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As ressignificações de Maria Antonieta no século XIX: de bode expiatório a rainha mártir a modelo a ser seguido Felipe Goebel* PPPGHIS UFRJ [email protected] A Rainha Maria Antonieta da França (1755-1793) é até os dias de hoje um ícone da moda e da indústria de bens culturais da França. É ela que, ao lado de Luís XIV, ao invés de seus dois sucessores, povoa os espaços de representação coletiva sobre o Ancien Régime e sobre o absolutismo francês. Nas últimas duas décadas, grifes como Chanel, Dior, Lanvin, Saint Laurent, Versace e Marchesa criaram coleções de roupas e acessórios inspiradas nos elaborados vestidos de corte e nos despojados trajes campestres aos quais é relacionada na cultura popular. Seu bucólico retiro pessoal do Petit Trianon e seus aposentos no Palácio de Versalhes atraem anualmente dezenas de milhares de turistas do mundo inteiro. Seu retrato mais famoso pode ser visto estampando nas pastas de vinil que os cidadãos franceses recebem ao retirar o passaporte. Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou a colorida cinebiografia, protagonizada pela atriz americana Kirsten Dunst, filmada inteiramente em Versalhes, contando com patrocínio do governo francês, e que chocou o Festival de Cannes pela abordagem modernizadora e favorável à última rainha da França. Apesar de ter sido vaiado no Festival e ter gerado polêmica na imprensa francesa, o filme tornou-se um ícone cult nos anos seguintes. Após seu lançamento, revistas de moda e estilo como Vogue, Elle, Marie-Claire, Variety e Time foram inundadas por editoriais e ensaios fotográficos que a tinham como musa. A Vogue chegou a cunhar o termo rococo-chic para o estilo que seria tendência em 2007-2008, e que reapareceu em 2015. As exposições Marie-Antoinette, em 2009 no Grand Palais, e Marie-Antoinette, métarmophose d’une image, exibida atualmente na Conciergerie, centraram-se em sua imagem pública controversa e nas diversas abordagens e interpretações dadas a elas ao longo do tempo. Ambas exibiram quadros oficiais, charges pornográficas, cartas pessoais, objetos de arte, reproduções de seus trajes e alcançaram sucesso de público e crítica. A do Grand Palais foi considerada a terceira mais visitada da França naquele ano e a da Conciergerie é a responsável pela revitalização do museu e prédio histórico que abriga a exposição. Inegavelmente, a representação de Maria Antonieta como um ícone da França pré-revolucionária e do Ancien Régime se faz presente no mercado cultural, dentro e fora do território francês. * Graduado em História pela UFRJ (2017) e mestre em História Social pelo PPGHIS-UFRJ (2019).

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As ressignificações de Maria Antonieta no século XIX: de bode expiatório a rainha

mártir a modelo a ser seguido

Felipe Goebel*

PPPGHIS – UFRJ

[email protected]

A Rainha Maria Antonieta da França (1755-1793) é até os dias de hoje um ícone da

moda e da indústria de bens culturais da França. É ela que, ao lado de Luís XIV, ao invés de

seus dois sucessores, povoa os espaços de representação coletiva sobre o Ancien Régime e sobre

o absolutismo francês. Nas últimas duas décadas, grifes como Chanel, Dior, Lanvin, Saint

Laurent, Versace e Marchesa criaram coleções de roupas e acessórios inspiradas nos elaborados

vestidos de corte e nos despojados trajes campestres aos quais é relacionada na cultura popular.

Seu bucólico retiro pessoal do Petit Trianon e seus aposentos no Palácio de Versalhes atraem

anualmente dezenas de milhares de turistas do mundo inteiro. Seu retrato mais famoso pode ser

visto estampando nas pastas de vinil que os cidadãos franceses recebem ao retirar o passaporte.

Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou a colorida cinebiografia, protagonizada pela atriz

americana Kirsten Dunst, filmada inteiramente em Versalhes, contando com patrocínio do

governo francês, e que chocou o Festival de Cannes pela abordagem modernizadora e favorável

à última rainha da França. Apesar de ter sido vaiado no Festival e ter gerado polêmica na

imprensa francesa, o filme tornou-se um ícone cult nos anos seguintes. Após seu lançamento,

revistas de moda e estilo como Vogue, Elle, Marie-Claire, Variety e Time foram inundadas por

editoriais e ensaios fotográficos que a tinham como musa. A Vogue chegou a cunhar o termo

rococo-chic para o estilo que seria tendência em 2007-2008, e que reapareceu em 2015. As

exposições Marie-Antoinette, em 2009 no Grand Palais, e Marie-Antoinette, métarmophose

d’une image, exibida atualmente na Conciergerie, centraram-se em sua imagem pública

controversa e nas diversas abordagens e interpretações dadas a elas ao longo do tempo. Ambas

exibiram quadros oficiais, charges pornográficas, cartas pessoais, objetos de arte, reproduções

de seus trajes e alcançaram sucesso de público e crítica. A do Grand Palais foi considerada a

terceira mais visitada da França naquele ano e a da Conciergerie é a responsável pela

revitalização do museu e prédio histórico que abriga a exposição. Inegavelmente, a

representação de Maria Antonieta como um ícone da França pré-revolucionária e do Ancien

Régime se faz presente no mercado cultural, dentro e fora do território francês.

