A reescrita no Romance Arturiano

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1 Renato Roque A Reescrita no Romance Arturiano A Nossa Demanda 2015

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Este texto está claramente dividido em duas partes. Na primeira, que corresponde à secção 2, tentaremos interpretar a história da reescrita dos romances arturianos, desde os primeiros textos, em celta e latim, ainda da primeira metade do primeiro milénio, originários das Ilhas Britânicas, até ao ciclo chamado Pseudo-Boron que chega à Península Ibérica no século XIII. O diagrama que construímos, e que apresentamos na Figura 1 - Diagrama de evolução do romance arturiano, pareceu-nos ser uma peça fundamental para compreender a sequência de objectos e as relações entre eles. Na segunda, que corresponde à secção3, faremos uma leitura pessoal crítica do único romance do ciclo arturiano ibérico editado em Portugal, Demanda do Santo Graal, tomando como principais guias os dois livros editados por José Carlos Miranda (JCM) sobre este romance, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA LINHAGEM e A DEMANDA DO SANTO GRAAL E O CICLO ARTURIANO DA VULGATA e a tese de Ana Sofia Laranjinha (ASL), ARTUR, TRISTÃO E O GRAAL A ESCRITA ROMANESCA NO CICLO DO PSEUDO-BORON.

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    Renato Roque

    A Reescrita no Romance Arturiano

    A Nossa Demanda

    2015

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    ndice

    1. Introduo ................................................................................................................................................................ 3

    1.1 A reescrita no romance arturiano exige um mapa ............................................................................................. 4

    1.2 Como iremos conduzir a nossa anlise .............................................................................................................. 4

    1.3 A organizao do texto ..................................................................................................................................... 5

    2. A reescrita no romance arturiano .............................................................................................................................. 6

    2.1 Uma viso global da reescrita ........................................................................................................................... 6

    2.2 A reescrita de cada etapa ................................................................................................................................. 9

    2.2.1 Primeira etapa .................................................................................................................................................. 9

    2.2.2 Segunda etapa ................................................................................................................................................ 11

    2.2.3 Terceira etapa ................................................................................................................................................ 15

    2.2.4 Quarta etapa .................................................................................................................................................. 22

    2.2.5 Quinta etapa................................................................................................................................................... 26

    2.2.6 Sexta etapa ..................................................................................................................................................... 35

    3. A reescrita do Livro do Graal .................................................................................................................................... 38

    3.1 Introduo ..................................................................................................................................................... 39

    3.2 O estudo do romance da Demanda do Santo Graal ......................................................................................... 41

    3.3 A organizao do romance Demanda do Santo Graal ...................................................................................... 46

    3.4 O esprito proftico do romance e a linhagem ................................................................................................. 48

    3.5 A demanda .................................................................................................................................................... 54

    3.5.1 A revelao percurso tico, os protagonistas ..................................................................................................... 55

    3.5.1.1 Galaaz ......................................................................................................................................................... 58

    3.5.1.2 Galvam ........................................................................................................................................................ 63

    3.5.1.3 Persival ........................................................................................................................................................ 68

    3.2.1.3 Lancelot ....................................................................................................................................................... 71

    3.2.1.5 Boorz ........................................................................................................................................................... 75

    3.2.1.6 Artur............................................................................................................................................................ 76

    3.2.1.7 Genevra ....................................................................................................................................................... 80

    3.2.1.8 Outras ......................................................................................................................................................... 80

    3.2.2 Graal - Percurso alegrico Os escolhidos ........................................................................................................... 81

    3.2.3. Graal - Percurso espiritual Castelo de Corbric ................................................................................................. 91

    3.6 Morte do rei Artur ........................................................................................................................................ 100

    3.7 Alguns enigmas por decifrar ......................................................................................................................... 106

    3.8 Concluses sobre o romance ........................................................................................................................ 108

    4. Concluses ............................................................................................................................................................ 109

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    1. Introduo

    Quando olhamos para a produo escrita1 ao longo da histria da humanidade, ao sermos

    confrontados com o nmero enorme de manuscritos, livros, poemas, contos, lendas, romances,

    histrias, sentimo-nos obrigados a reconhecer que tal nmero extraordinrio, sobretudo se

    observarmos que quase sempre o/a autor(a) revisita temas tantas vezes j visitados por tantos

    autores(as) antes dele/dela: o tema do amor, o tema da paixo, o tema da viagem, o tema da vida e

    da morte, o tema da luta dos homens por uma vida melhor.

    Mas, como pode tal facto nos surpreender afinal tanto, se na msica, apenas com doze notas, os

    compositores conseguem prosseguir a criar todos os dias novas composies, que continuam a ser

    capazes de nos encantar? Parece haver na criao, e tambm portanto na criao literria, uma

    espcie de milagre da multiplicao dos pes (po para a alma?) que concede aos autores a

    capacidade mgica de, a partir de obras anteriores, criar novos objectos.

    Essa criao nunca feita a partir do nada (ex-nihilo), integra sempre desenvolvimentos anteriores,

    mas consegue surpreendentemente construir objectos que no existiam antes e que so mesmo

    capazes de continuar a nos fascinar e a nos emocionar.

    Entramos sempre com maior ou menor conhecimento do facto numa linhagem que nos convm e dentro dela que

    trabalhamos pelas nossas pequenas descobertas, mesmo os que se pretendem duma total originalidade. No h

    revolues literrias que rompam cerce com o passado. Olhem para elas, procurem bem, e l encontraro as fontes,

    as referncias, prximas ou distantes. Claro, os escritores que contam so aqueles que acrescentam ou opem

    alguma coisa ao que j existe, ou o exprimem de maneira diferente, mas cortes totais, rupturas, no se do.

    Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro

    Mas uma criao literria, se no pode romper com o passado, como escreveu Carlos de Oliveira,

    pode posicionar-se de formas diferentes relativamente ao que poderemos designar como patrimnio

    literrio anterior, a que curiosamente Carlos e Oliveira chama linhagem: a) pode construir um

    objecto novo, novo, evidentemente, sempre entendido com as limitaes que realmos antes; b)

    pode limitar-se a reescrever textos conhecidos, adaptando-os, de acordo com determinados

    critrios ou interesses.

    No segundo caso, no caso da reescrita, esta pode ser mais ou menos profunda, introduzindo

    pequenas alteraes ou alteraes que mudam completamente o sentido do texto anterior, e pode

    assumir aspectos diferentes: a) eliminar textos ou partes de textos; b) introduzir novas passagens no

    texto original; c) alteraes no texto fonte. O mais comum ser uma reescrita que combina as trs

    operaes: adio, subtraco e modificao.

    1 Intencionalmente, utilizamos aqui a designao produo escrita em vez de produo literria. De facto, parece

    muitas vezes prevalecer a ideia de que existe uma fronteira bem definida entre escritos historiogrficos e os escritos literrios, ainda que muitas vezes essa fronteira seja difcil de traar, sobretudo medida que caminhamos para trs no tempo. Assim, os textos literrios, a sua interpretao, a sua contextualizao, so quase sempre fundamentais para se "reconstruir" a histria e compreender a sociedade de outros tempos e, por outro lado, textos que poderiam precipitadamente ser considerados como no literrios revelam-se afinal como fundamentais na histria da literatura. Assim, as histrias, os poemas, os mitos podem ajudar a perceber as sociedades de outrora. o que acontece com a Grcia ou com Roma, mas tambm com a Idade Mdia, com a modernidade e se calhar at ao presente. Mas tambm muitos dos textos de cariz histrico se revelam como peas literrias fundamentais.

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    O escritor Carlos de Oliveira, que citmos acima, como se sabe, poderia ser um bom exemplo de

    rescrita da prpria obra na contemporaneidade, pois ao longo da sua vida reescreveu toda a sua

    poesia e toda a sua prosa.

    1.1 A reescrita no romance arturiano exige um mapa

    Quando fomos introduzidos no ambiente do romance medieval arturiano, que era novo para ns,

    sentimo-nos um pouco perdidos com a profuso de textos e de autores, que escreviam ou

    reescreviam romances, em poesia ou em prosa.

    Tal como tem acontecido sempre, pensmos que a nossa prpria escrita, tentando reproduzir o

    nosso processo de aprendizagem neste universo novo, nos poderia servir de carta, de bssola, ou de

    GPS, (se reescrevermos o conceito de guia no terreno, luz do sculo XXI), para a nossa viagem

    atravs desses escritos. Precisvamos de um mapa para nos orientarmos na floresta2. Esse mapa

    implicava uma anlise da sequncia e do significado dessa reescrita. Esta aproximao ao romance

    arturiano, ao longo da histria, desde os primeiros sculos de cristianizao nas Ilhas Britnicas at

    chegar a Portugal, conduzir-nos-ia depois numa segunda fase a uma tentativa de anlise da rescrita

    das aventuras do Graal, j que a Demanda do Santo Graal o nico romance arturiano publicado3

    em Portugal.

    No foi, por isso, por acaso que recorremos acima a uma citao de Carlos de Oliveira, onde o

    escritor, perante aqueles que pretendiam que o neo-realismo fosse um corte com toda a arte

    (burguesa?) anterior, reala a importncia que tm as fontes, as referncias, a linhagem, aquelas

    que acrescentam ou opem alguma coisa ao que j existe, ou o exprimem de maneira diferente.

    Foi a leitura recente da obra potica de Carlos de Oliveira e a descoberta da importncia que a

    reescrita tem nessa obra que nos levou porventura a pensar na possibilidade de abordar e reflectir

    sobre o significado da reescrita no romance arturiano, como fio condutor para a nossa entrada e

    sada deste labirinto. Esperemos que a nossa Ariadne nos possa ajudar.

    1.2 Como iremos conduzir a nossa anlise

    Se a literatura nos abre portas para o mundo no tempo em que a obra foi redigida, o que dizer de

    histrias, lendas, mitos que so reescritos ao longo do tempo. Parece ser de esperar que o sentido

    dessa reescrita tambm traduza alteraes sociais, culturais, ideolgicas e polticas do tempo em que

    essa reescrita feita. Talvez traduza essas alteraes sociais, culturais, ideolgicas e polticas de uma

    forma particularmente transparente, pois de outra forma como entender a necessidade de alterar

    histrias que j existiam?

    De facto, ao longo da histria da literatura podemos encontrar muitas reescritas de textos muito

    importantes, a comear pela Bblia, que vai sendo reescrita ao longo dos sculos. Nessa reescrita,

    podemos destacar a introduo do Novo Testamento ou a fixao da verso cannica, eliminando

    todos os evangelhos chamados apcrifos, que datar do sculo IV, como momentos chave nessa

    reescrita. Exemplos pertinentes de reescrita, ligados a mitos fundamentais da nossa histria,

    poderiam ser a batalha de Ourique ou os amores proibidos de Pedro e de Ins.

