O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS...
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O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO DIREITO
BRASILEIRO: UMA VISÃO GERAL.
JOSÉ RENATO MARTINS
Doutorando em Direito Penal pela Universidade de São
Paulo – USP. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP.
Advogado e Ex-Delegado de Polícia de Carreira do
Estado de São Paulo. Coordenador do Curso de Direito
Campus Taquaral da Universidade Metodista de
Piracicaba – UNIMEP. Professor de Teoria Geral do
Estado, Direito Constitucional e Direito Penal na
Faculdade de Direito na UNIMEP
RESUMO
Este trabalho foi realizado com o objetivo de apresentar o surgimento, a evolução e os
fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no mundo jurídico, em especial do
Brasil, onde se procurou também registrar os vários instrumentos criados para controlar a
constitucionalidade.
Nesse contexto, revelaram-se os tipos básicos de sistemas de controle de
constitucionalidade em voga nas nações civilizadas, entre elas o Brasil, destacando-se igualmente
o modelo do controle constitucional brasileiro, seus aspectos principais e os instrumentos que
proporcionam o controle de espécies normativas infraconstitucionais e infralegais em face da
Constituição Federal.
Palavras-chave: CONSTITUIÇÃO – CONTROLE – CONSTITUCIONALIDADE – LEIS –
ATOS NORMATIVOS – TIPOLOGIA – SISTEMAS – INSTRUMENTOS.
1. INTRODUÇÃO
Cada nação organiza-se em sociedade por meio do estabelecimento de normas básicas de
convívio, podendo tais normas ser escritas ou não. O documento escrito que contém as regras
fundamentais para o relacionamento pacífico entre os cidadãos é o que se denomina Constituição.
Reunindo disposições obrigatórias para todos, a Constituição essencialmente organiza o governo
do país e os seus respectivos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como assegura
aos cidadãos uma série de direitos e garantias, inclusive contra a opressão do próprio governo.
Todas as leis, decretos e outros atos governamentais, não podem contrariá-la, porque a
Constituição é a lei mais importante de todas – chamada de “Lei das leis” –, que legitima tanto a
atividade legislativa como a administrativa. Por esse motivo, a própria Constituição é dotada de
mecanismos de auto-proteção, que permitem que se reconheça, mesmo em tese, a invalidade,
também chamada de inconstitucionalidade, das leis e atos que a contrariem. Nesse sentido,
constitui controle de constitucionalidade o exercício concreto desses mecanismos de auto-
proteção, por meio da fiscalização e repressão a leis e atos inconstitucionais.
Sendo assim, o controle de constitucionalidade das leis consiste, basicamente, na
verificação da adequação de determinado ato normativo aos termos da Constituição Federal.
Essa adequação é, na verdade, fruto do princípio da supremacia constitucional, e ocorre
porque cada ordenamento jurídico possui uma norma fundamental responsável por conferir
unidade a todas as outras.
Nos Estados Democráticos de Direito, tem-se como critério de essencialidade a
obediência aos preceitos formais ou materiais, regentes do Direito, explícitos ou implícitos na
Carta Magna, que é a “viga mestra” do ordenamento jurídico vigente.
Não é por outra razão que se diz ser a Constituição o fundamento de validade de todas as
outras normas, que por sua vez devem ser interpretadas de acordo com os princípios nela
estabelecidos e com ela se harmonizar.
Vale aqui a lição de KELSEN:
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas
ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas
jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de
uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja
produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma
fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o
fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se
começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o
escalão de Direito positivo mais elevado.1
Nessa perspectiva, torna-se clara a necessidade de adoção, por parte de um Estado
Democrático de Direito, em seu ordenamento jurídico, de meios de se controlar a
constitucionalidade de leis e atos normativos em sentido estrito, de modo a sempre preservar a
autoridade da Carta Magna e, em última análise, a própria existência da Federação, com suas
regras e repartições de competências, sim, pois para que se preserve o federalismo desejado pelo
constituinte, mister se faz que o controle de constitucionalidade das leis seja eficiente e rigoroso.
A propósito, pondera, a este respeito, REPETTO:
Por la estructura propia de los estados federales se requiere, si se desea que sea efectivo el
régimen federal, un control de constitucionalidad de la actividad legislativa. Nos explicamos, la
distribución de competencias legislativas que contempla toda constitución federal entre las
autoridades centrales que dictarán las leyes federales y los diversos estados que realizan su
actividad legislativa a través de las llamadas leyes estaduales, necesita de un organismo
controlador que esté capacitado para establecer cuándo una ley federal trata materias que son de
competencia de los estados y cuándo una ley estadual contiene disposiciones sobre asunto que
debe conocer el legislativo federal.2
Em suma, apresenta-se o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos
como corolário do Estado de Direito, pois representa a garantia de que todo e qualquer ato estatal
que ofenda a Constituição possa a vir ser solenemente declarado nulo e ineficaz. Trata-se,
outrossim, de um mecanismo de garantia de que os direitos e garantias individuais fazem parte da
Lei Maior não como mera norma constitucional programática, que enuncia apenas certas
diretrizes ao Estado, mas que existem para serem respeitados por todos.
1 . KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 247.2 . REPETTO, Raul Bertelsen. Control de constitucionalidad de la ley. Santiago: Jurídica, 1969, p. 21.
2. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
2.1. FUNDAMENTOS
É sabido que o constitucionalismo3 tem por objetivo assegurar os direitos fundamentais
contra o Poder, o que, aliás, está declarado solenemente no artigo 16 da Déclaration dês droits de
l’homme et du citoyen, de 26 de agosto de 1789, a mais famosa delas, in verbis: “Toda sociedade
na qual não é assegurada a garantia dos direitos (do Homem) nem determinada a separação dos poderes
não tem constituição”.4
Aristóteles, já na antigüidade, em sua Política5, lançou aquela que seria a base de uma
teoria acerca da separação das funções do Estado. Na concepção aristotélica, o governo dividia-se
em três partes: a que deliberava acerca dos negócios públicos, consistente na tomada das decisões
fundamentais; a que exercia a magistratura (uma espécie de função executiva), com a
responsabilidade de aplicar tais decisões e a que administrava a Justiça.
Posteriormente, essa teoria foi delineada por John Locke, na obra intitulada O ensaio
sobre o governo civil (1690)6, que também reconheceu três funções distintas: a legislativa
(consistente em decidir como a força pública haveria de ser empregada), a executiva (consistente
em aplicar essa força no plano interno, para assegurar a ordem e o direito) e a confederativa
(consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças).
Entretanto, a despeito das teorias apresentadas pelos pensadores ora mencionados, as
quais, inquestionavelmente, contribuíram para a construção da "separação de poderes", a mesma
foi realmente definida e divulgada por Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu de la
Brède (1689-1755), em sua obra prima mundialmente conhecida, intitulada Do espírito das leis
(1748)7, transformando-se, assim, em uma das mais importantes doutrinas políticas de todos os 3 . RESENDE DE BARROS, Sérgio. Liberdade e contrato: a crise da licitação. Piracicaba: UNIMEP, 1999, p. 47. O autor
coloca que constitucionalismo foi o “... movimento político-jurídico que demandava dos Estados a formulação de sua constituição por escrito, a fim de organizar racionalmente o poder político e assegurar diante dele os direitos do homem e do cidadão, na transição histórica em que a nação se libertava do rei”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 74. Este autor revela que a concepção através da qual se difundiu o constitucionalismo foi a liberal de constituição, segundo a qual “... esta é a parte essencial de uma determinada organização estatal – a que visa a garantir a liberdade, por meio de um estatuto do Poder (...) de organização jurídica que não só estruture mas também limite o Poder no Estado...”.
4. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 74.5 . ARISTÓTELES. Politique. Paris: Presses Universitaires de France, 1950, pp. 141-142.6 . LOCKE, John. Ensaio sobre o governo civil, apud CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel
a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1989, p. 110.7 . MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 202. A trilogia dos Poderes é exposta por
Montesquieu no Livro XI de sua obra eterna, O Espírito das Leis, cujo capítulo VI vai dedicado à organização política dos
tempos, alçada à categoria de princípio fundamental da organização política liberal, consagrado
pela já referida Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo artigo 16 – retro transcrito
– representa verdadeira adaptação da conhecida tese de Montesquieu, que pleiteava uma
sociedade política com as funções executivas, judiciárias e legislativas separadas. Obedeceu-se
àquilo que ele julgava como o pressuposto básico: a visão do poder político como uma espécie de
gás, que tende naturalmente a expandir-se. Todo poder, em princípio, tende à tirania e só haveria
um meio de impedir isso: a existência de outro poder. Por intermédio de mecanismos de
coordenação e limitações recíprocas, os famosos freios e contra-pesos (checks and balances,
contribuição dos norte-americanos), o corpo político conseguiria conviver em paz, sem
possibilidade de um poder exceder-se em demasia, pois seria vigiado e contido pelo outro.8
Contudo, urge mencionar, nesta oportunidade, que a teoria da separação dos poderes,9
sistematizada por Montesquieu, teve a sua origem empírica na Inglaterra do século XVII.
Durante o último quartel do século XV, monarcas fortes nos principais estados da Europa
ocidental – Inglaterra, França e Espanha –, a despeito de haverem sido colocados à prova pelas
sublevações do fim da Idade Média, superaram as ameaças de fragmentação e começaram a
tornar o poder real mais forte que nunca. A denominada “era absolutista” durou na Inglaterra até
meados do século XVII.
Em 1672, o então rei Carlos II desafiou a autoridade do Parlamento inglês ao suspender as
leis contra os católicos e os dissidentes protestantes (isto é, todos exceto os anglicanos), e nove
ingleses. Nesse estudo, Montesquieu apresenta a separação dos Poderes como uma garantia da liberdade individual e assim justifica: “Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo é reunido ao poder executivo, o cidadão não tem nenhuma liberdade; porque será impossível ter dúvidas sobre que o mesmo monarca e o mesmo corpo legislativo façam leis tirânicas para as executar tiranicamente. Não há também liberdade se o poder de julgar não é separado do poder de legislar e do poder de executar. Se ele está junto ao poder legislativo, a disposição sobre a vida e a liberdade dos cidadãos será arbitrária. E se ele está junto ao poder executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor...”.