* Graduado em História pela UFRJ (2017) e mestre em História Social pelo PPGHIS-UFRJ (2019).

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As representações de Maria Antonieta parecem muitas vezes, de fato, personificar o estilo do

final da monarquia absolutista francesa. Mais do que isso, essas representações a colocam em

um patamar de símbolo característico de um regime e de todo um século. A capacidade de

Maria Antonieta de centralizar em si o imaginário sobre a sociedade de corte do final do século

XVIII, de fato, não é uma invenção da moderna indústria cultural. Esse ponto se fez presente

desde que se tornou rainha em 1774 e passou a comandar a Corte de Versalhes ao lado de Luís

XVI.

Como rainha ela deveria assumir o papel de principal coadjuvante nos rituais da corte,

sua representação, exibição e performance pública devendo conformar-se as definições de

feminino esperada de uma rainha da França, ou seja, ao pio anonimato materno dedicado a

geração e criação de herdeiros. Ela deveria, além disso, ser a principal aliada do rei no que dizia

respeito à exaltação e glorificação de sua figura pública, ajudando-o a controlar a aristocracia

cortesã, a gerenciar o cerimonial e a passar a imagem exuberante e poderosa da realeza e da

dinastia Bourbon, na qual se apoiava o Ancien Régime. Como estrangeiras, as rainhas da França

e suas filhas, de fato, ficavam excluídas do poder político real, por meio da Lei Sálica. O poder

que deveriam desempenhar relacionava-se, dessa maneira, como uma espécie de complemento

ao poder do rei e só existia por advir deste. No modelo de sociedade de corte instituído por Luís

XIV, e seguido sem quase nenhuma alteração por Luís XV, a figura da rainha era uma peça

chave no equilíbrio das disputas internas da aristocracia: ela formava uma facção interna na

corte, geralmente relacionada com a Igreja e com membros mais tradicionais da realeza e da

nobreza, e disputava com a maîtresse-en-titre (principal amante do rei) por influência e domínio

dentro corte. Ao contrário do grupo da rainha, o da amante era formado por membros mais

jovens e menos tradicionais da aristocracia e ela interferia muitas vezes na política monárquica.

Não tendo que se conformar a definições de moralidade, religiosidade e maternidade e não

figurando nas representações e eventos oficiais, era permitido que a amante desempenhasse

papéis extravagantes relacionados a divertimentos e modas, enquanto a rainha deveria

conformar-se a atribuições tradicionais e formais.

O fato de Luís XVI não ter tido nenhuma amante abriu um precedente no equilíbrio

desse delicado esquema. Somou-se a isso timidez e inaptidão do monarca para demonstrações

públicas e exibição de sua figura, outra característica necessária para estabilidade da sociedade

de corte. Por outro lado, Maria Antonieta, desde que chegou a França como Delfina (esposa do

herdeiro, o Delfim), demostrou maestria em tais questões. Ao se tornar rainha, ela encontrou

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terreno fértil para sua personalidade expansiva. O vácuo de poder deixado pela ausência de uma

amante e pela incapacidade do marido em centralizar a vida da corte precisava ser ocupado e

Maria Antonieta o ocupou com grande habilidade. Rapidamente, ela passou a centralizar em

torno de si não apenas as prerrogativas que deveriam ser desempenhadas pela amante, mas, de

fato, passou a ocupar um lugar de destaque e prestígio sem igual, tendo mais a ver com o papel

que deveria ser desempenhado pelo rei. Sua recusa em seguir as regras de comportamento que

eram esperadas da rainha a colocou em uma posição sem igual em Versalhes. Ela insubordinou-

se desde o começo contra as regras de cerimonial da corte e inovou não apenas em relação ao

seu comportamento como rainha, mas, principalmente, explorou formas arrojadas de

representar e exibir sua figura pública, jogando frequentemente com a esfera pública e a esfera

privada. Seu séquito pessoal era formado por membros jovens e exuberantes da aristocracia

francesa, principalmente mulheres. Era o entourage de Maria Antonieta e não o de Luís XVI

que ditava o tom e as tendências de comportamento e de moda a serem seguidas na corte.

Colaborando intimamente com a recém-formada guilda das marchandes des modes - primeiro

grupo profissional dedicado exclusivamente a criação de novas tendências de vestuário -, indo

com frequência semanal a Paris e buscando acompanhar as rápidas transformações culturais e

estéticas que floresciam na metrópole, Maria Antonieta se tornou o brilhante orbe em torno do

qual a extravagante sociedade de corte girava.

Isso fica bastante claro no momento imediatamente anterior a eclosão da Revolução

Francesa. Ela, e não o rei, se tornou a pessoa mais odiada da França, o alvo principal dos

panfletos, charges e caricaturas políticas e pornográficas. Em suma, Maria Antonieta por ter se

tornado o centro da sociabilidade de Versalhes, por ter fugido de suas obrigações tradicionais

de rainha e por ter entrado em um território que deveria ser dominado pelo rei, passou a

personificar o que havia de mais extravagante, corrupto e errado na monarquia absolutista e na

corte, e foi julgada e executada tendo a realidade disseminada pelos libelos como pano de fundo

e apresentada como provas. Essa é a primeira interpretação dada a ela: a de culpada pela

derrocada da monarquia, a de estrangeira corrupta, a de rainha frívola e devassa que levou a

França ao abismo. Nas palavras do promotor Antoine-Quentin Fouquier-Tinville, que fez a

acusação formal contra ela no Tribunal:

