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A PAISAGEM NEGADA, TRANSFORMADA, (RE) DESCOBERTA, E A PAISAGEM DESEJADA NA CONTEMPORANEIDADE AMAZÔNIDA. MERGULHÃO, PEDRO TARCIO PEREIRA Universidade Federal do Amapá, Curso de Arquitetura e Urbanismo, [email protected]. RESUMO: A cidade de Belém-do-Pará nestes primeiros anos do século XXI ainda se beneficia de paisagens identificáveis à região amazônica, como o rio Guamá, a baia de Guajará, e trechos de floresta nativa. No entanto, estes são percebidos somente em parte na paisagem. Primeiramente, em consequência do estabelecimento da cidade portuguesa, “de costas” para o rio. Posteriormente, devido à expansão urbana, quando igarapés e alagados presentes no sítio foram transformados e distanciados de suas características formais. No presente, projetos urbanos veem sendo realizados em Belém de modo a promover a incorporação na cidade, ainda que contemplativa, da paisagem amazônica ribeirinha, sem a incorporação nos projetos, do resgate da estrutura hidrográfica original do sítio. Este quadro resulta de processos políticos, econômicos e sociais que promoveram, no passado, e ainda promovem no presente, esse distanciamento. Como consequência, atesta-se: negação e transformações indiscriminadas de paisagens e perda de identidades paisagísticas; desequilíbrio ambiental; desqualificação estética; comprometimento da qualidade de vida da população etc. Por outro lado, no século XXI, surge outra cidade, a que valoriza e se volta para os elementos naturais, em projetos governamentais ou investimentos privados, construídos às margens do rio, onde a paisagem é “vendida” como um bem privado. Esta postura ideológica nos parece conceitualmente problemática à cidade, inspirando maiores reflexões sobre o processo de “evolução” da cidade de Belém, onde a paisagem, operacionalizada na sua origem, desvalorizada ao longo dos anos, (re) descoberta e “desejada” na contemporaneidade, clama por um futuro que a conserve como parte cultural inserida em uma estrutura paisagística amazônida, equilibrada e identificável. Pelo exposto, o presente estudo pretende refletir sobre o estabelecimento e a expansão da cidade de Belém-do-Pará e sua relação para com a paisagem ao longo do tempo. Palavras-chave: Paisagem amazônica; Cidade ribeirinha; Belém- do-Pará. Palavras-chave: Paisagem amazônica; Cidade ribeirinha; Belém-do-Pará.

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A PAISAGEM NEGADA, TRANSFORMADA, (RE) DESCOBERTA,

E A PAISAGEM DESEJADA NA CONTEMPORANEIDADE

“AMAZÔNIDA”.

MERGULHÃO, PEDRO TARCIO PEREIRA

Universidade Federal do Amapá, Curso de Arquitetura e Urbanismo, [email protected].

RESUMO: A cidade de Belém-do-Pará nestes primeiros anos do século XXI ainda se beneficia de paisagens identificáveis à região amazônica, como o rio Guamá, a baia de Guajará, e trechos de floresta nativa. No entanto, estes são percebidos somente em parte na paisagem. Primeiramente, em consequência do estabelecimento da cidade portuguesa, “de costas” para o rio. Posteriormente, devido à expansão urbana, quando igarapés e alagados presentes no sítio foram transformados e distanciados de suas características formais. No presente, projetos urbanos veem sendo realizados em Belém de modo a promover a incorporação na cidade, ainda que contemplativa, da paisagem amazônica ribeirinha, sem a incorporação nos projetos, do resgate da estrutura hidrográfica original do sítio. Este quadro resulta de processos políticos, econômicos e sociais que promoveram, no passado, e ainda promovem no presente, esse distanciamento. Como consequência, atesta-se: negação e transformações indiscriminadas de paisagens e perda de identidades paisagísticas; desequilíbrio ambiental; desqualificação estética; comprometimento da qualidade de vida da população etc. Por outro lado, no século XXI, surge outra cidade, a que valoriza e se volta para os elementos naturais, em projetos governamentais ou investimentos privados, construídos às margens do rio, onde a paisagem é “vendida” como um bem privado. Esta postura ideológica nos parece conceitualmente problemática à cidade, inspirando maiores reflexões sobre o processo de “evolução” da cidade de Belém, onde a paisagem, operacionalizada na sua origem, desvalorizada ao longo dos anos, (re) descoberta e “desejada” na contemporaneidade, clama por um futuro que a conserve como parte cultural inserida em uma estrutura paisagística amazônida, equilibrada e identificável. Pelo exposto, o presente estudo pretende refletir sobre o estabelecimento e a expansão da cidade de Belém-do-Pará e sua relação para com a paisagem ao longo do tempo. Palavras-chave: Paisagem amazônica; Cidade ribeirinha; Belém-

