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105 GIOVANNI SARTORI Cátedra Albert Schweitzer em Humanidades Universidade de Colúmbia A TEORIA DA DEMOCRACIA REVISITADA Volume II — As questões clássicas Tradução de Dinah de Abreu Azevedo Revisão técnica de Régis de Castro Andrade

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GIOVANNI SARTORI

Cátedra Albert Schweitzer em Humanidades Universidade de Colúmbia

A TEORIA DA

DEMOCRACIA

REVISITADA

Volume II — As questões clássicas

Tradução de Dinah de Abreu Azevedo Revisão técnica de Régis de Castro Andrade

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Editor Nelson dos Reis

Assistência editorial Ivany Picasso Batista

Edição e preparação de texto Irene Catarina Nigro

Edição de arte (miolo) Editoração eletrônica Divina Rocha Corte

Capa Ary Almeida Normanha

SUMÁRIO

© 1987, Chatam House Publishers, Inc. Título original: The theory of democracy revisited

Esta edição de A teoria da democracia revisitada foi publicada com a autorização da Chatam House Publishers, Inc. Box One, Chatam, New Jersey 07928, USA

ISBN 85 08 05124 7

1994 Todos os direitos reservados

Editora Ática S.A.

Rua Barão de Iguape, 110 — CEP 01507-900 Tel.: PABX (011) 278-9322 — Caixa Postal 8656

End. Telegráfico "Bomlivro" — Fax: (011) 277-4146 São Paulo (SP)

Prefácio 5

9. O que é democracia? Definição, prova e preferência 7

9.1 As definições são arbitrárias? 7 9.2 Uma crítica ao convencionalismo 12 9.3 As palavras enquanto portadoras de experiência 17 9.4 A busca de prova 20 9.5 Uma avaliação comparativa 25

10. A democracia grega e a democracia moderna 34

10.1 Homonímia, não homologia 34 10.2 Democracia direta ou democracia da polis 36 10.3 Individualismo e liberdade: o velho e o novo 42 10.4 A idéia moderna e o ideal 46 10.5 Uma inversão de perspectiva 50

11. A liberdade e a lei 59

11.1 Liberdade e liberdades 59 11.2 Liberdade política 63 11.3 Liberdade liberal 69 11.4 A supremacia do direito em Rousseau 74 11.5 Autonomia: uma crítica 81 11.60 princípio das conseqüências decrescentes 87 11.7 Do governo-da-lei ao governo dos legisladores 89

12. Igualdade 107

12.1 Um ideal de protesto 107 12.2 Justiça e identidade 109 12.3 Igualdades pré-democráticas e democráticas 113 12.4 Oportunidades iguais e circunstâncias iguais 117

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A democracia grega e a democracia moderna

E claro que todos as condições de liberdade mudaram; a própria palavra "liberdade" não tem, no

nosso tempo, o mesmo significado dos tempos antigos... È sempre útil estudar a Antigüidade, mas é

pueril e perigoso imitá-la.

E. Laboulaye

10.1 Homonímia, não homologia

O termo demokratía foi cunhado há cerca de 2400 anos1. Desde então, embora tenha desaparecido durante um intervalo muito longo, continuou fazendo parte do vocabulário político. Mas, num período de vida tão longo, "democracia" naturalmente adquiriu diversos significados, relativos, de fato, a contextos históricos muito diferentes, assim como a ideais muito diferentes. Desse modo, com o passar do tempo, tanto seu uso denotativo quanto seu uso conotativo mudaram. Seria estranho se não tivesse sido assim; e, por isso, é surpreendente a pouca atenção dada ao fato de o conceito atual de democracia ter apenas uma vaga semelhança com o conceito desenvolvido no século V a.C.

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Quando usamos a mesma palavra, somos facilmente levados a acreditar que estamos nos referindo à mesma coisa, ou a algo parecido. No entanto, com respeito a "democracia", isso implica passar por cima de mais de dois mil anos de mudanças.

A democracia antiga era concebida numa relação intrínseca, simbiótica, com a polis. E a polis grega não tinha nada da cidade-Estado como estamos acostumados a chamá-la — pois não era, em ne-nhum sentido, um "Estado". A polis era uma cidade-comunidade, uma koinonía. Tucídides definiu-a com três palavras: ándres gar polis — os homens é que são a cidade. É muito revelador que politeía tenha significado, ao mesmo tempo, cidadania e estrutura (forma) da polis. Assim, quando falamos do sistema grego como um Estado democráti-co, estamos sendo grosseiramente imprecisos, tanto terminológica quanto conceitualmente.

"Estado" deriva do particípio passado latino status, que, como tal, indicava simplesmente uma condição, uma situação ou estado de ser (como na expressão atual de status social). Maquiavel foi o primeiro autor a reificar "Estado" como uma entidade impessoal e a empregar o termo com sua denotação política moderna — e de forma um pouco casual e parcimoniosa. Na época de Maquiavel, as formas políticas ainda eram, em geral, designadas ou como regnum ou como civitas (quando republicanas). Por isso Hobbes preferia o termo "comunidade"; e Bodin, que transformou o imperium medieval em "soberania" (para nós, a característica distintiva do Estado), também não usava a palavra Estado. A palavra conquistou lentamente a aceitação política porque, a meu ver, não havia necessidade dela até Herrschqft (dominação) adquirir uma espécie de fixidez impessoal e distante. Se tudo quanto existisse fosse um rei e sua corte, regnum (reino) seria adequado. Da mesma forma, se tudo quanto houvesse fossem magis-trados caminhando pelas ruas e vivendo na casa ao lado, civitas seria adequado. O único uso coerente e persistente de "Estado" no século XVII ocorreu, na esteira da Ragion di Stato de Botero, de 1589, na literatura da razão de Estado; e isso ocorreu porque a literatura tratava realmente de uma entidade reificada: o imperativo (e capacidade) de sobrevivência de todo e qualquer organismo político2. Seja como for, à medida que "Estado" entrou em voga como termo político, passou a ser cada vez menos coextensivo a res publica (a sociedade política-

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mente organizada como um todo) e identificado cada vez mais estri-tamente com as estruturas de comando (autoridade, poder, coerção) impostas à sociedade3.

Assim, se os gregos tivessem concebido o Estado como nós, a noção de "Estado democrático" lhes teria parecido uma contradição em termos. O que caracterizava a democracia dos antigos era exata-mente o fato de não ter um Estado — de ter menos Estado, podería-mos dizer, que qualquer outra forma possível de polis. Portanto, as de-mocracias antigas não nos podem ensinar coisa alguma sobre a cons-trução de um Estado democrático e sobre a forma de conduzir um sis-tema democrático que compreenda muito mais que uma cidade pe-quena: que compreenda uma grande faixa de território habitado por uma vasta coletividade. Mas isso não é tudo. A diferença entre as de- mocracias antiga e moderna não é apenas de dimensões geográficas e demográficas exigindo soluções completamente diferentes mas tam-bém uma diferença de objetivos e valores.

Os homens modernos querem outra democracia, no sentido de que seu ideal de democracia não é, de forma alguma, o mesmo dos gregos. Seria estranho, de fato, se não fosse assim. Em mais de dois mil anos, a civilização moderna enriqueceu, modificou e articulou suas metas valorativas. Experimentou o cristianismo, o humanismo, a Reforma, uma concepção de "direitos naturais" da lei natural, e o libe-ralismo. Como poderíamos pensar que hoje, ao defender a democra-cia, estamos em busca dos mesmos objetivos e ideais dos gregos? Co-mo poderíamos não entender que, para nós, a democracia encarna va-lores que os gregos não conheciam nem tinham como conhecer? No entanto, uma literatura considerável lembra atualmente o experimento grego como se fosse um paraíso perdido e de algum modo recuperá-vel. É preciso examinar a questão.

10.2 Democracia direta ou democracia da polis

Dizer que a democracia antiga era a contrapartida da polis é di-zer também que era uma "democracia direta"; e, na verdade, não dis-pomos de nenhuma experiência atual significativa de uma democracia

direta do tipo grego. Todas as nossas democracias são indiretas, isto é, são democracias representativas onde somos governados por represen-tantes, não por nós mesmos.

É evidente que não devemos tomar a noção de democracia direta (e de autogoverno) de forma muito literal e supor que, na cidade antiga, os dirigentes e os dirigidos eram idênticos. Nem mesmo Cleon, um demagogo avançado para seu tempo, chegou a ir tão longe a ponto de afirmar que o sistema se expressava perfeitamente no corpo de todo o demos em assembléia e equivalia a ele. A liderança existia mesmo nessa época, e os governantes eram escolhidos pela sorte ou eleitos para desempenhar certas funções. No entanto, considerando a confusão de todas as questões humanas, a democracia da Antigüidade era, sem dúvida, a maior aproximação possível de uma democracia literal onde os governantes e os governados estavam lado a lado e interagiam uns com os outros face a face. Independentemente de nossa maneira de avaliar a intensidade do autogoverno na polis4, a diferença entre demo-cracia direta e indireta é radical, de qualquer maneira. Nessa justapo-sição, a democracia direta permite a participação contínua do povo no exercício direto do poder, ao passo que a democracia indireta consiste, em grande parte, num sistema de limitação e controle do poder. Nas democracias atuais, existem os que governam e os que são governa-dos; há o Estado, de um lado, e os cidadãos, do outro; há os que lidam com a política profissionalmente e os que se esquecem dela, exceto em raros intervalos. Nas democracias antigas, ao invés, essas diferenciações tinham muito pouco significado.

Surgem duas questões: a democracia direta é preferível? Ainda é possível5? Do ponto de vista lógico, devemos começar com a questão de sua possibilidade, pois se descobrirmos hoje que a democracia dire- ta é impossível, não faz sentido discutir se é desejável ou não. Mas não somos tão lógicos assim. Além disso, existe também o desejo ou a nostalgia do impossível. Portanto, o anseio recorrente pelo mundo clássico se justifica?

Se a democracia direta é preferível ou não é uma daquelas ques-tões a que as racionalizações responderiam de um jeito, e a experiên-cia responde de outro. Em princípio, pode-se afirmar perfeitamente que aquele que exerce o poder deve estar em melhor situação que aquele que o delega a terceiros, e que um sistema baseado na partici-

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pação é mais seguro ou mais gratificante que um sistema baseado na representação. Mas a história demonstra que as democracias gregas e as comunas medievais que de certa forma as repetiram tiveram uma existência turbulenta, além de efêmera. Essa evidência é extremamente significativa porque, na maioria dos aspectos, se não em todos, a polis foi um laboratório ideal para o experimento da aplicação pura e simples dos princípios democráticos. Não só as cidades antigas eram muito pequenas6, como os cidadãos viviam simbioticamente com sua cidade, ligados a ela, por assim dizer, por um destino comum de vida e morte. Apesar dessas condições ótimas, a democracia baseada na participação direta revelou-se muito frágil, mesmo em suas condições irreproduzíveis de teste: a comunidade compacta unificada por um ethos religioso, moral e político convergente que era a polis.

Não nos esqueçamos de que Aristóteles, um observador realista e testemunha dos eventos que levaram ao fim das liberdades da Anti-güidade, situava a democracia na classe das formas corruptas da poli- teia. Embora Péricles, na famosa oração fúnebre relatada por Tucídides, tenha chamado a democracia de "governo (em favor) da maioria"7, Aristóteles chamava-a de "governo dos pobres"8; e essa mudança de foco não resulta da inferência de que provavelmente os muitos não são os ricos. O demos de Aristóteles não era constituído por todas as pessoas, mas por uma parte do todo: o estrato dos pobres. Aristóteles foi, portanto, levado a afirmar que, mesmo se os ricos constituíssem a maioria, ainda assim gerariam uma oligarquia, ao passo que um governo dos pobres, mesmo que fosse um governo de poucos, seria uma democracia9. Será que isso significa que Aristóteles tinha uma compreensão sócio-econômica da democracia? A questão técnica é que a tipologia aristotélica das formas políticas consiste em três categorias básicas (governo de um, de poucos, de muitos), cada qual admitindo duas possibilidades (monarquia ou tirania, aristocracia ou oligarquia, politeía ou democracia). Suas seis classes requeriam, portanto, dois critérios: o número de dirigentes e consideração pelos outros versus interesses pessoais. Assim, Aristóteles teve de introduzir os pobres na questão para obter os "muitos ruins" (democracia), como teve de introduzir os ricos para conseguir os "poucos ruins" (oligarquia). Questões técnicas à parte, o pleno significado da concepção de Aristó-teles é que reflete a parábola da democracia grega. No século IV a.C.,

a clivagem da polis se tornara extrema. Ou os ricos governavam em seu próprio interesse, ou os pobres governavam no seu (e essa era a de-mocracia que Aristóteles tinha diante de si). O fato de ter definido de-mocracia como um governo dos pobres em seu próprio interesse toca-nos por seu sabor alusivo. Na verdade, Aristóteles expressou o que viu: a desintegração da democracia grega pela luta de classes. E não havia nada surpreendente naquele resultado.

