A psicanálise na atual pós modernidade

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1 A Psicanálise na Atual Pós-modernidade Konrad Körner * Sigmund Freud, o genial fundador da Psicanálise, é representante destacado da modernidade. Famosa é a sua afirmação que a razão vai vencer, fazendo esquecer a religião. Ele até fala da “primazia da razão”, do “deus logos” 1 . Esta certeza de S. Freud se revela hoje como ilusão, pois em vez de vencer a razão, esta cedeu o seu lugar ao relativismo e ao subjetivismo. O “deus logos” perdeu o seu poder antes de poder exercê-lo. Até a religião, declarada como manifestação neurótica da humanidade, voltou a se fortalecer. Apesar disso, as descobertas científicas de S. Freud conservam a sua importância até hoje, inserindo a Psicanálise no conjunto das ciências e tornando-a, como método terapêutico, indispensável. Como cada uma das ciências, também a psicanálise como saber e método terapêutico, é relativa e aberta para sempre novas descobertas. A época de S.Freud era totalmente diferente da nossa, tanto no âmbito da ciência, quanto da cultura, economia e da realidade social. De acordo com a repressão sexual da sua época, S. Freud elucidou especialmente a histeria e, aos poucos, as demais psicopatologias. Após mais de cem anos de Psicanálise, hoje enfrentamos realidades sociais, culturas, econômicas e políticas totalmente diferentes e conseqüentemente também manifestações diferentes do inconsciente humano. Embora haja ainda casos de histeria, a maioria das manifestações psicopatológicas vão além dela. De uma forma muito geral se pode dizer que a centralidade do Complexo de Édipo continua, mas neste os acentos se deslocam para a sua raiz narcisista e também para atuação maníaco- depressiva. Isto se deve à influência da pós-modernidade na atualidade. 1) Algumas características gerais da pós-modernidade A distinção entre modernidade e pós-modernidade é relativa. Embora não haja consenso sobre a aceitação e definição de pós-modernidade, prefiro usar esse termo para acentuar a diferença do tempo atual em relação à modernidade. De forma geral, a pós-modernidade é uma reação à modernidade. Esta última se distingue pelo predomínio absoluto da razão à qual se atribui a condição de resolver todas as questões. Na modernidade, 1 Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974, Volume XXI, p.13-71, p.68. *Psicanalista. Membro efetivo do CEDPSP

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A Psicanálise na Atual Pós-modernidade Konrad Körner *

Sigmund Freud, o genial fundador da Psicanálise, é representante destacado

da modernidade. Famosa é a sua afirmação que a razão vai vencer, fazendo

esquecer a religião. Ele até fala da “primazia da razão”, do “deus logos” 1.

Esta certeza de S. Freud se revela hoje como ilusão, pois em vez de vencer a

razão, esta cedeu o seu lugar ao relativismo e ao subjetivismo. O “deus logos”

perdeu o seu poder antes de poder exercê-lo. Até a religião, declarada como

manifestação neurótica da humanidade, voltou a se fortalecer. Apesar disso, as

descobertas científicas de S. Freud conservam a sua importância até hoje,

inserindo a Psicanálise no conjunto das ciências e tornando-a, como método

terapêutico, indispensável. Como cada uma das ciências, também a psicanálise

como saber e método terapêutico, é relativa e aberta para sempre novas

descobertas.

A época de S.Freud era totalmente diferente da nossa, tanto no âmbito da

ciência, quanto da cultura, economia e da realidade social. De acordo com a

repressão sexual da sua época, S. Freud elucidou especialmente a histeria e,

aos poucos, as demais psicopatologias. Após mais de cem anos de Psicanálise,

hoje enfrentamos realidades sociais, culturas, econômicas e políticas

totalmente diferentes e conseqüentemente também manifestações diferentes

do inconsciente humano. Embora haja ainda casos de histeria, a maioria das

manifestações psicopatológicas vão além dela. De uma forma muito geral se

pode dizer que a centralidade do Complexo de Édipo continua, mas neste os

acentos se deslocam para a sua raiz narcisista e também para atuação maníaco-

depressiva. Isto se deve à influência da pós-modernidade na atualidade.

1) Algumas características gerais da pós-modernidade

A distinção entre modernidade e pós-modernidade é relativa. Embora

não haja consenso sobre a aceitação e definição de pós-modernidade, prefiro

usar esse termo para acentuar a diferença do tempo atual em relação à

modernidade. De forma geral, a pós-modernidade é uma reação à

modernidade. Esta última se distingue pelo predomínio absoluto da razão à

qual se atribui a condição de resolver todas as questões. Na modernidade,

1 Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de

Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974, Volume XXI, p.13-71, p.68.

*Psicanalista. Membro efetivo do CEDPSP

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pensava-se que, especialmente as ciências naturais, tivessem o poder de

provar, com quase total certeza, que a verdade é uma questão empiricamente

comprovável por meio de experiências.

T.Eagleton apresenta a seguinte definição: “Pós-moderno quer

dizer, aproximadamente, o movimento de pensamento contemporâneo que

rejeita totalidades, valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos

fundamentos para a existência humana e a possibilidade de conhecimento

objetivo. O pós-moderno é cético a respeito da verdade, unidade e progresso,

opõe-se ao que vê como elitismo da cultura, tende ao relativismo cultural e

celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade”2. Na medida em

que se desfazem as esperanças políticas, “os estudos culturais ganharam

proeminência” 3. Temos agora uma “política cultural” que visa criar o novo

homem, em que prevalece o “fetiche pós-moderno da diferença” 4. A cultura

se coloca no lugar de Deus 5. A civilização ocidental está “à beira de se tornar,

ela mesma, não realista” 6, ficando “mais dependente, em suas operações

cotidianas, de mito e fantasia, riqueza ficcional, exotismo e hipérbole, retórica,

realidade virtual e mera aparência”. Busca-se não mais a informação “sobre o

mundo, mas de ter o mundo como informação” 7.

