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A REVOLUÇÃO FRANCESA E A REPÚBLICA BRASILEIRA – ASPECTOS HISTÓRICOS E IDEOLÓGICOS RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF. DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE GAMA FILHO. PÓS-DOUTORADO NO CENTRE DE RECHERCHES POLITIQUES RAYMOND ARON PARIS. E-mail: [email protected] 1789-1889. Ambas as datas têm, para nós, profundo significado. A primeira inspira, sem lugar a dúvidas, a segunda. Os ideais da Revolução Francesa pautaram os nossos ideais republicanos. Pretendo, neste ensaio, salientar as idéias marcantes que inspiraram a grande Revolução de 1789 e analisar, em segundo lugar, a forma em que estas idéias influenciaram na nossa propaganda republicana. Concluirei destacando os paradoxos enfrentados por ambos os processos de consolidação das instituições republicanas, na França e no Brasil, e analisarei o caminho que 1789 nos descortina para superarmos o nosso crônico autoritarismo. As idéias da Revolução Francesa

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A REVOLUÇÃO FRANCESA E A REPÚBLICA

BRASILEIRA – ASPECTOS HISTÓRICOS E

IDEOLÓGICOS

RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ

COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS “PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF. DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE GAMA FILHO.

PÓS-DOUTORADO NO CENTRE DE RECHERCHES POLITIQUES RAYMOND ARON – PARIS. E-mail: [email protected]

1789-1889. Ambas as datas têm, para nós, profundo significado. A primeira inspira,

sem lugar a dúvidas, a segunda. Os ideais da Revolução Francesa pautaram os nossos ideais

republicanos. Pretendo, neste ensaio, salientar as idéias marcantes que inspiraram a grande

Revolução de 1789 e analisar, em segundo lugar, a forma em que estas idéias influenciaram

na nossa propaganda republicana. Concluirei destacando os paradoxos enfrentados por

ambos os processos de consolidação das instituições republicanas, na França e no Brasil, e

analisarei o caminho que 1789 nos descortina para superarmos o nosso crônico

autoritarismo.

As idéias da Revolução Francesa

Há um aspecto que caracteriza a Revolução Francesa: o seu alcance internacional. O

arguto observador da história da época que era Alexis de Tocqueville (1805-1859) ressalta

esse fato, na sua obra O Antigo Regime e a Revolução:

Todas as revoluções civis e políticas tiveram uma pátria e a ela se limitaram. A Revolução Francesa

não teve território próprio. Além disso, seu efeito foi, de algum modo, o de apagar do mapa todas as

antigas fronteiras. Aproximou ou dividiu os homens a despeito das leis, tradições, caracteres e

idiomas, transformando às vezes compatriotas em inimigos e estrangeiros em irmãos. Noutras

palavras, formou, acima de todas as nacionalidades particulares, uma pátria intelectual comum da

qual os homens de todas as nações tornaram-se cidadãos.1

Onde radica essa universalidade da Revolução Francesa? Para Tocqueville não há

dúvida a respeito: a universalidade da Revolução de 1789 explica-se pela sua semelhança

com as revoluções religiosas.

A Revolução Francesa – frisa o pensador – é uma revolução política que procedeu à maneira de uma

revolução religiosa e que tomou, em algum sentido, o aspecto de uma revolução religiosa. Vejamos

os traços particulares e característicos pelos quais se assemelha a esta última: ela não apenas se

expandiu tanto quanto esta, como também penetrou pela pregação e pela propaganda. Eis o novo

espetáculo: uma revolução política que inspira o proselitismo e que prega com tanto ardor aos

estrangeiros, como se realiza com paixão na própria pátria! (...) A revolução Francesa procedeu

diante deste mundo precisamente da mesma maneira que as revoluções religiosas diante do outro.

Considerou o cidadão de modo abstrato, fora de todas as sociedades particulares, como as religiões

consideram o homem em geral, independentemente do país e do tempo. Não se indagou apenas sobre

o direito particular do cidadão francês, mas também sobre os deveres e direitos gerais dos homens

em matéria política.2

A Revolução Francesa deu continuidade ao fenômeno do messianismo político,3 do qual é

uma manifestação fundamental a Religião Civil, que o filósofo genebrino Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778) propôs na última parte do seu Contrato Social (1762).4 Partindo do

fato da desigualdade humana criada pela sociedade, que Rousseau analisa no seu livro A

1 TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Francisco C. Weffort). 1a. Edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 329. Coleção Os Pensadores. Este volume apresenta, também, os Federalistas. 2 TOCQUEVILLE, ob. cit., p. 330-331. 3 Cf. TALMON, J. L. Mesianismo político, la etapa romántica. (Tradução española de Antonio Gobernado). México: Aguilar, 1969. 4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. (Introdução e cronologia de Pierre Burlegin). Paris: Garnier-Flammarion, 1966, cap. VIII, “De la Religion Civil”, p. 170-180.