Á maneira das Messalinas, Brunhildas, Fredegundas e Médicis, que foram chamadas

em tempos passados de rainhas da França, e cujos nomes para sempre odiosos não

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serão apagados dos anais da história, Maria Antonieta, viúva de Luis Capeto, foi,

desde sua chegada à França, o flagelo e a sanguessuga dos franceses.1

A interpretação revolucionária, porém, foi rapidamente substituída, apesar de ter sido a

responsável por a transformar na personificação dos pecados da monarquia absolutista e ser

primordial para o eclodir da Revolução. As interpretações sobre a trajetória de Maria Antonieta,

do mais extravagante privilégio a total derrota pessoal na guilhotina, foram criadas e

sedimentadas postumamente, ao longo do século de XIX, em um processo que visava reabilitá-

la e a consolidar como ícone cultural da França. São esses exames e explicações que criaram a

imagem que se faz presente até os dias de hoje, ainda que se relacionem de certa maneira com

a compreensão revolucionária sobre ela.

Dessa forma, o presente artigo busca examinar o desenvolvimento de uma retórica de

ressignificação/reabilitação de Maria Antonieta, analisando as três tópicas principais de

interpretação dadas à sua figura ao longo do século XIX. Examinamos, inicialmente a

obra Vie Privée de Marie Antoinette, primeira obra escrita a centrar-se na figura da rainha,

publicada imediatamente após a o eclodir da Revolução e que contém os relatos e memórias de

Madame Campan, sua dama de companhia favorita. Seguimos após isso para as diversas

biografias e escritos produzidos no período da Restauração dos Bourbon, realizadas sobretudo

por nobres franceses exilados (émigrés), que mitificaram positiva e negativamente o imaginário

sobre a rainha e como essas obras acabaram por solidificar uma memória institucional no

palacete do Petit Trianon, em Versalhes. Por fim, investigamos as diversas apropriações

interpretativas, realizadas ao longo do Segundo Império, sobretudo, as apropriações e novos

significados dados pela Imperatriz Eugênia não só ao imaginário relacionado a Maria

Antonieta, mas, principalmente, aos trajes associados à rainha.

O bode expiatório do regime monárquico absolutista

Mémoires sur la vie privée de Marie Antoinette foi publicado em 1823, em Paris. Trata-

se das memórias da antiga dama de companhia de Maria Antonieta, Henriette Campan. Ainda

que anteriormente algumas memórias de nobres exilados tenham sido publicadas e obtido certo

1 Foi utilizada os relatórios das sessões do julgamento dos dias 14 de outubro e 16 de outubro de 1793, presentes

no Le Moniteur Universel das referidas datas. Disponível em:

<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb34452336z/date1793>

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sucesso, sobretudo entre os émigrés, a obra de Madame Campan é o primeiro a se centrar na

vida da antiga rainha. O livro de fato dedica-se tanto a ela, deixando muitos aspectos da

trajetória da própria autora de lado, que pode ser lido como uma espécie de biografia

experimental. Nos interessa aqui não os relatos factuais da vida de Maria Antonieta,

extensamente detalhados por Campan, mas sim a interpretação dada por ela aos eventos que

vivenciou na Corte de Versalhes e durante os primeiros anos da Revolução.

Na década de 1820, Madame Campan se encontrava novamente em uma situação

delicada devido os rumos tomados pela política francesa. Ela havia sobrevivido ao período do

Terror e soube se reinventar de maneira primorosa. A dama de companhia favorita de Maria

Antonieta, e personagem popular entre os aristocratas de seu entourage, fugiu de Paris em 1791,

após a abolição da monarquia e o fechamento da corte. Retirando-se para a comuna de Saint-

Germain-en-Laye, ela viveu em relativo anonimato até 1794 quando abriu uma escola com o

dinheiro que havia herdado após a morte do marido. Erudita e atenciosa com as estudantes, a

escola rapidamente prosperou entre a nova elite letrada e burguesa estabelecida com a ascensão

de Napoleão Bonaparte. Por volta de 1800, ela recebeu Hortense de Beauharnais, enteada de

Napoleão (filha do primeiro casamento da imperatriz Josefina) e Caroline Bonaparte, irmã mais

nova do imperador no seu estabelecimento de ensino. Dedicada ao ensino das jovens nobres,

Madame Campan atraiu a atenção do casal imperial e se tornou particularmente próxima do

imperador, que ficou impressionado com sua sagacidade e rapidez de pensamento. Após deixar

a escola e tornar-se rainha da Holanda, Hortense continuou apoiando e patrocinando a antiga

professora e sua escola.

Por influência da enteada e da irmã, Napoleão a nomeou, em 1807, diretora da primeira

Maison d’éducation de la Legion d’Honneur, estabelecida no Palácio de Écouen. Pensada como

uma escola de elite para meninas cujos pais, avôs ou bisavôs tivessem recebido a medalha da

Legião da Honra, a escola fazia parte do plano educacional do império, determinado a criar uma

elite letrada nacionalista. A Legião da Honra (Legion d’Honneur) é a mais alta ordem de mérito

na França, tanto para civis como para militares. Foi estabelecida em 1802 por Napoleão e

mantida por todos os governos e regimes franceses posteriores, até os dias atuais. A ordem é

dividida em cinco graus de distinção crescente: Cavaleiro (Chevalier), Oficial (Officer),

Comandante (Commandeur), Grande Oficial (Grand Officer ) e Grande Cruz (Grand Croix).

