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A UTILIZAÇÃO DO DIREITO PENAL NA EFETIVIDADE DA TUTELA DO MEIO AMBIENTE EM FACE DA SOCIEDADE DE RISCO José Renato Martins Doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Advogado e Ex-Delegado de Polícia de Carreira do Estado de São Paulo. Coordenador do Curso de Direito Campus Taquaral da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Teoria Geral do Estado, Direito Constitucional e Direito Penal na Faculdade de Direito na UNIMEP. 1. A NECESSIDADE DA TUTELA PENAL DO MEIO AMBIENTE A tutela do meio ambiente tem sido objeto de preocupação de todos, na medida em que se pode afirmar, sem exagero, que a sobrevivência da espécie humana e sua digna qualidade de vida dependem da sustentação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. É indiscutível, portanto, a importância da sua preservação, decorrendo da consciência da necessidade de proteção já destacada, que cada vez mais vem se acentuando, de modo a refletir no Direito, o qual tem demonstrado interesse pelo meio ambiente, a ponto de merecer tutela constitucional em muitos países. O Brasil, sabidamente, trouxe algumas das mais avançadas regras na busca de preservação desse novo ramo do direito. Entretanto, essa indispensável proteção do Direito se mostra a ponto de merecer a intervenção do Direito Penal? Não seria suficiente a utilização de outras regras que não esse Direito, como, por exemplo, as cíveis e as administrativas? O Direito Penal, pela característica de suas sanções, tendo em seu elenco a mais grave delas, atingindo a liberdade da pessoa, pela conseqüência estigmatizante de uma condenação criminal, repercutindo na dignidade da pessoa, deve ser usado minimamente, por óbvio. Por suas repercussões em tais direitos fundamentais explicitamente garantidos pela Constituição, de forma implícita tem-se como princípio penal o da mínima intervenção do Direito Penal. Assim, somente haverá reserva legal, somente sofrerá incidência de uma norma incriminadora, a conduta que apresentar lesividade, de conformidade com outro princípio penal básico.

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A UTILIZAÇÃO DO DIREITO PENAL NA EFETIVIDADE DA TUTELA DO MEIO

AMBIENTE EM FACE DA SOCIEDADE DE RISCO

José Renato Martins

Doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito

Constitucional pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Advogado e Ex-Delegado de

Polícia de Carreira do Estado de São Paulo. Coordenador do Curso de Direito Campus Taquaral da

Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professor de Teoria Geral do Estado, Direito

Constitucional e Direito Penal na Faculdade de Direito na UNIMEP.

1. A NECESSIDADE DA TUTELA PENAL DO MEIO AMBIENTE

A tutela do meio ambiente tem sido objeto de preocupação de todos, na medida em que se

pode afirmar, sem exagero, que a sobrevivência da espécie humana e sua digna qualidade de vida

dependem da sustentação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

É indiscutível, portanto, a importância da sua preservação, decorrendo da consciência da

necessidade de proteção já destacada, que cada vez mais vem se acentuando, de modo a refletir

no Direito, o qual tem demonstrado interesse pelo meio ambiente, a ponto de merecer tutela

constitucional em muitos países. O Brasil, sabidamente, trouxe algumas das mais avançadas

regras na busca de preservação desse novo ramo do direito.

Entretanto, essa indispensável proteção do Direito se mostra a ponto de merecer a

intervenção do Direito Penal? Não seria suficiente a utilização de outras regras que não esse

Direito, como, por exemplo, as cíveis e as administrativas?

O Direito Penal, pela característica de suas sanções, tendo em seu elenco a mais grave

delas, atingindo a liberdade da pessoa, pela conseqüência estigmatizante de uma condenação

criminal, repercutindo na dignidade da pessoa, deve ser usado minimamente, por óbvio. Por suas

repercussões em tais direitos fundamentais explicitamente garantidos pela Constituição, de forma

implícita tem-se como princípio penal o da mínima intervenção do Direito Penal. Assim, somente

haverá reserva legal, somente sofrerá incidência de uma norma incriminadora, a conduta que

apresentar lesividade, de conformidade com outro princípio penal básico.

Em outras palavras, apenas a conduta que ofender ou colocar em perigo de ofensa um

bem jurídico merecerá a mínima intervenção do Direito Penal. E não é qualquer bem que terá a

tutela desse ramo do Direito, mas tão somente aqueles bens com extrema relevância social, a

ponto de merecerem a mais severa sanção, como é a criminal. Tudo na linha do conhecido

Direito Penal mínimo, ou do Direito Penal necessário.

Muitas vezes, no entanto, as normas gerais, não penais, se mostram insuficientes à

proteção de interesses sociais, impondo-se o socorro do Direito Penal à efetivação da sua tutela.

Como interesse juridicamente tutelado, consoante acentua a norma constitucional

brasileira, no seu artigo 225, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à qualidade

de vida, a ponto de impor-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-

lo às presentes e futuras gerações. A preservação da espécie, como já foi acentuado, depende da

sustentação ambiental. Logo, esse bem de tal extrema importância não pode ficar alheio ao

Direito Penal, cujas regras devem lhe estender a devida proteção.

As infrações contra o ambiente são de massa, contra a coletividade, atentando contra

interesses coletivos e difusos, não só contra bens individuais, como a saúde e a vida das pessoas.

Desse modo, o Direito Penal ambiental incrimina não apenas o colocar em risco a vida, a

saúde dos indivíduos e a perpetuação da espécie humana, mas o atentar contra a própria natureza,

bem que, por si mesmo, deve ser preservado e objeto de tutela, pelo que representa às gerações

presentes e futuras, como já destacado.