origem da desigualdade entre os homens (1753)5, o filósofo salienta que só no surgimento

de uma Religião Civil que unifique as mentes e as vontades ao redor do Estado, poderá ser

conseguida a ordem social e política. Como o próprio Rousseau reconhece, ele é inspirado,

em parte, pela proposta do poder único e indivisível em mãos do Estado, que Thomas

Hobbes (1588-1679) tinha formulado um século atrás no Leviatã (1651), para superar o

estado de “guerra permanente” ou de insegurança coletiva.6 Rousseau expressa assim a

natureza da Religião Civil proposta:

Existe, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano está incumbido de fixar,

não precisamente como normas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais

seria impossível (alguém) se tornar bom cidadão ou sujeito fiel (...). Os dogmas da religião civil

devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão, sem explicações nem

comentários: a existência da divindade poderosa, inteligente, benfeitora, previdente e providente; a

vida futura; a felicidade dos justos; a punição dos malvados; a santidade do contrato social e das leis;

eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, eu os reduzo a um só, a intolerância: ela

pertence aos cultos que temos excluído.7

O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, pai do democratismo.

A utilidade da Religião Civil assim entendida é muito grande, segundo Rousseau.

Eis as suas principais aplicações, visando à estabilidade do poder e à unidade social: sem

que o soberano possa obrigar ninguém a crer nos sentimentos de sociabilidade apregoados

pela nova religião, pode, contudo,

Banir do Estado quem não acreditar neles; pode bani-lo, não como ímpio, mas como anti-social,

como incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de sacrificar a sua vida à necessidade, no

cumprimento do seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido publicamente esses mesmos

5 ROUSSEAU, Jean-Jacques. El origen de la desigualdad entre los hombres. (Tradução española de Coloma Lleal). México: Grijalbo, 1972. 6 Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã, ou materia, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). 1a. Edição, São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores. 7 ROUSSEAU, Du contrat social, ob. cit., p. 179.

dogmas, se conduz como se não acreditasse neles, seja punido com a morte; ele terá cometido o

maior dos crimes, terá mentido perante as leis.8

É claro que a prática do jacobinismo republicano, ensejada pela Revolução

Francesa, louvou-se da proposta messiânica rusoísta, no contexto do fenômeno que Jean-

Jacques Chevallier (1900-) denominou de “L’affermissement puis la stagnation de la

Révolution”9, nos períodos da Convenção Nacional, do Comitê de Salvação Pública e da

ditadura de Robespierre (fatos ocorridos entre 1972 e 1794). Não é casual o sentido sagrado

do terror republicano exercido pelos “puros”, como o próprio Robespierre ou Saint-Just.

Deter-me-ei, no entanto, em duas manifestações do credo revolucionário, que exprimem

bem o ideário liberal que o empolgava e que se converteram em mensagem libertadora para

outros povos: o folheto de Sieyès (1748-1836) intitulado O que é o Terceiro Estado?10 E a

Declaração dos direitos dos homens e do cidadão, 11 ambos os documentos de 1789.

O padre Sieyès, “tão pouco padre”,12 no sentir de seus biógrafos, abraçara a carreira

eclesiástica “como vantajoso meio de elevar-se, não obstante sua condição plebéia”, Foi

nomeado, em 1789, representante da diocese de Chartres na Câmara Soberana do Clero da

França No ano seguinte, foi eleito representante do Clero à Assembléia Provincial de

Orléans. Foi no desempenho desta função que o seu pensamento político descobriu a

hostilidade da sociedade francesa contra os privilégios da classe tradicional, a Nobreza. O

Clero era considerado por ele como um estamento de funcionários públicos. Levado, por

força das suas funções políticas, a se deter freqüentemente em Paris, entrou em contato com

os círculos, salões e lojas maçônicas onde se preparava a Revolução. Como o próprio

Sieyès confessava, “a energia da insurreição penetrou-me o coração”.13 No decorrer dos

anos 1788 e 1789, o padre ativista publicou três obras: Opiniões sobre os meios de

8 ROUSSEAU, ob. cit., ibid. 9 CHEVALLIER, Jean-Jacques. Histoire des Institutions et des Regimes politiques de la France de 1789 à nos jours. 5a. Edição. Paris: Dalloz, 1977, p. 51. Em relação à proximidade do pensamento de Robespierre e de Saint-Just em face do russoísmo, cf. TOUCHARD, Jean, Historia de las ideas políticas, (tradução ao espanhol de J. Pradera), Madrid: Tecnos, 1972, pg. 361 seg. 10 Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. (Prefácio de A. Siegfred; tradução de L. Christina). 3a. Edição. Rio de Janeiro: Agir, 1973, p. 192-203. 11 Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes politiques de la France de 1789 à nos jours, ob. cit., p. 22-25. 12 Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 194. 13 Cit. Por CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 192.