8 . ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Controle de constitucionalidade de leis e atos normativos. São Paulo: Dialética, 1997, p. 12.
9 . KELSEN, Hans. General theory of law and state. New York: Russell & Russell, 1961, pp. 157-272, apud RESENDE DE BARROS, Sérgio. Controle de constitucionalidade: proposta de simplificação. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: dez.2000, p. 28. Nessa obra, RESENDE DE BARROS afirma existir “... não separação mas distribuição de poderes...”, motivo pelo qual dificilmente poder-se-ia falar de qualquer separação da legislação em face das demais funções do Estado, “... no sentido de que o assim chamado órgão ‘legislativo’ – com exclusão dos assim chamados órgão ‘executivo’ e ‘judicial’ – seria o único competente para exercer essa função”. De acordo com RESENDE DE BARROS e KELSEN, “... a aparência de uma tal separação existe porque somente aquelas normas gerais que são criadas pelo órgão ‘legislativo’ são designadas ‘leis’ (‘leges’)”. Contudo, “... mesmo quando a Constituição expressamente mantém o princípio da separação de poderes, a função legislativa – uma só e mesma função, e não duas funções diferentes – é distribuída entre vários órgãos, mas somente um deles recebe o nome de ‘legislativo’”. E continuam: “As cortes, além disso, exercem uma função legislativa quando sua decisão em um caso concreto torna-se um precedente para a decisão de outros casos similares. Uma corte dotada dessa competência cria com a sua decisão uma norma geral que está no nível das leis produzidas com o assim chamado órgão legislativo”, sendo que, a todo momento, “as cortes perfazem uma função legislativa, quando autorizadas a anular leis inconstitucionais”. E concluem dizendo que “... a lei inconstitucional pode ser anulada...” – uma contradição em termos, para KELSEN – “... por um ato do órgão legislativo, mas também por um ato de um órgão diferente do legislador, incumbido da revisão judicial da lei”.
anos depois resolveu dispensar completamente o Poder Legislativo. Sucedido por seu irmão, em
1685, Jaime II violou abertamente uma resolução parlamentar que exigia que todos os detentores
de cargos oficiais pertencessem à Igreja Anglicana e passou a preencher importantes postos do
exército e do funcionalismo público com correligionários católicos, bem como manteve a benesse
de isentar os católicos das incapacidades jurídicas impostas pelo Parlamento, prática esta iniciada
pelo irmão Carlos II, chegando até mesmo a exigir que os bispos anglicanos lessem, nas igrejas,
seus decretos sobre esse assunto.10
Em razão disso, em 1688 o rei foi deposto, o trono inglês declarado vago pelo Parlamento
e a coroa oferecida ao príncipe Guilherme de Orange e sua mulher Maria, filha mais velha de
Jaime II. No decorrer do ano de 1689, o Parlamento aprovou inúmeras leis destinadas a
salvaguardar os direitos dos ingleses e a proteger seu próprio poder contra as intromissões da
coroa. Dentre elas, estava a famosa Bill of Rights (lei dos direitos dos cidadãos), sustentada por
um Parlamento que tinha, agora, o poder de se fazer obedecido, o qual finalmente triunfou sobre
o rei, pondo fim definitivamente à monarquia absoluta na Inglaterra, além do que deu um basta
à teoria do direito divino dos reis (o poder soberano do rei era controlado pelo poder divino,
sobrenatural, fato que não apresentava qualquer eficácia na prática), sobretudo com a aprovação
do Act of Settlement, em 1701.11
Bem verdade, a Revolução Gloriosa muito contribuiu para as revoluções americana e
francesa dos fins do século XVIII, sendo que uma porção considerável da Bill of Rights foi
incorporada à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França.
Destarte, inspirado com o ideal revolucionário inglês de um governo limitado, com a sua
decantada teoria Montesquieu procurou proteger tais direitos. Todavia, os Poderes, especialmente
o Legislativo e o Executivo, podem tornar-se violadores dos direitos fundamentais.
Sendo assim, a condição de constitucionalidade dos atos normativos do Poder Legislativo
e, sobretudo, da lei, constitui um princípio assecuratório dos direitos fundamentais, lembrando
que a grande maioria das Constituições incorpora uma Declaração em que se reconhecem e
garantem tais direitos.
Outrossim, a tese da necessária constitucionalidade dos atos de qualquer dos três Poderes
aparece formulada no que os juristas chamam de hierarquia das leis. Nesta, a lei constitucional
ocupa o ápice, é a lei suprema, cujas normas se impõem às de nível inferior, sob pena de
10 . BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. São Paulo: Globo. 1997, p. 434.11 . BURNS, E. M., op. cit., p. 434.
invalidade destas. Sim, porque a Constituição, quando rígida, impõe limites ao legislador, tanto
formais – em relação à organicidade, aos procedimentos e às competências – quanto materiais –
em relação ao seu conteúdo.12
Disto decorre uma condição de constitucionalidade a que estão sujeitos todos os atos
estatais. Nenhum destes vale se não estiver, formal e materialmente, em conformidade com a
Constituição.
A efetivação da supremacia da Constituição depende da existência de um sistema
adequado de controle e anulação do ato inconstitucional. O “controle” de constitucionalidade é,
destarte, condição da supremacia da Constituição. Onde ele inexiste ou é impotente, de fato a
Constituição torna-se flexível.
2.1.1. A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
Trata-se de pressuposto essencial para o estudo que aqui se pretende realizar tornarem-se
claras as noções básicas concernentes ao fundamento e hierarquia das normas jurídicas, bem
como à supremacia da Constituição e suas implicações.
Atualmente, pouca ou nenhuma resistência existe à concepção de que, no plano jurídico, a
Constituição alcançou a dignidade de um estatuto supremo, catalisador dos valores reconhecidos
pela comunidade e que se integram à ordem jurídica, posto que incorporados às normas
constitucionais e posteriormente refletidos nas leis que dela derivam para lhe dar eficácia, com o
propósito de conduzir o Estado e a sociedade na busca do bem comum.
Uma das facetas preeminentes que a Constituição adquiriu, dentro dos sistemas jurídicos,
foi a capacidade de distribuir fundamentos de validade a todas as normas jurídicas, vale dizer,
contém ela normas básicas que determinam como e por quem vão ser elaboradas as demais
normas. Consoante o magistério de Norberto Bobbio, essa posição de norma fundante dos
sistemas jurídicos lhe é conferida pelo Poder Constituinte, como poder último, e que dá o ponto
de apoio do sistema13. Trata-se do princípio da supremacia da Constituição, que deflui da rigidez
constitucional.
12 . LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel Derecho, 1986, p. 35.13 . BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: UnB. 1995, pp. 58-59. Poder Constituinte é um poder que
estabelece o suporte lógico da Constituição, ou seja, que estabelece a organização fundamental de um Estado. Além disso, é a justificativa da superioridade da Constituição, que, derivando do Poder Constituinte, não pode ser modificada pelos poderes constituídos, porque estes são obra daquele, por intermédio da própria Constituição.
Há que se ter em mente o fato de que toda e qualquer norma de direito encontra-se
fundada em outra norma jurídica hierarquicamente superior, sendo pressuposto essencial para a
plena validade da primeira estar em perfeita harmonia com sua superiora. Não se concebe a
existência de qualquer tipo de conflito entre a norma inferior e aquela que lhe serve de
fundamento de validade.
A esse respeito, KELSEN, servindo-se de uma figura geométrica (pirâmide) para elucidar
os diferentes níveis normativos, afirma que: (...) uma norma para ser válida é preciso que busque seu
fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja
validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma
ordem normativa.14
Destarte, ateste-se que no topo dessa pirâmide encontra-se a Constituição, na qual todas as
demais normas jurídicas existentes, inferiores a ela, encontram os seus fundamentos de validade.
Disso decorre, portanto, uma hierarquização vertical das normas jurídicas15. É a Constituição,
pois que propicia a unidade do sistema normativo. É ela a norma suprema, ou seja, fundamental.16
De fato, se a Constituição não pudesse ser tratada com a majestade que tem, todo o
ordenamento jurídico poderia ser facilmente manipulado para atender os interesses de apenas
algumas das forças políticas que atuam na sociedade.
Assim, a Constituição fornece e distribui as diretrizes superiores para a convivência social
e a arquitetura de toda a estrutura normativa necessária à organização do respectivo Estado e, por
isso, se apresenta sempre como uma espécie de conduto por onde fluem as diretrizes que atuarão
na formulação, na conformação e na validade de todas as normas jurídicas. Revela-se, assim, o
princípio da compatibilidade vertical das normas, resultante da supremacia da Constituição,
enquanto lei superior de um ordenamento jurídico estatal.
Entretanto, a fim de fundamentar tal assertiva, urge estabelecer a diferença existente entre
a norma suprema (a Constituição) e as demais espécies normativas.
14 . KELSEN, H., op. cit., 1961, p. 217.15 . No Brasil seria: a) Constituição; b) emenda constitucional; c) lei complementar; d) lei ordinária; e) lei delegada; f) medida
provisória; g) decreto legislativo; h) resolução. 16 . KELSEN, H., op. cit., 1961, p. 246-249. É importante frisar que a Constituição não é precedida por qualquer norma
fundamental, como preceitua Kelsen. A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico de um país, a que confere validade, e legitima que todos os poderes estatais sejam legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É nela que se acham as normas fundamentais, o que demonstra sua superioridade em relação às demais normas jurídicas. A concepção de Kelsen toma a palavra “constituição” em dois sentidos: no lógico-jurídico e no jurídico-positivo; de acordo com o primeiro, constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da constituição jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau, fornecedora da moldura definitiva e possível a todas as demais normas, que lhe deveriam obediência.