Em uma carta escrita para a diretora, em maio de 1807, Napoleão definiu de maneira assertiva

o objetivo que Madame Campan deveria cumprir: “Crie para nós crentes e não pensadoras.”

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Ele exigia um regime de estudos simples, porém rígidos, com classes de francês e latim, história

da França, literatura francesa, filosofia, aritmética e atividades físicas constantes com o objetivo

de "dominar a vaidade, que é a paixão mais ativa do gênero (feminino)" e fazer as alunas

crescerem como mães, esposas e trabalhadoras empenhadas com o crescimento da Nação

(ROGERS, 1993, p.7). Campan foi bem-sucedida no cargo de diretora até 1814, quando a

escola foi fechada pela Restauração Monárquica dos Bourbons. Retirou-se discretamente,

então, para a cidade de Mantes, contando ainda com a amizade e patrocínio de Hortense e

Caroline, e passou a dedicar-se a escrever suas memórias. Buscando afastar sua imagem das

ligações próximas que mantivera com o regime napoleônico, ela centrou seus escritos no

período monárquico absolutista pré-revolucionário, retomando sua proximidade com Maria

Antonieta e com outros membros da realeza Bourbon, que agora havia retomado,

momentaneamente, o poder.

Debruçando-se sobre o período da Corte de Versalhes, Madame Campan nos dá um

claro e detalhado retrato do funcionamento do cerimonial e da etiqueta cortesã que a jovem

Maria Antonieta se viu obrigada, reticentemente, a cumprir. Mais importante é a maneira como

ela descreve a jovem: espontânea, ingênua, expansiva e dada a atos sentimentais repentinos. O

incomodo da jovem com as complicadas regras de exibição pública da corte e com os jogos e

intrigas é aumentado pela descrição do extenso aparato de formalidade da monarquia

absolutista. Campan é sempre direta no que diz respeito a alienação não apenas de Maria

Antonieta, mas de todos os aristocratas cortesãos, em relação aos problemas enfrentados pela

França. Para ela, “Versalhes havia se tornado uma luz votiva mantida sob uma redoma, afastada

de tudo e de todos que não podiam adentrar a redoma, mas, ainda assim brilhante e chamativa.”

Assumindo uma postura não exatamente de defesa do absolutismo, mas claramente contrária a

Revolução, ela desfia os acontecimentos da década de 1780-1790 com uma criteriosa

preocupação em narrar apenas o que viu ou o que tinha absoluta certeza que ocorreu. Seu afeto

por Maria Antonieta é marcante e sua defesa, por outro lado, é clara.

A interpretação de Madame Campan é, além disso, bastante específica. Maria Antonieta

era uma princesa criada em uma corte germânica menos formal que a francesa por uma mãe

dominadora, mais preocupada com a política internacional de seu vasto império do que com o

bem-estar da filha. O casamento real que selou a aliança franco-austríaca não levou em conta a

inadequação e a deficiência na educação formal do casal: nem Maria Antonieta nem Luís

Augusto haviam, de acordo com ela, sido preparados devidamente para lidar com a complicada

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política aristocrática francesa da corte e muito menos para governar a França. Ademais, a

personalidade de Maria Antonieta era oposta ao modelo de comportamento aristocrático

esperado e exigido em Versalhes; ela não tinha a habilidade de dissimulação e controle dos

sentimentos necessário para a sobrevivência e sucesso nos círculos da corte. Maria Antonieta

só teria aprendido a dominar essas características de maneira superficial e após sucessivos

fiascos, o que lhe custou, desde o início, muitos desafetos entre a tradicional aristocracia

francesa. O fracasso inicial do matrimonio, as pressões maternas e do embaixador austríaco, as

críticas que sofreu dos cortesãos e os complôs de Madame Du Barry (antiga amante de Luis

XV) a isolaram e a traumatizaram, o que teria consequências futuras, ao mesmo tempo que

explicaria seus atos posteriores quando se tornou rainha.

Madame Campan, porém, faz algumas críticas, ainda que as justifique de alguma forma.

Por exemplo, ela condena de maneira enfática o que chama de “comportamentos erráticos e

frívolos da rainha”, ou seja, sua paixão pelos bailes, festas, jogos e divertimentos, ainda que

essas atividades fossem, de certa maneira, esperados dela como centro da vida social da corte.

Em relação aos gastos, ela censura o envolvimento profundo de Maria Antonieta com as

extravagantes modas criadas pelas marchandes des modes, sobretudo Rose Bertin, e a

consolidação do grupo popularmente chamado Ministério da Moda; ainda assim ela afirma que

os gastos da rainha não eram de maneira alguma fora do comum ou mais elevados que os de

outros membros da realeza, como os da irmã ou os das tias do rei. Outro ponto interessante diz

respeito ao favorecimento de alguns membros do seu círculo íntimo, como a Duquesa de

Polignac, a Princesa de Lamballe e membros jovens da realeza e da aristocracia, em detrimento

de membros mais antigos que esperavam ser favorecidos pela sua precedência social. Ainda

que possa ser condenável, Campan argumenta que Maria Antonieta contava com nenhum ou

pouco apoio e aceitação dos nobres mais estabelecidos na corte e, por isso, cercou-se de um

grupo de jovens que pensavam e agiam como ela, oxigenando uma corte a muito engessada em

suas formalidades e práticas.