Um autogoverno real, como os gregos o praticavam, requeria que o cidadão se dedicasse completamente ao serviço público. Gover-nar a si mesmo significava passar a vida governando. "O cidadão... en-tregava-se totalmente ao Estado; dava seu sangue na guerra; seu tempo na paz; e não tinha liberdade de pôr as questões públicas de lado e cui-dar de seus interesses pessoais... ao contrário, tinha de negligenciá-los para trabalhar pelo bem da cidade"10. O grau de envolvimento na polí-tica requerido pela fórmula era tão absorvente que um desequilíbrio profundo foi criado entre as funções da vida social. A hipertrofia polí-tica trouxe consigo a atrofia econômica: quanto mais perfeita se torna-va sua democracia, tanto mais pobres ficavam os cidadãos. Criou-se um círculo vicioso de busca de solução política para uma necessidade econômica: para compensar a produção insuficiente de riqueza, era preciso confiscar a riqueza. Parece, então, que a democracia da Anti-güidade estava fadada a ser destruída pela luta de classes entre ricos e pobres por ter produzido um animal político em detrimento do homo oeconomicus. A experiência grega gerou uma "cidadania total" que foi longe demais.

A consideração que se apresenta com base no que dissemos aci-ma é que os sistemas indiretos de governo têm vantagens que estamos, excessivamente, inclinados a subestimar. Em primeiro lugar, um pro-cesso de tomada de decisões políticas constituído de múltiplos está-gios e filtros contém, exatamente em virtude de ser indireto, precau-ções e restrições que a forma direta não tem. Em segundo lugar, a de-mocracia direta implica política de soma zero, ao passo que a demo-cracia indireta permite a política de soma positiva. Em terceiro lugar, na democracia antiga, a guerra entre ricos e pobres era inevitável, de-senvolvendo-se, como de fato ocorreu, a partir de um desequilíbrio funcional do sistema, ao passo que a política como guerra de hoje não é inevitável, pois um desequilíbrio desses não pode se manter11.

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O primeiro ponto pode ser esclarecido observando-se que a de-mocracia grega era uma construção extremamente simples e, nesse sentido, primitiva: consistia essencialmente em "voz"; não permitia nem mesmo concebia "saída"; e carecia básica e desastrosamente de filtros e válvulas de segurança. Em particular, o sistema grego não conseguia distinguir ruídos triviais de sinais importantes, caprichos do momento de necessidades de longo prazo. O segundo ponto, a po-lítica de soma zero, agora é familiar. O terceiro ponto requer, ao invés, uma explicação mais longa. Aristóteles observou que um homem que tem de trabalhar para ganhar a vida não pode ser um cidadão. E Rous-seau, depois de lembrar que entre os gregos "os escravos faziam o tra-balho" (pois "a principal ocupação (do povo) era sua própria liberda-de"), exclamou: "O quê! A Liberdade não se mantém sem a escravi-dão? Talvez. Os dois extremos tocam-se"12. Hoje, esses extremos não se tocam mais. Na verdade, a sociedade opulenta tem com freqüência a convicção de que a humanidade alcançou um estágio onde estamos todos em processo de nos liberarmos do trabalho. Nesse caso, não de-vemos voltar à frase de Aristóteles? Não devemos dizer que agora po-demos ser, sem prejuízo econômico, cidadãos de tempo integral? Não. Tenho a impressão de que não trabalhar não produz opulência e que pouco trabalho nos deixa na pobreza. E também não podemos excluir que a hipertrofia da política que está de novo à vista não possa recriar o desequilíbrio que selou o destino da democracia dos antigos. Quan-do todos estão ocupados com a política, as outras atividades (funções) ficam inevitavelmente esvaziadas; e há pouca evidência, até hoje, de que esse deslocamento seja um bem13.

Persiste a questão da exeqüibilidade. Como já a discuti exausti-vamente em muitas passagens deste livro, gostaria apenas de lembrar que o autogoverno direto, real, não pode ser pressuposto; requer a pre-sença e a participação real das pessoas interessadas. É impossível ter uma democracia direta à distância e autogoverno significativo de au-sentes. O essencial é.que, quanto maior o número de pessoas envolvi-das, tanto menos efetiva é sua participação — e isso até o ponto de fi-ga14. Assim, quando vastos territórios e nações inteiras estão envolvi-dos, a democracia direta torna-se uma fórmula impraticável. Também afirmei repetidas vezes que uma "democracia de referendo", um de-

mocracia eletrônica, embora seja tecnicamente exeqüível, seria desas-trosa e, com toda a probabilidade, suicida15.

Concluindo, diria que a democracia baseada na participação pes-soal só é possível em certas condições; e, da mesma forma, quando es-sas condições não existem, a democracia representativa é a única pos-sível. Os dois sistemas não são alternativas a serem escolhidas com ba-se no gosto pessoal. Com certeza, como enfatizei desde o começo, a democracia no sentido social é a construção de uma rede de pequenas comunidades e se baseia na vitalidade dos grupos participantes. No entanto, nada disso é exeqüível se não for garantido por uma "demo-cracia soberana" que, decididamente, não é uma democracia direta. E estaremos ncs iludindo se consideramos os referendos e as iniciativas populares de legislação como os substitutos e equivalentes modernos da democracia direta. Mesmo se as chamadas formas de integração di-reta da democracia representativa funcionassem como seus primeiros defensores esperavaml6, certamente não produziriam uma democracia "semidireta". A questão permite gradações, mas não é passível de so-luções meio a meio17.

Quando declaramos, então, que há dois tipos de democracia, um baseado no exercício direto do poder político e o outro, no controle e li-mitação do poder, não estamos discutindo sistemas intercambiáveis, mas a solução moderna de larga escala de um problema que os antigos deixaram por resolver. Devemos dizer que, para chegar a algum tipo de democracia, o homem moderno teve de se contentar com menos demo-cracia? Talvez. Mas eu preferiria dizer que, embora o homem moderno espere menos da "democracia literal", isto é, da soberania popular, exi-ge de fato infinitamente mais da "democracia liberal", que é a outra coisa que ele chama de democracia. Pois a diferença entre os dois siste-mas é principalmente uma diferença de ideais. A participação no exer-cício do poder não implica liberdade individual. Minha liberdade vis-à-vis o poder do Estado não pode ser derivada da porção infinitesimal da-quele poder, através do qual concorro, com inumeráveis outros, para a criação das regras às quais estarei sujeito. Portanto, a limitação e o con-trole do poder que nossas democracias liberais proporcionam não é uma façanha menor vis-à-vis a democracia grega. Pois resolvemos em grande parte um problema que os gregos não tiveram ou não enfrenta-ram: proporcionar uma liberdade segura a todos os indivíduos.

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10,3 Individualismo e liberdade: o velho e o novo

Há uma diferença tão grande entre as concepções antigas e mo-dernas de democracia como a existente entre as concepções antigas e modernas de liberdade. Essa não é uma descoberta sensacional, mas as características respectivas das noções moderna e clássica de liberdade não são fáceis de isolar. O debate foi aberto em 1819 por Benjamin Constant18. Nessa linha de argumentação — seguida, entre outros, por Tocqueville e Laboulaye —, a posição extrema talvez tenha sido aquela expressa por Fustel de Coulanges: "A crença de que, nas cidades an-tigas, o homem desfrutava liberdade é um dos erros mais estranhos que se podem cometer. Ele não tinha a mais remota idéia dela.., Ter di-reitos políticos, eleições, magistrados nomeados, estar em condições de ser designado arconte — isso é que era chamado de liberdade; mas os homens não eram menos escravos do Estado por tudo isso"19. Em essência: avaliados por critérios modernos, os homens da Antigüidade não eram livres (vis-à-vis sua sociedade política) segundo nossa noção de liberdade individual. Nesse caso, a questão passa a ser como a liberdade individual deve ser concebida e entendida. Que a liberdade individual era desconhecida pelos gregos é, provavelmente, uma da-quelas afirmativas que nunca deixarão de ser contestadas, principal-mente porque a civilização grega, e a ateniense, em particular, foi um desabrochar multiforme da vitalidade individual, da riqueza do espíri-to individualista. Mesmo assim, entre esse "espírito individualista" e o respeito pelo indivíduo como pessoa que Constant tinha em mente, há um mundo de diferença.

Para os polítes, a distinção entre a esfera pública e a esfera priva-da era desconhecida e teria sido incompreensível. Como diz Werner Jaeger: "Um código moral puramente privado, sem referência ao Esta-do, era inconcebível para os gregos. Devemos esquecer a idéia de que os atos de cada indivíduo são dirigidos por sua consciência"20. Hannah Arendt foi mais no fundo: "O livre-arbítrio... (é) uma faculdade vir-tualmente desconhecida na Antigüidade clássica... Na Antigüidade grega, assim como na romana, a liberdade era um conceito exclusiva-mente político"21. É claro que se tratava de um "conceito político" no

sentido grego de estar situado na polis e ser derivado da polis — não no sentido em que falamos hoje da liberdade política como, de fato, uma liberdade anti-polis (uma liberdade das restrições políticas). Mas, para consolidar esses pontos, é bom voltar ao vocabulário dos antigos.

Quando Aristóteles definiu o homem como um animal político, queria dizer (em nosso vocabulário atual) que o homem era parte cons-tituinte de sua totalidade social específica, que tinha suas bases na so-ciedade. Inversamente, Aristóteles não se referia ao homem concebido como um indivíduo caracterizado por um eu privado, por ser ele mes-mo e ter o direito de sê-lo. Para os gregos, "homem" e "cidadão" sig-nificavam exatamente a mesma coisa, assim como participar da vida da polis, de sua cidade, significava "viver". Isso não quer dizer, claro está, que o polítes não desfrutasse liberdade individual no sentido de um espaço privado existente de fato, Mas o significado e o valor que essa noção tinha são revelados de forma precisa pelo significado do privatus latino e de seu equivalente grego, idion. O privatus latino, is-to é, o privado, significava "desprovido" (do verbo prívare, privar, des-tituir, despojar) e o termo era usado para indicar uma existência que era incompleta e falha em relação à comunidade, O idion (privado) grego, em contraste com koinón (o elemento comum), transmite mais vividamente ainda o sentido de privação e falta. Da mesma forma, idiótes era um termo pejorativo, significando aquele que não era polites — um não-cidadão e, por isso, um homem vulgar, sem valor, ignorante, que se preocupava apenas consigo mesmo22.

A diferença a que Constant se referia era, então, que os gregos não tinham uma noção positiva do indivíduo; não concebiam, em sín-tese, o indivíduo enquanto pessoa23. Jellineck sintetizou bem o ponto: "Nos tempos antigos, o homem nunca era claramente reconhecido co-mo uma pessoa... Somente o século XIX obteve uma vitória geral com o princípio: 'o homem é uma pessoa’”24. Os antigos não reconheciam e não poderiam reconhecer o indivíduo como uma pessoa e, ao mesmo tempo, como um "eu privado" com direito ao respeito, pela razão ób-via de que esse conceito veio com o cristianismo e foi subseqüente-mente desenvolvido pela Renascença25, pelo protestantismo e pela es-cola moderna do direito natural26, O que faltava ao espírito individua-lista grego era, portanto, a noção de um espaço privado legítimo en-quanto projeção moral e jurídica da pessoa humana única. Assim, a

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A TEORIA DA DEMOCRACIA REVISITADA

experiência grega de liberdade política não significava e não podia significar uma liberdade individual baseada em direitos pessoais. É isso que Constant e os outros queriam dizer27. Quando negaram que os gregos alimentassem a idéia da liberdade individual, estavam dizendo que os antigos não prestavam atenção ao valor expresso pelo respeito ao indivíduo enquanto pessoa, uma noção que, desde então, ganhou salvaguardas concretas do poder legal, da "defesa jurídica"28 e da de-claração dos direitos.

O fato de um apaixonado impulso individualista ter florescido em toda a democracia ateniense não contradiz, portanto, a afirmação de que o indivíduo era realmente indefeso e permanecia à mercê do or-ganismo coletivo29, e que a democracia não respeitava o indivíduo: ao contrário, tendia a suspeitar dele. Desconfiada de indivíduos notáveis, instável nos louvores, implacável na perseguição, era uma cidade onde o ostracismo era uma medida preventiva, não uma medida punitiva — uma punição por crime nenhum. Foi a democracia de onde Ermodore de Éfeso foi banido porque não era permitido a um cidadão ser melhor que os outros. Num sistema desses, a posição do indivíduo era precária porque, como observou Laboulaye, "a única garantia do cidadão era sua parte na soberania", e isso explica, acrescenta ele, "porque na Grécia e em Roma era possível passar da noite para o dia da maior li-berdade para a mais rigorosa escravidão"30.