2.1.2. OS NÍVEIS NORMATIVOS
Contemporaneamente, em Estados dotados de constituição escrita, a exemplo do Brasil,
denota-se a existência de três níveis básicos de Poderes e normas, conforme elenca RESENDE
DE BARROS.17
No primeiro nível, denominado constituinte, encontram-se as normas produzidas pelo
poder constituinte, que ingressam na Constituição com duas finalidades: ou para formá-la,
originalmente, por obra do Poder Constituinte originário, um poder de fato, verdadeira força
social que se insurge para substituir a Constituição anterior ou para dar organização a um novo
Estado, ou então, para reformá-la (completá-la ou modificá-la), derivadamente, por obra do Poder
Constituinte derivado reformador – as chamadas emendas constitucionais. Ademais, somente no
caso das federações, ainda há o Poder Constituinte derivado decorrente, que forma ou reforma as
Constituições dos entes federados, membros do Estado federal, sujeitos às limitações impostas
pela Constituição Federal. Geralmente, no Estado federal, há dois patamares federativos: o da
União federal e o dos Estados federados. Ao longo do constitucionalismo brasileiro, porém,
desenvolveu-se (e foi, afinal, reconhecido pela Constituição de 1988) um terceiro patamar, o dos
Municípios. Desta forma, o Brasil constitui hoje um “federalismo trino”, ou “federalismo de
duplo grau”, olhando mais para os lances da descida.18
De qualquer modo, nos patamares da federação, dimanam do respectivo Poder
Constituinte, normas jurídicas denominadas normas primordiais. “Primordial” significa “primeiro
na ordem”. Essas normas são as primeiras produzidas na mesma ordem ou em ordem inferior.
Nas federações, devem respeitar as normas constitucionais de patamar superior. São as normas
constitucionais.19
No segundo nível, denominado legislativo, são produzidas, pelo Poder Legislativo,
normas primárias. Primárias porquanto subordinadas diretamente às normas superiores,
constitucionais. Trata-se, por exemplo, das leis complementares, das leis ordinárias, das leis
delegadas, das medidas provisórias, dos decretos legislativos e das resoluções de caráter
legislativo. São, portanto, as normas infraconstitucionais. Nas federações, essas espécies de
17 . RESENDE DE BARROS, Sérgio. Controle de constitucionalidade. Programa de Mestrado em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba. (Apostila). Piracicaba: UNIMEP, 2000, p. 1.
18 . Idem, pp.1-2.19 . RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, pp. 1-2.
normas têm de respeitar as normas constitucionais de seu patamar federativo e, no que lhes for
aplicável, as de patamar superior.20
Por derradeiro, no terceiro nível, o regulamentar, são produzidas normas regulamentares,
ou simplesmente regulamentos, a partir do Poder Regulamentar. São os decretos, as portarias, as
resoluções de caráter administrativo, os regimentos etc., normas tais sujeitas às normas primárias,
que ficam entre elas e a Constituição, e por conseqüência, igualmente subordinadas às normas
primordiais. São, enfim, as normas infraconstitucionais e infralegais. Nas federações, devem
respeitar as normas constitucionais e legais de seu patamar e, no que lhes for aplicável, as de
patamar superior.21
Assinalou-se que a Constituição situa-se no vértice do sistema jurídico, onde todas as
demais normas jurídicas irão buscar os seus fundamentos de existência e validade, isso em razão
da rigidez da Lei Fundamental. No entanto, nem todas as Constituições se apresentam como
rígidas. Sendo assim, merece destaque a classificação das Constituições segundo sua estabilidade,
ou mais precisamente, segundo os mecanismos previstos para a reforma e modificação do texto
constitucional, porquanto “o controle de constitucionalidade das leis está intimamente relacionado com
o princípio da hierarquia normativa, da supremacia da Constituição”.22 Sob tal prisma, são as
Constituições classificadas em rígidas, flexíveis e semi-rígidas.
2.1.3. CONSTITUIÇÃO RÍGIDA, FLEXÍVEL E SEMI-RÍGIDA
A existência do referido controle tem como antecedente a rigidez constitucional que, por
sua vez, pressupõe a supremacia da norma fundamental em relação às demais produzidas pelo
órgão constituído. Desta maneira, nenhuma espécie normativa que, necessariamente, decorre da
Lei Maior pode modificá-la.
A rigidez de uma Constituição23 implica que a mesma somente seja alterável mediante
processos, solenidades e exigências formais especiais. Os critérios para a modificação das normas
20 . Idem, pp. 1-2.21. Idem, pp. 1-2.22 . VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 27. 23 . Sobre o tema, verificar: BRYCE, James, Flexible and rigid Constitutions, in Studies in history and jurisprudence, 1901;
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, 2003, pp. 215-216; HESSE, Konrad, Concepto e cualidad de la Constitución, in Escritos de derecho constitucional, 1983, pp. 24-26; BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha, A teoria das Constituições rígidas, 1980.
constitucionais são, portanto, mais difíceis e complexos do que aqueles destinados à formação de
uma lei ordinária ou complementar.
A Constituição flexível, ao contrário, admite alteração mediante procedimentos
legislativos ordinários, conferindo ao legislador constituído, de maneira implícita, poderes
originários. Na verdade, a lei infraconstitucional não harmônica com uma Constituição flexível
reforma per si a lei constitucional.
Exsurge, então, a diferença realmente elucidativa entre Constituição rígida e Constituição
flexível: a primeira não pode existir sem a previsão de um controle de constitucionalidade das
leis, ao passo que a segunda, tendo em vista o fato de o poder originário constituinte atribuir
competência ao poder derivado reformador para modificar o Texto Maior sem a imposição de
limites, não há que se cogitar de mecanismos de controle da constitucionalidade das leis.
Nessa mesma esteira, igualmente só se pode falar em sentido próprio de procedimentos de
revisão constitucional unicamente em relação às constituições rígidas, já que nas flexíveis as
modificações dos textos podem ser realizadas com o acostumado procedimento legislativo
ordinário.
Resta esclarecer, finalmente, em que consiste a semi-rigidez constitucional, característica
de textos em que tanto se verificam disposições rígidas e disposições flexíveis. Seria o caso da
Carta Constitucional do Império do Brasil, de 1824, na medida em que seu artigo 178 dispunha
que somente era matéria constitucional o concernente à organização dos poderes e à declaração
de direitos, abrindo espaço a que todo o restante da legislação pudesse ser alterada por lei
ordinária, sem as formalidades dos artigos 173 a 177. Vale dizer, impunham-se critérios mais
rigorosos para a alteração de matéria considerada constitucional e critérios mais flexíveis para a
modificação de matéria não constitucional.
Artigo 178 da Constituição Imperial: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e
attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo,
o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas
ordinarias”.24
A Carta Política Brasileira de 1988 é rígida, assim como são rígidas as Constituições de
quase todos os países que têm uma Lei Fundamental escrita25. Não admite, contudo, a reforma 24 . CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Todas as constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994,
pp.775- 776 (Sic).25 . POLETTI, Ronaldo Rebello de Brito. Controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.53. O
autor lembra que “Hoje em dia, quase todas as Constituições escritas, em vigor, nas democracias clássicas, são rígidas, com exceção da Grã-Bretanha e dos países que seguiram o sistema anglo-saxônico (Nova Zelândia, Gana, Canadá, República Sul-
constitucional em determinadas matérias, ex vi do seu artigo 60, parágrafo 4º. Exatamente por
enumerar as matérias não passíveis de modificação por emenda, tal dispositivo é denominado
“cláusula pétrea”. De singular importância para a democracia brasileira, constitui uma limitação
material ao poder constituinte derivado de revisão, sendo vedada a modificação dos conteúdos ali
previstos. Daí o porquê de alguns juristas, entre eles Alexandre de Moraes, considerar a
Constituição Federal de 1988 como super-rígida.26
A rigidez constitucional afigura-se de extrema importância para uma democracia. Afinal,
não há regime democrático sem o prévio estabelecimento das “regras do jogo” que regulam as
relações em certo país, e é exatamente através de uma Constituição rígida dotada de soberania
que se podem preestabelecer ditas regras.
Como principal corolário da rigidez constitucional de 1988 verifica-se o princípio da
supremacia da Constituição, ou seja, todas as normas infraconstitucionais (e infralegais) apenas
serão válidas se em conformidade com as normas superiores. De fato, encontra-se a Carta Magna
do Brasil no vértice da pirâmide legal, sendo dotada de primazia e superioridade.
A supremacia da Constituição implica a existência de determinados princípios que
informam vários institutos jurídicos, por força da qual nenhum ato jurídico, nenhuma
manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei
Fundamental.27 Para o fim ora pretendido, importa o exame de dois destes princípios:
• princípio do controle da constitucionalidade – não há razão para que a lei infratora
seja aplicada. Neste sentido, imperativo haver um mecanismo de verificação da
compatibilidade das normas infraconstitucionais com as normas superiores, a fim de
retirar a legitimidade da lei que, por ser inconstitucional, afigura-se como írrita (=
vazia);
• princípio da presunção de legitimidade da norma jurídica – em nome da segurança e
da estabilidade das relações reguladas pelo direito, presume-se que, uma vez editada, a
lei encontra-se em conformidade com o texto constitucional. Sobre o tema, leciona
BASTOS ao afirmar que: “Enquanto as leis constitucionais somente perdem a sua validade
Africana), que sequer têm uma Constituição escrita, e de Israel, que a está elaborando, através de sucessivas leis”. 26 . MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p.37.27 . A propósito, BARROSO lembra que: “Na prática brasileira (...), no momento da entrada em vigor de uma nova Carta, todas
as normas anteriores com ela contrastantes ficam revogadas. E as normas editadas posteriormente à sua vigência, se contravierem os seus termos, devem ser declaradas nulas. A supremacia da Constituição manifesta-se, igualmente, em relação aos atos internacionais que devam produzir efeitos em território nacional”. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 158.
pelo surgimento de nova lei, que as revogue, a lei inconstitucional arca com o ônus de um
processo específico de invalidação, qual seja, o de ver a sua invalidade declarada por outro
órgão, diferente daquele que a produziu”.28
Vale transcrever, ainda sobre o mencionado princípio da presunção de constitucionalidade
das leis, o ensinamento de BITTENCOURT:
“É princípio assente entre os autores, reproduzindo a orientação pacífica da jurisprudência, que
milita sempre em favor dos atos do Congresso a presunção de constitucionalidade. É que ao
Parlamento, tanto quanto ao Judiciário, cabe a interpretação do texto constitucional, de sorte
que, quando uma lei é posta em vigor, já o problema de sua conformidade com o Estatuto
Político foi objeto de exame e apreciação, devendo-se presumir boa e válida a resolução
adotada”.29
Elucidados os princípios fundamentais que decorrem da supremacia de uma Constituição
rígida, é possível examinar mecanismos previstos na própria Lex Fundamentalis, cuja função
vem a ser exatamente possibilitar a verificação e o controle da adequação das leis ordinárias e
complementares, bem como dos atos administrativos, ao proclamado pelo texto constitucional.