execução, dos quais poderão dispor, em 1789, os representantes da França, o Ensaio

sobre os privilégios e O que é o Terceiro Estado? Importante estudioso do pensamento de

Sieyès, P. Bastid, refere-se a estes escritos da seguinte forma: “Nas três obras a inspiração

vai crescendo. O tema geral são os direitos da Nação que Sieyès identifica com os do

Terceiro (Estado) e que opõe às prerrogativas dos privilegiados”.14

O Abade Sieyès, cuja obra O que é o Terceiro Estado? foi o estopim da Revolução Francesa.

As três primeiras edições do opúsculo O que é o Terceiro Estado? Apareceram

anônimas; a quarta era assinada por Sieyès.O escrito do padre converteu-se, rapidamente,

na obra mais lida na França em 1789, porque destacava em alto e bom som algo que era

reivindicação da sociedade: o fim dos privilégios e o início de um Estado de direito que

garantisse a todos o exercício da cidadania. A obra de Sieyès é direta, sem meias-palavras.

Esse seu estilo revela-se já nas primeiras linhas: “É bem simples o plano deste escrito.

Temos três questões a propor-nos: 1) Que é o Terceiro Estado? – Tudo. 2) Que tem sido até

agora na ordem política? – Nada. 3) Que pode ele? – Tornar-se algo”.15

Sieyès deixa claro, desde o início que “O Terceiro Estado é uma Nação completa”.

Para que uma Nação subsista, é necessário preencher duas tarefas: trabalhos particulares e

funções públicas. Ora, ambas as atividades são desempenhadas pelo Terceiro Estado Dele

provêm os 19 vigésimos dos integrantes do serviço público. A Nobreza, ordem

privilegiada, pega a parte do leão nas funções públicas, deixando ao Terceiro Estado

somente aquilo que os privilegiados se recusam a fazer. “O Terceiro (Estado) – conclui

Sieyès – abrange, pois, tudo quanto pertence à Nação; e tudo quanto não é Terceiro não

pode considerar-se como pertencente à Nação. Que é o Terceiro (Estado)? Tudo”.16

14 Cit. Por CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 195. 15 Cit. Por CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 194. 16 Cit. Por CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 196.

O Terceiro Estado nada foi na França, pois nada se é ao amparo unicamente da lei

comum. O Terceiro Estado é, por definição, frisa Sieyès,

O conjunto dos que pertencem à ordem comum, que estão sujeitos à lei comum: a massa dos não

privilegiados. Para não ser de todo esmagado o infeliz não privilegiado só tem um recurso:, ligar-se,

por toda espécie de baixezas, a um grande.17

O Terceiro Estado não é livre. A propósito, frisa Sieyès: “Não se é livre por

privilégios, mas pelos direitos que pertencem a todos”. O propagandista contrapõe

lucidamente a liberdade democrática (igualitária), a ser conquistada pela Revolução, à

liberdade aristocrática (privilegiada) do Ancien Regime. Este, no sentir do autor, não é

monárquico, em sentido estrito. Trata-se de uma usurpação da aristocracia.

E que é a Corte – pergunta o padre – senão a cabeça dessa aristocracia que cobre todas as regiões da

França e que, por seus membros, tudo atinge, exercendo por toda parte quanto há de essencial em

todos os setores da coisa pública?18

Ao tentar assinalar o lugar que corresponde ao Terceiro Estado na sociedade

francesa, Sieyès adere ao argumento numérico, em contra da idéia de hierarquia. A Terceira

Ordem tem, sobre o Clero e a Nobreza, enorme autoridade numérica: “Oitenta mil e

quatrocentos eclesiásticos – frisa Sieyès -, cento e dez mil nobres. Comparai esse número

ao de vinte e cinco a vinte e seis milhões de almas, e julgai a questão”.19

Ressaltam na reflexão de Sieyès três princípios básicos da filosofia liberal, na trilha

hobbesiana e lockeana: em primeiro lugar, a profissão de fé no mecanismo social. A

respeito, frisa o padre: “Jamais se compreenderá o mecanismo social, se não se tomar o

partido de analisar uma sociedade como uma máquina ordinária”.20 Em segundo lugar,

ressalta na reflexão de Sieyès a idéia da monarquia constitucional: a França deve ter uma

Constituição que paute o seu convívio político. Os constituintes não podem ser os membros

dos Estados Gerais, manipulados pelo rei; somente poderão exercer essas funções

representantes extraordinários, especialmente delegados para esse fim. Eles deverão ser

17 Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 196-197. 18Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 197. 19 Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 198. 20 Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques, As grande obras política de Maquiavel a nossos dias, ob. cit., p. 200.

convocados pelo príncipe “em sua qualidade de primeiro cidadão”. Em terceiro lugar,

ressalta a idéia de representação, entendida como a delegação, ao menos parcial, da

soberania aos representantes do Terceiro Estado, que assume a característica de Nação.