    2 De facto, como veremos, a aco nos romances de cavalaria decorre quase toda em deambulaes dos cavaleiros na floresta. 3 A Demanda do Santo Graal o nico romance arturiano editado no nosso pas, apesar e haver um manuscrito portugus

    integral de outro livro do ciclo, Estoire del Saint Graal, cuja edio est planeada, e fragmentos de outros.

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    Tentaremos, na medida das nossas limitaes, estar atentos a estes sinais. A criao, sob a forma da

    reescrita, em particular no romance arturiano, vai constituir o foco da nossa aproximao ao

    romance medieval e do mapa que iremos desenhando medida que prosseguimos.

    Duas notas, ainda:

    Nota 1: Os nomes das personagens arturianas variam ao longo do tempo e de autor para autor e, por

    isso, acontecer, ao longo deste texto, a mesma figura ser referida por nomes diferentes. Assim, por

    exemplo, Perceval, um dos heris do Graal, adoptar na segunda parte deste texto geralmente o

    nome de Persival, designao usada na Demanda Portuguesa. No conseguimos identificar um

    critrio slido para adoptar um s nome para cada personagem e, por isso, preferimos adoptar

    designaes em funo de cada contexto de escrita.

    Nota 2: Nas transcries que fizemos da Demanda, e so muitas, natural que subsistam algumas

    gralhas, em virtude, por um lado do nosso desconhecimento de galaico-portugus, e, por outro lado

    porque o nosso editor de texto no nos permite usar o ~ com algumas vogais, concretamente, com

    o u, com o e e com o i, e nos obriga assim, por exemplo, a no poder escrever uum ou

    uuma correctamente, com os tiles respectivos.

    1.3 A organizao do texto

    Este texto est claramente dividido em duas partes.

    Na primeira, que corresponde seco 2, tentaremos interpretar a histria da reescrita dos

    romances arturianos, desde os primeiros textos, em celta e latim, ainda da primeira metade do

    primeiro milnio, originrios das Ilhas Britnicas, at ao ciclo chamado Pseudo-Boron que chega

    Pennsula Ibrica no sculo XIII. O diagrama que construmos, e que apresentamos na Figura 1 -

    Diagrama de evoluo do romance arturiano, pareceu-nos ser uma pea fundamental para

    compreender a sequncia de objectos e as relaes entre eles.

    Na segunda, que corresponde seco3, faremos uma leitura pessoal crtica do nico romance do

    ciclo arturiano ibrico editado em Portugal, Demanda do Santo Graal, tomando como principais guias

    os dois livros editados por Jos Carlos Miranda (JCM) sobre este romance, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA

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    LINHAGEM e A DEMANDA DO SANTO GRAAL E O CICLO ARTURIANO DA VULGATA e a tese de Ana

    Sofia Laranjinha (ASL), ARTUR, TRISTO E O GRAAL A ESCRITA ROMANESCA NO CICLO DO PSEUDO-

    BORON.

    Temos conscincia de que o nosso texto no ser capaz de adicionar nada de especialmente novo ao

    tema, para alm do que resulta de uma leitura pessoal crtica do texto do romance e de artigos e

    livros sobre ele publicados.

    2. A reescrita no romance arturiano

    Quando falarmos de reescrita do romance arturiano limitar-nos-emos aos textos que tiveram

    influncia nas verses dos romances que circularam na Pennsula Ibrica, e em particular em

    Portugal. De facto, h tambm ramificaes desta rvore de escrita e reescritas na Alemanha, na

    Itlia ou na Inglaterra, que deixaremos de fora.

    2.1 Uma viso global da reescrita

    A produo do romance arturiano, at os ltimos textos a circular em Portugal, ter durado menos

    de cem anos, como se pode observar na figura 1, e isto se considerarmos as suas razes mais

    profundas, que em verdade ainda no correspondem ao verdadeiro romance de cavalaria, ainda nas

    Ilhas Britnicas, ou melhor em territrio sob dominao normanda, e ainda em lngua latina. Como

    compreender uma produo e uma difuso to grandes em to pouco tempo do romance arturiano?

    s a pluralidade de autores e a simultaneidade no processo de redaco possibilitaria a produo de uma to grande

    quantidade de textos em to pouco tempo.

    ASL, ARTUR, TRISTO E O GRAAL A ESCRITA ROMANESCA NO CICLO DO PSEUDO-BORON

    Partamos ento para a nossa demanda, apesar de hoje no ser dia de Pentecostes.

    Em 1136, Geoffrey Monmouth publicou um livro, em latim e em prosa, intitulado Historia Regum

    Britannae (Histria dos Reis da Britnia), onde aparece a figura do rei Artur, como heri da epopeia

    dos bretes em terras britnicas. Esta vai ser a primeira escrita da histria do rei Artur que iremos

    analisar neste nosso pequeno ensaio pois, apesar de se conhecerem textos anteriores4, esta ter sido

    a principal fonte daquilo que viria a ser a saga arturiana dos romances da cavalaria. Da mesma poca

    um outro livro, intitulado Vita Merlini (1150), tambm em latim e tambm em prosa, sobre a vida

    do mago Merlin, e que tambm se atribui a Monmouth.

    A partir daqui h uma apropriao da histria por autores de lngua francesa e toda a produo vai

    ser feita em francs, primeiro em verso, depois em prosa. Esta (re)escrita alucinante vai prolongar-se

    at cerca de 1230, quando o ltimo ciclo arturiano, como veremos, est completo e tinha chegado a

    Portugal, e aparentemente cessa a escrita de romances na Pennsula Ibrica. O ciclo chamado

    4 Na realidade, parece haver muitas fontes, algumas bastante mais antigas, da lenda do rei Artur, sobretudo de origem galesa (ver por exemplo http://christophergwinn.com/celticstudies/arthur/arthur_pedigree.html, onde o autor deste estudo identifica um conjunto de crnicas relativas histria do rei Artur, anteriores e posteriores a Monmouth). De facto, podemos identificar, como fontes da lenda arturiana, textos de origem celta, mais antigos, e textos de origem latina mais recentes. A fonte mais antiga, escrita em latim, conhecida, ser um manuscrito, datado do sculo IX, intitulado Historia Brittonum. Parece reunir diversos textos, com origens diferentes, cuja compilao atribuda a um monge e escriba gals chamado Nennius. H um outro texto latino publicado em 1125, tambm muitas vezes mencionado, que conta igualmente a histria do rei Artur, intitulado Gesta Regum Anglorum, atribudo a William of Malmesbury, que era monge no mosteiro que lhe deu o nome.

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    Pseudo-Boron Ibrico, representado na figura, resultar da traduo de textos franceses, o que ter

    acontecido durante a primeira metade do seculo XIII.

    Aparece pouco depois dos livros de Monmouth um outro livro, j escrito em francs antigo,

    intitulado Roman de Brut (1155), atribudo a um autor normando chamado Robert Wace. Roman de

    Brut contm fragmentos da vida e da morte do rei Artur. Faz parte de um conjunto de cinco livros

    sobre lendas antigas e vidas de heris mticos, com a designao comum de Roman Antique5. no

    Roman de Brut que a ideia da Tvola Redonda aparece pela primeira vez.

    Vejamos agora, com base na figura 1, ainda em traos muito gerais, a sequncia de textos depois do

    Roman de Brut, e que foram publicados nas dcadas que se seguem. Depois faremos uma pequena

    aproximao a cada etapa do processo de reescrita.

    Temos um primeiro conjunto de manuscritos, da autoria de Chrtien de Troyes, escritos em verso e

    em francs antigo, a que se segue uma trilogia de pequenos textos Robert de Boron, primeiro em

    verso, depois em prosa.

    Depois de um Lancelot em prosa intermdio, chegamos finalmente ao que normalmente designado

    por ciclos arturianos, pretendendo com tal designao significar que os textos se completam de

    uma forma coerente, graas aos diversos livros terem sido adaptados de uma forma harmoniosa,

    para cada um continuar a narrativa anterior ou para justificar a narrativa que se segue. Esta

    constatao parece evidenciar a existncia de um plano inicial e de alguma coordenao na

    elaborao da histria no seu conjunto. Cada ciclo seria o resultado concreto da realizao desse

    plano.

    Observamos ento que parece haver um primeiro ciclo primitivo em prosa, um derivado dele com

    uma variante da Queste del Saint Graal, a que se chama habitualmente se chama Ciclo Vulgata6,e um

    segundo ciclo designado de Pseudo-Boron, que modifica as obras para introduzir novos textos. Por

    ltimo, o ciclo Pseudo-Boron na Pennsula Ibrica, com obras do ciclo Pseudo-Boron traduzidas em

    castelhano e galego-portugus.

    Ou seja, vrios ciclos completos em algumas dezenas de anos! Perante esta azfama de (re)escrita no

    sculo XII e XIII, teremos que abrir os olhos de espanto. E que dizer, ao sermos confrontados com o

    nmero de romances e sobretudo com as diversas verses desses textos, que durante menos de cem

    anos se produziram, e com as evidncias de uma extraordinria disseminao desses livros pela

    Europa e em particular na Pennsula Ibrica, na lngua original e traduzidos para as lnguas

    peninsulares? Teremos de nos interrogar sobre o que isto poder significar?

    5 Os outros quatro contam a lenda de Tria, a lenda de Tebas, a vida de Alexandre e a vida de Eneias.

    6 A relao entre as duas verses conhecidas da Queste del Saint Graal (ver diagrama) no primeiro ciclo arturiano

    polmica. Jos Carlos Miranda defende a tese de que as duas derivam de uma verso mais antiga, que poder ter existido apenas sob a forma de um plano, pois as diferenas so muito grandes, como aprofundaremos frente. O diagrama respeita esta viso. A designao Vulgata deve-se apenas ao facto de uma das verses da Queste ter integrado um livro que O. Sommer editou em 1917, com o conjunto dos romances arturianos do primeiro ciclo a que chamou The Vulgate Version.

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    Figura 1 - Diagrama de evoluo do romance arturiano

    Depois de termos apresentado muito resumidamente a sequncia de textos e de ciclos, no final do

    sculo XII e primeiras dcadas do sculo XIII, tentaremos identificar sumariamente as alteraes que

    a reescrita introduziu em cada uma destas etapas do mito arturiano.

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    2.2 A reescrita de cada etapa

    Olhando para o diagrama acima, que representa a reescrita permanente e frentica do chamado

    romance arturiano7, percebemos que uma tarefa, de anlise de todo o processo de reescrita neste

    perodo, constituiria uma misso gigantesca, herclea mesmo. Ela obrigaria leitura cuidada de

    todos esses livros, muitos milhares de pginas portanto. Uma dificuldade adicional estaria no acesso

    bastante complicado a muitos desses textos. Bastar dizer, como evidncia do que escrevemos, que

    do ciclo arturiano peninsular apenas um livro, A Demanda do Santo Graal, se encontra editado em

    Portugal. A ignorncia de que partimos, as dificuldades inerentes a tal objectivo e o tempo de que

    dispomos para concretizar este trabalho impedem-nos de nos propormos realizar essa misso

    impossvel. Tentaremos portanto nesta seco fazer uma abordagem sinttica do processo de

    reescrita em cada etapa do romance arturiano, para na seco seguinte nos centrarmos na Demanda

    do Santo Graal, por ser o nico texto editado por c e que portanto pudemos ler com toda a ateno.