A interpretação final de Madame Campan é que Maria Antonieta foi a maior vítima da

Revolução e foi a escolhida, pelo seu status de estrangeira, mulher e devido a sua inadequação

e postura desafiadora frente as convenções de comportamento aristocrático, para ser o bode

expiatório do regime Bourbon. “Os pecados e fracassos de mais de um século de monarquia

foram todos jogados nos ombros dela”, em suas palavras. A expiação dos “pecados” da

monarquia absolutista deu-se, portanto, pelos ataques frenéticos e violentos contra ela: os

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lideres revolucionários e os escritores dos libelos encontraram nela a vítima perfeita e

desprotegida para exacerbar os problemas enfrentados pela França; para Campan, a criação de

um único alvo, que personificasse imaginariamente o que havia de mais escandaloso na corte e

na aristocracia, deu-se, porém, de maneira quase natural, uma vez que desde o começo Maria

Antonieta se encontrava em terreno desfavorável a ela e ao que representava como austríaca e

rainha. Mais do que Luís XVI, a rainha e a imagem criada sobre ela nos panfletos foi, para

Campan, o combustível que animou o frenesi de violência que acabou por fugir do controle dos

líderes revolucionários em 1792-1793, durante o período do Terror.

A tópica do bode expiatório, com seus argumentos sacrificiais e de expiação dos erros

da monarquia, de fato, não era uma criação inédita de Madame Campan. Essa interpretação

sobre o papel desempenhado por Maria Antonieta na queda da monarquia e na Revolução já

era bem conhecida e presente entre os émigrés. Tal explanação, por exemplo, já figurava de

maneira enfática nos escritos do Conde de Montlosier publicados no Courier de Londres, jornal

fundado por alguns émigrés que se estabeleceram na Inglaterra (CARPENTER, 1999, p. 18).

Essa parece ser a visão partilhada pela maior parte dos nobres que sobreviveram à Revolução e

que se estabeleceram em diversas partes da Europa, incluindo alguns membros da antiga

realeza, como o Conde e a Condessa d’Artois (cunhados de Maria Antonieta e membros de seu

círculo íntimo), que capitanearam a contrarrevolução. Madame Campan, porém, não estava

apenas resumindo os sentimentos dos antigos aristocratas francesas; ela, de fato, estabeleceu

uma tradição letrada de interpretação sobre a trajetória e a figura de Maria Antonieta, que se

faz presente na grande maioria das inúmeras memórias escritas pelos émigrés ao longo do

século XIX.

A tópica interpretativa de Maria Antonieta como o bode expiatório do regime Bourbon,

conforme consolidado por Madame Campan, encontrou imediata aceitação não apenas entre os

émigrés, onde havia sido originalmente gestada, mas também, e mais importante, no novo

regime monárquico que havia sido restaurado na França. A ressignificação de outras figuras do

regime Bourbon destituído era interessante para o novo regime monárquico. Maria Antonieta,

nesse sentido, era a figura ideal para essa função: ela era popular entre os nobres exilados e

entre a nobreza europeia, tanto na Inglaterra, como na Itália, Áustria e Suécia, não detinha poder

político real e ainda assim foi perseguida e executada. Essa narrativa foi extensamente

explorada pelo governo de Luís XVIII - antigo Conde de Provença - e mais marcadamente por

Carlos X - antigo Conde d’Artois e amigo íntimo de Maria Antonieta. Mais do que isso, a

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reabilitação de sua figura – junto com a de outros membros da realeza e do chamado “período

de Versalhes” – funcionou no cenário mais amplo de busca por um imaginário e de uma tradição

que glorificasse o passado monárquico Bourbon. Dessa maneira, o bode expiatório servia a

diversos objetivos: não apenas isentava a última rainha, e a família real como um todo, de

qualquer responsabilidade como também revitalizava e divulgava a narrativa dos excessos de

violência e das atrocidades cometidas durante a Revolução. Mais do que isso, essa análise

servia, conforme se desenvolveu e foi exacerbada ao longo da década de 1830 e 1840, para

aproximar a França das potências imperiais reunidas no Congresso de Viena, sobretudo o

Império Habsburgo – família da qual Maria Antonieta advinha.

A Rainha Mártir

Conforme dito anteriormente a interpretação de Maria Antonieta como bode expiatório

foi gestada entre os círculos dos nobres franceses que fugiram da Revolução. Não é, portanto,

inesperado que o livro de memórias de Madame Campan tenha encontrado grande aceitação

nesses círculos. Muitas dos leitores nobres, na verdade, figuravam no relato e conheciam a

própria autora. Não é também nem um pouco surpreendente que nas décadas de 1820 e 1830,

antes e depois da Restauração Monárquica, diversos livros de memórias tenham sido publicados

por antigos aristocratas da Corte de Versalhes. Alguns deles eram de autoria de membros do

entourage de Maria Antonieta, como a Viscondessa de Fars (que publicou suas memórias em

1830), a Condessa de Genlis (em 1837) e a Baronessa d’Oberkirch (em 1839).

