadoesolteotourodeCreta.Oguardaabriuabocaeousoudizer:—Equeserádopovoláreunido,Majestade?Euristeufulminou-ocomoolhar.—Cumpraasminhasordensenãodiscuta.Oguardafoisoltarotouro.Enquanto isso os picapauzinhos chegavam à praça onde o povo se

comprimiaparaveromonstroprisioneiro.Oscomentáriosferviam.—Quebeloanimal!—diziaum.—Belo, sim,mas perigosissimo.Olhe comobaba de cólera e fumega.

Pareceatéqueespirrafogo...—TenhomedodeCreta—diziaoutro. Jáestive láumavez.Tudosão

tourosnailha—eháaquelehorrendoMinotauropresonolabirinto.Pedrinhointerveio:—HouveoMinotauro.Jánãoexiste.—Como?Porquê?—evárioscuriososorodearam.— Sim— confirmou Pedrinho. — O grande herói Teseu da Ática lá

esteveeestrangulouomonstro.Oespantofoigeral.Ninguémaindasabiadograndeacontecimento.Arodadecuriososemtornodospicapauzinhosiaaumentandocadavez

mais. O Visconde, sobretudo, provocava milcomentários. Uma aranha decartola! Equando souberam que todos três haviam tomado parte naaventuradoherói,oassombronãotevelimites.

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Nessemomentochegouoguardadorei.—Espalha!Espalha!...—gritou.VimcomordensdeSuaMajestadepara

soltarestebicho.Ninguémentendeu.—SoltarotourodeCreta?Soltarummonstroquejáfeztantosestragos

nomundo?...—Sim,sãoordensdeSuaMajestadeeasordensdeSuaMajestadenão

sediscutem—respondeuoguarda,jácomamãonolaçoparadesfazeronó.

Quandoopovopercebeuqueotouroiamesmosersolto,ah,caiunumgrandepânico.Foiumagritariageraleumcorre-corre,comonuncaseviu.Uns voavam por aquelas ruas como lebres. Outros embarafustavam-sepelascasasetrancavamasportaspordentro.

Oguardasoltouotouroe,coitado,foiasuaprimeiravítima.Otouroocolheu nos chifres e arremessou a vinte metros de distância, todoarrebentado.Equantosnãomorreramnaqueledia...Omonstroestavacomo ódio represo, de maneira que ao ver-se solto explodiu num horrendoacesso de furor. Cada arranco que dava era uma criatura que caía empandarecos.

PedrinhoagarrouEmíliaeoViscondepelasmãosesumiu-sedaliatoda—corriaarrastandooscoitadinhos.MinutosdepoischegouaopontoondeMeioameioos esperava. Jogouosdois sobreo lombodo jovemcentauro,montouedisse:

—Fujamosnomaiorgalope!OmalditoEuristeumandousoltarotouro.Essaspalavrasvalerammaisdoquequantaesporahánomundo.Nunca

Meioameiogalopoucomtamanhavelocidade.Chegadosaoacampamento,umaidéiaosassustou.—Eseotourovemporaqui?Esenosreconheceevinga-se?Omelhoré

treparmos àquela árvore—ePedrinho apontoupara a árvoremais alta.Todossubiram,menosMeioameio.Suadefesaeraogalope.

—Nãopossocompreenderaidéiadotalreimandandosoltarotouro—observouPedrinholánogalho.—Paramimeleéaindamaisdementequeotouro.

—EHérculesquenãovem?—impacientava-seEmília.—Seráquevaiatracar-senovamentecomotourolánacidade?

— Acho que não— opinou o Visconde.— Agorame lembro do quedisse Minervino. O touro vai para Maratona, onde será novamentecapturadoporTeseu.Éoqueestágravadonaspáginasdolivrodofuturo.

Nessemomento—lávemLelé!...gritouEmília.

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Sim, Hércules vinha vindo, de cabeça baixa, como absorto emapreensões.Chegoueriu-sedevertantos"picapaus"naárvore.

—Desçam!—disse ele.—Nadahámais a recear.O touro já saiudacidadeeafundouporessescampos.

—Nãovirádestelado?—Não.Tomououtrorumo.Oalíviofoigeral.Todosdesceram.— Qual a razão de haver Euristeu mandado soltar o touro? —

perguntouPedrinho.—Nãosei.Osdesígniosdecertossoberanossãoinescrutáveis—foia

respostadeHércules.***

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8-OSCAVALOSDEDIOMEDES

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I-OscavalosdeDiomedes

PedrinhonãoestavaentendendoaHélade.—Masafinaldecontas—disse ele— isto aquimeparecemaisuma saladadepequenospaísesdoqueumpaíssó.Explique-meestaHélade,Minervino.

O mensageiro de Palas explicou que o que chamavam Hélade nãopassava dum cacho de paisezinhos independentes, mas com a mesmalíngua e os mesmos deuses. Havia a Lacônia, a Messênia, a Argólida, aFócida,aTessália,aMagnésia...

—Chega!—berrouEmília.—ParenaMagnésia,senãoécapazdevirtambémoBicarbonato...

—Eéparaumdessescocosdograndecachohelénicoquevamosindo—continuouomensageiro.—VamosindoparaaTrácia.

Sim,eraparaaTráciaqueseiamencaminhandoHérculeseseubando,acompanhadosdopreciosoMinervino.EHérculesiaparaaTráciaporqueera lá que ficava o reino dos bistônios, então governado por um rei denomeDiomedes,donodostaiscavalosquecomiamgente.Pedrinhohaviaobservado que no mundo moderno os eqüinos eram todos herbívoros;carnívoro não existia nenhum. Mas numa Grécia em que havia de tudo,nadamaisnaturalquetambémhouvessecavalosantropófagos.

—Elesnãohaviamnascidoantropófagos—explicouMinervino.—MascomoDiomedes,emvezdecapimouaveia,sódavacarnehumana, forammudando de gênio, tornando-se ferozes e por fim viraram uns horríveismonstros.Diomedesosalimenta comosnáufragosquedãoàpraia—osnáufragosestrangeiros;aosnacionaiseleperdoa.

—Malvado!—exclamouEmília.—Porissoéqueeusoudemocrática.Issodereisetiranoséumadesgraça.TratamossuditosdomesmomodoqueosdeusesdoOlimpotratamoshomens.

Minervinoaconselhou-aanãofalarassimdosdeuses,porqueosdeusestudo viam e ouviam e erammuito vingativos. E a propósito contou umaconversarecentementeouvidanoOlimpo.

—EstavaHerafalandoemvozbaixacomZeus,oseudivinoesposo.Deiumjeitinhoepudepescarumtrecho...

Emíliainterrompeu-o:—MasentãovocêmoranoOlimpo,Minervino?—Não;mascomoestoutrabalhandoparaaminhadeusaPalas,voltae

meia dou um pulo até lá para dar conta dos meus trabalhos e receberordens. Foi numa dessas vezes que ouvi a tal conversa. Não sei se devo

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contar...Minervinovacilava.—Quediziam?—Falavam justamente de você, Emília.Hera queixava-se a Zeus dum

"pelotinhohumano"queapareceraporaquijuntamentecomuma"aranhadecartola"eummeninoestrangeiro.O"pelotinhohumano"—diziaela—andava "interferindo" em muita coisa, e falava dos deuses com grandeirreverência.Jáporduasoutrêsvezeshaviatratadoaela,adeusasuprema,de"peste"e"bisca".Ora,issoerainadmissível—eHerapediuaZeusqueafulminassecomseusraios.Zeus refranziu os sobrolhos e prometeuque sim.Mas logodepois que

Heraseafastou,Palas,aqueminformeidetudo,aproximou-seedisse:"NãodêsatençãoaHera,Zeus.Otal"pelotinho"estádomeuladoetrabalhandomuitobemnaproteçãodeHéracles.FoiquemosalvounocasodoJavalidoErimanto. Hera enfureceu-se com isso e quer agora vingar-se." Zeusconhecemuitobemaquelesdeusesedeusas;andaapardasintrigalhadastodasevai"temperando"oOlimpocomgrandehabilidade.Foiassimquenaquele dia prometeu a Hera fulminarEmília e depois prometeu a Palasprotegê-la.

—Entãoeleépaudedoisbicos?—Mais oumenos. Zeus émanhoso. Sabe agir politicamente— e vai

temperando.Masvocêstomemmuitocuidadocomalíngua.Opeixemorrepelabocaeascriaturashumanasmorrempelalíngua.

Depois dessa prosa o assunto recaiu sobre Diomedes, o rei dosbistônios.Minervino contou que os cavalos desse rei não eram cavalos esim éguas. Quatro éguas, de nome Podargo, Lampon, Janto e Deno. Tãoferozesficaramqueviviampresasemcorrentes.

—Eéverdadequetêmcascosdebronze?—perguntouPedrinho,queouviraalguémdizerisso.

— Sim, têm cascos de bronze, como a corça do monte Cirineu queHérculescapturou.

—Hércules,não;nós...corrigiuomenino.O herói seguia lá atrás, como de costume; estava mentalmente

conversandoconsigomesmo.Edetantoparafusar,sentiuumaperturbaçãocomosefosserecairnaloucura.Eoqueemseguidafez,senãoeraloucuraeracoisamuitoparecida.Hérculesentreparouegritouparaosoutros:

—Alto!AntesdeseguirparaaterradosbistôniosquerochegaraDelfosparaumaconsultaaoOráculo.

—Sobre que, Lelé?—perguntou familiarmente Emília,masHércules

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não respondeu. Isso deixou a todos numa grande incerteza. "Que será?"Pedrinho foi de opinião que "havia qualquer coisa". Talvez houvesseHérculescometidoalgumcrimeeoroesseoremorso.

Pedrinhoacertou.NumacessodecóleraemMicenashaviaelematadosem razão nenhuma a um miceniano, e vinham daí os seus remorsos,aquele ar enfarruscado, aquele remoimento interior. E a súbita idéia quelheveiodeiraDelfostambémseligavaaessefato.HérculesqueriasaberseocrimeperpetradoforaumaofensaaApolo.PorqueaApolo?PorqueavítimaestavasacrificandoaApolonomomentoemqueHérculesaabateu.

Depois de Micenas era Delfos a cidade grega mais conhecida dospicapauzinhos. Haviam estado lá durante a primeira vinda à Grécia emprocura de tia Nastácia; e fora graças à resposta do Oráculo quedescobriram a negra no labirinto. Estiveram depois segunda vez para asalvação do Visconde, como já foi contado num dos capítulos destashistórias. E para lá iam agora pela terceira vez... Para quê? Ignoravam.Hérculesandavafechadíssimoemcopas.

Para chegarem a Delfos tinham de atravessar o istmo de Corinto edepoisaÁtica.DelfosficavanaFócida.Taisviagenseramsempreamesmacoisa.Passavamporaldeiasepousavamemacampamentosimprovisados,como aqueles de Micenas e Estinfale. Meioameio era o encarregado damesa,eoraapresentavaumboiassado,oraunstantoscarneiros.

Minervino já fazia parte do bando, embora com desaparecimentossúbitos quando voava para o Olimpo a fim de dar notícias ou receberordensdesuadeusa.

O Visconde andava mais "assentado". Aquela fúria de namoro e oentusiasmopelavidadelogodepoisdafervuranocaldeirãodeMedéiaiampassando.AindapensavaemClimene,massódelongeemlongeecadavezcommenosamor.

EmíliachegouacochicharparaPedrinho:"TalveznemsejaprecisoquetiaNastáciaconserteoVisconde.Eleestáseconsertandoporsimesmo."Eestava.O fogodemocidade transmitidopelocaldeirãoda feiticeira jáeraumfogosemcalor.OViscondeatépararadebeber.Quandodepassagemporumaaldeialheofereciamvinho,elerecusavacomtodaadelicadeza.

Pedrinho, sempre apreensivo com o estranho estado d'alma deHércules,voltaemeiafalavadissoaMinervino.

— Hércules perdeu a expansibilidade. Não o vejo rir-se. Esquece deresponder ao que perguntamos. Que será?... Tenhomedo que lhe dê umnovo acesso de loucura. Quem já ficou louco uma vez está sempreameaçadoderecaída,dizvovó.

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EassimfoiaviagematéDelfos,muitomenosalegreedivertidadoqueasoutras.Pairavasobreelescomoqueumanuvemdetragédia.

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II-EmDelfos

Há sempremaior prazer em voltar a uma cidade do que em visitá-lapela primeira vez. Aquela terceira entrada emDelfos regalou Pedrinho eEmília como uma volta para casa. Iam reconhecendo inúmeras coisas erecordando passagens das vezes anteriores. E até certas carasreconheciam.

— Olhem aquele homem cabeludo que vimos da primeira vez! —observou Emília apontando para um tipo asiático. Parecido com o ZéCanhambora...

EleshaviaminstaladooacampamentonumavárzeadosarredoreseládeixaramMeioameio.Ocentaurinhonãogostavadoscentrosurbanos.Nãoentendiaopavorqueasuapresençacausava.Hércules,semdizerpalavra,haviaseguidoparaacidade.Ostrêspicapauzinhosforamapélogodepois.

Delfoseraumacidadediferentedetodasasoutras.Umgrandecentrode peregrinação. Gente de todas as cidades gregas, e mesmo de muitasterrasestrangeiras,afluiaconstantementepara lá,emconsultaaofamosoOráculo.Porcausadacontínuainterferênciadosdeusesnosnegóciosdoshomens,apreocupaçãodetodomundoera"sondar"avontadedosdeusespor meio de consultas à Pítia, ou à pitonisa captadora das intenções doOlimpo. Os sacerdotes do Templo de Apolo viviam numa perpétuadobadoura, sem tempo para se coçar. E como nada fizessem de graça, orecebimentodepresentesnão tinha fim.Equepresentes!...Até tijolosdeouromaciçoeramofertadosaoTemplo,emcujosdepósitosseacumulavamimensasriquezas.

Os picapauzinhos encaminharam-se para o Templo e lá encontraramHérculespreparando-separaaconsulta.

— Que será? — murmurou Emília. — Estou pegando fogo de tantacuriosidade...

Entraram.Ficaramaumcanto,vendoeobservandotudo.APítiaestavaatendendoaomensageirodeumreidaBeóciainteressadoemconhecerodesfechodeumaguerraquevinhatramando.APítiaatendeu-o.Depoisdeouvir-lhe a pergunta, levantou os braços, curvou-se para os vapores quesaíam da trípode e com um ar de desvairada murmurou o "vaticínio".Aqueles vapores tinham a propriedade de deixar a Pítia em estado detranse,comoosmédiunsquerecebemumespírito.Emíliadeuumjeitinhodeaproximar-seeouviuaresposta:

— "Antes que as folhas dos plátanos forrem o chão — um rei será

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apeadodotrono.”OOráculofalavasempredummodoambíguo,istoé,quetantopodiaser

uma coisa como outra. E as respostas eram então "interpretadas" pelossacerdotes— quase sempre a favor de quem oferecia os mais custosospresentes.

O emissário do rei da Beócia retirou-se e foi conferenciar com ossacerdotes.EraavezdeHércules.Oheróiaproximou-sedaPítia.Emíliafez-se menorzinha do que era e chegou mais perto ainda, ansiosa por nãoperderumasópalavradaconsulta.

MasaconteceuumfatoestranhíssimoeinéditonoTemplodeApolo.Aover Hércules chegar, a Pítia afastou-se da tripode!... Foi um assombro.Todosospresentesarregalaramosolhoseentreabriramasbocas.

Hércules,ograndeheróinacionalgrego,haviarecebidoemplenorostoumabofetadadeApolo...

Comoiriaelereagir?Resignar-se-iaàquíloou...O "ou" venceu. Hércules, tomado dum acesso de cólera que fez a

assistênciatremerdemedo,avançouparaatrípode,arrancou-adochãoesaiucomelaaoombroparaforadoTemplo...

Emília correu ao encontro de Pedrinho e do Visconde e, tomados depânico,foramvoandoparaoacampamento.Láchegaramsemfôlego,efoiaarquejaquePedrinhocontouaMeioameiooacontecido:

—Hércules foi... foi repelidopelaPítia!Assimque se aproximouela...ela retirou-se para os fundos do Templo! E Hércules então agarrou atrípode,arrancou-aesaiucomelaerguidanoar...SaiudoTemploesumiu-se...

Meioameio ficou assombrado. Nisto Minervino apareceu. TambémestiveranoTemploeobservaratudo.

—HérculeséirmãodeApoloporpartedepai—disseele.Oquehouvenão passa de briga entre irmãos. A ofensa que Hércules fez a Apolo,arrancando de lá a trípode, é a maior de todas. Prevejo grandescatástrofes...

—Equevaifazer,Minervino?—VoujáparaoOlimpoconsultarPalas—disseeafastou-se.Ospicapausficaramalisozinhos,tontosdumavez,semnenhumaidéia

nacabeça.— E agora? — exclamou Pedrinho. — Hércules sumiu. Estamos

largadosaquinestaterraestranhaesujeitosatudo...Depois de muitas vacilações, Pedrinho resolveu que montassem em

Meioameio e saíssem pelo mundo a ver se encontravam o herói. Lá

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cavalgaram o centaurinho, e lá partiram num desapoderado galope.Quandoavistavamalgumviandante,detinham-separaperguntar:

—NãoviuHércules?Nãosabedele?OsviajantesnadasabiameMeioameioretomavaogalope.Eassimaté

daremcomumquepôdeinformaralgumacoisa.— Vi, sim, mas não sabia que fosse Hércules. Vi passar um herói de

formastruculentas,comumatripeçaaoombro...—Equerumotomou?— Passou por mim resmungando palavras terríveis e lá se foi nesta

direção.Meioameio retomouo galopeno rumo indicado, e assim chegaramàs

proximidadesdumacidadezinhadenomeGítio,nointeriordoPeloponeso.De longe avistaramumhomemde alentada estatura, comuma coisa aosombros.

—Éele!—gritouEmília.—ÉLelécomatrípodedaPítia...Ocentaurinhovoouaoencontrodoherói,masdesúbitoestacou.Outro

herói havia surgido diante de Hércules. Pedrinho imediatamente oreconheceu:"Apolo!...ÉoprópriodeusApolo,irmãodeHérculesporpartedepai..."

Nadamaisverdadeiro.EraApoloempessoaquedesceradoOlimpoenamaiorfúriaiaatacarHérculespararetomaratrípode.

Ospicapauzinhossentiramoscabelosempé.Lutaentredoisirmãos—haveránadamaisterrível?EseHérculeseraHércules,Apoloeraumdeus.Ora,umdeusnãopodeservencidoporumhumano.Logo,Hérculesestavaarriscadoaperderapartida.

Osdois tremendos irmãos sedefrontarame romperamemacusações.ApolodeclarouqueaPítiarecusava-seaatendê-loporcausadohomicídioinjustoqueelehaviacometidoemMicenas.

—Tumataste um dosmeus devotos!— acusou Apolo.— Por isso aPítiarecusou-seareceber-te.

Hérculesrespondeu:— Irmãos somos, filhos do mesmo pai. Não reconheço tua

superioridade sobremim. Estou de posse da trípode e vou estabelecer oOráculodeHéracles,emcontraposiçãoaoOráculodeApolo.

A lutadebocafoisubindodefúria,masnomomentoemqueeles iamatracar-se num pega horrível, eis que de súbito um raio desce do céu eespeta-se no chão entre os dois. Era um severo aviso de Zeus, o pai deambos.

HérculeseApoloestarreceram.Compreenderamasignificaçãodoaviso

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celeste. Se não acatassem aquele aviso, Zeus, na sua fúria, fulminá-los-iacomoutroraio.Eláseimobilizaramumdiantedooutrocomodoisgalosdebrigaquerefletemnoquefazer.

MasPalasinterveio.Fezqueoacessodefurordoheróiseacalmasse—eHérculesfoicaindoemsi.Pôs-seafalarmenosexaltadamente.Discutiuoassuntocommaiscalma—eporfimcedeu.Reconheceuqueele,nãoApolo,eraoculpado.Sim,elehaviamatadoodevotodeseu irmãoearrancadoatrípodedoTemplo.NadamaisjustoqueApoloacudisseemdefesadoqueeraseu—doseudevotoedatrípodedeseuTemplo.EHérculesentregouaApolo o que era de Apolo. Em seguida, muito vexado do que sucedera,arrepioucaminho,evidentementecomaidéiadevoltarporDelfosereunir-seaosamigosdeixadosnoacampamento.

Meioameiocorreu-lheaoencontro.Asurpresadoheróifoigrande.—Vocêsaqui!...— Sim — disse Pedrinho. — Vimos tudo. Estivemos no Templo e

assistimosàdesfeitadaPítia...—Aquelabruxa!—acrescentouEmília.Hércules então se abriu. Contou a história do seu homicídio em

Micenas,explicando-ocomomaisumatentativadeHeraparaperdê-lo.— Sim, foi aminha divina perseguidora quemme fez vir o sangue à

cabeça ematar aquele homem. Foi tambémela quemme fez arrebatar atripode,dessemodoofendendomortalmenteaomeuirmãoApolo...

NessemomentoMinervinoreapareceu,devoltadoOlimpo.Contouqueacabava de estar com a deusa Palas, que Palas soubera de tudo e foraagarrar-secomZeusparaprevenirahorrorosa lutaentreosdois irmãos.Dissemais que o acesso de furor de Hércules emMicenas foramais umtruquedeHeraparadesgraçaroseuperseguido.

Hérculessuspirou.—Quevidaaminha!NãopassodeumjoguetedasdeusasdoOlimpo...O

ódiodeHeranãoarrefece...Minervino consolou-o, dizendo que também a proteção de Palas não

arrefecia.—Minhaboadeusatemsempreosolhossobreti,Hércules. Inúmeras

vezesjátesalvou—eassimcontinuaráagindo.Quemgozadaproteçãodeminhadeusanadatemarecear.

Emília perguntou por que motivo eraPalas tão poderosa. Minervínorespondeu:

— Porque goza da predileção do deus supremo, já que passou osprimeirosmesesdesuaexistênciaemsuadivinacoxa.Alémdisso,Zeuse

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todosnoOlimpoadmiram-naerespeitam-nacomoadeusadaSabedoria.Palas, grande Palas, teu mensageiro te admira e te venera do fundo docoração!Tu,sim,ésadeusadasdeusas...

Emíliafez-lheamesmaadvertênciaquediasanteselelhefizera:— Cuidado, hein? Se Hera ouve, vai sentir-se enciumada— e adeus

Minervino...

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III-HérculesAcalma-se

AscólerasdeHérculeseramhercúleas.Nãopassavamcomafacilidadecomquepassamascólerasdoshomenscomuns.HaviasereconciliadocomApolo,masmesmoassimrefervialápordentro,comorefervemaslavasdeumvulcão.IssoexplicaavoltaenormequeeledeuparachegaràTrácia.Emvezdeseguirdiretamenteparalá,comoeraonatural,resolveupassarpeloreinodaLíbia.Precisoespairecer—disseele.—Ofogodacóleraaindamequeimalápordentro.VouchegaratéàLíbia.Pedrinho admirou-se. A Líbia era no norte da África, uma terramuito

quente. Ora, se Hércules estava ardendo em fogo interno, como entãopensavanaLíbia?Muitomaislógicoquefosseparaaterradoshiperbóreos,ondetudoégelo.MasMinervinoexplicouqueograndeheróierapartidáriodateoriamédicadosimíliasimílibuscurantur,istoé,paracurarfogo,maisfogo—sóissopoderiaexplicaraquelasuaidéiadaLíbia.

DepoiscontouqueoreidaLíbiaeraumgigantedesessentacôvadosdealtura— Anteu, filho de Géia e Posseidon, ou Netuno, o deus domar. EdissequemuitoreceavaumpegaentreHérculeseessegigante.

—Queécôvado?—perguntouEmília.O Visconde respondeu que o côvado era uma medida muito antiga,

equivalentea trêspalmos.Sessentacôvadosequivaliama180palmos,oumaisoumenos36metros.

—Trintaeseismetrosdealtura?—arrepiou-seEmília.—Masentãoégigantedeverdade...

—Sim, sódezmetrosmenorquea estátuadaLiberdadenoportodeNovaIorque.

Minervino contouqueas "cóleras recolhidas"deHércules só saravamcomarealizaçãodumaproezatremenda,equeaquelaidéiadeidaàLíbiatinhaáguanobico—nãoeraparaespairecer,não...

—Paramim,elequerpegar-secomogiganteAnteu!Eestoucommedodisso...

— Por quê? — indagou Emília. — Acha então que Hércules, que jásustentou sobre os ombros o céu enquanto Atlas ia roubar o pomo dasHespérides,lápodeserbatidoporumgigante?

—É queAnteu é invencível. Pode lutar quanto tempo for semnuncasecansar.

—Porquê?—PorqueéfilhodeGéia,ouaTerra,Géialhetransmiteforçapelospés.

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Emíliateveumaidéiarepentina.—Seéassim,háumjeitodevenceressegigante:bastasuspendê-lono

ar,nãodeixandoqueseuspéstoquematerra!Minervinoentreabriuaboca.Sim,pareciaestaraliumasolução...EmíliafoicorrendoconversarcomoheróiepuxouocasodeAnteu.—ÉverdademesmoqueesseAnteuéinvencível,Lelé?Hércules respondeuquesim,por causada força contínuaque recebia

desuamãeGéia.—Poronderecebeessaforça?—perguntouadiabinha.—Pelospés—declarouHércules.—Osquelutamcomelecansam-se,

masAnteunãosecansaporqueGéiaestácontinuamentelhetransmitindoforçapelospés.

—Eseforerguidodochãoeconservadonoar?DessemodoGéianãolhepoderá transmitir forçanenhuma.É comoaeletricidade lánomundomoderno.Nãohavendoligação,nãoháeletricidade.

Hércules enrugou a testa. A ideiazinha de Emília soou-lhe como umatremenda revelação. Sim, ponderou lá consigo. Se eu o erguer... se eu omantivercomospésdesligadosdaterra...Eumsorrisoimensoiluminou-lheorosto.Hérculeshaviacompreendidoumagrandecoisa.

"Não havendo ligação, não há eletricidade." Sim, sim... Se eleconseguissedesligardaterraospésdeAnteu,ogigantemorreriaporfaltadeforça...

Hércules nada mais disse; limitou-se a agarrar Emília e a beijá-la.Pareciaincrível,masaquelaminúsculacriaturinhaacabavadelheensinaroúnicomeiodevencerumgiganteinvencível...

Aviagemdalipordiante tornou-seumaverdadeira festa.Aalegriadoheróimanifestava-sedemilmaneiras.Acasmurricedesaparecera.Pôs-seacontar mil coisas de sua vida passada, desfiou um rosário sem fim deproezastremendasecomoalegriatrazfome,oseujantardaquelatardefoiomaisabundantedetodos:Hérculesdevorousetecarneirosassados.

AnteueraoterrordaLíbia.Seumaiorgostoconsistiaemprovocarparaalutatodososestrangeirosaparecidosporlá;matava-os,ecomosossosiaerguendoumhorríveltemploemhonraaNetuno.MoravaemTíngis,ondeficahojeacidadedeTânger—eTíngissechamavaassimjustamenteportersidofundadaporTinge,amulherdeAnteu.

Para chegar até lá, o grupo de Hércules tinha de atravessar oMediterrâneo, e surgiu uma dificuldade:Meioameio! Como não houvessememória de centauro embarcado em navio, Pedrinho não achouconveniente que o centaurinho seguisse com eles. Podia acontecermuita

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coisa.FicouresolvidoqueMeioameioosesperasselánaquelepromontóriodaMaléiaondejáhaviamestado.

Hérculeseraumemterraeoutronomar.Enjoou,coitado!EquecoisahorrívelfoioenjôodeHércules!...Chegouaassustarassereiasenereidascomosseustremendosvômitos...

Afinalchegaram,eaentradadeHérculesemTíngisfoiumaverdadeiraentrada triunfal. Até lá havia chegado a famado grandeherói heleno, demodoque apopulação, que vivia esmagadapelodespotismodaquele rei,encheu-sede esperanças. Quem sabe se o heróiheleno não realizaria osonhosecretodetodos:libertaroreinodocrueldespotismodeAnteu?

Todosqueriamvê-loeassombravam-sedianteda sua impressionantemusculatura.Anteufoi logonotificadodapresençadograndeheleno—eriu-se,comoquemdiz:"Otemploqueestouerigindoemhonraameupaiseráenriquecidodemaisumabelacamadadeossos."Emandoudesafiá-loparaaluta.

Hérculesaceitouodesafio.Na hora marcada a população inteira de Tíngis se reuniu na praça

principal afim de assistir a mais uma das lutas do soberano com umestrangeiro. Já estavam cansados de presenciar essas lutas e detestemunhar a invencibilidade de Anteu, mas daquela vez uma vagaesperançaluziaemtodososcorações.

—Comovaiseraluta,Lelé?—perguntouEmília.—Comclavaoucomarcoeflecha?

Hércules respondeu que seria luta corpo a corpo, sem armas, só demúsculocontramúsculo.

—Evouaplicaraquelasugestãosua,Emília;vou "desligar"ogigante,comolánomundomodernovocêsdesligamataleletricidade.

Minervino continuava apreensivo,mas quando soube queHércules iapôrempráticaaidéiadaEmília,murmuroumaisaliviado:"Quemsabe?"

Chegou a hora. Nunca fora vista em Tíngis maior massa de povo. Aexpectativaeraenorme.—CorriamdebocaembocamilversõessobreasfaçanhasrealizadasporHércules—adestruiçãodoleãodalua,dojavalidoErimanto,dotourodeCreta,emuitagenteapostavanele.Ospartidáriosdotirano apostavam em Anteu, mas secretamente torciam pela vitória dogrego.

Hérculesapareceunapraçaacompanhadodeseusestranhosamigos—Minervino,Pedrinho, oViscondeeEmília. Inúmeros curiosos rodearamogrupo e não cessavam de espantar-se ante a curiosíssima figurinha da"aranhadecartola".

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Derepente,ummurmúrionopovo.EraAnteuquevinhavindo.Chegou.Emíliateveumapequenadecepção.Emvezdumgigantede36metros

de altura, do tamanho duma torre de igreja, viu aparecer um homemdeapenasmaisumpalmoqueHércules.

—Porqueisso?Nãotinhaeleentão60côvados?Quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado. A altura de

AnteuerasóumpalmomaiorqueadeHércules;masissocontadodesdealida Líbia até aHélade, ia aumentandodepontos até dar 60 côvados.Nãohaviadúvida,porém,dequeAnteueraumgigante,comotambémHérculeserabastanteagigantado.Sim:dois"massas".

Os formidáveis contendores mediram-se com os olhos. Anteu estavarisonhoorisodoslutadoressegurosdesiejamaisderrotados.Tinhafamadeinvencível,eninguémmaisdoqueeleacreditavanessainvencibilidade.Hércules apresentou-se sereno como sempre. Seu rosto não revelava amenorexpressãodeinquietude.

—Precisodessesossos!—disseAnteunumagargalhada.Emvezdereplicar,Hérculesatacou.Masatacoucomoatacavasempre,

confiantenasuaforçaecertodesuplantaroadversário.Emtodasaslutasvenceomais forte,oquebatemais,oquesecansamenos.Ocansaçoéaprincipalcausadetodasasderrotas.Quemagüentaumminutomaisqueoparceiro,estávencedor.Hérculesnãooignorava.Naqueledia,porém,teveocasiãodeverificara"incansabilidade"deAnteu.Depoisdemeiahoradeluta, atracado com o Número Um de todos os grandes lutadores daantiguidade. Anteu apresentava-se ainda mais fresco do que uma belamanhãdemaio.Esorriaosorrisodescuidosodosinvencíveis.

O calor da luta fizera que Hércules esquecesse completamente aideiazinhadaEmíliaquantoà"desligação"dogigante;demodoqueestavaa lutar comAnteu como sempre lutara até ali.Mas estranhouuma coisa:nunca,emtempoalgum,houvecontendorqueresistissetanto.Emregraonossoheróiderrubavaoadversárionosprimeirosgolpes.EAnteuresistiajá de meia hora sem apresentar o mínimo sinal de cansaço. Hérculescomeçouainquietar-se.

NessemomentoEmíliagritou:—Desligue,Lelé!...Umclarãoiluminouocérebrodoherói.Lembrou-sedaconversasobre

aeletricidadeedoplanoqueelehaviaconcebidodedestacardosoloospésdeAnteu.Comoforaesquecer-sedaquilo?Quecabeçaasua!...Masestavasalvo.AadvertênciadeEmíliavieramuitoatempo.

Hérculesdeuentãoumgolpehabilíssimo,doqualresultouficarAnteu

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depernas para o ar, completamente destacadoda terra, e enquanto comumadasmãoslheapertavaopescoço.comaoutraoimpediadepousarospés no chão. A força de Anteu esvaiu-se como por encanto. O giganteestrebuchounoaremoleouocorpo...

Opovoestavanomaiorestarrecimentodeassombro.Ninguémfalava.Todas as respirações suspensas, como no circo de cavalinhos quando amúsicapára.PoralgunsinstantesHérculesaindamantevesuspensoaquelecorpo sem vida; depois arremessou-o ao solo— e o gigante aplastou-secomoumpanomolhadoquecai...

Amultidãocontinuavaparalisadadeespanto.Seriapossível?Estariamrealmentelibertosdoodiosorei?Etodosesfregavamosolhos,commedodeque fossesonho.Masquandoseconvenceramdequenãoerasonhoesimmaravilhosa realidade,ohurraqueopovodeu foiumurrouníssonoquedurouminutoseminutos.

— Viva Héracles, o herói invencível! Viva Héracles — o nossolibertador!

Umaondadegentelançou-sederumoaoheróiparaerguê-loecarregá-loemtriunfo.HérculeschamouEmília.

Ergueu-ae levou-aaobraço,comoumamenina levaumaboneca.E láseguiu para o palácio sob o delírio das aclamações. Uma voz gritou,indicandoEmília:

"Éotalismãozinhodele!Umtalismãvivo!...”Hérculesrespondeu:"Maisque isso. É o meu verdadeiro cérebro. É a minha dadeira de idéias..."palavras que ninguém podia entender. Minervino seguia rente, com oViscondeerguidoaoombroeamãodadaaPedrinho.EfoiaprimeiravezquePedrinholamentounãosergentegrande,pois,comprimidonaimensamassadepovo,eraarrastadopelaondaenãoviacoisanenhuma.

NopalácioopovoquisqueHérculesocupasseotronodaLíbia.Umreicomo aquele, que regalo! E nummomento de embriaguez o herói quaseaceitouacoroatãoespontaneamenteoferecida.Maso"talismã"chamou-oàordem. "Nãopenseem tronos,Hércules.DonaBentadizqueopiordosmonstros éopovo,porqueumdia aclamaos chefes enodia seguinteosdestrói. Nada como ser "herói em seco”— só, semmais nada."Hérculesdeu-lherazãoeagradecendoamanifestaçãopopular,declarouqueotronoda Líbia tinha de ser ocupado pelomais digno dos líbios. O povo que oescolhesse e o sentasse no trono por tanto tempo ocupado pelo cruelAnteu. Terminada a grande manifestação, Hércules foi ao templo deNetuno,feitocomosossosdaspobresvítimasdogigante,edestroçou-oapontapés.EmíliagritouparaPedrinhoquenãoseesquecessedemeterno

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bolsoumavértebraparaoseumuseuzinho.Ànoitehouveumgrandebanqueteoferecidoaoherói.Hérculescomeu

como nunca — e beberia de cair, se Emília não interviesse: "Nada deexcessos alcoólicos, Lelé.Muitoperigoso.Vocêperde a cabeça epõe-se afazerestragosnestespobreslíbiostãoentusiastas."Hérculesobedeceuesótomouáguacommel.

Nodiaseguinteoheróiamanheceuoutro.Haviasaradocompletamentedoacessode"cólerarecolhida".OViscondeobservouqueparaosgrandesheróissóosgrandesremédios. "Ummortalcomumcura-secomqualquerlaxantedesulfatodemagnésia,paraumHérculesopurgantetemdeserumAnteu."

Umegípcioaproximou-seedisse:—GrandeHéracles,meupaístambémestánecessitadodeumalimpeza

no trono. Temos como rei umverdadeiromonstro, talvez aindapior queAnteu.

—Queméele?—Busíris,filhodePosseidoneLisianasa.Anteulutavaematavatodos

osestrangeirosaportadosnaLíbia.BusírissacrificanoaltardeZeustodososqueaportamaoEgito.Porquenãovais láenão libertasonossopovodaquelacalamidadefeitahomem?

HérculesolhouparaEmíliacomoquempedeparecer.Emíliadisse:—Opapeldosheróisélimpardemonstrosomundo.Vá,Lelé,eachate

comotalBusíris.Hérculesprometeue,depoisdedespedir-sedonovoreiedaquelebom

povo,tomouorumodoEgito.Busírisno começonão se revelara cruel, e assim foi atéodiaemque

umagrandesecaassolouopaís.Noveanosdurou tal seca.Osbois foramdefinhando todos. As plantações secaram-se. Gente morria de fome portodos os cantos. Vendo a gravidade da situação, um famoso adivinhodaquelaépoca,denomeFrásio,procurouoreiedisse:

—OmeiodepôrfimàhorrívelestiagemqueestádestruindooEgitoéumsó:sacrificaraZeusumestrangeiro.

Frásio era estrangeiro, e Busíris fez como o tirano Fálaris: mandouagarrá-lo e sacrificá-lo no altar de Zeus. E como por coincidência viesseuma chuvanodia seguinte, Busíris convenceu-se de que omeio de fazerchoverestavarealmentenaquilo—nuncamaiscessoucomossacrifícioshumanos.

Minervino advertiu ao herói do grande perigo que era para umestrangeiropenetrarnoreinodeBusíris,oqualpossuíagrandesexércitos.

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MasaconselhadopelaEmíliaoheróidesprezouoconselhodaprudênciaetranspôsasfronteirasdoEgito.

Ao ter conhecimento do fato e dos propósitos de Hércules, Busirisenfureceu-se e lançou contra ele um exército de dez mil núbios ferozescomotigres.Hérculesfoicapturado,acorrentadoeconduzidoàpresençadeSuaMajestade.

—SeioquefizesteparaomeugrandeamigoAnteu—disselheBusíris,masvouvingaramajestaderealofendidapeloteucrime.SerássacrificadoamanhãnoaltardeZeus.

Ospicapauzinhosficaramnumagrandeaflição.PelaprimeiravezviamHércules dominado e infamemente acorrentado. E como o exército deBusíris era um verdadeiro enxame de vespas ferozes, armadas de lançaspontiagudíssimas e escudos de couro de rinoceronte, Pedrinho e osabuguinhoconsideraramtudoperdido.UnicamenteEmílianãoperdeuafénoherói.

—Elearruma-se—diziaela.—Como,boba?—Não sei; só sei que no últimomomento dá um jeito. Tenho amais

absolutaconfiançaemLelé.Mas apesarda confiançadaEmília,Minervino, Pedrinho e oVisconde

não viam de que modo o herói acorrentado pudesse arrumar-se — eestavamnamaiorangústia.

Chegou o dia do sacrifício. Numerosos sacerdotes dispuseram-se emredor do altar de Zeus à espera da vítima. E quem era a vitima a sersacrificadaaZeus?JustamenteumdosmaisgenerososefamososfilhosdeZeus...

Minervinoeospicapauzinhosforacolocar-senumpontodeondetudopodiamver—oViscondeeEmíliaerguidosnosbraçosdomensageirodePalas,Pedrinhodepésobreumblocodegranito.

Súbito, a multidão rumorejou e abriu alas. Era Hércules que vinhavindo,seguidodumalegiãodesoldados.Busiriseseuscortesãosocupavamumaplataformaerguidaàspressasparaaquelefim.

EmíliaviuHérculeseadespeitodesuaconfiançanodestinodoheróiteve vontade de chorar. Lá vinha ele acorrentado de pés e mãos e, porironia, coberto de guirlandas de flores de lótus, que é a principal flor doEgito.Osacerdotesacrificador,ládiantedoaltarcorreuodedopelofiodafacasagrada."Secortasseodedoseriabemfeito!"—pensouEmília.

Hérculesparoudiantedoaltar.Nãohaviamudadoemcoisanenhuma.Asua confiança em si próprio só era igualada pela confiança de Emília no

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destinodele.O sacrificador subiu a um banquinho, porque se tratava duma vítima

muitoalentada,eergueuafaca.Iacravá-lanagargantadoherói...Mas o que houve até parece mentira. Naquele momento Hércules

contraiuosmúsculosnumesforçopotentíssimo—eas algemasde ferroque o ligavam às correntes se romperam como se fossem de vidro.Libertou-see, agarrandoas correntes,utilizou-sedelas comose fossemasuaclava.Numápicevarreuasoldadesca toda.O"espalha" foidosnuncavistos. Corposdespedaçados voavamem todas asdireções.A grita se fezimensa. Todo mundo fugia no maior pânico. O chão ficou juncado deescudoselanças.Umgrandeclaroseabriuemredordele.

Lá na plataforma, Busíris e os cortesões agitavam os braços, semsaberem o que fazer.Muitos fugiram a tempo. Os que patetearam foramatingidos pelas correntes que o herói arremessou— e caíram esmoídos.UmelodacorrentealcançouBusírispelatesta,eamioleiraespirroucomoespirra água de poça quando cai uma pedra em cima. Hércules havialibertadoomundodemaisumodiosorei.Ecomoamesmacorrentehaviaalcançado Afidamante, filho de Busíris, e o arauto Calves, ficou o Egitotambém livre daquele filhote de serpente e do odioso anunciador dasordenscruéisdosoberanoesmigalhado.

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IV-AsÉguas

Depois de mais aquele tremendo feito. Hércules ficou radicalmentecurado de qualquer restinho de "cólera recolhida" que por acaso aindahouvesseemseucoração—elembrou-sedaséguasdeDiomedes.