No tocante ao bem-interesse protegido, o Direito Penal ambiental difere sensivelmente da

dogmática tradicional. Como acentua RAMIREZ, os bens próprios ao Direito Penal tradicional

eram de fácil determinação, pois surgiam ligados diretamente à pessoa e sua ofensa se mostrava

particularizada e precisa (dano à saúde, à vida, ao patrimônio do indivíduo) e tinham um caráter

microssocial, referindo-se a relações de pessoa(s) a pessoa(s), sendo, assim, de fácil delimitação1.

Com a vida moderna e seu dinamismo, em especial no âmbito econômico, chegou-se à

configuração de bens jurídicos que não estão ligados diretamente à pessoa, dizendo mais com o

funcionamento do sistema. É o caso de bens como a qualidade do consumo e do meio ambiente,

dentre outros, bens jurídicos de determinação mais difícil, pelo que denominados de bens difusos.1 . RAMIREZ, Juan Bustos. Perspectivas atuais do Direito Penal econômico. In: Fascículos de Ciências Penais,

vol. 4, nº. 2. Poá: Sérgio Antonio Fabris, 1.991, p. 3.

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Referidos bens têm relação com todas e cada uma das pessoas do sistema social. A ofensa

ao meio ambiente não se relaciona com uma pessoa, mas com a coletividade, incidindo

difusamente. Há uma acentuada danosidade social. Movem-se, na lição de RAMIREZ, no âmbito

macrossocial2. Em razão da acentuada danosidade social e para solucionar os problemas sociais é

que se mostra indispensável, como ultima ratio3, a tutela penal do meio ambiente.

Estabelecido o mérito à tutela penal, pela relevância do bem-interesse na escala de valores

sociais, necessária se mostra a proteção ao meio ambiente, basicamente:

a) como resposta social, tendo em vista, justamente a natureza do bem-interesse tutelado,

que traspassa o indivíduo, atingindo a coletividade, bem supraindividual, dizendo não só com a

saúde e a vida das pessoas, mas com a perpetuação da espécie humana (vejam-se os efeitos

radiativos de poluição ambiental de que podem decorrer danos genéticos com propagação e

generalização a ameaçar as condições de procriação);

b) como instrumento de pressão à solução do conflito, já se mostrando útil o Direito

Penal, reservado, obviamente, às mais graves violações, como é a agressão ao meio ambiente. O

impacto da criminalização ambiental é expressivo, tendo-se em vista a peculiaridade do

delinqüente ambiental que, mais que o delinqüente comum, é sensível às conseqüências da

sanção penal, tendo em vista o gravame à imagem e o conforto pessoais;

c) como instrumento de efetividade das normas gerais, mostrando-se também útil o

Direito Penal, como resposta social e instrumento de pressão, à efetividade das normas não

penais, de modo que sua implantação, por vezes, face às mais sérias agressões (de dano ou de

perigo ao ambiente), só se concretizará com a instrumentalização da norma penal incriminadora;

d) como instrumento de prevenção, em que o mais expressivo papel do Direito Penal é,

justamente, o de prevenir a ocorrência dos delitos, das ofensas (seja pela causação de dano, seja

pela exposição a perigo) aos bens e interesses juridicamente tutelados. Embora mais destacado

por seu caráter repressivo, o direito denominado “punitivo” é preventivo, caráter esse que mais se

acentua Direito Penal ambiental. Mais importante do que punir é prevenir danos ao meio

ambiente. Pela expressividade do dano coletivo em matéria ambiental, impõe-se reprimir para

2. Ibidem.3 . HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. La responsabilidad por el producto em Derecho Penal.

Valencia: Tirant lo blanch, 1995, p. 21. Conforme os autores: “(...) el Derecho Penal es ciertamente un medio violento de represión, pero también um instrumento de garantia de la libertad ciudadana(...)”.

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que não ocorra o dano. Esta é a função primordial: prevenir, porque, por vezes, de nada adiantaria

punir quando uma danosidade coletiva irreversível já ocorreu.

Destarte, a necessidade de intervenção penal em matéria de proteção do meio ambiente é

tão acentuada a ponto de a norma infraconstitucional, através da denominada Lei dos Crimes

Ambientais (Lei nº 9.605/98) ter recepcionado a norma constitucional (artigo 225) e trazido

importantes impactos jurídicos. A lei reflete os princípios a orientarem o Direito Penal ambiental,

influenciando na tipificação das condutas incriminadas, cujos instrumentos poderão ser utilizados

pelos operadores do Direito como eficazes meios de efetividade da tutela do meio ambiente.

2. AS BASES CONSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE

Levando-se em conta a premente necessidade de intervenção penal em matéria de

proteção ao meio ambiente, deve a referida tutela penal estar necessariamente informada pelos

princípios constitucionais que regem a proteção do meio ambiente, a saber: o princípio da

prevenção e o princípio da precaução, identificados, nesta oportunidade, como as diretrizes

mestras de toda a tutela constitucional do meio ambiente.

A perspectiva de progresso, sobretudo após as transformações advindas com a Revolução

Industrial, considerada como marco histórico e o fenômeno de maior relevância da era moderna,

o entusiasmo com as constantes descobertas científicas e tecnológicas, as inesgotáveis

necessidades humanas de consumo, estimuladas por este novo modelo de desenvolvimento e de

poder fizeram com que, por muito tempo, fossem ignorados os perigos da poluição.

O alerta para a gravidade destes riscos, no entanto, foi dado em 1972, em

Estocolmo/Suécia, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,

promovida pela ONU, contando com a participação de 114 países, que representou um verdadeiro

marco na evolução do Direito ambiental. Tal conferência foi resultado da percepção e

preocupação das nações ricas e industrializadas com a degradação ambiental causada pelo seu

processo de desenvolvimento econômico e progressiva escassez de recursos naturais.

