Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

5
Imprimir () 22/03/2013 15:01 Abaixo a criatividade! Por Bruno Yutaka Saito SÃO PAULO O poeta americano Kenneth Goldsmith gosta de poesia, mas acha sua própria escrita chata. Não tem pudor em se autointitular “o escritor mais maçante que já existiu” e admite que não consegue ler seus livros. Mais do que mero artista autodepreciativo ou falsamente modesto, Goldsmith defende ideias que desafiam as noções mais básicas que sustentam e justificam o mercado editorial. Em suas mãos, a imagem romântica do escritor inspirado e os conceitos de escrita criativa e originalidade são revirados, fragmentados e reconstruídos. Para Goldsmith, a beleza está no mundano. Em “Day” (2003), ele transcreveu uma edição inteira do jornal “The New York Times”. “The Weather” (2005) reúne boletins meteorológicos de um ano inteiro, enquanto “Soliloquy” (2001) traz todas as palavras que Goldsmith proferiu durante uma semana. Neste mês ele lança “Seven American Deaths and Disasters” (PowerHouse Books, 176 págs., US$ 19,95, importado), com transmissões radiofônicas de sete momentos cruciais da história americana, como os assassinatos de John F. Kennedy (1963) e de John Lennon (1980), a explosão do ônibus espacial Challenger (1986) e o 11 de setembro de 2001. Em leituras do livro, Goldsmith relata que muitos espectadores choram. Eventos, como o ataque ao World Trade Center, pegaram locutores de rádio de surpresa e foram se desenrolando durante a transmissão. Profissionais que deveriam transmitir as informações de forma clara e objetiva se viram sem chão, misturando chutes, palpites e até preconceitos. Um retrato das emoções e contradições humanas emerge dessa transcrição. Goldsmith não está, de fato, sendo original (e estaria traindo seus princípios se assim fizesse). Marcel Duchamp, a arte conceitual, o dadaísmo, a arte de Andy Warhol, a música de John Cage ou a literatura feita de sistemas de Georges Perec já preconizavam a importância do contexto e da forma e a relativização do conteúdo. E, assim como ocorre com alguns desses nomes, esse novaiorquino nascido em 1961 também enfrenta certa resistência em círculos mais conservadores, que veem nele apenas um provocador e plagiador sem talento. Muitos, no entanto, o ouvem com atenção, assim como ele está atento ao momento atual da cultura do remix. Em 2011, Goldsmith foi convidado para proferir uma leitura na Casa Branca para Barack e Michelle Obama. Seu tema era a ponte do Brooklyn e, após recitar a poesia “tradicional” de Walt Whitman e Hart Crane, ele leu um trecho de seu livro “Traffic”, transcrição de 24 horas de boletins de trânsito de uma rádio de Nova York. É também na mesma cidade onde o Museum of Modern Art (MoMA) o convidou para inaugurar, neste mês, o programa “Artists Experiment”, espécie de residência poética. Se os seus livros são muito mais objetos para serem discutidos, e não lidos, seu campo de atuação tem implicações mais práticas e imediatas. Em 1996, ele criou o cultuado site UbuWeb, um vasto banco de dados virtual em que estão disponíveis raras obras de artistas de vanguarda, entre filmes, músicas, imagens etc. Uma espécie de YouTube das artes em geral. Tudo de graça e não autorizado oficialmente pelos respectivos artistas. Como o site não tem fins lucrativos, Goldsmith afirma nunca ter sido processado.

description

Entrevista com Kenneth Goldsmith concedida ao jornal Valor Econômico, feita por Bruno Yutaka Saito

Transcript of Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

Page 1: Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

Imprimir ()

22/03/2013 ­ 15:01

Abaixo a criatividade!

Por Bruno Yutaka Saito

SÃO PAULO ­ O poeta americano Kenneth Goldsmith gosta de poesia, mas acha sua própria escrita chata. Nãotem pudor em se autointitular “o escritor mais maçante que já existiu” e admite que não consegue ler seus livros.Mais do que mero artista autodepreciativo ou falsamente modesto, Goldsmith defende ideias que desafiam asnoções mais básicas que sustentam e justificam o mercado editorial. Em suas mãos, a imagem romântica doescritor inspirado e os conceitos de escrita criativa e originalidade são revirados, fragmentados e reconstruídos.

Para Goldsmith, a beleza está no mundano.