Por que, então, a diferença entre a liberdade moderna e a antiga é tão freqüentemente malcompreendida? Uma das razões é que muitos autores raramente deixam claro sobre que gregos e sobre que período estão falando. Em primeiro lugar, Atenas não é Esparta — é sua antí-tese. Como Plutarco nos disse: "Em Atenas, cada pessoa vive como quer, em Esparta, ninguém poderia viver como quer"31. Em segundo lugar, se ao falar das vicissitudes gregas consideramos apenas Atenas, e só a Atenas de Péricles, podemos provar facilmente qualquer coisa que desejarmos32; pois a era de Péricles foi um desses momentos ex-traordinários e felizes da história onde a harmonia brota de uma com-binação fortuita de elementos e eventos. Mas, quando afirmamos que o cidadão individual da polis não desfrutava a independência e a segu-rança que consideramos ser a liberdade, estamos baseando nosso jul-gamento, como se deve, em toda a parábola de todas as democracias gregas. Eu disse democracias (no plural); mas aqui é preciso mais uma

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advertência, pois é necessário lembrar que, paradoxalmente, Rousseau e sua escola idealizaram e fantasiaram os espartanos e os romanos muito mais que aos atenienses33.

Para trazer à luz todas as implicações do tipo direto de democra-cia grega, sua definição deve ser: democracia era aquele sistema de governo (cidade) em que as decisões eram tomadas coletivamente. Isso implica que, na fórmula clássica da democracia, a comunidade não ad-mite qualquer margem de independência ou esfera de proteção ao indi-víduo isolado, a quem absorve completamente. A polis é soberana no sentido de os indivíduos que a constituem estarem completamente sub-metidos a ela. Hobbes entendeu bem isso: "Os atenienses e os romanos eram livres, isto é, livres enquanto membros da comunidade política: não que qualquer homem em particular tivesse a liberdade de se opor a seu próprio representante, mas que seu representante tinha a liberdade de se opor ou invadir outras pessoas"34. Uma cidade livre é uma coisa, cidadãos livres, outra bem diferente. E a passagem da primeira para a segunda não ocorre enquanto é a polis quem define os polites. Quando gregos e romanos igualmente falavam "homem", referiam-se ao cida-dão de sua civitas. Portanto, a diferença básica entre a concepção antiga de liberdade e a moderna reside precisamente em acreditarmos que um homem é mais que um cidadão de um Estado. Segundo nossa con-cepção, um ser humano não pode ser reduzido à sua cidadania. Para nós, um homem não é apenas um membro de um plenum coletivo. Da-qui se conclui que nossos problemas não podem ser resolvidos por um sistema que só garante que o exercício do poder seja coletivo. A demo-cracia moderna propõe-se proteger a liberdade do indivíduo enquanto pessoa — uma liberdade que não pode ser entregue, como dizia Cons-tant, à "sujeição do indivíduo ao poder do todo"35.

Para se entender a idéia grega de democracia, é necessário apa-gar de nosso quadro mental tudo quanto lhe foi acrescentado depois. Esse experimento mental não é fácil de realizar. No entanto, é a única forma segura de compreender o passado como ele realmente foi. Foi realmente, a meu ver, um passado que não gostaríamos nem um pouco de ter de volta. Depois de fazer todas as subtrações exigida por nosso experimento mental, ficamos com uma idéia ético-política de liberda-de que significa muito pouco para nós, se é que significa alguma coisa. Não nos percamos em distinções secundárias e duvidosas, como a

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de discutir se os antigos tinham liberdades políticas, mas não tinham liberdades civis, ou vice-versa. A essência é, muito simplesmente, que suas idéias de liberdade civil, política, jurídica, individual e qualquer outra não eram iguais às nossas. Nem poderia ser de outra forma, pois estamos separados dos antigos pela aquisição de valores dos quais eles não tinham conhecimento.

10.4 A Idéia moderna e o ideal

Uma razão que nos ajuda a perder o senso da distância históri-ca deriva do hábito de modernizar desleixadamente o vocabulário. As-sim, a polis grega transforma-se em "Estado", a politeía em "constitui-ção" (uma tradução igualmente problemática e enganosa), e, chegando ao que interessa, a popularidade atual de "democracia" leva-nos a es-quecer, ou pelo menos negligenciar, o fato de que, durante mais de dois mil anos, o termo democracia praticamente saiu de uso36 e perdeu completamente qualquer conotação elogiosa. Vamos deixar Tomás de Aquino falar por todos sobre a questão: "Quando um regime real-mente perverso (iniquum regimen) é conduzido por muitos (per mul-tos), é chamado de democracia"37. Durante esse longo período, os ocidentais falaram de república; e dizer res publica não é o mesmo que dizer democracia.

Semanticamente falando, res publica expressa a idéia de uma coisa que pertence a todos, ou de questões que concernem a todos — uma idéia substancialmente distante daquela que indica um poder per-tencente ao povo. Demokratía presta-se (como em Aristóteles) a ser interpretada como o poder de uma parte (em oposição a outra), ao pas-so que res publica, não; e embora o primeiro termo se refira a um su-jeito determinado (o povo), o segundo sugere o interesse geral e o bem comum38. Alem disso, historicamente falando, os dois conceitos dis-tanciaram-se, a tal ponto que o significado de "república" tornou-se a própria antítese do de democracia.

Em 1795, Kant criticou severamente aqueles que haviam come-çado a confundir a constituição republicana com a democrática, ob-servando que, no tocante à forma regiminis, todo governo é "republi-

cano ou despótico" e que democracia, no sentido próprio da palavra, "é necessariamente um despotismo"39. Não devemos supor que, ao li-gar democracia com o despotismo, Kant estivesse reagindo contra os excessos da Revolução Francesa. Kant recebeu bem os eventos de 1789; além disso, a identificação da democracia com o despotismo era uma noção corrente na época. Na verdade, Kant não mostrou ori-ginalidade alguma ao rejeitar a democracia em bloco como uma for-ma de poder tirânico. Madison e Hamilton, a milhares de quilômetros de Koenigsberg e num contexto muito diferente, não pensavam de forma diferente de Kant sobre essa questão. Madison sempre falava em "república representativa" e nunca em "democracia", pois, para ele, a segunda indicava a democracia direta da Antigüidade, isto é, "uma sociedade consistindo em um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo em pessoa". E Madison também expressava um juízo comum ao escrever que "sempre se constatou que as democracias são incompatíveis com a segurança pessoal ou os direitos de propriedade; e, em geral, tiveram vidas tão curtas quanto mortes violentas"40. A Assembléia de Filadélfia também não pensava em termos de democracia, e o que devia transformar-se na constitui-ção (propriamente dita) da primeira democracia moderna foi conside-rado por seus planejadores uma constituição republicana, não uma constituição democrática41, Até a Revolução Francesa teve uma repú-blica como seu ideal e, embora naqueles anos turbulentos também te-nha exigido uma democracia — a democracia que se tornou conheci-da como democracia jacobina —, esse foi um objetivo secundário en-coberto pelo nome republique42. Só Robespierre usou a palavra de-mocracia, e só no fim, em seu discurso à Convenção datado de 5 de fevereiro de 1794, consolidando com isso sua má reputação (ao me-nos na Europa) por mais meio século43.

O fato é, portanto, que, quando sobrepomos "democracia" a "re-pública", estamos criando uma continuidade histórica falsa que nos impede de entender que, ao adotar a "república", a civilização ociden-tal estabeleceu um ideal mais moderado e prudente que democracia; um ideal misto, por assim dizer, do ótimo político que descarta a coi-sa de alguém (não importa se de uma pessoa ou do demos) em favor da coisa de ninguém. Assim, uma manipulação descuidada da terminolo-gia oculta a magnitude da distância entre a tentativa de democracia da

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Antigüidade e sua reencarnação moderna e nos impede de fazer a per-gunta que merece ser feita: como foi possível que um ideal que (como bem o sabemos) pode ser tão profundamente inspirador tenha ficado eclipsado durante um período histórico tão longo?

Se, como creio, a história da linguagem reflete a história tout court, o esquecimento em que o termo democracia caiu é extremamente significativo. Prova de forma eloqüente, por si mesmo, que o colapso das democracias antigas foi tão definitivo quanto memorável. O que, por sua vez, sugere que, para a palavra entrar novamente em uso, algo novo tinha de surgir. Embora a palavra seja grega, a coisa que agora indicamos com ela originou-se fora da Grécia e em premissas que o suposto "temperamento liberal" da política grega ignorava por completo44. Acima de tudo, as democracias modernas estão relacionadas e condicionadas pela constatação de que a dissensão, a diversidade e as "partes" (as partes que se transformaram em partidos) não são incompatíveis com a ordem social e o bem-estar do organismo políti-co45. A gênese ideal de nossas democracias está no princípio de que a diferença, e não a uniformidade, é a levedura e o alimento dos Estados — um ponto de vista que ganhou terreno na esteira da Reforma depois do século XVII. Temos de ser vagos aqui porque é extremamente difí-cil, se não for impossível, atribuir essa nova concepção de vida a um pensador, um evento ou um movimento em particular. A maturação dessa abordagem foi lenta e tortuosa; e, como ocorre tantas vezes na história, a compreensão do que estava sendo conquistado arrastou-se vagarosamente atrás da realidade.

É claro que essa nova compreensão da vida ideal veio na esteira da Reforma. Em particular, a experiência das seitas puritanas foi um marco importante nesse processo, mas não pelas razões freqüentemente apresentadas — como a em que os puritanos defenderam a liberdade de consciência e de opinião. De fato, defenderam a liberdade de sua consciência e foram, em todas as outras questões, tão intolerantes quanto seus inimigos. Plamenatz capta a questão de maneira muito feliz:

Os primeiros defensores da liberdade de consciência não foram refor-madores ardorosos nem católicos ardorosos. Foram homens muito moderados... Tanto os católicos quanto os protestantes contrapuse-ram a liberdade de consciência ao Estado e a todas as Igrejas, exceto à própria. Onde estavam em minoria, muitas vezes acharam conve-niente (fossem quais fossem suas reservas mentais) reivindicá-la para

todos... Não há nada inerentemente liberal ou igualitário no protes- tantismo enquanto tal, na mera afirmação da consciência para desa-fiar a autoridade. Pois aquilo que reivindicamos para nós, podemos negar aos outros46.

A importância da experiência puritana residiu essencialmente no fato de ter encorajado a despolitização da sociedade ao quebrar o vín-culo entre as esferas de Deus e de César, mudando com isso o centro de gravidade da vida humana para as associações voluntárias indepen-dentes do Estado, no sentido de o vínculo interno entre os associados ter-se tornado mais forte que aquele que os ligava ao organismo polí-tico como um todo. Tendo conseguido isso, não se segue que o purita- nismo tenha sido o agente decisivo e primordial no processo de cria-ção da Weltanschauung liberal-democrática. A esse respeito, a contri-buição dos puritanos recebeu uma ênfase excessiva47. Na verdade, "para a maioria dos puritanos do século XVII, tanto ingleses quanto americanos, 'democracia' e liberdade' eram desprezíveis"48. No en-tanto, o importante não é descobrir quem foi o criador (supondo que tenha existido algum), mas entender a importância e a novidade do evento. Em geral, até o século XVII, a diversidade era considerada uma fonte de discórdia e desordem que provocava a decadência dos Estados, e a unanimidade era considerada o fundamento necessário a qualquer sociedade política. A partir de então, a atitude oposta conso-lidou-se gradualmente, e foi a unanimidade que passou a ser suspeita. É através dessa inversão revolucionária de perspectiva que a civiliza-ção que chamamos de "liberal" foi construída gradativamente, e é por esse caminho que chegamos à democracia de hoje. Os antigos impé-rios, as autocracias, os despotismos e as tiranias velhas e novas são to-dos mundos monocromáticos49, ao passo que a democracia é multico- lorida. Mas é a democracia liberal, não a democracia antiga, que se ba-seia na dissensão e na diversidade. Somos nós, e não os gregos, que descobrimos a forma de construir um sistema político com a concór-dia discors, com o consenso discordante.