Portanto, a próxima etapa terá como objeto de estudo o chamado “controle de
constitucionalidade”, instituto de importância ímpar no âmbito de qualquer Estado Democrático
de Direito, que surge em função da Constituição escrita e encontra-se na origem mesmo do
próprio direito constitucional, como ensina RESENDE DE BARROS:
“Rigorosamente, o direito constitucional surgiu em função da constituição escrita. Esta, na
medida em que formalizou a constituição do Estado, destacou-a entre os objetos do conhecimento
político e jurídico, criando uma condição nova, a propiciar a percepção dos fenômenos
constitucionais, assim chamados porque desenvolvem-se em torno da constituição. Tais
fenômenos, só percebidos mais claramente em razão e em torno da constituição escrita, deram
objeto de estudo a um ramo destacado do direito político, por isso mesmo dito direito
constitucional. Aos temas tradicionais, como as formas de governo, então se somaram outros,
28. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 391.29 . BITTENCOURT, Lúcio. O Controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 91.
que só vieram a se revelar em vista da constituição escrita, como o poder constituinte e a
constitucionalidade” (grifo nosso).30
Destarte, a garantia mais concreta e eficaz que a constituição rígida apresenta da proibição
de que suas normas sejam modificadas por meio das leis ordinárias consiste, indubitavelmente, na
possibilidade de não aplicar ditas leis quando se encontrem em contradição com algum preceito
constitucional.
2.2. CONCEITO
A palavra “controle” (controlo, em Portugal) significa o ato ou a atividade exercida por
um sujeito controlador que estabelece uma comparação entre um objeto controlado e outro objeto
que serve de padrão, parâmetro ou paradigma para assim verificar a adequação material e formal
do primeiro objeto em relação ao segundo objeto. Controle, portanto, é a ação ou atividade de
controlar.
Destarte, no controle estão envolvidos três elementos básicos: o sujeito controlador, o
objeto controlado e o objeto paradigma, parâmetro ou padrão.
Nesse sentido, quando se fala em controle de constitucionalidade, fala-se na garantia que a
Constituição dá a si mesma. Tal controle garante a própria Constituição contra ações e/ou
omissões cometidas contra ela, ou seja, a defende contra as inconstitucionalidades.
Em outras palavras, com vistas voltadas a tais aspectos e partindo de uma conceituação
básica e essencial, RESENDE DE BARROS ainda coloca que: “Controle de constitucionalidade é a
verificação – por agentes políticos ou judiciais do Estado – da adequação de um ato normativo, sobretudo
dos atos normativos produzidos no processo legislativo – aos requisitos formais e materiais estabelecidos
pela constituição do Estado”.31
É nessa esteira que FERREIRA FILHO, sintética e objetivamente, conceitua o controle de
constitucionalidade como “a verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei) à
Constituição”.32
Também se referindo ao escopo do referido controle, anota NOGUEIRA DA SILVA que:
30 . RESENDE DE BARROS, Sérgio. O nucleamento do direito constitucional. In Revista Impulso. Piracicaba: UNIMEP, out. 1997, p. 108.
31. RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 6.32 . FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 34.
“O controle de constitucionalidade, pois, tem por objetivo prevenir ou reprimir a produção legal,
ou os seus efeitos, assim como a de atos normativos, sempre que uma ou outra estiver em posição
de inadequação face à Constituição. Incide ele tanto sobre os requisitos formais da lei ou ato
normativo, v.g., a competência do órgão produtor, a forma e o procedimento observados na
produção, como sobre o conteúdo substancial dos mesmos, ou seja, sua conformidade aos
direitos e garantias consagrados pela Constituição”.33
Logo, nota-se que a verificação da compatibilidade em questão tem como objetivo
resguardar a supremacia formal da Constituição rígida, impedindo a subsistência de eficácia de
norma contrária a ela, garantia maior existente em um Estado dotado daquela espécie de
Constituição, advinda desse chamado controle de constitucionalidade.
A idéia de controle liga-se, assim, à idéia de rigidez constitucional. Sem rigidez, a
legislação inferior subseqüente revogaria a norma constitucional, e não haveria o que controlar.
A propósito, esclarece RUFFÌA que:
“Quando la Constituzione è rigida – e già abbiamo messo in evidenza (...) che nella attualità sono
rigide quasi tutte le Constituzione scrite in vigore – la garanzia più concreta ed efficace della
proibizione di che sue norme siano modificate per mezzo delle (legge) ordinarie consiste,
indubitabilmente, nella possibilità di non applicare tali legge quando si trovanno in contradizione
con alcuno precetto constituzionale”.34
Tal como mencionado a pouco, essa atividade de controle da adequação formal e material
da norma jurídica se consubstancia no procedimento de compatibilidade da mesma em relação às
regras constitucionais, em ambos os sentidos, envolvendo aqueles três elementos básicos.
Em face disso, necessário se faz nesta oportunidade analisar tais elementos – essenciais –
envolvidos na mencionada atividade controladora, em torno da qual gravita o presente estudo.
Sujeito controlador no controle de constitucionalidade é principalmente o Poder
Judiciário, por intermédio de seus juízes e tribunais, e secundariamente, outros agentes estatais,
33 . SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. A evolução do controle de constitucionalidade e a competência do senado federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 19.
34 . RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Introduzione al diritto constituzionale comparato. Milano: A. Giuffre, 1974, p. 540. “Quando a Constituição é rígida – e já temos posto em evidência (...) que na atualidade são rígidas quase todas as Constituições escritas em vigor – a garantia mais concreta e eficaz da proibição de que suas normas sejam modificadas por meio das (leis) ordinárias consiste, indubitavelmente, na possibilidade de não aplicar ditas leis quando se encontrem em contradição com algum preceito constitucional” (tradução nossa).
no âmbito dos poderes Legislativo e Executivo, e ainda, os particulares, através dos advogados,
sendo este último, na verdade, um controle informal, vez que não institucionalizado.
Não obstante, objeto controlado é qualquer ato jurídico, desde os mais simples e rasteiros
até os mais complexos e altaneiros, com exceção dos atos originários primários da própria
Constituição, ou seja, os atos exercidos pelo Poder Constituinte originário,35 tal como já foi
decidido pela suprema corte brasileira.36
Enfim, tem-se como objeto paradigma as normas originárias e derivadas da Constituição,
advindas, respectivamente, do exercício do Poder Constituinte originário e derivado, seja este
último reformador ou decorrente37, isto é, as normas constitucionais vigentes, não
necessariamente no texto constitucional – a exemplo do que ocorre na França38 –, ressaltando-se
que no Brasil tais normas devem estar inseridas, explícita ou implicitamente, no texto
constitucional.
Importante salientar que o controle propriamente dito é exercido não só no âmbito
constitucional (adequação às normas editadas pelo Poder Constituinte), mas também nos níveis
hierarquicamente inferiores das normas jurídicas, através da verificação da legalidade (adequação
às normas editadas pelo Poder Legislativo) e da regularidade (adequação às normas editadas pelo
Poder Regulamentar).39
Em última análise, o controle de constitucionalidade é, portanto, a espécie superior do
gênero controle de normalidade (aquilo que é ou está de acordo com a norma; é a adequação às
normas – normalidade).40
35 . MORAES, Alexandre de, op. cit. 1999, p. 560; BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Atlântica, 1977, p. 235; CANOTILHO, José Joaquim Gomes, op. cit., p. 1.233. Não há possibilidade de declaração de normas constitucionais originárias como inconstitucionais. De acordo com MORAES, citando BACHOF e CANOTILHO, “O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar a incondicional superioridade normativa da Constituição Federal, portanto, não adota a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais (verfassungswidrige Verfassungsnormem), que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por incompatíveis com os princípios constitucionais não escritos e os postulados na justiça (Grundentscheidugen)”. Conforme CANOTILHO, “A probabilidade da existência de uma ‘norma constitucional originariamente inconstitucional’ é bastante restrita em estados de direito democrático-constitucionais. Por isso é que a figura das normas constitucionais inconstitucionais, embora nos conduza ao problema fulcral da validade material do direito, não tem conduzido a soluções práticas dignas de registro”.
36 . STF – Pleno – Adin nº 815-3/DF. Rel. Moreira Alves. Diário da Justiça. 10.05.1996. Ementário nº 1.827-02, onde se salienta que: “Essa tese – a de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras – se me afigura incompossível com o sistema de Constituição rígida”.
37 . O Poder Constituinte derivado decorrente só existe nas federações, ao qual compete formar ou reformar as Constituições dos entes federados, membros do Estado Federal, sujeitos às limitações impostas pela Constituição Federal.
38 . CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992, pp. 27-32.
39 . RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 8.40 . RESENDE DE BARROS, S, idem, p. 7.
2.3. ORIGEM
Quanto à origem do controle de constitucionalidade, devem ser registrados os momentos
de seu surgimento. Primeira e remotamente, urge destacar o nascimento, na Grécia antiga, de
algo análogo ao referido controle, lembrado em razão de sua semelhança àquele, considerado,
portanto, seu antecedente remoto.
Bem verdade, a idéia de que existem leis superiores, que servem de fundamento ao poder
político e à própria sociedade começou a surgir na Grécia antiga, mais precisamente na cidade
grega de Atenas.
No direito ateniense, distinguiam-se duas espécies normativas: o nomos, isto é, a lei em
seu sentido estrito, e o psèphisma, ou seja, o que modernamente se identifica como o decreto.