O Brasil, nesse período, em pleno regime militar, adotou postura contrária, defendendo a

necessidade de “crescimento a qualquer custo”, fazendo inclusive declarações, que hoje, pelo

menos, soam absurdas, no sentido de que os pobres “não devem investir em proteção ambiental”

e de que “a poluição é o preço do progresso”. E continuou, então, o Poder Público a dar reiteradas

demonstrações dessa concepção de descaso com as condições ambientais, através da adoção, por

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exemplo, de uma política industrial predatória, revelando, ainda, sua ineficiência para

fiscalização e controle das atividades poluidoras, subestimando, no mais das vezes, os impactos

negativos delas decorrentes e seus alertas, agindo, com criminosa indulgência em relação aos

poluidores, dando mostras, assim, de sua clara opção pela prevalência dos interesses econômicos

em detrimento dos demais bens jurídicos, por mais relevantes que se apresentem.

Nesta concepção, resta evidente que qualquer ideologia de precaução não encontrava

nenhum eco na sociedade, sendo totalmente repelidas eventuais ações que importassem em frear

o crescimento pretendido.

Contudo, com este comportamento – e não poderia ser diferente –, no decorrer dos anos, a

degradação do meio ambiente no Brasil assumiu tons de catástrofe. Florestas foram devastadas e

reduzidas a proporções preocupantes, espécies da fauna entraram em extinção, a qualidade da

água ficou comprometida, o ar se tornou poluído em muitos centros urbanos, as cidades se

tornaram ambientes cada vez mais deletérios, passou-se a testemunhar a ocorrência de desastres

ecológicos de grandes proporções (acidente do Césio 137, em 1987, o qual levou à morte quatro

pessoas e contaminou centenas, em Goiânia, e Vila Socó, em Cubatão), houve uma proliferação

de doenças como anencefalia, silicose, etc., todas relacionadas com a despreocupação no trato do

meio ambiente e, por conseqüência, do ser humano como parte integrante do mesmo.

Apenas recentemente, a sociedade foi induzida à reflexão forçada a respeito dos seus

valores e do seu estilo de vida, sendo as pessoas obrigadas a reconhecer sua inevitável interação

com a natureza, que a prosseguir nesse caminho implicaria em verdadeiro comprometimento da

qualidade de vida e da própria sobrevivência, assim como das futuras gerações. Passou-se, então,

a viver aquilo que veio a ser denominada de “crise ecológica”.

Com efeito, um dos maiores desafios da atualidade é equacionar o crescimento

econômico, a preservação do meio ambiente e a melhoria da qualidade de vida, e adotar o

desenvolvimento sustentável ou sustentado, que pode ser definido como a exploração equilibrada

dos recursos naturais, nos limites da satisfação das necessidades e do bem-estar da presente

geração, assim como de sua conservação no interesse de gerações futuras4.

4. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12. Ed. São Paulo: Malheiros, 2004, passim.

5

Foi justamente neste novo cenário que surgiu no Brasil, a Lei de Política Nacional do

Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), pioneira na América Latina, demonstrando os reflexos dessa

nova postura e o objetivo da implementação desse novo modelo de crescimento.

No Brasil, a prevenção passou a ter fundamento no Direito Positivo a partir da referida lei,

a qual inseriu como objetivos dessa política pública a compatibilização do desenvolvimento

econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico e a

preservação e restauração dos recursos ambientais, com vistas à sua utilização racional e

disponibilidade permanente (artigo 4o, incisos I e VI), inaugurando, pois, a estrutura jurídica para

desenvolvimento de políticas ambientais, tornando incontestável a obrigação de prevenir ou

evitar o dano ambiental quando pudesse ser detectado antecipadamente.

Criou, outrossim, instrumentos para viabilização da implementação desses fins, como a

“avaliação dos impactos ambientais” (artigo 9o, inciso III), que, inclusive, posteriormente foi

consagrada a nível constitucional, através de sua expressa previsão no artigo 225, parágrafo 1o,

inciso IV, da Constituição Federal do Brasil.

A referida Lei de Política Nacional do Meio Ambiente inovou a estrutura jurídica para

desenvolvimento de políticas ambientais, tornando incontestável, com o princípio da prevenção, a

obrigação de prevenir ou evitar o dano ambiental, quando pudesse ser detectado

antecipadamente, criando instrumentos para viabilização da implementação dos fins instituídos5.

A Constituição Federal de 1988, pouco depois, incorporou este princípio e foi além,

impondo inclusive medidas para controle do risco para a vida, a qualidade de vida, a fauna e a

flora, enfim, o risco para o meio ambiente, atribuindo ao Poder Público o dever de prevenir na

origem os problemas da poluição e de degradação da natureza, inclusive com a antecipação da

ação administrativa eficiente para proteger o homem e a biota6.

É o que se infere do disposto no artigo 225, parágrafo 1o, incisos V e VII, ao obrigar a

precaução em relação ao risco de dano ambiental. Dos dispositivos citados, vale observar o artigo

225, parágrafo 1o, inciso V, constitucional, que se amolda inteiramente ao tema tratado, uma vez

que dele decorre a obrigatoriedade da intervenção do Poder Público para controle da geração de

resíduos perigosos e sua administração adequada, ao prever expressamente que, para assegurar a

5 MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., pp. 55-56.6 Idem, pp. 122-123.

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efetividade do dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado

incumbe ao Poder Público controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,

métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

Entretanto, em 1981, o princípio da precaução ainda não havia sido introduzido

expressamente no ordenamento jurídico brasileiro.

Vale salientar, todavia, que o princípio da precaução está presente no Direito alemão

desde os anos de 1970, ao lado do princípio da cooperação e do princípio do poluidor-pagador. O

relatório ambiental de 1976 do governo alemão já destacava a importância deste princípio7.

A Constituição Federal do Brasil de 1988, depois, incorporando estes princípios e

impondo inegável avanço, reservou capítulo próprio ao meio ambiente, Capítulo VI, Título VIII

(“Da Ordem Social”), estabelecendo em seu artigo 225, caput, que: “Todos têm direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se

ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A defesa do meio ambiente foi consagrada, ainda, em diversos outros dispositivos, como é

o caso do artigo 170, inciso VI, da Carta Magna como um dos princípios da ordem econômica,

coexistindo e interagindo esses conceitos, portanto, harmonicamente no âmbito constitucional.