Passamos da germinação do ideal para a sua realização somente em meados do século XIX, quando a soberania popular começa a se materializar como um elemento positivo e construtivo do processo po-lítico. Isso também, é preciso observar, é uma novidade. Com o devido respeito às reconstruções nostálgicas, o que verdadeiramente acon-

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teceu em Atenas, assim como em Megara, Samos, Micenas, Mileto, Siracusa — para citar apenas alguns exemplos eloqüentes — foi con-tado por aqueles que estavam lá e é realmente diferente do que os idea- lizadores de uma Idade de Ouro ex post facto defendem. Com o passar do tempo, o "poder popular" da sociedade grega funcionou cada vez mais como um rolo compressor, pois tudo quanto a multidão aprovava se transformava em lei, sem limites a seu exercício de um poder desregrado, ilimitado50. Portanto, Bryce poderia comentar legitimamente: "Impaciente com as restrições, até com as restrições que ele mesmo se impôs legalmente, [o povo] governava como um déspota, exemplificando a máxima de que ninguém é bom o suficiente para que lhe seja entregue um poder absoluto"51. A noção moderna de poder popular, da forma autorizada e estruturada pelo constitucionalismo, é completamente diferente52, e é em virtude dessa diferença que nossas democracias superaram de muito, em longevidade, as democracias da Antigüidade. Se a soberania popular renasceu, depois de sua longa hibernação, é porque, nos processos de tomada de decisão dos sistemas liberal-democráticos, o elemento puramente democrático é o mais notável, mas não é de forma alguma o único fator em jogo53.

10.5 Uma inversão de perspectiva

Enfatizei que a democracia moderna não consiste apenas no ideal grego com alguns acréscimos subseqüentes. Mas como foi possível que a descontinuidade entre a democracia antiga e a nossa escapasse-nos tão facilmente? Uma das razões é que, em conseqüência de dizer, por necessidade de concisão, apenas "democracia", esquecemos ou subor-dinamos o que deixamos de dizer; democracia (a palavra expressa) tor-na-se então dominante, e liberalismo (o conceito implícito), subordinado. Isso é inverter a verdade. Pois não importa o quanto uma perspectiva historica limitada possa amplificar o que está próximo de nós, o progresso atual da democracia sobre o liberalismo é pequeno em com-paração ao progresso feito pelo liberalismo moderno sobre a democra-cia antiga. Por menos que tenhamos consciência do fato, a democracia em que acreditamos e que praticamos é a democracia liberal.

Podemos dizer isso da seguinte maneira: se, segundo o critério grego de liberdade, os gregos eram livres, por isso mesmo nós certa-mente não seríamos. O polítes era subordinado à polis, o civis vivia para a civitas — e não o contrário. Considerando as circunstâncias, fa-zia muito sentido. O cidadão e a cidade eram, na época, inextricavel- mente ligados pela unidade de seu destino, por preocupações de vida e morte. Quando uma cidade era conquistada, seus habitantes eram ven-didos como escravos ou passados a fio de espada. Gostaria de fazer agora as substituições necessárias. O quadrado onde o demos se reunia desapareceu, e o governo conduzido pelo próprio povo (seis mil cida-dãos, no máximo) foi substituído pelo Estado governante. Nessas no-vas condições, o cidadão que vive para sua cidade transformou-se num súdito que vive para o Estado. O preceito é agora que o cidadão foi feito para o Estado, não o Estado para o cidadão. E essa é exatamente a fórmula das sociedades políticas onde não há democracia nem liber-dade, a fórmula usada hoje em dia para justificar os governos absolu-tos. E essa reviravolta também não é estranha. Se um princípio que um dia foi válido para a democracia é usado agora pelas tiranias, isso ocorre porque o mundo real mudou completamente.

Nas comunidades urbanas da Antigüidade, a liberdade não se expressava através da oposição ao poder do Estado — pois não havia Estado —, mas pela participação no exercício coletivo do poder. Mas, quando temos um poder que é distinto da sociedade e se constrói sobre ela, o problema inverte-se, e um poder do povo só pode ser um poder tomado ao Estado. Seja qual for o respeito que temos pelo indivíduo- como-pessoa (e até se lhe dermos muito pouco valor), persiste o fato de que a microdemocracia da Antigüidade não se deparou com o pro-blema da relação entre os cidadãos e o Estado, enquanto a macrode- mocracia moderna, sim. Os gregos podiam ser livres, à sua moda, par-tindo da polis para chegar ao polítes. Mas isso não se dá conosco. Quando a polis é suplantada por uma megalópole, só podemos manter a liberdade se partirmos do cidadão, só se o Estado derivar do cidadão. Portanto, evocar a "liberdade da Antigüidade" é evocar apenas, ainda que inadvertidamente, a falta de liberdade.

É importante, então, entender que quando indicamos um sistema político livre pela palavra democracia, estamos usando esse termo iso-lado por necessidade de concisão e que os resumos dão origem a omis-

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sões e simplificações funestas. É apenas um pequeno passo entre a abreviação enquanto artificio útil e a abreviação enquanto cancela-mento de 25 séculos de tentativas, correções e inovações. Na prática diária, "democracia" é suficiente; na teoria da democracia, não. A teo-ria requer de fato que os espaços em branco sejam preenchidos, isto é, que tornemos novamente explícito tudo o que — ao dizer "democra-cia" apenas — permanece implícito. Faz realmente pouco sentido para nós atribuirmos a nosso conceito de democracia o significado que teve para os gregos do século V a.C. Para dizer o mínimo, faz pouco sentido, a menos que as diferenças entre a democracia pré-liberal e a democracia liberal sejam apresentadas de maneira clara e adequada.

Notas

1 Afirma-se freqüentemente que Heródoto foi o primeiro a usar o termo "demo- cracia" (ver History, livro III, 80-83). Na verdade, o termo não aparece em seu texto, apenas em suas traduções. Mas nele encontramos de fato uma sociedade política comandada pelo demos ou por muitos, em nítido contraste com a mo- narquia ou a oligarquia. Também é verdade que Heródoto associa o poder do demos à isonomía, à lei igual (ver o capítulo 12, nota 14 deste livro); uma asso- ciação que de fato prepondera, durante toda a experiência grega, com respeito à associação entre demokratía e eleuthería (liberdade).

2 Sobre a razão de Estado, a obra clássica é F. Meinecke, Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte (München-Berlim, 1924). Na França, o uso moder- no de "Estado” foi divulgado especialmente pela tradução de Pufendorf, isto é, porque Barbeyrac resolveu traduzir civitas por état. Eis aí os caprichos da histó- ria. Ê interessante que "Estado" não seja um verbete da Encyclopédie de Dide- rot e d'Alembert. Sobre o stato de Maquiavel, ver no volume I o capítulo 3, no- ta 2. Um excelente estudo geral é N. Matteucci, "Stato", em Enciclopédia dei Novecento (Roma, Instituto Enciclopédia Italiana, 1984), 7:93-113.

3 Sociedade chegou até nós do latim socius que significa companheiro, sócio. Po- de-se dizer, portanto, que embora a sociedade "associe" o povo, o Estado "ba- seia-se" no povo.

4 Quanto à forma pela qual o autogoverno relaciona-se com a intensidade, ver o capítulo 4, seção 3, abaixo. A especificidade da experiência grega reside, entre tanto, em sua natureza face a face, como bem observou P. Laslett, "The face to face society", em Philosophy, politics and society. ed. P. Laslett (Oxford, Blackwell, 1956).

5 Deve-se entender que, neste capítulo, "democracia direta" refere-se sempre à sua antiga formulação grega. Outros significados foram discutidos no capítu- lo 4, seção 3, e no capítulo 5, seções 6 e 7. A democracia direta também é cha- mada de "imediata" (por Max Weber), "pura" (por Madison, por exemplo), "simples" (por Paine).

6 As estimativas são controvertidas, mas em geral se acredita que a população masculina da cidade de Atenas na época de Péricles não fosse superior a 45 mil cidadãos adultos livres, provavelmente cerca de quarenta mil. Ver W. Warde Fowler, The city-state ofthe greeks and romans (London, Macmillan, 1952), p. 167. Ver também as cifras mais elaboradas de Alfred E. Zimmera, The Greek Commonwealth (Oxford, 1911), p. 169-74.

7 Tucídides, The history ofthe Peloponnesian Wart trad. R. Crawley (New York, Dutton, 1950), p. 123.

8 Ver Politics, especialmente 1279, 1280. Platão também observou de passagem que "a democracia surge depois que os pobres vencem seus oponentes" (Repú- blica, VIII, 557). Lembramos também a observação de Calicles em Gorgias, 483: "Os legisladores são a maioria que é fraca; e fazem as leis e distribuem louvores e censuras com vistas a si mesmos e a seus interesses próprios" (trad. de Jowett para o inglês).

9 Ver Politics, 1290. Que poucos possam ser pobres e muitos possam ser ricos é exemplificado com referência a Colophon. Mas, em outra passagem, Aristóte- les afirma que "numa democracia, os pobres têm mais poder que os ricos, por que são maior número" (Politics, 1317b).

10 N. D. Fustel de Coulanges, La cite antique (Paris, 1878) p. 396. O capítulo 2 do livro IV apresenta uma descrição vivida da "quantidade de trabalho que essa democracia extrai de seu povo".

11 Quanto à distinção entre política pacífica e política como guerra, ver no volu-me I o capítulo 3, seção 2; quanto à política de soma positiva e de soma zero, ver o capítulo 8, especialmente a seção 3.

12 Contrat social, III, 15. A solução do próprio Rousseau estava na recomendação de que a cidade devia ser "bem pequena". Era com base nessa condição essen- cial que o cidadão poderia cuidar de sua própria liberdade e ter tempo de ócio, sem cair na "situação infeliz onde não se pode preservar a própria liberdade ex- ceto a expensas da dos outros, e onde o cidadão só pode ser perfeitamente livre quando o escravo é absolutamente escravo".

13 A referência diz respeito à discussão sobre "participacionismo", no capítulo 5, seções 6 e 7, onde também são apresentados outros problemas.

14 Ver especialmente capítulo 4, seção 3, capítulo 5, seção 6, e capítulo 8, seção 6. 15 Ver o capítulo 5, seção 7. 16 Ver, por exemplo, G. Rensi, La democrazia diretta (Roma, 1926). Rensi distin-

guia entre democracia "pura" (a grega) e "democracia direta moderna", queren- do indicar com essa expressão uma democracia operando com base em referen- dos, iniciativas populares e revisões populares da legislação.

17 Ver, em contrário, M. Duverger, Droit consütutionnel et institutions politiques (Paris, Presses Universitaires de France, 1955), p. 226, que inclui democracia "semidireta" em sua classificação.

18 Num famoso discurso feito no Ateneu de Paris: De la liberté des anciens com- parée à celle dês modernes. Ver, em geral, A. Zanfarino, La liberta dei moder- ni nel costituzionalismo di Benjamin Constant (Milano, Giuffrè, 196l). Para uma interpretação extensa dessa distinção, ver Stephen Holmes, Benjamin

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Constant and the making of modem liberalism (New Haven, Yale University Press, 1984), caps. l e 2.

19 La cite antique, p. 269, e passim, livro III, cap. 18. A rejeição frontal de Fustel referia-se a History of Greece, de Grote (l856), que havia descrito a cidade gre- ga como um baluarte da liberdade individual. Na teoria germânica do Estado, a posição de Fustel foi seguida por Stahl, Von Mohl e Bluntschli, e criticada por Jellineck. Na Itália, G. de Ruggiero seguiu Jellineck (Storia dei liberalismo eu- ropeo [Bari, Laterza, 1925], p. 177, ao passo que Croce, ao reavaliar Constant, observou que o problema "é singularmente minimizado ou considerado total mente insignificante pelo tratamento da diferença entre a liberdade antiga e a moderna feita por Jellineck em seu Allgemeine Staatslehre". B. Croce, Ética e politic (Bari, Laterza, 1943), p. 296.

20 Paideia; the ideais of Greek culture, trad. para o inglês de Gilbert Highet (New York, Oxford University Press, 1946), 1:326.

21 H. Arendt Between past and future (New York, Meridian, 1963), p. 157. 22 É muito eloqüente, portanto, que embora a conotação depreciativa original de

idiótes tenha se mantido em nossa palavra "idiota", a associação com "privado" foi completamente esquecida.

23 "Pessoa" e a formulação de Kant em seus imperativos práticos (morais). Embo- ra a noção de pessoa passe a se re lacionar com a noção de ser humano indivi- dual em data remota do século XIII (afastando-se radicalmente da persona la- t ina ) , o pr inc íp io de Kant de qu e as pessoas não devem se r t ra tadas como "meios", mas igualmente como "f ins em si mesmas", traduz melhor que qual quer outro a meu ver, o respeito pelo indivíduo que a civilização ocidental pas- sou a alimentar.

24 Dottrina generale dello Stato (trad. italiana, Milão, 1921), 7:573-74. Jellineck chega a essa conclusão apesar de sua crítica anterior a Fustel de Coulanges (ver nota 19, acima).