A pós-modernidade é contra tudo o que é verdade absoluta e

qualquer “idéia de objetividade”8. Há profunda aversão ao moralismo9 e à

tentativa de “dissolver limites” 10. A maioria destaca o individualismo e o

relativismo da pós-modernidade11. A pós-modernidade não questiona as

conquistas da ciência, mas as entende como relativas. Considera-se todas as

verdades, também as religiosas, como relativas. Predomina o ceticismo, o

2 Terry Eagleton, Depois da teoria. Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo, Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2005, p.27, Nota n.3 3 Ibíd., p. 74

4 Ibid., p.75

5 Ibid. p.90

6 Ibid., p.100

7 Ibid., p.101

8 Ibid., p.147

9 Ibid., p.257

10 Ibid., p.294

11 Ver aqui, por exemplo: Pedro Carlos Cipolini, Povo de Deus e Corpo de Cristo: Imagens complementares

na abordagem do mistério da Igreja, em José Trasferetti e Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (orgs.), Teologia e

pós-modernidade. Abordagens epistemológica, sistemática, e teórico-prática, São Paulo: Paulinas, 2003, p.

217-249; José Lisboa Moreira de Oliveira, Viver os votos em tempos de pós-modernidade. Desafios à vida

consagrada, São Paulo: Ed. Loyola, 2001; Maria Clara Lucchetti Bingemer, Horizontes da pertença

religiosa a partir do cristianismo, Revista de Cultura Teológica, Volume 16, nr. 63, abril / junho 2008, p. 97-

112; Frei Nilo Agostinho, Pós-modernidade e ser humano, Revista de Cultura Teológica, Volume 16, nr. 63,

abril / junho 2008, p. 113-126.

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enfraquecimento de conceitos, o questionamento do modelo de poder (centro

/periferia), uma politização da sexualidade, da ecologia, dos direitos humanos,

da vida urbana diária. A defesa do individualismo destaca o direito da

diferença e de estilos alternativos. Discute-se o direito da mulher, dos

homossexuais, dos pacifistas e de outras minorias12.

Como T.Eagleton destaca, os meios de comunicação ocupam na

pós-modernidade uma enorme importância. Assim esse autor diz que o “anti-

realismo” é uma questão da informação e não da teoria13. R. Funk enfatiza na

pós-modernidade, neste contexto, o efeito poderoso da propaganda de

produtos. Não mais a necessidade determina a compra de um produto, mas a

propaganda. Contra tal dependência coloca-se a necessidade de formar a

consciência pessoal14. Interessante é nesse contexto a afirmação do

neurocientista americano David Eagleman que “o eu é um conto de fada”, pois

tudo é controlado pelo cérebro humano de forma automática15. Aqui se

derruba, de vez, o trono da razão!

As características principais da pós-modernidade coincidem com os

sintomas do narcisismo. A cultura narcisista, imposta com força sempre

maior pela globalização, propaga estas e outras formas do narcisismo com

extrema eficiência, especialmente através da TV e Internet. Desde a infância, a

TV introjeta em crianças pequenas as imagens idealizadas numa intensidade

muito maior do que a da autoridade dos pais. Esse novo ideal do ego fortalece

um ego ideal, padronizado de tal maneira que impossibilita em grande parte o

desenvolvimento de uma individualidade pessoal. A evolução mental corre o

risco de permanecer presa à imaginação, ao passo que a culpa impõe uma

violência sempre mais irracional. Junto com o narcisismo aumentam as mais

difusas manifestações da religiosidade como reações automáticas contra culpa

e violência.

A nível social, a pós-modernidade rejeita todos os sistemas totalitários.

A forte influência dos meios de comunicação de massa “não permite uma

visão totalizante” 16

. Hoje se formam “grupos de subcultura (grupos

semióticos) de várias origens sociais”. Há novos agentes políticos, morais e

históricos. No lugar da classe social há diferença entre “consumidores e não-

12

Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume XI, nr. 1,

87-96, 2004, p. 89. 13

T.Eagleton,Depois da teoria, op. cit., p. 101 14

Rainer Funk, Ich und Wir. Psychoanalyse des postmodernen Menschen, München: Deutscher Taschenbuch

Verlag, 2.Auflage 2005 15

Das Ich ist ein Märchen, Entrevista com Daniel Eagleman, em “Spiegel”, 7 / 2012, p.110-114 16

François Houtart, Mercado e religião, São Paulo: Cortez Editora, 2003, p.101

4

consumidores” 17

. No centro é o indivíduo e o seu consumo. O que conta é o

momento e importante é “a experiência estética” 18

, a imagem vista e exibida.

A pós-modernidade está ligada ao neoliberalismo, ostentando, por isso, pouco

ou nenhum interesse por mudanças estruturais em economia e política19

. Para

J.B.Libânio, “o surto do sagrado é uma outra face da secularização da

sociedade moderna e pós-moderna e não a sua negação”. Há na pós-

modernidade “uma perfeita adaptação à formação social capitalista na sua

atual expressão neoliberal” 20

. Diferente de J.B.Libânio, J.P.Giovanetti fala da

dissolução do sagrado na sociedade pós-moderna e do conseqüente “espírito

niilista”. O indivíduo é colocado “no centro da organização da sociedade” 21

.

Predomina a tendência de fazer somente o que garante prazer e de buscar uma

felicidade que dispensa a presença do outro 22

.

U. Galimberti acha que a sociedade não valoriza os seus jovens,

“jogando-os fora”. Nem a família nem a sociedade os acolhem, surgindo daí

em jovens a busca de satisfação de desejos, conformismo, tédio, excitação,

repetição e busca de novidades23

. A respeito dessa opinião precisa-se lembrar

que a pós-modernidade preconiza o ideal da eterna juventude de tal maneira

que ignora a característica própria de jovens. Estes são avaliados conforme a

sua identificação com o ideal da eterna juventude, interessando somente na

medida em que servem ao mercado consumidor. Por esta razão, os jovens têm

grandes dificuldades na busca da sua própria identidade pessoal.