—Sim,temosdecuidardisso.Cadadiaquepassoaqui,maisvítimaslánosbistôniossãodevoradasporaquelesmonstros—edeuordemdevolta.

A volta de Hércules para a Grécia foi rápida, e ocorreu sem outroincidentealémdonovoenjôoqueoassaltounatravessiadoMediterrâneo.Que horríveis os enjôos do herói!... O Visconde aconselhou-o a cheirar emorderumlimão,masnuncahouveremédiomaisinútil.HérculessósarouquandopôsopénopromontóriodaMaléia.

Lá estava Meioameio a esperá-los. Aproximou-se no galope, alegre eradiante como um menino que entra em férias. Pedrinho, Emília e oVisconde,todosfalavamaomesmotempo.CadaqualqueriaseroprimeiroacontarostremendoscasossucedidosnaLíbiaenoEgito.

DepoisconversaramsobreDiomedes.Meioameiocontouquedavapenaoquesepassavapor lá.Aséguascarnívoras tinhamumapetitehercúleo.Devoravam uma vítima por dia. Quatro éguas, quatro vítimas. O infameDiomedesespalharaumverdadeirobatalhãodeguardaspelascostasafimderecolherospobresnáufragos.Eraoquetodagenteporalidizia.

Prosseguindo na viagem, o grupo chegou à terra dos bistônios, ondeacamparam fora da cidade em que residia o rei. Hércules, que estavacansadíssimoporqueaviagempormaroenfraqueceramuito,determinourefazer-se comdois dias de repouso absoluto— e pediu a Pedrinho quefosseverondeficavamaséguas.

PedrinhopartiucomoVisconde.As éguas viviam num estábulo de granito, solidamente acorrentadas.

Quem tirou a limpo esse ponto foi o Visconde. Pedrinho ficou de longe,escondidoatrásdumaárvore.Ascomissõesmaisperigosassemprecabiamaosabuguinho.Pequenocomoera,ecomoseuardearanhadecartola,comfacilidade se insinuava por toda parte sem que o percebessem. O seureduzidotamanhinhofacilitavatudo—eseporacasolevasseabreca, tiaNastáciafaziaoutro.SabugosnãofaltavamnosítiodeDonaBenta.

OViscondechegouatéaentrarnoestábulodasmonstruosaséguasparaverificar se tinham realmente cascos de bronze. Tinham. Ele bateu numdelescomumpedregulho.

Terminadoo repouso,Hércules levantou-se completamente refeitoda

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viagem por mar e pronto para a realização da nova proeza. Seguiu ocaminhoindicadopeloVisconde,indodarnosestábulos.Diantedaséguassedeteveparaestudara situação.Eramquatro.Tinhadearrancá-lasdaliumaporuma; isso,porém,depoisdedestroçarumadúziadeguardasalipostos porDiomedes. Essa parte foi amais simples. Comdoze golpes declavaHérculesabateuosdozeguardas.

Eagora?Comofazercomaséguas?Lembrou-se duma coisa. Perto morava Abderos, um seu amigo.

SubmeteriaaséguaseaslevariaaAbderosparaqueasguardasse.Porqueisso? Por que não as destruía duma vez? A explicação era a seguinte:Hércules desejava pregar em Diomedes uma grande peça: fazer queaquelas éguas, que jáhaviamcomido tanta gente, tambémo comessemaele.Deixava-asguardadasporAbderos;edepoisdederrotaras forçasdeDiomedes e aprisionar esse rei, então o faria devorar pelas éguas. Ummalvado daquela marca estava a reclamar um castigo assim. E HérculessubjugouumaporumaaséguaseaslevouparaaviladeAbderos.

—Conserve-asaquiatéqueeutragaasobremesaquemerecemestasdevoradorasdegente.

DisseevoltouparadesafiarDiomedesesuasforças.O exército dos bistônios foi facilmente derrotado e Diomedes

aprisionado.Hérculesacorrentou-oelevou-oàmoradadeAbderos,maslápasouporumagrandedecepção: as éguashaviamdevoradoo seupobreamigo...

A dor de Hércules foi imensa. Depois da dor veio a cólera — e,agarrando Diomedes, arremessou-o para cima dos monstros famintos.Pedargofoiaprimeiraquemordeu.Lampon,JantoeDenovieramaseguir.EmsegundosDiomedesseviuestraçalhadoetransferidoparaobuchodasferas.

E agora? Matá-las? Não. Tinha de levá-las vivas a Euristeu, pois docontrário o desconfiado rei não acreditaria na realização do oitavoTrabalhodeHércules.

Mascomolevá-lasalidaTráciaatéMicenas?ConduzirotourodeCretaforafácil,porqueotouroeraum.Tratando-sedequatroéguasadificuldadequadruplicava. A solução que Hércules achou foi muito simples: levá-lasumaauma.Para isso teriade fazerquatrovezeso trajetodaliaMicenas,idaevolta.

Oquesefez.Aséguasforamlevadasumaaumaedeixadasescondidaslá na floresta do acampamento. Como não comiam capim, houvenecessidade de alimentá-las com carne — e os rebanhos dos arredores

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sofreramfortedevastação.Depois de conduzir para a floresta as quatro éguas e de deixar lá o

Viscondeaguardá-las,oheróifoiaopaláciocomodasoutrasvezes.—QuerofalarcomSuaMajestade—disseaoporteiro—eoporteiroo

introduziuàrealpresença.—Majestade,aséguasdeDiomedes,comedorasdegente, jáseacham

aqui,conformeasordensrecebidas.—Onde?—Naflorestadonossoacampamento,guardadaspelomeuescudeiro.Euristeudesapontoupelaoitavavez.Odespeitoofezmorderoslábios.

Olhou para Eumolpo. O ministro tinha a cara no chão. O rei segurou abarba.Ficoupensandoporalgunssegundos.Depoisdisse:

—Muitobem.Solte-as...Hércules não discutia ordens. Não fez nenhum sinal de estranheza.

Limitou-seaumacurvaturadecabeça.—Assimserá feito,Majestade—evoltandoaoacampamentodisse a

Pedrinho:“Euristeuordenou-mequesoltasseaséguas.”—Soltá-las?—exclamouomenino, admiradíssimo.Soltaressas feras

antropófagas?...—Éoquemerestaafazer...PedrinhonãocompreendiaaquelaestranhasubmissãodeHérculesao

rei. Com um peteleco podia mandá-lo para o beleléu, e no entantohumilhava-sediantedele,executava-lhetodasasordenspormaisabsurdasquefossem,comofazoescravoparaosenhor.

OViscondeestavasentadinhonumtocodepaulánafímbriadafloresta.Hérculesgritoulhedelonge:—Solteaséguas,escudeiro!...Emíliaespantou-sedaqueleabsurdo.Quecoisa!...Mandarocoitadinho

soltar quatro monstros antropófagos, pesadamente acorrentados. AforcinhadoViscondenãodavanemparaerguerumdoselosdascorrentes.Seráqueoheróienlouqueceradenovo?—cochichouelaparaPedrinho.Eprotestou:

—Issotambémnão,Lelé.Éprecisorespeitarafraquezahumana.Hérculesdeuumagranderisada.—Estoubrincando—efoielemesmosoltaraséguas.Ospicapauzinhostreparamàárvoremaispróximaefoiládecimaque

assistiramaoterrificoespetáculodagalopadadaséguasdeDiomedesporaquelescamposafora...

Que destino tiveram taismonstros? Dias depois vieram a sabê-lo por

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Minervíno,quandoomensageirodePalasvoltoudamansãodosdeuses.— Foram devoradas por um bando de lobos nas encostas do monte

Olimpo.— Lobos?— exclamou Emília muito assustada.— Lá é possível que

existamloboscapazesdedevorarsemelhantesmonstros?Minervino explicou que era um bando de lobos olímpicos. Revoltado

contraoprocedimentodeEuristeu,odeusdosdeuses lançoucontraelasumbandodelobosferocíssimos.

—PorquenãoasmatoucomaquelesraiosfabricadosporHéfaistos?—quissaberEmília.

—PorqueZeusreservaosseusraiosparafulminaroshomens.NodiaseguinterecebeuHérculesumchamadodepalácio.Foi.Orei já

havia conferenciado com Eumolpo e escolhidomais um Trabalho para oherói—onono.Efoinestestermosqueocomunicou:—"Hipólita,arainhadasamazonas,possuiaquelecintomaravilhosocomqueAresapresenteou.MinhafilhaAdmetafazquestãodeserdonadessecinto.Ésó."

Hérculesvoltouparaoacampamento tãoapreensivocomodasoutrasvezes.EratalqualoGeneralNapoleãoque,consultadosobreoquesentiaantes de travada a batalha, respondeu: "Medo". Cada vez que Euristeu oincumbia dum trabalho, Hércules sentia medo. Assim foi naquele dia.Quandochegouaoacampamentoaindaestavainquieto.

—Quevaiseragora?—perguntouPedrinho,quelhesaíraaoencontro.Hérculessuspirou.

—Algoterrível.Admeta,aambiciosafilhadeEuristeu,querserdonadofamosocintoqueAresdeuàrainhadasamazonas.Tenhoeudeiraoreinodessasterríveisguerreirasembuscadotalcinto...

—Estácommedo,Hércules?—Medo propriamente não—declarou o herói—mas nãome iludo

quantoàsdificuldadesdessetrabalho.Asamazonassãoguerreirasterríveise numerosíssimas — e o pior é que são mulheres. Nunca lutei contramulheres, chego até a achar uma coisa sem jeito. Daí vem a minhapreocupação.

Pertodali, ládefrontedoTemplodeAvia,estavaEmíliasentadinhaaoladodoVisconde,falandomaldeJuno.

—Biscamaiornuncavi!—diziaela.—Má,má,máatéali.Pareceatéaquelanegralápertodaponte,quematouafilhadetantajudiação.Ah,seeu fosse Zeus! Jogava aquela bisca lá de cima com um bom empurrão, ecasava-mecomPalas.Essa,sim,mereceserdeusa.

OVisconderecordouaadvertênciadeMinervinosobreoperigodefalar

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maldosdeuses.— Ela não escuta — disse Emília. — Estou falando baixinho... Além

disso,eu...Emília não acabou a frase. Tentou concluí-la e não pôde. Ficara

subitamente áfona, ou sem voz. Muda! Muda como um peixe! Pensavadireitinho, queria falar e nada— de sua boca não saía som nenhum. OVisconde, impressionadíssimo, examinou-lhe a garganta. Depois foicorrendoavisarPedrinho,láàsvoltascomHércules.

—Pedrinho—disseele—parecequeEmíliaemudeceu...—Emudeceu?Como?Quehistóriaéessa?...—Emudeceu;ficoumuda;perdeuafaculdadedefalar.—Como?...—Estavaconversandocomigomuitobem,alinaportadoTemplo,ede

súbitoparounomeiodumafrase:"Alémdisso,eu..."Pôs-seafazercaretas,esforçou-se e nada. Nada mais saiu, nem sai. Espiei a gargantinha dela.Tudonormal.Éummistérioquenãocompreendo.

Pedrinhocorreuaver.EncontrouEmíliamuitoagitada,querendofalarenãopodendo.Muda.Absolutamentemuda!Naânsiadeexplicar-se,foiláàcanastrinha, tirou umpedaço de papel e comum toco de lápis escreveu:"Quebrou-seládentrodemimalgumapeça.Querofalarenãoposso.Tenhomedodequesejacastigodocéu;euestavafalandomaldeJuno,acoitada,uma deusa tão bonita e boa! Se ela tem ódio a Hércules é com razão.Hérculesnãotemculpanenhuma,bemsei,masJunotemrazão.Coitada!...Hádesofrermuitocomaquelemaridotãoruim...Perdão!Zeustambémnãoéruim,coitado.Sóqueatrabalheiradeleédemais..."

Pedrinhoperguntou:—Masnãopodemesmofalarnada,Emília?E ela escreveu: "Não está vendo? Felizmente não fiquei surda e me

arrumodestemodo:ouçoedouarespostaporescrito...”—Masissonãopodeficarassim,Emília.Temosdeverumjeitodecurar

essamudez.Se forcoisadoOlimpo,nósnosarranjaremoscomPalasporintermédio deMinervino. E se for algumdesarranjo fisiológico, podemosconsultarosgrandesmédicosdeAtenas—ouentãoprocuraremosMedéia.Eladáumafervuraepronto.

Emília escreveu: "Não quero que me fervam. Tenho medo de ficarcozida por dentro. Aminhamudez há de sermesmo coisa lá doOlimpo,porqueveioexatonomomentoemqueeuachamavadebisca.Minervinomehádevaler."

OmensageirodePalaseraumhomemesquisito.Oraestavaali,oranão

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estava.Apareciaedesapareciasemdizeradeus—masnaquelemomentoemquetantoprecisavadele,nemsinaldeMinervino.

OViscondecontouaHérculesahistóriadasubitâneamudezdaEmília.— Pois é isso. Parou no meio da frase e nunca mais. Mudíssima,

coitadinha...Hérculesnãoqueriaacreditar.—Hádesercoisapassageira.Umavezfiqueiassimporcausadumforte

resfriado.Perdicompletamenteavoz...—Ficouáfono—disseoVisconde.Hérculesnãoentendeu.Osabuguinhoexplicou:—Pois"áfono"(privadodavoz)éumapalavragrega."A"querdizersem

,e"phone"vocêsabequeé"voz".Nóslánonossomundomodernousamosmuitaspalavrasvindasdaqui,como"fonógrafo",escritadavoz;"fotografia",escritada luz, istoé...—eoViscondeexplicava,explicavaeHérculesnãoentendia.Apesardegrego,oherói ignoravaaspalavrasgregasdaciência,queoVisconde,queerasabugo,tinhanapontadalíngua.

Hércules admiravamuito o Visconde. Ficava às vezes horas a ouvi-lofalardastaiscoisascientíficas,fazendoosmaioresesforçosparaentendê-lo. Por causa daquela sua "idéia sobre a educação", o herói procuravaeducar-senascienciazinhasdoescudeiro.

—Poisé—disseoVisconde.—Emíliaestááfona—semvoz—muda...Você também ficou áfono por causa do resfriado. E muito receio que amudezdaEmíliasejaumavingançadeHera.

—Porquê?—PorqueEmíliaestavafalandomaldeHeraquandoemudeceu.Emília

nãotempapasnalíngua.Diztudoquantosente.EcomoestádepontacomHera,voltaemeiaatratade"bisca"...

—Queébisca?—perguntouHércules.OViscondedissetudooquesabiasobreapalavra"bisca"erematou:—Quando lánosítioagentequer falarmaldumapessoa,diz "éuma

peste", “é uma praga” ou “é uma bisca". Emília vivia chamando Hera debisca—efoinumadessasvezesqueemudeceu...

Hérculesficoupensativo.Depoislevantou-seefoiveranovavítimadavingativadeusa.

—Então,Emília?Éverdadequeperdeuafala?Emília fez uma carinha de "sim" que deixou o herói seriamente

condoído.— Temos de cuidar dela — disse ele voltando-se para Pedrinho. —

Palas, a boa deusa que tanto me tem valido, há de valer a ela também.

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Aguardemosavindadomensageiro.A mudez da Emília foi um sério transtorno para o herói e os

picapauzinhos. Emília era a alma do bando. Sem Emília ninguém searrumava—alémdequesóelapossuíaosegredomágicodofaz-de-conta,esse supremo recurso das ocasiões de grande perigo. Se não fosse aaplicação do faz-de-conta na luta de Hércules com o javali do Erimanto,ondeestariaoheróinaquelemomento?Comcertezamortoeenterrado.Ecomoeraassim,HérculesdecidiuquearestauraçãodavozdaEmíliatinhamuito mais importância para todos eles do que a conquista do cinto deHipólita.

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V-AMudezdaEmília

Todosos outros assuntos foramencostados.Hércules ePedrinhonãotiravamdacabeçaocasodaquelamisteriosamudez.Comonãopudessemencontraruma "causa fisiológica", comodiziaoVisconde, assentaramemqueacausaeradivina—evidentementevingançadeJuno.

Apobrezinhaestavatãoconvencidadissoqueentrouaadularadeusa.O Visconde pilhou o papel em que ela acabava de escrever uma oraçãoassim:"DivinaJuno,amaisformosadasdeusas,amaisbondosadetodas—protegei-nos!Seteofendi,perdoa-me.Umadeusatãoimportantenãopodevingar-sedumapobrezinhacomoeu,feia,bobaetc."eiaporaíalém,comasmaioresadulaçõespossíveis.DepoispediuaPedrinhoqueconstruísseumaltaremhonraaJunoeoencheudeflores.

Hércules estava profundamente comovido e a estranhar uma coisa:como é que já tendo sido pai de vários filhos nunca sentiu por nenhumdelesoquesentiaporaquelepelotinhodegente?

Dois dias passaram eles ali a só pensarem naquilo, cada vez maisansiosospelavoltadeMinervino.NoterceirodiapelamanhãomensageirodePalasreapareceu.

—Que há?Que tristeza é essa?—disse ele, percebendo que algo deanormalhaviaacontecido.

Pedrinhoexplicouocasodamudez.—Hum!—exclamouomensageiro.—Eubemqueavisei.Eubemque

andavaprevendo isso.A irreverênciadaEmília tinhade acabarmal.Nãoconheçoacausadamudez;masestouajurarqueeumavingançadeHera...

—VemvindodoOlimpo?—indagouPedrinho.—Nãoouviunadaporláarespeito?

—Nada. Estive combinando comPalas a defesa deHércules no novoTrabalho que ele vai empreender. As amazonas são as mais terríveisguerreirasqueomundojáviu.Palasfez-memilrecomendações.

—Poissóvejoumasaída—dissePedrinho,—vocêvoltaraoOlimpoparadiscutirocasodaEmília.JáquePalasseinteressatantoporHércules,nãohádequererqueelefiqueprivadodaajudadaEmília.Nocasodojavalifoi ela quem salvou tudo. Emesmono caso deAnteu, se não fosse a sualembrança da "desligação" émuito possível que a luta acabasse de outramaneira.EHérculesjádissequenãodaráumpassoparaaidaàterradasamazonas antes de resolver o caso da Emílía. Volte já ao Olimpo paraconversarcomPalas.

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Minervinoconcordou.Eradefatooquehaviaafazer—elápartiuparaoOlimpo.

Encontrouosdeusesasebanquetearem.OlindoGanimedes,comumaânfora de ouro em punho, estava a servi-los de néctar. Zeus,imponentíssimoemsuabarbaolímpica, comentavao casodabriga entreApoloeHércules.

—Ah,estesmeusfilhos!—disseeledepoisdesorverumgoledadivinabebidaelamberosbeiços.—Vivememrixas.Nósquedevíamosdarobomexemploaoshumanos,comportamo-nosaindapiorqueeles.Quetrabalhotenho para harmonizar estes deuses e deusas!... Hera me dá milaborrecimentoscomoseuinextinguívelódioaHércules—eagoraéApoloquetambémsepõecontraele...

Apoloprocuroujustificar-se.—ReconheçoasqualidadesdeHércules,mas tambémreconheçoque

freqüentemente se excede. Desta vez, por exemplo. Não só se atreveu amatarumhumanoquemefaziaumsacrifício,comofoiaDelfosearrancoudeláatrípode.Ora,issotambémédemais...

—Fezmuitobem!—dissePalas.—APítiaofendeu-odamaneiramaisbrutal. Ele queria consultá-la para conhecer o teu pensamento, Apolo, ecertamentesesubmeteriaaoquetu,porintermédiodaPítia,lhedissesses.MasaPítiadeu-lheascostas...

—Efezoquedeviafazer,—contraveioApolo.—EstavainformadadocrimedeHérculescontraapessoadummeudevoto.

—Sus!Sus!...—exclamouZeus.—Bastaderecriminações.PensocomoPalas. Se Hércules foi consultar a Pítia, é que estava com remorsos naconsciênciaeprocuravaserguiado.Hérculesnãomatapormaldade.Erramuitasvezes,euoreconheço,maserradeboafé.

Junomordeuoslábios.AindulgênciadeZeusparacomoheróipunha-aforadesi.

Foi nesse momento que Minervino entrou. Entrou na sala dosbanquetes olímpicos e fez de longe um sinalzinho a Palas. A deusalevantou-sedisfarçadantenteefoiveroqueera.

—Quehá?—HáqueEmíliaperdeuodomdavoz.Emudeceusubitamentenomeio

dumafrase...Palas fincou os olhos em Juno, que naquele momento cochichava ao

ouvidodeHermes.— Escute. Sobre que assunto estava Emília falando no momento de

emudecer?

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Minervinorespondeumuitobaixinho:"SobreHera.Estavadizendoquebiscamaiornãopodehaver."

Palassorriudesatisfação,murmurandoentredentes:"Enãodissenadademais..."Edepoisdeunsinstantesdepausa:

— Pois já não tenho dúvida nenhuma: Emília emudeceu porinterferênciadeHera.Vejonissoodedoda"bisca".Depoisdaquelecasodojavali do Erimanto, Hera jurou perder Emília. E na luta de Héracles comAnteu,elatambémouviuperfeitamenteoconselhinhodeEmília:"Desligue,Lelé!" e foi exatamente isso o que determinou a vitória. Observei tudomuitobem.Estávamostodosaquiassistindoàluta.AoouviressaspalavrasHeramordeuoslábios.Eupenseicácomigo:"PobreEmilinha!Nuncamaisterásossego..."Evemagoravocêcomessahistóriadamudez...

Minervino disse que tantoHércules como Pedrinho e o Visconde nãoviamoutrasoluçãoaforaaintervençãodivina.

—Estãoconvencidosdequeamudeznãosobreveioemconseqüênciadenenhumdistúrbiofisiológico,esimdaintervençãodeHera.

—Enãoerraram.HádetersidoHera,sim.Comoestáesperançosíssimade que Héracles perca a partida na expedição contra as amazonas, querafastaraEmília...

EPalasficouarefletir.TinhadeatrapalharojogodeHera.Mascomo?Depoisdumabrevepausadisse:

— Só vejo uma solução: Medéia. Hércules que a leve ao palácio deMedéia. Com uma boa fervura, a Emilinha fica totalmente nova e maisfaladeiradoquenunca.Aconselhoisso.

O mensageiro fez uma reverência e saiu. Minutos depois chegava aoacampamento.ChamouHérculesdeparteedeu-lhecontadasuamissão.

— Palas já está a par de tudo e acha que só uma boa fervura nocaldeirãodeMedéiapoderárestituirafalinhadaEmília.

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VI-OCaldeirãodeMedéia

FoiumcustoconvencerEmíliaasedeixarferverpelagrandefeiticeira.—"Nãoquero,nãoquero"—escreveunopapelzinho."Tenhomedode

ficarcozidapordentro."Minervino explicouque isso era absurdo.Todos tinhamvisto os bons

resultadosdocaldeirãonaexperiênciadoVisconde—etambémláestavajovem e bonito aquele Rei Egon, de quase oitenta anos, que ela picou eferveu. A fervura que cozinha por dentro é a fervura comum dascozinheiras. A fervura da grande feiticeira eramagia damais alta, e comefeitosmuitodiversos.

—"Tenhomedo,tenhomedo...escreveudenovoEmília.Pedrinhointerveio.—Medo!Medo!...Estouadmiradodeveressapalavranestepapel.Você

lánosítionuncatevemedodecoisanenhuma,eagoraestáquenemvovó.Qualquerdiasepõeatermedotambémdasbaratas...

Emíliaescreveu:"PergunteaoViscondeoqueelesentiu."Pedrinhoperguntou.—Oquesenti?—repetiuoVisconde.— Ah, um atordoamento delicioso quando a feiticeirame dividiu em

pedacinhoscomaquelafaca;depoisperdiossentidos.Quandoacordei,mevimoçoecorado...

Emília escreveu: "É que ele estava louco. Já comigo vai ser diferenteporquenãoestoulouca.Sósemecloroformizarem...

—Háclorofórmioporaqui?—perguntouPedrinhoaomensageiro—etevedeexplicaroquesignificavaclorofórmioequaisosseusefeitos.

Minervinorespondeuquenão,mashaviaváriasplantasdormideirasdeumefeitomaravilhoso.

—Comumagotadocaldodessasplantasopacientedormeenãosentedornenhuma.

Emíliaescreveuquenãoera "paciente"e sim impaciente; eque sedefatoessessucosadormeciamumacriatura,então,então..."eparou.

—Entãooque?—PerguntouPedrinho.—"Entãopodeser"—escreveuela.Bom.AresistênciadeEmíliaestavameiovencida.Aoutrametadeseria

vencida láporMedéia—eHérculesdeuordemdemarcha.Partiram.Nodiaseguintechegavamaopaláciodafeiticeira.

Hércules explicou o caso. Medéia, porém, não trabalhava de graça; e

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como ainda não houvesse recebido o pagamento da cura do Visconde,aproveitou-sedasituação.

—Sim,disseela.Poderei ferveranovadoentezinha—mas...eaquelasuadívida,Hércules?

O pobre herói coçou a cabeça. Eles são todos a mesma coisa: nuncapensam em dinheiro. D. Quixote era assim. Rolando também. Hércules,Teseu, Perseu, todos eram assim. E aquela exigência de Medéia odesnorteou.

Pedrinhometeuobedelho:—Emíliatemumacanastrinhacheiadepreciosidades.Podemuitobem

pagar não só a cura doVisconde como a dela. Como pomode ouro, porexemplo...

—"DaromeupomodeouroempagamentodacuradoVisconde?Oh,nunca!"—escreveuamudanopapelzinho.

—CuradoViscondeeasua também,Emília.Nãoseja tãocigana.Queadiantapossuirumpomodeouronacanastraesermuda?Pensebem.

AoouvirfalarempomodeouroMedéiaficoutodaassanhada.NãohavianaHéladequemnãoambicionasseapossedamaravilha.

— E como conseguiu este pelotinho de gente um pomo com o qualtodososheróisvivemsonhando?

HérculescontouocasodogiganteAtlas.Medéia ficoumaisassanhadaainda.Emíliaafinalcedeu.

—Sim.Válá.Ficaopomopelasduascuras—esuspirou.OpomoestavanoacampamentodeMicenas comaenormepedraem

cima. Só Hércules tinha a força necessária para removê-la— e lá vai opobreHérculesparaMicenas.Nãohaviaoqueelenãofizesseparaobemda sua dadeira de idéias. Enquanto o herói ia e vinha, ficaram todoshospedadosnopaláciodeMedéia.

PassadoalgumtempoHérculesvoltou.Vinharadiante,comopomonamão.

—Pronto!...Medéiapegounapreciosidadeedeslumbrou-se.Nãohaviadúvidaque

erarealmenteumdostaispomosdasHespérides,detantafamanomundointeiro.

Valianãoduas,maismilcuras.— Pois vamos começar a operação disse ela e encaminhou-se para a

saladafervuracomtodosatrás.Láestavaagrandecaldeiraaofogo.Medéiabotou mais lenha, e já de faca na mão olhou para Emília dizendo:"Aproxime-se!" Emília, porém, correu a agarrar-se a Hércules. Parecia

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tomada de grandemedo.Medéia avançou em sua direção com a faca deBarbaAzulempunho.Emíliaberrou:

—Não!Nunca!...Serpicadaporessefacão?Nunca!...—Masépreciso,Emília—murmurouHérculescomtodaingenuidade,

sem perceber que Emília já estava falando e portanto curadíssima damudez sem necessidade de fervura nenhuma. — É preciso. Não possodispensaroconcursodeminha"dadeiradeidéias"naviagemaoreinodasamazonas;equemeadiantaumadadeiradeidéiasmuda?

Todosassombraram-sedalerdezadoherói.EstavaouvindoEmíliafalare ainda convencido de sua mudez! Pedrinho, num verdadeiro delírio decontentamento,abriu-lheosolhos:

— Não vê que ela sarou por si mesma, Hércules? Não vê que estáfalando?

Hércules arregalou os olhos e compreendeu — e que alegria a sua!Agarrou Emília e beijou-a. Depois abraçou Pedrinho e o Visconde. Tudosalvo!Tudoarrumado!Amudezdesapareceradomodomaismisterioso.Oherói desconfiou que havia sido coisa dos deuses e correu os olhos emredoremprocuradeMinervino.

—QueédeMinervino?Sumira-semomentosantes.AoveropavordeEmíliadiantedaenorme

faca,omensageiroapiedara-sedelaevoaraaoOlimpo.—Palas,minhagrandedeusa,tendedódacoitadinha!Láestádiantede

Medéiacomamaiorcaradehorrorqueaindavi.Horrorda facadepicargente...Vejasedescobreoutromodo.

Palas compreendeu tudo e foi cochichar qualquer coisa ao ouvido deZeus—eZeusentãooperouomilagre:fezqueafaladeEmíliavoltassesemorecursodafervura.

Que alegria lá no palácio de Medéia! Pedrinho dava pulos decontentamento. O Visconde assoprava-se todo — sinal da"euforia" dossabugoscientíficos.EHérculesentão,essebabava-sedegosto.

Emília falava e falava sem parar, como para reaver o tempo perdido.FicoutalqualaquelabonecadepanoquelánosítiodeDonaBentatomouas pílulas falantes do Doutor Caramujo e falou pela primeira vez. FaloutantoqueMedéiatevedetaparosouvidos.

—Levemestadiabinhadaquiquejáestoutonta.MasEmíliacontinuouafalarereclamouadevoluçãodopomo.— Eu concordei em dar o pomo em troca da cura do Visconde e da

minha.Mascomosareipormimmesma,achoqueasenhorasótemdireitoàmetadedopomo...

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Hérculesarregalouosolhos.Queesperteza!...Elenãohaviaselembradodaquilo— e declarou a Medéia que Emília tinha razão. Se o pomo foraaceitocomopagamentodeduascuras,opagamentodeumacurasótinhadesermeiopomo.

Medéia afinal cedeu, de tão tonta que estava com o falatório dadiabinha. E como fosse uma pena partir ao meio uma tal preciosidade,propôsdaremtrocadopomointeiroumtalismãdosmaispreciosos:umavarinhadecondão.

Os olhos de Emília chisparam. Seu maior sonho sempre fora possuirumavarinhadecondão—para"brincardevirarascoisas".Medéiafoiláaoquarto dos badulaques e trouxe uma varinha de condão como as que asfadasusam.

—Aquiatem...Emíliaatétremeuaopegaravaraefoiavirarmilcoisaspelocaminho

queelavoltouparaoacampamento.—Saíganhando!Saíganhando!...gritava.Comestavarinhaeuviroem

ouro os pomos que quiser— e fez experiência numa azeitona. Com umtoquedavarinhavirou-anumlindopelotedeouro.

Hércules estava de boca aberta. Que prodigio de esperteza, a suaminúscula"dadeiradeidéias!..."

***

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9-OCINTODEHIPÓLITA

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I-OCintodeHipólita

De volta ao acampamento Emília passou a tarde a virar e desvirarcoisas."Viraquevira,virade"eramaspalavrasquetinhamdeprecederaotoquedavarinha—eoobjetoemqueavarinhatocavarealmenteviravanacoisapedida.

AtéoViscondeelavirouemjacaré,eodesvirou,porqueojacaréestavaarreganhando uma enorme boca vermelha para devorá-la. E virou oTemplodeAviaemumaencantadoracasinhadeboneca.EvirouaclavadeHérculesemmãodepilão—eassimpordiante.Depoisdesviravaedeixavatudocomoantes.

EnquantoissoHércules,demãonoqueixo,seguiamatutandonononoTrabalho que Euristeu lhe havia imposto: ir ao reino das amazonasconquistarocélebrezósterdarainhadasamazonas,istoé,ocintoqueAresouMartederaaHipólita,eelausavacomodistintivodasuarealeza.

Asamazonasformavamumacuriosaraçademulheresguerreiras,filhasde Marte e Harmonia. Habitavam as paragens do Termodonte, perto deTemiscira,noPonto.OReinodoPontoficavanaÁsiaMenor,juntoaoPontoEuxino.

As amazonas eram a contraparte feminina dos centauros; não quetivessemmetadedocorpocavalo,metademulher,mas,comosóandassemacavalo,pareciamformarcomoscavalosumsócorpo.Emseureinonãohaviahomens, sómulheres, evalorosíssimas—asmaioresguerreirasdaantiguidade. Desde mocinhas comprimiam o seio esquerdo de modo aatrofiá-lo.Paraquê?Paranãoatrapalhá-lasnolançamentodasflechas.

Alémdevalentíssimaseramdegrandebelezaetrajavam-seàmodadosbárbaros:vestesbemjustasnocorpo,barretefrígio,bombachasdiferentesdasdosgaúchos.Paraadefesatraziamumescudoredondo;ecomoarmas,oarcoeodardo.Homemnenhumentravanoreinodasamazonas,eoqueousassefazê-lo

eraimediatamentedestruído.VinhadaíapreocupaçãodeHércules.Como,sozinho, invadir aquele reinoe arrancarda cinturadeHipólitaumzósterque a não abandonava nunca? E Hércules pensava, pensava. Por fimresolveulevarbonscompanheiros.Sócomaajudadeoutrosheróispoderiaconseguir alguma coisa e pensou em Teseu, Peleu, Telamon e outrosgrandesamigos.Tinha,pois,antesdemaisnada,deprocuraressesheróisepropor-lhesaaventura.Masmoravamemcidadesdiferentes.Procurá-lostodos e discutir o assunto era empresa demorada. Hércules chamou

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Pedrinho.— Escute. Tenho de reunir vários amigos para a aventura das

amazonas. Isso vai exigir uma série de viagens a uma série de terras. Omelhormepareceque euparta sozinho.Depoisde formaromeubando,venhobuscarvocês.

HérculespartiuemprimeirolugarparaAtenasemprocuradeTeseu,oheróidaÁtica.Ospicapausficaramsozinhos.

O primeiro dia se passou numa "viração" furiosa. O "Vira que vira,virade"nãoparava.AtéoribeirãoEmíliavirounumpastorzinhodaArcádiaque não sabia falar, apenas "murmurejava", como murmurejam osribeirões. E Pedrinho, que nunca fora ummenino adulador, estava agoratodo amor e cuidados com a Emília. Como não adular uma criaturinhaarmadadetantopoder?Epormaisabsurdoqueistopareça,atéJunolánoOlimpo começou a ter medo de Emília — segundo informações domensageirodePalasnodiaseguinte.

—AcabodechegardoOlimpo—disseele.—PalasestáradiantecomanovaderrotadeHeranocasodamudez,emedissequejáagoranadatemEmíliaareceardaspeçasdadeusa."SeumleãoforlançadocontraEmília,ela o recebe com uma varada e transforma-o no que quiser — mosca,borboleta,pão-de-ló.Aquelavarinhadecondãoérealmenteumprodígio—masébomqueelasaibadeumacoisa.Todasasvarasdecondãopossuemum poder limitado. A de Emília só dá para cem viradas. Depois de cemviradas, torna-se uma vara comum, como as demarmelo, que só servemparasurrarcrianças.Avise-adisso."

Ao saberda limitaçãode sua varinhamágica, Emília quase choroudedesespero.Comabrincadeiradovira-viraela já tinhagastoquase todoopoder da varamágica— e demaneira tão boba,meu Deus! virando atépedregulhos do chão, pedacinhos de pau, moscas... Pelos cálculos doVisconde,sódeviahavernavaraumastrintaviradasderesto!Querdizerque Emília tinha desperdiçado setenta em puras bobagens. Cumpria-lheagorapouparcomomaiorciúmeas restantes.EEmília, comumsuspiro,guardounasuacanastrinhaavaradecondãojáquasenofim.

DepoisperguntouaoVisconde:—Queé"condão"Visconde?Àsvezesagentelevausandoumapalavra

todaavidasemsabercertooqueé.Osabuguinhoexplicouqueapalavra"condão"vinhadapalavrapersa

"condo",quequeriadizer "sábioouadivinhador".Demodoquena línguaportuguesacondãosignificava"prerrogativa","privilégio","graça","dom".Evaradecondãoqueriadizervaradeadivinhar.

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—Masaminhavaranãoadivinha—objetouEmília.Virasó.—Adivinha, sim— respondeu o Visconde.—Quando você diz "Vira

quevira,virade",elaadivinhaoquevocêquereexecutaaordem.Todosengoliramaexplicação.Lá pelas cincohoras estavamos três sozinhos ali no acampamento, à

esperadeMeioameioquesaíraemprocuradefrutasequeijoparaojantar.Derepente...

— Que é aquilo lá? — exclamou Pedrinho apontando. Parece umameninada...

Era realmente uma meninada que vinha naquela direção —umamolecadadeMicenas.Vinhamcorrendo,numagritaria.

—Jásei!—berrouEmília.Souberamdaminhavaraevêmatacar-nos...Numa das viradas ela havia virado um besouro em menino, e como

naquelaafobaçãoseesqueceradedesvirá-lo,omeninofugiraeforacontaràmolecadadeMicenasaprodigiosahistória.Osmolequesficaramnomaiorassanhamentoevinhamembandoconquistaravara.

Que fazer?Aresistênciaera impossível,poisse tratavadumbandodevinte.

Recurso único: virá-los em qualquer coisa. Mas para virar vintemeninos era necessário gastar vinte viradas— e das trinta viradas queaindasobravamnavarinhasóficariamdez...

Emíliaberrou:—Nãoquero!Nãoquero!...Nãoquerogastarquasetodoorestodasminhasviradasà-toa...—Nãoquer?entãomuitopior.tomamavara—ezero...Emília,namaioraflição,compreendeuquetinhadeceder.Mesmoassim

pensounumjeitodeeconomizarumavirada:—Poisestábem.Vouvirardezenovemoleques.Ovigésimovocêatraca-

secomele.Ouagüentadois?Pedrinhodeclarouquedoiseleagüentava.Elaquevirassedezoitoque

eledavacontadosdoisrestantes.Dessemodobastavamdezoitovaradas.Emíliaaindaficavacomdozeviradasnavarinha.

Os moleques já vinham bem perto. Já se ouviam perfeitamente seusgritos."Avaradecondãoéminha!"—berravaum."Éminha!"—berravaoutro. "É de quem pegar!..." berrava a maioria. Tal qual a molecada doséculo20quecorreatrásdebalãoqueimado.SeosmolequesdeMicenaspegassem a vara, iriam espatifá-la — exatamente como os molequesmodernosespatifamosbalõescaídos...

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II-AVirada

—Enoqueéqueosviro?—perguntouEmília.—Emmoscas!—sugeriuPedrinho.— Em livros! — lembrou o Visconde, que andava com saudades de

umasleituras.MasEmília,ciganinhacomoera,resolveuvirá-losemcoisasdeutilidade

prática de muita falta ali no acampamento — uma faca, um canivetedaqueles gordos que têm saca-rolha, limade unha, chavinha de parafusoetc.,eemmaiscoisasquenomomentoveria.

Osmolequeschegaramepararam.Omaistaludoadiantou-seedisse:—Soubemosqueháporaquiumavarinhadecondãomuitoboapara

virar coisas. Se nos entregarempor bem essa varinha, tudo acabará semestragos. Se não entregarem por bem, entregarão por mal — e nósdeixamosvocêstodosreduzidosapódetraque...

Emília ainda correu os olhos pelo campo, na esperança de avistarMeioameio. Com o centaurinho ali talvez lhe fosse possível economizarmaisumasviradas.NãovendosinaldeMeioameio,respondeuaoinsolenteultimatodomoleque:

—Avaraestáaqui!Venhamtomá-la,sesãocapazes.Viroatodosvocêsemsaposhorrendos...A ameaça tonteou os meninos, mas como prudência não é coisa que

existeemmolequedarua,ochefedobandoavançouparaarrancaravaradasmãosdeEmília.Ela,porém,maisquerápida,cantouo"Viraquevira"etransformou-oemcanivete.Ecomamesmaprestezavirouumsegundoemfaca. E deu uma varada num terceiro, virando-o em tesourinha de unha.Enquanto isso Pedrinho achatava dois com os seus tremendos golpes decow-boy de cinema. Emília virou um quarto em rolinho de esparadrapo,lembrando-se da falta que isso fizera no dia da cortadura do dedo. E foivirandoosoutros.Meioameioapontoulálonge,masmuitotarde.Nãotinhamaistempodeajudarnaguerra.

Estavam completamente derrotados osmoleques deMicenas. Em vezdeles só seviampor ali, espalhadospelo chão, osobjetosdeusoaqueavara mágica os reduzira. Dezenove moleques, dezenove objetos — issoporque,nocalordaluta,EmíliaderatambémumavaradanumdosdoisjáderrotadosporPedrinho.

—Avé,avé,evoé!...berrouavitoriosacriaturinha,enquantorecolhiaaspreciosidades—o canivete de saca-rolha, a faca, a tesourinha, o rolo de

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esparadrapo...Só havia escapadoumatacante,mas lá estava nocaute, comPedrinho

ajoelhadoemcimadeseupeitoeaberrar:—“Conheceu,papudo?Pensaquepicapautemmedodemolecadagrega?”

Quefestafoiaquilo!Emília,radiantecomoadeusaPalas,examinavaumaumosobjetos.Suacanastrinhanemdavaparatantacoisa...

Depois, fez a contadas viradas restantesna varinha.Tinham sobradoonze.Ótimo!Comonzeviradasnavara,quantacoisanãopoderiafazernofuturo?

EoVisconde?Ninguémhaviaprestadoatençãoneleduranteocalordaluta.

—QueédoVisconde?—berrouEmília.Foramencontrá-locaídonochão,agemer.—Quehouve,Visconde?Quegemidossãoesses?—Estouferido—disseelecomvozfraca.Parecequemequebrarama

perna...Emíliaergueu-o.OViscondecaiudenovo.Nãopodiaagüentar-sedepé.