25 Jacob Burckhardt, The civilization ofthe Renaissance in Italy (l860; trad., Lon- don, Phaidon Press, 1955), atribui à Renascença italiana um "individualismo" que parece exagerado. Reinhold Niebuhr tra ta a ques tão da seguinte forma: "Se o protestantismo representa a elevação máxima da idéia de individualidade segundo os termos da religião cristã, a Renascença é o verdadeiro berço do.. . indivíduo autônomo... O pensamento renascentista é ostensivamente uma res- surreição do classicismo.. . No entanto, o pensamento clássico não tem essa paixão pelo indivíduo disseminada pela Renascença. O fato é que a Renascen- ça usa uma idéia que só poderia ter se desenvolvido no solo do cristianismo. Transplanta essa idéia para o solo do racionalismo clássico para produzir um novo conceito de autonomia individual, que não foi conhecida nem pelo classi- c i smo nem pe lo c r i s t ian ismo The nature and des t iny o f man (New York , Scr ibner 's r 1941) , 7:61.

26 As modernas, gostaria de enfatizar, não as antigas. Como A. Passerin d'Entrè- ves, Natural law (London, Hutchinson's, 1951), nota com perspicácia: "Exce to pelo norne, a noção medieval e a noção moderna de direito natural têm pou co em comum" (p. 9). Com efeito, o "organicismo" medieval revogou a ênfase do Novo Testamento no valor supremo do indivíduo, como bem mostrou W.

Ullmann, The ind iv idual and socie ty in the Middle Ages (Bal t imore, Johns Hopkins University Press, 1966).

27 De uma perspectiva ligeiramente diferente, Isaiah Berlin considera a questão da seguinte maneira: "Parece não ter havido qualquer discussão da liberdade indi- vidual como um ideal polí t ico consciente (em contraposição à sua existência real) no mundo antigo. . . a noção dos dire itos individuais estava ausente das concepções legais dos romanos e gregos". Four essays on liberty (London, Ox- ford University Press, 1969), p. 129.

28 Essa é a difesa giuridica de Mosca. C. J. Friedrich considera-a uma expressão "curiosa" para o "governo da le i" (rule of law) (na ed. de 1946 de Constitutio- nal government and democracy [Boston: Ginn], p. 592). No entanto, como no to mais adiante (cap. 11, seção 7), a razão para usar expressões diferentes é que Mosca não tinha em mente o governo da lei anglo-saxã.

29 Por essa razão, Burckhardt observou (citando Böckh) que "a polis deve ter tor- nado seu povo infeliz". Encorajou o indivíduo a "revelar ao máximo o poten- cial de sua personalidade a fim de exigir mais tarde sua mais completa renún- cia. Em toda a histór ia do mundo", concluiu Burckhardt, "é dif íci l encontrar outra nação que tenha pagado tão caro por suas ações como a polis grega. De fa to, junto com seu grande desenvolvimento cultural, os gregos também de- vem ter desenvolvido a sensibilidade para perceber os sofrimentos que se infli- giam uns aos outros". La civiltà greca (trad. italiana, Firenze, Sansoni, 1955), 7:339-40.

30 L 'Ètat et ses limites (Paris, 1871), p. 108. 31 Citado em M. Pohlenz, Griechische Freiheit (Hei ldelberg, Quelle & Meyer,

1955), p. 28. 32 Pohlenz faz referência ao epitáfio de Péricles ao afirmar que, "em todos os as-

pectos, a descrição de Péricles indica o inverso do cosmo espartano. Este últi- mo é dominado pela coerção, e o indivíduo é exigido por completo pelo Esta do. Em Atenas reina uma liberdade onde o indivíduo é limitado o mínimo pos- sível" (Ibid.). Ver também G. Glotz, The Greek city and its institutions, trad. N. Mallinson (New York, Knopf, 1929): "Na época de Péricles, a vida política ate- niense mostrou urn equilíbrio perfeito entre os direitos do indivíduo e o poder do Estado. A liberdade individual era completa" (p. 128). Mas Glotz exagera. Ver, em contrário, a avaliação geral de W. Jaeger, que também se aplica a Ate- nas: "A polis é a soma de todos os seus cidadãos e de todos os aspectos de sua vida. Dá muito a cada cidadão, mas pode exigir tudo em troca. Implacável e po- derosa, impõe seu estilo de vida a cada indivíduo e deixa nele a sua marca. De- la derivam todas as normas que governam a vida de seus cidadãos. A conduta que a prejudica é ruim, a conduta que a favorece é boa". Paideia; the ideais of Greek culture, 7:106.

33 Como se verá no capítulo 11, seção 4. 34 Leviathan, cap. 21. É claro que "representante" é usado aqui de forma genérica. 35 De Ia liberte dês anciens comparée à celle dês modernes. A citação está em A.

Brunialti, ed., Biblioteca di scienze politiche (Torino, 1890), 5:455. 36 Schmalz (Antibarbarus, 1,415, sub democratia) notou que, nos autores latinos

do período clássico até o século IV d.C., o termo demokratía só aparece três vê-

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zes e em passagens e autores estritamente de segunda ordem. Somente no co-meço da Idade Média é que o termo é usado às vezes por aqueles que se refe-riam à Politics de Aristóteles, mas raramente, e por autores de pouca importân-cia, com exceção de Marsilius de Pádua e Tomás de Aquino. A prática comum é seguir as paráfrases de Cícero, como civitas, ou potestas popularis, ou impe- rium populi. Maquiavel dirá principato popolare (principado popular), Guie- ciardini usará vivere popolare (vida popular) e, em Giambattista Vico, não se encontra qualquer resquício da palavra democracia. Ver, para uma análise, da história do termo, R. Wollheim, "Democracy", Journal of the History of Ideas 19 (l958): 225-42.

37 De regimine principum, livro I, em Selected political writings (Oxford, Black- well, 1948), p. 6.

38 Assim, os autores clássicos em língua inglesa quase sempre traduziram res pu- blica por "commonwealth" (bem público), uma expressão que entrou em des- crédito depois de Cromwell, mas logo recuperou seu significado etimológico.

39 Perpetual peace, seção 2, O requisito fundamental de uma paz perpétua: "A forma de governo de todos os Estados deve ser republicana".

40 The Federalist, n. 10. Ver também os números l, 9, 37 e 70. Hamilton seguiu a mesma linha de pensamento de Madison, embora, excepcionalmente, tenha escrito, numa carta de 1777, a expressão "democracia representativa", queren- do dizer "república representativa". \

41 Nesses anos, o único autor que usou "democracia" num sentido favorável foi Paine; mas apenas para dizer que a "democracia simples" dos antigos forneceu "o terreno" para onde a representação foi enxertada; e "a representação enxer- tada na democracia", enfatizou Paine, "6 preferível à democracia simples mes mo em pequenos territórios. Atenas, pela representação, teria suplantado sua própria democracia" (Rights of man, 1791-92, parte II, cap. 3.). Jefferson tam- bém, mais tarde, usou a expressão "democracia representativa", mas raras ve- zes e com a advertência de que um "governo republicano" não tinha nada em comum com a "democracia pura".

42 Vale a pena notar que Rousseau também colocou "república" acima de "demo- cracia". Ver Contrat social, II, 6: "Por isso chamo de República a todo Estado governado pela lei... pois, nesse caso, só governa o interesse público... Todo governo legítimo é republicano". Com respeito às formas de governo (demo- crático, aristocrático, monárquico), Rousseau afirmava que cada forma é ade- quada a um determinado tipo de país, mas que a democracia é mais apropriada "a Estados que são pequenos e pobres" (Contraí , III, 8; ver também III, 4) . Quanto ao conceito de democracia nos enciclopedistas, ver R. Hubert , Les sciences sociales dans l’encyclopédie (Paris, 1923), p. 254-55.

43 No entanto, o próprio Robespierre trata "democracia" como sinônimo de "repú- blica". Ferdinand Brunot, em sua monumental Histoire de Ia langue française (Paris: Colin, 1905-48), v. 9, faz uma lista de 206 palavras ou expressões que caracterizam o espectro político durante os anos da Revolução. Embora "demo- crático" seja mencionado, aparece como um dos termos usados com menos freqüência e principalmente em contraposição a "aristocrático" — outro neolo- gismo revolucionário registrado num dicionário de 1791 (citado em Brunot, p. 652) da seguinte forma: "Aristocrático: combinação de sílabas... que produzem

um efeito estranho num animal chamado democrático". R. R. Palmen The age of the democratic revolution — the challenge (Princeton, Princeton University Press, 1959), observa que "existem apenas três textos do período... onde o au-tor usou 'democracia', num sentido favorável, onze vezes em algumas centenas de palavras; e esses três textos são de Paine, Robespierre e do homem que se tornou Pio VII" (p. 19). Além disso, ver R. R. Palmer, "Notes on the use ofthe word 'democracy'1789-1799", Political Science Quarterly 2 (1953): 203-26, onde Palmer nota que "foi na Itália... que a palavra 'democracia', num sentido favorável, foi de uso mais comum nos anos de 1796 a 1799. Isso... também se deve, suspeita-se, ao fato de que, como república era uma velha história na Itá-lia, os novos ideais não poderiam ser simbolizados pela palavra 'república' co- mo na França" (p. 220). Sobre o sentido italiano do termo, ver G. Calogero, T. De Mauro e G. Sasso, "Intorno alla storia del significato di 'democrazia' in Itá-lia", Il Ponte 1 (1958): 39-66.

44 A referência é E. A. Havelock, The liberal temper in Greek polities (New Ha- ven, Yale University Press, 1957). Digo "suposto" porque o "liberar de Have- lock é, mais uma vez, um exemplo da modernização à qual me oponho.

45 Em meu Parties and party systems: a framework for analysis (New York, Cambridge University Press, 1976), cap. I, passim, remonto às origens de "plu- ralismo" (como é entendido hoje, não no sentido que lhe foi atribuído pelos pri- meiros pluralistas ingleses).

46 Em L. Bryson et alii, eds., Aspects of human equality (New York, Harper, 1956), p. 92-93. Sobre a tolerância religiosa durante a Reforma, ver Joseph Le- cler, Toleration and the Reformation, 2 volumes (London, Longman, 1960).

47 A avaliação é difícil também porque o molde puritano de nosso mundo não dei- xou de si próprio um testemunho escrito importante: essa circunstância torna controvertida a interpretação de todos os fragmentos. Como Will iam Haller mostrou muito bem em suas obras clássicas, The rise of puritanisme Liberty and reformation in the puritan revolution (New York, Columbia University Press, 1938 e 1955), a semente plantada pelos puritanos foi transmitida à histó- ria principalmente pelas obras de Milton, Areopagitica e The tenure of kings and magistrates. Mas, neste, temos a fusão da causa puritana com a mais alta cultu- ra da Renascença. Em segundo lugar, a derivação estrita de nossa democracia da experiência puritana, como defendida especialmente por A. S. P. Woodhouse, Puritanism and liberty (London, Dent, 1938), e por Vittorio Gabrieli, Puritanis- mo e libertà: dibattiti e libeli (Torino, Einaudi, 1956), baseia-se principalmente nos escritos dos defensores da abolição das desigualdades sociais e negligencia indevidamente o caráter teocêntrico e teocrático do sermão puritano. Por outro lado, contra a tendência de exagerar a contribuição dos puritanos, está a ênfase indevida na direção oposta, feita por Benedetto Croce e por um setor considerá- vel da cultura italiana, que se esquecem a tal ponto da Reforma que chegam a atribuir o fundamento "teórico" do liberalismo ao romantismo e ao idealismo alemão. Esse excesso deriva do hegelianismo, mas também é explicado pela Contra-Reforma, isto é, pelo fato de os países católicos terem ficado hermetica- mente fechados até a chegada da revolução romântica.

48 Richard Schlatter, Richard Baxter and puritan politics (New Brunswick, Rut- gers University Press, 1957), p. 4. Ver também L. F. Solt, Siants in arms: puri-

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58 A TEORIA DA DEMOCRACIA REVISITADA

tan ism and democracy in Cromwel l 's Army (Stanford, Stanford Universi ty Press, 1959).

49 A fragmentação medieval não é exceção a essa generalização, pois estava en- couraçada em todas as suas hierarquias por uma concepção de vida orgânica, de base teológica, que, por sua vez, levou a associações legais rigorosas. A Idade Média era multicentrada em termos de organização, mas unicentrada e mono- cromática em termos culturais.

50 Ver Platão, Republic, 563: "Por fim.. . deixaram de se importar até com as leis, esc r i ta s ou não; não terão n inguém ac ima de les" ( trad. de B. Jowet t para o inglês). Ver também Aristóte les (Polit ics, 1292a, 1293a), Isócrates e Demós- tenes, que comprovam, todos, que, assim que as leis perderam a aura de sacra- l idade, que lhes veio da tradição , foram destruídas por um governo popular que, em data tão remota quanto 406 a.C. (segundo Xenofonte), poderia procla- mar que era absurdo acreditar que o demos não t inha o dire ito de fazer o que quisesse.

51 J. Bryce, Modern Democracies (New York, Macmillan, 1924), 1:183. 52 Ver o capítulo 11, especialmente a seção 3. 53 Para as qualificações necessárias, ver especialmente o capítulo 2, seção 3; e os

capítulos 5 e 6, passim.