A tendência da maioria é a de avaliar a pós-modernidade, quase que

exclusivamente, de forma negativa. Os autores do livro “A Bíblia pós-

moderna” afirmam contra essa tendência, referindo-se a Hutcheon: “Dentro da

cultura do pós-modernismo, estamos no ponto em que sua simples rejeição é

tão impossível quanto a sua – igualmente simples- celebração é complacente e

deturpada” 24. A avaliação negativa tem a ver com a visão igualmente negativa

da globalização. Entretanto, a globalização é hoje um fenômeno que precisa

ser tomado como é. Ela leva a formar “contornos completamente novos não

apenas ao palco da história, mas também às diversas formas de viver a

17

Ibid., p.103 18

Ibid., p.104 19

Ibid., p.112 20

João Batista Libânio, O sagrado na pós-modernidade, em Pe. Cleto Caliman SDB (org.), A sedução do

Sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 61-78, p.61 21

José Paulo Giovanetti, A representação da religião na pós-modernidade, em Geraldo José de Paiva /

Wellington Zangari (orgs.), A representação na religião: perspectivas psicológicas, São Paulo: Ed. Loyola,

2004, p. 129-146, p. 135 22

Ibid., p.136-137 23

Umberto Galimberti, Os vícios capitais e os novos vícios, São Paulo: Paulus, 2004, p.129.132 24

VV. AA., A Bíblia pós-moderna. Bíblia e cultura coletiva, São Paulo: Ed. Loyola, 2000, p.18

5

identidade e a alteridade, inclusive em âmbito religioso”. No contexto da

globalização “surge o debate sobre o pluralismo e a identidade-alteridade em

sua diversidade e complexidade atuais”. A busca da identidade pode ser fuga

da globalização, mas também pode “ser vivida em relação à alteridade e

diversidade das culturas e religiões”25. A dinâmica da globalização provoca

também “a diversificação e a fragmentação culturais das instituições e

movimentos sociais”26. O indivíduo elabora “seu próprio universo de normas e

valores a partir de sua experiência singular”, e não mais de acordo com a

instituição27.

A globalização ajuda a “repensar o objeto das ciências humanas e

sociais, em conseqüência da multiplicação dos conhecimentos sobre a

diversidade da subjetividade e dos modos de relação social” 28. Ela permite

perceber melhor a relação entre cultura, religião e psicologia 29. Para A.

Brighenti o desafio é o de renovar a instituição30. Uma perspectiva nova e

construtiva da globalização é “a busca de uma globalização da solidariedade” 31. No lugar de uma “consciência antropológica” coloca-se uma “consciência

cosmocêntrica” 32. Aqui pode ser citado o livro com o título muito sugestivo:

“Você quer ser normal ou feliz?” 33. Apesar de todos os possíveis exageros na

busca de felicidade, traduz-se na pós-modernidade o desejo de se libertar das

normalidades impostas por sociedade e religião, que impedem a consciência,

isto é, o estar ciente de si mesmo estando com outros.

A globalização não só “mundializa” a cultura, mas também, junto com

esta, a economia, o “mercado total”, a “tecnociência”, a política, os ideais, a

espiritualidade e a ecologia 34. Na sua “vertente positiva”, a globalização tem

em si a possibilidade de buscar “uma globalização da solidariedade” 35. Ela

tanto pode impedir quanto inspirar o respeito pelo pluralismo e a relação entre

identidade e alteridade36. Ela obriga a repensar o objeto das ciências humanas

25

Olga Sodré, Globalização e pluralismo: guerra e violência ou paz e diálogo. A dinâmica da identidade –

alteridade e o diálogo inter-religioso monástico na pós-modernidade, em Mabel Salgado Pereira e Lyndon de

A. Santos (orgs.), Religião e violência em tempos de globalização, São Paulo: Paulinas, 2004, p.11-51, p.22 26

Ibid., p. 23. 27

Ibid, p. 26. 28

Ibid., p.16 29

Ibid., p.19 30

Agenor Brighenti, A Igreja perplexa. As novas perguntas, novas respostas, São Paulo: Paulinas / São

Paulo: Soter, 2004, p.132 31

Ibid., p. 78 32

Ibid., p.80 33

Robert Betz, Willst du normal sein oder glücklich? Aufbruch in ein neues Leben und Lieben, München:

Wilhelm Heyne Verlag, 3.Auflage 2011 34

Agenor Brighenti, A Igreja perplexa. As novas perguntas, novas repostas, op.cit., p.67-77 35

Ibid., p.78 36

Olga Sodré, Globalização e pluralismo: guerra e violência ou paz e diálogo, op.cit., p. 22

6

e sociais em conseqüência da “multiplicidade dos conhecimentos sobre a

diversidade da subjetividade e de modos de relação social”37. A globalização

permite perceber melhor a relação entre cultura, religião e psicologia. O

diálogo entre materialismo e fé é um diálogo com a cultura e a sua religião38.

“A globalização produz simultaneamente culturas e religiões”39.

É necessário repetir que pós-modernidade e globalização podem ser

nem diabolizadas nem endeusadas. O seu subjetivismo pode tanto levar a um

egoísmo exagerado quanto a uma maior consciência pessoal e individual. O

relativismo tanto pode negar qualquer verdade objetiva quanto tem condições

de impulsionar uma constante busca da verdade e a sua inserção em cada

época. No lugar de uma automática identificação com a instituição religiosa e

com a sociedade pode desenvolver-se uma consciência eclesial, social e

política de cada um. A globalização crescente põe a cada um a tarefa de

buscar a sua identidade pessoal. Apesar da mencionada ausência de critérios

morais na prática sexual, a pós-modernidade pode abrir a porta para uma nova

e mais humana vivência da sexualidade humana. Conceitos de masculinidade

e feminilidade podem deixar de serem imagens impostas por sociedade e

religião, tornando-se vivências existenciais de homem e mulher. Por fim, a

pós-modernidade questiona a relação entre dependência e liberdade pessoal.

Com razão, instituições rígidas e autoritárias encaram a pós-modernidade

como inimiga mortal. Todavia, permitindo que sejam questionadas pela pós-

modernidade e seu relativismo, elas têm a oportunidade privilegiada de

superarem o seu narcisismo rígido, tornando-se humanas.

37

Ibid;. p.17 38

Ibid., p. 19. 39

Ibid., p. 21.