A Declaração dos direitos do homem e do cidadão,21 elaborada pela Assembléia

Nacional Francesa entre 17 de junho e 14 de julho de 1789, tinha como ponto de partida as

Declarações das Colônias Americanas, revoltadas contra a Inglaterra em 1776. Dois

aspectos podemos salientar na Declaração feita pelos revolucionários franceses: crítica aos

privilégios do Ancien Regime e defesa dos direitos fundamentais do homem e do cidadão.

A crítica ao regime de privilégios ficava clara no seguinte princípio: “A lei deve ser a

mesma para todos, seja que ela proteja, seja que ela puna” (art. 6). Os artigos 7, 8 e 9,

outrossim, condenam a arbitrariedade das prisões e dos castigos impostos durante o Ancien

Regime; consagram o espírito do habeas corpus inglês. A liberdade de falar, de escrever e

de publicar é defendida, contra a prática da censura do regime anterior. Contra as injustiças

tributárias, é defendida a igual distribuição do imposto, livremente consentido pelos

cidadãos ou seus representantes (art. 4); está presente, aqui, o espírito das liberdades

públicas conquistadas pelos americanos, contra as tentativas inglesas de cobrar impostos

extorsivos. O artigo 6o. contemplava a supressão do monopólio das vagas nos empregos

públicos em favor das classes privilegiadas, bem como a avaliação dos funcionários pelo

seu desempenho.

Consagrava-se, outrossim, a liberdade de opiniões religiosas, contra o monopólio da

Igreja Católica. O artigo 3o. proclamava o novo direito público: “O princípio de toda

soberania reside essencialmente na Nação. Esta não é uma entidade transitória, mas uma

coletividade indivisível e perpétua”. O artigo 6o. consagrava o princípio da liberdade

política: “Todos os cidadãos possuem o direito a concorrer, pessoalmente ou pelos seus

representantes, à formação da lei”, que é a expressão da vontade geral. Ficava implícita,

aqui, a idéia do sufrágio universal, que, no entanto, não foi posta em prática pelos

constituintes. Instaurava-se, também, o princípio da separação dos poderes.

21 Para análise da Declaração de 1789, cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours, ob. cit., p. 22-25.

A defesa dos direitos do homem e do cidadão configurava, propriamente, o cerne

filosófico e a mensagem religiosa da Declaração de 1789, tendo-se tornado a parte mais

conhecida internacionalmente. Já no início da Declaração aparece um dos leit-motifs da

ilustração francesa: a idéia da bondade natural do homem, de inspiração naturalística e

idílica. A causa da dor não é o pecado. Pelo contrário, como frisa a Declaração, “a

ignorância, o esquecimento e o menosprezo dos direitos do homem são as únicas causas das

desgraças públicas e da corrupção dos governos”. É necessário proclamar “numa

declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”, a fim de que a

Humanidade pare de sofrer ao se tornarem eles realidade. A respeito, frisa Jean-Jacques

Chevallier: “Encontra-se aí o que se tem chamado de messianismo, essa espera de um

regime salvador, alicerçada na idéia de que somente o regime social seria responsável pelos

males da Humanidade”.22

No artigo 1o. destaca-se claramente a idéia do estado de natureza; este trecho é

quase a cópia de um artigo da Declaração dos Direitos de Massachusetts: “Os homens

nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.O artigo 2o. salienta a finalidade da

sociedade humana, que consiste na “conservação dos direitos naturais e inalienáveis do

homem”. Este aspecto da Declaração alicerça-se claramente na filosofia política lockeana

que, por sua vez, é tomada como fonte inspiradora pelos Federalistas americanos .23 Esses

direitos inalienáveis eram, no sentir dos liberais anglo-americanos, a liberdade, a

propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Em tudo isso, como lembra Chevallier,

achamos o postulado individualista, pois

“A finalidade não é a sociedade, mas o homem individual. A definição da liberdade, já não

apenas da liberdade política, mas da liberdade tout-court, é uma definição individualista, elaborada

em função de cada indivíduo separado”.24

A Declaração não deixa dúvidas no que diz respeito ao conceito de liberdade, no

contexto individualista apontado. O texto, efetivamente, destaca que

22 CHEVALLIER, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours, ob. cit., p. 24. 23 Cf. LOCKE, John, Segundo tratado sobre o governo – Ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil, (Tradução de E. J. Monteiro), 1a. Edição, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 77. Quanto ao pensamento dos Federalistas americanos, cf. HAMILTON, MADISON, JAY, O Federalista, (tradução de A. Della Nina), São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 124-125. 24 CHEVALLIER, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours, p. 25.