Pedrinhoveioexaminá-lo.—Sim,quebrouapernaesquerda,ocoitadinho.Nada mais certo. O pobre escudeiro estava com a perna esquerda

quebrada— quebradíssima... Mas para quem dispõe dos milagres dumavara de condão, perna quebrada de Visconde é o de menos. Com umasimples varadinha troca-se uma perna quebrada por uma nova — ePedrinhogritou:

—Emília,venhavirarapernaquebradadoViscondeempernanova.Aciganaaproximou-se.Examinouafraturaedisse:—Comduastalaseumpoucodeesparadrapovocêconsertamuitobem

essaquebradura.Nãovaleapenagastarumaviradacomisto.Edaínãosearredou.Pormaisqueomeninoinsistisse,aciganinhanão

seanimouagastarumaviradanoconsertodoVisconde.—BemdizNastáciaquevocênãotemcoração,—queixou-sePedrinho.

Eela:—Tenhocoração,sim,mastambémtenhocabeça.Secomduastalase

umpoucode esparadrapo ele se arruma, porquehei de gastar comestapernaumavirada inteira, eu que só tenhoonzena varinha?Não e não enão.

—EntãonãoquerbemaoVisconde?— Quero, sim, e muito — mas... e se eu não estivesse na posse da

varinha?Tudonãosearranjariamuitobemcomastalas?Poisfazdeconta

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quenãotenhovaranenhuma...Enãohouvemeio.Pedrinhotevedeprepararduastalaseentalarentre

elasaperninhaquebradadoVisconde.Depoisfez-lheumpardemuletas.Omolequenocauteaindaestavaali,sobaguardadocentaurinho.Que

fazerdele?Soltá-loeraperigoso:voltariacorrendoparaMicenas,avisavaláopovoeascomplicaçõespoderiamserterríveis.

Ospais iriamdarqueixaaoReiEuristeu—enadamaisnaturalqueo"antipatia" mandasse uma escolta justar contas com eles. A solução eraconservá-loali.

Chamava-seMelampoojovemprisioneiro,muitovivoearderemador.Pedrinhopropôs-lheumnegocio:

— Soltar nós não soltamos, porque você vai lá e conta tudo e temoscomplicações.Osvencidosnaguerra sãoprisioneirosdeguerra.Masnãoqueremos abusar da nossa força. Somos de bom coração e boa vontade.Proponho que fique aqui conosco, fazendo parte do nosso bando. Asaventuras são tremendas — e contou a história dos oito Trabalhos deHérculesjárealizadoscomaajudadeles.

—Eagoravamosseguirparaoreinodasamazonas,embuscadumtalcintodumatalHipólita.Querirconosco?

Perguntaraummeninodaquelessequertomarparteemaventuraséomesmo que perguntar a gato faminto se quer bofe. Melampo aceitou aproposta com omaior entusiasmo. E para animá-lo aindamais Pedrinhodisse:

— Para começo, pode dar um galope por esses camposmontado emMeioameio.

O rosto deMelampo iluminou-se. Uma galopada de centauro, quantonãovaleisso?Montouelásefoinadisparadaedevoltaaderiudecoraçãoao grupo dos picapauzinhos, como se também fosse um neto de DonaBenta.

OsdiaspassadosaliforamdosmaisagradáveisquetiveramnaGrécia.Melampo era mestre em brincadeiras. Ensinou a Pedrinho todos osbrinquedosdosmeninosdeMicenasefoiensinadoemtodososbrinquedosmodernos.QuemnãogostoudahistóriafoiMeioameio.

— Gente demais para o meu lombo — disse ele. — Se vocêsarranjassemumjumentinho...

A idéia foi recebida com palmas. Um jumentinho paraMelampo!Masondeencontrarumjumentinho?Melamposabia.NãohaviaoqueMelamponão soubesse ali daqueles arredores. Contou que a certa distância ficavauma bela criação de cavalos e jumentos, dum homem rico lá da cidade.

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Podiamchegaratéláe...Melampo montou em Meioameio e partiu no galope em procura do

jumentinho.EmíliaficouaconsolaroVisconde.—Issosara—diziaela.—Esenãosarar,tiaNastáciatrocaessaperna

poroutra,novinhaelinda.Depois,mudandodeassunto:—QuequerdizerAvé,avé,evoé?...Euvivo

berrandoesseAleguádosgregosmassemsaberoquesignifica.O sabuguinho científico, gemendo, gemendo, explicou que naquela

célebreguerraentreosdeuseseostitãs,ZeustransformouoseufilhoBaconum leão terribilíssimo e atiçou-o em cima dos gigantes com estaspalavras: "Eu, uie, evohé, Bacche!"—Bem, meu filho, coragem Baco! Nasfestas ao deus Baco os seus adoradores repetiam essas palavrassacramentalmente.—Masoavé,avé,evoé?—insistiuEmília.—Issoéasneirinhasua,Emília."Avé"querdizer"Salve"."Evoé!"quer

dizer"coragem."Salve,salve,coragem!éasneirinhasua,Emília.—Eo"Ave"da"AveMaria"tambémé"salve"?—Sim.Tanto fazdizerAveMariacomoSalveMaria...Ai,ai,ai...Como

meestádoendoaperna...

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III-OAsnodeOuro

MeioameioeMelampovoltaram trazendopelo cabrestoumbeloasnodepeludasecompridasorelhas,eantesdeapear jáMelampogritouparaPedrinho:

— Não foi necessário furtar jumento nenhum lá da criação do talhomem.Encontramosestesemdonologoaliadiante...

Todos correram para ver. Emília achou-o com "muito ar" do BurroFalante.

—Porquear?—Temaratédefalar—disseEmília;—edirigiu-lheapalavra:—Não

serávocêtambémdostaisquefalam,asno?—Sim—foiaresposta.—Efaloporquesouhomemenãoasno.Esta

aparênciaqueestãovendonãoéacomquenasci.Meninos comuns que ouvissem essas palavras da boca dum asno

haviamdeencher-sedeverdadeiro terror—masospicapauzinhoseramcriançasquenãoseadmiravamdecoisanenhumanestemundo.Tudolhesparecianaturalíssimo.Emvezdesesentiremtomadosdeterror,pediramaoasnoquecontasseasuahistória.

Eoasnocontou:—Chamo-meLúcio.EmcertaexcursãoquefizaumacidadedaTessália

hospedei-meemcasadovelhoMilon,aoqualmehaviamrecomendado;elávimasaberquesuaesposaeraumagrandemágica.Quemmoreveloufoiacriada Fótis. "Se quiser convencer-se, espie aquele quarto. É nele que aesposadeMilonpreparaassuasfeitiçarias."Espieieviavelhaesfregando-secomumapomada—elogosetransformouemcorujaesaiuvoandopelajanela.Fiqueiansiosopor fazeramesmaexperiência: transformar-meemcorujaegozaradelíciadumpasseionoturnopeloscéusdaTessália.

ComaajudadeFótis,penetreinoquartodafeiticeiraeládeicomumabelacoleçãodepotinhosdepomada.Cadaumatransformavaumapessoanumacertacoisa.Pegueinaquemepareceupomadadecorujaeesfreguei-me todo.Mas, ai demim!... Eu havia errado de potinho e a pomada quepasseinocorpometransformouemasnoemvezdecoruja.Meudesesperofoi enorme. Que fazer? Fótis me disse que só havia um meio de perderaquelaformaereadquiriroaspectohumano:comerrosas.Mascomonãohouvesse rosas por ali, eu tinha de esperar pelo dia seguinte. Era noitefechada.Fizoquepodiafazer:fuiemprocuradumacocheira;demanhãeusairiapelomundoemprocuraderosas.Súbito,umrumorestranho.Eram

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ladrõesquetinhamvindoassaltaracasadeMilon—elámelevarampelocabresto para uma caverna muito escura nas montanhas. E como euresistisse a coices, quantas pancadas me deram! Fiquei mais morto quevivo,quasedescadeirado.Lápelamadrugadapasseiporumsoninhoetiveumsonho.

NessesonhoadeusaÍsismeapareceuedisse:"Brevehaveráumafestaem minha honra. Quando o sacerdote vier com a braçada de rosas quecostumamdepositaremmeualtar,aproxime-seecomauma.

Voltaráimediatamenteàsuaantigaformahumana."Fiqueiradiantepordentro,mascomosairdali?Osladrõesnãomelevavamaopasto—epresoláfiqueilongosdias,atéqueontemfoiacavernaassaltadaporladrõesdeoutrobando.

Houvelutaemortes.Aproveitei-medaconfusãoparafugir...—EfoipegadoporMeioameio,nãoéassim?—Exatamente.Euvinhavindopelaestrada,quandomesurgeàfrente

este centaurinho. Murchei as orelhas, submissamente — pois que podefazerumpobreasnodiantedumcentauro?Eagoraestouaqui...

Pedrinhoficouradiante.DispordeumasnoparaconduzirMelampojáeraumagrandecoisa,masdispordeumasnofalanteeramilvezesmelhor—epropôs-lheumnegócio.

—Nósnãosomosdaqui,somosdomundomoderno,ládosítiodevovó.ViemosparatomarpartenosTrabalhosdofamosoHércules.Conhece-o?

O asno respondeu que não havia na Hélade quem desconhecesse ograndeherói.

— Pois é isso. Somos os companheiros e ajudantes de Héracles. Jáestivemos em oito Trabalhos e agora vamos caçar o cinto da Hipólita, arainhadasamazonas.Proponhoumnegócio:vocêadereaonossobandonaqualidadedecavalgaduradeMelampo.Nofimdasaventuras,comeasrosasdosacerdotedeÍsisevoltaaserLúcio.Topa?

O asno coçou a cabeça. Aquilo de tornar-se cavalgadura dummeninodesconhecidonãoeranadaagradável,masquefazer?Acabouconcordando.

—Pois está fechado. Ficonaqualidadede cavalgaduradestemenino.Nofim,comoasrosasepronto.

Melampodeuumpuloparacimadolombodoasnoedisse:—Poisvamosaumpasseioporestescampos.Queroverseébomde

andadura.Oasnoresignou-se.Nãotinhapráticanenhumadelevarcavaleirosem

seu lombo. Trotou desajeitadamente. Levou esporadas do calcanhar deMelampo.Mascomofossemuitointeligente,breveseajeitouàssuasnovas

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funçõesdecavalgadura.Estavam nisso, quando Hércules apareceu. Vinha com um fulgor de

satisfação nos olhos. Ao ver aqueles personagens novos, um asno e ummeninodesconhecido,fezcaradepontodeinterrogação.Emíliaexplicou:

—EsteéoMelampo,nossoex-prisioneirodeguerraeagoraamigo.Eeste é um tal Lúcio que em vez de pomada de coruja usou pomada dequadrúpede.

Hércules não entendeu. Foi preciso que Pedrinho tudo explicassemiudamente.Depoiscontouquehaviasidomuitofelizemsuaexcursão.

— Estive com Teseu, Peleu, Telamon, Sólon e outros heróis. Todosaderiramaomeuplanodeataqueàsamazonaseestãoapreparar-se.Vimbuscar vocês. Amanhã partiremos. Vamos nos reunir em Temiscira, noPonto.

—Teseuaindacontinua lindo?—indagouEmília,quenaaventuradeCretamuitoseimpressionaracomabelezadoherói.

— Sim— respondeu Hércules.— A beleza de Teseu é quase divina.Encontrei-oemAtenasàsvoltascomumtourocapturadonoscamposdeMaratona.Sabemquetouroera?

Ninguémsabia.— Aquele mesmo que pegamos em Creta e Euristeu soltou. Teseu

conduziu-o a Atenas a fim de sacrificá-lo no altar de Palas. E o meuescudeiro?...perguntouHércules,notandoaausênciadosabuguinho.Nãooestouvendo...

Pedrinho contou ahistóriado assaltodosmeninosdeMicenas, a lutahavida, as dezenove viradas da varinha, o aprisionamento deMelampo eporfimadesgraçadoVisconde.

—Levouumtrancodostaismolequesequebrouaperna.Jáaencaneiefiz-lheumpardemuletas.Agoraestádormindoumsoninho.

Hércules foi vê-lo. Lá estava o Visconde numa cama de musgos dafloresta, a dormir um sono agitado. De vez em vez saíam-lhe da bocapalavrasinconexas.

—Estádelirando,—explicouPedrinho.—Febrealta...Hércules ficou apreensivo. Se estava febrento assim o seu escudeiro,

comopoderiampartirnodiaseguinte?— Dá-se um jeito, disse Emília. Pode ir numa redinha no lombo de

Lúcio. Amanhã a febre passa. Logo que acordar hei de fazê-lo beber umchazinhodequina.

—Eondeachaquinaporaqui,Emília?—perguntouPedrinho.—NaFarmáciadoFaz-de-conta...—respondeuela,muitolampeira.

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IV-RumoaTemiscira

HérculestinhadeirpormaratéaoPontoEuxino,queeracomoentãosechamavaoMarNegrodehoje.PorláficavaotalreinodoPonto,pertodaCapadócia — a terra de S. Jorge. Próximo de Temiscira, a capital dessereino, é que deviam reunir-se para a aventura das amazonas os amigosconvidadosporHércules.

Aviagempormarcorreupéssimaparaoherói,comaquelasuamaniade enjoar o tempo inteiro,mas foi boa para a perninha do Visconde. Osossos da quebradura soldaram-se; mesmo assim ficou mancando e nãodispensavaasmuletas.Meioameiotambémfoi—etambémenjoou.Eraaprimeiravezqueumcentauroentravaemnavio.

No desembarque tiveram uma agradável surpresa. Foram recebidospelomaislindoeamáveldosdeuses:Zéfiro.

—MasZéfironãoéumvento?—perguntouEmília—eoVisconde:—Sim.Paraosmodernoséumagradávelventinhodeprimavera.Para

os gregos é um deus — e que lindo deus! Suave, tão fresquinho, tãoperfumado das primeiras flores da primavera! Tem lindas asas deborboletaeafrontecingidadumacoroade"primaveras".

Pedrinho observou que no sítio de Dona Benta havia muitos pés de"primaveras”.

—Asládosítiosãooutras—disseoVisconde.Sãobuganvílias,nomedadoemhonraaBougainville,umfamosonavegadorfrancês.Asdaquisãofloresdumaplantinharasteiraqueabremnocomeçodaprimavera.Zéfirousanacabeçavioletase"primaveras"dasdaqui.Temocorpodiáfano...

—Queédiáfano?—quissaberEmília.— É um vocábulo composto de duas palavras gregas: "dia",através, e

"phaino",eubrilho...Diáfanoquerdizerquasetransparente,outranslúcido.Quandoaluzatravessacompletamenteumcorpo,comonocasodocristal,diz-sequeocorpoétransparenteequandonãooatravessacompletamenteesim"malemal",diz-sequeédiáfano.

O Visconde explicava as coisas tal qual Dona Benta: havia aprendidocomela.

— Muito bem— disse Emília. — Zéfiro tem o corpo diáfano; e quemais?

— Muito lépido e leve, desliza pelo espaço graciosamente, com umacesta de flores na mão — daí os perfumes que vai espalhando à suapassagem.Zéfirocasou-secomClóris,amesmadivindadequeosromanos

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chamavamFlora,eéopaideCarpo,umadastrêsGraças.—Quaissãoasoutras?—Essas lindasdivas têmnomesvariáveis. Chamam-seAglaia,Tália e

Eufrosina,segundodizoantiquíssimopoetaHesíodoemseupoemasobreos deuses. Outros dizem que são Cleta, Pasitéia e Pito; outros, que sãoFaena,HegémonaeAuxo;outros,quesãoTalo,AuxoeestaCarpo,filhadeZéfiro.AsGraçasemgregochamavam-seCárites,nomequevemdecaris,istoé,graça,alegria,agrado,amabilidade.EsãoumencantoastrêsCárites.Só se preocupam de uma coisa: agradar — e possuem de fato omaravilhoso dom de agradar. Tudo no mundo que é macio, fino, afável,gostosovemdasCárites...

— Quemimo!...— exclamou Emília.— Já estoume encantando comelas.EjuroquedastrêsamaisbonitaeagradáveléCarpo,afilhadeZéfiroe Flora.Quedelícia ser filhadumvento oubrisa tão leve e dadeusadasflores perfumadas! e Emília ficou de narizinho para o ar, num enlevo,respirandocomdelíciaoZéfiroqueperpassava.

OViscondecontinuou:—Zéfirotevemaisfilhas:asBrisas...—AsBrisas?—berrouEmília.—Queamor!...Qualadiferençaquehá

entreventosebrisas?—Amesmaqueháentreadultosecriancinhas.Oventoéopai—forte,

valente,enérgico;abrisaéumamenininhadetrêsouquatroanosquesócuidadebrincar.

—Euquesou?Brisaouvento?OViscondeolhoubemparaelaerespondeu:—Você,àsvezes,Emília,éumverdadeiroPé-de-Vento...Enquantoassimconversavamabordodabarcadevela,opobreherói,

de bruços na amurada, com os olhosmuito brancos, vomitava as tripas.Pedrinhoolhava-ocomexpressãocondoída.

—Masnãohaveráumremédioparatantoenjôo?Nossaviagemvaiserlonga—maisdetrezentosquilômetros.EseHérculesmorre?

Emíliateveumaidéia.—Visconde,osgregospossuemumdeusparacadacoisa.Seráquenão

háumparaoenjôo?—Ignoro—respondeuosabuguinho.—PergunteaMelampo.NadamaisinútildoqueperguntarcertascoisasaMelampo.Apesarde

grego, sabia muito menos da história e das lendas gregas do que oVisconde, um simples sabugo. Melampo era mestre só numa coisa:reinações. Chegava até ao absurdode, ali naquela barca tão apertadinha,

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montar no asno de ouro e fingir que estava galopando. E fincava-lhe oscalcanharescomosefossemesporasebatia-lhenasancastapasestalados...

OViscondecontouqueahistóriadeLúciotransformadoemasnoiasernarrada por um escritor romano chamado Apuleio, que ainda estava nocalcanhar da bisavó. Ao saber disso, o asno derrubou as orelhas. "Querdizerquevoumeprestarparaarisotadomundo,ai,ai...”

Antes do embarque já havia Lúcio descoberto uma linda roseiracarregadaderosasequasechoroudedesespero.

Bastavaabocanharumadelaseestariadevolvidoàsuaformahumana.Mastevedeengoliremseco.Estavaligadoàquelegrupinhopelapalavradehonra.Opioreraquesuafunçãoaliseresumiaaumacoisasó: funcionarcomobestadecargadummolequedeMicenas...

Afinalchegaram—enãofoisemtempo.HérculespareciaTonyGalentoquandofoitiradoabraçosdoringue.

Tevedeapoiar-seemMeioameioparanãocair.OViscondeaconselhou-lheumrepousodedoisdiasemterra.

—Sim—acrescentouEmília—porquedesse jeito, Lelé, se aparecerpor aqui algumadas amazonas, quemperde o cinto é você—e apontouparaapeledeleãoinvulnerável.DepoisdalutacontraoleãodaNeméiaoheróinuncamaisabandonaraapreciosapele.

Pedrinhoencarregou-sedeprocurarumsítioadequadoaorepousodeHércules. Escolheu um grupo de árvores, cuja sombra ficou sendo o"sanatório". Lá a vítimado enjôo se deitou e regalou-se com a delícia desentir-seemterrafirme.NodiaseguinteHérculesamanheceuquasebom.OchazinhoquelhedeuoViscondeeraumporretepara"heróienjoado"—comodisseEmília.

Melampoforabaterpapocomunsviandanteslánaestrada.Perguntou-lhesseosoutrosheróisjáestavamemTemiscira.Ninguémsabiadeheróinenhum.QuandoomeninocontouquefaziapartedacomitivadeHéracles,o qual estava no "sanatório" descansando de sua viagem pormar, todosespantaram-se;eumdeles,omaiscorajoso, foi fazerumavisitaaoherói.Encontrou-oestiradoàsombradaárvore,comendoumcarneiroassado.Afomejáhaviarenascido.Emíliaexplicou:

—Ontempareciaumbacalhaudeportadevenda.Hojeaté fome tem.Chegoutãodescadeirado,opobre...

Ovisitantesupôsqueo"descadeirado"sereferiaaalgumaderrotaemluta.Pormaioresque sejamosheróis, às vezes apanhamboas tundasnolombo,comotantoaconteceuaD.Quixote.

—Quemodescadeirou?

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— Um gigante chamado Mar — respondeu Emília — o único quederrotaLelé.Queriaquevocêvissecomoeleficoudeolhobranco...

À tarde chegou outro navio: era o de Peleu — e também ressurgiuMinervino.Hérculesfoireceberorecém-vindoenquantoomensageirodePalasatendiaàcuriosidadedospicapauscontandoquemeraPeleu.

—Oh!,umgrandeefamosoheróidisseele.—ReideIolcos, irmãodeTelamon.FoioverdadeirocausadordaguerradeTróia...

—Como?—exclamouPedrinho.Poisa causadoradaguerradeTróianãofoiHelena,amulherdoreiMenelau?

—Foi—masquemmeteuHelenanoembrulho,senãoPeleu?Logo,overdadeirocausadordetudofoiele.

—Conteláisso.—Peleu,depoisdemuitasaventuras,tomoupossedacidadedeIolcose

fêz-serei.Ecomoestivesseviúvo,desposouaNereidaTétis.—Queénereida?—quissaberEmília.Minervinocoçouacabeça.AeternacuriosidadedeEmílianãotinhafim.—AsnereidassãoasfilhasdeNereueDóris.Asnereidaspersonificam

asparticularidadesdasondas:omovimento,a cor,omarulho.Glauceéanereidadoazul;Talia,adacorverde;Cimodocéia,adomarulho;Dinamene,adosmovimentos rápidosdosvagalhões... Poisbem:Peleu casou-se comTétis,lánagrutadeQuiron,noMontePélio.Foiumdosmaisimportantescasamentos da antiguidade. Até os deuses vieram assistir à cerimônia etrouxeram os mais lindos presentes. Peleu havia mandado convite paratodasasdivindades,maioresemenores,excetouma:ÉrisouaDiscórdia.Eestavamnomelhordafesta,quandoaterrívelÉrissurgiu.Chegouecolocouem cima dumapedra umpomode ouro com esta inscrição:Àmais bela!Aquilo era uma provocação às três grandes deusas ali presentes: Juno,PalaseVênus.Aqual fazer-seaentregadopomo?Comodecidirqualdastrês a mais bela? Tornou-se necessário um julgamento. Convidam parajulgadoraojovemPáris,umpríncipefilhodoreideTrôia.PárísolhaparaastrêsdivindadeseentregaopomoaVênus.

—Efezmuitobem—disseEmília—porqueVênuséadeusadabeleza.— Isso pensamos nós,mas Juno e Palas não tinham a nossa opinião.

Roeram-sepordentrodeódio—equempagoufoiTróia.Parasevingaremdo julgamento daquele juiz, provocaram a guerra entre os gregos e ostroianos,daqualTróia saiu completamentedestruída. Senão fossePeleuapaixonar-seporTétisepromoveraquelafesta,nãoteriahavidoaguerradeTróia...

Hércules apresentou a sua comitiva ao rei de Iolcos, o qual muito

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estranhou que um herói tão grande andasse com um escudeiro tãopequenoeesquisito,decartolaemuleta.MasgostoumuitodePedrinhoeEmília. Ao saber da atuação desta nos casos do javali do Erimanto e dogiganteAnteu,suspirou.

— Ah, quanto desejava eu dispor duma "dadeira de idéias" assim!Minhavidatemsidodasmaisatormentadasporquesempremefaltamboasidéiasnosmomentosdecisivos.Eesteasno?

—ÉLúcio!—gritouEmília,—umhomemquevirouasnoporquenoescuro do laboratório da feiticeira errou de pomada. E fala como gente,SenhorPeleu.Querver?

Eparaoasno:—Digaalgumacoisa:Lúcio, muito desapontado daquele papel de "fenômeno" exibido em

feira,disse,depoisdumsuspiro:—Bem-vindosejaaestasparagensonobrereideIolcos...Peleuquasecaiuparatrásdesusto.Eraaprimeiravezqueviaumasno

falante.Emíliadeuumagranderisada.—IstodeasnosfalantesdizDonaBentaqueéoquehámaisnomundo.

Diz que até nos tronos há asnos falantes — e nos congressos, nosministérios,nasacademias.Massóasnosdedoispésecomformahumana.Asno falante de quatro pés, só sei deste. Lá no sítio também temos umburrofalante,masasnonãoéburro.Chama-seoConselheiro—ecomofalabem!Sódizcoisasfilosóficas—sabeoqueé,herói?

PeleujáestavatontocomaparolicedeEmília.Pedrinho aproveitouummomento emque a exboneca fezumapausa

paraengoliredisse:— Já sabemos da sua história, senhor Peleu, e muito lamentamos a

desastrada sentença de Páris no caso das três deusas, lá na festa do seucasamento.

—Porquê?—exclamouPeleu,admirado.—PorquefoidaliquesaiuaGuerradeTróia.Peleufranziuatesta.Jamaishaviapensadoemtalcoisa.Emíliameteuo

bedelho:— Aquele Páris não tinha a menor habilidade. Se fosse Salomão, a

sentençaseriaumabelezaetodosficariamcontentes.—EqualseriaasentençadessetalSalomão?—quissaberPeleu.— Ele dividiria o pomo em três pedaços e daria um a cada deusa,

dizendo:"Empatou!"— Mas um juiz não pode empatar — observou Peleu. Justamente

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quando as coisas empatam é que os homens recorrem aos juizes. Que éumasentençasenãoumdesempate?

Emíliaatrapalhou-se,masnãoquerendodarobraçoatorcer,veiocomoutrasoluçãodassuas:

—Salomãochegavaaoouvidodeumadizia:"Amaisbelaévocê,masnãodiganadaàsoutras."Cochichandoasmesmas

paraastrês,deixava-ascontentíssimasesemguerranenhuma.Peleuriu-seevoltouàcarga:—MasPáristinhadeentregaropomoaumadastrês...—Eu,setivessedeentregaropomo,faziaumpassedemágicaesumia

o pomo na manga. E depois, com cara inocente: "Ué! Que fim levou opomo?",edessemodoembrulhavaatodos...

—Jásei—interrompeuPedrinho.—Embrulhavaatodoseiaguardaropomolánasuacanastrinha.Ah,Peleu,estabichasónóséquesabemosoqueelaé.

PeleufezumafestinhacomodedonoqueixodeEmíliaevoltouatratarcomHérculesoassuntodasamazonas.

—Estivepensando,Hércules,quetalveznossejapossívelconseguiràsboasoqueàforçavaiserbastanteduro.ProponhoquemandemosàRainhaHipólitaumparlamentar.

—Éumaidéia—disseHércules,eeupoderiaenviaromeuescudeiro,se não fosse o desastre que o pôs de perna quebrada. Talvez Pedrinhopossasubstitui-lo—e,voltando-se,chamouomenino.

—Escute,oficial.TenhodemandarummensageiroàRainhaHipólita.OViscondeeraonaturalmenteindicado,masafraturadapernaopõeforadeserviço.Penseiemvocê.QuerirtercomHipólitaemnossonome?

Pedrinho esfriou. Nunca em sua vida lhe haviam feito uma propostasemelhante.Apresentar-secomoparlamentaràpresençadumarainha—eque rainha! Hipólita, a grande Hipólita do cinto! A surpresa daquelaspalavrasdeixou-otontoporunsinstantes.

—Vamos,responda!—insistiuHércules.Pedrinho,afinal,desengasgou:—Estouàsordens.Hércules voltouos olhosparaPeleu comoquemdiz: "Está vendoque

firmeza de decisão?" E para o menino: — Pois apronte-se, que vamosredigiramensagem.

LogodepoispartiaPedrinhomontadoemMeioameio,levandonobolsoamensagemdeHérculesePeleuaHipólita:"Formosarainhadasinvencíveisamazonas!Incumbidosestamosdeuma

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empresa quemuito nos vexa: apresentar ao Rei Euristeu o vosso zóster.Altos interesses humanos e divinos assim o querem.Mas longe de nós aidéiadeusardaviolênciacontraarainhadasformosasguerreiras;e,assimsendo,esperamosquenosconcedaumencontronoqualoassuntopossaserdiscutido.Respeitosamentebeijamalindamãodarainhadasamazonas,PeleueHéracles."

Evidentemente o estilo da mensagem denunciava o dedo de Peleu.Hérculeseraalinogolpe.Napena,coitado!...

Pedrinholásefoinogalopeedepoisdemuitoandarpressentiusinaisdemudança.

—Meioameio—disseele—parecequeestamoschegando.Sintoumcheirodeestrebarianoar.Devehavermuitocavalonoreinodasamazonas.

Ocentaurinhoconcordou.Seuótimofarodisselhequeamenosdemeialégua encontrariam a primeira amazona — e assim foi. Vencida a meialégua,ouviramumtrote,elogodepoisderamcomumaguerreiraamazona,deaspectohostilelançaerguida.Pedrinhoempalideceu,masdominou-se.Quem leva missões como a dele não pode fraquear — e foi com vozdeliberadementefirmequeabordouaguerreira.

—Senhora—disse ele—aqui estounaqualidadedemensageirodeHérculesePeleu,doistremendosheróis,edelestragoumamensagemparaa Rainha Hipólita. Quererá ter a gentileza de dizer-me onde possoencontrá-la?

A amazona mediu-o de alto a baixo e sorriu. Ummenino apenas. Asinstruções que todas recebiam eram para matar qualquer homem quecruzasse as fronteiras do reino; não falavam em menino. E a amazona,baixandoalança,respondeu:

— Na tenda branca à margem esquerda do Rio Termodonte. Láencontraráanossagranderainha—emostrouorumo.

Pedrinhorespirou,enquantoMeioameiodizia:—Elanada fezporquevocê ainda é um menino. Se se tratasse dum homem feito, ah, tê-lo-iaespetadocomalança!Àsvezesvaleapenaser-secrila...”

Pedrinho tomou pelo rumo indicado e depois de algum tempodefrontouoTermodonte—umriozinhoà-toa.

—Margemesquerdadisseela.Éadelá.Ponte era coisa que não havia. Tiveramde atravessar a nado. Depois

foramandando. Súbito, viramao longeumaespéciede campodeguerra,combarracasemovimentodeanimais.

—Deveser lá—dissePedrinho.—Mulheresguerreirashãodeviveremacampamentoscomoaquele.

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E de fato era lá o acampamento da Rainha Hipólita. Assim que asamazonas viram chegar um centaurinho cavalgado por um "homem",voaram comas lanças em riste para recebê-los conforme as ordens.Masvendo tratar-se dum potrinho de centauro e dum filhote de homem,detiveram-se,comohaviafeitoaoutra.

—Quemévocê,menino?OnetodeDonaBentarespondeucomvozfirme:—SouPedrinhoEncerrabodesdeOliveira,oficialdegabinetedoSenhor

Héracles. Trago desse grande herói e do Rei Peleu umamensagem paraHipólita,arainhadasamazonas.

As guerreiras entreolharam-se, trocando palavras que Pedrinho nãopôdeouvir.Depois:

—Siga-nos!—disseram.—NósoescoltaremosatéàtendadeHipólita—eláseforamcomomeninoàfrente.

Queestranhasaquelascriaturas!Quefortes!Equeaspectobelicoso!Acostumado a ver nasmulheres do século vinte uns seres delicados,

frágeis, graciosas, Pedrinho espantava-se do porte imponente e da rijamusculaturadasamazonas.Cadaqualeraoquesechama"umamulheretanto". Belas, sim duma beleza forte de estátua. E que cavaleiras!Realmentedavamidéiadecentauras,istoé,deformaremumsócorpocomoscavalos.UmaquepassouagalopenumformosocavalobrancotrouxeaPedrinhoalembrançadascorreriasdoWilliamBoydnasfitasamericanas.A escolta deteve-se diante da tenda real. Uma das amazonas apeou e

entrou.Logodepoisapareciaamajestosafiguradarainha.Bela,sim!Belacomo as estátuas. Ozósterque trazia à cintura indicava a sua dignidaderealenga.

Pedrinhogaguejou:— Majestade, eu... eu venho da parte de Hércules com esta... esta

mensagem e com mão trêmula tirou do bolso o pergaminho. Hipólitaestendeu amãomuitobranca e tomou-o.Desenrolou-o e leu. Parecequelhesoubebemoestiloporquesorriu.Depoisdisse:

—Estemeuzóster,presentedemeupaiAres,andaaviraracabeçademuitas princesas. Como posso desfazer-me dele sem prejuízo da minhadignidade de rainha das amazonas? Dizei a Hércules, ó pequenomensageiro,queocasonãopodeserdecididolevianamente.Elequevenhaconversarcomigo.Dareiordensàsminhasguerreirasparaqueoacolhamgentilmente.

Pedrinho,aindatrêmulo,fezumasaudaçãodecabeçaecomocalcanharordenouaMeioameioquerodasseparatrás.

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Ofatodevirmontadonumcentaurinhohaviacausadograndesurpresaàquelasmulheres.Inúmerastinhaacorridodetodososladosparaveremamaravilha.Ecomentavam,cochichavamumasaoouvidodasoutras.

Meioameioafastou-sedaliapasso,comoquetambémpeadopelomedo.Masassimqueseviuacertadistância,disparounogalope.

De volta ao acampamento deu Pedrinho contas a Hércules dodesempenho de sua missão, transmitindo-lhe com toda a fidelidade aspalavrasdeHipólita.HérculesolhouparaPeleu.

—Parecequetudovaibem.Searainhanosmarcouumencontro,équenãoestáhostil.

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V-TudoVaiBem

No dia seguinte chegaram as naus de Teseu e dos outros heróis.Desembarcaram e foram para o navio de Hércules combinar o plano deassaltoàsamazonas.

A noticia do bom acolhimento da mensagem causou-lhes agradávelimpressão.

— Ótimo se não houver luta— disse Helamon.— Conquanto sejamguerreiras terríveis, a mim me repugna ter de lutar contra mulheres.FicareisatisfeitíssimosechegarmosaumacordocomHipólita.

EstavamaindanonaviodeHérculesadiscutiroassunto,quandoEmíliagritou:

— Lá vem vindo um bando de guerreiras!— e era verdade. Hipólitaaproximava-sedapraiaseguidadeenormeséquitodeamazonas.O encontro da grande rainha com os heróis foi dos mais auspiciosos.

Trataram-se como amigos velhos, e não tardou que a beleza de Teseuamolecesseo coraçãodeHipólita. Ficou tãoamávelque comsurpresadetodos sepropôsentregar-lheozóster.Hércules, radiante, viu que tudo iaacabaremfesta—eassimseriasenãofosseaintervençãodeJuno.

Sim,deJuno,porqueavingativadeusa,queládoOlimpoacompanhavao desenvolvimento da aventura, avermelhou de cólera ao perceber aamável disposição da rainha das amazonas. E que faz? Desceimediatamenteàterra,disfarça-seemamazonaecomarmuitoaflitoentraapromoverolevantedasguerreirasquedelongeassistiamàconferênciadeHipólitacomosheróis.

—Elesvãoraptaranossarainha!Seanãodefendermos,Hipólitaestaráperdida — e tais e tantas coisas disse que acabou virando a cabeça detodas.

—Ataquemo-losjá!Nãotemosumminutoaperder.Salvemosanossaamadarainha!...

Eoquehouveentãofoicoisaqueabalouaterra.Comoquemovidaspormolaúnica, asamazonas lançaram-seaomais

terrível dos ataques contra os heróis. Vinham cegas de ódio, no galopefuriosodeseuscavalosbrancos,aslançasemriste,osolhosadespediremfagulhas.Hipólitaquisintervir,masnãopôde.Otropeldoataqueabafava-lheavoz.Colhidosdesurpresa,osheróismaltiveramtempodetomarsuasarmas.

Efoialutaqueospoetasgregoscontam—lutadegigantes.Golpesde

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clavatremendos,lançaços,avançoserecuos.Teseu defendia-se como um leão encurralado. Os golpes de Telamon

reboavam.Sólonderrubouduascomumasóclavada.TãoterrívelfoiopegaqueocarrodeApolo, jáadescambarnohorizonte,comoqueentreparou,assustado.

Ospicapaushaviamcorridoparabordo.SóMelampoficaraemterra.ObobinhojulgouqueaquilofossecomoaslutasdosmolequesládeMicenas—lutasdebrincadeira,semoutrasconseqüênciasalémdearranhões,galosnatesta,manchasroxaspelocorpo—masfoicruelmentepisadopelapatadosanimais.

Em certomomento Hércules tomou uma resolução decisiva. Ficar alinaquelalutaeraacabarperdendoabatalha.Pormaiorquefosseapotênciado seu grupo, como vencer o número? Eles eram um punhado; asamazonas, uma legião.Nas lutas entre o valor e o número quem sempreacabavencendoéonúmero.Ojeitoeramiremcombatendoerecuandonadireção dos navios— e de repente agarrarHipólita e levá-la para bordocomorefém.

Lá no navio de Hércules os picapaus, em companhia de Minervino,estavamvendotudocomodeumafrisadeteatro.

— Hera, Hera! — exclamava o mensageiro. — Bem que Palas meadvertiu.Vendoquetudoiaacabaremacordo,arancorosadivindadeveioempessoaarengareamotinarasamazonas...

Emília iadizendo"Quebisca!"masengoliuemsecoedeuumtapanaboca.PedrinhoestranhouaausênciadeMelampo.

—Estáláele!—gritouoVisconde.—Caídonochão—talvezmorto.Viquandofoimeter-senarefrega.

Ocombatecontinuavacadavezmaisfurioso,masosheróisjáestavamrecuando. Defendiam-se como leões e recuavam— recuavam na direçãodos navios. Súbito, Hércules, que durante toda a luta não se afastara deHipólita, agarrou-a pela cintura e voou para o navio. Seus companheirostambém abandonaram a luta e se sumiram nas naus. O desapontamentodas amazonas foi imenso. Não tinham contado com aquele golpeestratégico.Emcamporasoerampoderosíssimas,masquepoderiamfazercontraosheróisrefugiadosabordo?

Hérculesberroudaamurada:— Detende-vos, valorosas guerreiras! Tenho comigo um precioso

refém:Hipólita.Edebomgradoalibertareisedepuserdesasarmas.As amazonas entreolharam-se, como que indecisas. Que fazer? Uma

delas,amais ferozde todas, justamenteaqueashaviaamotinado,gritou

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que não, que não deporiam as armas, que lutariam até o fim, queabordariamasnaus.

—ÉHeraquemfala—observouMinervino.—Conheço-lheotomdavoz... — e Emília correu a cochichar para Hércules que a que estavaestimulando as outras era a bisc... era a boa deusa Hera. O heróicompreendeutudoefaloudenovoparaasguerreiras:

— Sei quem vos amotinou nomomento em que tudo obtínhamos deHipólita pacificamente, mas sei também de que nada valerá essaintervenção. A grande Palas me protege e permitiu-me capturar a vossagrande rainha. Se não depuserdes as armas, levantarei âncora e partireicomHipólitaprisioneira.Sedefatoamaisàvossagranderainha,deixaideatenderàvozdodespeitoeatenteiunicamentenoquevosdigo.

Asamazonasentreolharam-sedenovoecompreenderamasituação.Oubaixavamas armasouperdiama sua rainhaedenadavaleramosgritoshistéricosdafalsaamazonaqueashaviaamotinado.Baixaramaslançasemsinaldetrégua.

HérculesentãodisseaHipólita:—Grande rainha, fomosambosprejudicadospela vingativadeusaque

me persegue. O acordo feliz que estávamos a justar desfechou nadesastrosa luta em que tantas guerreiras perderam a vida e vi-me nacontingência de aprisionar nesta nau aquela a quemeu só queria renderhomenagens.Mas restituir-vos-ei incontinenti à liberdade se, cumpridooacordofeito,meentregardesovossozóster.

Hipólita não fez objeção nenhuma. Destacou da cintura o zóster eentregou-oaHércules.

—Ei-lo.Levai-oàprincesaquetantooambiciona.Rainhasouporforçadosangueedodevotamentodeminhassúditas—nãoporforçadumobjetomaterial.

Hérculestomouocintoebeijou-lheamão,dizendo:—OmaishumildesúditodagrandeHipólíta,arainhadas invencíveis

amazonas.EmíliasorriueolhouparaPedrinho. "Enãoéqueelesabe falar?Lida

comasdamasquenemD.Quixote."EstavafindaamissãoqueEuristeuincumbiraaHércules.Admetaiausar

nacinturaozósterdeHipólita—masnemporissoadquiririaaimponentebelezadarainhadasamazonas,nemasuaesplêndidamajestade.Umacoisaénascer-serainha,outravestir-sederainha.Hipólitanascerarainhaeera-o até àpontadasunhas.Comgrandemajestade responderaaHércules ecomamaiordignidadedeixouonaviopara ir juntar-seaobandodesuas

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guerreiras.Teseu lá de seu barco tudo via. A beleza de Hipólita o tinha

impressionado tão tremendamente que na hora da partida dos outrosheróisdeclarouasuaintençãodeficar.

—Ficar?—exclamouPeleucomespanto.— Sim. Hércules aprisionou Hipólita e Hipólita aprisionou o meu

coração.Jánãopodereiviversemela.Horasdepoisosnavioslevantavamferro—todos,menosodeTeseu.O

heróidaÁticaficouecasou-secomHipólita.DevoltaparaMicenas,depoisdemaisumadesagradável travessiado

mar,Hérculesteveumaaventuradetodoinesperada.Aopassarporcertaaldeia foi detido por um mensageiro de Litierses, filho de Midas, rei daFrígia. Esse homem possuía ali uma suntuosa propriedade onde passavaumaverdadeiravidade filhode rei, a regalar-secombanquetesevinhosdos mais preciosos. E divertia-se de um modo muito extravagante:obrigando aos que passavam pela estrada a servirem-no por um dia nastarefas da lavoura — ceifar trigo, colher uvas ou azeitonas; e à tardecortava-lhesacabeçaejogavaoscorposnoRioMeandro.