7

2) A influência da cultura pós-moderna sobre a teoria da psicanálise

Para falar das influências da cultura pós-moderna sobre a teoria da

psicanálise citarei, a seguir, diversas opiniões de psicanalistas e profissionais

de outras áreas psíquicas. Entretanto não se trata de uma mera enumeração de

opiniões e idéias, pois desejo mostrar que não há um conjunto de novas teorias

psicanalíticas. Além do mais, as diversas opiniões citadas estão de acordo com

o individualismo da pós-modernidade que questiona a existência e validade de

uma só teoria psicanalítica. Os novos questionamentos se referem, de forma

geral, à importância do narcisismo e de uma nova acentuação da teoria sexual

da psicanálise. Nesses dois casos se discute, de uma forma nova, a influência

da cultura atual no psiquismo humano.

A cultura globalizada atual é influenciada de forma decisiva pela cultura

norte-americana. Já em 1983, Chr. Lasch descreve esta cultura como narcisista 40. R. Funk, porém, é da opinião que na pós-modernidade não se trata do

narcisismo. Embora predomine “a busca de reconhecimento e admiração”, na

maioria dos casos, porém, se trata de um “egoísmo como estratégia de venda” 41. R. Funk atribui na pós-modernidade grande importância “à estratégia da

produção da realidade” 42. A realidade “é produzida, criada e inventada, não

havendo nenhuma preocupação em comparar essa “realidade feita” com a

realidade objetiva”43. Todavia, essa “realidade produzida” pela propaganda, ao

meu ver, está relacionada ao narcisismo.

Importante é entender bem a relação entre o narcisismo e a

agressividade humana. A fusão com imagens idealizadas, característica para o

narcisismo, nega a realidade. A última raiz da agressividade humana é essa

negação inerente ao narcisismo. A defesa da imagem idealizada sempre está

acompanhada pela agressividade, que, porém, é negada. Segundo O. Sodré,

S.Freud relaciona a agressividade humana à luta do eu pela sua conservação e

afirmação, ao passo que J.Lacan prefere situá-la “ao nível das relações

imaginárias entre o eu e o outro” 44. J. Lacan deduz a agressividade do

narcisismo que “determina a estrutura formal do ego do homem” 45. O

Marketing e a violência da sua propaganda se dirigem ao narcisismo humano e

é deste que aprende as suas técnicas.

40

Christopher Lasch, A cultura do narcisismo, op.cit., 41

Rainer Funk, Ich und Wir. Psychoanalyse der postmodernen Menschen,op.cit., p.29 42

Ibid., p. 31 43

Ibid., p.32 44

Olga Sodré, Globalização e pluralismo: guerra e violência ou paz e diálogo, op. cit., p.17 45

Ibid., p. 18

8

De uma forma geral, a pós-modernidade obriga a psicanálise a dar mais

importância às influências culturais, sociais e econômicas. Segundo J.

Kristeva, a psicanálise de hoje “deve incluir a história social como um dos

elementos constitutivos do psíquico”46 e para O.Sodré, é necessário que ela

inclua também a espiritualidade47. Entretanto, não pode-se tratar de recorrer à

religião de forma a-crítica. Esta, a meu ver, agora deve ser analisada na sua

ligação íntima ao narcisismo. Éem virtude desta ligação que a religião voltou a

ganhar destaque na pós-modernidade.

Nas terapias psicanalíticas busca-se, hoje, soluções rápidas. Observa-se

a ausência de um sentido na vida, o vazio da palavra, uma acentuada solidão.

Há por baixo “a ameaça de aniquilamento e de perda de identidade”48. Além

do narcisismo, predominam o quadro da depressão, a falta de identidade, as

somatizações graves, o abuso de drogas e “modalidades perversas” 49.

Enfraqueceu-se a noção do conflito“ em favor do ideal de uma imagem

narcísica una e idealizada do ser”50. Nas neuroses atuais há falta de elaboração

psíquica, motivo pelo qual emerge o narcisismo primário. Há um mal-estar

gerado pela cultura atual e não há representação para a excitação51.

O paciente pós-moderno não gosta do “espaço para a intimidade, o

silêncio, os encontros a dois”. Ele é “um narcisista, talvez cruel, mas sem

remorso, sem alma... sofre de uma dificuldade de representar”. Diante desse

quadro clínico, a tarefa do analista será “a de restaurar a vida psíquica para

permitir ao corpo falante uma vida melhor”. Se em tempos anteriores

predominava a repressão, hoje, a pós-modernidade impõe mecanismos mais

primitivos, bem como “a dificuldade de simbolização e de representação

psíquica”52. N. C. Marucco também observa que o analisando de hoje “muitas

vezes coloca o analista no campo de um “além do representável”, terreno das

expressões vinculadas ao corpo, ao narcisismo e a um tipo de compulsão à

repetição que é a manifestação da pulsão da morte”53. Além disso, a pós-

modernidade anula o “tempo histórico”, a história pessoal, o que faz aflorar

46

Apud Áurea Maria Lowenkron, Sobre a clínica psicanalítica da atualidade: novos sintomas ou novas

patologias?, Revista de Psicanálise da SPP, Volume.37, nr.4, 2003, p.993-1008, p. 1001. 47

O. Sodré, Globalização e pluralismo, op. cit., p.33 48

Ibid., p. 996. 49

Ibid. p. 995-997. 50

Ibid., p. 996. 51

Ibid., p. 1003-1006. 52

Claudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit., especialmente. p. 91-92. 53

Norberto C. Marucco, O analisando de hoje e o inconsciente (sobre o conceito de zonas psíquicas), Revista

de Psicanálise da SPPA, Volume X , nr.3, 2003, p. 453-473, p. 454.

9

“conteúdos psíquicos primitivos não elaborados” para a superfície, por

exemplo, para o campo social54.

J.Moreno menciona como característica da pós-modernidade a ausência

de um ideal de perfeição e de uma sociedade ideal. “Agora não existe senão o

indivíduo..., o indivíduo é o encarregado e o responsável de ser o que é...”.

Antes, a sociedade definiu o indivíduo, hoje cada um define a si mesmo 55. O.

Sodré fala de um “núcleo infantil” do homem pós-moderno, no qual a sua

fragilidade, carência e incompletude, dependência e insegurança aparecem

encobertas por relações de arrogância, poder e dominação do outro 56.

Encontram-se hoje egos fracos, invadidos pela cultura e aos quais falta a

maturidade. Predominam “impressões, aparências e disfarces”, há “fugacidade

dos relacionamentos e hipersexualização que busca apenas o prazer” 57.