Em “Day” (2003), ele transcreveu uma edição inteira do jornal “The New York Times”. “The Weather” (2005) reúneboletins meteorológicos de um ano inteiro, enquanto “Soliloquy” (2001) traz todas as palavras que Goldsmithproferiu durante uma semana. Neste mês ele lança “Seven American Deaths and Disasters” (PowerHouse Books,176 págs., US$ 19,95, importado), com transmissões radiofônicas de sete momentos cruciais da históriaamericana, como os assassinatos de John F. Kennedy (1963) e de John Lennon (1980), a explosão do ônibusespacial Challenger (1986) e o 11 de setembro de 2001.

Em leituras do livro, Goldsmith relata que muitos espectadores choram. Eventos, como o ataque ao World TradeCenter, pegaram locutores de rádio de surpresa e foram se desenrolando durante a transmissão. Profissionais quedeveriam transmitir as informações de forma clara e objetiva se viram sem chão, misturando chutes, palpites e atépreconceitos. Um retrato das emoções e contradições humanas emerge dessa transcrição.

Goldsmith não está, de fato, sendo original (e estaria traindo seus princípios se assim fizesse). Marcel Duchamp,a arte conceitual, o dadaísmo, a arte de Andy Warhol, a música de John Cage ou a literatura feita de sistemas deGeorges Perec já preconizavam a importância do contexto e da forma e a relativização do conteúdo. E, assim comoocorre com alguns desses nomes, esse nova­iorquino nascido em 1961 também enfrenta certa resistência emcírculos mais conservadores, que veem nele apenas um provocador e plagiador sem talento.

Muitos, no entanto, o ouvem com atenção, assim como ele está atento ao momento atual da cultura do remix. Em2011, Goldsmith foi convidado para proferir uma leitura na Casa Branca para Barack e Michelle Obama. Seu temaera a ponte do Brooklyn e, após recitar a poesia “tradicional” de Walt Whitman e Hart Crane, ele leu um trecho deseu livro “Traffic”, transcrição de 24 horas de boletins de trânsito de uma rádio de Nova York. É também namesma cidade onde o Museum of Modern Art (MoMA) o convidou para inaugurar, neste mês, o programa “ArtistsExperiment”, espécie de residência poética.

Se os seus livros são muito mais objetos para serem discutidos, e não lidos, seu campo de atuação temimplicações mais práticas e imediatas. Em 1996, ele criou o cultuado site UbuWeb, um vasto banco de dadosvirtual em que estão disponíveis raras obras de artistas de vanguarda, entre filmes, músicas, imagens etc. Umaespécie de YouTube das artes em geral. Tudo de graça e não autorizado oficialmente pelos respectivos artistas.Como o site não tem fins lucrativos, Goldsmith afirma nunca ter sido processado.

Page 2: Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

A prática pode ser controversa, mas espelha também as aulas que ministra na Universidade da Pennsylvania,onde leciona Poesia e Prática Poética. Entre críticas (mas também elogios) de outros professores, Goldsmith partedo princípio da escrita não­criativa (em oposição aos inúmeros cursos mundo afora que buscam aprimorar aqualidade do texto de seus participantes). Numa inversão de valores, os alunos de Goldsmith são proibidos detentar ser originais. Eles devem copiar textos. Da proibição surge um senso de crítica e o desnudamento doscaminhos que levam ao processo criativo.

Fiel ao seu espírito, Goldsmith pediu que a seguinte entrevista fosse feita por e­mail. Assim, pôde usar a técnicade “copiar e colar” à vontade –ao mesmo tempo em que também expõe mecanismos de outra prática de escrita, ajornalística. Escrever um texto original sobre esse poeta é tarefa árdua, e a mera cópia, um plágio.

Valor: Em algumas entrevistas o senhor não elabora novas respostas — algumas vezes percebe­se um processo de“copiar e colar”. Este é apenas seu modo de trabalho (a noção de “remix”) ou uma espécie de crítica ao jornalismo eàs perguntas repetitivas e não­criativas? Devo apenas “copiar e colar” suas respostas de entrevistas anteriores oudevo realmente entrevistá­lo?