11

A liberdade e a lei

Quanto mais corrupta a república, mais corruptas as leis.

Tácito

11.1 Liberdade e liberdades [liberdade política e liberdade filosófica]

Liberalismo é uma palavra mais difícil de definir que demo-cracia. Entre as muitas razões que justificam essa dificuldade, a óbvia é que "liberdade" é muito mais impalpável, denotativamente falando, que "povo". É fácil misturar os ingredientes demo-cracia; nunca cunhamos a palavra livre-cracia. E as dificuldades de nosso tema são constituídas pelo fato de o termo liberdade e de a frase "sou livre" aplicarem-se à variedade caleidoscópica da própria vida humana. Fe-lizmente será suficiente para nós considerar essa palavra camaleônica num contexto específico: liberdade na política. Nossa principal tarefa é, portanto, separar a questão específica da liberdade política das especulações gerais sobre a natureza da verdadeira liberdade. Lord Acton observou que "nenhum obstáculo tem sido tão constante ou tão difícil de transpor quanto a incerteza e a confusão relativas à natureza da verdadeira liberdade. Se os interesses hostis produziram muitos da-

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60 A TEORIA DA DEMOCRACIA REVISITADA 1 1 • A liberdade e a lei 61

nos, as falsas idéias produziram mais ainda"1. Embora concorde em número, gênero e grau quanto ao dano produzido por idéias falsas, in-certas e confusas, eu diria que o problema à nossa frente não é desco-brir "a natureza da verdadeira liberdade", mas remover todas as in- crustações estranhas que nos impedem de examinar a questão da liber-dade política em si e como uma questão empírica entre outras2.

Devemos começar, portanto, colocando alguma ordem nos con-textos em que falamos heterogeneamente de liberdade psicológica, li-berdade intelectual, liberdade moral, liberdade social, liberdade eco-nômica, liberdade legal, liberdade política, assim como de outras liber-dades3. Elas estão relacionadas, evidentemente, pois todas pertencem ao mesmo homem. No entanto, é preciso distinguir entre elas, porque cada qual está relacionada ao exame e solução de um aspecto particu-lar da questão global da liberdade. Assim, o primeiro esclarecimento a ser feito é que a liberdade política não é do tipo psicológico, intelec-tual, moral, social, econômico ou legal. Pressupõe essas liberdades — e também as promove —, mas não é idêntica a elas.

O segundo esclarecimento está relacionado ao nível do discur-so. Aqui, o erro é confundir o nível empírico com o filosófico. Os fi-lósofos especularam muitas vezes sobre a liberdade política, mas só raramente a consideraram um problema prático a ser abordado como tal. Aristóteles, Locke e Kant estão entre as relativamente poucas ex-ceções, entre o pequeno número de grandes filósofos que não come-teram o erro de apresentar respostas filosóficas a questões práticas. Locke, em particular, teve essa virtude. Seu tratamento do problema da liberdade no Ensaio sobre o entendimento humano é diferente da-quele que encontramos no segundo dos Dois tratados sobre o governo, com o qual não tem ligação. No primeiro, Locke define liberdade co-mo agir sob a determinação do eu, ao passo que, no segundo, define-a como não estar "sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem"4.

Ao contrário dele, a maioria dos filósofos preocupa-se com a Verdadeira Liberdade ou com a Essência da Liberdade — ou com o problema da liberdade da vontade, ou com a questão da forma supre-ma de liberdade (concebida de diversas maneiras, como auto-expres- são, autodeterminação ou perfeição). É isso que se espera que os filó-sofos façam, e ninguém os condena por isso. Mas devem ser censura-

dos quando projetam sua metafísica da liberdade na esfera política e, ao contrário de Locke, não percebem que, nesse contexto, estamos discutindo um outro problema, um problema distinto. A questão ain-da está longe de ser resolvida. Ao examinar a relação entre a filosofia política e a ciência política, Friedrich — depois de criticar com razão a mistura de questões filosóficas com "o reino empírico do governo e da política" — conclui que "toda discussão de liberdade e liberalismo deve — se levar seu argumento a sério — enfrentar a questão da 'li-berdade da vontade'"5. Não vejo por quê. É claro que toda discussão sobre a liberdade acalentada pelo Ocidente baseia-se numa Weltans- chauung — numa concepção da vida e dos valores. Para ser mais exa-to, pressupõe que acreditemos de algum modo no valor da liberdade individual. Mas tenho relutância em considerar que a ligação seja mais que isso.

Em primeiro lugar, mesmo se tivéssemos de nos certificar que o homem não é, ontologicamente, um agente livre e que não é real ou absolutamente responsável por suas ações, deveríamos, por isso, re-nunciar à ordem social regulamentada por normas acompanhadas de sanções? Não vejo como poderíamos fazer isso. O que mudaria é o significado da pena, que perderia seu valor repressivo e/ou sua justifi-cativa como punição. O réu tornar-se-ia um mártir da sociedade, ex-piando culpas pelas quais não seria (em termos morais ou outros) res-ponsável. Mas seria condenado mesmo assim, pois todas as sociedades têm de afastar quem quer que viole as leis de coexistência sobre as quais se baseiam.

A segunda razão para manter o problema filosófico no lugar que lhe compete é que, se não fizermos isso, estamos fadados a não com-preender em que sentido Spinoza afirmava que a liberdade era a racio-nalidade perfeita, ou em que Leibnitz dizia que era a espontaneidade da inteligência, ou Kant que era autonomia, ou Hegel que era a aceita-ção da necessidade, ou Croce que era a expansão perene da vida, por exemplo. Essas conceituações fazem pleno sentido quando entendidas em seu contexto; mas seu significado e valor de verdade estão relacio-nados com a busca de uma liberdade que é essencial, final ou, como diria Kant, transcendental. Note-se, por outro lado, que nenhuma des-sas conceituações refere-se a uma liberdade "relacional". Segue-se daí que, se tentarmos usar os conceitos citados acima para tratar de sujei-

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ção política, que é um problema relacional, distorceremos inutilmente seu significado. Na verdade, quando as idéias de liberdade de Spinoza, Leibnitz, Kant (como filósofo moral), Hegel ou Croce são trazidas para o plano empírico e relacionadas a problemas que sua conceituação não considera, tornam-se não apenas errôneas, mas danosas. Danosas devido ao falso testemunho que esses filósofos são chamados arbitra-riamente a prestar. Assim, a segunda questão é que a liberdade políti-ca não é uma liberdade filosófica. Não é a solução prática de um pro-blema filosófico e menos ainda a solução filosófica de um problema prático.

Por fim, temos de tratar dos estágios do processo de liberdade. A frase "sou livre" pode ter três significados diferentes ou pode ser des-dobrada em três fases. Pode significar tenho a possibilidade de, posso ou tenho o poder de. No primeiro sentido, liberdade é permissão; no segundo, é capacidade; e, no terceiro, evoca uma outra condição (ma-terial ou outra) para lhe dar sustentação. O terceiro significado é o mais novo, o último da série e será discutido mais tarde. Limitar-me-ei aqui aos dois primeiros sentidos de liberdade: tenho a possibilidade e posso. É claro que liberdade como permissão e liberdade como capa-cidade estão ligadas, pois permissão sem capacidade e capacidade sem permissão são igualmente estéreis. Mas, mesmo assim, não devem ser confundidas, porque nenhum desses tipos de liberdade pode abranger sozinho ambos os sentidos. Certos tipos de liberdade destinam-se ba-sicamente a criar condições que permitam a liberdade. A liberdade política é desse tipo e, muito freqüentemente, também a liberdade ju-rídica e a liberdade econômica (como é entendida num sistema de mercado). Em outros contextos, a ênfase situa-se principal, quando não exclusivamente, nas raízes e fontes da liberdade — na liberdade como capacidade. Esse é notavelmente o caso da abordagem filosófi-ca do problema da liberdade e das noções de liberdade psicológica e li-berdade intelectual.

A distinção entre tenho a possibilidade de e posso corresponde à diferença entre a esfera interna e a esfera externa da liberdade. Quan-do estamos interessados na exteriorização da liberdade, isto é, na liber-dade de ação, ela toma a forma de permissão. Por outro lado, quando o problema não é de liberdade externa, aí nos ocupamos da liberdade como capacidade. Termos como "independência", "proteção" e "ação"

em geral são usados para indicar liberdade externa, ao passo que "au-tonomia", "auto-realização" e "vontade", em geral, referem-se à liber-dade que existe interiori hominis. A questão decisiva é, portanto, que a liberdade política não é uma liberdade interna; é uma liberdade rela-cional e instrumental, cujo propósito essencial é criar uma situação de liberdade — as condições da liberdade.

11,2 Liberdade política

Cranston observa que "a palavra liberdade tem sua menor ambi-güidade em termos de utilização política em épocas de opressão cen-tralizada"6. Isso é muito verdadeiro e sugere que seria melhor confiar-mos, em questões de liberdade política, no conselho daqueles que ex-perimentaram sua falta. As pessoas que nunca conheceram ditaduras e tiranias cedem facilmente a uma retórica de liberdade muito distante da realidade terrivelmente simples da verdadeira opressão onde ela existe de fato. O mundo ocidental está repleto, numa escala sem prece-dentes, de refugiados a quem dizem — quando falam da pátria de on-de escaparam — que são tendenciosos, que exageram. No entanto, eles são os que abandonaram, muitas vezes com risco de vida, seu lar, seus amigos, seus pertences, enquanto os intelectuais do Ocidente, que acreditam saber mais, vivem com segurança no lugar que lhes agrada viver. Em minha opinião, não existe dúvida quanto a quem sabe mais — é aquele que sente na carne.

Hobbes e o povo inglês de seu tempo conturbado sabiam de ver-dade o quanto a vida pode ser perigosa. E o filósofo inglês afirmava basear-se no "significado geralmente aceito" da palavra liberdade na Inglaterra ao escrever: "Liberdade significa exatamente ausência de... impedimentos externos ao movimento"7. A maioria dos autores enfati-za, com respeito à liberdade, a variedade enorme de seus significados. Mas, se a liberdade política for separada das outras liberdades, o que impressiona é a continuidade e persistência de seu significado com o passar do tempo. Sempre que o Estado se materializa como uma enti-dade supra-ordenada, e sempre que o indivíduo ocidental reclama li-berdade quer dizer basicamente o que Hobbes diz: ausência de impedi-

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mentos externos, eliminação de restrições externas, abrandamento de relações de coerção. Isso quer dizer que a liberdade política é, tipica-mente, liberdade em relação a (from), não liberdade para (SIC!). Hoje em dia costumamos chamá-la de liberdade "negativa"; mas como essa predi- cação adquire facilmente um sentido pejorativo e ajuda a apresentar a liberdade política como um tipo inferior de liberdade, prefiro dizer, mais acuradamente, que é uma liberdade protetora ou defensiva.

Os críticos repetiram até o ponto de saturação que essa idéia de liberdade deriva de uma filosofia erroneamente individualista, baseada na falsa premissa de que o indivíduo c um átomo ou uma mônada. Mas, em primeiro lugar, eu questionaria o fato de essa noção ser filo-sófica, no sentido de que apenas um pequeno número de intelectuais está realmente interessado no indivíduo. Se considerarmos, por exem-plo, a Revolução Francesa (um evento que todos reconhecem ter esca-pado ao controle dos philosophes), toda a sua parábola assume o signi-ficado de uma defesa de liberdade contra o poder. Durante os anos que vão de 1789 a 1794, o Terceiro e o Quarto Estados pediram liberdade individual e política em oposição ao Estado, não uma liberdade social e econômica a ser obtida por meio do Estado. A idéia de que é um ob-jetivo e uma preocupação do Estado dispensar liberdade teria parecido extravagante, para dizer o mínimo, ao povo francês da época. Ter-lhe-ia parecido extravagante, não por causa de suas crenças filosóficas in-dividualistas, mas pela razão muito mais terrena de terem sido oprimi-dos durante séculos por monarcas, nobres, bispos, guerreiros e toda a sorte de vínculos corporativos.

Na verdade, acho que não precisamos recorrer a mônadas e à fi-losofia atomista do homem para explicar por que a liberdade política tende a ser compreendida em todos os períodos — principalmente quando a opressão intensifica-se — como liberdade em relação a, is-to é, como uma liberdade defensiva. O que tem realmente importância é que a liberdade não é uma questão, ou não se coloca em questão, a menos que tratemos a relação entre o cidadão e o Estado do ponto de vista do cidadão. Se considerarmos essa relação do ponto de vista do Estado, não nos preocupamos mais com o problema da liberdade polí-tica. Dizer que o Estado é "livre para" é dizer apenas que estamos nos referindo a um poder arbitrário. O Estado tirânico é livre para gover-nar a seu bel-prazer, e isso significa que priva os governados de sua li-

berdade8. Gostaria que ficasse muito claro, então, que (a) falar de li-berdade política é preocupar-se com o poder dos poderes subordina-dos, com o poder das pessoas sobre quem é exercido; e (b) o enfoque adequado ao problema da liberdade política é perguntar como o poder desses poderes menores e potencialmente perdedores pode ser salva-guardado. Temos liberdade política, isto é, temos um cidadão livre na medida em que são criadas condições que possibilitem a seu poder menor resistir ao poder maior que, caso contrário, dominá-lo-ia ou, de qualquer forma, poderia dominá-lo com facilidade. É por isso que o conceito de liberdade política assume, antes de tudo, uma conotação de antagonismo. É liberdade em relação a porque é liberdade para o mais fraco.