A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não fira ninguém. Assim, o exercício dos

direitos naturais de cada homem não tem outros limites que aqueles que garantem aos demais

membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos.25

A influência das idéias da Revolução Francesa no pensamento republicano

brasileiro

A mais importante influência das idéias que empolgaram a Revolução Francesa deu-

se, no Brasil, no terreno da propaganda republicana. Os ideais revolucionários inspirados na

Independência americana já eram conhecidos no Brasil, à época da Conjuração Mineira,

cujo ponto alto situa-se pouco antes da Revolução Francesa (entre 25 de dezembro de 1788

e 6 de janeiro de 1789). Os conjurados mineiros não desconheciam as idéias que se

debatiam na França no período preparatório da Revolução. Lembremos os contatos havidos

com as idéias do Enciclopedismo por parte de alguns estudantes mineiros, durante a sua

permanência em Universidades francesas ou portuguesas. Ao regressarem ao Brasil, eles

queriam pôr em prática os ideais revolucionários. José Álvares Maciel, por exemplo, que

conheceu as idéias libertadoras durante as suas viagens à França foi tão afoito em

materializar os seus planos, que “logo, ao desembarcar, na metade de 1788, no Rio de

Janeiro, já arquitetava com Tiradentes os primeiros passos para a Revolução de Minas”.26

De outro lado, era conhecida pelos conjurados mineiros a literatura dos filósofos da

Ilustração. Na biblioteca do primeiro formulador de um projeto de independência para

Minas Gerais, o cônego Luiz Vieira da Silva, encontravam-se obras de Voltaire,

Montesquieu, Diderot, D’Alembert, Mably, etc. No seu depoimento nos Atos da Devassa, o

capitão Vicente da Mota confessava que

Sabia, por ser público em toda esta Vila, que o alferes Joaquim José da Silva, por alcunha o

Tiradentes, andava falando pelas tabernas, quartéis, por onde se achava, que estas Minas Gerais

poderiam vir a ser uma república.27

Em três aspectos podemos centrar a presença dos ideais da Revolução Francesa na

propaganda em prol da República: em primeiro lugar, na mística republicana; em segundo

25 Apud CHEVALLIER, Jean-Jacques, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours, ob. cit., p. 25. 26 JOSÉ, Oiliam, Tiradentes, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985, p. 225. 27 Apud JOSÉ, Oiliam, Tiradentes, ob. cit., p. 226.

lugar, na crítica ao absolutismo e aos privilégios monárquicos e, em terceiro lugar, na

defesa dos direitos do homem e do cidadão.

Detenhamo-nos no aspecto relacionado à mística republicana. A adesão à convicção

religiosa de que o movimento libertário em prol da República constituía uma tradição

sagrada, foi uma linha de inspiração comum aos manifestos republicanos.28 Os que mais

explicitamente fazem referência à mística republicana são o de 1838 (da República de

Piratini), no qual é salientada a idéia de retomar essa tradição sagrada, que já teve no Brasil

os seus mártires; no mesmo sentido se pronunciam os manifestos de 1870 e de 1886. O

manifesto pernambucano de 1888 identifica a mística republicana com a “pureza e

sublimidade” de intenções dos que lutam contra a monarquia. Essa mística, aliás,

condiciona o conhecimento científico do futuro, segundo o mencionado documento.

Dois propagandistas da República no Brasil: Valentim Magalhães e Silva Jardim.

De outro lado, consta que a geração republicana que se formou a partir de 1870, no

Recife e em São Paulo, conhecia a literatura política portuguesa da geração das

Conferências do Cassino (1871), fortemente influenciada pelas idéias revolucionárias

francesas. O fato de o manifesto de 1886 citar Teófilo Braga (1843-1924), um dos

integrantes dessa geração, é bem significativo. Ora, essa geração esteve empolgada por uma

concepção mística da República, como o testemunham os escritos de Antero de Quental

(1842-1891), que datam do período da sua militância política (1870-1874)29 e que deixam

transluzir acentuado tom russoísta e saint-simoniano, provavelmente através da influência

de Jules Michelet (1798-1874). Silva Jardim (1860-1891), o incendiário propagandista,

estava deveras empolgado pela mística republicana.