    2.2.1 Primeira etapa

    Figura 2 Primeira reescrita corresponde a uma apropriao normanda do mito

    Comecemos ento pelos textos mais antigos identificados no nosso diagrama arturiano, e que

    repetimos parcialmente na figura acima, apenas por facilidade de consulta. Foram escritos em gals

    e em latim, desde o sculo VI, nas Ilhas Britnicas. Esto registados de facto um grande nmero de

    textos, at ao sculo XII, que contam a histria de vida e as aventuras do rei Artur. portanto nas

    Ilhas Britnicas que a figura desse rei lendrio, e que comeou por ser exemplar, apareceu. O rei

    Artur era um rei breto herico, que representava a luta vitoriosa do seu povo contra os invasores.

    preciso ter em conta que os saxes tinham conquistado as Ilhas Britnicas no sculo VI e subjugado

    os bretes, e este domnio poder justificar o nascimento do mito de um rei perfeito, que um dia

    voltaria para libertar o seu povo, o que explica tambm a crena, que muitos desses textos

    reproduzem, do regresso esperado desse rei libertador de Avalon. O rei Artur um rei sem

    comprovao histrica, mas a sua figura poderia corresponder, segundo alguns, mitificao de um

    centurio romano de nome Artorius, que teria infligido algumas derrotas importantes ao invasor

    saxo. Mas, apesar de no haver quaisquer provas da existncia desse rei valente e puro, ele foi-se

    transformando numa figura quase-real, com um verdadeiro impacto historiogrfico.

    So dois os livros identificados no primeiro nvel do nosso diagrama. Esses dois livros derivam desses

    primeiros textos primitivos: Historia Regum Britannae de Geoffrey Monmouth e Roman de Brut de

    Robert Wace, que parecem ter sido as peas fundamentais para a disseminao e para a apropriao

    das lendas arturianas na Europa e que constituiriam a base para o ciclo arturiano que chegaria

    Pennsula.

    7 Em rigor, alguns dos textos representados, no podero receber a designao de romance, pois no se integrariam

    facilmente nessa categoria, mas mais facilmente na de crnica.

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    Nesses dois textos, ainda escritos nas ilhas britnicas, a figura central continua a ser a do rei Artur,

    que continua a ser apresentado como um rei breto do sculo VI. Permanece como um rei justo,

    exemplar, guerreiro, vitorioso na luta dos bretes contra os pagos, representados pelos saxes. A

    figura do rei ainda reforada no seu poder, atravs da apresentao de uma herana genealgica.

    O rei passa assim a ser o representante de uma monarquia legtima e indiscutvel.

    O livro Historia Regum Britannae (1136) de Geogffrey Monmouth baseado em crnicas anteriores

    sobre a vida do rei Artur, que o prprio autor cita como fontes, talvez como forma de melhor

    legitimar a sua escrita, mas verifica-se que, no entanto, nem sempre lhes ter sido completamente

    fiel. O relato de Monmouth mistura algumas caractersticas de crnica historiogrfica com

    caractersticas de cano de gesta, e mistura relatos histricos com lenda.

    Para interpretar o significado da apropriao da fico arturiana por Geogffrey Monmouth, no

    podemos esquecer que tinha acontecido no sculo XI a conquista do Reino da Inglaterra por um

    exrcito normando, breto e francs, liderado pelo duque Guilherme II da Normandia, mais tarde

    Guilherme, o Conquistador. O livro pode ter sido encomendado pelo prprio rei normando Henrique

    I, j que ele citado nos versos. A figura de Artur parece ser apropriada por Monmouth como

    legitimadora do poder normando, que se apresenta como descendente/ herdeiro do rei breto.

    Figura 3 - Diagrama genealgico do rei Artur no livro de Geoffrey Monmouth8, obtido em

    http://christophergwinn.com/celticstudies/arthur/arthur_pedigree.html

    A ideia dinstica constitui a base da narrativa e assim o poder da monarquia normanda validado

    por uma linha genealgica lendria, que viria desde a antiguidade.

    Na Historia Regum Britannae, o rei Artur recupera igualmente grande parte do mito existente: Artur

    tem um reinado modelar e morre na batalha de Salisbury, depois de trado pelo sobrinho Mordret

    que lhe usurpa o trono; o corpo do monarca levado pela sua irm, a fada Morgana, para a ilha de

    Avalon. A conquista da Inglaterra pelos bretes apresentada no livro como um castigo divino, mas a

    lenda do retorno do rei para libertar os bretes no aparece no relato de Monmouth.

    8 Uma dificuldade adicional, quando se comparam as linhas genealgicas dos diversos relatos sobre o rei Artur, reside na utilizao de nomes diferentes para as mesmas personagens: nomes galicos, ingleses, latinos ou franceses.

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    A reescrita do mito no livro refora a figura de um rei legitimado, como alternativa a uma luta

    permanente pelo poder de grupos de senhores feudais e parece assim servir-se dessa ideia como

    legitimadora da figura do rei normando.

    Alguns autores encontram ainda no livro de Monmouth uma relao entre a figura do rei Artur e o

    Roland da Chanson de Roland9, e desta forma estabelecendo uma contrapartida com a figura do

    imperador Carlos Magno. Artur, tal como Roland era um combatente herico pela cristandade,

    contra os infiis. O texto de Monmouth poderia corresponder desta forma a uma procura de um

    equivalente literrio e potico da clebre cano de gesta francesa.

    O outro livro, intitulado Vita Merlini (1150), que tambm se atribui a Monmouth, foi escrito

    igualmente em latim e em prosa, e conta a vida do mago Merlin, e servir de base aos livros de

    Merlin que aparecero em etapas posteriores.

    2.2.2 Segunda etapa

    Figura 4 A segunda reescrita corresponde ainda a uma apropriao normanda do mito

    A segunda etapa na nossa descida ao longo do diagrama talhado naquele tempo conduz-nos at o

    romance Roman de Brut que j escrito em francs antigo. Este livro integra-se num conjunto de

    livros, a que se chama Roman Antique, inspirados em grandes lendas da antiguidade. O Roman de

    Brut, segundo alguns, poder ter resultado de uma encomenda de Roberto Plantageneta, familiar do

    rei de Inglaterra, um outro rei normando, Henrique II, ou Henrique Plantageneta10, nome dado

    dinastia que fundou em Inglaterra.

    O poder de Henrique II enraizava-se fortemente no reino de Frana. Embora se estendesse para l da Mancha, onde

    o prncipe era rei. Na rivalidade que o opunha ao Capetngio, o Plantageneta apoiava-se nesse cargo insular.

    Facilmente ia buscar cultura das ilhas britnicas os materiais de um edifcio ideolgico construdo contra a

    ideologia da realeza franca. Sabe-se que os literatos que escreviam sob encomenda exploraram a matria da

    Bretanha, erguendo ante a figura de Carlos Magno, a do rei Artur.

    George Duby, As Trs Ordens ou O Imaginrio do Feudalismo

    9 O poema Chanson de Roland narra o fim herico de Roland, sobrinho de Carlos Magno, que morre com os seus homens

    na batalha de Roncesvales contra os sarracenos. A base histrica do poema poder ser uma batalha real, que aconteceu em 778, entre o exrcito de Carlos Magno, comandada por Roland, um dos Doze Pares de Frana, e no um exrcito sarraceno, mas um grupo de montanheses bascos. Ora, no livro Historia Regum Britanniae, Gerin de Chartres, que era membro destacado dos Doze Pares de Carlos Magno, era membro da corte do rei Artur e teria mesmo dirigido um dos exrcitos do rei na luta contra o exrcito romano comandado por Lucius Hiberius. 10

    Plantageneta o nome atribudo a um conjunto de reis ingleses, que reinaram em Inglaterra entre 1154 e 1399. O nome tem na sua origem a giesta (plant gent em lngua francesa), que o fundador da casa Godofredo V de Anjou escolheu para smbolo pessoal. Chegam ao poder em Inglaterra atravs do casamento de Godofredo V de Anjou, fundador da dinastia, com Matilde de Inglaterra, a herdeira de Henrique I. O primeiro rei Plantageneta foi Henrique II, filho de ambos, e neto de Henrique I.

  • 12

    A essa dinastia tambm se chama muitas vezes Angevina, por ser originria de Anjou. Roberto

    Plantegeneta poder tambm corresponder, ou no, a Wace (Robert Wace), a quem atribuda

    muitas vezes a autoria o texto. Henrique II foi o Rei da Inglaterra de 1154 a 1189, tambm

    governando como Conde de Anjou, que actualmente pertence a Frana. A dinastia Capetngia, que

    governava nesse tempo a Frana, era sua inimiga. O mapa permite ver a forma como os dois

    reinados de ento se dispunham. Podemos observar no mapa que o territrio que corresponde

    aproximadamente Frana actual estava dividido no sculo XII entre os Plantagenetas e os

    Capetngios.

    Figura 5 A o territrio francs em 1154

    O Roman de Brut continua a ter uma linha legitimadora do rei, no distante de Monmouth, mas essa

    legitimao conduzida na antiguidade at a Brut, descendente de Eneias, troiano que, na sequncia

    da guerra de Tria, teria criado as bases da Roma Imperial, mito imortalizado na Eneida de Virglio.

    Brut teria viajado de Itlia e teria aportado s costas da Britnia, para fundar a um novo reino. O

    livro apresenta uma sequncia de nomes de descendentes de Brut at ao rei Artur. A metodologia

    parece estar claramente inspirado na Eneida, onde Eneias a personagem legitimadora do poder dos

    romanos e da figura de Augusto. O livro Roman de Brut conta pois a histria das Ilhas Britnicas

    desde o tempo da Guerra de Tria at ao sculo VII. A narrativa no livro, tal como acontecia com

    Monmouth, pretende ser histrica; tem igualmente caractersticas de crnica, uma narrativa linear,

    genealgica, e reproduz eventos histricos das Ilhas Britnicas. Os primeiros versos do Roman de

    Brut confirmam-no, pelas palavras do prprio autor que se apresenta curiosamente como tradutor.

    Ki vult or e vult saveir

    De rei en rei e d'eir en eir

    Ki cil furent e dunt il vindrent

    Ki Engleterre primes tindrent,

    Quels reis i ad en ordre e,

    E qui anceis e ki puis fu,

    Maistre Wace l'ad translat

    Ki en conte la verit.