É claro que a "ausência de impedimentos externos" de Hobbes não deve ser compreendida literalmente, para não associá-la a uma tese anarquista. A falta de restrição não é ausência de todas as restrições. O que esperamos da liberdade política e proteção contra um poder ar-bitrário e ilimitado (absoluto). Com uma situação de liberdade quere-mos dizer uma situação de proteção que permita aos governados opo-rem-se efetivamente ao abuso do poder dos governantes. Pode-se obje-tar que esse esclarecimento ainda não esclarece muito. Pois o que se quer dizer com "abuso" do poder? Onde termina o exercício legítimo do poder e onde começa o ilegítimo? Esse é, com certeza, um ponto bastante controvertido. A resposta às questões "protegidos do quê?" e "sem restrições até que ponto?" depende do que está em jogo num de-terminado momento e num determinado lugar e do que mais se valori-za (e com que intensidade se valoriza) numa cultura específica. "Coer-ção" não se aplica a todo tipo e grau de restrição; e "proteção" também não implica defesa contra tudo. Em primeiro lugar, as pessoas têm de sentir que vale a pena proteger o que está em jogo (a ameaça de restri-ção precisa ser dirigida contra algo que valorizem); e, em segundo lu-gar, ninguém se preocupa em proteger algo que não está correndo pe-rigo. As questões acima fornecem respostas suficientemente precisas desde que as situemos num contexto, desde que saibamos o que está sendo ameaçado e qual ameaça é mais temida ou desperta mais aver-são. No fim, a falta de impedimentos é sempre traduzida concreta- mente como: ninguém está impedido com respeito a x, y e z. Na civili-zação liberal-democrática, esses x e y derivaram de princípios morais

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cristãos, dos direitos naturais, do cálculo que traz felicidade e de uma ética baseada em direitos. E é assim que deve ser.

A questão seguinte é saber se liberdade em relação a é um con-ceito adequado de liberdade. Para responder a essa pergunta, precisa-mos de um quadro de referências mais amplo. Clinton Rossiter resu-miu a idéia geral que temos de liberdade hoje em dia em quatro no-ções: independência, privacidade, poder e oportunidade. "Independên-cia é uma situação onde o homem sente-se sujeito a um mínimo de restrições externas... Privacidade é um tipo especial de independência que pode ser compreendido como a tentativa de assegurar a autono-mia... se necessário, desafiando todas as pressões da sociedade moder-na." No entanto, diz Rossiter, até agora mencionamos somente "meta-de da liberdade e, ainda por cima, a metade negativa... A liberdade também é uma coisa positiva... e, por isso, devemos pensar nela em termos de poder... e também em termos de oportunidade"*. Há uma falha na formulação de Rossiter, qual seja, quando ele diz "poder", pa-rece querer dizer "capacidade de". Para evitar a ambigüidade, incluirei o conceito de capacidade na lista e colocarei o conceito de poder no fim. Assim, pode-se dizer que a liberdade completa implica os cinco traços seguintes: (a) independência; (b) privacidade; (c) capacidade; (d) oportunidade; e (e) poder.

Agora podemos formular nossa pergunta de forma mais precisa: qual é a relação entre a primeira metade da liberdade (independência e privacidade) com a segunda (capacidade, oportunidade e poder)? A resposta, a meu ver, é simples e clara: é a relação entre as condições e as conseqüências e, portanto, uma relação procedimental. É por essa razão que os conceitos acima constituem uma seqüência onde a inde-pendência vem primeiro e não deve vir por último. Infelizmente, a questão procedimental é negligenciada com freqüência. O próprio Rossiter, ao juntar "novamente as peças numa unidade", não sugere de forma alguma a existência de uma ordem e de uma seqüência nessa unidade. Conclui: "A ênfase do liberalismo clássico reside, na verda-de, nos aspectos negativos da liberdade. Pensa-se que a liberdade é quase exclusivamente um estado de independência e privacidade. Mas esse é exatamente um dos pontos para o qual o liberalismo clássico não serve mais, se é que serviu algum dia, como um instrumento intei-ramente adequado para descrever o lugar do homem livre na socieda-

de livre". Bem, ao reconhecer que o liberalismo clássico não é "intei-ramente adequado", nunca devemos nos esquecer de que as conse-qüências derivam dos antecedentes e de que o liberalismo clássico ain-da "serve" como condição ex ante das liberdades que negligenciou. Embora uma condição não garanta por si mesma que um determinado efeito se seguirá, o certo é que, se uma condição não precede aquilo que condiciona, então nada pode de fato se seguir; e é isso o que torna a seqüência de todas as liberdades citadas acima (sem exclusões e sem saltos) tão crucial.

A liberdade política não é, de forma alguma, o único tipo de li-berdade nem é necessariamente aquela que deve ter o valor supremo. É, entretanto, a liberdade primária em termos procedimentais, pois é a sine qua non de todas as outras liberdades. Portanto, falar de "indepen-dência em relação a" como uma noção inadequada de liberdade, como tendemos a fazer, é simplesmente errado. As outras liberdades tam-bém, se forem consideradas isoladamente, são igualmente inadequa-das. A adequação deriva de toda a série e de toda a série organizada como uma fileira, numa determinada ordem. Não é suficiente que nossas mentes sejam livres, se nossas línguas não são. A capacidade de dirigir nossa própria vida tem muito pouca utilidade se formos im-pedidos de exercê-la. Como, então, as chamadas liberdades positivas podem ser adequadas, se um senhor todo-poderoso impede que desa- brochem? Afirmar que a liberdade negativa não é suficiente é afirmar o óbvio; não afirmar que precisamos de liberdade em relação a para sermos capazes de alcançar a liberdade para é omitir o essencial.

Se resolvermos chamar a liberdade política de "negativa" (ao in-vés de "defensiva"), então é bom lembrar que liberdade também re-quer "afirmação", que não pode ser uma liberdade passiva, inerte. Co-mo todas as liberdades, essa também postula a atividade. Segundo es-sa perspectiva, argumentou-se que liberdade não é apenas liberdade em relação a, mas também, e ao mesmo tempo, participação em (nas questões da sociedade política). Certo; mas errado quando nos esque-cemos de que a participação torna-se possível com um estado de inde-pendência, e não vice-versa. Até nossos direitos subjetivos, como Jhe- ring escreveu num famoso panfleto, nada significam se não os exerce-mos, se, na verdade, não "lutamos" por eles10. No entanto, é inútil falar de exercer direitos que não existem. Isto, também, aplica-se à liber-

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dade política. É inútil falar de "exercê-la" a menos que a independên-cia já exista. As ditaduras totalitárias requerem e promovem muita ati-vidade e, na verdade, mobilizam seus súditos incessantemente. E daí? Ao mobilizar o seu populacho a partir de cima, os ditadores de hoje realmente desviam e impedem a automobilização (participação) a par-tir de baixo, isto é, "liberdade independente".

Tudo considerado, parece-me que devemos resistir à tentação de tratar a liberdade política como se fosse, por assim dizer, uma liberda-de completa. Os que inflacionam a liberdade falando dela como se fosse participação acabam desfigurando sua característica básica11. Se fracassamos com tanta freqüência na busca de mais liberdade é tam-bém porque esperamos da participação mais do que ela pode dar. Evi-dentemente, a liberdade, enquanto ausência de impedimentos, não é um fim em si mesma, e a liberdade política requer uma ação positiva e uma resistência ativa12. Onde a apatia é total, a liberdade é facilmente perdida. Mas o fundamental é que a relação de forças entre cidadãos e Estado é desigual; que, vis-à-vis o Estado, seu poder é fácil de des-truir; e, portanto, que sua liberdade caracteriza-se pela suposição de mecanismos de defesa. A menos que se mostre que, em relação ao Es-tado, os cidadãos não são a parte mais fraca, o conceito político de li-berdade gira em torno do seguinte argumento: só quando não sou im-pedido de fazer é que se pode dizer que tenho o poder de fazer13.

Não há motivos para ficarmos ofendidos quando nos dizem que esse conceito é incompleto. É mesmo. Na verdade, cada forma especí-fica de liberdade pode redundar apenas numa liberdade parcial porque diz respeito apenas ao problema específico que procura resolver. O que realmente importa é que não se pode passar por cima da liberdade po-lítica. Não podemos passar por cima da liberdade no sentido negativo se quisermos alcançar a liberdade no sentido positivo. Quando nos es-quecemos por um único instante do requisito de não sofrer restrições, o nosso edifício inteiro de liberdades corre perigo. Depois que a impor-tância procedimental da liberdade política for estabelecida, podemos perfeitamente levantar a questão de sua importância para nós hoje. A afirmação de que a liberdade não basta, querendo dizer com isso que "a verdadeira liberdade" é uma outra coisa, é descabida. Mas é claro que toda época tem suas urgências e necessidades particulares. Assim, po-demos muito bem continuar dizendo hic et nunc que, como hoje a liber-

dade está assegurada, requer menos atenção que as liberdades constituí-das por meios que as possibilitem. Voltaremos a esse ponto no devido momento14. Agora precisamos concluir nosso argumento.

Até aqui, sublinhei a multiplicidade das liberdades. Fiz isso por-que acredito que não é possível descobrir um significado essencial en-quanto as concepções metafísico-filosóficas de liberdade estiverem embaralhadas com as empíricas. Mas, se as primeiras forem postas de lado, aí sim, um significado nuclear, unificador da progressão empírica de liberdades emerge de fato: é liberdade de escolha. A liberdade política (a independência em relação a) protege o indivíduo e lhe per-mite escolher; e as liberdades sucessivas adicionam, todas elas, condi-ções mantenedoras de opções mais variadas e mais efetivas. Privacida-de é escolher sem ser pressionado, voltando-se tranqüilamente para si mesmo; capacidade é, entre outras coisas, uma ampliação das opções existentes; oportunidade é a entrada no leque de alternativas entre as quais escolher; e poder é, no contexto da liberdade, a condição equali-zadora, a condição que contribui para uma liberdade igual de escolha efetiva. Quando a palavra liberdade é usada genericamente, o que em geral se quer dizer é liberdade de escolha. Mas a liberdade de escolha também não é resposta final, pois não é uma liberdade relacional; apenas apresenta cursos de ação alternativos a um agente. A liberdade política é, ao invés, uma liberdade relacional; ela se dá entre agentes cujas liberdades devem coexistir em termos de reciprocidade.

11.3 Liberdade liberal

Note-se que, até agora, falei de liberdade política, e não do con-ceito liberal de liberdade. Os dois conceitos acabaram por se interligar estreitamente. No entanto, como está em voga considerar antiquada a idéia liberal de liberdade, é bom manter o problema da liberdade polí-tica separado de sua solução liberal. É fácil dizer que a liberdade do li-beralismo, sendo uma aquisição histórica, é perecível. Mas será que podemos fazer a mesma afirmação sobre a liberdade política em si? Será que podemos dizer que até a liberdade é uma necessidade ou um bem transitório? Se pudermos, digamos com todas as letras. A liberda-

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de política (a idéia) e a liberdade liberal (uma de suas encarnações) não podem ser destruídas com uma pedrada. O momento mesmo em que rejeitamos a solução liberal do problema da liberdade é exatamente o momento em que o problema requer de novo, com mais premência que nunca, uma solução.

Afinal, o que exigimos da liberdade política é proteção. Como obtê-la? Em última instância, desde o tempo de Sólon até hoje, a solu-ção foi buscada na obediência às leis, e não aos detentores do poder. Como disse Cícero de forma eloqüente, legum servi sumus ut liberi es-se possimus, servimos a lei para podermos ser livres15. Locke disse a mesma coisa de forma mais concisa ainda: "Onde não há leis, não há li-berdade"16. Paine também escreveu que "o governo de uma nação li-vre... não está nas pessoas, mas nas leis"17. E Rousseau, como logo se verá, concordava inteiramente com Cícero e Locke sobre essa questão. O problema da liberdade política está sempre na busca de regras que realmente refreiem o poder18. Isso explica a ligação muito estreita entre a liberdade política e a liberdade jurídica. Mas a fórmula "liberdade sob a proteção da lei" e, por conseguinte, por meio das leis pode ser conce-bida e implementada de formas diferentes. A proteção da lei pode ser compreendida, de modo geral, de três formas: a forma grega, que já é uma interpretação legislativa; a forma romana, que se parece com o po-der legal inglês19; e a forma liberal, que é o constitucionalismo.