Conforme acentua FARIAS, pelo fato de comporem o ordenamento sistêmico, tanto as

normas ambientais como as de outros ramos jurídicos, que se relacionam com o amplo conceito

de meio ambiente, não podem ser visualizadas ou aplicadas sem se levar em conta a ideologia

adotada na Constituição da República, que permite que se fale em Estado de Direito ambiental8.

Consigna FARIAS, outrossim, que:

O disposto no artigo 225 da Constituição Federal encerra, sem sombra de dúvidas, normas-objetivo determinantes dos fins a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade em matéria ambiental para a indução e direção de comportamentos, por meio de políticas públicas, possibilitando, destarte, seja efetivada a ênfase na prevenção do dano ambiental [...]9.

7 . Texto de autoria do Prof. Dr. Gerd Winter, referente à palestra “Princípios Ambientais do Direito Comunitário Europeu”, proferida em 08 de setembro de 2003, por ocasião da realização do II Curso de Direito Ambiental Internacional, na Universidade Metodista de Piracicaba.

8 . FARIAS, Paulo José Leite. Competência federativa e proteção ambiental. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 226.

9. Idem, p. 247.

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As normas-objetivo em sede constitucional-ambiental representam, pelo exposto, a

viabilidade da prevenção do dano ambiental como vértice das políticas públicas dirigidas à

preservação do meio ambiente.

Tais normas exigem uma ação positiva do Estado não apenas no sentido de controlar e

intervir nas ações degradadoras do ambiente, mas, especialmente, no sentido de implementação

de políticas públicas dirigidas à defesa e preservação do ambiente, além de uma ação negativa,

consubstanciada na proibição dirigida ao Estado de praticar ações atentatórias ao equilíbrio

ecológico ou que coloquem em risco os elementos ambientais, sujeitas, pois, a controle

jurisdicional. Evidentemente, também aos agentes privados (sociedade) incumbe-se a preservação

e a defesa dinâmicas do ambiente, compreendendo deveres não só de não atentar contra o meio

ambiente (dever de abstenção), como o de impedir que atentados se realizem (dever de ação)10.

Outro marco para a evolução do Direito ambiental foi a “Conferência das Nações Unidas

sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, conhecida

como “ECO 92”, que teve como um dos resultados a Declaração do Rio de Janeiro, contendo

com 27 princípios, dentre eles:

Princípio 15: “A fim de proteger o meio ambiente, a abordagem preventiva deve ser amplamente aplicada pelos Estados, na medida de suas capacidades. Onde houver ameaças de danos sérios e irreversíveis, a falta de conhecimento científico não serve de razão para retardar medidas adequadas para evitar a degradação ambiental”.

Prevenir a degradação do meio ambiente no plano nacional e internacional é, portanto,

concepção que passou a ser aceita no mundo jurídico especialmente nas últimas três décadas,

quando se inovou o tratamento jurídico das questões ambientais, procurando interligá-las e

sistematizá-las, evitando-se a fragmentação e até o antagonismo de leis, decretos e portarias.

Trata-se de princípio basilar do Direito ambiental, que tem como primado “a dúvida sobre o

impacto ambiental e a adoção de medidas destinadas a salvaguardar o meio ambiente”11, principalmente diante

do reconhecimento de que os danos ambientais, na maioria das vezes são irreversíveis e

irreparáveis.

10. Idem. p. 248.11. SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constitucionalização dos Princípios de Direito Ambiental. In: SAMPAIO, José

Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de Direito Internacional: na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 59.

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O princípio da precaução revela uma ética da decisão necessária em um contexto de

incerteza, e sua aplicação é um dos sinais de transformações filosóficas e sociológicas que

caracterizaram o final do século XX.

Exemplo a ser citado como um dos precursores em termos de precaução é o da redução

das emissões de determinadas substâncias na década de 1980, dentre elas o CFC

(clorofluorcarbono) diante do comprometimento da camada de ozônio e da possibilidade de

danos que tais produtos representavam.

Atualmente, quer parecer evidente que os objetivos do Direito ambiental são

fundamentalmente preventivos.

Também observa MIRRA, que “o princípio da precaução veio, sem dúvida, reforçar o princípio da

prevenção”12.

E justifica o acolhimento desta orientação, ponderando:

Isto porque, em muitas situações, no dia em que se puder ter certeza científica absoluta dos efeitos prejudiciais de determinadas atividades potencialmente degradadoras, os danos provocados ao meio ambiente e à saúde e segurança da população terão atingido tamanha amplitude e dimensão que não mais poderão ser revertidos ou reparados –serão já nessa ocasião irreversíveis. Daí, então, a necessidade de não se correrem riscos13.

Os princípios da prevenção e da precaução, como alerta DERANI, são, portanto, a

essência do Direito ambiental, podendo ser considerados os mais importantes dos princípios

informadores deste recente ramo do Direito14.

Tal assertiva se explica porque o dano ambiental, tecnicamente considerado, é, na maior

parte das vezes, irreparável. Dessa irreparabilidade decorre um outro aspecto, que é o da

irreversibilidade da lesão verificada e da necessidade, se verificada, no caso concreto, esta

situação, de ter que se aceitar medidas compensatórias à ofensa causada ao invés de se proceder à

recomposição do próprio bem lesado. Dada a natureza dos bens ambientais a sua integral

reparação é, na maior parte dos casos, impossível ou de difícil implementação.

Daí se dizer que o objetivo fundamental do Direito ambiental é a prevenção do dano,

adotando-se uma forma de tutela que possa atender à prevenção das lesões ao meio ambiente e,

12. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Direito Ambiental: O Princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 6, nº 21, janeiro-março 2001, pp. 92-102.

13. MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 102.14. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad. 1997, p. 165.

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ao mesmo tempo, possa atender a uma utilização racional dos bens ambientais, adotando-se

medidas de precaução contra os riscos que o uso desses bens possa lhes trazer.

Conclui-se então, que os princípios constitucionais da prevenção e da precaução como

linhas mestras do Direito ambiental vão refletir de tal maneira no ordenamento jurídico que irão

informar toda a tutela do meio ambiente, considerando-se todos os instrumentos a serem

utilizados, nos exatos termos do parágrafo 3º do artigo 225, da Constituição Federal brasileira,

instituindo-se não propriamente uma tutela penal, civil ou administrativa somente, mas sim a

responsabilidade ambiental de caráter constitucional.

A responsabilidade ambiental instituída no citado dispositivo constitucional é informada,

antes de tudo, pelo princípio da prevenção-precaução, dispositivo aquele que obriga, antes de

tudo, a que sejam adotadas medidas de prevenção do dano ao invés de, em um momento

posterior, quando da ocorrência do próprio dano, buscar-se a reparação pela lesão causada.

O que ora se denomina responsabilidade ambiental é uma visão mais global da tutela do

meio ambiente. Na linha da proteção integral ao bem ambiental, preconizada pelo já citado

dispositivo constitucional, deve-se entender que a tutela do meio ambiente deve atentar para os

postulados da responsabilidade civil, para os princípios de direito penal e informar-se pelas regras

de direito administrativo (artigo 225, parágrafo 3º, c.c. o caput, in fine). Somente um enfoque

amplo e includente da tutela do meio ambiente é que pode atender ao princípio constitucional da

proteção integral previsto no já mencionado dispositivo.

Nessa linha, toda tutela do ambiente, quer no aspecto da responsabilização civil, quer no

da administrativa, quer no da penal, deverá atentar para o problema da prevenção do dano

ambiental e da precaução contra os riscos ao ambiente, exatamente no sentido do preconizado por

HASSEMER quando identifica que a tutela do meio ambiente reclama um direito de caráter

preventivo. A partir disso, ele defende que só um novo ramo de direito, por ele denominado

direito de intervenção, poderia, ao conjugar todos os elementos citados, numa visão globalizada

da tutela do meio ambiente solucionar satisfatoriamente a tutela preventiva dos bens ambientais15.

15. HASSEMER, Winfried. A preservação do meio ambiente através do Direito Penal. Conferência proferida no I Congresso Internacional de Direito do Ambiente, adaptada para publicação por Paulo de Sousa Mendes. Lusíada – Revista de Ciência e Cultura, série Direito, n° especial. Porto: 1996, p. 328. Referido autor apresenta seis principais características deste novo direito de intervenção, a saber: a) atuação preventiva à consumação de riscos, pensado, portanto, como um direito de caráter preventivo, ao contrário do Direito Penal, que é repressivo; b) dispensa de mecanismos de imputação individual de responsabilidades, admitindo-se pois, a imputação de responsabilidades coletivas, desde que as penas privativas de liberdade não venham a integral o rol das sanções aplicáveis; c) rol de

10

Na verdade, o que HASSEMER denomina de direito de intervenção pode ser identificado,

à luz do direito positivo pátrio (artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição), como responsabilidade

ambiental constitucional, isto é, o conjunto de todas as medidas e instrumentos (cíveis, penais e

administrativas) postos à disposição para efetivar uma tutela preventiva do meio ambiente.

3. O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO

Inicialmente, urge frisar que a sociedade caracterizada pela pós-modernidade é marcada

pela indeterminação e pela instabilidade geradas pela falta de segurança e pela possibilidade

premente do dano em face do risco inerente às ações.

Nesse sentido, surge o Direito como a estrutura de um sistema que estabiliza expectativas

normativas, produzindo sociedade através do uso da comunicação em um âmbito especial da

diferenciação social16 (diferenças demarcadas entre Direito e não-Direito17).

Mais especificamente, o Direito Penal opera através do estabelecimento de normas e de

penas a partir da compreensão comunicativa. Através dessa compreensão, o mesmo assume a

função de mantença das expectativas quanto aos interesses tutelados. Em outras palavras, parece

fundamental para o Direito Penal a manutenção da eficácia do ordenamento jurídico.

sanções rigorosas, a fim de decretar a dissolução de entes coletivos, encerrar empresas poluidoras, suspender as respectivas atividades, entre outra medidas; d) atuação global, não se restringindo apenas a resolver casos isolados; e) caráter flanqueador do Direito Penal, destinado a dar cobertura a certas medidas de proteção ambiental; e, por fim, f) obrigação de minimizar os danos, garantindo-se isto através de soluções inovadoras, como, por exemplo, a exigência de constituição de fundos de indenização coletivos, por parte de quem lidar com produtos perigosos. HASSEMER, Winfried, op. cit., pp. 328-330.

16. GIORGI, Raffaele de. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998, p. 27.

17 . Conforme LUHMANN, o Direito deve ser concebido como um sistema autopoiético. Por um lado, é normativamente fechado, e por outro, aberto, cognitivamente, ao ambiente. O ambiente é o ser humano, isto é, ele gravita circundante em todo o sistema social, que é dividido em vários subsistemas. Esses subsistemas formam uma sociedade complexa, que é a marca das sociedades contemporâneas. Todavia, cada subsistema é também um sistema reflexivo, ou seja, auto-referencial ou autopoiético. O que está “fora” desses sistemas é o ambiente. Cada um desses sistemas é para o outro complexo e contingente. A relação sistema/ambiente é operacionalizada, considerando as diferenças. Mormente para compreender o todo para conhecer as partes, ou compreender as partes para conhecer o todo. Fala-se, agora, em diferenças, que operam o desencadeamento da relação sistema/meio. O Direito constitui-se num sistema, que possibilita a estabilização das relações, neutralizando as contingências e procurando oferecer um mínimo de segurança em face das expectativas frustradas de uma conduta contrária ao direito. Por isso, não parte da parte e nem parte do todo. A premissa é a relação sistema/ambiente. O meio ambiente atua como fundamento do sistema. Sendo cada sistema autônomo e “fechado”, reduz as possibilidades, ou seja, reduz a complexidade extraída do meio ambiente, para operar uma decisão concebida no seu anterior e abrir-se novamente ao ambiente, é uma relação de interdependência, sem, entretanto, serem dependentes. As decisões tomadas no interior de cada sistema são definidas por um código binário. Os sistemas possuem um código binário paradoxal. No Direito, o código binário é lícito/ilícito, ou Direito/não Direito. A função do sistema jurídico é dizer se uma determinada relação social é lícita ou ilícita, segundo a produção e reprodução do Direito por meio do próprio Direito. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Tradução de Gustavo Bayer. V. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 66.