  • 13

    (Roman de Brut, 19)

    [Quem quiser ouvir e saber / de rei em rei e de herdeiro em herdeiro / quem foram e donde vieram / que outrora

    foram os monarcas de Inglaterra/ quais os reis e por que sequncia/ quem veio mais cedo e quem veio mais tarde /

    Mestre Wace traduziu e conta aqui a verdade. (traduo nossa)]

    Robert Wace poder ter tambm tido o apoio na sua empresa de Leonor de Aquitnia, que era

    casada com Henrique II, se se considerar o testemunho do poeta ingls Layamon, que escreveu (c.

    1200):

    a makede a Frenchis clerc;Wace wes ihoten e wel coue writen. & he hoe zef are elen lienore wes Henries

    quene, es hezes kinges. (vv. 20-23) 25 [Um escritor francs de grande destreza, com nome Wace, comps o livro e o

    apresentou a nobre Leonor, a rainha de Henrique, o poderoso rei. (traduo nossa)]

    Mas no texto conhecido [incompleto] de Roman de Brut no existe qualquer referncia rainha

    Leonor. Sabe-se no entanto que Wace ter recebido posteriormente do prprio rei a incumbncia de

    escrever o Roman de Rou (1160-1174). H tambm registos de vrios favores reais ao escritor,

    nomeadamente propriedades em Bayeux. O Roman de Rou pretendia ser uma exaltao da

    monarquia normanda, Pur le onur al secunt Henri/Para honra de Henrique II (iii,185), escreve

    Wace no incio do poema, mas o autor no completou o livro, alegando quebra das promessas do rei.

    A verdade que os textos Historia Regum Britannae e Roman de Brut parecem ter sido muito

    relevantes e muito influentes na Pennsula Ibrica, mesmo antes dos chamados romances de

    cavalaria terem sido escritos. Existem algumas evidncias de terem sido estes textos arturianos de

    carcter cronstico, e no os livros de fico, os primeiros a ser conhecidos na Pennsula Ibrica,

    nomeadamente o Roman de Brut, ou textos fortemente influenciados por ele. Poderamos referir o

    livro Liber Regum, que ter sido redigido entre 1194 e 1209, como prova dessa influncia. um texto

    annimo, em lngua aragonesa, redigido igualmente em forma de crnica romanceada. Este livro

    aparece referenciado ao longo da histria por diversos autores com ttulos diversos, o que muitas

    vezes cria alguma confuso, por no ser evidente que se referem ao mesmo texto11. De facto o nome

    latino apresentado, Liber Regum, como refere Georges Martin, bastante discutvel.

    El uso corriente por los estudiosos del ttulo Liber Regum no tiene su origen en el testimonio manuscrito de la versin

    ms antigua que hayamos conservado de la obra, sino, como veremos, en el de su segunda versin conservada y ms

    exactamente en un comentario que, a mediados del siglo XVIII, hizo el Padre Enrique Flrez de la transcripcin parcial

    que daba a la imprenta []

    el ttulo latino disimula el aspecto ms novedoso de la obra: el uso del romance navarro, que hace de ella la primera

    crnica hispana escrita en lengua verncula e incluso el primer escrito romance de las letras hispnicas.

    Georges Martin, Libro de las generaciones y linajes de los reyes Un ttulo vernculo para el Liber regum?

    Por isso, Georges Martin props a adopo do ttulo Libro de las Generaciones y Linajes de los Reyes.

    propongo que se le d a partir de hoy al mal llamado Liber regum el ttulo vernculo de Libro de las Generaciones y

    Linajes de los Reyes o, si se quiere algo ms corto, el de Libro de las Generaciones y Linajes.

    Georges Martin, Libro de las generaciones y linajes de los reyes Un ttulo vernculo para el Liber regum?

    considerada a crnica mais antiga dedicada histria de Espanha, ainda que a histria seja

    centrada em Arago. ao mesmo tempo um relato que nos conta uma histria da Pennsula desde o

    Gnesis at ao sculo XII.

    11 Diego Cataln, por exemplo, a partir de 2002, usou a designao Libro de las Generaciones

  • 14

    Observa-se assim que a lenda do rei Artur entra na Pennsula muito cedo, mesmo antes da fico

    cavaleiresca, atravs de uma tradio cronstica e de documentao genealgica. Existem inclusive

    alguns indcios de poder ter existido uma traduo em galaico-portugus do Roman de Brut.

    A lenda arturiana teria sido no s conhecida em Portugal ainda no sculo XII, como ter sido

    suficientemente importante para influenciar obras fundamentais da nossa histria, como o Livro de

    Linhagens de D. Pedro, do Conde Barcelos, de 1344, ou a crnica de 1404, desenvolvendo a tradio

    cronstica e linhagstica, iniciada pelo livro de Geoffrey Monmouth, a Historia Regum Britanniae.

    El primer texto romance en prosa de la pennsula ibrica centrado en la materia de Bretaa no procede, segn es sabido,

    del ciclo artrico novelesco, sino de la tradicin historiogrfica, y como su modelo, se trata tambin de un texto

    histrico. Me refiero al que llamar Linaje de los reyes de Bretaa, basado en el Roman de Brut de Wace, de 1155,

    transmitido por el Libro de las Generaciones12

    , de mediados del siglo XIII, por el Livro de linhagens de Pedro de Barcelos,

    de mediados del XIV, y por la Crnica de 1404 []

    las variantes introducidas por Pedro de Barcelos al incorporar esta pieza [Liber Regum] en sus obras, con innovaciones

    que revelan el conocimiento de unas tradiciones distintas a propsito de la leyenda artrica. De este modo, sobre la base

    de la exploracin de un mismo texto, el Linaje de los reyes de Bretaa, y de su recepcin, asistiremos entonces a un

    captulo de las transformaciones de la materia artrica en la pennsula ibrica, que van de un primer momento en el que

    los modelos son fundamentalmente historiogrficos (aunque no nicamente) a otro posterior en el que es la ficcin en

    prosa el discurso que ofrece nuevas informaciones, que van dejando su huella sobre la estructura del Linaje.

    Bautista, Francisco, Genealogas de la materia de Bretaa: del Liber regum navarro a Pedro de Barcelos

    Mas a influncia do Liber Regum poder ter sido bastante mais antiga, muito anterior ao Livro de

    Linhagens de D. Pedro, Conde de Barcelos, como escreve J.C. Miranda

    A presena do Liber Regum em Portugal normalmente associada ao Livro de Linhagens ou Crnica de 1344, as mais

    conhecidas obras de D. Pedro, Conde de Barcelos, onde diferentes redaces dessa obra genealgica navarra so

    extensamente transcritas. Todavia, so conhecidas desde os pioneiros estudos de Lus Filipe de Lindley Cintra e de Diego

    Cataln outras realizaes historiogrficas, embora de pequena dimenso, que tambm fizeram uso do Liber Regum,

    por vezes numa poca que foroso considerar muito recuada. O Livro Velho de Linhagens, a Primeira Crnica

    Portuguesa, uma pequena crnica castelhana perdida e a mais antiga traduo de uma crnica castelhana ps-

    alfonsina so os textos onde o presente estudo se detm, tentando mostrar que so provenientes tanto da corte rgia

    portuguesa como de grupos da aristocracia em busca de uma representao autnoma do passado histrico, num

    perodo que precede a actividade historiogrfica de D. Pedro, Conde de Barcelos.

    Jos Carlos Miranda, Do Liber Regum em Portugal antes de 1340

    Maria do Rosrio Ferreira mostra como o Livro de Linhagens do Conde Barcelos, ao mesmo que que

    se baseia no Liber Regum, se afasta muitas vezes dele por razes ideolgicas que a autora procura

    explicar.

    O Conde de Barcelos revela-se um continuador extravagante do Liber Regum, subordinando-o a objectivos que

    transcendem em muito uma intencionalidade poltica e contextual, e enquadrando os princpios estruturantes dessa sua

    fonte numa armadura ideolgica que os formata e os transporta muito para alm do espao e do tempo de aco reais.

    Maria do Rosrio Ferreira, O Liber Regum e a representao aristocrtica da Espanha na obra do Conde D. Pedro de Barcelos

    Poder-se- portanto dizer que houve durante algum tempo uma contaminao da historiografia

    ibrica pela literatura arturiana.

    12 Titulo sugerido por Diego Cataln, como vimos, para o Liber Regum.

  • 15

    Verificamos assim que a reescrita, nomeadamente de caracter ideolgico, aconteceu logo nestas

    primeiras etapas, ainda em livros arturianos com carcter cronstico. Nestas reescritas, centradas

    numa rea de influncia normanda, a figura de Artur serviu para legitimar o poder rgio normando, e

    as reescritas que se seguiram, delas dependentes, nomeadamente em Portugal, serviram igualmente

    para legitimar o poder das casas senhoriais portuguesas ou do rei de Portugal.

    2.2.3 Terceira etapa

    Figura 6 A terceira reescrita corresponde obra de Chtien de Troyes Subordinada ideologia cavaleiresca

    Chrtien de Troyes um clrigo que ter vivido sempre muito perto da corte francesa no

    normanda, primeiro no condado de Champagne e depois no condado da Flandres (ver mapa acima),

    onde a atmosfera poltica e social eram muito diferentes da corte normanda. Escreveu dois romances

    fundacionais da literatura cavaleiresca: Lancelot e Li Contes del Graal. Com Chrtien de Troyes

    aproximamo-nos do que viriam a ser os romances de cavalaria, apesar de Chrtien escrever ainda em

    verso.

    Na realidade, Chtien de Troyes, para alm dos dois romances referidos e representados no

    diagrama, e que analisaremos, escreveu mais trs livros no domnio da cavalaria, rec et nide, Cliges

    e Yvainmas, mas que no tiveram nem o impacto nem a continuidade de Lancelot ou de Li Contes del

    Graal e que por isso no trataremos aqui.

    A interpretao da sua reescrita profunda, como veremos, da histria do rei Artur, obriga-nos uma

    vez mais a contextualizar o autor. H evidncias de ter estado primeiro ao servio da corte de

    Champagne e depois do condado de Flandres, escrevendo obras encomendadas e, por isso,

    reflectindo a ideologia dos seus patronos.

    No romance Lancelot, ou mais precisamente Lancelot ou le Chevalier de la Charrette, o autor comea

    por dizer ao que vem e afirma explicitamente que recebera a encomenda do livro da condessa Maria

    de Champagne e at que era ela quem lhe dava o contedo (matire) e o sentido (sens) da obra, a

    que ele apenas acrescentava o seu trabalho.

    Des que ma dame de Chanpaigne Vialt que romans a feire anpraigne, Je l'anprendrai mout volentiers, Come cil qui est suens antiers De quanqu'il puet el monde feire, Sanz rien de losange avant treire. [] Del Chevalier de la Charrette Comance Crestens son livre; Matiere et san li done et livre La Contesse, et il s'antremet De panser, si que rien n'i met Fors sa painne et s'antancion. Des or comance sa reison.