28 Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo, A propaganda republicana. 1ª. Edição, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982. 29 Cf. QUENTAL, Antero de. Prosas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1923-1931, vol. 2.

A Revolução – dizia o jovem tribuno - é um dever excepcional, é uma garantia suprema, impossível

de ser de todo banida do organismo social, bem como a moléstia do organismo físico. A ciência não

a exclui porque paz não quer dizer indiferença, ordem não quer dizer apatia, fraternidade não quer

dizer impudor perante as afrontas: a violência é digna, a violência é justa, a violência é também

santa: só os fracos não se indignam, só os nulos não se revoltam, só os covardes não respondem à

violência, que é um insulto, com a violência, que é um castigo!30

Ninguém mais do que os republicanos sul-rio-grandenses, no entanto, revelou

melhor a índole religiosa da concepção republicana que os inspirava. Como outrora os

líderes jacobinos, os jovens propagandistas gaúchos identificam-se como “os puros”. A

“pureza de intenções”, que se poderia traduzir como defesa incondicional das instituições

republicanas, tidas como algo de sagrado, constituía, para eles, a essência das aspirações

políticas. Eis o que dizia Júlio de Castilhos (1860-1903): “Na imaculada pureza de

intenções (...), tenho procurado tornar-me órgão fiel das aspirações republicanas”.31 Arthur

Ferreira Filho sintetizou admiravelmente a concepção republicana castilhista como “regime

da virtude”:

(Para Júlio de Castilhos) a República era o reino da virtude. Somente os puros, os desambiciosos, os

impregnados de espírito público deveriam exercer funções de governo. O seu conceito, a política

jamais poderia constituir uma profissão ou um meio de vida, mas um meio de prestar serviços à

coletividade, mesmo com prejuízo dos interesses individuais.32

O Marechal Deodoro da Fonseca, que proclamou a República e foi presidente do Governo Provisório.

Borges de Medeiros (1863-1961), sucessor de Castilhos na governança do Rio

Grande entre 1903 e 1928, dizia com devoção ao entregar o poder estadual a Getúlio

Vargas (1883-1954), em 1928:

30 JARDIM, Antônio da Silva. Propaganda republicana (1888-1889). Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa / Conselho Federal de Cultura, 1978, p. 327. 31 Apud VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Castilhismo – Uma filosofia da República. 1a. Edição. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980, p. 74. 32 FERREIRA FILHO, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1958, p. 149.

Voltado espiritualmente para o altar do culto republicano, onde o vulto imortal de Júlio de Castilhos

domina o cenário rio-grandense e preside subjetivamente à felicidade de sua gente e de sua terra, a

vossa consagração reveste-se de um tom de misticismo, que me enleva e transporta.33

Um outro castilhista, o senador José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915),

considerava-se p “pálio debaixo do qual se guardava a hóstia republicana”.34 O mais novo

rebento da primeira geração castilhista, Getúlio Vargas, assim falava diante do túmulo de

Castilhos em 1903:

O Brasil, colosso generoso, ajoelha soluçando junto da tumba do condor altaneiro que pairava nos

píncaros da glória. Júlio de Castilhos para o Rio Grande é um santo. É santo porque é puro, é puro

porque é grande, é grande porque é sábio, é sábio porque, quando o Brasil inteiro se debate na noite

trevosa da dúvida e da incerteza (...), o Rio Grande é o timoneiro da Pátria.35

O testamento político de Getúlio insere-se também no contexto da mística

republicana, ao frisar que o pai dos pobres dá a sua vida para salvar os desprotegidos da

exploração dos poderosos.

A crítica radical à monarquia e às instituições imperiais foi o segundo aspecto, em

que se revela a inspiração do pensamento republicano brasileiro na doutrina libertária da

Revolução Francesa. Para os propagandistas, tanto as revoluções antimonarquistas quanto a

propaganda republicana tiveram uma única causa: o despotismo monárquico. Esse

despotismo, que é denunciado já a partir do primeiro manifesto de 1817, teve várias

manifestações, no sentir dos ideólogos republicanos. As mais importantes foram: o

desconhecimento da constituinte por parte de Dom Pedro I, que a clausurou a mão armada

(manifestos de 1824, 1837 e 1870); a tentativa do Imperador de centralizar, nele, a

iniciativa política (manifesto de 1838); a repressão brutal aos movimentos independentistas

das Províncias (manifesto de 1838); o autoritarismo do Poder Moderador, que não

representava ninguém, além do monarca, e que tinha escravizado os outros poderes do

Estado (manifesto de 1870); a característica teocrática da monarquia, que a tornava um

poder antidemocrático e repressivo (manifesto de 1886); a tendência cartorial e

centralizadora ensejada pela monarquia no seio do Estado brasileiro (manifestos de 1824,

33 Apud VÉLEZ Rodríguez, Castilhismo – Uma filosofia da República, ob. cit., p. 76. 34 Apud VÉLEZ Rodríguez, ob. cit., p. 77. 35 Discurso pronunciado pelo jovem Getúlio Vargas, na sessão fúnebre de 31/10/1903, para honrar a memória de Júlio de Castilhos. Apud LINS Ivan, História do positivismo no Brasil, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 192-193.