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Porém, todas as normas têm aspecto valorativo, mas não “a priori”. No agir comunicativo,

cria-se a realidade do Direito, sendo que a valoração apresenta como fundamento o indivíduo,

fazendo com que o Estado tenha a sua atuação limitada pela dignidade humana. E tratando-se de

uma sociedade de risco, a intervenção do Direito Penal encontra o limite na imputação objetiva.

Bem verdade, o Direito Penal na sociedade de risco (caracterizada pela mudança no

potencial dos perigos atuais em relação aos de outras épocas, os quais podem atingir dimensões

maiores, e que possui complexidade organizativa das relações de responsabilidade) deve estar

adaptado para conter a atribuição de responsabilidade penal a partir das categorias dogmáticas e

das regras da imputação que sejam adequadas aos princípios teóricos do sistema. Desse modo, o

que não for adequado ao sistema e seus princípios, deve ficar “fora do Direito Penal” e buscar,

portanto, outras formas de intervenção legítima.

Nesse sentido, BUERGO enfatiza que:

... la finalidad de protegerse frente a los riesgos y procurar más seguridad a través del Derecho penal puede mantenerse en la medida en que sea compatible con los principios básicos del Derecho penal de un Estado de Derecho y con aquellos principios y categorías dogmáticas que posibiliten y aseguren en mayor medida una atribución de responsabilidad adecuada y coherente con tal modelo18.

18. BUERGO, Blanca Mendoza. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 52.

12

Em consonância com a discussão que se apresenta acerca das particularidades da

sociedade contemporânea, caracterizada pelo fim das certezas e pelo predomínio do risco que é

implementado pela complexidade das relações sociais, o Direito Penal, legitimado pelo Estado

Democrático de Direito, surge, dogmaticamente, capaz de atender às expectativas de segurança se

sustentado pelos postulados básicos norteadores de seu sistema.

Interessante notar que a sociedade de risco tem uma característica marcante, no sentido de

que o risco atinge todos os ramos do Direito, onde a tecnologia e a evolução científica estão

presentes a todo o momento na vida do ser humano, notando-se, porém, que o Direito não

consegue acompanhar essa evolução tecnológica.

Outras características da sociedade de risco são importantes registrar, a saber:

a) a presença do perigo, que não pode ser definido sob o prisma do Direito;

b) o perigo é inerente à complexidade das relações humanas, que normalmente conduz o

homem ao isolamento;

c) a sensação de insegurança também é inerente nesse tipo de sociedade (o ser humano

sente – cria – um perigo em tudo), deixando o Direito de se preocupar com o individual.

Destarte, o Direito Penal deve buscar instrumentos nas idéias funcionalistas para se

trabalhar esse risco e esse perigo.

Como destaca BECK, no final do século XX, a natureza, esgotada e submetida ao homem,

deixa de ser fenômeno externo, para se constituir em um fenômeno interno, transformando-se de

fenômeno dato, para fenômeno produzido. Os processo avançados de produção passam a se

constituir fontes geradoras de graves riscos ao meio ambiente e, por conseqüência, a própria vida

na Terra. Os riscos que hoje surgem são caracterizados pela globalização e ameaça irreversível19.

A tomada de consciência dessa nova conjuntura exige medidas urgentes. A elaboração de

estratégias para a contenção dos riscos gerados pela própria humanidade torna-se condição para a

sua existência futura. E veja-se que aqui já não há diferenças de nacionalidade, cultura, padrão

social; todos, indistintamente, tornam-se objetos da nova ameaça, que nas palavras de BORGES,

19. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. 2ª ed. Madrid: Siglo XXI de España, 2002, p. 28.

13

lança um desafio que deve ser aceito: “se impõe que a humanidade, se quiser ter futuro, se tem de tornar

sujeito comum da responsabilidade pela vida”20.

Em face de tal cenário21, não surpreende o anacronismo vivido pelo Direito Penal. Este,

fundamentado nos princípios liberais do Iluminismo e de cunho marcadamente antropocêntrico,

foi elaborado para tutelar os bens jurídicos tradicionais, como a vida, a integridade física, a saúde,

o patrimônio, de agressões humanas próximas e definidas22, enquanto que, no atual universo pós-

industrial, as ações humanas, potencializadas pelo desenvolvimento da razão técnico-instrumental

alcançam novas dimensões, em relação ao espaço-tempo peculiares, em que os riscos globalizam-

se e geram danos muitas vezes diferidos, atingindo novos bens jurídicos e cuja lesividade pode

atingir a gravidade externa da extinção da vida no planeta.

4. INSTRUMENTOS JURÍDIOS NECESSÁRIOS PARA A EFETIVIDADADE DA

TUTELA PENAL DO MEIO AMBIENTE

Diagnosticada a sociedade de risco, com o fim das certezas e o predomínio do risco, sai de

cena o Estado-segurança e emergem, por conseqüência, a insegurança e o medo, ganhando força

os princípios da prevenção e da precaução.