  • 16

    Chrtien de Troyes, Le Chevalier de la Charrette, (1-6, 23-29) [Como a minha senhora de Champagne deseja que eu assuma a misso de escrever um romance, fao-o com enorme

    prazer, sendo eu to dedicado ao seu servio que faria tudo no mundo por ela, sem qualquer inteno de adulao []

    Sobre o Cavaleiro da Carreta/Chrtien comea o seu livro/ o contedo e o sentido lhe so dados/ pela condessa e ele

    consagra-lhe/ o seu pensamento sem nada acrescentar a no ser / o seu trabalho e a sua aplicao (traduo nossa)]

    No prlogo da sua ltima obra, Li Contes del Graal, que no chega a terminar, a forma como Chrtien

    exalta a figura do conde Felipe de Flandres, parece evidenciar, desta vez, escrever o livro por

    encomenda do nobre.

    Qui petit seme petit quialt, et qui auques recoillir vialt an tel leu sa semance espande que fruit a cent dobles li rande ; car an terre qui rien ne vaut, bone semance i seche et faut. Crestiens seme et fet semance d'un romans que il ancomance, et si le seme an si bon leu qu'il ne puet estre sanz grant preu, qu'il le fet por le plus prodome qui soit an l'empire de Rome. C'est li cuens Phelipes de Flandres, qui mialz valt ne fist Alixandres, cil que l'an dit qui tant fu buens.

    Chrtien de Troyes, Le Chevalier de la Charrette, (1-15)

    [Aquele que semeia pouco, colhe pouco, e quem deseja uma boa colheita, deve espalhar a sua semente onde ela se multiplicar. Porque em solo estril at uma boa semente secar e se perder. Chrtien semeia a semente num romance que comea e, se semeia numa terra to boa, a colheita ter de ser boa; porque o faz pelo melhor homem em todo o imprio romano. Ele o conde, Philippe de Flandres, que vale mais que o prprio Alexandre, de quem se contam tantas coisas boas (traduo nossa)]

    Ora, em Champagne e na Flandres a organizao do poder era muito diferente de Inglaterra, onde a

    lenda arturiana nascera e florescera. Os textos de Chrtien de Troyes e a forma como reescrevem a

    lenda arturiana, reflectem uma sociedade em mudana, onde a cavalaria se impunha, como uma

    fora em ascenso, ainda que a cavalaria coabitasse com uma nobreza mais tradicional. No mundo,

    dominado anteriormente por uma nobreza tradicional, os nobres eram nomeados pelo poder rgio,

    e o poder era assim efmero e dependente da vontade do rei. A cavalaria assegura um poder

    prprio, autnomo, baseado no poder das armas, mas suportado na ideia de linhagem. A linhagem

    curiosamente associada muitas vezes, no s ideia de qualidades morais, mas tambm ideia de

    beleza, que seria garantida pelo sangue cavaleiresco. Por isso os melhores cavaleiros, so tambm

    sempre os mais fremosos. O mundo da cavalaria um mundo caracterizado por uma diviso do

    territrio por senhores com uma grande autonomia, que garantem a posse e a expanso desse

    territrio, de fronteiras muito indefinidas, pela fora das armas. um mundo onde o poder da

    monarquia relativamente dbil. Por isso, Lancelot, um cavaleiro criado por Chrtien, que no

    existia antes no romance arturiano e nesta fase com uma ascendncia quase desconhecida, se torna

    o centro da histria.

    Quando, no ltimo quartel do sculo XII, Chrtien de Troyes compe, a mando da Condessa Marie de Champagne, Le Chevalier de la Charrette, Lancelot um cavaleiro de quem no se conhece nem linhagem, nem pai. Equiparvel, pela condio social aparentemente modesta, aos trovadores que, nas cortes occitnicas, dirigiam as suas composies poticas domna, colocando-se voluntariamente numa situao de submisso, Lancelot um estrangeiro na corte arturiana, um cavaleiro que nenhum grupo de parentesco suporta e que se afirmar, exclusivamente, graas s suas qualidades individuais. Ana Sofia Laranjinha, Linhagens arturianas na Pennsula Ibrica: o tempo das origens

  • 17

    Artur perde no s o protagonismo, como nos apresentado como um rei fraco, um rei que trai o pai

    de Lancelot, seu vassalo, abandonando-o e recusando-lhe a sua ajuda, a que estaria obrigado pelas

    relaes de vassalagem. Artur continua a ser na narrativa o senhor do reino de Logres, mas um rei

    com muito pouco poder. No romance apenas um smbolo distante, que une todos os cavaleiros,

    que se apresentam como pertencendo Tvola Redonda, que reune no castelo do rei. So os

    cavaleiros o motor da histria e no o monarca.

    Chrtien de Troyes quem cria a ideia de um cavaleiro ideal, que tantas vezes surgir, nos sucessivos

    ciclos arturianos, quase sempre referido como muy b cavaleiro ou at como o milhor cavaleiro

    do mundo. Lancelot no romance de Chrtien esse milhor cavaleiro do mundo, que parte da

    corte do rei de Artur para salvar a rainha, raptada por Mlagant. O livro assim tambm um

    romance, onde o tema central o amor, ainda que o amor proibido entre Lancelot e a rainha

    Guenivre13. No romance, o feminino desempenha um papel central, pois a rainha quem determina

    em grande parte a aco de Lancelot. Na busca da rainha e do seu amor, Lancelot sofre todos as

    coitas e enfrenta todos os perigos, onde demonstra a sua coragem de cavaleiro. Esse romance

    poder servir como exemplo do conceito cavaleiresco de fin'amor ou folamor (amor corts), o

    conceito de amor ideal na literatura medieval.

    Neste aspecto, como em tantos outros, Lancelot um caso particular, opondo-se aos outros heris de Chrtien, como Erec, filho do rei Lac e seu herdeiro, Yvain, bem integrado na corte de Artur e assumindo a misso de vingar a desonra de seu primo co-irmo Calogrenant, ou Perceval, hesitando entre o brilho da corte arturiana e o mundo mais sombrio do reino do Graal, ao qual est ligado por uma relao avuncular. Ora, a condio relativamente marginal de Lancelot no deixa de ser compreensvel, se tivermos em conta que a sua relao amorosa com Genebra a nica, em toda a obra conhecida de Chrtien, que podemos considerar como narrativizao da finamors, condenada partida ao segredo e efemeridade. Ana Sofia Laranjinha, Linhagens arturianas na Pennsula Ibrica: o tempo das origens

    Lancelot regressa triunfante, no fim do romance, corte de Artur, onde enfrenta e mata finalmente

    Mlagant.

    Talvez por ser clrigo, a personagem de Merlin, inventada por Geoffrey Mormouth e reutilizada no

    Roman de Brut, no usada por Chrtien de Troyes. Se Merlin essencial para explicar Artur, o rei

    personagem secundria neste Lancelot, e Chrtien pode dispens-lo.

    Chrtien de Troyes marca com clareza uma inverso na histria do romance arturiano. com ele que

    a cavalaria se assume como protagonista. ainda a partir de Chrtien de Troyes que se acentua o

    papel de quem patrocina o livro, em detrimento de quem o escreve, como vimos evidenciado no

    prlogo de Lancelot. A literatura torna-se cada vez mais prxima de quem exerce o poder, o que

    poder justificar que a determinada altura, como veremos, a identificao do autor desparea e os

    romances sejam todos annimos.

    Se a liberdade de criao de Chrtien de Troyes sendo embora o grande impulsionador do roman courtois e,

    seguramente, uma das mais fortes personalidades literrias de toda a Idade Mdia sofria os condicionamentos

    decorrentes de a "matiere" e o "sen" de pelo menos algumas das suas obras lhe serem fornecidos pelos seus patronos,

    transformando-se a sua tarefa na de um executante dos primores da escrita da "conjointure" , que dizer de escribas

    annimos, encarregados de organizar um imenso universo ficcional onde, alm de tudo mais, muitas das personagens

    e dos enredos eram j conhecidos e transformados em tradio?

    Jos Carlos Miranda, A DEMANDA DO SANTO GRAAL E O CICLO ARTURIANO DA VULGATA

    13

    Poder-nos-emos interrogar sobre a contradio aparente entre esta relao amorosa consumada e as relaes amorosas, tambm proibidas mas contidas, que nos aparecem nas cantigas de amor.

  • 18

    Os romances so encomendados pelos grandes senhores/senhoras, que so quem os recebe, e os

    textos representam portanto a viso desse grupo social, sendo depois feitas cpias que permitem a

    sua circulao por toda a Europa. H manuscritos neste processo de reproduo em cadeia de que

    existem centenas de cpias Assim ho-de chegar, no chamado ciclo Pseudo-Boron, Pennsula e a

    Portugal.

    tambm com Chrtien de Troyes que se inaugura uma forma de escrita de um romance por

    episdios, o que nos permite imaginar talvez uma leitura colectiva, em ambiente corts, de um, ou

    de um conjunto de episdios, por dia.

    No outro livro, Li Contes del Graal, Chtien cria o mito do Graal e cria igualmente uma nova

    personagem, Perceval, que ir desempenhar um papel muito importante, ainda que nos ciclos finais

    venha ser substituda por Galaaz. A introduo do mito do Graal no romance arturiano poder ser

    justificada pela condio de clrigo de Chtien de Troyes, pois o Graal introduz no ideal cavaleiresco

    uma moldura muito forte de cristianizao.

    tambm com Chrtien de Troyes que a prpria ideia de linhagem se comea a definir, em particular

    com a linhagem de Perceval no seu livro Li Contes del Graal14. Neste livro o Graal parece poder

    simbolizar a ideia de linhagem, e tendo tambm uma dimenso religiosa, inaugurava uma relao

    entre a ideia de linhagem cavaleiresca e as linhagens bblicas.

    Que a questo do Graal e da sua procura foi sempre, desde Chrtien de Troyes, um assunto privativo de uma

    linhagem, ideia que tem vindo a impor-se desde um importante estudo que Jean Frappier dedicou em tempos ao

    tema. Quer se tenha em considerao o Parzival de Wolfram von Eschenbach ou a Queste Del Saint Graal, passando

    pela trilogia de Robert de Boron e pelo Perlesvaus, foram-se mantendo sempre inalteradas as circunstncias que

    definiam o heri como um cavaleiro e a concluso da sua busca como um retorno, eventualmente inicitico, ao seio do

    seu cl familiar para assumir um processo de herana. Independentemente das diversas ressonncias espirituais que

    neste ou naquele texto adquire, o Graal funcionou sempre como um talism pronto para exaltar a linhagem dos seus

    guardies e, por meio dela, do grupo cavaleiresco no seu todo.