—Litiersesordena-tequeváslimparoseuchiqueirodeporcos—disseomensageiro.

Hérculesriu-se.—QueméLitierses?—perguntou.—OfilhodoReiMídas.Moraaquinestagrandepropriedadeeexecuta

todosostrabalhoscomumdiaapenasdetarefaimpostoaospassantes.—Eseopassanterecusa-se?—Elecorta-lheacabeçaejoga-onoMeandro.—Eseopassantesubmete-seedáodiadeserviçoreclamado?—Elecorta-lheacabeçaejoga-onoMeandro.Hérculesrespondeu:— Leve-me à presença de Litierses. Desejo ter com ele um pequeno

entendimento.Ohomemobedeceu.Levou-oàpresençadofilhodeMidas.— Com que então — disse o herói com a maior calma — esta

propriedadeélavradaàcustadotrabalhoedavidadospassantes?Litierses, que estava à mesa se banqueteando, deu uma grande

gargalhadaviolenta.— Claro, homem! Vou assim executando os trabalhos agrícolas e ao

mesmotempoengordandoospeixinhosdorio.Nãoachainteligenteomeuprocesso?

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Hércules engasgou de cólera e, agarrando o malvado, cortou-lhe acabeçacomaprópriafacacomqueofilhodoreiseservia—efoijogá-lonoMeandro, dizendo: — Os peixinhos devem estar sequiosos por estasobremesa.

Pedrinho assombrou-se coma facilidade comquenaGrécia os heróismandavam gente para o outro mundo. Roubar, matar —tudo coisasnaturalíssimas. Hércules matou aquele filho de rei e lá prosseguiu naviagem como se não houvesse havido coisa alguma. E nada de polícia,inquérito, processo, júri, promotor, juiz, sentença, cadeia. Tudo muitorápidoeexpedito.

O Visconde observou que nos tempos modernos havia a "justiçaorganizada", mas ali a Justiça eram os heróis. Eles andavam à caça dosmaus, como lá no mundo moderno faz a polícia. E pegavam-nos eliquidavam-nos com a maior simplicidade. Que era Hércules, afinal decontas,senãoaJustiçaempessoa?Àsvezeserravaematavainocentes—masquejustiçanestemundonãoerra?

Depois da luta, das amazonas Pedrinho descera à praia em busca deMelampo e havia encontrado o menino desacordado e muito cheio demachucaduras.ComaajudadeMinervinoconduzira-oparabordo,ondeodeixou entregue aos cuidados do Visconde. O sabuguinho estava serevelando um excelente médico. Entendia de chás e pomadas comoqualquercurandeiro.Eassimfoiqueantesde findaaviagemmarítima jáestavaMelampocompletamente"novo",comosetivessesaídodocaldeirãodeMedéia.

EcomoiaoAsnodeOuro?Cadavezmaischeiodesuspirospelotermodaquelasaventuras.Voltaemeiaencontravarosaspelocaminho.Umasóque comesse e estaria restituído à forma humana. Tinha entretanto derespeitarapalavraepermanecerpeludoatéo fimdas façanhasdoherói.Isisemsonholhefalaranas"rosasdeseusacerdote",masoViscondeeradeopiniãoqueissonãopassavadebobagem.—Nãohádiferençanenhumaentreumarosanaroseiraeessamesmarosanasmãosdumsacerdote.

Masnãofoiassim.CertavezemqueoAsnodeOuro,enfurecidocomasesporadas deMelampo, pregou um coice na palavra de honra e comeu aprimeira rosa encontrada, ficou desapontadíssimo: continuou o mesmoasno de sempre, só que com uma rosa no papo. Tinha pois, de aguardarpacientementeasrosasdosacerdotedeIsis.

E afinal chegaram a Micenas. Chegaram e tiveram uma grandedecepção: o acampamento estava destruído! Do Templo de Avia, tãobonitinho,sóviramdestroços.Asestacascomasesculturasdasfaçanhasde

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Hérculesjaziamcaídasnochão,semesculturanenhuma.— Juro que os moleques de Micenas vieram até cá em procura dos

outros e nos escangalharam o acampamento! disse Pedrinho. Só há umacoisaquenãomudanomundo:osmoleques!Quediferençaentreosnossosládoséculo20eestesaquidoséculo...Queséculoéesteemqueestamos,Visconde?

—Certezanãotenho,mascalculoqueéo12ou13antesdeCristo.Pedrinhoficoudeolhoparado.Depoisdisse,comoquefalandoconsigo

mesmo:—Pareceincrívelqueestejamosatrintaedoisoutrintaetrêsséculos

donosso,istoé,a3.200ou3.300anosdedistânciadonossotempo...Emíliasuspirou.— Uma coisa me aborrece, Pedrinho. É que depois da nossa volta

ninguémvaiacreditarumaiscadoquecontarmos.Dizemlogo,comaquelascarasmuitobobas:

"É imaginação... É fantasia de criança..." E, no entanto, nós estamosrealmenteno"fundodasidades"—comodizoVisconde.CommeusolhosestouvendoonossoLelécomasuaclavaeasuapeledeleão.EstouvendoMelampo com a sua cara suja. Estou vendo suspiros lá nas tripas desteAsnodeOuro.EstouvendoMiner...QueédeMinervino?—eEmíliacorreuosolhosemredor.

NãohaviaporaliMinervinonenhum."ComcertezavoltaraaoOlimpoafimdecombinarnovascoisascomPalas"—sugeriuPedrinho.

—ParamimelefoimaséveracaradeJuno,disseaexboneca.Abisc...agrandedeusadeveestarcomonarizbemcomprido.Chegouatéadesceràterraedisfarçar-seemamazona—equeamazona—equeganhou?Zero.Coitada!...

Aquele"Coitada!"deEmíliaeraumadesajeitadíssimaeirônicaadulaçãoaJuno.Hércules levantou-se para ir a Micenas dar conta ao rei do novo

Trabalhorealizado.Emíliagritou:—Nãováainda,Lelé.Deixe-mebrincarumpouquinhocomozósterdeHipólita.—Nãohaviacaprichododiabreteaqueoheróiresistisse—elálhedeueleocintoparabrincar...

Emíliaajeitou-onacintae,pegandonumavara,berrou:—Companheiras!Vinderodearavossarainhaameaçadaderaptopor

estebandodeheróis.Ataquemo-losedestruamo-los.ElesqueremroubarestepresentequemeupaiAresmedeu... eavançouparaHérculescomavarinhaemristecomosefosselança.

Hérculesria-se,ria-se...

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VI-OsBoisdeGerião

Hérculessóvoltoudacidadeaocairdanoite.—Euristeualegrou-semuitocomocintodeHipólita.Parecequedesta

veznãoseaborreceucomaminhavitória,tantoeraoempenhodesuafilhaAdmetaempossuiraquelezóster.

—EqueoutroTrabalhoelemarcou?—QuerqueeutragaparaMicenasosboisselvagensdomaishorrendo

gigantequehánestaHélade—umdeváriascabeças...Gerião.—Jásei—dissePedrinho.—Elequeressesboispara terogostode

soltá-los.Euristeuéomaiorsoltadordemonstros.Sópreciosidadescomoocinto de Hipólita é que ele não solta. Espertinho... E onde fica esse talGerião?

— Muito longe daqui, na Ilha de Eritia, no Mar Jônio. Mar, mar... eHérculesfezcaradevítima—estavaselembrandodosenjôos...

Pedrinhocorreuacontaraosoutrosoquetinhaouvido.—Maisboi?—exclamouEmília.ComoháboisnestaGrécia!...OViscondeaproximou-se, toque, toque, toque,na suamuletinha.Veio

sugerirqueoverdadeiroerasoltarMelampo.—Nãonosadiantanada—explicou.PassaotempoajudiardeLúcioe

nãotemjuízonenhum.Umperfeitolouquinho.Aquelasuaidéiademeter-senalutaentreosheróiseasamazonasédemeninoquejátevemeningite.Bemcapazdesemeteremoutrasfundurasebabau...

PedrinhodeurazãoaoVisconde,masEmíliaprotestou.—Não!Nadadisso. Se o soltarmos, vai correndo aMicenas e conta a

históriadasminhasviradasepronto—estamosnomaiordosembrulhos.Elequefiqueatéofim.DepoisdaúltimaaventuranósosoltaremosaeleeaoAsnodeOuro.

O centaurinho vinha no galope com o jantar aos ombros. Todossuspiraram.Emíliadisse:

— Ando com medo que de repente viremos rebanho. Já estou tãoenjoadaquesódepensaremcarneirojásintoumembrulhonoestômago.Hojesóquerofrutas—emandouqueMelampomontassenoasnoefosseembuscadefrutas—figos,maçãs,morangos,oquehouvesse.Melampofoi,mas comonão encontrasse fruta nenhumapelas redondezas teve a idéiaabsurdíssimadeirprocurá-lasnafeiradeMicenas.Elá...ah!...láfoipilhadopelo seupai e agarrado,demodoqueLúciovoltounum trotemuito semjeitoedelomboabanando.

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—QueédeMelampo?—indagouPedrinho,jácomumpressentimentonastripas.

—Foiaomercadoembuscadefrutaseláopaioagarrou...Eraapiorcoisaquepodiaacontecer.Pedrinhoficoupálidocomocera.— Estamos perdidos!... Daqui a pouco vem cá o exército inteiro do

"antipatia" nos assaltar que nem uma Alemanha e como é? Tenho deprevenirHércules.

Oheróitambémnãogostoudaquilo.Ficounoar,semsaberquefazer.ChamouEmília.

—Eagora,figurinha?—Agora—disseela—oremédioéumsó:partimosjá,já,já—equem

vaimontadonoLúciosoueu.Depois pediu ao herói que recuasse a pedra que escondia os seus

"bilongues".Estavacommedodedeixarláacanastrinha.HérculesafastouapedraeEmília tiroudofundoacanastra,Abriu-ae

guardou lá dentro mais uma lembrança: a mensagem a Hipólita. Ao seraprisionada a bordo, a rainha das amazonas deixara cair do cinto opergaminho—eEmíliabifou-o.

Não era fácil levar aquela canastra em cima do lombo de Lúcio.Pedrinhoveioestudarocaso.

—Sócomumcontrapeso—disseele.—Ascargasdosasnostemqueserduas,umadecadalado.

—Poisarranjeumcontrapeso.Pedrinhopensou,pensou.Teveumaidéia:—OVisconde!...ComasmuletasoViscondemalpodeagüentar-seem

cimadocentaurinho.Façoumpicuádecipóeponho-ocomocontrapesodacanastra.

E assim foi. Meioameio voou à floresta em busca de cipós. Pedrinhoteceu com muita habilidade um picuá onde o sabuguinho podia ircomodamentereclinado.

—Venha,Lúcio!Oasnoaproximou-se,suspirando.Pedrinhodispôssobreoseulomboo

picuá,jácomoViscondecontrapesandoacanastra.—Ótimo!...AtégaloparcomissoemcimaLúciopode.EmseguidamontouEmíliaepulouparaolombodeMeioameio.—Pronto,Hércules!Podemospartir.O herói tomou a frente, em marcha rumo à Ilha de Eritia. Nesse

momento soou um tropel de cavalos à distância. Eram os homens deEuristeu.Tudoexatinhocomoaexbonecaprevira.Melampocontaraaopai

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ahistóriadasviradasdaEmíliaeanotíciabreveseespalhoupelacidadeinteira.OspaiseparentesdosdezenovemeninosviradosemobjetosforamaopaláciodarqueixaaEuristeu.

—Majestade,afeiticeirinhaqueandaemcompanhiadeHérculesusoudumtalismãmágicoevirounossosfilhosemobjetos.Melampo,oúnicoquesesalvou,acabadereaparecerenoscontoutudo.

EuristeuolhouparaEumolpo.Depoisavermelhoude cóleraedeuumgrandeberro:

—Já!Ordenoaosmeusguardasreaisquepartamsemdemoraacavaloem perseguição de Hércules e do seu bando. Quero-os aqui, vivos oumortos!...Minutos depois cem cavaleiros partiam a toda para o camping dos

picapaus, com Melampo à frente levado como guia. Mas nada maisencontraram a não sera fogueira dos assados ainda fumegantes e osdestroçoscomunsatodososacampamentos.

—Maldição!—exclamouocomandante.Fugiram...Hérculescomoseubandinhojáestavamaumaléguadali.

***

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10-OSBOISDEGERIÃO

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I-OsBoisdeGerião

Hércules seguia na frente. Depois vinhaMeioameio com Pedrinho nolombo.OasnoLúciocomEmíliamontadadebandacomoasmulheresqueusamsilhãoe comoViscondenopicuá, vinhana retaguarda.Apostoquebempoucossabemoqueé"silhão"eoqueé"picuá"!...

Silhão é uma sela de um estribo só, em que as mulheres de saiacomprida cavalgam de banda; as que usam culotesmontam àmoda doshomens.Epicuáéumacoisafacílimadecompreender,vendomasdifícildeexplicarcompalavras.Umaespéciededoisbolsosligadosentresi,demodoquecadaumfiquenumabandadoanimal.Eacargaquevainumdosbolsosfazcontrapesoàquevaidooutro.

Pedrinho havia feito um picuá de cipó, de modo que a canastrinhaficasse dum lado como contrapeso do Visconde, e o Visconde ficasse dooutroladocomocontrapesodacanastrinha.Eassim,umcontrapesandoooutro,opicuáseequilibravamuitobemsobreolombodeLúcio.

Oasnojánãodavasuspironenhum.Quegostosura lhefoiver-se livredeMelampo!Emília eraumpeso-pluma.Quantopesarianabalança?Unsoitoquilos,se tanto.EoVisconde?Ah,essenãochegavanemaumquilo.Mas como, então, podia servir de contrapeso auma canastrinha cheiadecoisas,ondehaviaatéumapenadebronze?AexplicaçãoéqueoViscondepesavapouco,massuaciênciapesavamuito.

Emíliadeprosa comLúcio, fê-lo contar suavida inteirinhadesdequenasceu.

Depoisperguntou:—Queidéiaaqueladevirarcoruja?Lúciorespondeudepoisdeprofundosuspiro:—Arrastamento. Puro arrastamento.Vendo a velha virar em coruja e

sairpela janela, fui arrastado a fazer amesma coisa.Não acontece isso avocêàsvezes?

—Estáclaroqueacontece.Mascomoéquevaipegarumapomadadecorujaepegaumadequadrúpede?Nãohaviarótulonospotinhos?

— Havia, mas estava escuro no quarto da velha, e talvez os rótulosestivessemtrocadosjustamenteparacastigodosintrusos.Essasfeiticeirassãoumasdanadas—eaprosafoiporaíafora.

PedrinhotambémnãoparavadeconversarcomMeioameio.—Quemina, issodagentesermetadehomemmetadecavalo!Fica-se

comasvantagensdosdois—aenormeforça,osquatropéseavelocidade

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dos cavalos e a inteligência e a fala do homem. Mas uma coisa nãocompreendo:comoéquesendovocês,centauros,tãosuperioresanósnãocentauros, tendo o mesmo cérebro que nós e muito mais força física emeiosnaturaisdedefesa,comoéquenãodominaramoshomens?

Meioameio,que jáestavacoma inteligênciabemdesenvolvidae tinhaobservadoeaprendidomuitacoisa,deuumarespostacerta:

—Porcausadele—eapontouparaHérculescomobeiço.—Como?—Porcausadele,sim.Quemfoiquedestruiuquasetodososcentauros?

Ele.Comoéqueoscentauroshãodedominaroshomens,seelenãodeixahaver centauros?Há pouquíssimos hoje. Nossa raça está se perdendo—porquê?Porcausadele...

Hérculesseguialáadiante,imersoempensamentos.Estavaaparafusarem Gerião. Como seria realmente esse Gerião? Cada qual afirmava umacoisa. Um, que era filho de Crisaor (o irmão de Pégaso) e da oceânideCalírroe;equenasceracomtrêscabeçaseseispernas.Outrosdavam-lheseiscabeçasetrêspernas—umagrandetrapalhada.Masfossecomofôsse,nadamaisterríveldoqueessemonstrodaIlhadeEritia,donodeboisaindamaisbelosqueosdeCreta.

Como todos os grandes heróis, Hércules no começo duma aventuramostrava-se inquieto; o sangue-frio só lhe vinha, e da maneira maisabsoluta,quandodefrontavaoperigo.

EassimláseguiamelesderumoàIlhadeEritia,cadaqualpreocupadocomumaordemdeidéias.

Chegados à costa, Hérculesmandou Pedrinho em busca de um navioqueos levasseà ilhae ficousentadoporali,numgrandedesânimosódepensar no enjôoque ia padecer. Pedrinho conseguiu umbonito barco devela de sessenta toneladas — um verdadeiro hiatezinho de navegaçãocosteira. Seu capitão, o velho Agatirso, assustou-se com a presença dojovemcentauro—emaisaindacomoasnofalanteeaaranhadecartola.Mas acostumou-se depressa. Pedrinho fê-lo contar o que sabia do ReiGerião.

—Então é rei também?— admirou-se Emília.—Que terra de reis ebois isto aqui! Quantos... O Visconde explicou que os reis gregos nadatinham com os reismodernos. Não passavam de chefes duma cidade oudum limitado território. Mais ou menos como um "chefe político" , um"coronel"dascidadesdointerior.O"mandão",o"cacique.

— Sim, continuou Agatirso. Gerião é o rei da ilha, mas um reimonstruoso.Temtrêscabeças...

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—Ouçodizermilcoisas—dissePedrinho.Unsfalamemseispernasetrês cabeças, outros em seis cabeças e três pernas. Como será realmenteessemonstro?

Agatirso sabia ao certo. Declarou até que já o tinha visto com seusprópriosolhos.

—Temtrêscabeças,sim—masduaspernassó.Atalhistóriadasseispernasnãopassadefantasia.

—Equetalécomorei?—Ah, amaior das pestes! Riquíssimo em rebanhos. Furta o gado de

todomundoenãoháquemlhefurteumsócordeirinho...—Porquê?— Porque seus rebanhos são guardados não só pelo pastor Eurition,

outromonstrodeduascabeças,comotambémporumterríveldragãodesetecabeças.

—NailhadoMinotauroerambois,aquisãocabeças...comentouEmília.Trêsnorei,duasnopastor,setenodragão.Quecabeçada!...

Agatirsocontinuou:—Alémdasuaferocidade,Geriãotemfamadeseracriaturamaisforte

queomundojamaisproduziu.Lutanocampocomosoutrosmaisbravioscomosefossemcarneirinhos—eatéodragãooteme.Ecomogozadeumasaúdeexcelente,aidenós!Temosdesuportá-loaindapormuitosanos...

—Issonão—objetouPedrinho.Nãoénadaimpossívelquederepenteapareçaumheróiquedêcabodele.

OvelhoAgatirsosoltouumarisadagostosa.—Darcabodele?Ah,ah,ah...Geriãoé invencível.Heróinenhumousa

fazer-lhefrente,ficadepernasbambassódeavistá-lo.EvendoHérculesdeolhomuitobranco,caídoporali, jáarrasadopelo

enjôo,cochichouparaPedrinho:"Estávendo?OseuheróisódeouvirfalaremGeriãojáestábambo."

—Oh,não!—explicouPedrinho.—Aquiloéenjôo.Hércules suportatudo nomundo, menos viagem demar. Ah, enjoamesmo, vomita até osbofes.

Agatirso fingiu engolir a explicação: no fundo estava convencidíssimodequeadoençadoheróierapuromedo.

Muitas coisas ainda contou o velho capitão do barco. O rei de Eritiajuntaraoseumaravilhosorebanhoàcustadosvizinhos.Iaavançandonasterrasalheiasepegandoomaisbonito.Ficouassimcomaflordogadodasredondezas.

— E dele ninguém tira um carrapato, de medo do pastor de duas

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cabeças e do dragão, sei — disse Pedrinho. — Mas quer apostar queHércules varre com essa cabeçaria toda e leva os bois de Gerião paraMicenas?Foiaordemquerecebeudoreidelá;equandoHérculesrecebeuma ordem do tal rei, cumpre-a com o maior rigor. Quantas coisastremendas já não o vimos executar! — e desfiou a história dos novetrabalhosdeHércúlesjárealizados.

MesmoassimAgatirso olhava comdesprezoparao "herói enjoado" esorria com o maior ceticismo. Positivamente não acreditava que aquelemassa-bruta valesse alguma coisa. Marinheiro que não enjoa despreza oembarcadiçoqueenjoa.

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II-Oceano

Aqueles mares da Grécia tinham um azul especial, um azul muitoaniladoetransparente.AconversapassoudeGeriãoparaomar.

— Omar é o meu elemento— disse o velho marujo.— Desde bemmeninoquemorosobreasondas.Posseidonéomeugrandedeus.

OVisconde sabiamais de Posseidon, ouNetuno, do que aquele velhomarujo.

Emíliadeu-lheapalavra.—FaledePosseidon,Visconde.Osabuguinhotossiuopigarroefalou.—PosseidonéumadasgrandesdivindadesdoOlimpo,irmãodeZeuse

Plutão, o deus dos infernos. Paramim omaior dos deuses é justamentePosseidon,porqueomarémuitomaiorquea terra.Pelomenoséodeuscom maior número de adoradores, porque no mar há milhões de vezesmaisvidasdoquenaterra.

—Efilhodequemeraessedeus?—perguntouEmília.—DeSaturno.EsteSaturnoeraotalquedevoravaosfilhos—esenão

devorouPosseidonfoiporquesuaesposaRéiaoenganou:apresentou-lheembrulhado num pano um potrinho recém-nascido. Saturno devorou-ocertodequeeraofilho.

Emíliafezcaradesuperioridade.—Quereisequedeusesháporaqui!Comercarnedecavalopensando

queécarnehumana...Pedrinhoadmirou-sedaquelaobservação.—Oraesta!Comopodiaeledistinguir?—PoisseeufosseSaturnodistinguiriaperfeitamente.—Como,Emília,sevocêjamaiscomeunemumacarnenemoutra?Emíliaviuqueeramesmoecalou-se.OViscondeprosseguiu:—Os três grandes filhosde Saturno, salvosde sua fome, foramZeus,

Posseidon e Plutão. A Posseidon coube o reino das águas, os oceanos, osriosemaresporissorecebeuotridentecomosímbolodoseuimpério.

— Como é que um tridente — ou garfo de três dentes — pode sersímbolodumimpério?

OViscondeexplicoumuitobem.— O império das águas é habitado por peixes e outros animais

"caçáveis" com espeto, ou com tridente, ou com fisga. Melhor dizermosfisga. O tridente deNetuno era uma fisga de três pontas, com a qual ele

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fisgava os peixes que queria e também cutucava os cavalos da suacarruagem marinha. E furava a terra para dar nascimento aos rios. Equebrava rochedos, e batia nos vagalhões para apaziguá-los. Ora, nadadisso Netuno poderia fazer com um chicote, por exemplo, ou com umacolher, ou comesses cetros todosbordadinhosqueos reisdehojeusam.Nadamaisnatural,pois,queotridenteficassecomoosímbolodoimpériodaságuas.

—Uf!...—exclamouEmília.—Eondearranjouotaltridente?—DizemunsquelhefoidadopeloseuirmãoZeus.Outros,quefoium

presentedosCiclopes,aquelesgigantesdeumsóolhonatesta.Agradecidosa Netuno por haver sustentado a causa de Zeus na luta contra os titãs,deram-lheotridente.

—Quehistóriaéessa?—exclamouPedrinho.—PoisNetuno,irmãodeZeus,lápodiasercontraele?

—PodiaefoiinimigodeZeusdurantemuitotempo,quandomoravanoOlimpo. Várias vezes conspirou contra Zeus, de cujas ordens fazia poucocaso.DaivemasuaexpulsãodoOlimpoeoseuexílioparaaTroada,onde,ajudadoporApolo,ergueuosmurosdacidadedeTróia.

— Estou gostando de Netuno — disse Emília, que era muitorevolucionária.—Rebelar-secontraZeus,quelindo!

O Visconde continuou, com grande admiração do velho Agatirso, queapesardegregoeramuitofracoemmitologia:

—Ah, eraumdeusvingativoe terrível. Foiquemsuscitouomonstroque destruiu a Troada, e mais tarde aquele outro que quase devorouAndrômeda,edepoisotouromaravilhosoqueemergiudaságuaseMinosnão teve ânimode sacrificar.Durante a guerradeTróia tomouopartidodosgregosedaiveioodesastredostroianos.

Fezmilcoisas,inclusivecontestaraPalasodireitodeserapadroeiradeAtenas. A fimde decidir a briga, Zeus declarou que dariaAtenas a quemfizesseomaisútilpresenteaoshomens.EvaiNetuno,então,batenaterracomo tridentee fazsurgirocavalo,animalqueatéaquelemomentonãoexistia...

—Espere,Visconde!—berrouEmília.—Seocavalonãoexistiae foicriado por Netuno, como é que sua mãe enganou Saturno, dando-lhe acomerumpotrinhoemvezdoprópriofilhorecém-nascido?

OViscondesuspirou.—Ah, issoéumdosmaioresmistériosdamitologia.Muitos sábios já

quebrarama cabeça no estudodo problema. Eu não sei. O que sei é queapesardocavalinhoqueSaturnocomeu,quemcomumgolpedo tridente

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deu origem ao cavalo foi Netuno. O cavalo iria ser o maior amigo dohomem. Era, pois, o maior presente que um deus poderia fazer àhumanidade.

—EderrotouPalas?—Não.AinteligentíssimaPalascontrapôsaocavalooutropresentede

aindamaiorutilidade:aoliveira.Emíliaprotestou.Nãoconcordouqueaoliveirafossedemaiorutilidade

que o cavalo, porque "sem a oliveira os homem se arranjariamperfeitamentemassemocavalo,como?DizDonaBentaquesemocavaloohomemestariaatéhojeandandoapé."

—Podeser—disseoVisconde—masZeusnãopensavaassim;equemficouapadroeiradeAtenasfoiPalas,emvezdeNetuno.EvaiNetunoentãoe, furioso, lançouomarcontratodaaÁticaeasubmergiu.ÉnaÁticaqueficaAtenas.

—Seidisso.Jáestivelá.Edepois?—Depoiscasou-secomAnfitrite—efoigrandevitóriasua,porqueesta

filha deOceano eDóris não queria saber dele. Achava-omuito feio e atérepugnante.Aquelas barbas verdes de algas marinhas,aquela catinga demaresia...Ealémdissoeraopaidequantomonstrohánosoceanos.

—EondemoraNetuno?—quissaberPedrinho.— No fundo do Mar Egeu. É lá que tem os seus famosos cavalos-

marinhosdecrinadeouroepatasdepalmípede,impetuosíssimos.Àsvezestambém usa uma carruagem em forma de concha, puxada por quatrodelfins.

—DeveserimponenteNetunoagalopenessecarro!...— Imponentíssimo. Ele sai de diademade pérolas e nácar na cabeça,

com o tridente numa dasmãos e outra estendida como para acalmar asondas. E quando anda nessa grande concha por sobre a tona do maramansado,osmonstrosmarinhossobemdasprofundezaseseguem-no,osdelfinsbrincalhõesvãorebolandonafrente.

—Estouachandomuitagraçanosdeusesgregos.Eles,abemdizer,nãosãodeuses—sãoverdadeirosromancespoliciais.BemdizDonaBentaquenuncahouveimaginaçãomaisricaqueadosgregos.

Pedrinho estava pensando em Andrômeda. Quis saber quem era. Osabuguinhocontou.

— Andrômeda era filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopéia suaesposa. Um dia Cassiopéia teve a audácia de disputar um concurso deformosuracomasnereidasdoséquitodeNetuno—eNetuno,furiosíssimo,lançou contra o reino de Cefeu um monstro horrendo. Cefeu, no maior

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desespero,consultouoOráculodeAmon,queeraooráculodeDelfosládaÁfrica. E o oráculo de Amon responde que o meio de aplacar a ira deNetunoeraexporàfúriadomonstroabelaAndrômeda.

—Eopaimalvadoteveacoragemdefazerisso...—Sim,deixouquealindajovemfosseentregueàsnereidas,asquaisa

amarraramaumapenediadapraiaparaqueomonstroacomesse.—Ecomeu-a?—perguntouEmíliaaflita.— Quase. Quando foi chegando com aquela imensa boca vermelha

escancarada,eisqueaparece...adivinhequem?—Hércules?...— Não! Perseu, o mesmo que matou a Górgona. Vinha montado...

adivinhenoquê?—EmPégaso!—berrouEmília.—Sim,emPégaso.Perseumatouomonstroe...adivinheoquefez?—Desamarrou-aecasou-secomela...—Issomesmo.Vocêéumadanadinhaparaadivinhar,Emília.Agatirso estava de boca aberta. Nunca imaginou que pudesse haver

tantaciêncianabarrigadeumaaranhadecartola.Nistoumdosmarinheirosdabarcadeuumgrito:"Terra!Terra!..."Hércules,queestava caídoàpopa, comosolhosmaisbrancosdoque

nunca,deuumsuspiro...

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III-NaIlhadeGerião

Odesembarqueoperou-secomodasoutrasvezes,comoheróiapoiadoao ombro deMeioameio,mais bambo do que se tivesse levado uma boasova do tridente de Netuno. Pedrinho teve de repetir a mesma cura de"herói enjoado", lá das praias de Temiscira. Depois que se viu "novo",Hérculesdisse:

—Bom.Agoratemosdearquitetarumplano.Aforçadoreidestailhajásei que está sobretudo no dragão de sete cabeças e no pastor de duas.Tenho de me aproximar com muito jeito para dar cabo do dragão e dopastor—sódepoisireijustarcontascomoreimonstruoso.

—Comovaiatacarodragão,Lelé?—quissaberEmília.— Com as minhas flechas — e ao dizer isso, tirou-as do carcás e

examinou-lhes as pontas. Desde aquela aventura em que se viu quaseperdidodiantedeummonstroporqueEmíliahavia"humanizado"assuasflechas,oheróinuncamais semeteuaumaempresa semprimeiramenteexaminá-las.

—Fiquemaqui—disseele.—Vousozinho—elásefoi.Os picapaus ficaram ouvindo as histórias de Agatirso. Não há velho

marinheiro que não saiba de muita coisa interessante relativa ao mar.Pedrínho, que era um grande pescador lá no ribeirão do sítio, só queriahistóriasdepeixes.JáEmíliasóseinteressavapelasdemonstros.

— E a tal serpentemarinha de que falam tanto?—perguntou ela.—Nuncajamaisencontroualguma?

Nãohámarinheiroquenãofaledasserpentesmarinhasquevivemnasgrandesprofundidadeseàsvezessobemàtona.Agatirsotambémtinhaasua.

—Certavez—disseele,vindoeuemminhabarcadaIlhadeParosparaadeNaxos,deiderepentecomummaragitadíssimo,masdumaagitaçãodiferentede todasasqueeu conhecia.Era comose láno fundoestivessehavendo um terremoto. Não posso compreender como me salvei. Quevagalhõeshorríveis!Levantavam-secomotorresedepoisafundavamcomoverdadeirosabismos.Umahoraleveiassim,agarradoaotocodemastrodemeubote...

—Porqueaotoco?— Porque era só o que restava do lindo mastro de meu bote. Já no

começoumvagalhãoodespedaçoucomosefosseumahastezinhadecapimseco.Ficouotoco—emuitoqueissomevaleu.Aelemeagarreideunhase

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dentesdurantemaisdeumahora.Porfimatormentafoiserenando—eeurespirei.Estavasalvo,graçasàbondadedePalas,aminhapadroeira.Efoientãoqueviuma coisanuncavista emmeusanose anosdevoganestesmares.

—Viuaserpentemarinha...—Sim,vi...Masnoprimeiromomento,nemcompreendioquefosse.Umacabeçahediondaecomoqueaflitíssimaborbotavapelabocamuito

aberta uma porção de coisas vermelhas. E aquele enormíssimo corpo decobraboiavasobreomarcomoumasériedeSSemendados.

Lánofim,acauda—umacaudaquebatianaágua.Omonstrodeu-meaidéiadeestarnaagonia.Umvagalhãoarrancoudalimeubarco—efoisó.Nãoenxergueimaisnada.

Agatirsoenxugoua testa.A simples lembrançadaquelas cenas fazia-osuar.OViscondedeuumaexplicaçãozinhamuitoboa.

— É que tinha havido no fundo domar algum terremoto, ou algumasúbita erupção vulcânica, e o convulsionamento das águas deslocou umadessas serpentesmarinhasdasgrandesprofundidades, arremessando-aàsuperfície. Ora, a diferença de pressão émuito grande e o organismo domonstronãosuportouasúbitapassagemdaaltapressãodofundoparaapoucapressãodatona—eestourou.

—Comoestourou?—Rebentou-se todo por dentro, por falta de pressão. É por isso que

estehomemaviubotandoparaforatodasasvísceras.Oqueeleviufoiumaserpentemarinha ládasprofundas,estouradaemconseqüênciadapoucapressãoatmosféricadasuperfície.

O velho marinheiro ficou admiradíssimo da segurança do Visconde,emboranãoentendesseaquelahistóriade"pressãoatmosférica".

E ainda estavam a falar em serpentes marinhas e peixes, quandoHérculesreapareceu.

—Ocasoédifícil—disseele.—Odragãooculta-senumadasváriascavernas lá existentes. É delas que inopinadamente salta sobre osatacantes.Pertoestásempreopastordeduascabeças.Quematacaopastorarrisca-se a ser atacado pelo dragão — e não podendo prever de quecaverna vai sair o dragão, pode ser apanhado de surpresa. Vim pensarsobreoquefazer.

HérculesnaverdadenãotinhavindopensarcoisanenhumaesimsaberaopiniãozinhadaEmília.Percebeulogoqueeraumdessescasosemqueainteligênciavalemaisqueaforçabruta.Eolhouparaela.

Emíliasegurouoqueixoepôs-searefletir.Derepentedisse:

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—Heureca!...Todos ficaram muito atentos, curiosos de saber o que ela havia

"heurecado". Emília ainda pensou mais um bocadinho, como queaperfeiçoandoaidéia.Depoisperguntou:

—Quantascavernassão?—Umasvinte.—Poisojeitoéumsó,Lelé:descobriremquecavernamoraodragão.

Feitoisso,orestosetornafácil.—Sim—concordouoherói.—Seeutiveracertezadequeodragão

estánesteounaqueleburaco,possoatacaropastoreemseguidaapontarminhaflechaparaabocadoburacocerto.

—Exatamente—concordouEmília.—Podemosfazerumacoisa:voujuntocomvocêeláaplicoomeumeio

dedescobriracavernacertadeondevaisairomonstro.—Quemeioéesse?—indagouHércules;eela,muitoespevitada:—Nãopossodizer;perdeoefeito.Masjuroquemarcodireitinhoqualé

acavernadodragão.Hércules deu amão a Emília e lá se foram. Pedrinhopensou consigo:

"Qualseráomeioqueelavaiusar?Ofaz-de-contaouavarinhadecondão?"De um certo ponto, entre duas grandes pedras, Hércules mostrou a

Emília,lálonge,opastordeduascabeçaseasváriascavernas.Numaestavaodragão,masemqual?Quemfosse lutarcomopastorpodia ficarcomodragão pelas costas — e como era? A prudência mandava, primeirocertificar-se do ponto certo onde se escondia o dragão: só em seguidaatacaropastor.

Hércules pôs os olhos em Emília como quem diz: "E então?" Emíliaergueuparaeleasuacarinhacavorteiraedisse:

—Nadamaissimples.Tapeosolhosqueeujádigoemquecavernaestáodragão.

Hérculestapouosolhos—eEmília,muitorápida,foiapontandocomodedinhoparaascavernasedizendoláconsigo:

"Faz de conta que não está nesta nem nesta— nem nesta", e assimapontoutodasmenosuma."Logo,estánestaúltima."EparaHércules,alto:

— Pronto! Já resolvi o problema. O dragão está escondido naqueleburacodaesquerda—aquelelá...eapontoubemdireitinho.

Hérculesficouassombrado:Nãopodiacompreenderdequemaneiraelachegaraasemelhanteconclusão.Quissaber.Indagou.

—Nãodigo!—respondeuadiabinha.Tenhoosmeussegredos,comoMedéiatemosdela...

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Oheróinãoinsistiu.Ninguémnomundoestavamaisconvencidodequeo pelotinho humano era na realidade uma curiosíssima feiticeira dosséculosfuturos.E,sendoassim,nãoteveamenordúvidadequeoantrodomonstrofosserealmenteoindicado.

—Entãopossoatacaropastor,certodequeodragãovaisairdaquelacaverna?

Emíliarespondeucommajestosasegurança:—PODE!EraotomdeMedéiaeCirce.Eraotomdosoráculos.EraotomdePalas

eHérculesnãoduvidounemporummilésimodesegundo.—Bom.Fiqueaqui—disseele.Voudaravoltaeatacaropastorpor

aqueleladodelá.—Porquê?—Porqueassimficareidefrenteparaacavernadodragão.Meureceio

eraatacaropastorpelafrenteeterodragãopelascostas.Emília ficou ali e Hércules deu a volta para atacar o pastor do ponto

certo.Tevede ir agachado e oculto pelas pedras. Se se erguesse, o pastor o

veria imediatamente, porque uma criatura de quatro olhos vê aomesmotempoanorte,sul,lesteeoeste.

Súbito,Hérculespôs-sedepénumpulo, jácomoarcoesticado—eaprimeira flecha voou, assobiando. O pastor viu o pulo de Hércules etambémlevouamãoaoarco—masaflechadeHérculesopegouantesqueelelançasseasua.Elogoaseguirfoialcançadoporoutra.

Nãoeraprecisomais.Duascabeças,duasflechas...Tudoocorreunumabrirefechardeolhos,masmesmoassimodragão

ocultonumadascavernaspressentiuoquesepassavaláforaeapareceu...ApareceujustamentenabocadacavernaindicadaporEmília!

— "Exatinho como eu disse" — pensou a exboneca. "O meu 'faz deconta'éinfalível"...Aoversurgirodragão,Hérculesenviou-lheumaflechaàcabeçanúmero

um,atingindo-anumdosolhos.Oherói tinhade lançar sete flechas,umapara cada cabeça, mas isso antes que o dragão o alcançasse. E com querapidezvinhaodragãoemseurumo!Sóaextremarapidezdosflechaçososalvaria. E Hércules, zós, zás, zós... duas, três, quatro, cinco, seis flechas,todas muito bem cravadas em cada olho direito de cada uma das seiscabeças. Faltava só a sétima— mas não houve tempo: o dragão estavapróximodemaisparao tirode flecha—quase juntodele.Hérculesentãorecorreu à clava— e comum só golpe—mas daqueles!!!— amassou a

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sétimaeúltimacabeçadomonstrocomoumapessoaqualqueramassaumabola de papel de estanho. Emília ouviu o blaf e viu o dragão cairestrebuchante.Dasseiscabeçasatingidasumalínguamuitovermelhaaindasaiaeentrava,eapontadacaudadomonstro "faziaassim",agitadapeloveneno...

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IV-Avé,Avé,Evoé!

—Avé, avé, Evoé!...— berrou Emília lá onde Hércules a deixara; e foicorrendo ver os dois monstros vencidos. Mortos, mortissimos... E queportentos! Um homem de duas cabeças é tão horrível como um homemsemcabeçanenhuma.Produznagenteoverdadeiroarrepiodohorror.Eodragãoeraumlagartoenormecomenxertodeoutrosbichos—verdadeiramonstruosidadedepesadelo.NãotinhaacorverdedodragãodeS. Jorgequeelaviranalua;eramalhadodepretoeamarelo.Emíliapensou:"Levoounãolevoumalembrançadestesmonstros?"Masdeuumacuspidinhadelado:"Nãovaleapena.”

Depois de contemplar por alguns instantes as suas vítimas, HérculespensouemGerião.Comoabordá-lo?Os reis vivemempalácios, e invadirumpalácioéomesmoqueinvadirumlar.Olaréinviolável.Ojeitoeraumsó:ficardetocaiaporaliatéqueoreiaparecesse.

Geriãologosaberiadoacontecidoefatalmenteviriaveroquehouve.Eassim pensando Hércules resolveu esconder-se numa das cavernas eesperar.TomouEmíliapelamãozinhaefoiparaadeondesaíraodragão.Entrou.

Otetodacavernaestavatodoenfeitadinhodepingentesnegros:—unsmorcegõesqueseassustaramelásesumirammaisparaofundo.Hérculessentou-se,comEmíliaaocolo.

—Comofoiquedescobriuacavernacerta?—perguntou-lhe.—Conteograndesegredo.

—Poiséofaz-de-conta,Lelé.Desdequeeufizdecontaquenãoeranasoutrascavernasqueodragãoestava,entãotinhadesernesta...

Hérculesfezcaradequemnãoentendiaaquelahistória.— Escute— explicou Emília pegando-lhe na mão.— Você tem aqui

cincodedos.Setiraquatroquantosficam?—Ficaum...— Exatamente. Pois foi o que fiz com as cavernas. Eram vinte. Tirei

dezenove—ficouuma:estaaqui...Tãosimples.Emília achava simples, mas para Hércules o mecanismo do "faz-de-

tonta"eraummistérioverdadeiramenteimpenetrável.— O que me admira — disse ele — é que esse processo não falha

nunca...—Nempodefalhar—ajuntouEmília.—Sevocêfazdecontaqueuma

coisanãoé,estáclaroqueelanãoé.Sevocêfazdecontaqueé,estáclaro

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queé.Tãosimples.Estavam nessa discussão quando um rapagote, de passagem por ali,

estranhouaausênciadeEuritionecorreuosolhosemredor.Aodescobriro seu cadáver, e logoadianteododragão,deuumberrodepavor e saiuvoandorumoaopaláciodorei.