Além de um enfoque novo e mais central do narcisismo, a pós-

modernidade impõe questionamentos novos a respeito da sexualidade. As

descobertas de S. Freud sobre a sexualidade, apresentadas em “Três ensaios

sobre a teoria da sexualidade”, continuam válidas. Entretanto, elas devem ser

completadas pelas influências culturais atuais. Outras influências vêm de

questões, tais como “identidade de gênero e as especificidades de

masculinidade e feminilidade, as neo-sexualidades, as diferentes formas de

entender as perversões, os estados sexuais da mente, as peculiaridades sexuais

de cada etapa do ciclo vital”. Especialmente complexa é hoje a questão da

homossexualidade, de casamentos homossexuais, de mulheres que têm filhos

de “produções independentes”58.

A partir dos anos de 1970, “é proibido proibir. Nesta época, a detecção

e a denúncia das formas insidiosas de controle social remanescentes sobre a

vida e sobre a sexualidade das pessoas passaram a ser tarefa de todos os dias”.

Há reivindicações de grupos antes difamados, por exemplo, de prostitutas e

homossexuais59. Entretanto, ao mesmo tempo há tendências de eliminar ou

corrigir o diferente, o estranho. Para S. Freud, “o homem é todo anomalia e,

estranhamente, é todo anomalia por ser um ser sexual”60. Todavia, a liberdade

sexual, na opinião de L.C. Menezes, pode chegar a ter, paradoxalmente, a

54

Jorge Ahumada, O inconsciente na pós-modernidade; as tensões epistêmicas, Revista de Psicanálise da

SPPA, Volume X, nr.3, 2003,p. 495-507, p. 504. 55

Ibid., p.75 56

Olga Sodré, Globalização e pluralismo, op. cit., p.16 57

Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit., p. 90 58

Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op.cit., p. 89. 59

Luiz Carlos Menezes, Sexualidade e pós-modernidade, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume. XI, nr 1,

79-86, 2004, p. 80. 60

Ibid., p. 81.

10

mesma prática dos sistemas totalitários: “Temos de novo a raça pura de corpos

bem tratados, bem saudáveis e felizes”. A sexualidade e o desejo são

“perfeitamente adaptados para o funcionamento de uma economia de frenética

circulação de mercadorias. De novo, o sexual foi exorcizado, transmutado

num simulacro bem comportado, para que possa bem funcionar o projeto

social total”61.

A sexualidade “emerge da interação do corpo com a representação

vigente”62. De acordo com esta constatação, tanto o modelo da normalidade

sexual quanto o do ideal da família variam de acordo com a realidade social e

cultural. Na pós-modernidade, a união dos cônjuges não mais é permanente,

os papéis tradicionais entre homem e mulher mudaram. No lugar da família

colocaram-se os meios de comunicação, “desvinculam-se as regulamentações

de aliança e de sexualidade, cuja intromissão na família fora característica

central da modernidade”. Os padrões de se viver a sexualidade mudaram. Os

seus modelos vêm de fora, não mais da família63. Não é o público que coloniza

o privado, mas “o privado coloniza o espaço público (a rigor o substitui)” 64.

De acordo com T.Ayouch, a diferença anatômica dos sexos não

determina a masculinidade e feminilidade, pois há influências sociais,

culturais e políticas que devem ser consideradas65. Não se trata de negar a

diferença anatômica, mas esta não é “a primeira nem a principal ou a única

diferença que estrutura a psique”66. Em nossos dias “é muito diferente falar de

gênero e sexo. O sexo, homem ou mulher, como o já dado, não abarca o que a

rigor alguém poderia ser”. Não há mais divisão entre normal e anormal na

sexualidade. Há inúmeros anormais heterossexuais e normais homossexuais.

Hoje em dia, principalmente os adolescentes estão “atrás do encontro com

uma identidade sexual”, isto é, “a busca de uma identidade, de uma

identificação com algo, ser algo”67. A sexualidade está sem controle, o prazer

se desvinculou da sexualidade68. Da mesma forma, há “divórcio entre sexo e

família, entre sexo e amor”69. Na opinião de U. Galimberti, na pós-

modernidade ninguém ama o outro, “mas cada um ama aquilo que criou com a

61

Ibid., p. 85. 62

Júlio Moreno, Sexualidade e pós-modernidade, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume XI, n.1, 2004, 69-

78, p. 71. 63

Ibid., p 75. 64

Ibid., p. 74 65

Thamy Ayouch, A diferença entre sexos na teorização psicanalítica :aporias e desconstruções, Revista

Brasileira de Psicanálise, Volume 48,n.4, 58-70, 2014, p. 59 66

Ibid., p.70 67

Júlio Moreno,Sexualidade e pós-modernidade, op.cit., 75. 68

Ibid., p. 77. 69

Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op.cit., p. 91-92.

11

matéria do outro”, não havendo distinção entre o corpo do outro e o “meu”

desejo70. Segundo a opinião desse autor, nos pacientes pós-modernos

predomina o que S. Freud chama em alemão de Verleugnung e o que é

traduzido como denegação em que “não se deseja saber aquilo que se sabe”. 71.

Segundo L. Clocer Fiorini, é preciso que se pense em várias

homossexualidades, sendo atribuída cada uma delas “a um mecanismo em

ação”. Uma forma pode ser perversão, outra não, da mesma forma como na

heterossexualidade. Para a autora “pode haver registro da diferença em sentido

simbólico novo quando a escolha de objeto é homoerótica 72. O que se

considera normal, depende de“um âmbito cultural e discursivo

determinado”73.

A título de resumo pode ser citada a opinião de J. Moreno para quem a

psicanálise precisa considerar que na pós-modernidade, “a trama social, as

relações intersubjetivas, a estrutura de poder, as práticas de educação, a

família, isto é, todas as instituições variaram”. Por esta razão, “deveriam

reformular-se as teorias e práticas que, como a psicanálise, afetam o humano”.

As instituições, “aferradas ao estilo moderno”, na pós-modernidade são

“insuficientes para sustentar, dar conta de acontecimentos, que se

precipitam”74.