A respeito, esclarece CAPPELLETTI:
Na realidade, os nomoi, ou seja, as leis, tinham um caráter que, sob certos aspectos, poderia se
aproximar das modernas leis constitucionais, e isto não somente porque diziam respeito à
organização do Estado, mas ainda porque modificações das leis (nomoi) vigentes não podiam ser
feitas a não ser através de um procedimento especial, com características que, sem dúvida, podem
trazer à mente do jurista contemporâneo o procedimento de revisão constitucional.41
Em seguida, o mesmo autor acrescenta que:
Portanto, tinha sido excogitado, em Atenas, um procedimento de revisão das leis extremamente
complexo; a mudança da lei era considerada, em suma, uma providência de extraordinária
gravidade, cercada das garantias mais prudentes e até mais estranhas, com responsabilidades
gravíssimas para quem propunha uma alteração que não fosse, no final, aprovada ou que, ainda
que aprovada, se mostrasse, depois, inoportuna. Deste modo, o poder de mudar as leis era retirado
dos caprichos de maioria da Assembléia Popular (Ecclesía).42
Realmente, naquele tempo o sentido de cidadania era levado a sério, pois em caso de
condenação em virtude de responsabilidade penal, daquele que havia proposto o decreto
41. CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 49.42. CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 49.
inoportuno ou que não fosse aprovado, estaria ele sujeito ao pagamento de pesadas multas, e em
casos de ofensa muito grave, pagaria com a própria vida.
Entre as várias ações de quem dispunham os cidadãos atenienses – mais de cinqüenta –,
ações populares denominadas graphès, havia uma em especial, intitulada graphè paranomôn,
pela qual tais cidadãos se tornavam responsáveis pela defesa das leis e da Constituição. Aí está o
que se pode identificar como antecedente remoto do controle de constitucionalidade. Tratava-se
de uma ação pública intentada contra alguém que havia proposto um tipo de lei inferior
(psèphisma) a outro tipo de lei superior (nomos). O julgamento da referida ação cabia a um
tribunal do povo, composto por 501 membros.43
Assim, era cabível tal ação quando vislumbrada a invalidade do decreto contrário à lei,
isto, consoante lembra Demóstenes, citado por CAPPELLETTI44, “por força do princípio segundo o
qual o nomos, quando estava em contraste com um psèphisma, prevalecia sobre este”.
Posteriormente, em Roma, verifica-se que também havia essa idéia de existência de uma
lei maior, à qual todas as demais deveriam obediência, sob pena de invalidação.
No final da Idade Média e início da Idade Moderna, com o aparecimento dos Estados
Modernos, sob a manta do poder absoluto dos reis, em França desenvolvem-se as chamadas Leis
Fundamentais do Reino, assim denominadas porquanto serem anteriores e terem fundado o
próprio reino, motivo pelo qual até mesmo o rei deveria obedecê-las.
A partir de então, difunde-se pelo mundo afora a idéia de que as sociedades são fundadas
em determinadas leis e que estas, por isso, são superiores e devem ser obedecidas.
Isso tudo serviu de base para a decisão tomada por um juiz norte-americano – John
Marshall –, no famoso caso Marbury versus Madison, no ano de 1803, duas décadas depois de a
Constituição dos Estados Unidos haver entrado em vigor. Com isso, coube ao magistrado o
mérito pela teoria do controle de constitucionalidade. Eis aí, portanto, o seu antecedente próximo.
A propósito, RESENDE DE BARROS e PINTO FERREIRA, com especiais precisões,
relatam como atuou Marshall diante do caso, bem como as circunstâncias histórico-políticas que
o cercaram, nos seguintes termos:
43 . JAGUARIBE, Helio. A democracia de Péricles. Brasília: UnB, 1982, p. 36; HANSEN, Mogens Herman, La democratie athenienne á L’époque de Démosthène. Paris: Les Belles Lettres, 1993, p. 221.
44 . CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 51.
Nas eleições de 1800, os Republicanos (liderados por Thomas Jefferson) haviam derrotado os
Federalistas (liderados por Alexander Hamilton). Porém, antes de deixarem o poder em 1801, os
Federalistas criaram judicaturas, que os Republicanos não pretendiam manter, entre as quais se
incluíam funções de juiz de paz. Nesse contexto político, o Presidente John Adams – que sucedera
a George Washington, de quem fora vice-presidente e que recusara a segunda eleição – nomeou
William Marbury e outros como juízes de paz no Distrito de Colúmbia. Porém, estando de saída
do cargo de Secretário de Estado (da gestão do Presidente Adams), John Marshall não se apressou
nas providências necessárias para que Marbury e outros tomassem posse. Negligência essa, em
que persistiu o novo Secretário de Estado (da gestão do Presidente Jefferson), James Madison.45
Diante dessa situação desfavorável, Marbury recorreu ao Poder Judiciário, impetrando um
mandamus e clamando por seu direito.
Na condição de Juiz Presidente da Suprema Corte, onde tomara assento após deixar o cargo de
Secretário de Estado, John Marshall enfrentava graves dificuldades. Vivia-se o início da
Federação norte-americana, em que os poderes em face da Constituição ainda não estavam
definidos com pormenor e firmeza, ensejando debates – avanços ou recusas entre os três Poderes
– hoje inaceitáveis porque já resolvidos, seja pela legislação, seja pela jurisprudência, seja pelos
usos e costumes constitucionais. Nessa época, a Suprema Corte ainda não granjeara o enorme
respeito de que hoje desfruta. Particularmente no mandamus impetrado por William Marbury,
Marshall viveu um dilema, só compreensível à luz das condições políticas da época. De um lado,
ele entendia que as nomeações feitas pelo Presidente Adams eram de ser mantidas. De outro lado,
temia que o poderoso Secretário de Estado James Madison, sob os auspícios do não menos
poderoso Presidente Thomas Jefferson, ignorasse o mandado em favor de Marbury, o que
desmoralizaria o Juiz e a Corte, pondo em risco a Constituição dos Estados Unidos. Salus
reipublicae summa lex esto (Para evitar a desconstituição da república) e, assim, Marshall
resolveu o impasse dando ao país uma aula de direito, em que sustentou que Marbury e outros
tinham direito à posse, mas ele não tinha competência constitucional para conceder o mandamus.
Marshall reconheceu que a Lei Judiciária de 1789 dera à Suprema corte o poder de expedir aquele
tipo de mandado contra agentes de outros Poderes. Mas afirmou que a Lei, ao agir assim, era
inconstitucional, pois alargava a competência fixada pela Constituição para a Suprema Corte.46
45. RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 9.46. RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 10.
Após tal indagação, John Marshall fixou os fundamentos do controle de
constitucionalidade, consignando em seu aresto:
Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou
anuir que a legislatura possa alterar a Constituição por medidas ordinárias. Não há por onde se
contestar o dilema. Entre as duas alternativas não se descobre meio-termo. Ou a Constituição é
uma lei superior (uma paramount law), soberana, irreformável mediante processos comuns, ou se
nivela com os atos da legislação usual, e, como estes, é reformável à vontade da legislatura. Se a
primeira é verdadeira, então o ato legislativo contrário à Constituição não será lei; se é verdadeira
a segunda, então as Constituições escritas são esforços inúteis do povo para limitar um poder pela
sua própria natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado Constituições
escritas, sempre o fizeram no objetivo de determinar a lei fundamental e suprema da nação; e
conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser a da nulidade de qualquer ato da legislatura
ofensivo da Constituição. Esta doutrina está essencialmente ligada às Constituições escritas, e,
assim, deve-se observar como um dos princípios fundamentais da nossa sociedade.47
Diante de tais argumentações e conclusões, Marshall encerrando a sentença, finalizou o
seu voto: “Desse modo, a linguagem particular da Constituição dos Estados Unidos confirma e reforça o
princípio, que se supõe ser essencial a todas as constituições escritas, de que é void (= vazia, írrita) uma lei
que repugna a constituição”.48
Destarte, John Marshall denegou o mandado impetrado, concluindo que a norma da
referida Lei de Organização Judiciária, que dera à Suprema Corte o poder de conceder aquele
mandamus, deveria ser descartada.
Eis como surgiu o controle de constitucionalidade de um ato legislativo, por obra da
jurisprudência, posto que a Constituição dos Estados Unidos à época não o estabelecia
expressamente.
Por derradeiro, novamente servindo-se dos ensinamentos de RESENDE DE BARROS,
vale consignar que se este foi o primeiro caso em que a Suprema Corte dos Estados Unidos da
América invalidou um ato legislativo, não foi, outrossim, o primeiro em que juízes daquele país
exercitaram esse poder, vez que o fizeram antes, no chamado Hayburn’s Case, no ano de 1792,
47 . Cf. The Writings of John Marshall, late Chief-Justice of the United States, upon the Federal Constitucion. Boston, 1839, p. 24-25, apud FERREIRA, Luís Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 97.
48 . RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 11.
nem mesmo o primeiro em que a própria Suprema Corte o exercitou, pois no caso Hylton versus
United States (1796), já sustentara a constitucionalidade de um ato legislativo de tal forma, que
não deixava qualquer dúvida de que o teria declarado inconstitucional, se disso estivesse
convencida. Ainda, Alexander Hamilton, alguns anos antes, defendendo a aprovação da
Constituição federal pelos Estados norte-americanos, já deixara fincado o princípio da
supremacia constitucional, e que havendo um conflito entre a Constituição e uma lei ordinária,
caberia ao Poder Judiciário decidir em favor da primeira, em virtude de sua inquestionável
superioridade, lembrando que essa doutrina foi posteriormente reunida num livro – The
Federalist (“O Federalista”). Contudo, a despeito desses precedentes, foi no caso Marbury versus
Madison que, ao prolatar o seu voto com sólida argumentação e genial conclusão, John Marshall
firmou esse poder.49
Por outra borda, paralelamente à evolução do controle de constitucionalidade americano,
surge na França, a idéia de confiar a um órgão político (e não jurisdicional) a salvaguarda da
constituição.