Kenneth Goldsmith: Sou entrevistado tão frequentemente e me perguntam sempre as mesmas questões que eunão tenho nada de novo para dizer. Então apenas “corto e colo” respostas anteriores. Mas tudo é novo tanto paraas pessoas que fazem as perguntas quanto para os leitores dessas respostas. A internet nos tornou conscientes doquão grande é o mundo, uma ideia diametralmente oposta ao conceito “McLuhaniano” de aldeia global [referênciaao teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan (1911­1980)]. Não importa quantas vezes falemos asmesmas coisas, sempre parece haver alguém ouvindo aquilo pela primeira vez. Como resultado, nossas vozessingulares — aquela subjetividade sobre a qual toda a literatura é baseada —, na perspectiva global, são umafalácia. Como resposta, estamos procurando novos modos de escrita, que usam textos já existentes, que decidemusar as vozes de outros e tomar como próprias, repetindo o processo “ad infinitum” e refletindo a sala de espelhosdigital que é a internet. Me parece uma maneira particularmente contemporânea de ser um escritor.

Valor: O senhor menciona os conceitos de “estublime” (“stuplime”; estúpido + sublime) no prólogo de “SevenAmerican Deaths and Disasters”. Por que é tão difícil viver uma vida sem clichês? O clichê sempre leva o homem acoisas perigosas (racismo, preconceito, xenofobia etc.)?

Goldsmith: Encontro grandes verdades no clichê, assim como encontro grandes verdades na caricatura. Clichê émeramente um índice: confio nele para ter um quadro geral de uma situação, de onde posso decidir se vale a penaseguir por caminhos menos óbvios. Hoje, nossos papéis de gerenciadores de informação têm nos ensinado aidentificar e compreender conceitos amplos e brutos muito rapidamente. Do mesmo modo rápido, podemosdecidir se aquilo pode ser útil ou não. Este é o começo da classificação da informação, para uma rápida avaliaçãoda relação sinal­ruído. Este é apenas o primeiro, mas crucial, passo.

“Originalidade” e “criatividade” são conceitos superestimados, ilusórios? Por que damos tanta importância a essesvalores?

Goldsmith: Agora vou “cortar e colar”, já que me perguntaram sobre essas questões inúmeras vezes. Tendotrabalhado na publicidade por muitos anos como “diretor criativo”, posso te dizer que, a despeito do queespecialistas da cultura dizem, criatividade — como ela tem sido definida pela nossa cultura e seu intermináveldesfile de livros, memórias e filmes repletos de fórmulas — é algo para ser evitado, não apenas como elemento da“classe criativa”, mas também como elemento da “classe artística”. Vivendo numa época em que a tecnologia estátransformando as regras do jogo em todos os aspectos de nossas vidas, é momento de questionar e derrubar taisclichês, colocá­los no chão, em frente a nós, para então reconstruir essas brasas apagadas para que sejam algonovo, algo contemporâneo, algo — finalmente — relevante.

Page 3: Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

Valor: Quando falamos sobre poesia, não falamos sobre o dinheiro envolvido (porque geralmente não existemuito). É por isso que, em geral, a poesia é uma arte mais pura? O dinheiro estraga as coisas, quando o assunto éarte?

Goldsmith: Pureza monetária na poesia não é uma escolha que fazemos. É uma condição imposta sobre nós. Se eupudesse escolher, eu pediria um adiantamento de US$ 500 mil, como a maioria dos romancistas medianos.Gostaria que minha área me desse essa opção. Mas como não dá, a poesia é obrigada a tomar tantos riscos quantopossível. Isso é muito diferente do, digamos, mercado de pinturas, onde caso um artista de sucesso decida searriscar e mudar seu estilo, isso pode afundar sua carreira. Então, enquanto não temos dinheiro, temos liberdade— e a capacidade para experimentar. E há uma ideia utópica que ainda continua viva na poesia de que ficar para ahistória é mais importante que ser rico. Como as recompensas não devem vir tão já, temos a tendência a ver ascoisas no longo prazo.

Valor: Seus textos me fazem pensar em três famosos livros: a Bíblia, o Alcorão e o Livro Vermelho de Mao Tsé­tung. São três exemplos de livros­objeto. Muitos dizem que leram mesmo quando não os leram. Historicamente,muitas pessoas fizeram coisas más dizendo que foram orientados por esses livros. Qual o perigo quando não se lêcom atenção o conteúdo de um livro?