A análise estabelecida por Madame Campan nesses casos foi desenvolvida e alargada,

abarcando novos temas, novos argumentos e visando novos objetivos. Dessa maneira, a

interpretação de Maria Antonieta como bode expiatório foi sendo sucessivamente expandida e

a imagem da rainha foi sendo resignificada de maneira a retratá-la como a vítima dos excessos

da Revolução. Ela então muito rapidamente se tornou a mártir da Revolução francesa, caluniada

e agredida de maneira ignóbil pelos panfletos e perseguida e morta injustamente. Fars, Genlis

e d’Oberkirch em suas memórias são enfáticas nessa postura. O exame que realizam sobre a

corte de Versalhes pode ser caricatural – não podemos esquecer que ambas, como a maior parte

dos nobres que escreveram sobre o período, eram jovens e se enfureciam com as convenções,

regras e rituais arraigados da corte -, mas são unânimes em retratar Maria Antonieta como uma

mulher bem intencionada, movida pelo amor a sua família e filhos. Quaisquer erros que possa

ter cometido são perdoados pelo seu fim, considerado por elas trágico e arbitrário, na guilhotina.

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A alegoria da rainha mártir, além disso, serve como um protótipo de justificativa para todos os

aristocratas da geração de Maria Antonieta, que se viram perseguidos pela Revolução.

Ademais, o tom empregado nesses escritos que estabelecem a figura da rainha mártir é

de claro saudosismo. Os nobres exilados tinham uma visão nostálgica da corte de Maria

Antonieta, sobretudo quando no Petit Trianon: não imperavam as regras absurdas e sem sentido

de Versalhes, as hierarquias sociais não eram rigidamente observadas, a espontaneidade e a

naturalidade de gestos e sentimentos eram estimuladas. Faz-se presente em grande parte a visão

do idílio campestre e bucólico que a rainha havia estimulado e buscado criar em seu retiro

pessoal no Parque de Versalhes. Que esse cenário fosse uma ilusão de espontaneidade,

obsessivamente criada, e que pouco tivesse a ver com a realidade, seja a da corte ou do ethos

da realeza e da aristocracia e, sobretudo, com o da vida do campo. Não que houvesse um desejo

de abdicar de seus cargos e privilégios; o que os aristocratas do círculo íntimo de Maria

Antonieta buscavam eram se separar, ao menos temporariamente, do cargo oficial que eram

obrigados a desempenhar publicamente, colocando o foco de suas vidas na esfera privada que

a rainha estava determinada a criar no Petit Trianon. Embora Maria Antonieta possa ter sido

infeliz ao ser obrigada a desempenhar o papel de Rainha da França e desejar escapar de sua

posição e de suas obrigações, ela certamente não desejava ser menos que uma rainha, assim

como seus seguidores não desejavam ser menos do que nobres. Ela queria ser, porém, o tipo de

rainha que desejasse e não o tipo que a etiqueta e cerimonial de Versalhes ditavam que ela

deveria ser na esfera pública.

A defesa dessa espécie de transgressão à rígida sociedade de corte, mas dificilmente

uma rebelião política consciente e profunda, é a base da ressignificação de Maria Antonieta

como rainha mártir. Jacques Revel muito bem articulou o dilema de Maria Antonieta e seus

seguidores ao escrever sobre a pretensão em conduzirem suas vidas como desejavam e em criar

um espaço que fosse apartado do teatro das exibições públicas de Versalhes. Para Revel, Maria

Antonieta “esqueceu a máxima de que a realeza não tinha direito a uma vida privada” dentro

da sociedade de corte (REVEL, 1991, p. 118). Revel continua analisando o desejo da Rainha

de criar um espaço privado e controlado por ela, simbolizado pelo Petit Trianon e defendido

enfaticamente nas memórias escritas por suas partidárias na década de 1830:

Nesse caso, a encenação de uma esfera privada se situa na origem de

uma degradação da representação da corte que se tornou trivial, até

mesmo ridícula. Era uma piada, talvez até mesmo um ultraje, a Rainha

e suas damas brincando de ser camponesas ou leiteiras com seus

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baldes de porcelana de Sévres e seus equipamentos dourados.

Claramente podemos ver a indignação social gerada a partir daí e

antecipar a dramática distinção entre a Rainha e seu entourage

brincando de ser aldeões e a realidade enfrentada pela população

francesa. É muito fácil, portanto, imaginar Maria Antonieta,

estilosamente vestida como uma camponesa, proferindo a frase

apócrifa: “Que comam brioches”! (REVEL, 1991, p. 123)

Essa visão crítica do comportamento da corte particular de Maria Antonieta,

obviamente, não se encontra nas memórias. Pelo contrário, essa conduta é justificada e

defendida. Criar uma esfera particular onde uma pretensa e encenada naturalidade e

espontaneidade dominassem era algo a ser elogiado como uma espécie de reação as intrigas e

a politicagem que dominava a corte. O Petit Trianon e o que ele representou em matéria de

inovação de comportamento aristocrático é ferrenhamente louvado e serve também como

munição para o argumento de que Maria Antonieta foi injustamente atacada, humilhada,

julgada e executada pela Revolução.