O controle de constitucionalidade levado a efeito por um órgão político assenta-se na
idéia de que o órgão controlador deve ocupar posição superior no Estado. Além disso, tal órgão
deve ser distinto do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.
A concepção da criação de um órgão político controlador foi expressa, primeiramente,
pelo abade Sieyès, legislador e jurista francês, por volta de 1795, cuja proposta levou a efeito
posteriormente. Contudo, foi na Constituição francesa de 1799 que um órgão com aquela
característica foi criado – o Senado Conservador –, com a finalidade de decretar a
inconstitucionalidade de atos legislativos, não obtendo êxito, entretanto, no exercício de sua
função.
Conseguintemente, foi com a criação do chamado Conseil Constitutionnel (“Conselho
Constitucional”), da Constituição da França de 1958, que o referido controle surtiu eficácia,
concedendo a um órgão político a soberania no controle de constitucionalidade de atos
legislativos, conforme enfoca Michel TEMER, ao registrar que: “O art. 62 dessa Constituição
determinou que as decisões desse Conselho não eram recorríveis e que se impunham ‘a todos os poderes
públicos e a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais’”.50
49. RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 9-10. 50. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 41.
2.4. TIPOLOGIA
Há no mundo jurídico atualmente dois grandes modelos de controle de
constitucionalidade: o europeu (ou austríaco) e o americano.
Esses modelos, por sua vez, englobam três sistemas de controle de constitucionalidade: o
americano, surgido a partir do voto vencedor do juiz John Marshall, no célebre e decantado caso
Marbury versus Madison, em 1803; o austríaco, desenvolvido por Hans Kelsen e positivado na
Constituição da Áustria de 1º de outubro de 1920 com a lei de reforma constitucional de 1929; e
o francês, originário na primeira Constituição francesa de 1946 e cristalizado na Carta de 4 de
outubro de 1958.
Urge ressaltar que a despeito de existirem atualmente, no direito contemporâneo, três
sistemas – o norte-americano, o austríaco e o francês – somente os dois primeiros fizeram escola
e tornaram-se modelos.
2.4.1. SISTEMA AMERICANO
Denominado judicial review, teve início nos Estados Unidos da América, com o juiz John
Marshall, sendo posteriormente adotado por toda a América. Nasceu juntamente com o próprio
controle de constitucionalidade naquele país. Apresenta as seguintes características:
- incidental, isto é, incidenter tantum (“só incidentalmente”), uma vez que a questão da
constitucionalidade não é a questão principal, porquanto é levantada geralmente pelo
autor na petição ou, então, pelo réu em preliminar de contestação ou, ainda, pelo juiz,
sem provocação das partes;
- difuso, ou seja, a competência para controlar não está concentrada nas mãos de um só
órgão, mas, ao contrário, qualquer juiz ou tribunal pode suscitar a questão da
inconstitucionalidade;
- declaratório, isto é, a sentença que decide sobre a constitucionalidade é meramente
declaratória (nesse ponto), porque o ato já nasceu morto;
- inter partes, pois o efeito declaratório atinge tão somente as partes envolvidas no
litígio (“entre partes”), não valendo para terceiros que não o integram;
- ex tunc (“desde então”), uma vez que o efeito retroage à origem, tendo em vista que a
sentença é declaratória e o ato, um “natimorto”;
- casual, significando que somente se processa caso a caso, in casu, em concreto.
2.4.2. SISTEMA EUROPEU
Também chamado de sistema austríaco, teve a sua origem na Constituição da Áustria,
com a emenda de 1929, por inspiração do Mestre da “Escola Jurídica de Viena”, Hans Kelsen,
que o desenvolvera anos atrás, em 1920. São características deste sistema:
- principal, ou seja, a questão da constitucionalidade é o objeto da própria ação;
- concentrado, isto é, propõe-se também a criação de um tribunal especializado em
julgar tais ações – Tribunal (ou Corte) Constitucional;
- desconstitutivo (ou constitutivo-negativo), pois não existe a hipótese de uma lei nascer
morta, motivo pelo qual se o Congresso a sancionar e o Presidente a editar, essa lei
existirá, não havendo que se falar, igualmente, em atos nulos, mas tão somente
anuláveis, daí porque tal decisão desconstitui (anula) a lei, retirando-a do ordenamento
jurídico;
- erga omnes, uma vez que atinge todas as pessoas, indistintamente (“contra todos”);
- ex tunc ou ex nunc (“a partir de então”), dependendo da constituição, a não ser que
esta deixe a decisão para o próprio Tribunal, tratando-se, portanto, de uma decisão
política;
- geral, significando que o controle se processa em geral, em tese, em abstrato.
2.4.3. SISTEMA FRANCÊS
Há alguns sistemas em que o controle de constitucionalidade ocorre de forma mais ou
menos mista, conforme a Constituição do país, por meio de órgãos próprios. É o caso
vislumbrado em França, onde, originalmente, o controle em questão ganhou um colorido misto,
dual, de todo particular, cuja incumbência do controle de constitucionalidade foi entregue a um
órgão especial desvinculado de qualquer dos Poderes: o Conselho Constitucional, que se forma
entre o Governo e o Parlamento (cf. 2.4.4, infra).
Na verdade, trata-se esse Conselho não de um órgão do Poder Judiciário, mas, outrossim,
de um órgão político, tendo sua origem nas nomeações.51
A Constituição francesa lhe atribui competência para verificar e declarar a
inconstitucionalidade ou não das leis, prévia ou posteriormente. E, antes de promulgá-la, caso o
Presidente da República tiver alguma dúvida se essa lei é ou não constitucional, dirigirá uma
indagação ao Conselho Constitucional, o qual se reunirá e decidirá se o projeto de lei está ou não
em conformidade com a Lei Maior do país. Decidindo pela inconstitucionalidade, o projeto será
arquivado.52
Ademais, registre-se que o referido Conselho pode ser consultado a qualquer momento da
tramitação legislativa, no que diga respeito à constitucionalidade ou não do respectivo projeto,
lembrando ainda, que mesmo depois de tramitado, aprovado, promulgado e publicado, já estando
em vigor, será possível levantar-se perante aquele Conselho a discussão da constitucionalidade da
lei, momento em que este poderá declará-la inconstitucional, eliminando-a, assim, do
ordenamento jurídico. A despeito disso, contudo, no mais das vezes essa apreciação é levada a
efeito previamente, antes de a lei ser promulgada.53
Em suma, para os franceses, a questão da constitucionalidade das leis, antes de ser um
problema jurídico (e além de sê-lo), é um problema político, porquanto, nas palavras de
RESENDE DE BARROS, “o direito constitucional é um direito político por excelência, cuida da
organização política do Estado”, motivo pelo qual em França se entende que a mencionada questão
apresenta, em última análise, cunho jurídico-político, o que faz com que receba um tratamento
diferenciado, não pelo Poder Judiciário comum, mas por um Conselho Constitucional composto
por nomeações.54
2.4.4. TIPOS BÁSICOS
O controle de constitucionalidade – destacadamente o das leis – será enfocado sob seis
critérios, seguindo-se a respectiva tipificação.
a) Quanto à natureza.
51 . RESENDE DE BARROS, Sérgio. A inconstitucionalidade por omissão. Aula ministrada no Curso de Pós-Graduação do CESUP, dias 26 e 27 de outubro/1990. São Paulo: CESUP, 1990, p. 22.
52. Id., p. 22.53. Id., p. 22. 54. RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 1990, pp. 22-23.
Político – conforme seja produzido fora do órgão judiciário.55 É o que ocorria na extinta
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sob a égide da Constituição de 1936, de inspiração
estalinista, e ocorre atualmente na França, onde o controle - que se insere no próprio processo
legislativo - é feito pelo denominado Conseil Constitutionnel, órgão instituído pela Constituição
de 1958 e composto por nove membros nomeados (três, pelo Presidente da República; três, pelo
Presidente da Assembléia Nacional; e três, pelo Presidente do Senado) para um período de nove
anos, sem direito à recondução, aos quais se somam como membros natos todos os ex-
Presidentes da República. Acrescente-se que a manifestação desse Conselho é obrigatória no caso
de leis ditas “orgânicas” (lois organiques), concernentes especialmente à organização dos
poderes públicos, de caráter estrutural e complementar à Constituição.56
No Brasil, apenas excepcionalmente o controle é realizado por órgãos políticos.
Jurisdicional (judiciário ou judicial) – quando for produzido dentro do órgão judiciário, ou
seja, quando for feito por órgão ou órgãos (tribunais ou cortes) integrados no Poder Judiciário e
titularizados por juízes exercendo a função jurisdicional. Isso ocorre nos países americanos –
incluindo o Brasil – e nos demais países europeus. Convém citar, enfim, o caso da Suíça, em cuja
federação José Afonso da SILVA vislumbra um terceiro tipo: o controle misto. Com efeito, na
Confederação Helvética (que é uma federação, a despeito de manter o nome de confederação, que
lhe é tradicional), o controle é judicial no nível dos cantões (Estados-membros) e político no
nível federal, que fica sob o crivo da Assembléia Nacional.57 Todavia, melhor é não ver aí um
terceiro tipo, mas tão somente a convivência dos dois tipos – o político e o judicial – dentro de
uma estrutura federativa.58
b) Quanto ao momento.
Prévio ou preventivo – caso em que se previne contra a inconstitucionalidade antes de ela
se concretizar, isto é, destina-se a impedir o ingresso, no sistema jurídico, de normas que, em seu
projeto, já revelam desconformidade com a Constituição. Hipótese ocorrida na França. No Brasil,
o controle é prévio quando feito durante o processo legislativo pelas comissões permanentes de
constituição e justiça, no Poder Legislativo,59 e, posteriormente, pelo Chefe do Poder Executivo,
55 . MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 538. O autor entende que o controle político se faz presente quando o órgão ao qual cabe garantir a supremacia da Constituição sobre o ordenamento jurídico é distinto dos demais Poderes do Estado.