—Majestade—encontreiEuritioneodragãomortosaflechaços!...Geriãoestufoudesurpresa,fúriaeódio;comotivessetrêscabeças,fazia

cadacoisacomuma—surpreendia-secomaprimeira,enfurecia-secomasegunda e odiava coma terceira. Para falar tambémusava as trêsbocas:dizia uma palavra com a primeira, dizia a seguinte com a segunda e aimediatacomaterceira;depois,dacapoàprimeiracomonasmúsicas.

MasaoouviraquiloGeriãonadadisse.Estufousó.Faiscoucomosolhose saiu a passos precipitados, rumo ao pedregal das cavernas, conduzidopelorapazola.

HérculeseEmíliaviram-nosemservistos.Queestranhogiganteaquele!Três cabeças e seis braços, além do mais uma curiosa espécie de asasegípcias.Traziatrêsescudosnosbraçosesquerdosetrêslançasnasmãosdireitas. Hércules percebeu logo que a luta ia ser tremenda, pois era umgigante equivalente a três. Suas flechas de nada valeriam contra tantosescudos, e sua clava teria contra si a réplica de três lanças agindosimultaneamente.Quefazer?HérculesolhouparaEmília.

Numrelancea"dadeiradeidéias"apreendeuaessênciadocasoedisse:—Eleéfortíssimodacinturaparacimaefracodacinturaparabaixo?—Porquê?— Porque tantas cabeças, tantos braços, tantos capacetes, escudos e

lanças,sãomuitacoisaparasóduaspernas.Esqueçaoqueestádacinturaparacimaeataqueaspernas.Demolidaabase,atorrecai.

OrostodeHérculesiluminou-se.Nãopodiahavercoisamaisclara—enemele,nemtodososheróisqueanteriormentehaviamlutadocomGerião,tinhampercebidoaquelepontovulnerável!...

Hércules ajeitou ao arco uma flecha e emergiu da caverna. Geriãoimediatamenteoavistou.Quemdispõedeseisolhosemtrêscabeçasnâoperdenadaevêdepressa.Geriãoviu-oefechou-senadefesa,cobertopelostrêsescudoseoscapacetesdebronze—masasetadeHérculesnãoveioapontadaparaas"partesnobresdocorpo",opeito,ocoração,acabeça,esimparaahumildepartedochamada joelho—e láentreosossinhosdojoelho direito de Gerião se cravou a primeira seta do herói. E a segundaseta,vinda logoatrásdaprimeira, tambémsecravouno joelhoesquerdo.Ah,foiaconta!...Gerião,comtodasassuascabeçasetodosaquelesbraçose

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escudos e lanças e capacetes, desabou como essas grandes chaminés detijoloquandoumaexplosãodedinamiterebentanabase.Umpeitodeheróipodesertremendo,ocoraçãodoheróipodesercomoodeRicardoCoraçãodeLeão;masseojoelhodobra,aquilotudoláporcimavemlogoabaixo,decambulhada.

Escangalhadonosjoelhos,Gerião,omonstruosoreiinvencível,desabouem cima dos corpos de Eurition e do bicho de sete cabeças. Hérculesaproximou-seefacilmenteomatoucomtrêsgolpesdeclava,—pá,pá,pá,—umemcadacrânio.

—Avé,avé,Evoé!...—berrouEmília,correndoaarrancarumbotãodeourodatúnicadogigante—umlindo"souvenir".

Hércules contemplava os três cadáveres. Quanto havia –sofrido omundoalidosarredoresporcausadaassociaçãodaquelestrêsmonstros!Já fortíssimos individualmente, com a associação se haviam tornadoinvencíveis. Mas lá estavam por terra, extintos. Por quê? Porque nãohaviam contado com o valor de Hércules em íntima associação com aesperteza da Emília. O herói estava compreendendo o valor da"associação".

Muito bem. Euristeu lhe havia ordenado que levasse paraMicenas osboisdeGerião.Nãolheordenaraquedessecabodesserei.Mascomotomarosseusboissemmatá-lo?Ecomomatá-losempreliminarmentemataraopastorEuritioneaobichodesetecabeças?

AprimeirapartedoDécimoTrabalho estava executada—eHérculesiriavercomoforasimplesdiantedasegundaparte:otransportedaboiadadeGeriãoparaMicenas.Oproblemadotransportesemprefoimuitosérioemtodosospaíses,sobretudonaantiguidade,antesdasestradasdeferro,doscaminhõeseautomóveis,dosgrandesnaviosemaismeiosexistenteshoje.NaGréciadaquelestempossóhaviaolombodeanimal,acarretadeduasrodas...equemais?Só.Osprópriosdeusesnãoiamalémdacarreta.Tinham-namais enfeitada e rica do que a dos homens—mas que era ocarrodeApolosenãoumacarreta?Ea carruagemdeNetuno?Essanemcarretaera,simumtrenó,jáquenãotinharodas.Tantooshomenscomoosdeusesnãoiamalémdacarreta.

ComotransportartantosboisdaliaMicenas?Hércules e Emília foram ver a boiada de Gerião. Encontraram-na

invernandonumapradariaótima—Que capim é este?— perguntou Emília; e sua pergunta ficou sem

respostaporqueHérculesnãoentendianadadeforragens.Emíliaviulogoque não era o catingueiro lá do sítio de Dona Benta— e guardou uma

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folhinhaparaoViscondeclassificar.Bem numerosa a ponta de gado de Gerião. Numerosa para aquele

tempo e aquela ilha, mas longe de equivaler ao gado de uma grandefazendamoderna.Enadadezebu.Tudogadoeuropeu.

—Quantas cabeças acha que há aqui, Emília?—perguntouHércules,queeraum"perna-de-pau"emmatériadecálculo.

Emíliacorreuosolhosedisse:—Quinhentasedez,foraosbezerrinhosdeano.Hércules caiu em meditação. Como botar em Micenas toda aquela

boiada?ConsultouEmília,eela:—Euristeunãosabequantosboisexistemaqui,demodoquetantofaz

levar todos comounsdez apenas.Alémdisso, achoumagrande injustiçapegar estes bois roubados aos criadores vizinhos e levá-los a um reidistante e tão antipático. O justo será entregá-los aos seus verdadeirosdonoselevarparaMicenassóumapequenaamostra,aíunsdezoudoze...

Hérculesachousimplesmentemaravilhosaaidéia.

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V-ABoiada

Enquanto esperavam pela volta de Hércules, os outros, lá na praia,ouvirammaiscoisasdoimpériodeNetunocontadaspeloVisconde.Comosabiacoisasoraiodosabugo!

—AntesdeNetuno,quemeraodonodomar?—perguntouPedrinho.—Antes?EraNereu,filhodoOceanoedaTerra.NereudesposouDóris

e teve cinqüenta filhas, as tais nereidas que mais tarde a deusa Floraadmitiuemsuacorteetransformouemnáiades,dríadesenapéias.

—Admitiu-asparaquê?— Para que tomassem conta do riquíssimo tesouro do seu império.

Essas ninfas casaram-se comos filhos deTritão e passaram amorar nasgrutascheiasdeavencasesamambaias,nasúmidasbarrocasdosrios,nasclareirasdasmatasondefolgamosfaunosesilvanos.LogoqueNetunosesentou no trono das águas, outorgou ao velhoNereu o domde tomar asformasquequisesse.Nereutornou-se tambémumhábiladivinho—e foiquempreviuaquedadeTróia.MoranumrecantodoMarEgeu,rodeadodemuitas nereidas que o divertem com cantos e danças. É um velhomuitocalmo,muitojusticeiroemoderadoemtudo.Temolhosverdesebarbacordocéu.

Pedrinho perguntou ao marinheiro se por acaso havia visto algumanereida.

—Sim—respondeuAgatirso.—ViduasnumapraiadaIlhadeNaxos.—Eastaisdríadesenapéias?Tambémviualguma?—Muitas.Asnapéias sãoasninfasdas campinas, e asdríades sãoas

ninfas das árvores. Cada velha árvore das florestas tem a sua dríademorandoali.

Pedrinhomostrou-se cético nesse ponto.—Está aí uma coisa que sóvendo.

—Poisvimuitas,comotambémjátopeicomváriashamadríades...—Quaissãoessas?—Asquemoramdentrodasárvores.Quandoderrubamasárvores,elas

selibertameficamvagueandopelasredondezas...Lúcioeocentaurinhopoucofalavam,masouviamcomamaioratenção.

Súbito,Meioameiotomouapalavraedisse:— Eu também tenho visto inúmeras. O mundo está cheio dessas

criaturas.Ecomosãolindas!...

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Pertodapraiahaviaumaflorestadeárvoresmuitoantigas,quasequesócarvalheirasecastanheirosseculares.

Pedrinhoolhou.—Seráquenaquelamatahádríades?—Claro que há— respondeuAgatirso.—Nunca houve floresta sem

dríades.—Esefôssemosláparaver?Foram, Pedrinho no lombo de Meioameio, o Visconde montado em

Lúcio.Quematalinda!Velhacomoomundo.Aquelescarvalhosdeviamtermil anos. O frescor ambiente parecia um sorvete evaporado. E tudo napenumbra,comsombrasmaisespessasaquiealie,devezemquandoumraiodesolquefuravaodosseldefolhasevinhanumalistabaternochão.Troncosmusgosos. Parasitas— e aquele silênciomajestoso das grandesmatasseculares.

— Olhe lá!... — exclamou Lúcio apontando para certo ponto. Ahamadríadedaqueletroncoestásentadaemcimadele.

Pedrinho olhou. Realmente lá estava, a pequena distância, um troncotombadojádemuitosanos,todoorelhas-de-paueoutroscogumelosdecorempalamada,eavencasesamambaias.Tudoissoomeninoviu,masfoisó.

—Vejoopaupodreenadamais...Lúcio escondera-se numa moita para não assustar a hamadríade e

continuouapontarcomosolhos,dizendo:—Poisláestáelasentadinhanovelhotroncomorto.Nelehabitouatéo

diaemqueavelhaárvorecaiu.Libertou-seentãoenãosaidasimediações.Passeia, dança, brinca; depois volta a sentar-se no tronco, que nemborboleta.

—Ecomoéela?— Linda — respondeu Lúcio com ênfase. — Muito diáfana. Usa um

lindo véu finíssimo sobre o corpo e na cabeça uma coroa de floressilvestres. Não pode existir nada mais delicado que uma hamadríade.Pareceumsonhodeleveza...

Pedrinho olhava, olhava e não via coisa nenhuma. Perguntou aocentauro:

—TambémvêalgumacoisaMeioameio?—Comonão?E,olhe!... acabade levantar-se.Parecequepressentiua

nossapresença.Vaifugir...Fugiu...OViscondetambémnadavira.Porquê?—Talvezporquevocêsnãosejamdestenosso tempo,sugeriuoasno.

Talvezosolhosdevocêstenhamperdidoafaculdadedevercertascoisas.

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Eu vejo perfeitamente as dríades dos bosques. Olhe, está uma, saindodaquela touceira... e apontou com a língua. Meioameio confirmou aafirmaçãodeLúcio.Havia,sim,aparecidooutrarepresentantedessasbelas"almas da natureza", e justamente a alma da mais velha árvore daquelebosque.Súbito, fugiucomextremaagilidadee leveza.Équepressentiraaaproximaçãodeumfauno.

Meioameio e Lúcio virampor ali outras hamadríades, vários faunos etrês silvanos — sem que Pedrinho e o Visconde enxergassem coisanenhuma.Nãohámaiorlástimadoqueterolhosmodernos...

Quandosaíramdafloresta,avistaramláaolongeumagrandepontadegado.EraHérculesquevinhavindocomosboisdeGerião.Correram-lheaoencontroansiosospornovidades.

—Então?—exclamouPedrinho.—Comofoiacoisa?—Amaiordas"canjas"—respondeuEmília.—"Orientei"Hérculesefoi

só,zás-trás, nó cego. "Matamos" o pastor de duas cabeças, "matamos" odragãoedepois"matamos"otalrei.

Hérculesfoileal.NãoachouqueEmíliaestivesseagabar-se.Confirmoutodosaqueles"amos".

—Ajudou-memuitodestavez,sim,—disseele.—Asuadescobertadoantroexatoemque seescondiaodragão foi elementodecisivonaminhavitória;eaidéiadeferirGeriãonaspernas,emvezdenacabeçaenopeito,comomepareciaocerto,foiamelhoridéiadeEmíliaatéhoje.

—Equevaifazercomessesboistodos?—Entregá-losaosdonos.ParaMicenassólevodez—outralembrança

ótimacádaEmília.Hércules ordenou a Agatirso que fosse espalhar pelas redondezas a

grande notícia do fim trágico de Gerião. E que os donos dos boisaparecessempararecebê-losdevolta.

—Eagora...—disseHérculesmudandodeassunto.—Jásei,quercomer!—berrouEmília.Masdestavezocentaurinhonão

temnecessidadede sairpelomundoà catade carneiros.AssaumboideGeriãoepronto.

Àtardesóhaviaalicinzaseossos.Osmugidosemtomdelamentodosbois de Gerião choravam a morte de um companheiro. Mas o heróiarrotava,feliz.

Nessedianãohouvemaisnada.Ficaramporaliadigerirboielogoqueanoiteceudormiramcomoanjosdepapocheio.

Nodiaseguinte, logocedo,começaramachegarasvítimasdosroubosde gado. Que alegria! Como se confessaram agradecidos ao herói pelo

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tremendo bemque lhes tinha feito! Gerião era a desgraça da zona. Já deanosvinhafazendodavidaaliuminferno.Depredavaoscamposvizinhospara apossar-se do melhor. A gratidão daqueles homens era tanta, queprometeramergueraliumtemploaHércules,oseugrandebenfeitor.

Oheróimandouquefossemapartandoogadodecadaum.Desuaparteelesótomavadezvacas,parasatisfazeravontadedoreideMicenas.

—Eagradeçamissocáàminha"dadeiradeidéias"—dissenofimdodiscurso.—Senãofosseasuasugestãozinhatãorazoável,eulevariatodosestesboisparaEuristeu.

Os homens vieram agradecer à Emília, com promessas de no futurotemplodeHéraclesconstruíremtambémumaltarzinhoemsuahonra.

—Ecomquenomedevemosvenerá-la,gentilmenininha?—Emília,MarquesadeRabicó!—respondeuelacomtodaalambetice.Naqueledianãosecuidoudeoutracoisasenãosepararosboisdesteou

daquele,sobafiscalizaçãodeAgatirso.Enodiaseguintecuidaramdavolta.AviagemparaocontinenteatravésdoMarEgeuteriasidoumencanto,

senão fosseo inevitávelenjôodoherói.Lá ficouelenovamentecaídonaproa, de olhos muito brancos, mais morto que vivo. Entrementes ospicapaus assistiram a um espetáculo que nunca supuseram possível apassagemdeNetunoeAnfitriteemseuscarros!...

Quem primeiro viu qualquer coisa, lámuito longe, foi, como sempre,Emília.

—Estou vendo!... Será baleia? Será navio?... Uma coisa estranha lá, lábemlonge!—eapontava.

Todos olharam naquela direção e realmente viram algo estranho eincompreensível. Só depois que o "mistério" se aproximou é quecompreenderam—efoiumdeslumbramento.

—Netuno!...OcarrodeNetuno...Eeramesmo.Netunoiapassandoemseumaravilhosocarrodecavalos-

marinhos de crinas de ouro. Como erammajestosos! Vinham nadando eespadanandoaáguacomasmãosdianteiras,queerguiamedesciamcomoparacavar.Emvezdecascostinhampésdepalmipedes.Acarruagemerade deslizamento, como os trenós. O deus domar vinha imponentementesentado com o tridente na mão esquerda e a direita estendida para asondasemgestode"Acalmai-vosdiantedevossodeusPosseidon."Àfrenterebolavaminúmerosdelfinsbrincalhões;edumladoedeoutro,adianteeatrás,voltaemeiaemergiamcarantonhasdeestranhíssimosmonstrosdomar.

Os picapauzinhos estavam maravilhados. Nunca lhes passou pela

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cabeça a possibilidade de assistirem a um tão grandioso espetáculo.Pedrinho gostou imenso do tipo de Netuno, com aquelas longas barbasverdescomoalgaseodiadema.Emíliaregalou-secomoscavalosmarinhosdepésdepato.Agatirsocaíraemêxtase.Ele,ummarinheiro,umhomemdomar,verograndedeusdaságuasemtodaasuapompa,issoeraarrasador!Lúcioficouotempotododebocaabertaeasorelhasespetadasparacimacomoespeques.Meioameioeratodoolhos.

DepoisdocarrodeNetunopassouodeAnfitrite,maislindoainda.Eraumaenormíssimaconchadenácarpuxadapormuitasparelhasdedelfins,alvoscomoaneve.

Emíliabateupalmasedeugritinhos,comoseaquilofosseumcarrodepréstitocarnavalesco.OViscondechamou-lheaatenção:

—Cuidado comestas deusas. Sãomuito desconfiadas e por qualquercoisinhacastigamoshumanos.Palmaslánonossomundoéaplauso.Aquipodeservaia...

Omar, amansado pelo gesto deNetuno, estava que nem um espelho,sem o menor encrespamento da superfície. Em espelho assim o céu serefletetãolindoquequemolhasóvêcéu,emcimaeembaixo.,

SóHérculesnãoviu coisanenhuma.Quando caíanaquele enjôo,nadanomundo,nemEmília,ointeressava.Quemquisersaberoqueelesentia,váviajardebarcoeenjoe.Quealívioquandoobarcodesceuaâncoranumportodocontinente!Pedrinhotomouasiodesembarquedosboiseasuacondução até Micenas. Boi caminha pelos próprios pés, mas tem de ser"tocado"—eelesviraramtocadoresdegado.Pedrinhoseguiaàfrente,nolombodeMeioameio;EmíliaemLúcio;eoViscondenopicuávinhaatrás,emcompanhiadeHércules.VoltaemeiaPedrinho"aboiava",istoé,cantavaumsommonótono,Ôooo...comoviafazernasfazendasdegadovizinhasdeDonaBenta.

Ocomboioseguiubeirandoapraia,comoazuldoMarEgeudumladoeacostadooutro.Súbito,gritouEmília:

—Umgavião...Umaavequalqueresquisita!...—eapontavaparaocéu.Todosolharam, inclusiveosbois, e realmentevirama atravessaroEgeu,muito alta no céu, uma grande ave. Vinha na direção deles,mas subindosempre. De repente houve qualquer coisa, porque a ave vacilou, epererecouláemcima,perdeuoequilíbrioecomeçouacair.

—Levoubala!—gritouEmília.—Vemcaindo...Sim,vinhacaindocomvelocidaderecrescenteeafinalcaiunomarbem

pertodapraia.—Queserá?—exclamavaPedrinho.Avenãoé.Medeuimpressãodum

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pára-quedistasempára-quedas.Comoumpontonegro,o"pára-quedista"boiavasobreasondasqueo

vinhamtrazendoàpraia.A"torcida"foigrandeparaquechegasselogo.Eraum homem. Era um náufrago do espaço. E talvez ainda estivesse vivo,apenasdesacordado.Quandoocorpotrazidopelasondasdeuàpraia,todoscorreram-lheaoencontro.

—Queesquisito!Umhomemcomunsrestosdeasasnascostas...OViscondepôs-seaaplicarnonáufragoasregrasclássicasdosocorro

aos afogados, consistentes em restabelecer a respiração interrompida.Todos o ajudavam, e tanto fizeram que o náufrago respirou, a princípioentrecortadamente, depois commaior regularidade. Em seguida abriu osolhos.Ficouunsminutosassim,tonto.Porfimfalou:

—Ondeestoueu?—Entreamigos—respondeuPedrinho.Sente-semal?Quemévocê?Onáufragogemeu,comexpressãodesofrimento.Nãohaviadúvidaque

estavamuitomachucadodaqueda.—Digaoseunome—insistiuPedrinho—eonáufragocomvozdébil:—Ícaro,filhodeDédalo...—Dédalo,oconstrutordolabirintodeCreta?—Sim—gemeuoinfeliz.OReiMinosencarcerou-melácommeupai,

mas sem que meu pai soubesse. Procurei encontrar-me com ele,inutilmente. Aquela infinidade de corredoresme atrapalhava dummodohorrível.

—Estáclaro—observouEmília.—Semcarretelaquilonãovai.Onáufragoarregalouosolhos.—Sim—continuouEmília.—Estivemoscomo senhor seupai láno

labirinto,nodiaemqueTeseumatouoMinotauro.DepoissalvamosTeseu,também atrapalhado comos infinitos corredores— e saímos todos.MasDédalonãopareciadesconfiarqueseufilhoestivessenolabirinto.Nãonosfaloucoisanenhuma.

—Nãopodiasaber.Puseram-meincomunicável.—Ecomosaiudaquelehorrordeprisão?—Peloar...—Peloar?....Icaroexplicou:—Haviaporali,nosescuros,muitacorujaemuitomorcego.Pus-mea

juntarpenasdecorujaeasassecasdemorcegosmortos.Depoisdescobriumacolméiadeabelhaslánumcanto.Comiomelefizumagrandebolotadecera.Foinessemomentoquemeveioaidéia.

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—Queidéia?—Devoar.Dearmarcomaspenasdecorujaeasasasdemorcegoum

grandepardeasasqueseajustassemaosmeusombros.Depoisfariacomoasaves—batiaasasasesaíavoando...

—Masseessaidéiaveioquandoestevefazendoabolótadecera,paraque juntou as penas de coruja? — quis saber Emília, que era muitometiculosa.—Nãofoijácomaidéiadopardeasas?

—Não.Junteiaquelaspenasparafazerumcolchão.Aidéiadevoarveiocomopelotedecera.

—Masquetemaceracomaspenas?Nãoestouentendendo...—Équeeupodiaconstruiromeupardeasascomaspenasdecorujae

asasinhasdosmorcegos,emendadascomcera...—Econstruiu...— Sim, construí o excelente par de asas queme permitiu escapar do

labirinto e voar por sobre este Mar Egeu. Voei perfeitamente até certomomento.Depoistiveumalembrançadesastrada:irsubindo,subindo,paraespiarbemdepertoocarrodeApolo...

—Nósvimosasubidaeestranhamos—observouoVisconde.—Paraaterrissaraquinãohavianecessidadedesubirtanto.

—Eusabiadisso,masacuriosidadedeverdepertoocarrodeApolomedominou.Fuisubindo,eàmedidaqueiasubindoaumentavaocalordosraiosdosol.Súbito, sentiqueaceraque ligavaaspenasdecorujaestavaamolecendo. Precipitei-me na descida. Era tarde. As penas sedesagregaram,minhasasassedesfizeram,derretidas,eeucaí...

—Tevemuitasortedecairnaáguadomar.Secaísseemterra,estavaagoracomoosapoquefoiàfestadocéu.Eagora?

Ícaro, cada vez mais arquejante, não teve forças para responder. Foifechandoosolhosemorreu.

Hércules estivera ali todo o tempo a acompanhar a cena e a ouvir asúltimas palavras do filho de Dédalo. Comoveu-se com o passamento dorapaz.

—Bom—disseporfim.—Temosdeenterrá-locomtodasashonras—efoielemesmoabrirnumapequenaelevaçãodacostaotúmulodeÍcaro.Enterraram-noàmodagrega.Hérculescolocouumalajeemcima,naqualEmíliaescreveu:

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V-AquijazÍcaro,opaidaaviaçãoerrada

—Opaidaaviaçãocerta,semceranempenasdecoruja,éoutro...Finda a cerimônia fúnebre, Pedrinho aboiou e a caravana pôs-se

novamente emmarcha. Emília ia contando ao asno Lúcio as proezas daaviaçãomoderna.

—Nemqueirasaber,Lúcio,ohorrorqueessainvençãonossaiu!Háostaisaviões,umasavesdemetal,aperfeiçoadissimas,quevoamdetodososmodospossíveiseatodasasalturasedeláarremessamsobreascidadesenormesbombas.

—Queébomba?—Sãounscilindrosdeferro,ocos,cheiodeTNT.—QueéTNT?—Umexplosivo.—Queéexplosivo?—Umacoisa,umpóqueexplode,istoé,arrebenta,pegafogo,fazbum!e

escangalhatudoemredor;derrubacasas,mandagentedespedaçadaparaobeleléu.Ohorrordoshorrores.

—Eparaqueisso?—indagouoasno,surpreso.— Não sei, Lúcio — e também não sabem os próprios homens que

fazemisso.Háláastais"guerrasmundiais".Devinteemvinteanosrebentaumaetodosospaísesentramnadança,unsadestruíremeincendiaremascidadesdosoutros,eamataremtodososhomensjovenseperfeitos.

—Eosimperfeitos?—Aosvelhos,doentesealeijados,aessesnãoacontececoisanenhuma.

Ficamemcasa lendoos jornaiseouvindoorádio.Paraamatançasósãoremetidososperfeitosdecorpo.Seumtemumdefeitozinhoqualquernavista,porexemplo,jánãoserve.

O asno achoumuito estranho aquilo. O razoável seriamandar para omatadouroosvelhoseestropiadosedeixarcomvidaosmoçosperfeitos.Manifestouessaidéia,edepoisquissaberqueméquelançavaospaísesunscontraosoutros.

—Ninguém—respondeuEmília.—Todososchefescomeçamdizendoquesóqueremapaz,apaz,apaz—sófalamempaz.Nãoqueremaguerra.E o povo, está claro, tambémnãoquer a guerra, porquena guerra quemmorre e paga o pato é o povo. As mães não querem a guerra porqueperdemseus filhos.As irmãsnãoaqueremporqueperdemos irmãos.Asnoivasnão a queremporqueperdemosnoivos.Ninguém, absolutamente

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ninguém,queraguerra—masaguerravem.—Comovem?—Vemporsimesma.Começa.Estoura.Rebenta.Láumbelodiaagente

abre o jornal da manhã e lê numas letras deste tamanho: REBENTOU AGUERRA... E logo depois está omundo inteiro dentro da guerra, com osaviões a derramarem bombas do céu e com a matança embaixo feitacientificamente, por meio de maravilhosas máquinas de matar, criadaspelosmaioresgêniosdomundomoderno.

—Edepoisdamatança?—Quandosecansamdematar, eosnaviosestão todosno fundodos

oceanos, e as cidades sãomontanhasde cacaria, e só se ouveo chorodemilhões emilhõesdemães e irmãs enoivas e esposas, e jánãohá casasonde o povomorar, e nemhá pão para o povo comer, e amiséria fica ohorrordoshorrores,entãoaguerrapára...vemapaz.Esabeoqueépaznomundomoderno,Lúcio?Apenasumdescansinhoparaodesfechodenovaguerra...

OAsnodeOuroestavacomtodosospêlosarrepiadoseadargraçasaoOlimpodevivernaqueletempo.Otalmundomodernoficouemsuacabeçacomoaimagemdopiordosinfernos.

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VI-Faetone

PedrínhodiscutiacomMeioameioumasreformasqueandavacomidéiadefazernosítiodeDonaBenta.

—Aquilo láéumamorde sítio,—diziaele,—mas temodefeitodetodas as coisas modernas: falta de poesia. As árvores do pomar, porexemplo. Excelentes árvores, muito nossas amigas, com os galhosmusguentos e até com erva-de-passarinho. Todos os anos enchem-se deflôresedepoiscarregam-sedefrutas—laranjas,pitangas,jabuticabas...

—Comosãoestasúltimas?—Umasredondas,pretinhas,deliciosissimas.Dãopregadasnotronco.

Cada um de nós tem um pé só seu. Há também cambucás, grumixamas,sapotis,cabeludas,abacaxis,ameixas,pêssegos...ummonte!

—Ecerejatem?— Não. Nunca vi por lá nenhum pé de cereja, e é pena, porque são

muitobonitinhos.Ali na Grécia, volta e meia eles davam com pés de cerejas

carregadíssimos.—Masseasárvoressãoassimtãobondosas,dequesequeixavocê?—

perguntouocentaurinho.—Nãoestoumequeixandodascoitadas,tãonossasamigas,masacho

quelhesfaltaoquevejoaquinestas:ninfas,dríadesehamadríades.Ponho-me a imaginar que linda não seria a dríade e a hamadríade da minhajabuticabeira,ouda"pitangueiravelha",queéadeEmília,oudamangueiraBourbon de Narizinho. A gente ali a chupar as jabuticabas, a derrubarpitangasoumangas,easninfasemredorespiandoagente...Poesiaéisso,Meioameio. Nosso século temmuitamáquina, tem atémáquina de voar;masemmatériadepoesianãochegaaospésdistoaqui.

Pedrinhofezpausa,cismando.Depois:— Ando a pensar numa coisa: e se levássemos umas duas ou três

dríadesparasoltarlánosítio?Meioameio respondeu que só consultando o Visconde, muito mais

entendido que ele em coisas da Grécia — e foram para a retaguardaconsultaroViscondelánoseupicuá.

—Achapossível,Visconde,quepossamoslevarparaosítioumlotedeninfas,dríadesehamadriades?

OVisconderefletiuunsinstanteserespondeu:—SócomoconsentimentodeFlora.Essasninfassãoasguardiãsdos

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tesourosdessagrandedeusaesópoderãosairdaquicomsuaordem.—EondepoderemosdescobriradeusaFlora?—DizemquemoranasIlhasAfortunadas...—Queilhassãoessas?Nuncaouvifalar...—Tambémnão sei, eparecequeninguémsabe.Os romanos falavam

muito nas Insulae Fortunatae, sem dizer ao certo onde ficavam. UnsachavamqueeraaoestedaLíbia;outrosqueeramasIlhasCanárias.

Pedrinhoquedou-sepensativo.Depoisdisse:— Lá no acampamento de Micenas, quando Hércules for entregar a

Euristeuessegado,nóspodemostomarumapitadadepirlimpimpimedarumpuloàsIlhasAfortunadas.

LúcioeEmília,que ignoravamaconversaanteriorsobrea introduçãodeninfasnosítiodeDonaBenta,exclamaramaomesmotempo:Paraquê?

QuandoPedrinhoexpôsasuaidéiadeumacriaçãodeninfasnopomar,o entusiasmo de Emília foi tamanho que escorregou do lombo de Lúcio,caindodepontacabeçanochão.

— Ai, ai, ai... — exclamou erguendo-se e espanando-se. —Uma idéiadessas...Comoéquenasceunasuacabeça,Pedrinho,emvezdenaminha?

Emília ficavaenciumadasemprequeumaboa idéiaacudiaaosoutros.Todas as "idéiasboas", todas as "idéias-mães", tinhamde serdela. E queidéia melhor que a de Pedrinho? Levar ninfas para o sítio, botar cadaárvore do pomar com a sua dríade, entalar dentro de cada tronco umahamadríade... Oh, sim e a dríade mais bonita tinha de ser a da suapitangueiravelha...

AsortedacaravanaestavaemqueosboisdeGeriãoatépareciamgadoGir, de tão mansos. Não chifravam ninguém. Caminhavam muitodireitinhos, talqualumapontadosmansíssimosboisdecarro ládeDonaBenta.Mesmoassim,emcertomomento,"estouraram".

—Emquemomento?Ah,numdosmomentosmaistrágicosdahumanidade,quandoporum

trizaterraescapoudamaiordasdesgraças:sertorradainteirinhapelosol.Acoisafoiassim:umfilhodeCéfaloseEos,denomeFaetonte,extasiadodever Apolo dirigindo o carro do sol, teve a má idéia de lhe pedir que odeixasse guiar um bocadinho. Apolo achou graça e disse: "Venha..."edeixandoocarropassouasrédeasaFaetonte.Mascavaloécavalo.Tantofaz ser cavalinho aqui na terra como cavalo de Apolo. Quando está numveículo e há mudança de cocheiro, estranha. Os cavalos de Apolo, quenunca tinham sido guiados senão por esse deus, estranharam o novococheiro—espantaram-se—efoiaquelehorror.Osol,queéquemanda

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naqueleveículodeluz,perdeuoequilíbrioecaiu—oucomeçouacairemcimadaterra.Emília deu um berro:— Lá vem vindo o sol para cima da gente!...—

Hérculesolhou,viuqueeramesmoe,zás,mãonoarco.Iacometeraloucuradematarosolcomumaflechada!Amúsicaparou.Pedrinhoperdeuavoz,comonospesadelos.Lúciodeuumzurro:—Nãofaçaisso,herói!Semsol,comovaiomundoarranjar-senoescuro?—Hérculesnãoouviu.Estavadearcoesticado,apontando...

MaslánoOlimpo,Zeus,quetudovê,acudiuatempo.Fulminoucomumdos seus raios o imbecilíssimo Faetonte e fez que Apolo fosse correndotomar conta do carro. A ordem se restabeleceu no céumas a boiada deGerião havia estourado. Colhidos pelo pânico, os bois romperam por aliafora,cadaqualnumadireção.Equelutafoiparasossegá-losereuni-losdenovo!...

Quandoapazserestabeleceu,Emíliasuspirou.—Ai que susto! Senti lá dentro demimumapontada que nemas de

DonaBenta.Acontececadacoisaporaqui...Eh,Grécia!FoioúltimoincidenteocorridonaviagemparaMicenas.Nodiaseguinte

chegaram.Hércules deu ordem ao centaurinho para tomar conta dos bois

enquantoele iaaMicenasapresentar-seaorei—e lá foi.Emília tiroudopicuá o Visconde; depois abriu a canastrinha para ver senão faltavaqualquercoisa.

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VII-NosDomíniosdeClóris

EnquantoHércules se explicava comoRei Euristeu, os picapauzinhosderamumpuloatéaoreinodeClóris.Foramsóostrês.MeioameioeLúcioficaram—estepastando,aqueleassandocarneiros.

O pulo às Ilhas Afortunadas foi feito "a pó". Três pitadinhas dopirlimpimpim, três fiuns e pronto. Acordaram diante do maravilhosopalácio de Clóris, amesmaquemais tarde seria pelos romanos chamadaFlora.

Que curioso palácio aquele! Tudo lá eram flores, cores lindas eperfumes, frutas deliciosas, musgos, avencas, samambaias e mais mimosvegetais.Pedrinhoadiantou-seeparoudiantedoporteiro:umlindocravovermelho.

— Senhor cravo — disse ele — somos viandantes vindos de longesterrasparaumentendimentocomadeusaClóris.Poderáelareceber-nos?

Ocravoexaminou-oscomamaiorcuriosidadeemandouumrecadoàdeusaporumgoivoquebrincavaporali.Logodepoisveioaresposta.Sim,Clórisiarecebê-losimediatamente.Queentrassem.

Pedrinhoentrou,acompanhadodeEmíliaedoViscondeamanquitolarnassuasmuletas.Umlíriodovaleseguianafrente,guiando-osatravésdumjardimde sonho. Depois, uns degraus demaciomusgo. Depois, a sala derecepçãodaamáveldeusa.

Clóris,emtodooesplendordesuabeleza,recebeu-oscomumsorrisoamável.

—Bem-vindossejamaomeuperfumadoreino!Quequerem?Pedrinho explicou tudo. Contou quem eram, onde residiam lá nos

temposmodernose faloudopomardeDonaBenta,dasárvoresde frutasnele existentes, das floresdo jardim,muitasdasquaisFloradesconhecia.Crisandálias,porexemplo,umaflorcomqueadeusanemsequersonhara.

— Mas nosso pomar tem um defeito disse Pedrinho. Falta-lhe alma.Falta-lhe a poesia que vejo nesta Hélade tão linda. Nossas árvores nãopossuem cada uma a sua driade. Dentro dos troncos não há nenhumahamadríade.Nãotemosnapéiasnascampinasnemninfasnasfontes.Nemnenhuma nereida no ribeirão. Viemos consultar a mais perfumosa dasdeusassenãonospoderáarranjarpelomenosumastrêsdríadeseoutrastantashamadriades...

Clórisestranhouaproposta.Nuncalhehaviamfaladoassim.Umpedidodeninfas!...Quecurioso.Masparaondeiriamessasninfas?—ospicapaus

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lhe contaram asmil coisas do sítio de Dona Benta, ela sorriu, realmenteencantada. Em seus olhos Emília leu um sincero desejo de tambémconheceraqueleparaisozinhomoderno.ClórissónãopôdepercebercomoeraotalQuindim.

—Cascudo?Comumchifresóemcimadonariz?—Sim—disseoVisconde—eporterochifrenonarizéquesechama

rinoceronte.Rinoemgregoénariz,comotodosaquisabem.ClórisachouumagraçaimensanoVisconde.Emsuaqualidadededeusa

dos vegetais, conhecia todas as espigas domundo e todos os sabugos—menos aquele, falante e de cartola. E uma idéia lhe passou pela cabeça:cederasninfasquePedrinhoqueriaemtrocadosabugodecartola.

—Façoonegócio—disseela.—Cedoseisdasminhasninfas,àescolha,masemtrocadestemaravilhososabugofalante.

A estranha proposta atrapalhou os picapauzinhos. Puseram-se aconferenciar aos cochichos. Por fim Emília tomou a palavra e, muitoxeretamente,disse:

—Deusa,nósaceitamosasuapropostacomumacondição:depoisdeacabadas as nossas aventuras com Hércules e voltados ao sítio de DonaBenta, discutiremos com ela o assunto. Se Dona Benta concordar com atrocadoVisconde,voltaremosaestasilhasparafecharonegócio.

Eassimficou.Conversaramcomadeusaaindaalgumtempoedepoissedespediram.

Quemaravilhaopaláciodeflora!Ochão,forradodefrutasvivas,quederepente mudavam de forma, viravam ninfinhas e saíam dançando. Osperfumes do ar também assumiam formas mimosíssimas de pequenossátirosefaunosaéreos,muitodiáfanos,quedançavamcomaspomidríades.Pomidríades,chamavam-seasninfinhasdasfrutas.Edepoiseramascoresquetomavamformaedançavamnoaradançadaspétalas.

Nistoumrecuogeralde todosaquelesmimosaéreos—nãorecuodemedo,masdereverência,Zéfiro,oesposodeFlora,vinhaentrandodeseupasseio pelomundo. Puro vento esse deus, omais suave e agradável detodos. Entrou seguido de mil perfumes — os perfumes das flores queandoubeijandopelocaminho,e foisentar-seao ladodeFlora.Lá ficaramdemãosdadas,olhandoparasuaslindasfilhastambémalipresentes—asBrisas.

Tantabeleza,tantoperfume,tantomovimentodeformasdiáfanasnoar,deixaramospicapauzinhoscompletamentetontos,comoqueembriagadosporumópiodivino.ClóriseZéfiro,sempredemãosdadas,olhavamparaeles e sorriam. Foi com dificuldade que Pedrinho mediu as pitadas do

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pirlimpimpimeasdistribuiu.Atéo fiunsoou trêmulo de emoção e todos ainda se sentiam trêmulos

quandodespertaramnoacampamentodeMicenas.—Ainda estou sentindouma tremura—murmurouEmília, que foi a

primeiraa falar.Pedrinhosuspiroue,comardequemacabadesairdumsonhodamanhã,disse:—Éotremordabeleza...

Oscarneirosassadosdocentaurinhorescendiam.Aquelecheiroos fezvoltarà realidade— um cheiro que já não falava à imaginação e sim aopaladar.Lúciotosavaoscapinsaliperto.

—EHércules?—perguntouPedrinho.—Deveestarchegando—respondeuMeioameio;eindagoudoquese

passaranopuloaoreinodeFlora.Emíliarespondeu:—Nemqueirasaber...Tãolindo,tãolindotudoaquilo,queficamoscom

aspernasmoles...—Masarranjaramasninfas?— Sim. Conseguimos várias em troca do Visconde. Flora encantou-se

com o sabuguinho. Vamos voltar lá para fazer o negócio. Meioameioadmirou-se da facilidade comque se desfaziamdum velho companheiro.Emília piscou e cochichou-lhe ao ouvido: "Flora vai ser tapeada. VamostrazeroutroViscondefeitopelatiaNastácia,tãoparecidocomestequeelanão desconfia. Dessemodo apanhamos as ninfas e conservamos o nossovelhoVisconde".

Ao ouvir aquilo, o sabuguinho, que havia ficado profundamente tristecom a negociação, renasceu. Sua cara iluminou-se dum sorriso — e,aproximando-sedeEmília,abraçou-acomovidissimo.

Hérculesapontou lá longe.Todospuseramosolhosnele.Vinhacomomesmo ar de sempre — apreensivo, com o medo no coração. Chegou.Sentou-seefoipegandoumdoscarneirosassados.Pedrinhointerpelou-o:

—Eentão?Soltamosounãosoltamososboisdestavez?Oheróisorriuedisse:—Aosaberqueosboiserammansos.Euristeudecidiuguardá-losem

seusestábulos.Sóaosmonstroselemandasoltar.—EonovoTrabalho?—TenhodeiraoreinodasHespéridesembuscadospomosdeouro...

***

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11-OPOMODASHESPÉRIDES

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I-OPomodasHespérides

A viagem de Hércules em busca dos pomos de ouro foi das maismovimentadas.AntesdepartirtevedeandarindagandoondeéqueficavaojardimdasHespérides.Unsachavamqueeranopaísdoshiperbóreos,lámuitoaonorte,masoViscondeobjetava:

— Não pode ser. A zona hiperbórea, ou polar, é muito fria parafavorecerocrescimentodumaárvoredepomos.O jardimdasHespéridestem que ser incompatível com os gelos do norte. Deve ficar em climaquenteoutemperado.

Por fimHérculesseconvenceudequeomaravilhoso jardim ficavanoextremoocidentaldaterra,istoé,bemaoeste.Naqueletempoa"terra"eraquase que só a Europa, e o tal extremo ocidental devia ser a penínsulaibérica,ondeficamaEspanhaePortugal.