do-Pará. Palavras-chave: Paisagem amazônica; Cidade ribeirinha; Belém-do-Pará.

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

1 INTRODUÇÃO Ao longo do tempo, a cidade de Belém do Pará vem sendo objeto de transformações

descuidadas no que tange à conservação de paisagens reconhecíveis à região

amazônica. Estas características, na contemporaneidade, são cada vez menos

percebidas na cidade, vistas como ilhas-museus, salvaguardadas em parques,

tombamentos, museus, etc. resistindo à força modernizadora, capitalista e

transformadora presente nas cidades amazônicas. Este processo vem ocorrendo

desde o estabelecimento da cidade portuguesa, “de costas” para o rio e,

posteriormente, com os booms econômicos, como o da borracha; seguidamente, em

decorrência da abertura das rodovias, como a Belém-Brasília; e, na

contemporaneidade, pela adoção de projetos políticos de inserção da cidade a

contextos mundiais com a adoção de modelos pós-modernistas arquitetônicos,

urbanísticos e paisagísticos, como o empreendedorismo urbano e o marketing da

cidade.

Esses projetos urbanos vêm sendo realizados em Belém de modo a promover a

incorporação na cidade, ainda que contemplativa, da paisagem amazônica ribeirinha;

sem, no entanto, resgatar a estrutura hídrica do sítio original da cidade.

Este quadro resulta de processos políticos, econômicos e sociais que promoveram, no

passado, e ainda no presente, o distanciamento da cidade de sua paisagem. Como

consequência, atesta-se a negação e transformações indiscriminadas de paisagens,

com perda de seu reconhecimento; desequilíbrio ambiental; desqualificação estética;

comprometimento à qualidade de vida da população, etc.

Este caminho adotado parece conceitualmente problemático à cidade e inspira

maiores reflexões sobre o processo de “evolução” da cidade de Belém, no que

concerne à paisagem, ocorrido ao longo do seu tempo de existência e, a partir do seu

marco fundacional, 1616. Demonstrando que a paisagem característica amazônica,

presente no sítio de Belém, onde predominavam os elementos naturais, como rios,

igarapés, alagados e floresta, foram nos primeiros anos e na modernidade, explorados

e negados como paisagem, mas que, na contemporaneidade, parecem ter sido

descobertos pelo Estado e pelo capital imobiliário.

Deste modo, o presente estudo pretende refletir sobre o estabelecimento e a

expansão da cidade de Belém do Pará e sua relação para com a paisagem

reconhecível à região amazônica, no que se refere à conservação de paisagens.

Para a compreensão da evolução histórica da formação de cidades, autores clássicos

da história do Urbanismo, como Choay (1980); Benévolo (2009); Goitia (1989) são

revisados. Para o estudo da paisagem belenense e da implantação e evolução do

espaço urbano de Belém, com vistas à paisagem cultural e a ecologia da paisagem,

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serão aporte teórico, autores como Araújo (1998); Nunes; Hatoum (2006); Moreira

(1966); Penteado (1968); Spirn (1995).

Em seguida, será lançado um olhar sobre as recentes intervenções governamentais e

privadas na orla fluvial de Belém que pretenderam resgatar e privatizar o acesso à

paisagem da baia de Guajará e do rio Guamá baseado nos estudos de Trindade Jr.