Estabelecida como um desenvolvimento exagerado da tópica do bode expiatório, a

interpretação de Maria Antonieta como rainha mártir encontrou aprovação imediata no reinado

de Carlos X. Tendo participado, junto com sua esposa, do círculo íntimo da antiga rainha e

frequentado o Petit Trianon com frequência, essa visão idílica e sentimental sobre o período

certamente agradou o monarca. Carlos X de fato tinha em sua biblioteca pessoal no Louvre

cópias autografadas das memórias da Condesa de Genlis e da Baronesa d’Oberkirch. Além

disso, outra figura bastante elogiada e reinterpretada nesses escritos era Gabrielle de Polastron,

Duquesa de Polignac, e melhor amiga de Maria Antonieta. Como líder do partido

ultraconservador e primeiro ministro do reinado de Carlos X, o Príncipe de Polignac – filho de

Gabrielle – apoiava essa interpretação e a estimulava na diminuta corte.

Empenhado em politicas de restituição e indenização dos monarquistas que haviam

perdido suas propriedades ao saírem da França, o regime ultraconservador e ultramonarquista

de Carlos X encontrou nessa interpretação de Maria Antonieta um exemplo poderoso a ser

usado para acusar a Revolução de ter cometido crimes imperdoáveis; entre eles ter perseguido,

humilhado e executado a última rainha da França que foi martirizada pelo banho de sangue do

período do Terror. Sendo fortemente endossada pelo regime Bourbon restaurado, essa visão

encontraria partidários ainda durante a Segunda República e ganharia novo gás durante o

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Segundo Império, agora com a ação institucionalizada da Imperatriz Eugênia, esposa de

Napoleão III.

O modelo idealizado do Segundo Império

Com a queda da monarquia Bourbon restaurada e o golpe de estado dado pelo presidente

Luís Napoleão Bonaparte (sobrinho do antigo imperador), que se proclamou imperador sob o

nome de Napoleão III, a reinvenção de Maria Antonieta como ícone do passado monárquico

francês tomou novos rumos. Aproveitando as tópicas anteriores, de bode expiatório

desenvolvida na rainha mártir, o novo regime imperial se apropriou da memória institucional

do período do absolutismo como forma de criar uma tradição que justificasse seu direito ao

trono. Retomando hábitos tanto do império napoleônico como da Corte de Versalhes, Napoleão

III e sua esposa, a Imperatriz Eugênia, buscavam estabelecer uma nova dinastia que fosse

claramente definida e institucionalizada pelos seus marcos alegóricos de representação do

poder.

Desde o início de seu reinado, Napoleão III usou a moda para servir seu programa

político. Em fevereiro de 1853, ele oficializou o cerimonial de corte por meio da retomada da

obrigatoriedade de trajes específicos para se frequentar a corte: ninguém, sejam súditos,

aristocratas ou enviados de outros países, seria recebido sem estar em trajes formais de corte

ou em uniformes militares. As mulheres, especificamente, como no século XVIII, tinham regras

estritas de vestuário: crinolinas armadas, espartilho e corpete, mangas pendentes e rendadas. O

casamento do imperador com Eugênia Montijo, Condessa de Teba, em 1854, foi recebido com

consternação tanto por franceses quanto por ingleses e austríacos, que não queriam e nem

esperavam que o monarca desposasse uma espanhola, ainda mais não pertencente à casa

Habsburgo. Sensível a isso, o casal imperial buscou, imediatamente, criar um ambiente elegante

e uma corte formal e regrada onde fossem o centro da sociabilidade e do poder político

(BAGULEY, 2000, p. 50-58). E a moda ajudou a estabelecer o tom distintivo do casal e da

nova corte francesa. A busca de Napoleão III para restabelecer Paris como a capital do mundo

civilizado provocou um aumento acelerado na exibição elaborada do poderio industrial e

modernizador, além da pretensa supremacia cultural e política da França. A sobriedade que

havia marcado ambos os reinados anteriores (Luis XVIII, Carlos X e Luís Felipe Orleans) deu

lugar a extravagantes bailes estatais, paradas militares planejadas, recepções pomposas de

dignitários estrangeiros e ostensivas apresentações de novas óperas e balés patrocinados pelo

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Império. A suntuosidade, efetivamente, retornava no lugar da sobriedade burguesa inaugurada

pela Revolução. (BAGULEY, 2000, p. 23)

Saias amplas com crinolinas e cinturas espartilhadas já eram tendência quando Eugênia

assumiu sua posição imperial na França; no entanto, ela popularizou e estabeleceu a crinolina

e, às vezes, é erroneamente creditada coma a criadora da peça. Ela escolheu muito cedo Charles

Frederick Worth como o criador principal de seus trajes, em um momento em que a alta costura

florescia e o sistema da moda já estava plenamente estabelecido. Mais do que isso, a moda era

entendida e consumida como uma ferramenta legítima de expressão individual e de distinção.

Worth, com o patrocínio imperial, se tornou o maior dos criadores da moda feminina francesa

no século XIX, vestindo não apenas a imperatriz, mas outros chefes e mulheres proeminentes

da Europa. Worth impulsionou, além disso, a popularização e o domínio das crinolinas e

espartilhos para as classes altas burguesas: movimentos rápidos eram impossíveis e um andar

controlado, essencial para manter a saia volumosa no lugar, era necessário mantendo o corpo

sob controle restrito. Além disso, ele registrou todos os gostos de Eugênia em cores e contornos,

e suas preferências supostamente anulavam aquelas de outros membros da corte, que também

eram seus clientes.

Com isso em vista, o paralelo entre Eugênia e Maria Antonieta fica bastante óbvio.

Ambas haviam tido um envolvimento particular e íntimo com os afazeres da moda, ambas

patrocinaram classes de criadores de estilos e gastavam somas altas com trajes e adornos.

