A prova pela escrita: 15 anos da Coleção Clínica Psicanalítica. Por Renata U. Cromberg

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Apresentado no Encontro de Comemoração dos 15 anos da Coleção Clínica Psicanalítica, realizado na Livraria Cultura/Villa Lobos, São Paulo, em 28/11/2015.

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  • A prova pela escrita: 15 anos da Coleo Clnica Psicanaltica* Uma viso panormica da Coleo e seu significado nas cenas psicanaltica e editorial

    Por Renata Udler Cromberg

    Eu recebi o convite do Flvio para estar aqui hoje neste bate-papo que inaugura nossa festa hoje estando em viagem e as imagens da memria afetiva, vieram assim de enxurrada, neste misterioso lugar entre o corpo e a alma.

    A primeira memria foi a memria- caranguejo. Sim, Crab era o nome do restaurante na Vila Madalena, no qual comemoramos, em 1999, a definio dos 7 primeiros livros da coleo e o aceite da ento Editora Casa do Psiclogo. Cravada na memria a cena de Helena Tassara, esposa cmplice e companheira com o rosto resplandecente de surpresa, orgulho e emoo proseando como em um outro restaurante Flvio contou-lhe hesitante a ideia da coleo de 15 volumes que estava pensando em organizar e que comearia com um livro seu. J no lembro as palavras de estmulo e confiana que ela disse a ele, mas lembro que eram palavras de estmulo e confiana e lembro daquele rosto inconfundvel do Flvio de regozijo e alegria que espero nos acompanhe muito ainda atravs de suas estrepolias criativas.

    Comecei ento depurando as memrias relativas ao convite feito a mim para escrever Paranoia e o processo de escritura e edio deste meu primeiro livro para retirar delas aquilo que imaginei ser comum com os outros autores da coleo. Imediatamente decidi que teria que falar do Flavio como criador e editor da coleo, mas como faz-lo de uma forma que fugisse a imagem do pai, como no transform-lo na imagem ambivalente totmica, o que no seria justo para o Flavio autor que escreveu questionando o primado do masculino? Como falar com legitimidade da produo escrita da coleo de uma forma que devolvesse aos autores, ao editor e a editora ao menos uma possibilidade de formar uma imagem

    * Apresentado no Encontro de Comemorao dos 15 anos da Coleo Clnica Psicanaltica, realizado na

    Livraria Cultura/Villa Lobos, So Paulo, em 28/11/2015.

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    da interligao dos livros entre si na sua multiplicidade o que ao menos exprimiria a existncia de uma fora aglutinante em constante movimento e transformao?

    Como mtodo de trabalho resolvi ler o ndice e prefcio ou introduo dos livros da coleo que eu tinha comigo. Foi a que me deparei com o comovente, amoroso e potico prefcio de Rubens Volich ao livro Ensaios Psicanalticos do Flvio que veio de encontro a todos os adjetivos que estavam se formando em mim para descrever a presena de editor de Flvio. Se eu tivesse mais tempo, leria simplesmente este belssimo texto. Roubei dele imagens, dados biogrficos para compor meu texto sobre o nosso Flvio.

    Vou me utilizar da imagem da rvore. Certamente de imediato evoca a imagem que d ttulo a obra de Renato Mezan que acabou de ganhar merecida e incontestavelmente o primeiro lugar no Prmio Jabuti na categoria Psicologia, Psicanlise e Comportamento com O tronco e os ramos, num ano em que entre os dez finalistas haviam 7 ou 8 livros de psicanlise dos quais saram os trs primeiros lugares. O que uma afirmao do campo psicanaltico no campo cultural. Tive a satisfao de estar entre estes indicados e agradeo a Renato e Flvio, dois grandes incentivadores nos primrdios da minha escrita.