(2005) e Pinto (2014).

Acredita-se que esta reflexão se constituirá em mais um olhar sobre a Amazônia e

suas paisagens, incluídas as cidades, de modo a contribuir para a necessária e

urgente produção de estudos sobre a região. Espera-se que esses estudos venham a

auxiliar nas conduções de planos, planejamentos, projetos e ações de modo a

promover a conservação de paisagens.

2 A PAISAGEM E A EDIFICAÇÃO DA CIDADE

O homem, ao fundar cidades, transforma a paisagem para atender as suas

necessidades biológicas e culturais.

Historicamente, a edificação de cidades esteve condicionada a elementos naturais da

paisagem, como montanhas, mares e rios, já que eles serviam como defesa ou para

favorecer a economia do lugar.

Na Amazônia, o rio provê a vida, assim como é o principal meio de ligação entre

cidades, possibilitando o desenvolvimento das “relações” entre homens, culturas,

projetos, entre outros. Interesses políticos e econômicos, associados às conquistas

territoriais, determinaram, no passado, o desequilíbrio de paisagens, em parte, com o

surgimento de cidades.

Essa relação conflitante entre o homem, a cidade e a paisagem foi ao longo da história

humana, permeada pelo desejo de exploração dos recursos da natureza, o que

provocou transformações e a negação de elementos naturais da paisagem existente.

Todavia, a história registra, já na Antiguidade, exceções ao processo moderno de

implantação de cidades, pois algumas civilizações adequavam suas cidades à

paisagem, como mostra Benévolo (2009), ao discorrer sobre a cidade na Grécia

Antiga:

A cidade, no seu conjunto, forma um organismo artificial inserido no ambiente natural, e ligado a este ambiente por uma relação delicada; respeita as linhas gerais da paisagem natural, que em muitos pontos significativos é deixada intacta, interpreta-a e integra-a com os manufaturados arquitetônicos (BENÉVOLO, 2009, p. 79)

Outras cidades, em períodos históricos posteriores, ainda construíram suas cidades

adaptando-as à paisagem do sítio onde foram edificadas. Roma, já na Antiguidade,

com uma população de um milhão de habitantes, conservou suas colinas, por exemplo

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(BENÉVOLO, 2009).

Na Modernidade, tentou-se resgatar a natureza perdida das cidades com a Revolução

Industrial e a Cidade Radiosa, de Le Corbusier, devia ser rodeada de parques e

espaços verdes.

Entretanto, ainda que com essas propostas, a Modernidade não consolidou a

aprendizagem do passado, já que muitas cidades foram edificadas desconsiderando a

cultura e a estrutura dos elementos geográficos presentes na paisagem, caminho este

que provocou graves problemas ambientais a elas, como atesta Spirn (1995):

[...] A desconsideração dos processos naturais da cidade é, sempre foi e sempre será tão custosa quanto perigosa. Muitas cidades sofreram com o erro de não levar em conta a natureza: Los Angeles e Nova Iorque sofrem com a qualidade inadequada do ar, três dias em quatro, resultado tanto da forma urbana como dos meios de transporte; a cidade do México afundou 7,5 m por não ter reconhecido a relação entre a água e a estabilidade do solo [...] (SPIRN, 1995, p. 26)

No Brasil moderno, o quadro de transformação descuidada da paisagem não seguiu

caminhos diferentes aos atestados por Spirn (1995). No seu estudo clássico sobre a

geografia de Belém do Pará, Penteado (1968) testemunha esse desrespeito à

paisagem, quando fala da importância dos igarapés para a cidade de Belém:

Representaram, no passado, um notável papel, quer como elementos de defesa, quer como ancoradouros para pequenas embarcações ou como fornecedores de água para a população; hoje, em parte aterrados ou canalizados, como os igarapés do Piri e das Armas estes igarapés foram transformados em canais de escoamento de águas pluviais e servidas. (PENTEADO, 1968, p. 90).