Grupos comprometidos com concepções morais ligadas à tradição, bem

como a Igreja Católica e outras igrejas cristãs, certamente terão dificuldades

numa consideração mais objetiva das influências culturais, sociais e políticas

sobre o psiquismo humano na atualidade. A esse respeito cabe considerar que

a psicanálise, como o diz o seu nome, analisa. Ela não julga as influências da

pós-modernidade como certas ou erradas, boas ou más, mas parte dos

fenômenos que observa e que influem no inconsciente – e consciente – dos

homens no tempo de hoje. A sua análise visa conquistar ou restabelecer a

autonomia pessoal das pessoas que a procuram. Em decisão livre, cada um usa

o seu modo de pensar para viver a sua consciência, isto é, buscando a sua

identidade convivendo com outros e com o mundo.

70

Umberto Galimberti, os vícios capitais e os novos vícios, op. cit., p. 66. 71

Ibid., p. 122. 72

Letícia Clocer Fiorini, Repensando o complexo de Édipo, Revista Brasileira de Psicanálise,Volume 48, n.4,

47-55, 2014, p.52 73

Ibid., p.53 74

Júlio Moreno, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit. , 2004, p. 70.

12

3) A influência da pós-modernidade sobre a prática

psicanalítica

S. Freud enfrentou o inconsciente como algo capaz de ser revelado. De

acordo com a modernidade, ele acreditava no poder da ciência e da razão

humana. A psicanálise atual “tende a enfatizar cada vez mais a indeterminação

e a imprevisibilidade dos processos psíquicos”75. Hoje não mais se enfatiza o

acesso aos conteúdos do inconsciente, mas “cada vez mais se procuram

formas de tornar acessível ao paciente o conhecimento do modo como

organiza suas experiências emocionais, como percebe, sente, pensa, age”76. Na

atualidade, pensa-se o inconsciente “menos como algo a ser revelado e mais

como algo a ser utilizado”77.

Hoje, a prática psicanalítica não se desenvolve como investigação do

passado no intuito de definir as causas do distúrbio psíquico, como o tem feito

S. Freud no início. Antigamente se considerava uma análise bem sucedida

quando o analisando sabia todas as causas dos seus problemas. Tal saber, no

entanto, corria o risco de permanecer a vida toda na projeção da culpa em

cima de pais e outros responsáveis pela educação na infância. Além disso, o

mero saber das causas fomenta o narcisismo, podendo levar a um conceito de

cura que seria a adaptação àquilo que a sociedade considera normal. Pelo que

vimos, a pós-modernidade questiona esse tipo de cura. Hoje, aquilo que se

chama de cura surge na relação entre analisando e analista.

Tudo o que é preciso saber do passado está presente na relação entre

analisando e analista. A importância decisiva da transferência no processo

terapêutico se evidencia no fato que outras terapias que se baseiam na

elucidação do inconsciente, tais como a psicologia profunda de C.G.Jung, a

análise individual de A.Adler e outras, também podem alcançar sucesso. Isto

significa que não é, em primeiro lugar, o respectivo referencial teórico que

traz a cura, mas a relação do analisando com o seu analista. A grande questão

é se a transferência pára numa dependência ou se ela é usada para

conscientizar o analisando. O específico da pratica psicanalítica é “o

conhecimento inconsciente da mente num encontro intimo, que propicie o

desenvolvimento mental de paciente e analista”78, .

75

Viviane Mondrzak e outros, O inconsciente na perspectiva da complexidade e do caos: uma abordagem

inicial, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume.. X, nr.3, 559-570, 2003, p. 568. 76

Ibid., p. 567. 77

Ibid., p. 568. 78

Ibid., p. 138

13

Acima de tudo, a análise é uma relação intersubjetiva, em que duas

pessoas, duas subjetividades, criam uma realidade comum79.Apesar de

transferência por parte do analisando e contratransferência por parte do

analista, a psicanálise é um encontro de duas pessoas, com a finalidade de

conseguir a convivência do analisando com a realidade de outros, do mundo e

de si próprio. Deste modo, o objetivo é o de alcançar a identidade e autonomia

pessoal do analisando. Enquanto o analisando usa o analista para projetar em

cima dele os seus conteúdos inconscientes, o analista, por sua vez, usa, na

contratransferência, as reações despertadas nele pelas comunicações do

analisando. O analista “precisa registrar a contratransferência e transformar o

ruído, a dor psíquica, a irritação, a dificuldade de concentração em informação

para o seu pensamento clínico- informação que faça parte do background de

suas interpretações”80.

C. Rosas de Salas adverte que o analista precisa “reconhecer a sua

vulnerabilidade quando o aprendido é posto em questão”.A autora se refere à

experiência do limite do analista que a faz “postular que, além de uma ética do

desejo, seria necessário pensar em uma ética da criação de representações na

análise”81.O analista precisa “considerar e analisar suas próprias fronteiras de

analisabilidade, que localizado naquilo que está mais além do seu capital

representacional e que, ao ser tocado pela palavra ou pelos atos do analisando,

pode gerar nele reações nem sempre fáceis de prever”82. Aqui deve ser

lembrado o que C.L. Eizirik e N.C. Marucco mencionaram a respeito da

dificuldade de “simbolização e representação” por parte do paciente83 e da

dificuldade do analista diante do que é “além do representável84.

De acordo com a transferência e a contratransferência o analista

interpreta os conteúdos inconscientes. Em fobias e obsessões não basta a

interpretação, sendo necessário o enfrentamento do objeto fóbico e a

superação do horror ao objeto obsessivo85.Além da interpretação, S. Ferenczi

estimulou no analisando uma imaginação ativa de fantasias agressivas, para

79

Osvaldo Marba Ribeiro, Intersubjetividade ou inter-relação, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49,

n.1. 207-220, p.208 80

Fernando Urribarri, Como ser um psicanalista contemporâneo? Da extensão do campo clínico à

interiorização do enguadre, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49, n.1, 229-245, 2015, p.240 81

Cristina Rosas de Salas, A vulnerabilidade de no / do analista, Revista de Psicanálise da SPPA, volume

21,n.2, 401-412, agosto 2014, p. 402 82

Ibid., p. 407 83

Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit., p. 91-92 84

Norberto Marucco, O analisando de hoje e o inconsciente (sobe o conceito de zonas psíquicas), op. cit.,

p.454 85

Daniel Kupermann, A maldição egípcia e as modalidades de intervenção clínica em Freud, Ferenczi e

Winnicott, Revista Brasileira de Psicanálise,Volume 48, n.2, 47-58, 2014, p.48

14

ter acesso a estas86. A interpretação precisa suceder-se numa linguagem que o

analisando entende para que ela possa ser útil na busca da consciência. Esta, a

consciência, não é um saber teórico, mas o estado de estar ciente de si mesmo

estando com outros diferentes. É nessa consciência se realiza a conquista da

própria identidade. Pode-se entender como objetivo do processo psicanalítico

a conquista de identidade pessoal e a condição de se relacionar com a

diferença do outro.