    Jos Carlos Miranda, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA LINHAGEM

    No livro Li Contes del Graal, Perceval educado longe do mundo aristocrtico, mas um dia na floresta

    v quatro cavaleiros de armaduras resplandecentes e pensa que so anjos. Como eles lhe dizem que

    so cavaleiros do rei Artur, Perceval decide partir para a corte do rei, para ser armado cavaleiro.

    Depois de instrudo pela me sobre quais os deveres da cavalaria, ele parte, mas, durante a viagem,

    mostra muitas vezes no ter compreendido realmente os conselhos da sua me. Em Camelot,

    Perceval comea por ser muito desastrado, mas depois vence o terrvel cavaleiro vermelho, que tinha

    afrontado a dignidade do rei e da rainha e roubado uma taa do castelo. Mas Perceval, depois de

    derrotar o cavaleiro vermelho, no se preocupa sequer em devolver a taa roubada ao rei Artur15.

    Perceval necessita de passar por um processo de aprendizagem da cavalaria. Continua a sua viagem e

    chega a um castelo, onde um nobre cavaleiro chamado Gornemant de Goort finalmente o vai educar

    nos ideais da cavalaria e ensinar a manejar as armas.

    Il covient a toz les mestiers

    Et cuer et paine et us avoir;

    Par ces trois le puet on savoir (v. 1466-1468)

    14 Haver uma ligao entre a linhagem avuncular de Perceval e a figura de Filipe, que seria o protector de Chrtien? Filipe no teve filhos e seria sucedido por um filho de uma sua irm. 15

    curioso estabelecer um paralelo entre esta taa a que Perceval no d valor e a taa que simboliza o Graal que se vai tornar a razo da sua existncia, depois de passar por um processo educativo na cavalaria.

  • 19

    [ conveniente para todas as profisses / ter corao, esforo e prtica; / atravs destes trs elementos se pode

    aprender (traduo nossa)]

    O corao invocado no poema, que parece traduzir a condio genealgica de quem descende de

    cavaleiros, no parece ser suficiente, e um cavaleiro necessita de vontade, esforo e de experincia.

    Os versos evidenciam que existe um modelo de aprendizagem para adquirir a condio de cavaleiro.

    E no fim desse processo educativo que Gornemant sagra Perceval cavaleiro. S a partir daqui a

    conduta de Perceval vai obedecer aos ideais da cavalaria, o que no acontecera no incio do

    romance, onde Perceval se caracterizara por um comportamento grosseiro, e assim mostrara nada

    compreender sobre a cavalaria. Antes de partir, perante a ingenuidade de Perceval, ingenuidade que

    se revelava muitas vezes na forma como ele dizia tudo o que lhe vinha cabea, Gornemant

    aconselha-o a ser sempre comedido nas palavras.

    Perceval parte e tem ento a sua primeira grande aventura, onde conhece a princesa Brancaflor e a

    ajuda, derrotando os sitiantes do seu castelo. A princesa enamora-se do cavaleiro e temos assim

    finalmente um cavaleiro que cumprira os grandes objectivos da cavalaria tradicional: feitos militares

    e conquista do amor de uma donzela.

    Mas Perceval parte e encontra o Rei Pescador, paraltico, estril, e portanto incapaz de assegurar

    descendncia, e no seu castelo vai observar uma estranha cerimnia, uma espcie de cortejo, em

    que vrios objectos simblicos so transportados: um valete transporta uma lana de cuja ponta

    vertiam gotas de sangue, dois criados transportam candelabros, uma donzela transportava um Graal

    luminoso, feito de ouro fino e ornado com diversas pedras preciosas, seguida por uma segunda

    donzela que levava um prato de prata. Perceval no compreende mas inibe-se de fazer perguntas

    sobre o significado do que vira, seguindo o conselho de Gornemant, e no dia seguinte o castelo e o

    Rei Pescador tinham desaparecido.

    Um encontro com uma jovem, que se revelar como sua prima, permite-lhe reconhecer a sua

    identidade como Perceval de Gallois, antes era conhecido simplesmente como filho da viva, e

    perceber que deveria ter questionado o rei pescador sobre o Graal.

    Perceval regressa a Camelot e recebido na corte do rei Artur com grandes homenagens, o que

    parece representar uma investidura oficial de Perceval como cavaleiro da Tvola Redonda. Mas uma

    mensageira estranha vem corte e acusa-o novamente por ter sido incapaz de desvendar o segredo

    do Graal, incriminando-o porque lhe faltava cumprir a sua grande misso.

    Os cavaleiros partem ento todos em busca de aventuras e Perceval parte para iniciar a busca do

    Graal. Haver neste romance, como alis ir ocorrer em muitos outros romances cavalheirescos,

    narrativas paralelas, acompanhando as aventuras de vrios cavaleiros. Galvo e Perceval vo ser

    personagens centrais. Depois da partida dos cavaleiros de Camelot, o romance acompanha, durante

    muitos captulos, as aventuras de Galvo, que surge como um cavaleiro muito diferente de Perceval.

    Depois centra-se em Perceval que, finalmente arrependido dos seus pecados, vai encontrar um

    eremita16 que o vai confessar e desvendar-lhe o segredo do cortejo que ele vira no castelo do Rei

    Pescador. Esclarece que quem servido pelo Graal o pai do Rei Pescador, que no deixa seus

    aposentos h doze anos, e se alimenta exclusivamente da hstia que lhe servida no Graal, e revela

    que ele e o pai do Rei Pescador so seus tios, irmos de sua me.

    16

    A figura do eremita vai assumir quase sempre no romance arturiano o papel de quase-profeta, de intermedirio com os desgnios divinos. ele quem desvenda os sonhos e as vises, quem decifra os sinais (as maravilhas), quem orienta e esclarece os heris.

  • 20

    Figura 7 A linha genealgica de Perceval

    O diagrama genealgico evidencia as relaes de linhagem de Perceval, ligadas guarda do Graal,

    que iro ser desenvolvidas em futuras etapas.

    A mudez de Perceval, na sua visita ao castelo do Graal, devera-se aos pecados, de que se no

    redimira ainda atravs da confisso e da comunho.

    Pechiez la langue te trencha,

    Quant le fer qui onc n'estancha

    De sainier devant toi ves,

    Ne la raison n'en enques (v. 6409-6412).

    [O pecado trancou-te a lngua/ quando o ferro que ningum enxuga /viste sangrar tua frente/ a razo no

    despertou (traduo nossa]

    A formao de Perceval em cavalaria, como ela era entendida at a, estaria terminada desde que

    visitara pela segunda vez Camelot. A experincia religiosa o novo elemento identificado para a

    educao de um cavaleiro no livro de Chrtien de Troyes. Perceval culmina o seu processo educativo

    atravs da confisso, da eucaristia e da penitncia17. S a f e a razo lhe permitem decidir

    correctamente em cada momento. Mas essa f entendida como um vnculo que tem de ser

    renovado cotidianamente, atravs de uma ligao permanente Igreja, ou seja, o processo

    formativo religioso no termina.

    Et va en non de penitance

    Al mostier ainz qu'en autre leu

    Chascun main, si i avras preu (v. 6442-6444)

    [Irs em penitncia/ ao mosteiro, antes de outro lugar/ cada manh, se fores nobre (traduo nossa)]

    Depois de sair da corte do rei Artur, Perceval passara cinco anos sem sentido, esquecendo a misso a

    que se propusera, a busca do Graal. Durante esse perodo no voltou a procurar o castelo do Rei

    Pescador para corrigir o seu erro, como prometera ao partir. O narrador relata-nos sumariamente

    que durante esse tempo, Perceval travou sessenta combates, tendo sido vitorioso em todos. Mas

    depois do encontro com o tio ermito, ele prprio afirma:

    n'onques puis fis se mal non (v. 6367)

    [Nada fiz excepto o mal (traduo nossa)]

    17

    A confisso era recente na Igreja. Tinha sido introduzida pela reforma gregoriana no sculo XI, mas apenas se impes no sculo XII.

  • 21

    Para se transformar num cavaleiro ao servio do bem, Perceval no precisou de realizar novas

    proezas cavaleirescas, de ganhar combates, ou de se tornar mais corts. Precisou de se confessar.

    Dans Perceval c'est Dieux qui prend la place de l'amour (KHLER 1984: 219-220). Talvez

    pudssemos acrescentar et de la guerre.

    Perceval representa uma cavalaria que, sem a f, perde significado. Depois do encontro com o

    ermito, Perceval estava preparado para resolver a aventura do Graal, mas Chrtien no chegou a

    escrever o desfecho da histria. Outros se encarregaro de lhe propor vrios fins.

    Para interpretar o romance de Chrtien a chave religiosa fundamental. A doena do Rei Pescador, o

    seu definhamento, a figura do pai encerrado na sua cmara, o definhamento do seu reino poderiam

    ser interpretados assim como consequncias de uma indiferena metafsica/religiosa e a pergunta

    de Perceval representaria a necessidade de suprir essa indiferena. (ELIADE, 1991: 52)

    justamente a indiferena pelo maravilhoso que desfilava diante de seus olhos o erro cometido por Perceval no

    castelo do Rei Pescador. O silncio e a falta de curiosidade de descobrir o porqu da procisso do Graal representam

    a negligncia com o prprio sentido de ser cavaleiro. De certa forma, a misso de Perceval seria a de, colocando a pergunta diante do mistrio e do transcendente, resgatar a prpria instituio da cavalaria.

    Ral Fernande, A formao do cavaleiro: Perceval ou O Conto do Graal

    Mais plus se taist qu'il ne covient,

    Qu'a chascun mes que l'on servoit,

    Par devant lui trespasser voit

    Le graal trestot descovert,

    Ne ne set pas cui len en sert

    Et si le volroit savoir (v. 3298-3303).

    [Mas cala mais do que deveria/ A cada prato que servido/ v passar sua frente/ o Graal todo descoberto/ Mas

    no sabe a quem o servem /nem o deseja saber (traduo nossa)]

    Poderemos porventura interpretar a figura de Perceval como a de um cavaleiro novo, que Chtien

    sentiu necessidade de criar, para com ele idealizar um novo modelo de cavalaria. Perceval um

    cavaleiro simples e ingnuo, que se vai transformar num cavaleiro dedicado a uma busca espiritual.

    Ao longo do romance a sua figura contraposta, por um lado a Keu, um prottipo do cavaleiro

    descorts, arrogante e orgulhoso, e por outro lado a um Galvo, sobrinho do rei, que apesar de nos

    aparecer como um modelo de cortesia, aparenta muitas vezes muitos traos de frivolidade,

    representando a figura do cavaleiro tradicional, mundano. Galvo um galanteador, Perceval sente-

    se pouco vontade no seio das mulheres. O mbil da vida de Perceval no o amor nem a guerra,

    mas o enigma do Graal.