1837, 1838 e 1870); a tendência, aliciada também pela monarquia, de fazer da política um

negócio particular (manifesto de 1887). Assim, o despotismo monárquico era assinalado

como causa imediata do atraso do país (manifestos de 1866 e 1887) e como vergonha da

sociedade brasileira, por se alicerçar numa instituição desumana: a escravatura (manifesto

paulista de 1888).

Uma crítica radical semelhante fora feita pelas Conferências do Cassino, em Lisboa

(1871), em relação às instituições portuguesas. A acritude da análise de Antero de Quental

na sua polêmica conferência intitulada: “Causas da decadência dos povos peninsulares nos

últimos três séculos”, é comparável ao tom absoluto com que os autores dos manifestos

criticavam o Império do Brasil.

Getúlio Vargas, Presidente do Brasil em 1930.

Essa crítica ao regime de privilégios (que os republicanos brasileiros endereçaram

inicialmente contra a monarquia) terminou se concretizando na extinção de todas as

prerrogativas, consagrada na Constituição de 1891, como bem anota Evaristo de Moraes

Filho:

Realmente, todo o espírito progressista parecia estar com a república, apoiada pela maçonaria, pelo

positivismo, e pelas correntes que se julgavam desassombradas de preconceitos. Em intenção, pelo

menos, o novo regime voltava-se para o povo, que, num governo democrático e representativo, seria

a fonte única da soberania nacional. Tudo isso vai ser consagrado na Constituição de 24 de fevereiro

de 1891 (...). É longa a série de franquias individuais e de garantia de direitos que se contém no seu

célebre artigo 72, no qual (§ 24) se prescrevia o livre exercício de qualquer profissão moral,

intelectual e industrial. No §2: A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros

de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem

como os títulos nobiliárquicos e de conselho36.

36 MORAES FILHO, Evaristo de (organizador). O socialismo brasileiro. Brasília: Câmara dos Deputados / Editora da Universidade de Brasília, s/d, p. 6.

Esta seria a base para todas as lutas deflagradas ao longo do século XX, em prol de

tornar real o ideal de igualdade. A respeito, frisa Vamireh Chacon:

A autêntica herança brasileira tem seu ponto máximo na linha de 1798, 1817, 1822, 1824, 1848,

1888, 1889, através das mensagens dos alfaiates baianos, dos nacionalistas da Independência, dos

liberais radicais ansiosos em acrescentar a dimensão da Igualdade à Liberdade – como padre João

Ribeiro, Cipriano Barata e frei Caneca -, dos quarante-huitards nordestinos, dos nabucos, dos

republicanos com Benjamin Constant e Raul Pompéia, que serviram à República, porém dela não se

serviram. Esta herança brasileira se associa àquela outra, das barricadas parisienses de 1789, 1848 e

1871, dos cartistas e fabianos ingleses, da rebelião contemporânea latino-americano-afro-asiática.37

O terceiro aspecto (em que se revela a inspiração do pensamento republicano

brasileiro na doutrina libertária da Revolução Francesa), é na defesa dos direitos do homem

e do cidadão. O manifesto da Revolução Pernambucana de 1817 enfatizava a igualdade de

direitos de todos os cidadãos, ao afirmar que “já não há distinção entre brasileiros e

europeus, todos se conhecem irmãos, descendentes da mesma origem, habitantes do mesmo

país, professores da mesma religião”.38 Já o manifesto do levante pernambucano de 1824

defendia a idéia da soberania da nação, tão cara os revolucionários de 1789, com as

seguintes palavras: queremos “uma soberana assembléia constituinte de nossa escolha e

confiança”, nos moldes da reunião do Terceiro Estado proclamado por Sieyès. Por sua vez,

os manifestos do levante baiano de 1837 reivindicavam o respeito aos direitos essenciais

dos cidadãos, que eram violentamente desconhecidos pelo absolutismo da regência, sob

cujo império

Efetua-se (...) a aspirada abertura dos cofres nacionais, onde são depositados os rendimentos da

Bahia, que só para sustentar o espantoso luxo da Corte mal se serve, e esgota os cofres provinciais