No que tem a ver com o Complexo de Édipo, hoje a atuação dele deve

ser pressuposta. A pergunta, portanto, não é se ele existe, mas como e em que

objeto ele se manifesta. Hoje, a estrutura edípica se confunde com o

narcisismo. Este é anterior ao Complexo de Édipo, de modo que uma cultura

narcisista impulsiona a regressão a ele. S. Freud considerou o Complexo de

Édipo superado na medida em que se tem conseguido a integração na

sociedade e sua cultura87. Todavia, sendo a atual cultura da sociedade

determinada pelo narcisismo, a identificação com ele é uma regressão. E, se o

Complexo de Édipo se dissolve na identificação com a sociedade, ele adquire

características do narcisismo. O Complexo de Édipo ‘dissolvido”, portanto, é

regressão tanto no conceito de S.Freud, para quem o narcisismo é uma fase do

desenvolvimento quanto no conceito de H.Kohut para quem o narcisismo é a

estrutura do inconsciente. L.Glocer se expressa no sentido de dizer que a

solução do Complexo de Édipo depende da cultura88. Esta e a sociedade são as

“criptas psíquicas”89 onde se esconde, mesmo após a conclusão da psicanálise,

o Complexo de Édipo.

Segundo J. Lacan, O narcisismo representa o mundo e atua no lugar do

sujeito90.Para A. Green, em todos os níveis nele se fundem sujeito e mundo91,

não havendo, por isso, pessoas e indivíduos. Sempre o narcisismo abole a

diferença entre “um e outro”92. Mais uma vez se deve apontar que as

características da pós-modernidade, como foram descritas antes, coincidem

com o fenômeno do narcisismo. D. Levisky lembra que na pós-modernidade

há resistência conta a perda do passado, dizendo: “O homem contemporâneo

contém memórias, sistemas simbólicos e lingüísticos conflitando entre

86

Ibid., p.51 87

S. Freud, A dissolução do Complexo de Édipo, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de

Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, Volume XIX, 213-224 88

Letícia Clocer Fiori, Repensando o Complexo de Édipo, op. cit., p. 55 89

A expressão consta em Jean-Claude Rolland, Permanência do objeto edipiano, Revista Brasileira de

Psicanálise, Volume 48, n.2, 161-179, 2014, p.170 90

Jacques Lacan, O mito individual do neurótico, Lisboa: Ed. Assírio e Alves, 2ª Edição, 1987, p. 63 91

André Green, Narcisismo de vida e narcisismo de morte, São Paulo: Escuta, 1988, p.201 92

André Green, Sobre a loucura pessoal, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988, p.137

15

passado e presente que se chocam entre si ou que não se comunicam93. Tal

dificuldade, na verdade, é óbvia em virtude da regressão edípica ao narcisismo

cultural da sociedade. A superação de perda e sentimentos de abandono

implicaria no distanciamento interno em relação à sociedade atual. Neste

sentido se entende o aumento de casos de depressão como defesa de uma

dependência narcisista em relação a outros e a sociedade que abandona os seus

cidadãos. Dito de outro modo, o aumento da depressão no tempo atual tem a

ver com a defesa da identificação narcisista com a sociedade. Negando a

realidade da vida e dos outros, salva-se o narcisismo da sociedade que, de

certo modo, funciona como ideal do útero materno.

Hoje, psicanalistas se preocupam com a influência das redes sociais na

técnica psicanalítica. Segundo Chr. Bollas, hoje o psicanalista precisa se

concentrar “mais nas percepções indiretas geradas pela revolução da

informação”94. O analisando quer soluções rápidas, do tipo de um produto que

elimine os problemas psíquicos95. O facebook favorece identificação e fusão

com outros. Não há insight, mas visão que leva o autor a falar de “visiofilia” e

“visiofílico”96. Enfrentamos o “sujeiticídio” que é a transformação do sujeito

em objeto. Neste contexto, o autor fala de uma ‘normopatia”97.

A Lemma pergunta como as redes sociais influem na técnica

psicanalítica. Como usar as novas formas de comunicação social nas nossas

interpretações? Uma das questões é como é a relação com o corpo na

realidade das redes digitais98. Para a autora, “o virtual é para o real o eu a

cópia é para o original”:uma reprodução que permite que os desejos

colonizem a realidade”. De certo modo, o próprio setting psicanalítico como a

transferência são realidades virtuais99.

P. Montagna lembra que a formação de psicanalistas na China se deu

por skype100. Além disso, pode haver análise por telefone e por Skype, desde

que os elementos da terapia psicanalítica estejam presentes101.Na mesma

93

David Leo Levisky, Reflexões acerca da violência, pós-modernidade e transformação nos processos de

subjetivação, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume 21,n.2, 413-428, agosto 2014, p.419 94

Christopher Bollas, Psicanálise na dera da desorientação: do retorno do oprimido, Revista Brasileira de

Psicanálise, Volume 49, n.1, 47-66, 2015, p.53 95

Ibid., p.55. Ver também Plínio Montagna, Skypeanálise, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49, n.1,

121-135,2015, p.137 96

Christopher Bollas, Psicanálise na era de desorientação: do retorno do oprimido, op. cit., p.57.58 97

Ibid., p. 59 98

Alessandra Lemma, A psicanálise em tempos de tecnocultura. Algumas reflexões sobre o destino do corpo

no espaço virtual, Revista Brasileira de Psicanálise,Vvolume 49, n.1, 67-84, 2015, p.69 99