Rosa Kliass, no Congresso Internacional da Associação Brasileira de Arquitetos

Paisagistas em 2006, destacou a importância do arquiteto paisagista para o

planejamento urbano, por considerar que antes das cidades, já existiam as paisagens,

e que o papel desse profissional é estabelecer um diálogo profícuo entre paisagem,

homem e cidade.

Nesse sentido, Braise Cendrars relatou extasiado seu contentamento visual pela baía

de Guanabara: “C’est le Paradis terrestre!”; no entanto, acredita-se que ainda é

possível no presente, conservar o paraíso descrito por Cendras nas cidades, por meio

de projetos bem elaborados de intervenções na paisagem, desde que o homem

exercite suas capacidades de homo sapiens nas suas criações, como no exemplo do

Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, que segundo parecer da ABAP (2006):

A integração do parque à paisagem natural fica evidente quando se usufrui de seus espaços internos, que permitem perceber que

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caminhos, jardins e massas vegetais se complementam em permanente movimento muito próximo às linhas da natureza, à exuberante paisagem natural representada pelas montanhas – o Pão de Açúcar entre elas – e a Baía de Guanabara. As perspectivas, que se descortinam de todos os seus ângulos, valorizam a percepção destes elementos da paisagem, constituindo um dos principais cartões postais de nossa cidade. (ABAP, 2006, p. 2).

Belo exemplo de projeto urbanístico e paisagístico, ainda que o Parque do Flamengo

tenha sido construído a partir do aterro de uma larga faixa conquistada ao mar,

utilizando-se o material proveniente do “desmonte” parcial do morro de Santo Antônio.

O que parece, em termos de paisagismo, possível e comprovadamente justificável, em

vista da articulação urbana do Rio de Janeiro entre as zonas Norte e Sul; e em termos

qualitativos paisagísticos, como atesta Abap (2006).

Em resumo, a cidade deve ser construída e reconstruída pelo homem e para o

homem, considerando racionalmente sua cultura e natureza, ou como disse Lévi-

Strauss sobre a cidade: [...] “É ao mesmo tempo objeto de natureza e sujeito de

cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência” (LÉVI-

STRAUSS apud MAGNANI, 1981, p. 117).

3 A PAISAGEM NEGADA, TRANSFORMADA, (RE)DESCOBERTA, E A

PAISAGEM DESEJADA NA CONTEMPORANEIDADE NA AMAZÔNIA

A dominação portuguesa da Amazônia durante o século XVII se fez pela ocupação

militar, religiosa e econômica. A militar, como garantia da posse da terra; a religiosa,

com as atividades catequistas das ordens missionárias, principalmente as jesuítas; e a

econômica, motivada pelos esforços dos portugueses na busca pelas drogas-do-

sertão e pelos escravos indígenas.

Porém, a ocupação da Amazônia deveu-se desde o primeiro momento, muito mais do

que a qualquer ideal civilizatório ou catequético, à consolidação da posse da terra e à

busca do imaginário do Eldorado que a região personificava.

A existência do grande rio, visto como uma via de ligação com o ouro das regiões

andinas foi uma das principais razões que suscitou o interesse de ocupação da região,

Chambouleyron (2006) faz uma reflexão sobre a ocupação da Amazônia seiscentista e

relata que:

A Amazônia portuguesa foi conquistada por soldados portugueses e “brasileiros” vindos do nordeste do Brasil, no início do século XVII. A presença européia na costa norte e na Amazônia, principalmente, de franceses, ingleses e holandeses, foi o elemento central do esforço português (nessa época dependente da coroa de Castela), que organizou a conquista da região. Após a tomada de São Luís aos franceses, em 1615, os portugueses fundaram, na desembocadura

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do Amazonas, a cidade de Belém do Pará, em 1616. [...]. De fato, para vários autores, essa cidade representou o centro fundamental da expansão e dominação portuguesa de todo o vale amazônico (CHAMBOULEYRON, 2006, p. 1 ).