    Mas a rvore que se formou em mim, alm do tronco e dos inmeros ramos, se prolonga pela terra com mltiplas razes e se abre para o cu em mltiplas folhas. Uma rvore viva em que a seiva brota da terra, circula pelo tronco e se transforma no oxignio que se expande pelo ar que traz novos elementos que caem na terra formando novamente a seiva que alimenta a rvore em conexo com o ambiente. Em relao a Coleo, Flavio com certeza esta rvore generosa. A coleo se desdobra como rvore desta rvore, onde cada livro seria uma folhinha e ele fez o papel se no do fecundador, daquele que enxergava a fecundao e o fruto virtual em cada um de ns que ele tranquilamente esperava maturar para fazer vir a luz, corrigindo minuciosamente os originais, zeloso, presente junto as duas pontas de produo, o autor e a editora, revisando incansavelmente os textos mais rsticos, para que se tornassem os mais belos e saborosos frutos. Coisa de mineiro amante dos sabores e fazeres culinrios. Rpido no trabalho, humilde, afetivo e gentil, impecvel e simples nas correes, Flavio vem sendo o esprito aglutinador e estimulante da coleo e para alm dela, como nos lembra Rubens, de outras tantas e inmeras coletneas de vrios espaos institucionais. Ele foi o estimulador e instigador da nossa autoria individual, mesmo quando alguns trabalhos j estavam formulados em teses e artigos.

    Uma outra possibilidade de pensar a partir da imagem da rvore que criei pensar com Rubens como as mltiplas razes da rvore que Flvio so os andarilhos de Cambu, sua terra natal, os loucos de rua que desde cedo tornaram-se mltiplos

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    enigmas para o menino. Devemos a este enigma que a curiosidade do menino formulou, este encontro com a psicanlise que permitiu vislumbrar a loucura como uma forma particular pela qual o sujeito exprime uma verdade, enigma que como todo enigma de verdade, sobre a verdade, encontra criativas, mltiplas e interminveis respostas e por causa dele que temos sua criao de uma coleo cujos livros/ folhas ressoam os caminhos e falas dos andarilhos de Cambu em psicopatologias mltiplas e por isso que eu pessoalmente acho que a coleo vai passar dos cem volumes.

    A rvore serve para pensar tambm a maneira como Flvio pensou o eixo uniformizante dos livros na autoria singular de cada um: o tronco dos elementos tericos freudianos conduzem a uma psicanlise contempornea, aos desdobramento em outros autores psicanalticos e outros campos de saber a partir de razes pr-freudianas histricas, filosficas. literrias e mdicas. A seiva a experincia clnica de cada autor, sempre presente a cada livro.

    Quando Freud fala a Jung que a psicanlise fara per se e no deve se influenciar nem pela biologia e nem pela filosofia, o faz num momento de consolidao do campo conceitual e metapsicolgico novo. Uma vez consolidado este campo, sabemos que na contemporaneidade a psicanlise s se far per se, se estiver transdisciplinarmente compondo com outros campos de saber como a fsica, a filosofia, a psiquiatria, a medicina, a biologia, a gentica, a lingustica, a fonoaudiologia, as cincia sociais, a educao, etc..., sendo muitas vezes o ponto de partida ou o de chegada, ampliando seu escopo clnico sem mais separar o ouro puro da anlise de div no consultrio e o cobre da psicoterapia individual ou em grupo e examinando os pontos comuns e as diferenas em seus vrios ramos advindos das teorias dos clnicos e tericos das geraes que se seguiram a Freud em sua contribuio ampliao da compreenso do sofrimento humano.

    Quando na viagem de pesquisa estava na biblioteca de Zurique, folheando os originais das primeiras publicaes psicanalticas, coloquei lado a lado a multiplicidade de campos que compunham as revistas que eram verdadeiros livros onde se delineava a psicopatologia psicanaltica, mas se resenhava livros de outros campos afins como a neurologia, a psiquiatria, a hipnose e tambm a educao e se divulgava congressos desses campos e visualizei a coleo como um desdobramento deste esprito inaugural, numa imagem muito parecida com a que Gisela Haddad colocou no facebook , com todos os livros juntos, alm da imagem da revista Brasileiros com Flavio ao centro de todos os livros em espiral.