56 . CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 27-28.57 . SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 51.58 . RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit. 2000, p. 17.59 . RESENDE DE BARROS, Sérgio, op. cit., p. 26. Observa o autor que nesses casos o que ocorre na verdade é um controle
parlamentar, porque não previsto na Constituição, mas, sim, nos Regimentos Internos das Casas Legislativas.
cujo veto pode ter fundamento político (entende que o projeto de lei não vai ao encontro do
interesse público) ou jurídico (entende que o projeto de lei não atende à Constituição).
Posterior ou repressivo – se o controle é feito após a promulgação da lei. No direito
constitucional brasileiro, via de regra, foi adotado o controle posterior à promulgação da lei, em
que é o próprio Poder Judiciário quem o realiza, seja quando feito por juiz singular, seja quando
realizado por tribunal.
c) Quanto ao processo.
Incidental – quando o controle incide sobre uma questão acidental, isto é, em outra ação
cujo objeto é outro. É o sistema inaugurado por John Marshall, em que o controle se faz
incidenter tantum, ou seja, “apenas incidentalmente”, no caso concreto, in casu, cujo objetivo é a
defesa de direitos subjetivos.
Principal, também denominado não-incidental ou autônomo60 – em que a
inconstitucionalidade é a própria questão principal trazida a juízo, ou seja, o objeto da lide é a
inconstitucionalidade. É o modelo europeu, surgido na Áustria na década de 1920, elaborado por
Hans Kelsen. É o controle da lei em tese ou abstrato, tendo por escopo, precipuamente, a defesa
do ordenamento jurídico objetivo.
d) Quanto à competência.
Difuso – caso em que a competência para controlar se difunde por todos os juízes e
tribunais, sendo que a inconstitucionalidade pode ser argüida por qualquer magistrado que, ao
reconhecê-la, deixará de aplicar, como corolário, o ato aniquilado. É o modelo norte-americano.
Concentrado – hipótese na qual a competência para conhecer e julgar a questão de
constitucionalidade se concentra em órgão único. É o modelo europeu, verificando-se também no
modelo francês, em que atua um conselho de natureza jurídico-política.
e) Quanto ao alcance subjetivo.
Inter partes – significa que os efeitos da decisão alcançam somente as partes no processo
(efeito particular), não beneficiando a quem não for parte na demanda em que se reconhecer a
inconstitucionalidade.
Erga omnes – nesse caso, os efeitos da decisão alcançam a todos, litigantes ou não,
eliminando de vez qualquer possibilidade futura de aplicação do ato reconhecido como
inconstitucional.
60. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 171.
f) Quanto ao alcance objetivo: segundo esse critério, o controle será dito temporal ou
material.
- Objetivo-temporal.
Ex tunc – os efeitos da decisão são retroativos, isto é, volvem à origem do ato.
Ex nunc – os efeitos da decisão são válidos somente a partir de sua publicação.
Pro futuro – os efeitos da decisão são impedidos desde um momento estabelecido no
acórdão.
- Objetivo-material.
Material – alcança aspectos materiais, isto é, os referentes ao conteúdo da matéria tratada
pela norma jurídica.
Formal – alcança aspectos formais, ou seja, aqueles atinentes ao modo de elaboração ou
revisão da norma jurídica.
2.2.5. SISTEMA BRASILEIRO CONFORME A CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Constituição de 5 de outubro de 1988 avançou no aperfeiçoamento e na democratização
da fiscalização constitucional no país. Cita-se: ampliou o número dos legitimados ativos para
ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103); introduziu no sistema a ação
direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, parágrafo 2º) e o mandado de injunção
(artigo 102, inciso I, alínea q); previu a instituição, nos Estados-membros, de representação de
inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição
estadual (artigo 125, parágrafo 2º); em 17 de março de 1993, a Emenda Constitucional nº 3 deu
nova redação ao artigo 102, inciso I, alínea a, introduzindo a ação declaratória de
constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; finalmente, criou a argüição de
descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição (artigo 102, parágrafo 1º),
surgindo, posteriormente, a Lei nº 9.982, de 03 de dezembro de 1999, para dispor sobre o
respectivo processo e julgamento, lembrando ainda, que em 10 de novembro do mesmo ano,
entrou em vigor a Lei nº 9.868, que veio regular o processo e o julgamento, perante o Supremo
Tribunal Federal, da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade.
O Estado brasileiro resolveu adotar um sistema misto – também denominado de eclético –
de controle jurisdicional61 de constitucionalidade das leis e atos normativos, onde convivem,
harmoniosamente, o sistema americano e o sistema europeu ou austríaco, com algumas
particularidades.
Relativamente ao sistema de controle de constitucionalidade adotado sob a égide da
Constituição da República Federativa do Brasil em vigor, de 05 de outubro de 1988, tem ela
também o color misto ou eclético, abrindo espaço, reiterando o já dito anteriormente, tanto para o
controle difuso como para o controle concentrado, podendo ser classificada, de acordo com a
tipologia já traçada antes (cf. 2.4.4, retro), da forma que segue:
a) Quanto à natureza, pode ser jurisdicional (igualmente denominado judiciário ou
judicial) e político.
O poder de controlar a constitucionalidade entre uma lei ou ato e as regras constitucionais,
a fim de verificar se há concordância entre eles, é conferido privativamente a órgãos integrados
no Poder Judiciário, através dos tribunais, ou do próprio Supremo Tribunal Federal, e a qualquer
juiz de direito exercendo a função jurisdicional, ao apreciar e resolver os litígios eventualmente
submetidos ao seu conhecimento, deixando de aplicar a lei ou ato se contrariar a Constituição,
seja diretamente, violando o texto expresso da Carta, seja indiretamente, quando incompatível
com o seu espírito ou sistema. Inspira-se no modelo criado nos Estados Unidos da América,
como conseqüência jurisprudencial na ausência de previsão constitucional expressa.
Por outro lado, o ordenamento jurídico brasileiro consagra também o controle político das
leis (levado a efeito pelos demais Poderes da República), através de fiscalização que integra o
próprio iter de formação legislativa. Tal controle é realizado tanto pelo Poder Legislativo, com as
Comissões Permanentes de Constituição e Justiça da Câmara ou do Senado – que têm como
atribuição o exame, em termos formais, da adequação do texto legal em trâmite aos ditames
constitucionais (artigo 58) –, quanto pelo Poder Executivo, quando o respectivo chefe – o
Presidente da República – veta o projeto de lei por entendê-lo inconstitucional, a partir da análise
da constitucionalidade não apenas no tocante ao aspecto formal, mas também em termos de
mérito, tendo em vista o interesse público (artigo 66, parágrafo 1º).
61 . A natureza do controle de constitucionalidade no Brasil é unicamente jurisdicional. De acordo com RAMOS, citando CAVALCANTI e BUZAID, “No Brasil não cabe à ‘Administração apreciar e decretar a inconstitucionalidade das leis, sendo essa tarefa específica do Poder Judiciário’. ‘Essa é a solução do problema da inconstitucionalidade das leis’”, apud RAMOS, Dircêo Torrecillas. Controle de constitucionalidade por via de ação. São Paulo: WVC, 1998, p.22. CAVALCANTI, Themístocles Brandão, In: BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p.42.
b) Quanto ao momento, pode ser preventivo (ou prévio) e repressivo (ou posterior).
O controle é dito preventivo ou prévio quando exercido sobre o processo legislativo pelas
Comissões Permanentes de Constituição e Justiça, no Poder Legislativo, no tocante à edição de
duas espécies normativas – medidas provisórias (artigo 62) e leis delegadas (artigo 68, cc. artigo
49, inciso V) – e posteriormente, pelo Chefe do Poder Executivo, cujo veto (presidencial) pode
ter fundamento político ou jurídico, conquanto entenda, respectivamente, que o projeto de lei não
se coaduna com o interesse público ou não vai ao encontro das exigências constitucionais.
Contudo, o veto é relativo na medida em que o Congresso Nacional pode rejeitá-lo pelo voto da
maioria absoluta dos deputados e senadores, conforme dispõe o artigo 66 da Constituição
Federal.
Por sua vez, o controle é repressivo ou posterior quando realizado após a promulgação da
lei. No Brasil, essa espécie é exercida por dois meios, que assumem denominações próprias, a
saber: a via de exceção62 (ou de defesa), a qual faculta ao Poder Judiciário, seja através de um juiz
singular, seja por meio de um tribunal, declarar, em um caso concreto, no curso de uma ação,
por via incidental (incidenter tantum), a inconstitucionalidade de leis e de outros atos normativos
do Poder Público quando estes discordarem de preceitos e princípios constitucionais, a fim de
solucionar o litígio entre as partes, e a via de ação, permitindo a um órgão especial – o Supremo
Tribunal Federal – a declaração de inconstitucionalidade, em tese, de lei ou ato normativo do
poder público, cuja questão é o objeto principal da ação, tendo como objetivo expurgar do
sistema a lei ou ato que o contrarie, independentemente de interesses pessoais ou materiais.
É o sistema adotado pelo Brasil desde a sua primeira Constituição republicana, embora
hoje exista, também, o controle preventivo.
c) Quanto ao processo, pode ser incidental e principal.
O controle é incidental quando o Poder Judiciário acolhe a alegação de
inconstitucionalidade surgida incidentalmente em qualquer processo, ou seja, há um litígio
constitucional, mas limitado à questio iuris da legitimidade da lei. Trata-se de uma questão
acidental, isto é, o requerimento de declaração de inconstitucionalidade é realizado no curso de
determinado feito, cuja análise se efetivará nesse caso concreto. É o controle concreto in casu.
62 . GRIONOVER, Ada Pellegrini. O processo em sua unidade. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p.154, apud VELOSO, Zeno, op. cit., p.40. A despeito de já se achar difundida a utilização da expressão “por via de exceção” para denominar o meio difuso do controle repressivo de constitucionalidade, ela é equívoca. A respeito, alerta a Professora GRINOVER: “Quando se fala em exceção, o que se indica é a defesa oposta pelo réu. Essa nomenclatura, no entanto, não é adequada ao controle de constitucionalidade pelo sistema difuso, por via da denominação exceção, porque nem sempre será o réu quem levantará a questão da inconstitucionalidade”.