Estabelecidos na região, os portugueses enfrentaram a resistência nativa e de outros

europeus, notadamente dos franceses e holandeses pela posse da Amazônia, entre

1616 e 1637. Somente em meados do século XVIII, graças ao Marquês de Pombal, a

região foi objeto de uma política colonial propriamente dita e há um período de

desenvolvimento de porte para a capitania.

Passado o primeiro momento da ocupação das novas terras pelos portugueses, a

Amazônia continuou a ser a destinação de aventureiros em busca de riquezas

naturais. Desde modo, a região vem sendo objeto de cobiça e explorações contínuas

de suas riquezas desde seus primeiros tempos, e ainda no presente.

Booms econômicos; “corrida do ouro”; grandes projetos “desenvolvimentistas”; que, na

maioria das vezes, são pensados e produzidos fora da região e implantados

desconsiderando a conservação de paisagens e à revelia das necessidades das

populações locais.

Além de, referente ao conceito contemporâneo de desenvolvimento sustentável, que

apregoa a capacidade da humanidade de suprir as suas necessidades no presente

sem comprometer as das futuras gerações, em se tratando de Amazônia, ainda se

mostra turvo e distante de pautas e projetos políticos, e de ainda não incorporado a

cotidianas das populações.

Na maioria dos casos, na Amazônia, posteriormente aos planos, projetos e ações

exploratórias e políticas, o que resta são paisagens degradadas e abandonadas pelo

poder público e empresa empreendedora, além de uma população privada de recursos

que garantam a sua permanência em seus locais originais e vendo-se obrigada a

migrar para a cidade. Esta, já degradada e problemática em sua forma e

funcionamento, condiciona a instalação dessa população em áreas constituídas por

elementos naturais outrora preteridos e agora valorizados pelo capital imobiliário,

como a orla da cidade.

No que se refere ao contexto belenense, o local da implantação da cidade foi

determinado por razões de consolidação territorial. Belém foi fundada há cerca de 100

km do Oceano Atlântico, em sítio não superior a 16 m (PENTEADO, 1968), de onde se

tem uma ampla visão da entrada da baía pelo oceano. Estes condicionantes do sítio

comungaram com o modelo de urbanismo militar português, cujas diretrizes eram

edificar bases militares (fortificações) para garantir a posse e a defesa do território, de

onde eram escoadas as riquezas, modelo este já praticado em outras colônias

portuguesas, denominado por Araújo (1998) como “urbanismo colonial português”.

Deste modo, a cidade de Belém se implanta primeiramente às margens da baia de

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Guajará e pouco a pouco se desenvolve “de costas” para a paisagem de rio, a partir

da rua do Norte (primeira rua de Belém), com suas edificações voltadas para o

continente e “de costas” para o rio (Figura 1).

Essa primeira configuração já sugere o desenrolar da conformação futura da cidade,

onde o rio era visto pelo colonizador como meio de escoamento das riquezas da terra,

além de ser um elemento natural importante para a manutenção operacional da vida

na cidade, como a provisão de alimentos, as práticas de higiene, a lavagem de roupas,

além de servir ainda como esgoto e lixeira da cidade. A partir dessa primeira

conformação urbana, a cidade cresce, persiste no modelo inicial e se desenvolve ao

longo da baía de Guajará e do rio Guamá, sempre voltada “de costas” para a

paisagem de rio.

Simultaneamente à ocupação da margem do rio, a cidade se expande em sentido

diagonal ao rio, distanciando-se deste e transformando os aterros ou “ensecamentos”,

além dos igarapés e alagados presentes no sítio, como o do Piri 1 (Figuras 1 e 2),

vistos como barreiras, e não, segundo Lynch (1980, p.51), como “limites na cidade que

podem assumir um caráter de costura entre dois lugares para a configuração da forma

e da imagem da cidade”.