    Apresento assim os ramos que se formaram na minha rvore/coleo e que aglutinaram a folhagem dos livros:

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    1. A coleo comeou com uma abordagem baseada na psicopatologia tradicional, que emergiu do campo nascente da psiquiatria, mas que logo foi transformada pela instaurao da psicanlise no corao da psiquiatria, como aponta Alexandra Sterian, at os anos 30 do sculo 20: Perverso, Psicossomtica, Emergncias psiquitricas, Paranoia, Psicopatia, Neurose Traumtica, Autismo, Esquizofrenia, Fobia, Hipocondria, Histeria, Neurose Obsessiva e Neurose Traumtica. (13)

    2. Mas desde o incio a coleo ampliou o espectro da psicopatologia psicanaltica abarcando novos quadros a partir das mudanas sociais e culturais que redefiniram as subjetividades ao longo do sculo XX e comeo do XXI, redefinindo as formas de expresso do pathos humano, enquanto excesso causador de sofrimento: Borderline, Problemas da Identidade Sexual, Disfunes Sexuais, Transexualidades, Estresse, Normopatia, Epistemopatia, Demncias, Tatuagem e marcas corporais, Neurose e No Neurose, Crise pseudoepilptica, Adices, Ideoalcoolismo. (13).

    3. Trouxe um olhar psicanaltico mais especificado, uma lente aumentada quanto ao especfico que organiza a cena do sofrimento psquico em sintomas, transtornos, distrbios e disfunes : Transtornos da excreo, Transtornos alimentares, Distrbios do sono, Transtornos de pnico, Sintoma (5)

    4. Trouxe a clnica a partir dos grandes temas que organizam os processos de humanizao tal como visto pela psicanlise: Morte, Desamparo, Cena Incestuosa, Corpo, Ressentimento, Violncia, Violncia e masculinidade, Adolescncia, Complexo de dipo, Linguagens e pensamento, Problemas de linguagem, Acontecimento e linguagem, Narcisismo e vnculos, A trama do olhar, O tempo e o ato na Perverso, Amor e fidelidade, Imitao. (17)

    5. Trouxe o foco para questes tcnicas especficas e metapsicolgicas da clnica psicanaltica: Desafios para a tcnica psicanaltica, Entrevistas preliminares em psicanlise, Trmino da anlise, O tempo, a escuta e o feminino, Transferncia e Contratransferncia, Ecos da Clnica, Ps - anlise, Ensaios Metapsicolgicos e clnicos e Ensaios Psicanalticos. (9)

    6. Trouxe a ampliao da clnica tradicional dos comeos para novos campos que no apenas utilizam os conceitos psicanalticos, mas trazem novas conceitualizaes, numa clnica mais em contato com as possibilidades e necessidades de novas configuraes dos aparelhos de sade coletiva que permitem a expanso da psicanlise para a Escola, o Hospital, para grupos e classes sociais diversos e para o campo do trabalho humano: Psicoterapia breve, Clnica da Excluso, Clnica do Trabalho, Sade do trabalhador, Psicologia Hospitalar e Psicanlise, Orientao Profissional e Acompanhamento Teraputico (7)

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    7. Trouxe a expanso da psicanlise para novas e diversas configuraes familiares e novos terrenos propcios ao sofrimento psquico que o campo psicanaltico se v potente a abarcar: Adoo, Infertilidade e Reproduo assistida, Psicoterapia de casal, Psicanlise da Famlia, Incestualidade, Famlias Monoparentais, (6)

    8. Trouxe temas especficos de psicanalistas ps-freudianos que ampliaram de maneira significativa com novos conceitos o campo de aprofundamento do sofrimento humano e trouxeram novas formas de abord-lo: Winnicott nas Consultas teraputicas e na Autorizao e angstia de Influncia, Bion, no Trabalho do Negativo, e em Clnica do continente e Fairbain. (5)

    9. Trouxe o social e o poltico como constituinte do Inconsciente e da subjetividade gerando sobretudo na contemporaneidade novos modos de abordagem do sofrimento psquico: Anomia, Tortura, Inconsciente Social, Psicanlise e Msica, Cidade e Subjetividade, Crtica a Normalizao da Psicanlise (6) A coleo que comeou majoritariamente com autores de So Paulo e do Instituto Sedes Sapientiae logo se expandiu para outras instituies em So Paulo e outros estados. Dos 67 autores, 34 pertencem ao Instituto Sedes Sapientiae, em So Paulo, em seus vrios Departamentos e cursos, 9 pertencem a Sociedade Brasileira de Psicanlise em So Paulo, 6 pertencem a PUC de So Paulo e dois pertencem a USP de So Paulo, sendo que eu privilegiei apenas um vnculo institucional nesta breve estatstica que visa apenas dar um panorama geral da rea de autoria da coleo no pas e no campo institucional. H 16 autores pertencentes a vrias instituies de outros estados : 4 de Minas Gerais, 4 de Pernambuco, 4 do Rio de Janeiro, 1 de Santa Catarina e 3 do Rio Grande do Sul.