Emíliaquissaberoqueera“pomo”.OViscondeexplicouqueapalavra"pomo"vinhadolatim"pomum"equeriadizer"fruta".

—Masémaispoéticodizerpomoemvezdefruta—acrescentou.Frutadáidéiademercadooudeverdureiradeesquina.Pomoépalavradeluvasdepelica.

—Enjoado!—berrouEmíliaqueeramuitoplebéia.—Sóporquevemdolatimjáestácomhistória.Luvasdepelica!Ofedor...Poiseudigofrutaeacabou.

—Massepomoéfrutaemgeral,—interveioPedrinho,—quefrutasãoostaispomosdojardimdasHespérides?E,antesdemaisnada,quemsãoessastaisHespérides?

O Visconde sabia. Não havia o que ele não soubesse. Contou que setratavadasfilhasdogiganteAtlascomaninfaHespéris.

— São quatro, Egle, Eritia, Aretusa e Hestia, cada qual maisencantadora. O jardim das Hespérides é uma pura maravilha que vivetentandooshomenseosdeuses.Emnenhumoutroexistemasárvoresdospomos de ouro. Aquilo é um encanto e as quatro irmãs são verdadeirasfadas.Cantamcomosereias,dançamcomozéfirosesabemtomartodasasformas.Quandoosargonautas láestiverame,quasemortosdesede, lhespediram que indicassem uma fonte, elas se transformaram em areia. Ecomoelescontinuassemapedirágua,aareiasetronsformouemárvore.

— Eume transformaria em torneira para salvar os coitados— disseEmília.—Queadiantaareiaouárvoreparaquemestámorrendodesede?

Pedrinho quis saber como era o dragão de guarda ao jardim das

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Hespérides.—Ah,omaismonstruosodetodos!Cemcabeçasquenãotiramosolhos

dospomos.Emíliaestavaassombrada."Cemcabeças!..."AqueledeGeriãoquetinha

setejámepareceutãocabeçudoevamosagoralidarcomumdecem...O Visconde ainda contou que por ocasião do casamento de Juno com

Zeus,odotedanoivaconsistiuemmeiadúziadaquelespomos—enuncahouve dote maior! E o pomo com que a Discórdia surgiu na festa docasamentodePeleuforacolhidolá.

—Masalémdeseremdeouro,queoutravirtudetêmessespomos?—quissaberPedrinho.

—Fazemqueoamornasçacomamaiorviolêncianocoraçãodequemostoca.

O grupo estava a caminho da Espanha. Hércules seguia na frente,pensandonomododeatacarodragão.Jáderacabodeumahidradenovecabeçasedumdragãodesete—masquefazercomumdecem?Atacá-locom suas flechas, de pouco adiantaria, porque toma tempo lançar cemflechaseodragãooalcançava.Sósehouvesseumjeitodeadormecê-lo...

Lúcio,abanandoasorelhas,vinha logoatrás,comEmíliadebandaemseulomboeopicuácomacanastraeoViscondenagarupa.VoltaemeiaoAsnodeOurosuspiravadesaudadesdasuaantigaformahumana.Aquelasaventuras de Hércules não tinham fim — e ele condenado a andar dequatroatéqueaúltimaserealizasse...

FechavaamarchaMeioameio,comPedrinhonolombo.Aamizadeentreos dois crescia aosmetros. Tratavam-se como irmãos e era um imaginarcoisasafazernositiodeDonaBentaquenãotinhafim.

—Comseisninfaslá,dasmaisbonitas,evocê,umcentauro,aquiloficaosucodossucos.

— Por que não leva também umamudinha da árvore dos pomos deouro?

Aidéiaencantouomeninoefê-logritarparaaEmília:—OlheoqueMeioameio lembrou: levarmosumamudinhadaárvore

dospomosdeouro.Quetal,Emília?Aexbonecadeuumarisadagostosa.—Quandovocêsacordam,eujádormi,sonhei,acordeieestoulonge.Já

penseierepenseinisso.Mudaomaiscertoénãoencontrarmosnenhuma;sementes, sim — hei de encontrar sementes. Aquela grandississimaladronadaMedéiameroubouopomodeAtlas,masvoudesforrar—voulevardojardimdasHespéridespelomenostrêsdosmaismadurinhos.

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OVisconde, lánopicuá, fechouacara.NãogostouqueEmília tratassedaquele modo a grande mágica que o havia curado com a fervura nocaldeirão. O pomo fora dado em pagamento dessa cura, com plenoconsentimentodeEmília.AlémdissoEmíliareceberadevoltaumavaradecondãopreciosíssima.ComoentãotratavaMedéiadeladrona?OViscondefez-lheverisso.Eela:

—Ladrona,sim.Cobrarpelafervuradumsabugoumpomodaqueleséser ladroníssima.Nuncaaheideperdoar. Fui enganadanaquelenegócio.Julguei que a vara de condão fosse das perpétuas, e não das de só cemviradas.Fuiroubada,sim...—edaínãosaiu.

NavaradecondãodeEmíliasórestavamonzeviradas,queelaretinhacomomaiorciúmeparausonosítiodeDonaBenta.Senãofosseassim,osTrabalhosdeHérculessetornariamverdadeiras"canjas".NaconquistadopomodasHespérides, por exemplo. Comuma varada ela poderia virar odragãoempulgamasficariasócomdezviradasnavaraeportanto...

—Portantooque,Emília?—Portanto,não.Jáfizdecontaquenãotenhovaranenhumaepronto.

Não se toca mais no assunto. Tinha graça eu gastar com Lelé as únicasviradinhas que me restam, um herói tão ajudado por Palas e outrosdeuses!...

Hércules ia atravessando uma zona perigosa. Pedrinho receouencontros e lutas. Sabia do gênio esquentado do herói. Por qualquercoisinhaosanguelhesubiaàcabeçaeapancadariatrovejava.

OspressentimentosdePedrinhosaíramcertos.Logoadiantesurgiuumcarro puxado por fogosíssimos corcéis que seguia na mesma direção deHércules.Emvezdesairdocaminho,oheróiplantou-sebemnomeiodaestrada, com as mãos na cintura. Meioameio e Lúcio pularam de lado,deixando-osozinho.Fatalmente,nogalopeemquevinham,aquelescavalosiamatropelarograndeHércules.

Masnão foiassim.Ocondutorestacou-oscomumviolentopuxãodasrédeas.

—Queméstu,homematrevido,queinterrompesamarchadocarrodeCicno,filhodeAres?

EraesseCicnoumfamosodomadordecavalos,realmentefilhododeusMarte com Cirene. Abusando da sua origem divina, vivia cometendo emtoda parte os maiores abusos. Hércules, que não lhe ignorava o maurenome,respondeucomvozdetrovão:

—Descedocarro,automedonte,epassadelargopuxandoosanimais.Hérculessou,filhodeZeuseAlcmena.

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—Vaiserumfimdemundo—murmurouEmília,todaencolhidinhalánolombodeLúcio.Sãofilhosdedeusesosdois...

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II-ODeuseoHerói

Aquele pega Cicno, gravemente ofendido pelas palavras de Hércules,deurédeaseestimulouoscavalosparaqueoatropelassem,mas,rápido,oheróios agarroupelos freios eos arrancouda carruagem.Cicno ficounacômica situação dum cocheiro sentado na boléia dum carro sem cavalonenhum.Tevedesaltaremterraeaceitaralutaemigualdadedecondições.

foitãocurtoquãotremendodeímpeto.Cicnodesfereumpotentíssimogolpecomasuaterrívellançadebronze,masapontadalançaresvalapelapeleinvulneráveldoleãodaNeméia.Hérculesrespondecomoarremessodo dardo, apanhando Cicno pela garganta, na parte descoberta entre ocapacete e o escudo. Fora golpe mortal. O filho de Marte cai como queferidoporumraiodeZeus.

Era a primeira vez que os picapauzinhos viam Hércules manejar odardo,uma lança curtade arremessar contrao adversário.Comopreviramuitas lutas naquele décimo Trabalho, o herói fortalecera-se de maisaquelaarma.

Assim que Cicno, trespassado na garganta, veio por terra, um rugidorebooueopróprioMarteapareceuemsocorrodofilho.

AlutaentreHérculeseMarteodeusdaguerrafoidessascoisasqueapalavrahumanajamaisdescreverá.Pedrinhotapouosolhoscomasmãos,depurohorror,eEmíliaoimitou—masficouespiandopelovãodosdedos.O Visconde, esquecido das muletas, pulou fora do picuá e foi colocar-selongedali.Meioameiotremiadacabeçaaoscascos,eLúcionãoarredoupédeondeestava.Ficaraestarrecido,numaverdadeiraparalisaçãode todososmúsculos.

Martevestiaotrajeclássicododeusdaguerraeterçavaumgládiocurtoereto. Hércules ia defender-se com o escudo de Cicno e a clava. Os doistremendos contendores trocaram olhares chamejantes de ódio earremessaram-seumcontraooutro.OdeusMarteestavaacostumadoaveroinimigorolarporterraaoprimeiroembate.Eraumtrancoepronto.MascomafirmezadumarochaHérculesresistiuaotrancododeustremendo.

Nessemomentoumavozsoouimperiosa:"Detende-vos,Ares!Hérculesé teu irmão."EraavozdePalas,quedesceradamansãodosdeusesparapôrfimàquelehorror.Marte,porém,cegodeódio,nãolheouveaspalavrase ataca o herói com o gládio que nunca repetiu golpe. — Palas corre atempoedesviaadireçãodogolpe.Odeus,endoidecidodecólera,erguedenovoogládio—eHérculesaproveitaomomentoparaoferirnopulso.Ao

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ergueralâmina,opulsodeMarteficaraforadaproteçãodoescudo!...Assombrodosassombros!Pelaprimeiraveznomundoumhomemferia

umdeusemcombate—equedeus:Ares,odeusdaguerra!...Paraquemlutacomespadaougládio,umresgãonopulso jásignifica inutilizamentocompleto—masHérculesaindadesferecontraodeusumgolpedaclava.Odeuscai...

Ao verem aquilo, Fobo e Deimos, os condutores do carro de Marte,lançam-se em seu socorro, levam-no para o carro e disparam rumo aoOlimpo nomaior dos galopes. Hércules havia vencido na luta ao próprioMarte!... Prodigioso! Quando Pedrinho tirou as mãos dos olhos e, aindacheiodesusto,perguntouoquetinhahavido,Emíliarespondeu:

—Eu tambémtapeiacara,masvi tudo.Leléespetoucomapontadodardoopulsododeusedepoisderrubou-ocomumgolpedaclava.Eentãoacudiramosdoishomensdocarroesumiram-secomele...

—DerrotouMarte?...—exclamouPedrinhonomaiordos assombros.—Impossível.Umhomemnãoderrotaumdeus...

—PoisLeléderrotouopiordosdeuses,justamenteodaguerra!Lelééo número dos números — e pulando do lombo de Lúcio, Emília foicorrendoabraçaroherói.

— Erga-me, Lelé!— disse ela olhando para cima, porque o alentadoherói era "lá em cima". Hércules ergueu-a no braço, sentadinha ali comouma criança nova— e Emília beijou-o no queixo. Nem lhe alcançava asfaces,apequenitota.

—Sim,senhor,Lelé!Bichãomaiornuncaimaginei.Venceratéaodeusda guerra! É batatal... Escute: quem era a linda moça que apareceu nomomentopsicológicoedesviouaquelegolpedeMarte?

—Palas...— Palas? — repetiu Emília admiradíssima. — Que pena eu não ter

sabido...—Porquê?—Paravê-lamelhor.Quandoagentenãosabequeméumapessoanão

avêbem,bem,bem...Logoqueeleadepôsnochão,EmíliacorreuacontaraPedrinhotodaa

históriadalutaaqueoboboassistiramasnãovira—demedo.—MedodequePedrinho?—Homem,nemsei,Emília.Pareceumetãotremendoaquilo,quetive

medoquefosseofimdomundo—efecheiosolhoscomonospesadelos.Nos pesadelos, quando ia caindo num abismo, ele fechava os olhos e

prontosalvava-se.

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—Poisnãosabeoqueperdeu—continuouEmília.—Vitudo,tudo.ViquandoPalaschegou...

—Quê?...Palastambémtomoupartenobarulho?—Elanuncaabandonaonossograndeamigo.Eveionomomentinho

justo, quando a espada deMarte ia alcançando Lelé. Palas, então, com odedo,desviouogolpe.EquandoMartecaiu,jáferidonopulsoecomumaclavada na cabeça, aparecem os dois estafermos lá do carro. Vi quandoagarraramMartenosbraçoseláseforamnumgalopelouco.

— E eu sei o nome desses dois ajudantes — disse o Visconde, queestavaouvindoaconversa.—FoboeDeimos.

— Fobo e Deimos? — repetiu Pedrinho. — O nome daqueles doissatélitesdoplanetaMarte?

—Sim—confirmouoVisconde.—OsastrônomosderamaossatélitesdeMarteosnomesdeFobo eDeimos exatamentepor isto; porquenestalutacontraHérculesforamelesqueoacudiram.

Muito bem. Finda uma batalha, é o dever do vencedor enterrar osmortoseHérculesenterrouCicno.Emília,comodecostume,veiocomoseuepitafiozinho:

Aquijazumdomadordecavalosqueencontrouquemodomasse.

Aqueles fatos tinhamocorridoàbeiradumriodenomeEquedoro,no

qualHérculestomouoseubanho"espadanado"desempre,edepoistodosfizeram o mesmo. Como na Grécia Heróica não houvesse comodidadesmodernas, v.g. banheiro de água quente e fria, eles adotavam o sistemadumbanhoaoarlivreemtodososribeirõesencontrados.OúnicoquenãopodiatomarbanhoeraoVisconde,porqueossabugossãomuitoporosos;se caem na água, embebem-se de todo e emboloram. Emília jamais seesqueceu da "fase verde" do primitivo Visconde, quando umedeceu e foiencontradocompletamentecobertodebolorazul-esverdeado.

Dali partiram para as margens do rio Eridiano (justamente o que oslatinoschamavamPáduseositalianosdehojechamamPó).Esserioestavaganhando fama porque dias antes caíra por lá o cadáver de Faetonte, otonto que se metera a guiar o carro do sol e fora fulminado por Zeus.Hércules tivera informação de que à margem desse rio moravam umasninfas, filhasdeZeuseTêmis,quesabiammuitacoisasôbreo jardimdasHespérides.

Lá acamparam, e depois de mais uma suculentíssima refeição de

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carneirosoheróiordenouaPedrinhoquedesseumavoltapelosarredoreseindagassedoparadeirodasninfas.OoficialpulouemMeioameioelásefoi no galope. Uma hora mais tarde voltava com a informação certa: asninfas filhas de Zeus e Têmis tinham residência a meia légua dali, numbosque.

Hérculesfoivê-lassozinho.—Esperem-meaqui—recomendou.Nãomedemorareimuito.Enquantooesperava,Pedrinhofoiaobanho—ederelanceviuàbeira

d'águaumanereida,ouaninfadorio.Viu-amuito de relance, porque assim que ela o percebeu,mergulhou

quenemumasereia.Pedrinho admirou-se duma coisa: como é que viu tão bem aquela

nereida enão viu as dríades do bosque na aventurade Gerião? Tudomistérios,naquelaGréciademistérios.

Devoltadobanhodeucomoheróijádevolta.—Então?—indagouPedrinho.— Encontrei-as, sim, mas houve erro da parte do meu informante.

Quem está no segredo da localização do jardim das Hespérides é outrapessoa,nãoelas.ÉNereu,ovelhodeusdomardepostoporNetuno.Temosde ir em procura desse venerável ancião — mas como arrancar-lhe osegredo?

Mestrequeeraemarrancaravidaaosmonstros,oheróiatrapalhava-sequandotinhadedescobrirumsegredo.Comeleeraalinaviolência.Paraascoisas que necessitavam de miolo, o herói tinha de apelar para ospicapauzinhos.

—Queachaquedevo fazer?—perguntouaomenino—e comoesteengasgassechamouEmília.Emíliaveio,xeretíssima.SemprequeHérculesdavaahonradechamá-la,vinha todaarebolar-se,certadequeomundointeiroestavaassistindoàcena.

—Quequerdemim,amor?—disseaochegar.—Uma consulta. Tenhode ir aopalácio do velhoNereu, que é quem

sabedaexatalocalizaçãodojardimdasHespérides.Masestouatrapalhadocomumproblema:comoarrancaraoantigodeusdomarosegredo?

Emíliasegurouoqueixoeenrugouatesta.Depoisseusolhosbrilharamcomobrilhodoheureca...

— Podemos fazer com ele o que fizeram com a Cuca lá no sítio— econtoutodaahistóriadoamarramentodaCucaedosuplíciodopingonatesta. Foi omeiodeobrigá-la a fazeroque elesqueriam— issonaquelahistóriadosaci.Hérculesdeuplenaaprovaçãoàluminosaidéia.

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III-NopaláciodeNereu

Dias depois chegaram ao velhíssimo palácio do velho Nereu. Velho,velho, velho.Nãopodia havermaior velhice.De tão velho, estava já todocobertodemusgosealgas,ostrasemariscos.Pareciamenosumdeusdoque um casco de navio encalhado. O seu palácio era uma gruta develhíssimos e carcomidos rochedos à beira-mar. As ondas entravam esaíam,eentravamnovamente—eassimjádeséculoseséculos—séculaseculórum.Cadaondadadasondaseracomobafodearqueovelhodeuscraquento respirava — e assim ia vivendo a sua vida sem fim, porqueenquantohouverondashaverávidaemNereu.Foioqueospicapauzinhossentiram ao espiar de longe aquele casco de deus encalhado lá na grutaimensaquelheserviadepalácio.

Tudopedra,comotetodeestalactitesemcimaepontasemaispontasdeestalagmitesembaixo.Equantaalgaverdinhacomocana,evermelha,ede todas as cores do limo! E quantas conchas e quantos caramujos dosenormes!E polvos passeando por ali, e caranguejos caranguejando. AtéaqueleBernardo,oEremitadafestadecasamentodeNarizinholáestava—isto é, um tataravosíssimo antepassado do Bernardo, o Eremita deNarizinho.

Eumcheirodemaresiavelha,eumaumidadepesada,eumapenumbrade meter medo, com morcegões avoengos dos morceguinhos modernos.Velhice era ali — Velhice da água, das ondas, dos bichos marinhos, daspedras.Emília sentiu-se logovelhinha,dasbemcorocas, e até começouacaducar,comumafalamuitotrêmula,epegounumbordãoparaapoiar-se.Sentia-se arcada como as italianasmuito velhas e toda enrugadinhas derosto.Atécatacegaficou.

—Medê suamão,visvisconde,balbuciouela—eenquanto láestevenãolargoudamãodosabuguinho.

Nereu estava dormindo, reclinado em seu leito de pedras negrascobertas de limo e cracas. Hércules parou diante dele. Que fazer parainduzirumacriaturadaquelasacontarumsegredo?AsugestãodeEmílianão prestava. Pingo na testa!... Que adianta pingar água na testa dumamúmia de deus já sem sensibilidade nenhuma e a viver toda a vida sobchuvadepingosquecaíamdo teto?EHérculesolhouparaEmíliacomardesanimado.

Apesar de velhinha e aparentemente caduca, Emília ainda funcionavamuito bem de cabeça. Percebeu logo que naquele caso de nada valia o

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remédiousadocontraaCucanaaventuradosaciedisse:—OjeeitoLelé,ééésugestionarestamúmiaefaazerqueelasoonheem

vozalta.Pedrinho aprovou a idéia e, chegando perto de Nereu, começou a

sugestioná-loàsuamoda,murmurandocomvozdisfarçadaegrossíssima:—Deus,deusdomar!Nereu,grandeNereu,óvósquesabeistodosos

segredosdomundoporquesoisvelhocomoomundo!EmíliaiarepetindonooutroouvidodeNereu,comoumeco,asúltimas

palavrasdePedrinho:—...muundo...Pedrinhocontinuou:—Sabeistodosossegredosmenosumsó...—uumsóó...repetiuoeco.—Todos,menososegredodalocalizaçãodojardimdasHespérides...—...Hespérides—repetiuEmíliaemsuavozinhatrémuladeecovelho.

Nereu,mergulhadonosonho,ouviuaquelesomestranho,tãodiferentedosque ouvia habitualmente por ali, das ondas que entravam e saíam. Elembrou-sedojardimdasHespérides.Esorriuumfeiosorrisodesdentadode velho velhíssimo. E falou em voz alta, como certas pessoas falam nossonhos:

— Sim... sei... as Hespérides... lembro-me sim. Quatro... Lá no jardimpertodeTíngis...

Não eraprecisomais. Semquerer o velhoNereu revelarano sonhooque ninguém no mundo sabia: o jardim das Hespérides ficava perto dacidade de Tíngis, a mesma em que eles haviam estado em aventuraanterior.ForaláqueHérculesvenceraAnteu,ofilhodeGéia.

—Nadamais temosa fazeraquidisseHércules.Saiamosdesteúmidopalácioentorpecedor.

Saíram.Àproporçãoqueiaseaproximandodasportasdaimensagruta,aexbonecaiaremoçando.Primeirobotouforaobordãoemqueseapoiava.Depoisendireitouocorpo.Equandoseviurestituidaàluzdosol,estavajásemamenortremuradafalinha.

—Uf!...—exclamou,espreguiçando-seedesentorpecendoosmúsculos.—Velhicedasquepegamnagente,éaprimeiraquevejo.Nóschamamosde velhas Dona Benta e tia Nastácia, mas perto de Nereu as duas nemnasceramainda...

Hérculesconfessouquetambémhaviasentidoumentorpecimentodosmúsculos.Nãohaviadúvidaqueasvelhicesmuitovelhascontagiavamatéosprópriosheróis.

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DepoisdeserestauraremaosraiosdosoledetrocaremmilimpressõessobreovelhoNereu,puseram-seacaminhodaLíbia.

Emília observou que não encontrava na gruta nenhuma nereida"dançandoecantandoparadistrairovelhopai",comolhehaviamcontado.Comcerteza,vendoqueNereunãosaíanuncadaquelesonodedeusdomaraposentado, elas tinham fugido para cantar e dançarem lugares maisalegres.

A viagem à Líbia foi repetição da primeira. Hércules, coitado, enjooucomonunca,echegouàpraiadaLíbiacomoolhomaisbrancoquemanjar-branco.Masrestabeleceu-seprontamenteeseguiuparaTíngis.

Opovodacidadeorecebeucomgrandeshonras.Houve festasemaisfestas,presentesemaispresentes.Emíliaganhouumescaravelhodeouro,fabricado pelos ourives do Egito, terra vizinha. Mas ninguém na cidadepôdeinformarcoisanenhumasobreojardimdasHespérides.

HérculesolhouparaEmíliacomoquempedeopinião—eela:—Nereudissequeojardimficavapertodaqui,masnãodeclarouonde.

Apalavrapertonabocadumdiabovelhocomoaquelepodesiguificarumaboalonjura.

—Equeachaquedevemosfazer?— O remédio, Lelé, parece-me um só: aplicar o faz-de-conta — e

aplicou-o:Fazdecontaqueficaadoisdiasdemarcharumosul.Hérculescontinuavaanãoentendermuitobemaquelenegóciodofaz-

de-conta,masjásehabituaraanãoduvidardosseusefeitos.Voltou-separaosoutrosedeuordemdemarcha:

— Vamos caminhar rumo sul durante dois dias. O jardim dasHespéridesélá.

—Láonde,Hércules?—reclamouPedrinho.—Doisdiasé"tempo"nãoé"lugar".

OheróiolhounovamenteparaEmília—eEmília,lampeirissimamente:Comdoisdiasdemarchabatidachegaremosaumcertolugar.OjardimdasHespérideséaíepronto!Apostoumpomo!

Diantedaquelafirmezanadamaisrestavasenãoporem-seacaminho,epuseram-se a caminho, com o pobre Lúcio sobrecarregado com ospresentesrecebidos.MuitasrosasviraeleemTíngisegrandevontadelheveiode comê-lasmaseraumasnodepalavra.Haviaprometidoagüentaratéofimeagüentaria.

O terreno era dos arenosos — beira de deserto. Árvore dos paísestemperados, nenhuma. Só palmeiras, sobretudo tamareiras. Pedrinhoregalou-sedecomertâmarasnocachoelevouumsortimentonolombode

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Lúcio.Meioameiodavagalopadasgostosas,porqueparaumcentauronadamelhor do que as planícies sem tropeços. Em certo ponto viram umamiragemestampadanocéu.

—Quemaravilha!—exclamouPedrinho;eoViscondeexplicouqueamiragemreproduzcomoumespelhooqueestáembaixo.

—EntãoessamiragemestáreproduzindoojardimdasHespérides!—berrouEmília.—Estouvendoaárvoredospomosdeouro,carregadinha...

E era mesmo. Logo adiante avistaram, lá bem longe, um começo dejardim.

OjardimdasHespérides,afinal...

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IV-NoJardim

Um jardim encantadonomeio dodeserto!De longeparecia umoásiscomotodososoásis.Queéumoásis?OViscondeexplicou:

—Acausadosdesertoséafaltad'água.Plantaéumbichinhoquenãovive sem água. Nos pontos do mundo onde não chove, não há rios, eportantonãoháágua,eportantonãohávidadeespécienenhuma.Avidanasceudaáguaesóvivecomágua.Masemcertospontosdessesdesertos,existem, aqui e ali, fontes de águas subterrâneas, que vêm de longe ebrotam à superfície; e então as sementes que o vento traz germinam eviramcapõesdemato.Oásiséisso:umcapãodematonomeiododeserto.

—Quemato?—perguntouEmília.—Emgeral,palmeiraseoutrasplantinhasdesérticas,comooscactos.

Nascemecrescemalinanesgadechãoqueafonteumedece.Eégraçasaosoásis queos beduínospodematravessar odeserto.Organizam caravanasde camelos que varam de um oásis a outro, como os trens varam dumaestaçãoaoutra,comoastropasvaramdeumpousoaoutro.

—Eporqueusamessesbeduínoscamelosenãocavalos?— Porque o camelo adaptou-se ao deserto. Aprendeu a encher-se de

águaquandoaencontraeapassardiasediassembebernemumpingo.—Entãosãocaixasdáguaambulantes...— Isso mesmo. Levam-na consigo — e muitas vezes, nos grandes

apuros,osbeduínosmatamoscamelosparabeberaáguaqueelesguardamládentro.

Emíliacuspiu,comcaradenojo.—Grandeporcaria...—Quandoasedevemoshomensbebematéaságuasmaissujas—elas

viramonéctardosdeuses...Nãohámaiortorturaqueadasede—eassimconversando sobre sede e fome, camelos e águas limpas e sujas, aexpedição foi se aproximando daquele jardim-oásis. Que lindo! Como seregalaram só de vê-lo à distância! Muitas palmeiras como nos oásiscomuns,masdebaixodaspalmeirasnumerosasplantasdasquedãofloreslindasefrutasgostosas.

Hérculesparou.Tinhadeplanejaraentradanojardim,etodocuidadoseria pouco. Havia o dragão de cem cabeças de guarda àquilo. Em quepontoficavaodragão?Escondidonalgumagruta,comoodailhadeEritia?Eoherói, na formado costume, volveuosolhosparaospicapaus.Eles équesabiampensarcertonasocasiõesdifíceis.

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—Então, oficial?— exclamouHércules olhando para o seu oficial degabinete.

Pedrinho estava muito atento, como que a procurar se havia umaentradano jardim.Nãoviunenhuma.Podiamentrarporondequisessem.Umasoluçãolheveio:

—PodemosmandaroViscondeassuntar.Emíliaaprovouaidéia,mascomumaperfeiçoamento:—EoViscondepodeircamuflado,vestidodefolhassecas,comoaquele

"bicho-folhagem"dashistórias.Osabuguinhosuspirou.Erasempreassim.Sónosmomentosperigosos

selembravamdele.Haviaalipelochãomuitas folhastrazidaspelovento.Pedrinho juntou

umaporçãoparacamuflaroVisconde.—Háceraemsuacanastra,Emília?Havia um pelotinho. Que é que não havia na canastra Emíliana? E lá

abriuelaacanastraetirouabolotadecera.E sabem que cera? A de Ícaro. Enquanto os outros ouviam as

derradeiraspalavrasdopobremoçocaídolánomarelançadoàpraiapelasondas,Emília,sempretãoprática,iatirandocomaunhaosrestosdaceradocotodaquelasasasderretidaspelosol.

ComaquelaceraPedrinhofezdoViscondeumperfeitobicho-folhagem,do qual nem as Hespérides nem o dragão desconfiariam — e lá foi oViscondeinvestigar.

Meiahoradepoisregressava.—Vitudo—disseele.AsHespéridesmoramnummaravilhosopalácio

nocentrodojardim.Bemnafrenteháumaárvorecarregadadumasfrutasdo tamanho de laranjas-limas, dum amarelo de ouro. Deve ser a queprocuramos.

—Porquenãotrouxeumpomo?Nãooshaviapelochão?Pedrinhoriu-se.—Queingenuidade!Poisélápossívelquepomosdeouroandempelo

chão,comoas laranjas ládonossopomar?AsHespérides juntamtodoseguardam-nos como as maiores preciosidades do mundo. E o dragão,Visconde?

— Estava lá de guarda, sim. Encontrei-o dormindo com metade dascabeças.Asoutrasvigiavam,comosolhosmuitoabertos.

—Sãocemmesmo?—Nãocontei,masécabeçaquenãoacabamais.—EasHespérides?—quissaberEmília.

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— Vi três passeando pelo jardim. Lindas! Impossível criaturas maislindas — e o Visconde, que era grande apreciador da beleza feminina,revirouosolhosparaocéu.

Bom.Hérculesficouinstruídodasituação.Restavaagoraestudaromeiodedestruiromonstro.Atacá-locomflechajáviraserabsurdo.Quefazer?eoheróiolhouparaEmília."Quefazer,Emilinha?"

A exboneca segurou o queixo e franziu a testa. Era assim que"espremia" a caixa das idéias, fazendo que espirrasse alguma. Depois deunsinstantesseusolhosbrilharam—sinaldeidéiaespirrada.

—Omeioénarcotizaressebicho...Pedrinhofezcaradedecepção.—Soluçõesteóricassãomuitofáceis.Narcotizar!...Eondeonarcótico,

boba?Nodeserto,nãoháfarmácianasesquinas.Emíliapensava,pensava.Hérculesnãotiravadelaosolhos.Comofazer?

Evidentemente Emília estava remoendo uma idéia qualquer, com ar dequemquerenãoquer.Porfimdisse,depoisdumprofundosuspiro:

—Ojeitoéumsó:fabricarmosópio...A decepção cresceu. Pedrinho soltou um "Oh!" de desapontamento e

Lúcioolhouparao centaurinho.Emília, porém,os surpreendeu comumarespostainesperada:

—Podemos fabricarópio comavarinhade condão.Arranjem-meumpoucod'água.

OrostodePedrinhoiluminou-sediantedaimprevistagenerosidadedacigana. Ia ceder uma das viradas de sua vara! Milagre puro! Só o amorpoderiaexplicaraquilo."SeráqueestáapaixonadaporHércules?"

Pedrinhodespejounapalmadamãodoheróiumpoucod'águadasuafrasqueira, enquanto Emília, com muitos suspiros, abria a canastra embuscadavarinha.

—Abaixeessamão,Lelé—dissedepoisaoherói,queestavacomamãoemconchacomaáguadentro.Hérculesabaixou-aàalturinhadaexboneca.

Emília deu um último suspiro, dos mais puxados, e: "Vira que vira,virade!" tocou na água com a varinha. Imediatamente a água virou numcaldogrossoepreto.OViscondeveioprovar."Sim,éópiodolegítimo!"

Muito bem. Estava obtido o ópio. Como agora fazer o dragão beberaquilo?EmíliaperguntouaoVisconde:

— Não viu se o dragão tinha algum bebedouro perto, como o dasgalinhasepintos?

OVisconderefranziuatesta,comoprocurandorecordar-se.—Creioquetinha...Tinha,sim,agoramelembro.

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—Poisentãovolteláedespejeesteópionaáguadobebedouro.Hércules continuava com a mão em concha, com aquele caldo preto

dentro.DequemododaraquiloaoVisconde?Hérculesatrapalhava-secomqualquercoisa.Tevenovamentedeolhar

paraEmília.—Poisdespejenacartolinhadele,Lelé.Oherói sorriu.Tudo tão simplesparaEmília—e lá foi o caldopreto

paraacartoladoVisconde.Encheu-adetransbordar.— Pronto, vá!— ordenou Emília— e o visconde-folhagem lá se foi,

passo a passo, segurando com toda a atenção as abinhas da cartola, demedo de tropeçar e derramar aquilo. Voltou ao jardim e... não apareceumais.

Depois demeia hora de espera todos ficaram nervosos. Por que nãovoltava o Visconde?Que lhe teria acontecido?As hipóteses erammuitas."Quemsabesefoidescobertoecomidopelodragão?"—diziaum."QuemsabesealgumaHespéridehaviadadocomamaçarocaamexer-seealevaraparaopaláciocomoumacuriosidadedanatureza?"

Duas horas se passaram e nada. Por fim Pedrinho tomou umaresolução:mandarLúcioveroquehavia.

O pobre do Asno de Ouro tremeu da cabeça aos pés. Seus pelosarrepiaram-se,mas Emília explicou que se fossemuito cautelosamente eespiassedelonge,dedentrodasmoitas,podiaversemservistoeverificarseodragãobeberaaáguacomópio.

—Comopossosaberdisso?—murmurouopobreasno,aindatrêmulo.—Seodragãoestiveracordado,équenãobebeu.Seestiverdormindoé

quebebeu.Tãosimples...ELúcionãoteveremédiosenãoir,masfoicomumpensamentomauna

cabeça:"Elesnãotêmdódemim?Poisentãomedesligodapalavradada—esehouvernojardimrosas,mastigoasquepuder",ecomesseplanolásefoi cautelosamente de rumo ao jardim. Todos ficaram à espera namaioransiedade.

EseodragãohouvessecomidooViscondeecomessetambémopobreasno?

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V-ODragãodeCemcabeças

Masnãofoiassim.MinutosdepoisvoltavaLúcio,péantepé,decabeçabaixaeorelhascaidíssimas,comoseandandoassimninguémoenxergasse.Nãotendoencontradorosanenhuma,vinhadarcontasdamissão.

— Sim — disse ele. Encontrei o monstro dormindo com todas ascabeças.

OsolhosdeHérculesbrilharam.EmíliadeuumpinoteePedrinhobateupalmas. Tudo ia correndo maravilhosamente bem. Com o dragãoadormecidopeloópio,afaçanhadeHérculessetornavaumabrincadeiradecriança.Erasóchegarecomaclavairmacetandoaquelascabeças.

—EoVisconde?—perguntouPedrinho.—Nãooviu?—Vi,sim.Viumadaspatasdodragãoapoiadanumacoisaoumaçaroca

defolhassecasquedeveseroVisconde.Eleaproximou-sedemaise...Hérculescorreuamãopelaclava,alisando-a.Depoisergueu-seedisse:

—VoucomPedrinho.Osoutrosesperem-meaqui—efoicomoseuoficial.Entraramnojardimcomaperíciacomqueosíndiosentramnomato,semfazer omenor barulho. Foramvarando, varandopor entre as plantas, namaior parte desconhecidas de ambos. Súbito, uma clareira à frente. Láestava diante deles o palácio das Hespérides! Pedrinho tremeu deentusiasmo.

—Quemaravilha!—exclamouemvozbaixa.Parececoisadesonho...E diante do palácio viram uma árvore com frutas amarelas —

evidentementeospomosdeouro.Eláestavadeguardaàárvoreodragãode cem cabeças — mas dormindo, coitado, com todo aquele cabeçameaplastadonochão.Pedrinhoencheu-sedecoragemedisse:

—Medáasuaclava,Hércules.Eumesmoesmagopelomenosmetadedaquelascabeças.

Oheróiriu-se.Pedrinhonempôdeergueratremendaclava.Deviapesarumas quatro arrobas.Mas vendo ali no chão um pedaço de pau de bomtamanho,apanhou-o.

—Comistomearranjo.Otacapedosíndiosládaminhaterraéumpaumais oumenos assim—e lá se foi de tacape empunho rumoaodragãoadormecido.Caminhavacautelosamente,péantepé, comooasno,e jádetacape erguido. E ia descarregar o primeiro golpe numa das cabeças,quandodeu comoVisconde.Exatinho comoLúcíodissera: estava segurosob uma das patas do monstro. Pedrinho entreparou, sempre de tacapelevantado."Estávivo,Visconde?"—perguntou.—"Sim"—respondeuuma

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vozinhaespremidadesabugoesmagadoporpatadedragão.—"Eagüentaaté matarmos este bicho?" — ainda perguntou o menino. — Sim" —respondeudenovoo“empatado".

Pedrinhosossegoue,erguendootacapenomáximo,desceu-ocomtodaaforçasobreacabeçanúmeroumdodragão.Eradura.Foiomesmoquedarumapauladanumapedra.Pedrinhoergueudenovootacapeedesferiusegunda pancada com mais força — e ficou ali, bá, bá, bá, a malhartacapadas na cabeça número um. Hércules, ali perto, ria-se. Pedrinho jáestavaasuarefrouxo—enãoconseguiuesmoernemsequerumadascemcabeças.ParouolhouparaHércules,desanimado.

—Agoraéquevejoqueistodeserheróinãoéparatodos!Nãoagüentomais—ejogandootacape,sentou-se,ofegante.

Hérculesentãoergueuaclavaeesmoeudeumgolpeacabeçanúmeroum,edepoisanúmerodois—eassimtodas,umaporuma,atéanoventaesete.Quandofaltavamapenastrês,odragãoacordouearreganhouparaeletrêshorríveisbocarrasvermelhas,commaisdentesqueasdoscrocodilos,ecomlínguasdepontadeflecha.Eatacou.

Hércules saltou para trás num pulo de tigre, arrastando consigoPedrinho. Senão fosse isso, adeus neto de Dona Benta! Sentado ali adescansar, como estava, e desprevenido, foi o puxão de Hércules que osalvou.

Umaflechapartiudoarcodoherói—eoutra—eoutra.Asúltimastrêscabeças do monstro penderam e foram juntar-se às noventa e sete jáesmagadas.

Nessemomentoumavozsoouatrásdeles:—Avé,Avé,Evoé!Osdoisvoltaramorosto.EraEmíliaque,nãoresistindoà tentaçãode

vercomseusolhosamatançadodragão,deixaraoscompanheirosevierasózinha.Láestavaelatrepadaaumaárvore...OgritodeEmíliaecoounopaláciodasHespérides.Aretusa,ocupadaem

tricotar um cinto para Juno, ouviu aqueles "Avés" e estranhou, por quealém delas só havia no jardim maravilhoso o dragão. Ora o dragão eramudocomoasserpentes—sósilvavadevezemquando,tsi,tsi,tsi,comoaKaadoLivrodaJângal.Eamoçacorreuaverdoquesetratava.

Dando com o herói e um menino lá perto do dragão imóvel,evidentementemorto,Aretusasoltouogritodassereias:

—Humanos!...Suastrês irmãsacudiramà janelaEgle,HestiaeEritia,cadaqualmais

linda.

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Emília,ládogalhodaárvore,percebeuesussurrouparaHércules:— Já viram você, Lelé. Estão de olhos arregaladíssimos olhando para

cá...edesceu.Nadamaistinhamafazerali.Agora,aopalácio!—EoVisconde?—berrouEmília.Sim, o Visconde! Entretidos com tanta coisa, Hércules e seu oficial

tinham-no esquecido completamente lá sob a pata do dragão morto. Apergunta de Emília chamou-os à realidade. Pedrinho foi até lá com ela.Ergueu com esforço a pata do monstro, enquanto Emília puxava osabuguinho.Comoestavaamarrotado!

Despiram-nodasfolhassecaseexaminaram-lheocorpo.Abarrigatodaamassada,acartolinhaentortada...

Hérculesdirigiu-seaopaláciodasHespérides.Aretusaveiorecebê-loàportaecomespantodoheróioreconheceu.

—Hércules!—exclamou.—Nãomesurpreendeatuapresençaaqui.OoráculodeAmonjáotinhaprevisto.

Estava falando com a maior gentileza, sem hostilidade nenhuma notom; isso muito alegrou Pedrinho, fazendo-o pressentir que tudo iriaacabarbem.Aretusa fezoheróientrare chamouasoutras: "Egle,Hestia,Eritia,venhamverquemestáaqui..."

Pedrinhotonteou.Nuncasupôsquehouvessecriaturasdetantabeleza— e pela primeira vez sentia não ser gente grande, para namorá-las.Hércules fez as apresentações do costume. Aretusa achou Emília muitoengraçadinha,masnotounoViscondeumcheiromuitoesquisito...

—Pareceópio...—Éópio,sim!—berrouEmíliamuitolampeira.—Eletrouxecaldode

ópionacartolaparaadormecerodragão...— Ah, foi assim? — exclamaram as Hespérides, aparentemente

satisfeitas comamorte dodragão, eAretusa contou a história da árvoredos pomos de ouro. Juno, ao ter notícia da árvoremaravilhosa,mandarapara ali o dragão de cem cabeças para guardá-la, pois não queria queninguémnomundopossuíssenemumpomosequer.TodososproduzidoseramguardadoseenviadosparaelanoOlimpo.

— Para quê? — indagou Emília, com a sua carinha de exbonecainsaciavelmentecuriosa.

—Paracomê-los—respondeuAretusa.—Oh,entãoessespomossãocomestíveis?—Sim,edeliciosos.Masnãosãodeouro?—Sónacor.Tornam-sedeouroaotoquedecertasvarasfeiticeiras.