Figura 1 – Planta de Belém (Século XVII) indicando a rua do Norte

Fonte: PENTEADO (1968, p.100-101)

1 O Alagado do Piri “era uma área baixa, pantanosa, que se transformava num lago na estação

das cheias, e no verão secava” (ARAÚJO, 1998, p. 247) e representava um problema de ordem sanitária, em decorrência de suas águas paradas, e um entrave à expansão da cidade no sentido leste. Desse modo, dois projetos foram propostos, na então Belém do século XVIII, para a resolução do problema: o primeiro, do engenheiro Gronsfeldf, sugeria a manutenção desse elemento geográfico, transformando-o em um lago permanente (ARAÚJO, 1998, p.247). O segundo projeto, do também engenheiro Teodoro Constantino de Chermont, propunha o ensecamento do Piri, iniciado em 1779 (TRINDADE JR., 2005, p.21) e concretizado no século XIX (ARAÚJO, 1998, p.253).

Baía de Guajará

Forte do Presépio (Local de fundação da cidade, em 1616)

Rua do Norte (primeira rua de Belém)

Igarapé do Piri (aterrado no século XIX)

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Figura 2 – Planta antiga de Belém com o Alagado do Piri

Fonte: ARAÚJO (1998, p. 226)

Avalia-se que a não manutenção dos elementos naturais e da forma geográfica do

sítio se constituiu em um grande erro e atentado à paisagem “natural” de Belém, já

que esse caminho provocou o surgimento de áreas de baixadas, alagáveis, sem

infraestrutura básica, e que no presente, demandam custos vultosos de urbanização,

segundo o modelo governamental adotado de drenagem das bacias hidrográficas do

sítio de Belém.

Essa opção técnica moderna imprimiu à cidade uma paisagem árida, distante do

reconhecimento da paisagem amazônica de rio e floresta. Considera-se deste modo

que a população belenense é privada dos benefícios ambientais, como a

predominância dos ventos. Hoje, a cidade está, em grande parte, sitiada pela

construção nas margens do rio e vem perdendo a ventilação predominante, bloqueada

pelas construções. Vento este que o urbanista Joaquim Guedes, soube tirar proveito

em sua proposta para a vizinha cidade de Barcarena, nos anos 1980, na qual propôs

um traçado urbano em proveito dos condicionantes climáticos amazônicos, propondo

largas avenidas em diagonal, para a captação dos ventos dominantes para o interior

da cidade.

No presente, quando Belém beira seus 400 anos, pergunta-se: qual a paisagem que

se quer para ela? Qual a forma que se pretende configurar a cidade contemporânea?

Se for feito um sobrevoo sobre Belém se vê uma cidade às margens do rio, com uma

massa urbana que se expande para os lados, margeando o rio. E em sentido oposto,

sem forma definida, e que se impõe negando seu sítio natural, tentando manter

pequenos bolsões de verde na cidade (Figura 3).

Alagado do Piri (ensecado no século XIX)

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Figura 3 – Vista aérea de Belém

Fonte:<Skyscraper.com>

O que choca e, ao mesmo tempo, reconforta a vista, é a percepção no lado oposto do

rio, em frente a Belém, a floresta ainda preservada, que se impõe e sinaliza que

estamos sobrevoando a Amazônia. Além disso, faz com que a cidade amorfa

visualizada seja incoerente à paisagem da região, daí ela precisar ser repensada,

revista em seu modelo de expansão, e retransformada em uma nova cidade, conforme

o conceito de paisagem cultural (UNESCO, 2005), de modo a reconhecer as porções

singulares dos territórios, onde a inter-relação entre a cultura e o ambiente natural

confere à paisagem, uma identidade singular.

A sociedade contemporânea representada por novas políticas de gestão estatal, como

o empreendendorismo urbano, lança mão de projetos de forte apelo estético e

mercadológico, no que tange à “venda de paisagens” (MAYRINCK, 2009) e

questionável substância quanto à capacidade de esses projetos contribuírem para a

estruturação urbanística e paisagística de retomada de elementos culturais

reconhecíveis da paisagem amazônica na cidade de Belém.

O rio, negado no passado como paisagem, no presente, é redescoberto pela

sociedade como objeto de contemplação, amparo político e de capitalização de lucros

para a iniciativa privada.