    Perceval encarnaria assim uma nova cavalaria, onde a simbologia crist ganha importncia. Le

    Perceval cest la gense dun chevalier( MICHA 1976: 123). Perceval provm de um mundo exterior

    cavalaria tradicional, recebe uma educao cavalheiresca, mas perante a procisso do Graal

    incapaz de a compreender. S uma educao religiosa lhe possibilita descobrir a sua identidade e a

    sua misso, misso essa que no se resolvia no plano das vitrias militares ou dos sucessos

    amorosos, mas num plano puramente espiritual. Perceval no fora investido como cavaleiro para

    realizar grandes feitos militares ou para conquistar belas donzelas, mas para cumprir uma misso

    espiritual: encontrar o Graal, que aparece nesta obra de Chtien pela primeira vez, e que se vai

    tornar central nas histrias de cavalaria e na nossa viagem ao longo deste texto.

  • 22

    O Graal em Chrtien possui propriedades mgico-religiosas, um smbolo de transcendncia e

    poder assim tambm simbolizar a tentativa de Chrtien de Troyes de descobrir um fundamento

    religioso/espiritual para o ideal da cavalaria. Poder-se- tambm estabelecer uma relao entre o

    smbolo do Graal e a linhagem herldica que aparece associada cavalaria na mesma altura. Mas a

    verdade que, talvez tambm por Chrtien no ter completado a sua obra, se mantm ainda hoje

    uma acesa polmica sobre o seu Graal e sobre o seu significado, que seria bastante alterado em

    verses seguintes da demanda18, onde tambm Perceval seria substitudo por Galaaz.

    2.2.4 Quarta etapa

    Figura 8 A quarta reescrita corresponde a introduo da prosa no romance arturiano

    A quarta etapa marca a passagem da poesia prosa no romance arturiano. Temos por um lado a

    trilogia de Robert de Boron, por outro lado o romance de Lancelot em prosa, de autoria annima.

    Curiosamente os trs romances escritos por Boron tero sido escritos inicialmente em verso e s

    depois passados a prosa, o que sugere que essa transformao ter resultado de uma necessidade

    sentida pelo autor, relativamente a algo que a prosa lhe ofereceria e que a poesia seria incapaz de

    oferecer.

    De facto, a prosa pode ter desempenhado um papel muito importante na forma de recepo destes

    romances e poder assim ter sido fundamental para o surgimento da ideia de ciclo.

    At the turn of the twelfth century, French romance writers witnessed the emergence of prose as a new narrative form

    next to the traditional octosyllabic couplets of the verse romances. In the thirteenth century prose became the

    preferred form of French Arthurian romances. This curious transition from verse romances to prose romances is a

    landmark in the evolution of the modern novel. Several theories have been proposed in an attempt to explain this

    literary phenomenon. Despite the lack of a commonly accepted theory, the majority of critics agree with each other in

    acknowledging the essential role played by historiographical writings in the emergence of prose as the narrative form

    of romances. An important exponent of this theory is for example Erich Kohler. In his article on the origin of the Old

    French prose romances, Kohler shows convincingly how stories written in verse were looked upon as false and untrue,

    while prose accounts enjoyed the reputation of being true and reliable.

    Orlanda Soei Han Lie, The Middle Dutch Prose Lancelot

    A reescrita em prosa poderia ter tido ento como justificao principal, tornar o texto do romance

    mais prximo do modelo da crnica, e assim mais credvel para quem o lia/ouvia. Jos Carlos

    Miranda evoca tambm este argumento ainda que o apreente para a fase do romance cclico.

    18

    A tradio posterior, a partir do livro de Estoire dou Graal de Robert de Boron, ir identificar a lana que sangra com a lana do soldado que feriu Cristo na Cruz, e o Graal com o clice usado por Cristo na ltima ceia, mas tal parece exorbitar a inteno de Chrtien de Troyes no romance, onde o Graal um simples prato que serve para transportar a hstia que alimenta o velho soberano e onde parece existir na cerimnia do cortejo uma possvel metfora da cerimnia da missa crist.

  • 23

    Os romances cclicos em prosa, com a sua escrita de grande porte, adequando-se com extrema verosimilhana a

    certos aspectos da realidade histrica, pintando cenrios em tamanho real, como se de uma autntica historiografia

    fingida se tratasse, tiveram certamente, sobretudo na sua fase inicial, pretenses de seriedade e credibilidade a que os

    romances em verso no podiam j aspirar.

    Jos Carlos Miranda, A DEMANDA DO SANTO GRAAL E O CICLO ARTURIANO DA VULGATA

    Sobretudo nas vrias reescritas do romance de Lancelot parece ser evidente a preocupao

    constante de quem escreve em conseguir um texto biogrfico do protagonista e at alguma

    concordncia com factos histricos, no que Lancelot se ir distinguir de outros romances que com

    Lancelot integraro o que designaremos por ciclos.

    The French scholar F. Lot has shown through a penetrating analysis that the Lancelot en prose displays a remarkable

    exactitude in its adherence to chronology. This observation strengthens the supposition that the author of the Lancelot

    en prose intended it as a historical biography of Lancelot.

    Orlanda Soei Han Lie, The Middle Dutch Prose Lancelot

    Robert de Boron, o autor que nesta etapa nos interessa, seria tambm clrigo e originrio de Boron,

    condado de Montbliard, e portanto, tal como Chrtien, de influncia francesa no normanda. A

    trilogia de Robert de Boron vai, de alguma forma, fornecer grande parte da narrativa que,

    juntamente com o Lancelot em Prosa, ser utilizada como a matria-prima em prximas etapas, para

    construir um verdadeiro ciclo. A trilogia de Boron inclui trs livros: Jos de Arimateia, ou Romance do

    Graal, Merlin e Perceval. So todos textos relativamente pequenos e considerados sem grande

    inovao formal, ao contrrio do que sucedia com os livros anteriores de Chrtien, que tm uma

    enorme qualidade potica.

    O livro Jos de Arimateia, Romance do Graal certamente baseado num evangelho apcrifo, Acta

    Pilatii ou Evangelho de Nicodemo. A vida de Jos de Arimateia no se encontra descrita nos quatros

    evangelhos cannicos. Mas o relato da sua vida bastante desenvolvido nesse evangelho apcrifo e

    h muitas semelhanas entre as duas narrativas. Jos de Arimateia, que d sepultura a Cristo, pai

    de Josefes e de Ana, que casa com Bron. Josefes iria ser sobrenaturalmente ordenado como primeiro

    bispo da Cristandade e como cabea da Igreja e como guardio do Graal. Alguns perguntam porqu

    Josefes e no Jos de Arimateia. A resposta poder ser a necessidade de que essa personagem fosse

    virgem, para poder ser oficiante da "liturgia" com o Santo Vaso. Alain filho de Ana e de Bron, o Rei

    Pescador. Josefes portanto tio materno de Alain, a quem delegar a guarda do Graal. Alain

    transmite por sua vez a misso, que lhe fora confiada, ao seu filho, referido neste livro como

    terceiro homem da genealogia, mas que se vai chamar Perceval no terceiro livro de Boron, onde

    ele o heri da demanda do Graal.

    Figura 9 A linha genealgica de Perceval, que aparece nos livros Jos de Arimateia e Perceval19

    19 Em rigor, o esquema que desenhmos, a partir de um artigo de ASL chamado Linhagens arturianas na Pennsula Ibrica: o tempo das origens, parece no coincidir a 100% com o texto de JCM, pois no inclui a figura de Enigeus.

  • 24

    O esquema era relativamente simples, j que compreendia Jos de Arimateia, a sua irm, Enigeus, o marido da irm,

    Bron, e o filho de ambos, Alain. Como a Jos de Arimateia no eram atribudos filhos, a sua potencial sucesso recaa

    no sobrinho, filho da irm, num processo tpico de relao avuncular a que j atrs aludimos. Assim, se Perceval era

    o terceiro membro da "linhagem" de Jos de Arimateia o "tier" de que falam os textos.

    Criou-se assim uma situao aparentemente inslita, que suscitou reparos e surpresa a alguns crticos, que resulta

    do facto de os Reis Pescadores os guardadores do Graal no terem origem nesta descendncia directa e varonil

    de Jos de Arimateia, como ingenuamente esperavam, mas sim num outro filho desse Bron

    Jos Carlos Miranda, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA LINHAGEM

    A rvore genealgica claramente simblica a corte do rei Artur corresponderia j ao sculo V ou

    VI - mas legitima a linhagem de Perceval, que teria recebido a misso de preservao do Graal, desde

    o tempo de Cristo. O nmero trs parece ter propriedades mgicas neste texto, justificando as trs

    geraes de guardadores do Graal. Veremos que outros nmeros mgicos iro aparecer em prximas

    etapas. A mistura de genealogia matrilinear e patrilinear poder representar ainda um tempo em

    que a linhagem patrilinear se afirmava.

    Boron retoma, portanto, o protagonista do Conte del Graal de Chrtien de Troyes como heri do Graal [Perceval] e

    adopta o modelo de sucesso avuncular, que era tambm o que se sugeria naquele romance, desenvolvendo a

    genealogia do Graal, num segundo tempo, de acordo com o sistema patrilinear. Nesta trilogia em que a

    representao do tempo assenta em modelos simblicos, sem qualquer preocupao de verosimilhana, a associao

    dos dois sistemas de parentesco parece traduzir, condensando-a, uma tendncia historicamente documentada.

    Ana Sofia Laranjinha, Linhagens arturianas na Pennsula Ibrica: o tempo das origens

    O Perceval de Boron reproduz em prosa a histria escrita por Chrtien de Troyes no Li Contes de

    Graal e prope um fim para a histria. Perceval regressa ao castelo do Rei Pescador, onde vai

    permanecer como guardio do Graal e o rei Artur morre.

    O Merlin de Boron, conta a concepo de Artur e a sua subida ao trono da Gr-Bretanha. neste

    texto que aparece pela primeira vez a lenda da espada mgica, Excalibur.

    Nos textos de Boron parece haver, apesar de tudo, uma certa recuperao da dignidade do rei Artur,

    que tinha sido bastante maltratada nos livros de Chrtien de Troyes.

    O Lancelot en Prose de autoria annima e j um romance extenso, que se desenvolve sob a forma

    de uma biografia romanceada do cavaleiro, desde que nasce at morte de Galehout20.

    O Lancelot en prose, longo romance biogrfico redigido na segunda dcada do sculo XIII, quebra a atemporalidade

    caracterstica dos romances do clrigo de Champagne e recua at infncia do protagonista, dotando-o de uma

    origem. O amante de Genebra pertence agora a uma linhagem rgia: filho do rei Ban

    Ana Sofia Laranjinha, Linhagens arturianas na Pennsula Ibrica: o tempo das origens

    O percurso de vida de Lancelot traado com bastante rigor e no apresentado como um simples

    cavaleiro individual mas j como membro de uma linhagem especial, uma linhagem que teria sido

    escolhida por Deus.