Os gregos compreenderam bem que, se não quisessem ser gover-nados tiranicamente, teriam de ser governados pelas leis20. Mas sua idéia de lei oscilava entre os extremos das leis sagradas, que eram imutáveis e rígidas demais, e as leis convencionais, que eram por de-mais incertas e cambiantes. No decorrer de sua experiência democrá-tica, as nómoi (leis) logo deixaram de refletir a natureza das coisas (physis), e os gregos não conseguiram parar no ponto certo entre a imobilidade e a mudança. Assim que a lei perdeu seu caráter sagrado, a soberania popular foi colocada acima da lei e, por isso mesmo, o go-verno das leis fundiu-se e confundiu-se mais uma vez com o governo dos homens. A razão disso é que a concepção legal de liberdade pres-supõe a rejeição da eleuthería grega — de uma liberdade que se esten-de ao princípio de que aquilo que agrada ao povo é lei. Examinando o sistema grego segundo a perspectiva de nossos conhecimentos, vemos

que sua concepção das leis carecia da noção de limitação — uma no-ção que, como se descobriu mais tarde, é inseparável daquela.

É por esse motivo que nossa tradição jurídica é romana, não gre-ga. A experiência dos gregos mostra-nos o que não fazer se quisermos liberdade sob a proteção da lei. É verdade que os romanos se propuse-ram um problema mais viável. Como observou Wirszubski, "A repú-blica romana nunca foi... uma democracia do tipo ateniense; e eleuthe-ría, isonomía eparrhesía, que eram suas expressões mais importantes, pareciam aos romanos mais próximas de licentia do que de libertas"2\. Na verdade, a jurisprudência romana não fez uma contribuição direta ao problema específico da liberdade política. Mas fez uma contribui-ção indireta ao desenvolver a idéia de legalidade cuja versão posterior é o poder legal anglo-saxão.

A terceira solução jurídica do problema de liberdade política é do liberalismo — que se desenvolveu na prática constitucional inglesa, encontrou sua melhor formulação escrita na Constituição dos Estados Unidos e foi apresentada na teoria do garantismo constitucional e, nesse sentido, do Rechsstaat, o Estado baseado na lei22. Com o que o liberalismo contribuiu especificamente para a solução do problema de liberdade política? Não foi o criador da idéia moderna de liberdade in-dividual, embora lhe tenha acrescentado algo importante23. Também não inventou a noção de liberdade sob a proteção da lei (como expres-sa na fórmula de Cícero). Mas inventou a forma de institucionalizar o equilíbrio entre o governo dos homens e o governo das leis.

A originalidade e o valor da perspectiva do liberalismo clássico são mais bem compreendidos se os compararmos com tentativas ante-riores. Basicamente, podemos procurar a solução legal para esse pro-blema de liberdade em duas rotas muito diferentes: no governo dos le-gisladores ou no governo da lei (rule of law). Na primeira abordagem, a lei consiste em regras escritas promulgadas por órgãos legislativos, isto é, a lei é lei legislada. Na segunda abordagem, a lei é algo a ser descoberto pelos juizes; é a lei judicial. Para a primeira abordagem, a lei consiste em legislação estatutária, sistemática; para a segunda, é o resultado da descoberta gradual da lei (Rechtsfindung) por meio de de-cisões judiciais. De acordo com o primeiro ponto de vista, a lei pode ser concebida como o produto da vontade pura e simples; de acordo com o segundo, deve ser o produto do raciocínio legal. O perigo da so-

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lução legislativa é que se pode chegar a um ponto em que os homens são tiranicamente governados por outros homens apesar das leis, isto é, onde as leis não mais constituem uma proteção. Por outro lado, a se-gunda solução pode ser inadequada por três motivos. Primeiro, porque o governo da lei em si não constitui necessariamente uma salvaguarda da dimensão política da liberdade (o governo da lei dos romanos dizia respeito à elaboração de jus civile, não do direito público). Segundo, quando o governo da lei consiste realmente na descoberta da lei, isto é, quando os juízes atuam segundo esse princípio, a lei pode ficar estáti-ca demais (além de fragmentária). Em terceiro lugar, os juízes podem muito bem se ver não como pessoas que procuram descobrir a lei, mas como pessoas que fazem as leis — e, nesse caso, o "governo dos juí-zes" pode ser mais demolidor que o "governo dos legisladores",

O constitucionalismo liberal é a técnica de preservar as vanta-gens das soluções supracitadas, ao mesmo tempo que diminui suas respectivas falhas. Por um lado, a solução constitucional adota o go-verno dos legisladores, mas com duas limitações: uma diz respeito ao modo de legislar, que é controlado por uma severa iter legis\ e a outra diz respeito ao alcance da legislação, que é restringido por uma lei su-perior e, assim, impedido de violar os direitos fundamentais que afe-tam a liberdade do cidadão. Por outro lado, a solução constitucional também possibilita que o governo da lei seja preservado dentro do sis-tema. Embora este último componente do governo constitucional te-nha sido gradualmente substituído pelo primeiro, é bom nos lembrar-mos de que os formuladores das constituições liberais não concebiam o Estado como uma machine à faire lois, uma máquina legislativa, mas que viam o papel dos legisladores como um papel complementar, segundo o qual o parlamento deveria integrar, e não substituir, o pro-cesso de descoberta da lei judicial. Inversamente, também é preciso enfatizar que a independência do judiciário era concebida pelos for-muladores das constituições liberais como independência em relação à política, não como uma outra forma de fazer política.

Na verdade, essa era a intenção que os formuladores das consti-tuições liberais tinham em mente — e não corresponde necessaria-mente aos documentos que elaboraram. Existem também muitas dife-renças significativas entre os sistemas constitucionais. Se nos referir-mos às origens, a constituição tradicional inglesa baseou-se em gran-

de parte no governo da lei, e foi protegida por ele24; a Constituição Americana escrita, apesar das muitas diferenças da prática constitucio-nal britânica, ainda se apoia muito no governo da lei, ao passo que as constituições escritas da Europa foram precedidas pelas codificações promulgadas por Napoleão, e assim se basearam, desde o início, na concepção legislativa do direito. Mas essas diferenças iniciais foram se reduzindo gradualmente, pois hoje existe uma tendência geral — mesmo nos países de língua inglesa — em favor da lei estatutária. Apesar dessa tendência, ainda não podemos dizer que as constituições atuais perderam sua raison d'être como a solução que combina o go-verno da lei e o governo dos legisladores. Embora nossas constituições estejam se desequilibrando cada vez mais em favor da legislação esta-tutária, enquanto forem consideradas como uma lei superior, enquan-to tivermos revisões judiciais, juízes independentes dedicados ao ra-ciocínio legal e, possivelmente, ao processo devido da lei25, e enquanto um procedimento obrigatório que estabelece o método de legislação continuar sendo uma restrição efetiva à concepção da lei como vonta-de pura e simples — enquanto essas condições prevalecerem — ainda dependeremos da solução liberal-constitucional do problema do poder político.

Portanto, tanto os sistemas constitucionais passados quanto os presentes são de fato sistemas liberais. Pode-se dizer que a política li-beral é constitucionalismo26 — um constitucionalismo que procura a solução do problema da liberdade política com uma abordagem dinâ-mica da concepção legal de liberdade. Isso explica por que não pode-mos falar de liberdade política sem nos referirmos ao liberalismo — liberalismo, insisto, não democracia. A liberdade política que desfru-tamos hoje é a liberdade do liberalismo, o tipo liberal de liberdade, não a liberdade precária e duvidosa das democracias antigas. Essa é tam-bém a razão pela qual, ao lembrar os princípios característicos da deontologia democrática, mencionei igualdade, isocracia e autogover-no, mas não a idéia de liberdade.

Claro que é possível derivar a idéia de liberdade do conceito de democracia, mas um tanto indiretamente e através de uma digressão. A idéia de liberdade não deriva da noção de poder popular, e sim do poder igual, da isocracia. É a afirmação "somos iguais" (em poder) que pode ser interpretada como "ninguém tem o direito de mandar em

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mim". Assim, é do postulado da igualdade que podemos deduzir, se quisermos, a liberdade em relação a. No entanto, essa inferência é feita pelos pensadores modernos, não pelos antigos. Na tradição grega, a democracia está muito mais estreitamente associada com isonomía (mesmos direitos) do que com eleutheria (liberdade), e o ideal de po-der popular é muito mais preponderante na lógica interna da sua so-ciedade política. Além disso, liberdade significava para os gregos algo diferente do que significa hoje27. Portanto, é crucial notar que nem nosso ideal nem nossas técnicas de liberdade fazem parte, falan-do em termos estritos, da linha de desenvolvimento da idéia democrá-tica. As democracias liberais modernas exaltam realmente a idéia de uma liberdade do Homem, que inclui a liberdade de todos os homens. Mas essa é uma aquisição da democracia, não um produto seu. Se não nos lembrarmos disso, podemos ser facilmente levados a acreditar que nossa liberdade pode ser assegurada pelo método adotado pelos gre-gos. Não é assim, pois nossas liberdades são asseguradas por uma noção de legalidade que constitui um limite e uma restrição aos prin-cípios democráticos puros. Kelsen, entre outros, compreendeu isso muito claramente ao observar que uma democracia "sem a autolimita-ção representada pelo princípio da legalidade destrói a si mesma"28. Embora a democracia moderna tenha incorporado as noções de liber-dade e legalidade, essas noções, como Bertrand de Jouvenel observa corretamente, "são, em termos de boa lógica, alheias a ela"29. São alheias a ela também em termos de boa historiografia.

11.4 A supremacia do direito em Rousseau

Apresentei três formas de buscar proteção legal para a liberdade política: a forma legislativa, a forma do governo da lei e a forma liberal ou constitucional. Mas dizem que existe uma outra relação, que seria a quarta de minha lista, entre a liberdade e as leis: a autonomia, isto é, fa-zer nossas próprias leis. E como se supõe que a liberdade, enquanto au-tonomia, tenha o placet de Rousseau, muita gente considera ponto pa-cífico ser essa a definição democrática de liberdade e contrapõe, com base nisso, a menor liberdade do liberalismo à maior liberdade demo-

crática, a autonomia. Questiono, em primeiro lugar, se aqueles que equiparam liberdade com autonomia têm motivos para associar essa noção a Rousseau. Em segundo lugar, qual é a liberdade supostamente menor: a liberdade política ou a solução liberal para ela? É evidente que as duas estão sendo, erroneamente, tratadas como se fossem a mes-ma coisa. Em terceiro lugar, eu perguntaria se é correto contrapor liber-dade em relação a com autonomia, pois é difícil ver em que sentido é possível conceber autonomia como uma liberdade política. Gostaria de começar averiguando o que exatamente Rousseau pensou e disse.

Podemos ter dúvidas quanto às soluções de Rousseau, mas não quanto às suas intenções. O problema da política, afirmou Rousseau alto e bom som, "que comparo à quadratura do círculo na geometria, [é] colocar a lei acima do homem"30. Para ele, esse era o problema por-que, como ele disse, só com essa condição o homem pode ser livre: quando obedece às leis, não aos homens31. Rousseau tinha mais certeza disso que qualquer outro. "A liberdade", confirmou ele nas Cartas da montanha, "compartilha o destino das leis; reina ou desaparece com elas. Não há nada sobre o que eu tenha mais certeza do que isso"32. E, como disse Rousseau nas Confissões, a pergunta que se fazia constantemente era "Qual é a forma de governo que, por sua natureza, mais se aproxima e mais fica perto da lei?"33,

Esse era o problema em que Rousseau teve toda a razão em com-parar à quadratura do círculo34. Enquanto nas Cartas da montanha ob-serva que quando "os que administram as leis tornam-se seus únicos árbitros... não vejo que escravidão poderia ser pior"35, no Contrato so-cial sua questão era "Como uma multidão cega, que muitas vezes não sabe o que quer, pois só raramente sabe o que é melhor para si, pode realizar por si mesma um empreendimento grande e difícil como um sistema de legislação?"36. Para Rousseau, essa questão só tinha uma resposta: legislar o mínimo possível37. Foi chegando a essa conclusão com uma convicção crescente durante um certo tempo. Já na Dedica-tória de seu Discurso sobre a desigualdade dos homens, salientou o fato de os atenienses terem perdido sua democracia porque todos pro-punham leis para satisfazer um capricho, ao passo que aquilo que dá às leis seu caráter sagrado e venerável é sua idade38. É esse exatamente o x da questão: as leis a que Rousseau se referia eram Leis com maiús-