Isto é percebido a partir de 1994, quando o Estado implantou como política estratégica

de gestão urbana, o empreendendorismo urbano, pautado no marketing da cidade.

Investiu grandes recursos financeiros em obras de restauração de bens arquitetônicos

que estavam em estado de avançada deterioração, assim como na implantação de

obras de infraestrutura e embelezamento da cidade para fins de desenvolvimento do

turismo no estado. Algumas dessas obras denominadas “janelas para o rio” tiveram

como mote ideológico, o resgate da paisagem “natural” da cidade, impedida do acesso

da população ao longo da expansão da cidade.

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Obras do Governo do Estado, como a Estação das Docas, o Projeto Feliz Lusitânia, o

Mangal das Garças (Figura 4); e da Prefeitura de Belém, como o Ver-o-rio, o Ver-o-

peso, o Projeto Orla apoiaram-se na valorização e resgate da paisagem cultural

amazônica, notadamente a de rio.

Figura 4 – Parque Naturalístico Mangal das Garças no mapa de Belém

Fonte: Prefeitura de Belém (2008)

É inegável o que essas obras promoveram, no que tange à descoberta e valorização

da paisagem do lugar e foram importantes para a conservação do patrimônio

arquitetônico da cidade, apesar do certo caráter elitista atribuído pelas críticas e

relacionado às obras promovidas pelo Governo do Estado, pois elas não promoveram

mudanças no sentido de consolidar a dinâmica existente, mas ainda não reconhecida

pelo poder público da característica cultural insular predominante de Belém e de seu

entorno.

O que se espera dos planos, planejamentos, projetos e ações governamentais na

Belém do século XXI, é que seja repensada uma nova cidade, “esboçada a partir do

desenho de formas espaciais pensadas para restabelecer a relação cidade-rio [...]”

(TRINDADE JR., 2005).

Por seu turno, a Prefeitura de Belém, desenvolveu projeto de liberação da orla fluvial

do rio Guamá, compreendendo a área que se estende do núcleo pioneiro até a

Universidade Federal do Pará. Esse desenho de uma nova cidade pretende

compreender a liberação parcial da orla fluvial de Belém e implantação de um perfil

característico ribeirinho de cidade amazônica, que se perdeu, em parte, como enaltece

Trindade Jr. (2005), pelas influências urbanizadoras à moda europeia. Esse modelo

Baía de Guajará

Rio Guamá

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urbanístico, segundo a proposta da Prefeitura de Belém, deverá estar associado ao

lazer da população autóctone e ao desenvolvimento de um turismo sustentável de

inclusão.

Entende-se que para a cidade de Belém assumir uma forma urbana harmônica à sua

paisagem e de melhor definição espacial, o poder público: Estado e Prefeitura,

juntamente com a iniciativa privada, devem se sensibilizar da necessidade de se

consolidar, neste século XXI, de fato a retomada da paisagem de rio em trechos

exteriores ao núcleo urbano colonial, de modo a viabilizar a liberação completa da orla

e não somente “janelas” para o rio.

Parece ser este o caminho seguido na contemporaneidade por muitas cidades do

planeta, que cometeram erros iguais ou maiores no passado, no que tange à

conservação de suas paisagens, mas que estão procurando reinseri-las nas paisagens

transformadas na cidade, com projetos urbanísticos e paisagísticos de reconhecida

relevância estrutural e cultural paisagística.

No entanto, este parece ainda não ser o paradigma adotado na Belém deste início de

século XXI, quando a sociedade presencia “estarrecida” “indignada”, “impotente” a

edificação de uma torre de mais de 100 m de altura, o Edifício Premium (Figura 5), em

terreno de Marinha, e com suposto aterro da baía de Guajará, configurando a

continuidade, com a anuência ou não do poder público da privatização de orla da

cidade.