    Sidney, Nayra, Alexandra, Rubia, Aline, Marcia, Dodora, Ftima, Nelson, Puri, Ieda, Flavio, Rubens, Mauro, Z Carlos, Renata, Lena, Gisela, Silvia, Decio, Cristina, Lucia, Laurinda, Elisa, Mario, Miriam, Alcimar, Tiago, Ana Sigal, Ana Costa, Ana Elisabeth, Nora, Marina, Mara, Marilucia, Maria Jos, Belinda, Daniel, Vera, Gina, Susana, Berta, Marion, Stela, Yeda, Mauricio, Lizete, Maria Laura, Alfredo, Delia, Wilson, Sonia, Teo, Paulo Ribeiro, Paulo Ceccarelli, Luciana Menezes, Luciana Santos, Cassandra, Paulina, Edilene, Fernando, Beatriz, Carla, Ivone, Maria Cristina, Maria Rita e Soraya

    Cada um de ns, autor singular, neste encontro nosso de congratulaes recprocas, estamos, juntos, em festa e alegria, gratos ao Flvio e a Pearson que reafirmam a importncia da coleo e a inteno de que ela continue porque ela nica no mundo, como me falou, por coincidncia, Renato, em setembro. Estamos aqui celebrando uma comunidade viva e orgnica, que se renova e se vivifica a cada lanamento da Coleo.

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    Penso que devemos pensar continuamente em formas de frutificar ainda mais a coleo. Acho muito importante que a editora pense em continuar a reedio dos livros esgotados e agilize o tempo de sua republicao, pois eles fazem falta no trabalho de professores e orientadores no campo da formao clnica ou terica em psicanlise na universidade e nas instituies. A editora tambm zelar pela frutificao da coleo se ampliar a rede de distribuio pelo Brasil em termos fsicos, nas livrarias, instituies e bibliotecas. Penso ser excelente a publicao em e-books e a disponibilizao em downloads, que a editora vem fazendo, j que o meio digital parece que ser o preferido das prximas geraes que certamente tero alguma modificao adaptativa de olhos e dedos para a leitura no suporte digital. Para ns, ainda insubstituvel o prazer de manusear folhas de papel, na conexo entre o psquico, o mental e o ergeno na compreenso e absoro de um livro objeto. A Pearson, fundada em 1844, uma empresa multinacional britnica considerada a maior editora do mundo. Ela acertaria o alvo se traduzisse essa coleoo nica para o ingls e a espalhasse pelo mundo.

    Cabe a ns, autores, lembrarmo-nos de citar, colocar na bibliografia de cursos, levar para palestras no s nossos livros, mas os dos colegas da coleo. Lembro de levar os primeiros livros da coleo em 2000 para Recife e 2003 para Joo Pessoa. Recentemente soube que a Coleo est completa na biblioteca do EPSI de Joo Pessoa e muito utilizada. Esta maneira pessoal e informal de valorizar a coleo pode propagar sementes de usufruto dela na transmisso da psicanlise e novas autorias.

    Escrever antes de mais nada um apelo pulsional de cada um por expresso linguajeira na criao singular que encontra o Outro como mediador e enlaador no fazer cultural de um campo social. Assim se d o encontro com a possibilidade de alguma comunicao com outros que vieram antes de ns e escreveram, que viro depois de ns e escrevero, ampliando o trabalho civilizatrio. Escrever intensamente prazeroso, mas, vindo do pulsional, no fcil: implica confrontar-se com o vazio originrio, o silncio, a angstia e o gozo que fazem brotar a palavra encadeada em linguagem. A Flvio, antiga Editora Casa do Psiclogo, que virou nosso nome-fantasia, marca originria de uma casa primeira, a nossa casa atual Editora Pearson Clinical, que nos abriga, nos valoriza e nos reconhece com esta grande festa, a estes trs agentes que nos enlaaram e enlaam permitindo que contemos nossas histrias e com isso continuemos a transmitir a psicanlise acho que posso dizer em nome dos autores, nosso muito obrigada.