Já o controle é principal quando compete ao órgão máximo do Poder Judiciário – o
Supremo Tribunal Federal – decidir sobre a constitucionalidade da lei em tese, da lei per si, isto
é, existe uma ação constitucional e um só litígio, no qual a inconstitucionalidade da lei é a lide.
Nesse caso, a inconstitucionalidade é a própria questão principal submetida ao crivo daquele
órgão jurisdicional, ou seja, a inconstitucionalidade é o objeto da lide. É o controle em tese ou
abstrato.
d) Quanto à competência, pode ser difuso e concentrado.
É difuso quando a competência para exercer o controle de constitucionalidade se difunde
por todos os juízes e tribunais, ressaltando que a qualquer juiz ou tribunal, inclusive à Corte
Maior, é dado apreciar, in casu, concretamente, a alegação de inconstitucionalidade, com
competência para decidir sobre todas as questões, de fato e de direito, suscitadas no processo, no
âmbito das suas jurisdições, implicitando, aí, portanto, as questões de direito constitucional.
Ao seu turno, o controle é concentrado quando a competência para julgar a questão de
constitucionalidade se concentra em órgão único, com atribuição exclusiva de apreciar e decidir
sobre a constitucionalidade das leis, através de ações especiais. Esse órgão é o Supremo Tribunal
Federal, ao qual incumbe, privativamente e originariamente, o processo e o julgamento das
representações de inconstitucionalidade, em tese, in abstrato, de lei e ato normativo federal,
estadual ou distrital63 em confronto à Constituição Federal e das representações de
constitucionalidade, igualmente em tese, de lei ou ato normativo federal (artigo 102, inciso I,
alínea a), assim como pela omissão daqueles mesmos órgãos de poder, gerando a inefetividade da
norma constitucional (artigo 103, parágrafo 2º). Ainda, necessário registrar que não cabe à
referida Corte processar e julgar as representações de inconstitucionalidade de atos normativos
estaduais em confronto à Constituição do Estado-membro, cuja competência é atribuída aos
órgãos de Poder do Estado em questão (artigo 125, parágrafo 2º).
e) Quanto ao alcance subjetivo, pode ser “inter partes” e “erga omnes”.
É inter partes quando os efeitos da decisão alcançam somente os litigantes no processo,
não beneficiando senão a quem for parte na demanda em que se reconhecer a
63 . Ao Distrito Federal são atribuídas, consoante o artigo 32, parágrafo 1º, da Constituição da República do Brasil, as competências legislativas reservadas aos estados e municípios. Assim, detém ele as competências residuais, conferidas aos Estados-membros (artigo 25, parágrafo 1º). No âmbito da competência concorrente, pode o Distrito Federal legislar sobre as matérias elencadas no artigo 24, além das competências municipais (artigo 30). Desta feita, em editando lei ou ato – distrital – no exercício de competência estadual, cabível será o processo e o julgamento de representação de inconstitucionalidade em tese, in abstrato, da respectiva espécie normativa.
inconstitucionalidade, o que ocorrerá quando o caso concreto for julgado por juiz singular ou por
tribunal de segundo grau.
É erga omnes na medida em que os efeitos da decisão alcancem todos, partes ou não no
processo, eliminando, por conseguinte, qualquer eventual possibilidade de aplicação futura do ato
já reconhecido como inconstitucional, fato que se vislumbrará no momento em que a lei em tese
for assim julgada pela Suprema Corte brasileira, ou quando a lei eivada de inconstitucionalidade
suscitada incidentalmente e apreciada pelo Supremo em grau de recurso (artigo 102, inciso II,
alíneas a e b, e inciso III, alíneas a, b e c) vier a ser suspensa pelo Senado Federal (artigo 52,
inciso X).
f) Quanto ao alcance objetivo-temporal, pode ser ex tunc, ex nunc ou pro futuro.
Ex tunc, quando os efeitos da decisão são retroativos, isto é, retroagem ao momento da
criação da lei. No que tange ao caso concreto, a declaração de inconstitucionalidade fulmina a
relação jurídica fundada na lei inconstitucional desde o seu nascimento. No entanto, a lei
continua eficaz e aplicável a outros eventuais casos, até que o Senado Federal suspenda, no todo
ou em parte, a sua executoriedade (artigo 52, inciso X), porém com efeitos somente a partir da
data da publicação da decisão desse órgão legislativo, isto é, a norma verificada como
inconstitucional tem retirada a sua eficácia jurídica apenas a partir de então. Já em se tratando de
lei em tese, o entendimento por parte do órgão de cúpula do Judiciário brasileiro de que a mesma
é inconstitucional tem o efeito imediato de eliminar a eficácia e retirar a aplicabilidade dessa lei
no ordenamento jurídico brasileiro, vez que é declarada nula desde a sua edição.
Ex nunc, quando os efeitos da decisão são válidos somente a partir de sua publicação.
Portanto, havendo decisão do Poder Judiciário – juiz ou tribunal – em um caso concreto
declarando a inconstitucionalidade de uma lei, somente a partir da publicação da sentença ou
acórdão é que os seus efeitos são válidos, e somente para as partes nesse caso. Por outro lado, em
se tratando de resolução do Senado Federal, suspendendo, no todo ou em parte, a execução de lei
declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em grau de recurso, os efeitos surtidos
também serão válidos a partir da data da publicação daquele ato legislativo, porém alcançando a
todos, partes ou não no processo em que se originou a relação jurídica.
Pro futuro, quando os efeitos da decisão são impedidos desde um determinado momento,
que vem estabelecido no acórdão. Possibilita-se, assim, por parte do Supremo Tribunal Federal, a
restrição do alcance de sua decisão ou, então, a decisão do momento em que a mesma terá
eficácia (cf. 5.2.1, “i”, infra).
g) No tocante ao alcance objetivo-material, pode ser material e formal.
Material, quando alcança aspectos materiais, isto é, quando a espécie normativa
infraconstitucional discrepar dos princípios explícitos e implícitos na Carta Magna.
Formal, quando alcança aspectos formais, ou seja, caso o modo de elaboração da norma
legal desacorde com a Constituição.
Destarte, face ao exposto já é possível revelar o desenho do modelo de controle de
constitucionalidade brasileiro em vigor.
O modelo de controle de constitucionalidade brasileiro é misto, combinando o sistema de
controle difuso, de inspiração norte-americana, com o sistema de controle concentrado, de origem
austríaca. No sistema norte-americano, originário da célebre e sempre reproduzida decisão do
juiz John Marshall, em 1803, e instituído no sistema brasileiro com a primeira Constituição
republicana, em 1891, a apreciação de argüição de inconstitucionalidade é suscitada na via
incidental, invocada para fins de defesa, pela parte a quem aproveita, no âmbito do processo em
que se discute o caso concreto. Diz-se difuso porque fica a cargo de todo e qualquer órgão
jurisdicional singular ou coletivo. A declaração da inconstitucionalidade tem seus efeitos restritos
às partes, permanecendo a lei eficaz e aplicável às demais relações jurídicas não submetidas ao
crivo do Judiciário, salvo se (e quando) tiver sua executoriedade suspensa pelo Senado Federal.
O sistema concentrado ou direto, proveniente da concepção de Hans Kelsen e positivado
pioneiramente na Constituição austríaca de 1920, foi introduzido no Brasil pela Emenda
Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965. Neste sistema, a apreciação da
inconstitucionalidade da norma faz-se em tese, por órgão único, constitucionalmente designado –
o Supremo Tribunal Federal. O rol de legitimados, também constitucionalmente estipulado, é
restrito e exaustivo. A declaração de inconstitucionalidade pela via direta produz eficácia erga
omnes, tendo o efeito concreto de extirpar do ordenamento jurídico a norma portadora do vício da
inconstitucionalidade.
CONCLUSÕES
1. O controle de constitucionalidade é um mecanismo de auto-proteção da Constituição
de um país, através do qual permite-se o reconhecimento, mesmo em tese, da
inconstitucionalidade das leis e atos que a contrariem, constituindo, assim, uma
verdadeira garantia ao Estado de Direito e à própria federação.
2. Esse controle surge diante da necessidade de se criar instrumentos de salvaguarda da
Lei Maior, tendo em vista a supremacia da Constituição sobre as espécies normativas
que se situam hierarquicamente em patamares inferiores.
3. Somente nos Estados dotados de Constituição escrita e rígida é que se pode falar em
garantia da compatibilidade da hierarquia das normas e sua adequação à Lei
Fundamental (constitucional), na medida em que se acha estabelecida uma forma
diferenciada entre as leis constitucionais e as leis ordinárias.
4. Atualmente há no mundo jurídico, dois grandes modelos de controle de
constitucionalidade: o europeu (ou austríaco), desenvolvido por Hans Kelsen e
positivado na Constituição da Áustria de 1º de outubro de 1920, com a lei de reforma
constitucional de 1929, e o americano, solidificado com a jurisprudência norte-
americana, notadamente no julgamento do caso Marbury versus Madison, em 1803,
com o voto vencedor do Chief of Justice John Marshall.
5. O controle de constitucionalidade pode ser enfocado sob seis critérios: a) quanto à
natureza (político ou jurisdicional); b) quanto ao momento (preventivo ou repressivo);
c) quanto ao processo (incidental ou principal); d) quanto à competência (difuso ou
concentrado); e) quanto ao alcance subjetivo (“inter partes”ou “erga omnes”); f)
quanto ao alcance objetivo-temporal (“ex tunc”, “ex nunc” ou “pro futuro”); g)
quanto ao alcance objetivo-material (material ou formal).
6. Sob a égide da Constituição Republicana de 5 de outubro de 1988, o controle de
constitucionalidade de leis e atos normativos no Brasil ocorre através de um sistema
que combina os métodos difuso e concentrado. Há, portanto, a possibilidade de se
argüir a inconstitucionalidade como incidente procedimental, por via de exceção,
devendo o juiz decidi-la. Os efeitos têm eficácia ex tunc, somente ao caso julgado, in
concreto, permanecendo aplicável a lei considerada inconstitucional até decisão
definitiva do Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário, quando, então, o
Senado Federal poderá suspender a sua executoriedade, retirando-lhe a eficácia, com
efeitos erga omnes e ex nunc.
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