Figura 5 – Edifício Premium, em construção “às margens” da baía de Guajará

Fonte:<Skyscrapecity.com>

Deste modo, pergunta-se: a sociedade belenense neste século XXI endossa o modelo

urbano colonial, “de costas para o rio”? Ou, o exemplo supracitado, expressa tão

somente um caso isolado, mas que, se consolidado pode apontar a privatização

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irreversível não mais da “orla” ainda não consolidada, mas sim, do elemento natural e

de incomensurável valor futuro, o rio e suas águas.

O exemplo supracitado na orla da baía de Guajará parece representar posições locais

que expressam ausência de vontades em não incluir a cidade a paradigmas

urbanísticos e paisagísticos contemporâneos sustentáveis, e que possibilitem

caminhos opostos aos do passado, e que no presente, possibilitem a construção de

uma cidade que ofereça uma melhor qualidade de vida, com o resgate e a

consolidação da paisagem de rio a toda a população de Belém.

De todo modo, urge a necessidade nestes tempos de globalização, de uma reflexão

da sociedade belenense e de posturas gerais, que não as unicamente

compromissadas com o capital, no sentido de buscarmos respostas à questão

proposta por Pinto (2014): Qual Belém teremos nos próximos anos?

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade de Belém expressa forma amorfa vista de um avião. A cidade pode ser

percebida como um tecido urbano que parte de um limite natural: o rio, e se expande

em direção ao continente sem ter conservado seus elementos naturais presentes no

seu sítio, ou seja, os igarapés e alagados que foram aterrados por meio de sua

expansão. Pelos mapas, podem-se identificar formas e estruturas que correspondem

aos momentos da expansão urbana da cidade, como vias, quadras, espaços públicos.

Em um primeiro momento, a forma espontânea da cidade, presente no núcleo pioneiro

e em bairros circunvizinhos, se expande em sentido longitudinal, paralela à baía de

Guajará.

Posteriormente, a cidade se desenvolve em direção a noroeste, sobrepondo-se aos

elementos naturais do sítio, configura-se a partir de uma grande via, a Estrada de

Nazaré, que estrutura a cidade criando um eixo de ligação e expansão dela para o

continente. Deste eixo, a cidade assume uma forma ortogonal, com vias e ruas

abertas delimitando quadras e lotes, configurando o modelo quadricular de traçado

urbano, dotando a cidade de Belém de uma forma urbana de fácil leitura e boa

estruturação urbana.

Outras áreas, notadamente as consolidadas pela dita cidade informal, implantadas em

áreas de bacias de igarapés, se desenvolveram de forma orgânica adaptando-se à

configuração natural do sítio, e, posteriormente, essas áreas foram objeto, em

períodos recentes, de projetos de macrodrenagem a fim de proporcionar uma melhor

qualidade de vida às populações habitantes dessas áreas; no entanto, esses projetos

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não ofereceram alternativas de projeto no sentido de se resgatar as paisagens

culturais amazônicas.

Em Belém, o aterro das bacias formadas por igarapés pode ser considerado como

uma prova cabal da insanidade humana no trato das paisagens na construção da

cidade. Com os aterros, as bacias, sem escoamento natural, tornaram-se áreas

alagáveis e de possível acesso à população economicamente desfavorecida e

desprovida de habitação.

Esses erros ainda persistem na cidade, os igarapés transformados em canais não

recebem qualquer atenção do poder público no sentido de receber qualquer

tratamento paisagístico por meio de projetos paisagísticos de qualidade e de

consolidar uma paisagem cultural reconhecível à Amazônia.

Além de se promover alternativas de mobilidade urbana a pedestres e ciclistas por

meio de possíveis ligações entre a orla e o continente, associados a espaços de lazer

à população.

Por outro lado, a construção de uma torre “dentro” da baía de Guajará, que se

consolidada, aponta um futuro de privatização total da orla e descaracterização de um

elemento de maior importância para a qualidade de vida da população de cidades

ribeirinhas: o livre acesso e usufruto do rio, com uma orla planejada, projetada e

conservada pelo poder público e sociedade como um todo, e incorporada à dinâmica

cotidiana da cidade na Amazônia.

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