Ibid., p.70 100

Plínio Montagna, Skypeanálise, op. cit., p. 125; ver também Clarice Kowacs, Prática Psicanalítica,

tecnologia e hipermodernidade, Revista de Psicanálise da SPPA,Volume 21, n.3, 629-643 101

Plínio Montagna, Skypeanálise, op. cit., p.126.133

16

direção vai A. B. Dorado de Lisondo que diz: Hoje há “o imediatismo na

busca de resultados, o desterro das utopias, as saídas anti-insight, com a

fascinação das soluções mágicas e dos atalhos lights, a preponderância

massiva e permanente da imagem, o desejo de nada desejar, a perda dos

ideais, a rejeição ao simbólico, a transgressão à lei”102. Todavia, mudanças no

setting psicanalítico não podem diluir o específico da pratica psicanalítica que

é “o conhecimento inconsciente da mente num encontro intimo, que propicie o

desenvolvimento mental de paciente e analista”103. A autora alerta que tais

terapias à distância podem ser feitas somente em circunstâncias especiais, pois

‘podem ser um obstáculo, pelas limitações que impõem, ao empobrecer e

desvirtuar a essência da psicanálise”104. A. Blaya Luz aponta nestes casos

como negativo”o prejuízo para as relações humanas”105.

As opiniões ouvidas a respeito de “psicanálises a distância” parecem

estranhas, suscitando dúvidas a respeito da autenticidade de tal psicanálise. Ao

meu ver, pode-se recorrer a tais práticas somente em casos de absoluta

exceção e emergência em que mais ajuda a experiência do analista do que uma

interpretação de conteúdos inconscientes.

Duas questões em discussão são o número de sessões semanais e o uso

do divã na sessão psicanalítica. M. E. Cimenti pergunta: “Será somente no

divã que se faz psicanálise?”106. Não há a menor dúvida que o divã tem a sua

importância na análise. A posição deitada do analisando, tendo o analista fora

do seu campo de visão, favorece a introspecção dele, a livre associação de

idéias e os insights. Todavia convém lembrar que S. Freud preferiu essa

posição porque tentou evitar ataques de transferência. Sendo assim, a

capacidade de lidar com tais atuações deve dar legitimidade à posição de um

estar sentado à frente do outro. Penso que essa posição de frente a frente exige

do analista a capacidade de ser visto pelo analisando. Isto tem a ver com o

narcisismo. Sendo este o inconsciente da cultura atual e pós-moderna, a

posição frente à frente parece até mais adequada. As transferências e

contratransferências narcisistas colocam no centro terapêutico a angústia da

perda e do abandono. É esta angústia que gera a fusão com o narcisismo

cultural da pós-modernidade.

102

Alicia Beatriz Dorado de Lisondo, Psicanálise a distância, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49,

n.1, 136-150, p.137 103

Ibid., p. 138 104

Ibid., p. 141 105

Anette Blaya Luz, Oi. Q horas mesmo ficou nossa sessão? TKS, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume

49, n.1, 165-175, p.174 106

Maria Elisabeth Cimenti, Intervenção e perplexidade, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 48, n.2,

83-88, p. 87

17

A respeito do número das sessões semanais, B. Miodownik faz uma

diferença entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica, tendo a última somente

uma sessão semanal. Observando a técnica psicanalítica bem como a

associação livre de idéias do analisando e a escuta do analista, uma sessão

semanal pode ser suficiente107. O argumento que a questão financeira também

influa no número de sessões semanais, parece-me relativo. Da mesma forma

não convence a alegação que haja dificuldades reais de horários e,

“principalmente, porque não tem uma representação psíquica que valorize o

número maior de sessões”108. Em minha opinião, uma sessão semanal

consegue estabelecer uma relação intersubjetiva da mesma forma como um

número maior de sessões. Transferência e contratransferência se manifestam

da mesma maneira como num número maior de sessões. Conservando a

essência da técnica psicanalítica, portanto, não se pode eliminar a

possibilidade de uma sessão semanal.

Outra questão é a importância do dinheiro no processo psicanalítico.

Será que é o valor do honorário que garante um sucesso mais seguro da

psicanálise? Esta pergunta se coloca dentro do contexto do narcisismo da

sociedade e do sistema capitalista e neoliberal da sua economia. De acordo

com esse sistema econômico, de fato, a quantia do honorário reflete a pertença

a determinada classe social. A pergunta surge se a técnica psicanalítica

somente funciona quando o preço a ser pagão é alto. A resposta é claramente

que não! O único efeito que vejo é uma defesa do narcisismo social.

Penso que cada analista tem o direito de estipular o honorário que lhe

convém. O preço reflete então a escolha do analista e as suas necessidades

pessoais. A honestidade exige que a quantia do honorário seja desvinculada do

correto processo analítico. Este funciona independentemente do preço

cobrado. De qualquer forma, as questões do honorário, do uso ou não uso do

divã e do número das sessões semanais têm a ver com a análise do narcisismo

cultural e social.

Como conclusão provisória desta reflexão sobre “A Psicanálise na atual

pós-modernidade” poder-se-ia afirmar que esta insiste na inclusão do

narcisismo cultural e social no processo psicanalítico. Sendo o narcisismo o

inconsciente da cultura e da sociedade atual, novos enfoques se impõem. A

análise da “sociedade em nós”, como J. Lacan chama o narcisismo, visa um

novo posicionamento diante da sociedade e sua cultura. Além disso, a pós-

modernidade traz de volta uma religiosidade que a psicanálise julgava

107

Bernard Miodownik, Em defesa de uma certa heterodoxia: sobre a freqüência de sessões em psicanálise,

Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 48, n.2, 19-32, 2014, p.24 108

Ibid., p.29

18

superada. Há necessidade de um novo esforço de entender a religião sob o

aspecto da sua realidade inconsciente. Em vez de ser “neurose obsessiva da

humanidade”, ela revela a sua inserção no narcisismo. Enfim, a pós-

modernidade põe a psicanálise, como teoria e prática, diante do desafio, de um

lado, de formar uma identidade e liberdade pessoal e, do outro lado, de

favorece uma relação interpessoal com outros diferentes, relação essa que

possa criar uma verdadeira consciência comunitária.