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Pedrinho, que havia saído da sala, reapareceu com quatro pomos namãoeumarmuitodesapontado:"Sãolaranjas!"—disseaoapresentá-lasaHércules.

Hérculesmordeuuma.Eradefatolaranja.Adecepçãofoigrande.Laranja,laranja...Porqueentãoaqueleempenho

pelapossedumafrutaqueabundavaemtodosospaísesdoMediterrâneo?Hestia explicou que abundava agora: antes só havia ali aquele pé. As"laranjeiras"dospaísesdoMediterrâneoeramprodutosdassementesqueJunojogaraládecima.Alaranjeirainicial,aprimeiraaparecidanomundo,eraadaquelejardim.

—MascomofoientãoqueAtlasesteveaquielevouumpomodeouromaciço, que eu bem vi, porque esteve naminha canastra uma porção detempo?

—Porqueapedidodelenósotocamoscomanossavarinhamágica.Atlasénossopaieestevecájustamentenoúnicodiaemqueodragão

dormiucomascemcabeças.Colheuuma.Desapontoutalqualvocêsagora—então,paracontentá-lo,Aretusaviroualaranjaempomodeouro.

Emília contou que também possuía uma vara de condão, dada porMedéiaemtrocadaquelepomodeourodeAtlas.

AsHespéridesmuitoseadmiraramdaquilo—eEgleachouqueEmíliaestavahabilitadaatornar-seumapequenafada.

O característico das fadas é a posse das varinhas de condão. Emíliaenfunou-setoda.

—Avaradelajáestásócomdezviradas—dissePedrinhoparaabater-lhe o orgulho. Tinha cem quando a recebeu de Medéia. Mas a boba, nomaior assanhamento, passou amanhã inteira lá no acampamento a viraristonaquilo.Gastouembobagensquasetodasasviradasdavarinha...

AsHespéridessorriram.

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VI-AVolta

A estada deles no palácio das Hespérides foi um contínuodeslumbramento. Banquetes, passeios pelo jardimmaravilhoso, danças emúsicasànoite.Hérculessentia-seemtamanhoenlevoquenempensavaemvoltar.Bemquepassariaorestodavidaali.QuemochamouàordemfoiPedrinho.

—Istonãodeixadeserótimo,masnós temosobrigações.Euristeu láestá à sua espera e vovó anda ansiosa pelo nosso retorno. Este décimoprimeiroTrabalhochegoupraticamenteaofim.Temosdevoltar...

Nesse momento, Egle, que havia chegado à janela, abriu-se numaexclamação:

—Venhamver!Venhamver!...Umcentaurinhoeumasno...Hércules explicou a presença ali de mais aqueles dois estranhos

personagens.Depoisdeclarouquecomgrandepesardecoraçãotinhamdepartir.Aretusaveiocomumacestadelaranjas—osfamosíssimospomosdeouro.Pedrinhodescascouumaemcuiaeprovou: laranja-limadaboa!DeuumametadeaHérculesechupouaoutra.

Asdespedidasforamcomoventes.EmíliaganhouumaporçãodecoisaslindasePedrinholásefoicomacestadepomos.

A volta correu acidentada. Aqueles desertos da Líbia sempre foramassolados por animais ferozes, que viviam atacando as aldeias dosbeduínos — leões, chacais, hienas. Hércules liquidou com todos. DepoistomaramumanauparaatravessiadoMediterrâneoeaportaramnaIlhadeRodesparadescanso.Láaconteceuumcasoesquisito.Hércules,depoisdesarar do enjôo, saíra a passeio com Pedrinho, um passeio a pé pelosarredoresdoporto.Súbito,apareceàfrentedelesumcarrodebois.Oheróiestava com fome. Desencangou a junta de bois, comeu um e sacrificou ooutroaPalas, suadivinaprotetora.Ocarreiro fugiuedoaltodummorrodeudeberrarcontraoheróiasmaiores injúriasmas tudo ficoupor isso.QuandoHérculestinhaumboiinteironoestômago,agiacomoassucuris—não ligavaamínima importânciaaprovocações.Edessaaventuranasceuumcostumecurioso:quandomaistardeoshabitantesdeRodesinstituíramsacrifíciosemhonradeHércules,costumavamcomopartedascerimôniasinjuriá-lo,comoofizeraocarreiro...

Prosseguindonaviagem,foionavioimpelidoporumgrandetemporalpara muito longe da sua rota — de modo que quando deram acordoestavammaispróximosdoCáucasodoquedeMicenas.

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Tudo arte de Hera. Furiosa com o novo triunfo do herói no caso dasHespérides, a vingativa deusa encomendara aNetuno aquele temporal, omaisviolentoqueaindaseviu.AnauqueostransportavanaufragoununsarrecifesdoMarNegro,masHérculeseospicapauzinhosforamsalvosporumcardumededelfins—unsdelfinsaserviçodePalas.

Foioquesugeriuosabuguinho.—Mascomo,Visconde,podePalasteraseuserviçodelfinsdeNetuno?

—objetouEmília.NãoéNetunoquemcomandatodososseresdomar?— É, mas não existe governo sem oposição. Sempre que um ser

marinho se descontenta com a política do governo— que é Netuno—passaparaaoposição—queéPalas.

Os únicos desastres do naufrágio foram a molhadela do corpo doViscondeeaentradadeáguadentrodacanastrinhadaEmília.Teveeladeabri-laeestenderaosoltodososobjetos,depoisdebemlavadosemáguadoce.

Pedrinho também lavou o Visconde, que ficara com o corposalgadíssimo — e dessa lavagem resultou maior encharcamento ainda.Sabugodemilhobebeáguacomoesponja.

—Vai repetir-seaquiloquehouvenocomeçodavidadoVisconde—observouEmília.—Vaiesverdeardebolor...

Pedrinho não viu nisso mal nenhum, porque sua intenção, logo quevoltasseaosítio,eraentregá-loatiaNastáciaparaumareformadocorpo.Elaaproveitariaasperninhas,osbraçoseacartolanumbelosabugonovo—eelesenterrariamosabugovelhonumcanteirodahorta.Eraassimquea Medéia-Nascia reformava o Visconde, sem necessidade de fervuranenhuma.

Depois de restabelecer-se de mais aquela viagem por mar, HérculesrumounadireçãodoCáucaso,queéa famosamontanhaplantadaentreaEuropaeaÁsia.Porquê?Porqueemvezde seguirparaMicenas sepôsHérculesacaminhodoCáucaso?

Por causa de Prometeu. Já demuito tempo andava com idéia de umavisita a esse titã de fígado devorado pelo abutre de Zeus, e que ocasiãomelhor que aquela em que um temporal o lançava quase aos pés doCáucaso?

Quando Hércules lhes comunicou a grande idéia, Pedrinho e Emíliaabraçaram-nocomovidos.AmbossabiamahistóriadePrometeu,contadaporDonaBenta.

—PrometeueraumdostitãsqueserebelaramcontraZeus,edepoisdevencido recebeu uma tortura horrenda: ficar eternamente amarrado ao

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Elbruz,opicomaisaltodoCáucaso.—Quantosmetros?—exigiuEmília.—Tem5.657metros, cantouo sabuguinho—e continuou,degozara

admiraçãodeHércules:—Poisé.Zeuscondenou-oaficaramarradonaquelepicoeternamente,

easereternamentebicadoporumabutre...—Sei—dissePedrinho.—Bicadonofígado.Oabutrecomeofígadode

Prometeudiariamente,ediariamenteofígadorenasce...Osdeusessempreforamvingativos.Daivemaqueledito:"Avingançaéomanjardosdeuses"—eninguém jamaisverificou issomelhordoqueesse titã.O suplíciodePrometeuédearrepiaroscabelos.

—Masqueéqueeleprometeu?—perguntouEmília.—Prometeunãoprometeucoisanenhuma;fezcoisamaisimportante:

deuaohomemoelementoinicialdoprogresso,queéofogo.—Eondefoieleacharfogo?— No céu. Naquele tempo os homens cá na terra viviam na maior

barbárie, exatamente como os bichos. Moravam em cavernas, comiamcarnecrua—unsperfeitospeludos.Eissoporquenãodispunhamdofogo.Semofogonãohámetaisesemmetaisnãohácivilização.Obicho-homemestavaimpedidodecivilizar-seporfaltadefogo.

—E então aparecePrometeu e promete dar fogo ao homem, xeretouEmília.

—Espere.AscoisasestavamnessepontoquandoveioaomundootitãPrometeu, irmão de Atlas. Mostrou desde logo ser um verdadeiro gêniocriador.Foielequemdeuaohomemissoaquechamamos"civilização".FoielequemsugeriuaconstruçãodenausnotempodoDilúvio,comasquaisaraça humana se salvou do afogamento geral. Foi ele quem ensinou aohomem as primeiras artes. Em suma, tanta coisa fez em benefício dahumanidadequeZeusseindignoueporfimopuniudamaneiramaiscruel.

—MasentãoZeuséummalvado!—berrouEmílianumsúbitoacessodeindignação...

—Emília,Emília!...—advertiuPedrinho.—Lembre-sedequeestánaGréciacomtodososdeusesvivinhosláemcima,talveznosescutando...

Masaexbonecaestavarevoltadademaisenessasocasiõesesquecia-sedetudo.Econtinuou:

—Malvado, sim.Peste!... Sustentooquedigoaténas fuçasdele, e elequemevenhaamarrarnumCáucasoparaveroqueacontece!...O titã sóestavafazendoobem,ensinandoasartes.Comopoderiamoshomensvivernaterrasemasartes—aartedefazerpanelasdebarro,aartedecozinhar,

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aartedeconstruircasas?Ecomopoderiamarranjar-sesemofogo?EotalZeus duma figa amarra o coitado no Cáucaso para que um estupor deabutrelhefosseeternamentedevorandoofígado?Malvado,sim.Cascadeferida...

Todos estavam assustadíssimos, com os olhos no céu à espera dosterríveisraiosdodeussupremo.Pedrinhocorreuparaelaetapou-lhecomamão a boca.Mas Hércules sorria damaneiramais estranha, como quesubitamente iluminado. É que ele sempre achara uma grande injustiçadivina aquele suplício infligido ao titã,mas nunca tivera a coragem de odizer,nemsequerasimesmo.

Ninguém na Grécia punha em dúvida os decretos de Zeus. Ninguémduvidava de Zeus nemda sua alta sabedoria. A adulação era geral. Todomundo lhe fazia sacrifícios nos templos e altares caseiros. Pois era numambiente assim, de perpétuo terror pânico e medo à vingança de tãovingativos deuses, que Emília de Rabicó, aquela figurinha lá do sítio deDonaBenta,exbonecadepanofeitaportiaNastácia,arrostavaodeusdosdeuses,dava-lhede"malvado",de"peste"eatéde"cascade ferida"pelasventas!Eporfimlançouumgritoderevolta:

— Pois vamos libertar Prometeu! Vamos matar aquele estupor deabutreedesacorrentaropaidofogoedetodasasartes!...

TãotremendaspalavrassoaramdentrodeHérculescomoavozdasuaprópriaconsciência,acordadadepoisdelongoperíododemudez.Sim.Eraaqueleoseupensamentosecretoenuncasussurradonemparasimesmo.O sonho inconsciente de Hércules sempre fora libertar Prometeu. Essesonho inconsciente acabava de fazer-se consciente graças à revolta e aogritodeguerradeEmília.Eaconteceuentãoumfatoassombroso:Hércules,otremendoeinvencívelHércules,ohomemmaisfortequeomundojamaisproduziu,chorou...Choroudepuraemoção.EagarrandoEmíliaebeijando-anatestadisse:Vocêéaprópriavozdaminhaconsciência,criaturinha...

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VII-Prometeu

— A raiva de Zeus contra o titã vem de várias coisas — disse oVisconde.—Houveprimeiramenteahistóriadotouro.

—Quetouro?—PrometeuhaviasacrificadoaZeusumtouro,masZeusestranhouo

cheirodafumaça.Espiaedescobretudo:otouronãoeratourodeverdade,sim uma armação de vime e palha... A partir desse dia Prometeu ficoumarcado.Emseguidaveioahistóriadeensinarasartesaoshomens.Esedepois de grandemente se aperfeiçoarem nas artes os homens virassemdeuses?Zeusnãogostoudabrincadeira.Eporfimveioograndecrime:

Prometeu roubou o fogo do céu para dá-lo ao homem. Ah, aí Zeusexplodiueinventouaincríveltorturadoabutreacomerumfígadovivoerenascente.

—Equandofoiisso?—Hámilharesemilharesdeanos...—QuerdizerentãoqueopobrePrometeuestáláhámilharesdeanose

nãoháninguémqueseanimea libertá-lo?—berrouEmília,vermelhadecólera.Éprecisoentãoqueeu,umacoitadinhaládaroça,melembredisso?Porcaria...

—Queéqueéporcaria,Emília?—perguntouPedrinho.—Ahumanidade,bobão,poisnãovê?Oshomensqueandamaregalar-

se com os benefícios das artes ensinadas pelo titã, com os assados decarneiroeboifeitosnofogoqueelelhesdeu,semqueninguémselembrede ir tirá-lo de lá— dematar aquele estupor de abutre e jogar aquelascorrentesnonarizdeZeus.

Pedrinho agarrou-a de novo e tapou-lhe a boca. Ficou assim unsinstantes, com os olhos no céu, à espera dos raios do Olimpo. Mas nãoaconteceucoisanenhuma.Emvezderaios,quemsurgiufoiMinervino.

—Viva!...pensamosquejásehaviaesquecidodenós.Hátantotemponãoaparece...

—Aparecihojeparadefendê-losdeváriosperigospróximos.—DesceudiretamentedoOlimpo?—Sim...— Não notou se Zeus está assim com cara de quem comeu e não

gostou?—Zeusdeveestar sonhando comEuropa, Ledaouqualquerdas suas

antigasnamoradas,porqueaindanãoacordouestamanhã.Certossonhos

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fazem-nodespertarmuitotarde.Pedrinho respirou. Zeusnão tinhaouvidoodesabafodaMarquesade

Rabicó...Minervinocontoumil coisas.Palasestava radiante comodesfechoda

aventuradasHespéridesequeriaagoraguiá-losnaquelasmontanhas.—ElajásabequeLelévailibertarPrometeu?—perguntouEmília.—Já.—Como,seessaidéianasceuagorinhamesmonacabeçadele?—Osdeusesadivinhamopensamentodosmortais.Palasleunacabeça

deHérculesessepensamentoemandou-meacompanhá-lo.Emília contou que havia visto Palas no momento em quê ela desceu

paraimpediralutaentreHérculeseMarte.—Sim,Palasdesceu—confirmouMinervino.—Euacompanhei-a.—EMarte?Comovaidoferimentonopulso?—perguntouPedrinho.—

Que coisa esquisita um herói derrotar um deus, e logo que deus, o daguerra...

—Não há o que umhomemnão faça quando temPalas do seu lado.Minha deusa é a grande deusa. Quem goza de sua proteção nada tem arecear,nemmesmodeZeus.Palasfazdeleoquequer.

Foram caminhando rumo ao Cáucaso. Os primeiros contrafortes jáestavamperto.Começouasubida.Enquantoamarchaforanoplano,Lúcionãoprotestoumuito.Limitava-seaunssuspirinhosdelongeemlonge.Masnavozde"subidademorro",estrilou.

— Não agüento mais! — disse. — Gentinha, Visconde de sabugo,canastra cheia de laranjas e não sei quantos presentes, tudo em cima domeulomboeserraacima,ah,não!...Tenhampaciência.Lembrem-sedequenãosouburrodenascença,dosquesuportamcargasdeoitoarrobas.Sougente com formadeburro.Minha força é de gente, nãodeburro e tantochorou que Emília dividiu o carregamento com Minervino, o qual seofereceuparalevarumaparteenquantoestivessememzonamontanhosa.

JáestavamemplenoCáucaso.OpicodeElbruzapareciaaolonge.Eraláquegemiapresoagrossascorrentesomaiorbenfeitordoshomens.Emíliavibrava de cólera a essa idéia. Seus olhinhos telescópicos não sedespregavamdopicosemi-envoltoemnuvens.Súbito,depoisdemaisumashorasdecaminhada,Emíliadeuumberro.

—Estouvendo!Estouvendoumhomemnudemãosatadasàscostas.Estámeiosentadonumapedra,comacabeçareclinadaparatrás,comoquetambémapoiadanapedra.MeuDeus!Quecaradedorele tem!...Agentepercebe que é dor de fígado comido. Mas não vejo abutre nenhum...

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Esperem...Vemvindoumenorme.Chegou.Vem"recomer"omesmofígadoquecomeuontemerenasceudenoite...

Todos olhavam para o rochedo e não viam nada. Emília era mesmotelescópica.Masnãohouvefantasianenhumanaquelasuavisãoantesdosoutros,porquequandoseaproximaramumpoucomais,todosdistinguiramacenaporeladescrita.Láestavao titãpresoaorochedo,comoabutrealhe bicar o fígado. E até os gemidos do grandemártir todos chegaram aperceberdali.

—Hámilharesdeanosqueelegemededor—disseoVisconde.—Hámilharesdeanosqueoabutrelheróiofígadoesóagoraaparecequemseproponha a libertá-lo. Não há dúvida que a ingratidão é própria dohomem...

OViscondinhonãoerasóciência;àsvezestambémfilosofava.Para libertar Prometeu, Hércules tinha primeiramente de destruir o

abutre.Queabutreeraaquele?Ah,umabutredeZeus,eternotambém,poisqueteriadeficareternamenteadevorarofígadoeternamenterenovadodePrometeu.Ora,sendoassim,comopoderiaoheróimataroqueeraeterno?EstaobservaçãoacudiuaPedrinho.

OmensageirodePalasrespondeu:—Minhadeusajáponderousobreisso.Hérculestemqueatacá-lonos

olhos.Nãoomatará,jáqueéumabutreeterno,masocegaráparasempre.E,cegoqueesteja,nãopoderáimpediralibertaçãodotitã.

EmílianãogostoudaidéiadePalas.— Fica cego e que tem isso? Fica cego e não sai dali de junto de

Prometeu,continuandoacomer-lheofígadodamesmamaneiraebicandoquemaproximar-se.Oscegoscomemtantocomoosnãocegos,emboranãovejamacomida.

— E os cegos acabam ficando com os outros sentidos de tal modoagudosqueporfimdispensamosolhos—acrescentouoVisconde.—AchoqueEmíliatemrazão.Cegaroabutrenãoadiantanada.

Minervino atrapalhou-se e começou a dizer: "Mas Palas..." Emíliainterrompeu-o:

—Sim, Palas, a boaPalas, a grandePalas cochilou.Nãohá quemnãocochile.DonaBentadizqueatéHomerocochilava.NãoqueroqueLeléselimite a cegar o abutre. Temos de fazê-lo cair num laço — e enquantoestiverpreso,vamosláelibertamosotitã.

Hércules achou excelente a idéia de sua "dadeira" e encarregouPedrinhodepegaroabutre.Omeninopuloude contente. Issode laçosearmadilhas era com ele. Sabia pegar toda sorte de passarinhos, com

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peneira,comarapuca,comlaçadadecrinadecavalo,comvisgoeatécomanzol.Certavez,quandotinhaseteanos,pegouumurubunoquintalcomanzol— e muito boas palmadas levou de sua mãe Tonica por causa dajudiação.Ora,adiferençaentreospassarinhoslánosítioeaqueleenormeabutre era só de tamanho. Logo, bastava que ele fizesse uma armadilhaproporcional.

Pedrinhopensou,pensou,eporfimresolveuseguirpelocaminhomaissimpleserápido:odoanzol.Masondeanzol?

— Você não terá por acaso um anzol na sua canastrinha, Emília?—perguntoueleporperguntar—earespostaassombrouoherói,queestavaacompanhandotudo:

—Tenho!...—respondeuela.E tinha! Entre as muitas miudezas da sua "canastra de badulaques"

havia um anzol grande que Emília "achara" no quarto de Pedrinho. Omeninoreconheceu-oimediatamente.

—Esteéomeuanzoldepegarpiabanha!Você,Emília...masperdoou-lhe o roubinho porque havia resultado em bem. Encastoou o anzol numcordelbemfortee...

—Eisca?Queiscaponhoaqui?Hérculesopinouqueumfígadodecarneiroseriaótimo,masa"dadeira"

nãoconcordou.—Seesseabutreandahámilharesdeanoscomendo fígado, juroque

está"poraqui"defígadoequeroquefor,contantoquenãosejafígado.

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VIII-OAbutre

Hércules arregalou os olhos. Como era claro aquilo! Como erainteligentetudoquantoa"dadeira"dizia!

Pedrinhoiscouoanzolcomumrimdecarneiro.Eagora?Quemialargaroanzoliscadolápertodoabutre?Quem mais, se não o Visconde? Pedrinho chamou-o e deu-lhe

instruções:—Vocêvaigalgandoopicoeláemcimaarrasta-seportrásdoabutree

largaaiscanumlugarbemvisível.Nósficamosaquisegurandoapontadocordel.

OViscondesuspirouquenemLúcio,masfoi.Galgouopicoeláemcimaarrastou-seportrásdoabutre.Masemvezdelargaraisca,teveabelaidéiadejogá-labemdiantedobicodaave.Aiscanemchegouacairnochão.Oabutre,enjoadissimodefígadoesequiosoporvariedade,sentiuocheirodorimepegou-onoar.

—Fisgado!—berrouoVisconde.—Puxem!...Pedrinhopuxouocordel;mascomoarrancoqueaosentir-sepresoo

abutredeu,oarrastadofoiPedrinhoenãoele.EsenummovimentorapidíssimoHérculesnãolevasseamãoaocordel,

láiriaPedrinhopelosares,levadopeloabutreemvôo.Imagine-se(oqueéimprudênciadecriança)queelehaviaatadoapontadocordelemtornodacintura!...

Depoisqueoheróisegurouocordelasituaçãomudoucompletamente.O abutre, que já ia entrando em "vôo planado", capotou com o arranco,focinhou, lá veio como um pára-quedista cujo pára-quedas se engasga.Hérculesiaencurtandoocordel,comoquemrecolheumpeixedoespaço.

Aotê-loaoalcancedamão,agarrou-opelospésesubjugou-o.Bemqueamonstruosaavesedebateu!MassenemmonstroscomooleãodaNeméiapodiamcomoherói,queesperavaaqueleabutre?

Emíliainsultou-o:—Bemsevêqueéavedezerocérebro!Queadiantadebater-seassim?

Sossegue, estupor, antesqueLeléperca apaciência e esmoaessa cabeça,comofezcomascemdodragãoládojardim.

Parece que a ameaça valeu, porque o abutre sossegou. Hérculesamarrou-opelospésaum troncodeárvoreedisse: "Pronto!Podemos irdesencadearPrometeu."

Emíliapôsasmãozinhasnacintura.

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—Quecabeça,meuDeus!Poisvocêtemcoragem,Lelé,dedeixaresteabutre, de bicomais cortante que alicate, preso só pelos pés? Assim quevirarmosas costas, ele aplica abicancanoamarrilho, comea cordae vaivoandoparaorochedoechegamuitoantesdenós...

Hérculesabriuaboca."Émesmo! ..."—exclamoucomcaradeboboeficou olhando para Emília à espera de solução. Emília nem segurou oqueixoparapensar.Tãosimplesaquilo...

—Poisésócortar-lheapontadumadasasas,comofaztiaNastáciacomasgalinhasmuitovoadeiras...

E foioque fizeram.HérculescortouapontadumadasasasdoabutrecomafacadaEmília,istoé,comomolequedeMícenasviradoemfaca—epronto.

Estavaoabutreinutilizado.Paraoverificar,soltou-o.OpobreabutredeZeus— o "estupor"— como dizia Emília, tentou voar, desequilibrou-se,pererecoueporfimrodoupelasperambeirasabaixo,adebater-se.

Bom. Estavam livres do abutre. Restava agora subir ao pico edesacorrentar o herói, o que Hércules fez num instante. Fortíssimasaquelas correntes,masdeque valia forçade correnteparaHércules?Eleagarrou-asedespedaçou-ascomosefossemdevidro.

Ah,ninguémdescreveosuspirodealíviodotitãaover-selibertado!Seuprimeiromovimento foi cair nos braços de Hércules em lágrimas— emlágrimas os dois. E Pedrinho, Emília e o Visconde também choraram deemoção.

—Livre,livreafinal!—exclamouPrometeu.—Livre,depoisdeséculoseséculosdemartíriopelocrimedehaverdadoofogoaoshomens...

***

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12-HÉRCULESECÉRBERO

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I-HérculeseCérbero

Hércules já realizara onze grandes Trabalhos, saindo plenamentevitorioso. Estava agora incumbido do último e o mais difícil. Tinha dedesceraosombrioreinodeHades,etrazerdeláofamosoCérbero.

—Queéessereino?—quissaberPedrinho;eomensageirodePalasexplicou:

— É o reino subterrâneo para onde vão as sombras dos mortos. ÀentradaestáCérbero,ohorrívelmastimdetrêscabeçasecaudadedragão— três cabeças diferentes. Amissão de Cérbero é impedir que os heróispenetremnosdomíniosdeHades.Sóisso.Porqueosheróisseatrevemàsmaiores loucuras até a se baterem com os deuses, como no caso deHéracleseAres.Osdeuses,pois,têmquetomarprecauções.

EmíliaquissaberpormenoresdodeusHades.Minervinocontou.—ÉirmãodeZeusePosseidon,deHeraeDeméter.Filhodovelhíssimo

deusCronos,queéoTempo.Narepartiçãodomundocoube-lheoreinodosinfernossubterrâneos,deondesósaiuumavezpararaptarPerséfone,filhadeDeméter,comaqualsecasou.

—Estáaíumacoisaquenãocompreendo—dissePedrinho.—ComoéqueafilhadumadeusadoOlimposeconformaemdeixarabelezadocéuparairmorarnafeiúradoinferno?Maiormaugostonuncavi...

—Équeelanãofoimorarláporgosto.Hadesraptou-a—efoioraptomaiscélebredomundo.

—Conte,conte...— Aquilo não passou de uma conspiração. Condoído da sorte de seu

irmãoHades,Zeusconsentiunesserapto.QuelindaeraPerséfone!Estavaumdiabrincandonapraiacomas filhasdoOceanoeacolher floresnumpradovizinho:rosas,belasvioletas,gladíolos.Súbito,deucomum jacintomaravilhosodebrilhoearoma.Nãopareciaumjacintocomum...

—Eapostoquenãoera—adivinhouEmília.—Sim,nãoera.Aquilo faziaparteda conspiração.Amaravilhosa flor

brotarajustamenteparaatrairPerséfoneaopontoondeiaabrir-seosoloedafendairromperHadesemseucarrodecorcéisinfernais.Agarradapelacintura,apobrePerséfonefoilevadaaosgritosparadentrodaterra...

—EDeméter,suamãe,nãofezcoisanenhumalánoOlimpo?— Sim. Fez um barulho medonho, até que afinal conseguiu um

entendimento: Perséfone passaria metade do ano com ela no Olimpo eoutrametadenoinfernocomHades.

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Pedrinho tentou imaginar como seria o palácio de Hades. Nãoconseguindoformaridéia,consultouMinervino.

—Ah, um palácio severíssimo, de colunas de prata, rodeado de altasrochas.Àsuafrenteespraia-seaLagoaEstígia,deáguasparadas.Comolánão existem ventos, nunca as agitam amenor ondulação. Nela despejamváriosriosquedescemcomotorrentesdasuperfíciedaterra.Parachegarao palácio é preciso atravessar a lagoa. Só existe uma barca, a do velhoCaronte. Mediante o pagamento de um óbulo, o sinistro barqueirotransportaasombradosmortos.

—Eusei!—berrouEmília.—Daívemocostumegregodeenterrarosmortoscomumamoedinhanopeito.ÉparapagamentoaCaronte.JávimosissoemnossaprimeiraviagemaestaGrécia.

—Sim.Todos têmquepagaro seu transporte.No reinodeHadeshávárias zonas. Para as mais sombrias, lá nos abismos do Tártaro, vão assombrasdosinimigosdosdeuses.Assombrasdosamigosdosdeusesficamnas zonasmais agradáveis, onde emvezde trevashápenumbras. SãoosCamposElísios.

—EcomoéacortedessedeusHades?—NaentradaficaotemívelCérberodetrêscabeças,filhodotitãTifon

e da ninfa Equidana — "ninfa imortal e perpetuamente livre doenvelhecimento". Cérbero deixa entrar as sombras,mas não permite quenenhumasaia.Depoisháostrêsjuizesquejulgamosmortoseosmandamparaestaouaquelazona:Radamanto,MinoseÉaco...UmarrepioperpassoupelocorpinhodeEmília—brr...Viu-selá,diante

dostrêsseveríssimosjuizes,interpeladaarespeitodosinsultosqueandoulançandocontraZeuseHera...Minervinocontinuou:

—DepoisdeHadesesuaesposaPerséfone,vêmasdivindadesinfernaismenores. Em primeiro lugar as Queres ou as Moiras, que são gênios damorte e da vingança; perseguem todos os culpados, sejam homens oudeuses, e não descansam antes de castigá-lôs. As Queres são negras dedentes alvíssimos e olhos ferozes, sanguinárias e implacáveis. Atiram-sesobre os que caemnas lutas, arrancam-lhes a alma, e lá se vão com elasparaoreinodeHades.

—Entãoandampelaterra?— Sim, mas invisíveis para os vivos. São as matadoras dos homens.

Andampelaterramatandogenteparalhesarrancaraalma.—Bom,entãoissoéoquelánomundomodernonóschamamosMorte

— observou Pedrinho. Aqui são verdadeiras cachorras de caça —caçadorasdealmas...

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—Equemaishálá?—quissaberEmília.— Há as Harpias — continuou Minervino. São aves com cabeça de

mulher, asas e garras. Também andam pelo mundo caçando gente paraabastecerdesombrasoreinodeHades.EháasErínias,ouEumênides,quedo mesmo modo que as Harpias, são demônios de asas com cabelos deserpentes. Também caçam almas. Voam às vezes com um archote empunho, outras vezes com um látego. A voz delas é como a dos tourosenrouquecidos.Porondepassam,asplantasmorrem,vítimasdoseuhálitopestilento. As Erínias caçam as almas dos culpados e sobretudo as dosmausfilhos.

EMinervinoaindacontoumuitacoisadoreinodeHades,deixando-osarrepiado-se com muito pouco desejo de acompanhar Hércules em suaaventura.

Ograndeheróiestavaimersoemprofundameditação.AqueleTrabalhonada tinha de semelhante aos anteriores. Obrigava-o a preparar-se.Cumpria-lhe,antesdemaisnada,iniciar-senos"mistériosdeElêusis",afimdeconquistaraboavontadedeDeméter,mãedarainhadosinfernos.

—TemosqueiraElêusis—disseele—eparalápartiuobandinho,domesmo modo que havia partido para tantos outros lugares. Hércules àfrente, abrindo a marcha. Depois, Pedrinho montado em Meioameio.Depois, o pobre Lúcio com o picuá e Emíliamontada de banda, como asamazonasdesaiacomprida.

Os presentes ganhos das Hespérides e mais coisas tinham ficado noacampamento,debaixodagrandepedra.

ChegadosaElêusissurgiuumacomplicação.NosfamososmistériosdeDeméter não podiam iniciar-se os de fora — e Hércules era ali umestrangeiro.Omeiofoifazer-seadotarporFilio,umseuamigoresidentelá.Depois outra complicação: Hércules estava manchado pelo crime damatançadoscentauros.Tevedesubmeter-seaumapurificação.Sódepoisdissopôde iniciar-senosmistériosdeElêusiseconquistarasboasgraçasdeDeméter.

E agora? Por que porta penetrar no reino de Hades? Havia diversas.Uma,oRioAqueronte,queemvezdedespejar-senomardespejava-senumpantanosolagodeexalaçõespestilentas,pertodacidadedeEfira.Eraesselagoumadasbocasdoinferno.OutrabocaeraumafendanoCaboTenaro,naLacônia.Hérculesescolheuestaúltima.

Bom. O herói ia penetrar no Hades, mas seus companheiros? Seriaabsurdo levá-los também. Hércules deu as suas razões e ordenou queficassemporaliàespera.Pedrinhorespirou.Sehaviaumacoisanomundo

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quenãodesejasse fazer era aquilo:penetrarno inferno.Mas comgrandesurpresadetodosEmíliadisse:

—Poiseuvou.NãopossoabandonarLeléjustamentenasuaaventuramaisperigosa.Quemsabesenãovaiprecisardemimporlá?

Oheróicomoveu-secomtamanhadedicação;seusolhosumedeceram-se,emaisaindaquandoosabuguinhodeclarou:"Eeutambém.DonaBentamerecomendouquenãolargassedaEmília."

Hérculesainda tentoudemoverosdoispequenitotesdeumpasso tãoperigoso.Nãoconseguiu.QuandoEmíliaencasquetavaumaidéia,nãoeraàtoa:nãohavianomundooqueademovesse.

E Hércules, Emília e o Visconde desceram pela fenda que dava noscamposfronteirosàLagoaEstígia.

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II-NoInferno

A primeira coisa que Emília e o Visconde viram ao pisarem naqueleplainofoiumagrandequantidadedesombrasdemortos.Sombranãotemmedodesombra,masfogedequemnãooéetodasfugiramaodaremcomo herói e mais as duas criaturinhas vivas. Fugiram, desapareceram aolonge. Sóduas ficaram:a sombradeMeleagroedaMedusadegoladaporPerseu.Meleagroeraamigo,poisforaumdoscompanheirosdeHérculesnaexpediçãodosargonautas,masaMedusaeraaMedusaeHérculesarmouodardoparacombatê-la.Umavozoadvertiu:

—Nãovêsqueéumasombra,Héracles?VozdeMinervino!SemqueelesvissemomensageirodePalastambém

descera ao Hades. Hércules baixou a arma, desapontado. Depois seguiurumoàbarcadeCaronte.TinhamdeatravessaraLagoaEstígia.Surgiuumacomplicação. O velho Caronte só transportava sombras, não vivos.Recusou-searecebê-losemsuabarca.

—Masnóstrazemososóbulos—xereteouEmília.Caronte baixou os olhos para aquele pelotinho de gente e até se

assustou:emaisaindaquandodeucomosabuguinhodecartola.Decartolaefalante,poisoViscondetambémmeteuobedelho.

—SouoescudeirodestegrandeheróieaconselhoaovelhoCaronteanão nos atrapalhar. Meu amo já se desempenhou das mais temerosasincumbênciasdoreiEuristeu,enãoseráumvelhobarqueiroquemlheirábarraropasso.

OespantodeCarontenãotinhalimites.Hércules,queestavadispostoaagircomprudência,olhouparaEmília."Quefazer,dadeira?"

Emíliaaplicouofaz-de-conta.—Fazde conta que somos sombrasmal—disse isso e já o rostode

Carontedemudou.Enfitou-osdenovocommaioratençãoeporfimdisse:— Perdoem-me. Pareceu-me a princípio que eram seres vivos, agora

vejoquesãosombras—eestendeuamãoparareceberosóbolos.Hérculesnão se lembrara desse detalhe. Não havia trazido óbolo nenhum. NemEmília, nem o Visconde. Quem salvou a situação foiMinervino. Tirou dobolsoquatroóboloseapresentou-osaovelho.Emíliainterveio:

— Esperem! São três óbolos só. O Visconde não paga, porque não égente.

Caronte não compreendeu — mas Emília explicou tão bem a"sabuguice" do Visconde que o velho se deu por convencido. "Vá lá, três

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óbolos" e recebeu-os da mão do mensageiro de Palas. Emília enfiou nobolsooquarto—paraoseumuseuzinho!...

AbarcadeCaronteatravessoua lagoa.Todos saltaramdooutro lado.ComeçavaaliamansãodeHades.Atrásdopalácioéqueficavaaportadoinferno,comocãodetrêscabeçasdeguarda.Eraumpátioimenso,cheiodesombrascomváriosvivosquedeummodooudeoutrotinhamatravessadoalagoaeláestavamprisioneiros.

—Olhequemestácá!...—berrouEmíliaapontando.Hérculesolhou.EraTeseu...Masencadeado,comootitãnoCáucaso.Hérculesdirigiu-seaogrande

herói e perguntou como viera parar ali. Teseu contou a sua estranhaaventura.EleePírito,seucompanheirotinhamimaginadoamaistremendade todas as aventuras: desceramaoHades para raptarHelena e tambémPerséfone,aesposadeHades.

Emília estremeceu ao ouvir tal confissão. Que loucura! Vá que PirilopensasseemraptarHelena;masoatrevimentodeTeseucomsuaidéiaderaptar a própria esposa do deus dos infernos era dessas coisas para asquaisaexbonecasótinhaemseuvocabulárioumapalavra:"batatal!"

—Poiscáviemos—disseTeseu.EnganamosCaronte,atravessamosaEstígia.ChegamosaentrarnopaláciodeHades,oqualnosrecebeumuitobem mas só na aparência. Mandou-me sentar em certo assento. Semdesconfiardecoisanenhuma,sentei-me—e imediatamentesentiminhascarnesaderidasàqueleassento,debaixodoqualsaíramserpentesqueseenlearam em meu corpo. Mesmo assim consegui escapar. Fui, porém,agarradoeencadeadoaquiaestapedra...

Hérculesnãorespeitavacadeiasdebronze.FezcomasqueprendiamoheróidaÁticaomesmoquecomasdo titã lánoCáucaso:despedaçou-ascomumempuxãoviolento.EstavalivreograndeTeseu.

—Obrigado,Héracles.Vamosagoralibertaromeucompanheiro.Masnavozde libertarPirilo, tudomudou.A terra foi sacudidadeum

violento terremoto. Era sinal de que os altíssimos deuses se opunham àlibertaçãodoaudaciosomalucoqueplanejaraoraptodePerséfone.

—Nãoconvéminsistir—cochichouMinervinoaoouvidodoherói.—OcrimedePiriloégrande:édosqueosdeusessupremosjamaisperdoam;eHérculesdesistiudaidéia.LádeixouPiriloentregueàsuainfelizsorte.

Hércules,coitado,tinhaumgrandecoração.Oshorroresqueporaliviuconfrangeram-no. Entre outras coisas, sombras de defuntos que estavamesperandoavezdetransporasportaseseestorciamnoshorroresdasede.Tantaáguaalipertoesombrasmorrendodesede...

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— Por que não bebem a água da lagoa? — indagou Emília — eMinervinorespondeuqueeramaindamaissalgadasqueasdomar.

Hércules,compadecido,teveumalembrançafeliz.Degolouumdosboisdo rebanho de Hades que pastava por ali e deu o sangue às sombrassequiosas.

Aquele rebanho, porém; era guardado pelo pastor Menetes, o qualacudiu em defesa do boi capturado, com palavras de desafio ao herói.Hércules agarrou-o pela cintura e amassou-o, quebrando-lhe váriascostelas. Nesse momento, um grito. Era Perséfone. Tinha presenciado acenaecorreraasalvaropastor.PediuaHérculesqueolargasse.Hérculesatendeu.

—Deusa,disseele,nãovimparabrigar,senãoparaconferenciarcomovossodivinoesposo.

—Acompanhe-me—respondeuPerséfone, e introduziu-oàpresençadorei.Minervino,EmíliaeoViscondeseguiramatrás,comotrêssarnas.

Hadesestavanotrono.Umdeussombrio,soturno,cujonomeosgregosnão gostavam de pronunciar. Todas as coisas a ele associadas eramterríveis e tétricas. Nada em seu reino que lembrasse as amenidades doOlimpo.Emíliaesfriouaovê-lo.Tevemedo.Foiumadasrarasvezesemquerealmentetevemedo.

Hérculesadiantou-seedisse:— Divindade, aqui estou por ordem de Euristeu para levar vivo a

MicenasocãoCérbero.Hadessorriu—equesorrisoimpressionante!Eraosorrisodumdeus

que conhece a sua quase onipotência. Perséfone, ao seu lado,majestosamente bela, tinha os olhos na figura titânica do famoso herói.ConheciatodaasuahistóriaeemseusmúsculossentiaaforçadeZeus,cujosanguecorrianasveiasdeHércules.

Depoisdaquele apavorante sorrisodeHades edumapausade algunssegundos— amais sinistra pausa que se possa imaginar— o deus dosinfernosdisse:

—Cumpriaordemdovossorei.LevaiCérbero,masnãoconsintoqueoataqueiscomarmanenhuma.

Hadestinhaamaisabsolutacertezadequecorpoacorpo,semusodearma nenhuma, Hércules, ou qualquer outro herói, jamais conseguiriaapoderar-se do guardador da porta do inferno. E se lhe deu licença paralevar Cérbero, foi na convicção de que o herói acabaria nos dentes domonstro. O seu sorriso era o antegozo do fim trágico duma criaturaconsideradainvencível.

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—Ide.Foi assim que deu por encerrada a audiência. Hércules fez uma

saudaçãopararetirar-se.Perséfoneodeteve.—Quemsãoessasfigurinhasqueoacompanham?—perguntoucomos

olhosemEmíliaenoVisconde.Hérculesfezaapresentaçãodeseuescudeiroedasua"dadeira".— Dadeira? — repetiu Perséfone, que pela primeira vez ouvia

semelhantepalavra.—Sim—respondeuHércules respeitosamente.—Emíliame fornece

idéiasnosmomentosgraves.Suainteligênciameassombra;eapedidodadeusacontouduasoutrêspassagensdacriaturinha.

Perséfonefezumarapiedado."Héraclesjáestevedemente.Correuquesarara.Vejoagoraquesualoucuraédasincuráveis..."foiopensamentodadeusa.