Com as incertezas da sociedade do risco, para que se possa falar em futuro, deve-se

sempre procurar saber ou se informar sobre os riscos (princípio da prevenção). E, sendo o caso de

verossimilhança de incerteza sobre a ocorrência e a gravidade dos riscos, deve-se ter a obrigação

tanto de se abster, quanto de redobrar a prudência (princípio da precaução).

Além do prisma do ser humano individualmente considerado, há que se entender sob o

prisma coletivo até que ponto o Direito Penal deve intervir junto às pessoas que criaram o risco.

Diante da acentuação dos riscos na sociedade complexa (pós-industrial) e da insegurança

nela instalada, surgem, freqüentemente, instrumentos para incrementar a precaução, em especial,

as chamadas normas penais em branco e os denominados crimes de perigo, precipuamente os de

20. BORGES, Anselmo. O crime econômico na perspectiva filosófico-teológica. In: Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 10, fasc. 1, jan.-mar., 2000, p. 13.

21. Esta situação demonstra, pelos riscos e problemas advindos da moderna civilização, que a sociedade se encontra estruturada sob o esquema do “risco-segurança”. HERZOG, Felix. Los limites del Derecho Penal para controlar los riesgos sociales. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 46, 1. Madrid: Poder Judiciário, 1993, p. 318.

22. DIAS, Jorge Figueiredo. O Direito Penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade de risco”. In: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares. Coimbra: Editora Coimbra, 2001, p. 6.

14

perigo abstrato, pretendendo-se, com isso, proibir condutas que, a despeito de não estarem ligadas

concretamente à realização de futuros danos – típico do crime de perigo concreto –, já

correspondem, por si mesmas, a certa danosidade social, em razão, sobretudo, da incerteza da

ocorrência e da gravidade dos riscos que possam advir de tais condutas.

A propósito, tratando-se da penalização de condutas atentatórias ao meio ambiente,

BIDASOLO informa que sua tutela penal é caracterizada pelos seguintes traços:

a) por ser el resultado de una dirección actual de Política criminal de claras tendencias crininalizadoras; b) por formar parte de la también propensión del legislador a proteger bienes jurídicos supraindividuales, y c) por construirse mediante a técnica de los llamados “delitos de peligro” y también con frecuencia mediante la técnica de las llamadas “leyes penales en blanco”23.

Logo, a tutela do meio ambiente deve ter como objetivo a prevenção do dano ao invés da

busca à posterior reparação ou recomposição dos bens lesados. A linha preventiva de atuação tem

por fundamento o problema da difícil reparação, concretamente, dos danos ao meio ambiente.

Considerando que a Constituição Federal prevê, em seu artigo 225, parágrafo 3º, a tutela

penal do meio ambiente, bem como que essa forma de tutela deverá, antes de tudo, ser informada

pelos princípios norteadores da proteção dos bens ambientais, a atuação preventiva deve ser

buscada como forma de se efetivar, na prática, o princípio da prevenção-precaução.

Nessa linha, a criminalização de condutas potencialmente perigosas, punindo-se o agente

antes mesmo da consumação do dano, mas ainda quando sua conduta apenas ameaça o bem

ambiental, surge como a melhor forma de se atender aos referidos princípios, tratando-se, pois, de

uma verdadeira antecipação da proteção do bem.

Trata-se, sob o ponto de vista ora retratado, de um aspecto do fenômeno da expansão do

Direito Penal vinculada à consolidação da moderna sociedade de risco, com vistas a um novo

modelo de Direito Penal da segurança do cidadão24.

O Direito Penal moderno, com sua utilização cada vez mais intensa dos crimes de perigo,

pode ser entendido como uma resposta à complexidade e presença das situações de perigo na vida

moderna25. E para dar cobertura a estas novas formas de risco o legislador adianta a fronteira da

23 . BIDASOLO, Mirentxu Corcoy. Delitos de peligro y protección de bienes supraindividuales: nuevas formas de delincuencia y reinterpretación de tipos penales clásicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 63.

24. RIPOLLÉS, José Luis Díez. De la sociedad del riesgo a la seguridad ciudadana: un debate desenfocado. In: Revista Eletrónica de Ciencia Penal y Criminología, nº 7, 1. Barcelona: 2005, p. 2. Disponível na internet: http://criminet.urg.es/recpc. Acessado em: 15/06/06.

25. HERZOG, Felix, op. cit., p. 317.

15

proteção penal, de modo que os códigos penais e as legislações penais extravagantes abordam a

punição de condutas cada vez mais afastadas do momento da efetiva lesão do bem jurídico e onde

o elemento “resultado”, tradicionalmente entendido como a modificação produzida no mundo

exterior como conseqüência da ação típica, começa a adquirir perfis cada vez mais difusos26.

Além da circunstância de atuar como tutela penal antecipada, a eficácia do crime de

perigo na proteção do meio ambiente também se consubstancia no fato de ser um estimulante

negativo às práticas danosas, na medida em que interfere diretamente no iter da conduta tendente

a causar dano ao meio ambiente, antes que este efetivamente se concretize.

Justamente em razão do desejo de antecipação da tutela penal a estágios iniciais é que se

fundamenta essa transformação dos tipos penais em matéria de meio ambiente. E ainda, mostra-

se preferível nessa seara a adoção de delitos de perigo abstrato, porquanto existem dificuldades

associadas à utilização de tipos de perigo concreto, em particular no que diz respeito à prova da

relação de causalidade entre a conduta isolada individual e a produção de um perigo concreto.

Outro importante instrumento apto a gerar uma efetiva tutela penal ambiental, consiste na

formulação típica dos delitos ecológicos com a utilização das leis penais em branco, como técnica

de integração normativa do Direito Penal no modelo institucional do meio ambiente, de modo

que as normas penais em branco acabam remetendo a concreta determinação do tipo às leis ou

outras disposições de caráter geral.