    20 Existem no entanto fragmentos de manuscritos que sugerem a possibilidade de ter havido uma continuao da histria, questo que ainda se mantm polmica entre os estudiosos do romance arturiano. A verdade que essa continuao ocorrer na etapa seguinte com o prolongamento da histria de Lancelot, que incluir a educao de Galaaz at idade de quinze anos, e com o aparecimento de dois livros Queste del Saint Graal e Mort Artu.

  • 25

    A obra toda centrada em Lancelot, nas suas aventuras e no amor que ele devota rainha. Lancelot

    o cavaleiro a rainha, ela quem lhe d arma quando ele armado cavaleiro. Galehout apresentado

    como um monarca que desafia a autoridade do rei Artur, que ama Lancelot e que disputa a

    fidelidade do seu melhor cavaleiro, criando assim dois tringulos amorosos em torno da figura de

    Lancelot.

    o LANCELOT no-cclico constitui talvez, no romance arturiano, o ponto mais alto no desenvolvimento simultneo

    das temticas da luta pela afirmao social do cavaleiro por meio da proeza cavaleiresca, que passa pela conquista

    de um nome, e do amor como motivao fundamental dessa mesma excelncia guerreira. Lancelot o jovem

    cavaleiro recm--armado que, desde o primeiro momento em que comparece na corte do rei Artur, logo parte

    empenhado nos mais arriscados desafios, que vencer um aps outro, at se afirmar como o melhor cavaleiro do seu

    tempo.

    Todavia, estamos perante um romance que pe em movimento um quadro muito completo e variado de

    personagens e de circunstncias temporais e geogrficas, que lhe conferem uma dimenso de grande

    verosimilhana, possibilitando uma larga margem de identificao com as problemticas sociais e polticas da poca.

    De facto, Lancelot no apenas um desconhecido em busca de um nome, mas sim um filho de rei, descendente por

    via materna da bblica linhagem do rei David e cado na situao de "povre chevalier"

    Jos Carlos Miranda, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA LINHAGEM

    Tal como no Lancelot de Chrtien, Artur apresentado como um rei fraco, um senhor que falhou no

    auxlio que devia ao seu vassalo, o rei Ban, o pai de Lancelot, culpa muitas vezes apontada no texto

    do romance.

    revela-se certamente um rei corts, amante da cavalaria e possuidor da largesce imprescindvel manuteno de

    uma forte mesnada. Porm, quando colocado perante um rival como Galehot, que aspirava a substitu-lo como

    monarca capaz de constituir o centro da cortesia e da cavalaria, a sua imagem empalidece, a ponto de clrigos

    conselheiros se verem compelidos a apontar-lhe os vcios e as falhas no cumprimento das obrigaes que tinha para

    com os seus dependentes. Era uma monarquia enfraquecida pelas insuficincias do seu monarca Por isso, no ocaso

    do romance, a corte rgia devia a situao de autoridade de que gozava no sua virtude como rei, mas sim dos

    seus cavaleiros, sobretudo Lancelot.

    Jos Carlos Miranda, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA LINHAGEM

    Alis, com aquele acto de traio de Artur, que conduz morte do rei Ban de Benoic, que comea o

    romance. Mas se Lancelot deve a sua condio de deserdado a Artur, o rei ficar a dever-lhe o reino

    e at a vida. E ao aceitar ser membro da Mesa Redonda, em conjunto com os seus companheiros

    Galehot e Hector, Lancelot tornou-a muito mais forte. A corte de Artur tinha agora uma posio de

    incontestvel supremacia no mundo cavaleiresco da poca, graas sobretudo a Lancelot.

    Mas Lancelot vai ser tambm o centro de um conflito amoroso centrado na rainha e que ir

    condicionar o romance de Lancelot e em fases posteriores todo o ciclo arturiano. Este conflito

    herdado do Lancelot de Chrtien e pode constituir na sua origem mais uma forma de afirmar a

    supremacia da cavalaria relativamente monarquia. As relaes de ambos so mantidas debaixo do

    manto dos procedimentos formais da fin'amors, permitindo assim evitar uma situao de conflito

    declarado que s romperia no livro da Demanda, mas j no romance cclico.

    Porm, do lado de Lancelot nem tudo era lealdade. Se, na fase inicial do romance, o amor pela rainha constitua a

    fonte da sua proeza e, logo, uma fora que agia no sentido de preservar a Mesa Redonda e o reino de Artur ,

    depressa se transformou em aberto adultrio e potencial origem de uma situao do tipo da que se podia encontrar

    no ROMAN DE TRISTAN, com o tringulo Tristo/Iseu/rei Marc.

    Jos Carlos Miranda, GALAAZ E A IDEOLOGIA DA LINHAGEM

  • 26

    Nesta fase, por um lado, o livro parece ter sido escrito para constituir um texto autnomo, por outro

    lado, a introduo da temtica do Graal na narrativa, tal como da personagem de Galaaz pode

    constituir uma evidncia de um propsito j presente, ainda que pouco claro, da construo de um

    ciclo romanesco em torno do Lancelot.

    a reescrita do Lancelot en prose, identificada por Elspeth Kennedy e por ela designada Lancelot cclico,

    incorporando a matria do Graal e integrando o romance num vasto conjunto textual em elaborao, pe em

    evidncia a gravidade do adultrio de Lancelot e Genebra e anuncia a vinda de Galaaz.

    Ana Sofia Laranjinha, Linhagens arturianas na Pennsula Ibrica: o tempo das origens

    A figura de Galaaz anunciada pela primeira vez, como a de um cavaleiro sem mcula, e como o

    nico a poder concretizar no futuro a demanda do Graal, pois o pecado de adultrio de Lancelot com

    a mulher do rei impede-o de cumprir o destino de glria que apenas o seu filho realizar. Galaaz ser

    filho de Lancelot e de Amida, filha do Rei Pescador, misturando-se assim Galaaz com a anterior

    linhagem do Graal de Perceval. A profecia de uma espcie de Messias da cavalaria surge atravs de

    um sonho alegrico de Galehout21, onde Galaaz representado pelo leo, que domina o leopardo

    que simboliza Lancelot.

    Podemos ento constatar que parece j existir nesta etapa da reescrita um conflito entre as duas

    personagens, Galaaz, anunciado no Lancelot como o cavaleiro ideal que demandar o Graal e

    Perceval que se mantm na trilogia de Boron como o cavaleiro da demanda. O ciclo seguinte se

    encarregar de resolver este conflito e Galaaz ser vencedor. Perceval ter de se contentar em ser

    um dos melhores cavaleiros da Tvola Redonda, cujas aventuras, como personagem secundria,

    surgem descritas no Lancelot estendido e na Demanda do Santo Graal.

    2.2.5 Quinta etapa

    Figura 10 A terceira reescrita corresponde criao do primeiro ciclo arturiano

    Nesta quinta etapa, j estamos numa dimenso diferente, caracterizada pela ideia de ciclo, o que

    pressupe um plano ou um guio que norteasse a escrita dos vrios romances, para eles encaixarem

    uns nos outros, e para permitir no conjunto algo prximo de uma Histria Geral da Cavalaria, desde

    os seus antecedentes mais remotos e legitimadores, que comeam no tempo de Jesus, at ao tempo

    da Tvola Redonda e dos grandes cavaleiros, anunciando um cavaleiro perfeito, decalcado da

    21

    No romance arturiano muitas vezes os sonhos so as ferramentas de realizao de profecias.

  • 27

    profecia de um Messias, Galaaz, que realizaria a demanda do santo Graal. Galaaz filho de Lancelot,

    o cavaleiro pecador, tal como Cristo descendia de David, um rei pecador. Todos os romances tm

    autoria desconhecida, ainda que haja poucas dvidas de que temos vrios autores envolvidos,

    mesmo em cada um dos romances. Mas, ao longo do tempo, vrios estudiosos tm proposto vrias

    teorias que vo desde um nico autor a muitos autores envolvidos22.

    Este anonimato autoral, como vimos, poder reforar os indcios de uma ideia de encomenda e de

    um plano global para a reescrita do ciclo. mais credvel que o ciclo estivesse associado a uma

    pluralidade autoral ou redactorial do que a um s autor/redactor

    a ideia de uma pluralidade de escritores permite circunscrever a redaco do ciclo a um perodo temporal menos

    extenso, o que, como veremos, ser de importncia decisiva para compreender no s a gnese dos textos que

    integram o LANCELOT-GRAAL23

    , mas tambm os textos cclicos posteriores que expandem ou modificam esse ciclo

    primitivo. A pluralidade de escritores permite tambm compreender certas divergncias de escrita, de estratgia

    narrativa e at mesmo a no total compatibilizao dos dados objectivos sobre personagens e episdios que so

    perceptveis em alguns pontos do ciclo.

    Jos Carlos Miranda, A DEMANDA DO SANTO GRAAL E O CICLO ARTURIANO DA VULGATA

    Nesta etapa, a partir de um grande romance de Lancelot em prosa, no cclico, foi construdo um

    ciclo, onde se encaixam outros textos escritos inicialmente como textos independentes.

    O LANCELOT comeou, portanto, por ser um romance biogrfico isolado, embora se inscrevesse num universo

    narrativo mais vasto e j existente, cujos pontos de referncia mais notrios seriam certamente os textos da trilogia

    de Robert de Boron.

    Jos Carlos Miranda, A DEMANDA DO SANTO GRAAL E O CICLO ARTURIANO DA VULGATA

    A ideia de um plano coordenador parece ser evidenciada pela forma como os livros encaixam uns

    nos outros, corrigindo episdios e dados que existiam nos livros que lhes deram origem. As verses

    da Queste, designadas normalmente por Vulgata e Pseudo-Boron24, parecem tambm denunciar a

    existncia desse plano. So muito diferentes, mas contm muitos episdios em comum, ainda que

    contados de forma diferente, denunciando porventura esse guio comum; mas enquanto a verso

    Pseudo-Boron encaixa perfeitamente no ciclo e parece manter a verso anterior, com adio do

    material tristaniano, a edio chamada Vulgata parece ter sido sujeita a uma refundio mais

    profunda, distorcida at, para obter um contedo profundamente espiritualizante, onde a ideia de

    linhagem se atenua, substituda pela ideia de f crist, sem preocupaes de coerncia com os livros

    anteriores. Poder-se- afirmar, mesmo reconhecendo as mesmas personagens e a coincidncias de

    uma parte significativa da trama, que a QV foi escrita numa lgica no-cclica, marcada por um

    alinhamento ideolgica hostil cavalaria corts e marcado por uma espiritualidade asctica, como

    afrma ASL. A cena da tentativa de seduo de Galaaz no Castel Brut transformada numa cena de

    contedo espiritual. Tristo no aparece. A ligao de Galaaz figura de Cristo acentua-se. Os

    eremitas desaparecem. Ora, embora todo o ciclo arturiano se caracterize pela introduo de um

    manto de cristianizao, que particularmente relevante na Estria e na Demanda