O herói retirou-se acompanhadodas "sarnas".Dirigiu-se para a portadoinferno.

—Láestáele!...—berrouEmília.Elesim.Cérbero...Láestavaàportadamansãodassombrasohorrendo

mastimde três cabeças.Bemcertooquediziam: três cabeçasdiferentes,corpodemastimecaudadedragão.

Cumprindo as exigências do deus, Héracles abandonou as armas quetrazia, inclusive a pele do leão. Como a usasse feito escudo, lealmenteconsideravaaquiloarma.

Masadadeirainterpôs-se.—Issonão,Lelé!Hadesfalouemarmas,nãofalouempele.—Masestapeletemsidoomeuescudo,jáqueéinvulnerável.— Isso sabemos nós emais ninguém.E como ninguém sabe que essa

peleéomelhordosescudos,meuconselhoéquenãoaponhadelado.Hércules,indeciso,olhouparaoViscondeeparaomensageirodePalas.

Ambos foram damesma opinião. Três votos contra um. Hércules, que jáhavialargadoapelerevestiu-anovamente—efoioquelhevaleu!...

Emília ficou de coração parado e fôlego suspenso quando o herói sedirigiuparaCérberocomomesmopassofirmecomquesedirigiraparaotourodeCreta.Impavidezeraali!Coragemeraali!

Ao vê-lo avançar, Cérbero piscou três vezes com os seus seis olhos,porque nunca em vida sua acontecera semelhante coisa: um homemdesarmado avançar contra ele. Mas a vacilação foi rápida. Seus olhosespirraram fogo, seus dentes se arreganharam — e Cérbero atirou-secontraoheróicomoímpetodosmastinsquesesabeminvencíveis.

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Oheróidesviou-sedoboteeagarrou-opordoispescoços,umbraçoemredordecadaum.MasoterceiropescoçodeCérberonãotevebraçoqueoagarrasse... e com aquela cabeça livre o canzarrão atacou. Ferrou umadentada no ombro do herói, que o teria liquidado se não fosse a peleinvulnerável.

Nela se quebraram metade dos dentes da boca atacante. Que lutatremenda foi! O jeito de Hércules era um só: matar uma das cabeçasagarradaspara libertarumbraço,e comessebraçoagarraropescoçodacabeçaatacante.OheróitinhaordemparalevaraMicenasocãovivo,masEuristeu não falara em levá-lo com as três cabeças vivas. Num esforçogigantescoHércules torceu umdos pescoços agarrados; depois que viu arespectivacabeçamorta,comosolhosesbugalhadosea línguapendente,desembaraçouobraçoecolheuopescoçodacabeçalivre.

Estavaterminadaaluta.Cérberomoleouocorpo.Suacaudadedragãoaplastou-senosolo.

Minervino, que para ali viera por ordem de Palas e tudo previra,aproximou-se com uma corda ajeitada em forma de focinheira. Hérculesenfiou-anumdos focinhosdomastim;depois ajeitououtra focinheiranooutro focinho. O terceiro dispensava esse cuidado — era o focinho dacabeçamorta.

Pronto. Só restava conduzir atéMicenas aquelemolambomaismortoquevivo—elásaiuHérculescomeleàscostas.

QuandoHadesviuoheróipassarpelafrentedopaláciocomCérberoàscostas,quasemorreudepaixão.Puloudotronoparalançarcontraeletodasasfúriasinfernais.Perséfoneodeteve.

—Palavradedeusnãovolta atrás—disse amajestosadeusa.—Fuitestemunha de que o autorizaste a capturar Cérbero, se o atacasse semarmas—eHéraclesnãousouarmanenhuma.

Hades caiu em si e voltou para o trono a remorder-se de ódioimpotente.Estavapresopelasuaprópriapalavra.

QuandoCaronteviureapareceroheróicomocãoàscostas,seguidodastrês sarnas, teve um colapso. Caiu sem sentidos no fundo da barca.Minervino tomou-lhe o remo e fez a travessia. Minutos depois estavamtodosnasuperfíciedaterra,ondesejuntaramaoscompanheiros.

Pedrinho arregalou os olhos nomaior assombro.Depois fez bico. Ele,um heroizinho tão promissor, havia estragado a sua carreira — haviaficadonarabada!

Um momento de medo o fizera permanecer na segurança da terrasuperficial enquanto Emília e o Visconde ousavam a imensa proeza de

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penetrarnamansãodeHades...— Então. Emília?— perguntou elemuito desconchavado; e ela, toda

importante:— Pois é. Fomos lá e salvamos Teseu e conversamos com Hades e

Perséfonee liquidamoscomaprosadeCérbero.Nossaaventuravai ser amaiscélebredetodasnosanaisdasgrandesfaçanhasdomundo.

—Eu,eu...—tentouPedrinhodesculpar-se.—Vocêpexoteou,Pedrinho,evaificardecaraàbandaportodaavida.

Teveocasiãodefazerumacoisaquenenhummeninomodernojamaisfeznemfaráeperdeu-a.Agoraéchorarnacama.

Pedrinhonãoseconteve:choroualimesmo.— E agora, Lelé?— perguntou Emília. — Vai levar esse monstro às

costasatéMicenas?Bobagem.Cachorroéalina focinheiraepuxandoporumacorda.

Hérculesviuqueeramesmo.LargouCérberonochão.Estavavivo,masdecorpomolecomooslutadoresnocautes.Minervinoobtevemaiscordae,improvisandoduascoleiras,passou-aspelosdoispescoços.Oterceiroficousemcoleiraporquepertenciaàcabeçamorta.

—Eupuxo-o,—Pedrinho—efoioseutristeconsolonaqueleTrabalhodeHércules:puxarpelacordaomonstruosomastimderrotado...

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III-DesapontamentodoRei

Quando iam se aproximando de Micenas, Pedrinho voltou-se paraHérculesegritou:

—Andocomumaidéia,amigo:entrarmosnacidadetodosjuntos,assimemprocissão...

—Porquê?—perguntouoheróiláatrás.— Para despedida. Meu palpite é que Euristeu não vai "nos" dar

nenhumoutroTrabalho.Hérculessorriu.—Vocênãooconhece,oficial.ElejámeimpôsdozeTrabalhoseimporá

outroseoutros,semprecomaesperançadequeumdiaeufracasse.Enãotemculpa,coitado.NãopassaduminstrumentodeHera.

— Não tem culpa mas bem que podia ser mais delicado, Lelé —interveioEmília.—Omodocomotratavocê,todoimportante,comoquemtemoOlimponabarriga,medeixatinindoderaiva.

Uma idéia lhe passou pela cabecinha: vingar-se de Euristeu — eimediatamentelheacudiuomeio.

— Uma coisa, Lelé: por que não havemos de entrar todos juntos nopaláciodeEuristeu?Estoucomvontadedeconheceraquilolápordentro.

Eramentira.Nãoestavaquerendoconhecercoisanenhumaesim"dizerumaboa"nasfuçasdo"antipatia".

Hérculesobjetou,achouinconvenienteaentradaemmassanosalãodeaudiênciasdorei,masEmíliainsistiuedestruiucompletamenteaobjeçãodoheróicomváriosargumentos"batatais".Hérculescedeu.

—Poisnãosejaessaadúvida.Entraremostodos juntosnopaláciodeEuristeu.

ChegadosaMicenas,nãosedirigiramaocampingcomodecostume—foram penetrando na cidade com a maior sem cerimônia. O fato depassaremcomCérberopelasruas—Cérbero,Cérbero,CÉRBERO!...otremendíssimoe terribilíssimomastim infernal, parecia-lhes a coisamaisnaturaldomundo.Eparamaiorassombrodospovos,vinhaCérbero,Cérbero,otremebundoCÉRBERO,puxadopelocabresto.Epuxadoporquem?Porummenino... Aquilo era atéprofanação-umverdadeiro fimdaGréciaHeróica.

Amultidãocomeçouajuntar-se.Todomundoacudiaàsjanelaseportasparaverapassagemdocortejo.

Asruasencheram-se.Formou-se logooclássico"acompanhamentode

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procissão."Centenasdecriaturassemserviçoetodaamolecadaformaramummagoteatrásdeles.

Súbito,umavoznamultidãogritou:— É ela!... É ela!... A feiticeirinha que virou nossos filhos em coisas.

Temosdeagarrá-laeentregá-laàjustiça.EmíliatremeuláemcimadeLúcio,masreagiudeprontoevoltando-se

paraHércules,láatrás,gritoucomvozressentida:—Lelé,olheaquiumcara-de-corujameameaçando...Hérculesfechouosobrecenhoeolhouparaajaneladeondehaviasaído

a voz. A voz engoliu em seco. Emudeceu. O olhar de Hércules parecia oolhardaMedusa.Petrificavaaspessoas.

Chegaram defronte ao palácio de Euristeu e foram entrando. Osguardas, assustadíssimos com a visão de Cérbero, jogaram as armas esumiram-se. O grupo foi varando, atravessando corredores e salas atéchegaraosalãodasaudiências.LáestavaEuristeunotrono,comEumolpo,oxereta,aolado.Aoversurgiraquelemonstrodetrêscabeças,seguropelacorda dum menino montado em centauro, e depois um asno com umafeiticeirinha em cima, emais ummilho de cartola no picuá e lá no fimoinvencível Hércules, Euristeu desmaiou. A cena fora muito imprevista emuitoforteparaosseusreaisnervos.Eumolpo,atremerdemedo,abanavaoamo,borrifava-lheáguanorosto.

OdesmaiodeEuristeu foi curto. Seusolhos abriram-se.Emília, então,queestavacomodiscursopreparado,"lascou":

— Senhor rei, aqui estamos de novo e para nunca mais. Chega deTrabalhos.Nãosomos"servosdagleba"eLeléémaisqueumherói—éumsemideusmaioremelhorquemuitosdeusesládoOlimpo.Temumcoraçãoque só eu sei. Por isso não quero que ele continue executando trabalhosperigosíssimos,inventadosporessecara-de-corujaqueestáaítodotreme-treme.Nãoqueroenãoquero,ouviu?DozeTrabalhosjá.Boaconta.

Uma dúzia. Além disso, Dona Benta está ansiando pela nossa volta,coitada. O grande Héracles vem comunicar ao pequeno Euristeu que vaisoltarnestesalãoobichoencomendadoepartirparalongesterras.Tenhodito.

O discurso de Emília achatou Euristeu como se fosse uma sola desapato. Viram-no olhar para Eumolpo como quem pede socorro, masEumolpoperderaatéavoz,demedo!

Pedrinho então soltou Cérbero ali na sala e fincou a espora emMeioameio sinal de retirada. O Asno de Ouro rodou nos pés—e Emíliaainda espichou um palminho de língua para o estarrecido soberano.

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Hércules também girou nos calcanhares e lá se foram todos. Na sala dotrono só ficaramos três:Cérbero, aolharpara aquelesdoishomens comexpressãodequemjánãoentendecoisanenhumadestemundo,eEuristeueEumolpoagarradosumaooutrodemedodomonstro.

Mas quando Hércules e seus companheiros alcançaram a rua, deramcomumgrupode autoridades locais.Amais graduadade todasdeteveoasnoedisseapontandoparaEmília:

—Emnomedalei,estápresa!—Homessa!Porquê?—Porcrimedefeitiçaria.Seuprocessoestáconcluso.Emdiadesteano,

lá na margem do ribeirão, a acusada virou em objeto de uso caseirodezenovemeninosdestacidade.

Hércules,quetinhaseaproximadoparaveroqueera,quis"espalhar"ajustiça.MasoViscondeergueu-selánopicuáefalou:

—Nadadeviolências,Hércules!SeatéosdeusesdoOlimpoencerramsuasbrigascomentendimentos,comonoraptodePerséfone,porquenós,mortais, não fazermos o mesmo? Na qualidade de advogado e defensorperpétuo de Emília, proponho o arquivamento do processo em troca da"desvirada"dosmeninosdeMicenas.

Ninguém entendeu. Os juízes e xerifes entreolharam-se com carasdasno.OViscondeexplicou:

—Sim.Domesmomodocomoaacusadavirouosmeninosemobjetos,poderá agora virar os objetos emmeninos, dessemodo devolvendo-os àformaprimitiva.

Os juizes e xerifes entreolharam-se de novo; e como na multidãoestivessemospaisemãesdosdezenovemeninos,umagritaselevantou:

—Sim,sim!Elaquedesvirenossosfilhosesuma-sedestasplagas.Estavalavradapelopovoadecisãodoprocesso.Comarestituiçãodos

meninos,ficavaoditopornãodito.Emíliaenrugouatesta.Depoissorriu.Comincrívelrapidezhaviaformuladoeresolvidoumproblema.Qualo

problema? Este: "De que modo uma varinha de condão, já só com dezviradas,podedesvirardezenovemeninosviradosemobjetos?"Sim,porqueseelagastaradezenoveviradasparavirá-los,tinhaagoradegastaroutrastantasparadesvirá-los.Este o problema. Agora, a solução: "Enfileirar no chão os dezenove

objetos,umjuntodooutrocomoteclasdumtecladodepiano,edepois,comapontadavara,daruma"escalacorrida", como fazemcomaunhacertostocadores de piano— rrrrrrrrrr...Dessemodo, comummesmo toque da

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varaeladesvirariaosdezenovemoleques.Gastaria,pois,sóumavirada.Asoluçãoteóricadoproblemafoiessa.Restavasaberseaexperiênciaa

confirmaria.TudopensoueresolveuEmíliaemmeiosegundo.Seupensamentoera

umrelâmpago.Tomandoentãoapalavra,disse:—Senhores,prontifico-meafazeraquinapraçadestepaláciooqueo

ViscondedeSabugosapropôseospaisdosmeninosquerem.AvarinhadecondãodeMedéiaestánaquelacanastra.

Pedrinhoveiodesceropicuáedespejá-lodoViscondeedacanastra.Emíliaabriu-a,tirouavaraeemseguida,entresuspiros,foiatirandoos

dezenove objetos obtidos com as dezenove viradas —o canivete, atesourinha,afacadeponta,orolinhodeesparadrapo...Aotirarorolinho,Emília pensou: "Já me utilizei de um pedaço. Será que o menino vaiaparecercomfaltadeorelhaounariz?"Depoisdetirá-lostodos,colocou-osno chão da rua em forma de teclado de piano, um coladinho ao outro.Restavasócorrerporcimadelesapontadavaraepronto.

MasEmília,semcertezadequeoseuprocessode"escalacorrida"fossedar certo, "pensou para adiante", como fazem os jogadores de xadrez, etomoucertasdisposiçõesquenomomentoninguémentendeu.

—Pedrinho—disseela—montee fiquefirmeemMeioameio.Lúcio,mantenha-seaquibempertodemim.Você,Visconde,montejá.

E,finalmente,voltando-separaHércules:— Erga-me em seus braços, Lelé. Tenho um particular a dizer no

ouvido.Oheróiergueu-a.OparticulardeEmíliaeraoseguinte: "Voudaruma

varadaem"escalacorrida"sobreaqueletecladodeobjetos,masnãopossogarantirqueessa idéiadêbomresultado.Seder,muitobem:osmeninosreaparecerãoeestátudoacabado.Senãoder,eutenhoqueosdesvirarumpor um, cada qual com uma virada. Ora, só tenho na vara dez viradas.Ficam,pois,novemeninossemdesvirada—ecomoé?A justiçaaquimeagarra, me prende e me condena. Para evitar isso é que estou tomandoestasdisposiçõesestratégicas.Corroavara.Deucerto?Muitobem.Nãodeucerto? Ah, você desce a marreta neste povo, espalha os juizes e xerifesenquanto nós nos botamos no maior galope rumo ao acampamento. Láarrumamos tudo num ápice, cheiramos o "pim" e adeus, Hélade! Se istoacontecer,épossívelquenãonosvejamosmais,Leléequerodespedir-meaquimesmo,edeulheumbeijonaface.Largue-menochãoagora.

Oherói,profundamentecomovido,largou-anochão.Emíliavoltoupara

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ondeestavamosobjetosdispostoscomoteclado.Tomouavaraedisseparaopovo:

—Atenção!Voucorreravaraporsobreestesdezenoveobjetosparaoreaparecimento dos dezenove meninos. O reaparecimento se realizarámeiominutodepoisdotoque.

Aespertíssimacriaturasabiamuitobemquetantoasviradascomoasdesviradas eram instantâneas, mas inventou a história do meio minutoparaganhartempo.Seacoisafalhasse,enquantoosmicenianosestivessemesperandopassarmeiominutoelesfincavamopénomundoepronto!Emília correu os olhos nos seus companheiros para verificar se todos

estavam a postos — e só então riscou a escala rrrrrrrr... cada "r"correspondendoaumobjeto.Tudocorreuexatinhoconformeateoria:osdezenoveobjetosviraraminstantaneamenteemdezenovemeninos!

Que festa foi! Dezenove pais e dezenove mães lançaram-se aosdezenovemeninos reaparecidos e abraçaram-nos com os olhos rasos delágrimas.Todosjáhaviamperdidoaesperançadereveroscoitadinhos.

Emília,demãosnacintura,gozavaacena.Quetriunfooseu!

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IV-DesasnamentodeLúcio

Tudo estava correndo muito bem. O povo de Micenas, que minutosantessópensavanolinchamentodeEmíliaeseuscompanheiros,passouaoextremooposto.

Eramaplausosemaisaplausos,efestinhaseconvitesparaumacoisaeoutra.

MasHércules e os picapaus nada aceitaram. Só queriamuma coisa: avolta para o acampamento. Lá estava o banho do ribeirão, o Templo deAvia. Lá estava a liberdade de movimentos e a ausência de "corposestranhos", comodizia o Visconde. "Que é o povo?Um conglomerado ouajuntamento de corpos estranhos entre si." E Emília costumava dizer:"Povo?Passo."

Devoltaaoacampamentoedepoisdojantar,queeraoúltimoqueiamterjuntosalinaGréciaHeróica,veioàberlindaocasodeLúcio.Quefazer?Soltá-lo seria um desastre: logo adiante o pegariam e lá ficaria elenovamente escravo, talvez dalgummau amo, desses que não têm dó demeterochicotenospobresanimais.Lúciopensounissoeimplorouqueonão soltassem. Queria que o levassem a uma festa de Ísis. UnicamentedevorandoasrosasqueossacerdotescostumamdepornoaltardadeusaéqueLúciopoderiadesasnar-se,voltandoàsuaformahumana.

—QueméessaÍsis?—perguntouEmília.O mensageiro de Palas, que misteriosamente aparecia e desaparecia,

respondeu:—ÉamesmaDeméteremsuaprimitivaformaegípcia.Nocomeçonão

havia Deméter — havia Ísis, uma deusa importada do Egito. Em certoslugaresháaindahojeadoradoresde Ísisquea festejam justamentenestaépocadoano.

Bom.TinhamdesairpelomundoemprocuradevelhosadoradoresdeÍsis.Emíliadanou:

—Maçada!NóscomtantaurgênciadevoltaraoPicapauAmareloeesteestupor...

Pedrinhointerveio:—Parecomosinsultos,Emília!QueculpatemLúciodoqueaconteceu?

Largá-lo aqui será a maior das crueldades. Ele tem sido um ótimocompanheiro,comgrandesserviçosprestados,sobretudoavoce.

—Reconheço—disseEmília,—masqueéumestupor,issoé.Foi-nosútil,masagoraestáatrapalhando.

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Lúcio quase chorou de sentimento. Suas orelhas murcharam com amaiorhumildade.Emíliacondoeu-se.

—PoisvamosembuscadatalÍsis.Euàsvezesdigocertascoisassóporímpeto—nãoédecoração.

AsorelhasdeLúciolevantaram-sedenovo.Depoisdobanhonoribeirãoedosonodaquelanoite,omaissossegado

quedormiramnaGrécia,láseforamnodiaseguinteatrásdosadoradoresdeIsis.

De caminho ia Hércules revelando tudo o que lhe tumultuava nocoração. Confessou-se gratíssimo pelo que os picapaus haviam feito.Chegouatéadeclararquepelomenosumterçodeseustriunfoscabiamaisaelesdoqueaele.

— Sim, porque se não fosse Emília, é bem possível que o javali doErimantome houvesse pegado. E no caso do boi de Creta, o verdadeiroheróifoiPedrinho.

—EoVisconde também—acrescentouEmília.—Nãoseesqueçadaargola.

Hérculesconcordou.— Sim, todos três me ajudarammuito. Todos três revelaram grande

inteligência,fazendo-mecompreenderqueseaforçaéumagrandecoisa,ainteligênciaéaforçadasforças.Vemdaíaminhaidéiasobreaeducação...

QuandoHérculessepunhaadesenvolverasuaidéiasobreaeducação,ostrêspicapauzinhosbocejavam.Tudoquantoeledizia,certodequeeramidéiasoriginaisepelaprimeiravezsaídasdeumcérebro,nãopassavadeidéiasemboloradaseatéjáaposentadasnomundomoderno.Emíliafechouadiscussãodaquelepontocomumexemplo:

— Claro que é assim, Lelé. Pois não vê o Visconde? Nasceu sabugo,comotodosossabugosdomundo,mascomaeducaçãorecebidadeDonaBentavirouoqueé:umsábiodecartola.

Eassim,conversandosobrecemcoisas, chegaramaumaaldeiamuitovelha. Nas aldeias velhas há sempre homens e mulheres muito velhos,genteconservadoraeapegadaaopassado.QuemsabesenãoexistiamalidevotosdeIsis?

Pedrinho foiperguntaraumanciãode longasbarbasbrancasqueviusentadoaumaporta.

— Bom velho, dizei-me: não haverá nesta aldeia devotos dumaantiqüíssimadeusaegípciadenomeIsis?

Oanciãoergueuparaeleosolhosembaciadosesorriu.—Comonão,menino?Hámuitosdevotos,eeusouumvelhosacerdote

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deÍsis.Pedrinhogritouparaobandoláatrás:—Pronto!...Demosnocentrodoalvo!HáadoradoresdeÍsisaquieaté

sacerdotes.Estebomvelhoéum.Todosseaproximaramdosacerdoteeoatropelaramcomperguntase

maisperguntas.—EquandoserealizamasfestasdeÍsis?—Justamentehoje,àtarde.Asrosasestãonoponto.Ísis era festejada com rosas, de modo que sua festa anual tinha de

coincidircomoapogeudasrosas.Ecomohaviarosasnaquelaaldeia!Lúcioespichavaosolhosparaosjardinzinhoseengoliaemseco.

Emíliaobservou:—Estanossaúltimaaventuraatéparecefitadexerifedomeioparao

fim:tudodácertinho,comosehouvessecombinação...Passaramodiaalinaaldeia, rodeadosdaquelespobres campôniosde

bocas abertas e olhos arregalados. Héracles entre eles! Um centaurinho!Ummeninodosséculosfuturos!Umafeiticeirinhadelínguasolta!UmAsnodeOuro!Umaranhodecartola!...Oassombrodapobregentenãotinhafim.

TãoalegreestavaLúciocomaidéiadeseupróximodesasnamentoquevoltaemeiazurrava.

—Porquezurra,Lúcio,jáquefalatãobem?—Pordespedida—respondeuele.Zurroparadespedir-medestapele

quedaquiapoucovouabandonar.ÁtardinhacomeçaramospreparativosparaafestadeÍsis.Todagente

colhia rosas emais rosas. O velho sacerdote armou o altar. Hércules e obandinhocolocaram-senaprimeirafila.Iatercomeçoacerimônia.

Ovelhosacerdotesaiu ládumasacristiaeaproximou-sedoaltarcomuma cesta de rosas nos braços, em atitude ofertória, como quem trazbandejadecafé.

—Éhora,Lúcio!—sussurrouEmília.Lúcio precipitou-se sobre as rosas com tamanho ímpeto que lá

derrubou o velho e gulosamente devorou as rosas, com cesta e tudo.Sobreveiootumulto.

—Blasfêmia! Blasfémia! ... emuitos fiéis se lançaramde porretes empunhocontrao irreverente. Iamdesancá-lo. Iammassacrá-lo. Iam linchá-lo...

Mas... que é do asno? Misteriosamente desaparecera. Procura queprocura, nada!Nadade asno!Muita gente esfregouos olhos, comoquemdiz:"Estareisonhando?"Ovelhosacerdotelevantou-se,tonto,e:"Queédas

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minhas rosas?"Nemasno,nemrosas.Emvezdisso,ummoçoestranhoaconversarcomapequenafeiticeira.

—Quebonitorapazvocêé,Lúcio!—diziaela.—Viredecostas,querover.Váatéalievolte...Sim,sim,umrapagão.ÉdeAtenas?

—Não.SoudeCorinto...Emíliapôsasmãosnacinturaebalançouacabeça.—Quemundoestenosso!QuemhádedizerqueummoçodeCorinto,

bonitoedesempenadocomoeste,jáfoiomeuburrodecarga...Bom.Lúciojánãotinhamaisnadaafazerali.Suaânsiadevoltarpara

casaeraenorme.Reverafamília,osamigos,anoiva...— Adeus, adeus, amigos! — disse ele.— Nunca me esquecerei das

nossasaventuras,nemdabondadecomquemetrataram.Adeus,Héracles,o grande! Adeus Pedrinho, pequeno herói moderno! Adeus centaurinhogentil! Adeus, Visconde, o mais sábio dos sabugos! Adeus, Emília —pequeninafadaqueseaquificasserevolucionariaestaGréciainteira...

Sónãosedespediudacanastrinha.Emíliareclamou:—Elatambémépersonagem,Lúcio.Eele,jálonge:—Adeus,canastrinhamaisricadepreciosidadesquetodososmuseus

domundo...Lúcio,muitolépidoeradiantecomareconquistadesuaformaantiga,ia

pulandodecontente.Davatrêspassoseumpulinho...Hérculessorriafeliz.Pelaprimeiravezsesentiaplenamentesatisfeito.

Masumpensamentomelancólicolheenrugouatesta.Emíliapercebeu.—Querepentinatristezaéessa,Lelé?Dopeitodoheróisaiuumsuspiro.—Nossa associação está no fim—disse ele.—Daqui a pouco vocês

parteme ficomaissozinhodoquenunca,aquinesta terrademonstrosedeusesvingativos.Acostumei-metantocomvocêsque...eengasgou.Eraacomoção.

Emílianãodissenada—maslevouaosolhososeulencinho...

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V-Belerofonte

DepoisdapartidadeLúcio,deramcomeçoaosarranjosparaaviagem.Que fazer das coisas ali do acampamento?Deixar de pé o Templo de

AviaparaqueosmolequesdeMicenasviessemprofaná-lo?Nunca!DeixarfincadososespequescomasesculturasdostrabalhosdeHércules?Não.

Emíliaveiocomumalembrança.—Podemosdemolirotemplo,arrancarasestacasefazerumagrande

fogueiraemhonraaPalas.— Feliz idéia! — exclamou uma voz conhecida. Emília olhou. Era

Minervino,"oaparece-e-desaparece".Estavaalidenovo.—VemvindodoOlimpo?— Sim. Acabo de estar com Palas. Minha deusa mostra-se

encantadíssimacomvocê,Emília.Andaacontarhistóriasda"feiticeirinha"atodasasdeusasdoOlimpo.

—EHera?— Ah, Hera está cada vez mais rabujenta e furiosa. Tem feito mil

queixas ao seu divino esposo, mas Zeus dá lá sua risadinha e é só. Eleconheceaesposaquetem.OsDozeTrabalhosquepormeiodeEuristeuelaimpôs a Hércules resultaram em doze derrotas. Hera já não sabe o queinventar. E vai enfurecer-se aindamais com essa fogueira que vocês vãoacenderemhonraaPalas.

—Poisqueseenfureça—berrouEmília.—Já"passei"essadeusa.Éomesmoquenãoexistir.Emudandodeassunto:Comoéo seuverdadeironome,Minervino?Istode"Minervino"foiinvençãominha.

—Dondeveioaidéia?— De Minerva, que vai ser o futuro nome de Palas em Roma, como

explicou o Visconde. Todos estes deuses vão mudar de terra. Seu nomeverdadeiroqualé?

—Belerofonte...Emíliaarregalouosolhos,nomaiordosassombros.—Belerofonte, aqueleheróiquenosapareceu láno sítiomontadono

Pégaso?—Issomesmo...OespantodeEmíliacontinuava.— Mas a cara, o ar, os modos de Belerofonte não lembram você,

Minervino...— É que, como mensageiro de Palas, mudo de aspecto conforme as

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circunstâncias.Emíliaduvidou.SeriaBelerofontemesmo?Epara"caçá-lo"perguntou:— Então diga: qual o outro herói que estava lá naquele tempo? O

vestidodelata?—D.QuixotedelaMancha,foicomovocêsmoapresentaram.Tinhaum

escudeirogorducho,muitocomilão.SanchoPança,creio...Emíliaencantou-se.Nãohaviaamenordúvida:aqueleMinervinoerao

mesmo Belerofonte de outrora, o famoso herói grego que lá surgiramontadonocavalodeasas.

— E onde anda Pégaso? Sabe que Pedrinho o viu nascer do corpodegoladodaMedusa?DegoladoporPerseu?

—Sim.Elemecontoutudo.EstavamaindaarememorarpassagensdeD.Quixotenosítio,quando

um tropel lhes distraiu a atenção. Um cavaleiro vinha no galope. "Quemserá?"

EraumdosguardasdopaláciodeEuristeu.Chegou,puloudocavaloedirigiu-separaHérculescomcaramuitoaflita.

—Senhorherói—disseeleprecipitadamente,vimpedirsocorro.Estáum horror no palácio. Sua Majestade Euristeu e o primeiro ministrocontinuamestarrecidosdiantedafigurahorrendadoCérberolánasaladotrono.Nãopodemsairdemedodomonstro,eosguardasnãoseanimamaentrarparasocorrerosoberano.Vimagalopeimplorarquevolteetiredopalácioaquelaabantesma.

Hérculesriu-se,comardedó.—MedodeCérbero!—exclamou.—MasCérberonãoémaisCérbero,

oantigoeterrívelguardiãodoreinodeHades.Nãopassadesombradoquefoi.Estávencido,destruídopordentro.

—Masnãosearredadelá,senhorherói,ecomosquatroolhosquelherestamolhaparaoreideummodoquearrasaonossosoberano.Ecomoninguémousatirá-lodasala,vimvoandopedirsocorro.

Hércules, sempre a sorrir, deu ordem a Pedrinho que fosse buscarCérbero.Pedrinhosaltousobreo lombodeMeioameio, fincouoViscondenagarupaelápartiuagalopeparaacidade.

SemoViscondeelenãosearranjava.Chegado ao palácio, Pedrinho foi entrando.Na sala do trono viu tudo

comonocomeço:EuristeuencolhidonotronoeEumolpoaseulado,pálidoetrêmulo.

OmastimdeHadesolhava-oscomunsolhossemexpressãoeporissomesmoterríveisparaaquelesdoispoltrões.Pedrinho,quehavialevadoum

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rolo de corda, fez gesto ao Visconde para que atasse a corda a uma dascoleirasdeCérbero.Osabuguinhosuspiroumascumpriuaordem:atouacorda à coleira de Cérbero, sem que o monstro opusesse a menorresistência. Em seguida Pedrinho puxou-o para fora. Lá na rua cavalgouMeioameioetocouparaoacampamento.Amultidãoaglomeradanasruasassistiumaravilhadaàquelaestranhissimacena:ummenino,montadonumcentaurinhoecomumaaranhadecartolanagarupa,apuxarpelocabrestoomonstromaisimpressionanteparaaimaginaçãodoshelenos—Cérbero,Cérbero,CÉRBERO,oterrívelguardiãodoreinodosmortos!

— E agora? — exclamou Emília quando os viu chegarem aoacampamento.

—Quevamosfazerdesteestupor?—TudoparaEmíliaeraestupor.Hérculesachoumelhormatá-loeenterrá-loporali.Emíliaopôs-se.—Não.Estou comuma idéia: levá-loparao sítiodeDonaBenta—e

pôs-searir.EstavaimaginandoosustodetiaNastácia...Ficouassentadoisso.LevariamMeioameioeCérbero.Muitobem.Agora,afogueiraeosacrifícioaPalas.Pedrinhodemoliuo

TemplodeAviaeamontooutudo.Pronta que foi a fogueira, o Visconde atafulhou capins bem secos e

acendeu-a com o último fósforo da caixa de fósforos da canastrinha daEmília. Minutos depois um lindo fogaréu lançava rumo ao Olimpo rolosnegrosdefumaça.

Emília adiantou-se e, erguendoos olhosparao céu, disse comvozdesacerdotisa:

— Palas, divina Palas, nós te agradecemos os benefícios e a ajudaconstantecomquenoshonrasteemnossasaventuras.Tuésadeusamaisbelaeboazinhade todas.Nãoandasaperseguirosgrandesheróis, comouma tal que eu conheço. Peço-te que apareças um dia lá em casa pararegalo e glóriadeDonaBenta eNarizinho.O teumensageiroBelerofontesabeondeé;jánosdeuahonradesuapresençanosdiasemquetambémláesteveD.Quixote.Estáaliumbemprecisadodetuagloriosaajuda,grandePalas!ÉumheróiocontráriodeHéracles:emvezdedar,apanhasempre.Mas com tua ajuda, grande deusa, dará cabo até domágico Freston quetantoopersegue.Tenhodito.

TodosaplaudiramoseudiscursinhoeBelerofontedeu-lheumbeijonatesta—porcontadePalas.

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VI-Despedidas

Tudo estava pronto para a volta. Emília abriu mais uma vez acanastrinha para dar balanço na colheita. Não faltava nada. Fechou-a denovocomachavinhaquetraziapendentedumcordelaopescoço.

—Pormimpodemospartir.AbagagemdePedrinhoerapequena;sóasesculturascomemorativas.O Visconde nunca andou com bagagens. Apenas trazia uma coisa

consigo,avelhacartola—eláestavacomelanacabeça,maisamarrotadadoquenunca.

OpesodapatadodragãodasHespéridestinha-adeixadoquenemlatademonturo.

Pedrinhomediuaspitadasdopódepirlimpimpimedeuumaparacadaum.

DepoiscalculouadeMeioameioeafortedoseaesfregarnosfocinhosdeCérbero.Masantesdeaspiraremopótinhamdedespedir-sedoherói.

Ah,comoforamcomoventesasdespedidas!—Hércules—dissePedrinho—vamospartir,maslevamosnocoração

a imagem do nosso grande amigo e bondoso companheiro de tantasaventuras.

Aprendemos a conhecer o maior coração que ainda existiu nestaHélade, o herói que é a verdadeira justiça sob forma humana... — ePedrinhoengasgou.Estavaemocionadodemais.

Emíliatomouapalavra.—Lelé,seeufossedizertudoquantosinto,ficavaaquiafalardurante

dez séculos. Você foi a primeira criatura que realmente me encheu asmedidas. Conheci lá no sítio inúmeros heróis da Fábula: D. Quixote,Belerofonte,PeterPan, oPríncipeCodadad,Aladino, os anõesdeBranca-de-Neve. Nenhum se compara a você, Lelé, porque além da maior forçavocê tem o maior dos corações. Pedrinho engasgou no discurso e eu jáestoucomeçandoameengasgar.Você,Lelé...—enãopodendoconteraslágrimas,Emíliarompeuemchoroeatirou-seaosbraçosdoherói.Hérculesrecebeu-a,tambémcomosolhosrasosdágua.Ele,ograndeheróinacionalgregoquejamaischorava,estavachorando...

O Visconde passou a mão disfarçadamente pelos olhos e tomou apalavra.

— Hércules! — disse ele. — Permita que eu também levante minhadébilefracavozparaumasaudaçãodedespedida.Nestegrandemomento

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euqueria teraeloqüênciadeDemóstenesouCíceroparabemdizer tudoquantomepassapelamente.Masaemoçãoembarga-meavoz.Nãopossocontinuar,comoPedrinhoeEmílianãopuderam...

EoViscondetambémengasgou.Belerofonteabriuabocaparafalar,masnãosaiunada.Engasgadíssimo

também.Houveumalongapausadesilêncio—apausadoengasgogeral.Quandoserenaram,Hérculestomouapalavraedisse:—Meusamigos:nãoseifalar.Nãorecebiaeducação...EmíliaolhouparaPedrinho....que é o que transforma as criaturas. Minha educação foi só física,

comomuitobemdizomeuescudeiro.Criaram-meaoarlivre,ensinaram-meadesenvolverunicamenteosmúsculoseaagilidade.Quantoaoresto,fiquei como nasci: um terreno baldio, como diz a Emília, onde o matocresceusemdisciplina.Elaachaqueumacriaturasemeducaçãoécomoumterreno onde só hámato. A educação é que transforma esse terreno emcanteiro de cultura das artes e ciências úteis e belas.Muito aprendi comvocês. Minhas conversas com Emília, com o Visconde e Pedrinho foramverdadeiras lições de que jamais me esquecerei. Sempre convivi entrebrutos — reis cruéis, deuses vingativos, heróis do meu molde, gente"ineducada", comodiz oVisconde. Fui encontrar "produtos da educação"emvocês.NomeuoficialPedrinhoviummodelodeheróidumnovotipo.Aprecieimuito as suas qualidades, e sobretudo a suaprudência. Por quenãodesceuconoscoaosinfernos?Porprudência—ehojeeuperceboqueaprudênciadeveserumadasmaisbelasqualidadesdoquevocêschamam"heróimoderno".

Pedrinhobaixouosolhos.Hérculesprosseguiu:—Emíliameenlevoupelasuapresençadeespírito,pelavivacidadee

prontidãodainteligência,peloengenhodesair-sebemdetodososapuros.E que idéias felizes! A de cortar a ponta de uma das asas do abutre dePrometeu foi "batatal", como ela diz. Tão simples o expediente— e nemqueeupensasse cemanosmeocorreria.Certas coisasda "dadeira"estãoacimadomeuentendimento.

O "faz-de-conta",porexemplo.Pensoepensonissoenãoentendo.Vi,senti, presenciei os maravilhosos efeitos desse "recurso supremo", masconfessoquenãoentendi.Emíliaexplicou-mocomasuaadmirávelclareza—masnãoentendi.

Emíliariu-separaPedrinho.Hérculescontinuou:—Equedireidomeuescudeirinho?Háneleumaalmagenerosissima

de herói sob as singelas exterioridades dum grande sábio. É o tipo do

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"heróiresignado".Comoémodestoehumilde!Nãoovigabar-senemumasóvez.Executaasincumbênciasmaisperigosassemumsóprotesto...

—Issonão!—berrouEmília.—Bemqueelesuspira.—Sim, suspiraapenas.Haveránadamaiseloqüentequeahumildade

do suspiro? Em situações em que o comum das criaturas se debate,protesta, grita, ele suspira com todaadiscrição.Tenhoemmeusouvidostodososseussuspirinhos:quandorecebeuordemdelevaroanzol iscadoaoabutredePrometeu,quandotevedepegaraargoladolaçonaaventurado touro de Creta, quando foi deitar ópio na água do dragão de cemcabeças...Foioúnicodonossogrupoquesofreudesastre,poisquebrouapernaequemoviulamuriar-se,queixar-se?

—Elenãosentedor—disseEmília.—Ésabugo...—Nóséquenãosentimosadordosoutros—respondeuHércules.—

Se o Visconde é um ser vivo, claro que tem de sentir dor. Quando, nachegada,PedrinhomepropôsoViscondeparaescudeiro,ri-me,comoeranatural. Julguei que fosse brincadeira. Hoje, duvido que qualquer outroescudeiromeajudassetanto.Possoatéafirmarqueumoudoisdosmeustrabalhoschegaramafeliztermograçasàsuadiscretaeoportunaatuação.

OVisconde,decabeçabaixa,ouviamodestamenteoslouvoresdoherói.Hérculesaindadissemuitacoisaelogiosasobreseuscompanheiros;depoisiavoltandoaoassuntoeducação.

MasEmíliainterrompeu-o:— Pare aí, Lelé. Já conhecemos as suas idéias sobre o assunto. A

educaçãoéquefazascriaturas,nãoéisso?Jásabemos.Hércules parou. Pedrinho veio apertar-lhe a mão. O herói abraçou-o.

Depois veio o Visconde com a mãozinha espichada. Hércules abraçou-oduasvezes.DepoisveioEmíliacomosdoisbraçosabertos.Atirou-se-lheaopescoço, abraçou-o e beijou-o furiosamente. Parecia um sabiá bicandolaranja.

Havia chegado ahoradapartida. Pedrinhodeu asúltimas instruções.DepoismandouqueoViscondeesfregasseopirlimpimpimnosfocinhosdeCérbero, que lá estava de cabeças pendidas, amarrado a um tronco. OVisconde suspirou discretamente e foi cumprir a ordem. Hércules riu-se,ponderandoláconsigo:"Aprudênciadosheróizinhosmodernos..."

OViscondeesfregouopónosdoisfocinhosdeCérberosemqueopobrecão desse por isso. Soou um fiun grosso, como de bordão de Viola— eCérberodesapareceu...

—Agoranós!—gritouPedrinho.—Adeus,Hércules,grandeamigo!—Adeus,Lelé!—berrouEmília.

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— Adeus, zênite da mitologia grega! — saudou cientificamente oVisconde.

Hérculesrespondeunumasópalavra,dirigidaatodos:—Adeus!...Pedrinho contou:Um...Dois... eTRÊS!Quatro fiuns soaramaomesmo

tempo e os quatro companheiros de Hércules sumiram-se como porencanto.

Oheróiainda ficoualipor longo tempo,sentadoaumapedra, juntoàfogueira do sacrifício a Palas. E como até Belerofonte houvessedesaparecido,nãotevecomquemdesabafar.Depoislevantou-seeláseguiude cabeça baixa para a cidade de Corinto. Ia em procura de Lúcio paraconversarsobreospicapauzinhos.

Eraummeiodematarassaudades...

FIM