(...); criam-se novos tributos e o povo geme debaixo do peso de tanta opressão.39

O manifesto da República de Piratini (1838) sintetizou, nas seguintes palavras, os

ideais de luta dos revolucionários farroupilhas, em defesa de seus direitos cidadãos:

Em defesa de suas leis tão indignamente ultrajadas, em defesa de sua dignidade e de seus direitos tão

torpemente vilipendiados, levantam os patriotas sul-rio-grandenses a terrível luva que seus

37 CHACON, Vamireh, História das idéias socialistas no Brasil, 2a. edição, Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 258-259. 38 Apud PESSOA, Reynaldo Carneiro, A idéia republicana no Brasil, através dos documentos, São Paulo: Alfa-Ómega, 1973, p. 13. A ortografia do texto original foi atualizada, a fim de facilitar a leitura dos textos dos Manifestos. 39 Apud PESSOA, Reynaldo Carneiro, ob. cit., p. 37-38.

opressores lhes lançaram, e tendo de optar entre a liberdade e os ferros, entre a escravidão e a morte,

abraçaram a guerra com todas as suas conseqüências e se arrojaram aos combates.40

O manifesto de 1870, publicado no jornal A Republica do Rio de Janeiro, a 3 de

dezembro, e assinado por Joaquim Saldanha Marinho, ex-presidente de Minas e São Paulo,

e por 57 republicanos salientava, em primeiro lugar, que o autoritarismo e o regime de

privilégios eram as principais causas da decadência política do Império. As tradições do

Ancien Regime, em que esses vícios se baseavam, abrigavam preconceitos contra “as

conquistas morais do progresso e da liberdade”.41 Assim, o dilema colocado perante o

regime imperial era: “ou a aurora da regeneração nacional ou o ocaso fatal das liberdades

públicas”, mediante a perpetuação da monarquia, que era inimiga da “democracia pura”.

Dilema semelhante ressaltava no manifesto do Clube Republicano do Pará (1886), que na

sua parte conclusiva afirmava:

Assim, nós opomos a uma monarquia de escravos a república dos homens livres (...). Preparemo-nos

todos para esse acontecimento extraordinário, que não está longe; para essa mudança política, que

tem forçosamente de operar-se nos próximos dias, e que será para nós a gloriosa hégira de onde

datará a nossa vida como nação livre e independente: a proclamação da República.42

Considerações finais

Salientei os aspectos marcantes do pensamento republicano brasileiro, em que se

revela a presença inspiradora da Revolução Francesa. Concluo frisando que a influência do

grande acontecimento de 1789 não pára aí. Também se manifesta essa influência nos

descaminhos pelos que enveredou o regime militar de 1889. Pois se 1789 esteve inspirado

nos princípios liberais de Sieyès e da Declaração dos direitos do homem e do cidadão,

que, por sua vez, iluminaram a nossa propaganda republicana, também não é menos certo

que a Revolução Francesa teve o seu Termidor e o seu 18 Brumário, que descambaram na

retomada do absolutismo sob Napoleão Bonaparte, assim como a proclamação da

República teve, entre nós, a crise do autoritarismo em que, ciclicamente, após o golpe de

Estado de Deodoro, têm mergulhado as instituições republicanas, passando pelo

bonapartismo de Floriano Peixoto, pela política dos governadores, pela ditadura getuliana e

chegando até o golpe de 64.

40 Apud PESSOA, Reynaldo Carneiro, ob. cit., p. 29. 41 Apud PESSOA, Reynaldo Carneiro, ob. cit., p. 43. 42 Apud PESSOA, Reynaldo Carneiro, ob. cit., p. 82-83.

Tanto nos nossos descaminhos, quanto nos excessos sofridos pela Revolução

Francesa, os ideais republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade viram-se

paradoxalmente refletidos pelo espelho côncavo de filosofias messiânicas de cunho

autoritário: o pensamento russoniano, no caso francês, o positivismo e o marxismo, no caso

brasileiro. Ambas as vertentes conheceram os seus apóstolos e semearam o paradoxo da

democracia autoritária.

No entanto, a memória de 1789 não se esgota aí. A ulterior evolução política da

França está a nos provar que a vertente libertária e progressista da grande Revolução do fim

do século XVIII, a sua defesa desassombrada da liberdade e dos direitos fundamentais do

cidadão, o seu combate sem trégua a qualquer forma de autoritarismo, a sua luta em prol da

representação, são muito mais fortes do que o jacobinismo e o bonapartismo. Os ideais

republicanos também podem, entre nós, ensejar a consolidação de autênticas instituições

políticas, garantidoras da liberdade, da democracia e do bem-estar dos cidadãos, superados

definitivamente os ciclos autoritários.

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