No Direito Penal ambiental verifica-se a dependência em face do Direito Administrativo,

o que apresenta como corolário a obrigatoriedade do recurso ao reenvio a elementos extra-penais

na formulação da norma incriminadora27.

Para HASSEMER, o Direito Penal se transforma, inafastavelmente, em um instrumento

auxiliar do Direito Administrativo28, mesmo porque apenas as normas regulamentares de cunho

26. AGUADO, Paz Maria de la Cuesta. Causalidad en los delitos contra el medio ambiente. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 12.

27. Nesse sentido: COSTA, Daniela Carvalho de Almeida da. Desenvolvimento sustentável e proteção penal do meio ambiente no Mercosul. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2001, p. 28; COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal ecológico. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 79; PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 33; RODRIGUES, Anabela Miranda. Direito Penal do ambiente – uma aproximação ao novo direito português. In: Revista de Direito Ambiental, ano 1, abr./jun. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 20; SILVEIRA, Renato. Direito Penal supra-individual: interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 137.

28. HASSEMER, Winfried. A preservação do ambiente através do Direito Penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 22, abr./jun. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 31.

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administrativo podem fixar os limites do permitido e do proibido. Sendo assim, o Direito Penal

não pode deixar de se valer das normais penais em branco para colmatar, por meio do reenvio a

normas administrativas, os lindes dentro dos quais a conduta é de se considerar ilícita, como

forma de delimitação do tipo penal29, em especial quando o assunto é a tutela do meio ambiente.

Efetivamente, o desenvolvimento industrial e o incremento de novas tecnologias têm sido

fatores não somente de perturbação, mas também autênticos instrumentos de destruição que tem

pressionado o Estado a promover regulamentações jurídicas que vão do administrativo ao penal.

A proteção ao meio ambiente por meio da via (extrema) do recurso ao Direito Penal é reflexo de

uma das linhas de atuação dirigidas à luta contra a devastação da natureza, que tem optado pela

utilização de todos os meios jurídicos de que o Estado dispõe.

A propósito da utilização das normas penais em branco, nesse contexto, SCHÜNEMANN

esclarece que a essa problemática especial está sendo tratada somente de maneira superficial, e

isto há décadas30. Através da técnica das normas denominadas leis penais em branco o legislador

penal tipifica delitos cujos supostos de fato se remetem (com remissões de maior ou menor

alcance) a outras instâncias administrativas, o qual apresenta, em alguns aspectos, importantes

problemas de legitimidade constitucional31.

Por sua vez, diante das dificuldades de prova que podem surgir acerca da qualificação de

uma substância como lesiva, questiona-se que valor podem ter as prescrições administrativas

determinadoras de riscos, isto é, de valores de emissão permitidos e até que ponto devem vincular

o juiz penal para determinar o perigo32. É aqui que se situam funcionalmente os denominados

valores-limite, a partir dos quais se define a linha divisória da licitude ou ilicitude da atividade33.

Importante frisar com relação a essas disposições, que como as mesmas contêm informes

periciais comprovados cientificamente, constituem valiosas fontes de conhecimento e pontos de

apoio para o Judiciário34.29. PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Proteção penal do meio ambiente – fundamentos. São Paulo: Atlas,

2000, p. 95.30. SCHÜNEMANN, Werner. Las reglas de la técnica en Derecho Penal. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias

Penais, t. 47, 3. Madrid: Poder Judiciário, 1994, p. 309.31. Em concreto sobre este tema específico, ver: DELGADO, Esteban Mestre. Limites constitucionales de las

remisiones normativas en materia penal. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penais, t. 38, 3. Madrid: Poder Judiciário, 1985, p. 503 e s.

32. AGUADO, Paz Maria de la Cuesta, op. cit., p. 268. 33. Ibidem. 34. TIEDEMANN, Klaus. Relación entre Derecho Penal y autorización jurídico-administrativo. El ejemplo del

Derecho Penal del ambiente. Tradução de J. L. De la Cuesta Arzamendi. In: Protección internacional del medio

17

É certo, por outro lado, que a infração da norma administrativa que impõe os valores-

limite pode funcionar como “indício de perigo”, o qual haverá de ser ratificado com através de

outros meios de prova adequados em Direito.

No entanto, sem prejuízo do que a lei exige como elemento típico da infração às

disposições caráter geral, a prova da colocação em perigo tem que ser efetuada caso a caso, sem

que o juiz se ache vinculado aos limites impostos administrativamente35.

Destarte, a formulação típica do delito contra o meio ambiente parece mesmo reclamar o

reenvio próprio às leis penais em branco, como técnica de integração normativa do Direito Penal

no modelo institucional do meio ambiente.

5. CONCLUSÃO

A proteção penal do meio ambiente é importante e vem ao encontro da característica

expansiva da proteção dos bens relevantes para a sociedade através do Direito Penal, em face da

sociedade pós-industrial que se apresenta na atualidade.

Diante do reconhecimento da necessidade de se proteger o meio ambiente como espaço

natural em que a vida se desenvolve e se a vida humana somente pode vingar (desenvolver-se

bem) em torno de um meio ambiente adequado, deve-se adotar instrumentos suficientes para

conceder efetividade à tutela penal do meio ambiente. Para tanto, há que se utilizar dois, em

particular: os delitos de perigo (especialmente, de perigo abstrato) e as normas penais em branco.

Por derradeiro, urge registrar que no terreno dos delitos contra o meio ambiente surge

uma especial relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, haja vista que o chamado

“Direito Penal do meio ambiente” constitui a resposta básica do ordenamento jurídico às mais

graves vulnerações do equilíbrio da natureza, sem prejuízo do importante papel que nesta ordem

das coisas desempenha o Direito administrativo sancionador.

ambiente y delito ecológico. Bilbao: UPV, 1987, p. 47.35. AGUADO, Paz Maria de la Cuesta, op. cit., p. 272.

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