Principalmente, ambas souberam usar sua aparência e a maneira como cobriam seus corpos

como instrumentos de poder, seja privado – relacionado com sua afirmação pessoal dentro de

uma corte estrangeira – seja como símbolo do poderio dos regimes aos quais eram membros

privilegiados. Essa ligação entre ambas é ainda mais clara quando analisamos a ação efetiva de

Eugênia em relação a memória e a interpretação de Maria Antonieta como ícone da França. Ela

não só encomendou fantasias de Maria Antonieta para bailes de máscaras, como patrocinou

diversos produtos da Maison Worth que se relacionavam direta ou indiretamente com ela – uma

seda em um tom específico de azul foi denominada Maria Antonieta e um perfume chamava

Petit Trianon.

A relação da Imperatriz com o retiro campestre da antiga rainha é ainda mais direto:

praticamente abandonado desde a Revolução, o palacete, seus jardins ingleses e o hameau (a

pitoresca fazenda modelo) foram inteiramente reformados a mando de Eugênia e o espaço

tornou-se, mais uma vez, um retiro idílico, funcionando não apenas como residência de verão

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de Eugênia, mas, junto com o Palácio de Versalhes, palco privilegiado dos principais grandes

eventos da corte. O Petit Trianon tornou-se, ao longo do segundo império, sob a influência

direta da Imperatriz, um local de prestígio: em 1867 sediou o baile de gala de abertura e

encerramento da Segunda Exposição Universal. Essa busca do governo imperial de Napoleão

III por um passado, por uma tradição monárquica pretensamente gloriosa como forma de

validar sua pretensão ao trono (ocupado por meio de um golpe de estado), enquadra-se num

projeto mais amplo de justificação do retorno ao modelo imperial. Nesse sentido, Maria

Antonieta, como figura proeminente e que já contava com uma tradição de ressignificação

estabelecida desde sua execução, foi privilegiada nesse processo.

A tópica da rainha mártir, nas mãos de Eugênia – com o apoio da Maison Worth e dos

diversos arquitetos e decorados contratados para a reforma do Petit Trianon – desenvolveu-se

para tornar-se um modelo de feminilidade a ser seguido pelas damas refinadas de origem

burguesa, mas que cotejavam adotar hábitos e comportamentos considerados aristocráticos.

Esse modelo de feminilidade, porém, era uma reinvenção modernizada e, amplamente,

burguesa da tradição aristocrática do século XVIII, pouco tendo realmente dos hábitos

aristocráticos do período. Ainda que na aparência fosse adotado o controle e regramento do

corpo, além da exibição pública regida por estritos protocolos de etiqueta, era estimulado a

ideia idealizada de transparência e espontaneidade de sentimentos, advindo do legado burguês

da Revolução e do ideário rousseauniano. O que se percebe então, ao longo do Segundo

Império, é a tentativa de modernização das tradições aristocráticas francesa e de um passado

monárquico representado de maneira grandiosa. Ou seja, “por meio das aparências, pode se

perceber que o Segundo Império foi construído sobre bases que buscavam o moderno, porém o

faziam seguindo algumas trilhas que resgatavam a tradição.” (DEBOM, 2015, p. 193) E uma

dessas trilhas foi o desenvolvimento da retórica de reabilitação de Maria Antonieta e o seu

estabelecimento institucionalizado como ícone da França do século XVIII.

Considerações finais

A análise de uma retórica de reabilitação de figuras proeminentes da história nacional

da França, conforme proposto por Antoine Lilti, é um processo sedimentado no país, típico do

século XIX e início do século XX, mas que encontra ecos até os dias de hoje (LILTI, 2018, p.

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8). Nesse sentido, Maria Antonieta ocupa um espaço distinto e bastante específico nesse

processo. Não apenas por não ser francesa, mas, sobretudo, por ter sido uma personagem

bastante impopular quando em vida e a única rainha da França a ser julgada e executada. As

tópicas presentes nessa retórica, além disso, iniciam-se imediatamente após sua morte e se

estabelecem muito precocemente. Nas três tópicas iniciais propostas - bode expiatório do

absolutismo, rainha mártir da Revolução e modelo de feminilidade imperial – podemos

observar a fundação de uma memória em disputa acerca não apenas de sua figura e de suas

representações, mas também a disputa por uma narrativa canônica sobre o último reinado da

monarquia absolutista.

Além disso, essa retórica ilustra muito bem o conflito entre a busca por uma tradição

aristocrática e a modernização burguesa e industrial que marcam a França oitocentista. Se por

um lado Maria Antonieta poderia ser interpretada pela chave de leitura revolucionária – ou seja,

a de representante máxima dos excessos e extravagancias da Corte de Versalhes – os diversos

regimes da primeira metade do século XIX estimulavam a institucionalização de uma

interpretação favorável a ela e que a reabilitasse como ícone da França. Essa retórica de

reabilitação sobre Maria Antonieta, ao longo do século XIX, expõe de maneira direta e

personalizada o choque entre modernidade e tradição, típico do Oitocentos francês. Reafirma,

além disso, a idealização e a busca pelas tradições aristocráticas, porém agora recodificadas e

adaptadas para a sociedade tipicamente burguesa e industrial que se instituía no período.

Seja de maneira positiva ou negativa, porém, é inegável o encanto e fascínio que sua figura

exerce até hoje na França.

Referências bibliográficas:

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