Goldsmith: Ao contrário, acho que esses três livros são os livros lidos mais atentamente no planeta! Todas asvezes que pego o metrô em Nova York, alguém está inevitavelmente encurvado sobre uma cópia surrada da Bíbliaou do Alcorão, relendo pela milionésima vez. Nem é necessário dizer que as interpretações sobre esses textosdiferem, e coisas terríveis são feitas em nome deles, mas coisas maravilhosas também têm sido feitas. Assim comoa tecnologia, todos os textos são neutros. É o modo como usamos ou abusamos deles que determina seu tommoral e as consequências. Isso é por que fico tão chateado pela tendência dos humanistas digitais que insistemem projetar noções morais humanas em tecnologias neutras. Nada é monoliticamente moral — incluindo nossasmáquinas. Por que iríamos querer que nossas máquinas se comportassem como humanos? Não acredito que o serhumano tem sido um bom exemplo para as máquinas.

Recentemente dei uma conferência em um dos mais proeminentes cursos de escrita criativa na América e, duranteminha fala, propus que, no futuro, os maiores poetas serão aqueles que puderem escrever os maiores programasde computador. O responsável pelo curso me contestou, dizendo: “Mas será que os maiores programadores nãoirão trabalhar para as corporações mais maléficas?”. É uma típica divergência tecnofóbica sobre a neutralidadedas máquinas. Muitos programadores irão trabalhar para corporações do mal, mas muitos também irão trabalharpara o bem da humanidade — mapeando o genoma humano ou fazendo pesquisas sobre o câncer, por exemplo.Há os hackers “black hat” [que usam seus conhecimentos para fins criminosos] e os “white hat” [que respeitam aética e buscam falhas de segurança em sistemas]. Mas o fato é que muitos artistas e escritores ainda temem umasituação tecnológica de um Big Brother monolítico. Rejeito esse tipo de ideias reducionistas. As coisas são muitomais complexas que isso.

Valor: O senhor se considera um herdeiro de Andy Warhol [artista plástico] e John Cage [músico], mas no campoda poesia? Falando em referências: o senhor se sente conectado a John Baldessasri [artista] e Georges Perec[escritor], que trabalharam com conceitos de reapropriação e repetições? O que tem feito essas ideias novamenterelevantes e contemporâneas?

Goldsmith: Tanto Warhol quanto Cage (e Duchamp) previram a maneira como poderíamos nos envolver com alinguagem na era digital. Cada um deles entendeu que toda informação — palavras, imagens, sons etc. — contémem si mesma uma bagagem (humana) intelectual e emocional em que não é necessário adicionar nada novo à ela.Ambos trabalharam por uma arte sem ego, uma arte em que o artista trabalha com diferentes informaçõespreexistentes para criar um novo conteúdo. Mas o erro é achar que é necessário um único ego para criar taisparadigmas, portanto essa é a razão pela qual são considerados gigantes da arte do século XX. No século XX,muitos artistas que quiseram matar a arte frequentemente acabaram idolatrados em museus. Eu os vejo comofiguras quase religiosas, com museus substituindo o papel de igrejas. Warhol e Cage ofereceram — e continuam

Page 4: Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

oferecendo — liberdades intelectuais e filosóficas, que é o motivo pelo qual continuam relevantes. Não acho quepodemos falar de Baldessari e de Perec na mesma frase. Ambos são gigantes ao seu modo, mas seus trabalhos metocam de maneiras muito diferentes. Dos dois, diria que Perec e [o grupo literário francês] OuLiPo permanecemmais relevantes na era digital devido aos seus engajamentos com sistemas e números. Ideias “Oulipianas” setransferem elegantemente ao espaço digital. Por mais que eu adore Baldessari, não vejo muito futuro nele; mas, denovo, não vejo muito futuro para as artes plásticas — pinturas e esculturas únicas — num mundo onde o valor éconcedido pela quantidade e disponibilidade em oposição a um objeto único. Infelizmente, hoje, o mundo da artese parece com um mercado de antiguidades, vendendo objetos únicos para uma clientela minúscula que podesustentar tais luxos. Está se tornando cada vez mais irrelevante. Em breve vamos até esquecer que essa arte jáexistiu.

Valor: Vivemos numa era de impulsos arquivísticos. Há uma grande quantidade de aplicativos para smartphonese aparelhos que permitem aos usuários terem controle sobre suas ações (quantidade de calorias ingeridas, horasde sono dormidas, contagem de passos dados etc.). Quais são os efeitos dessa tendência a longa prazo?

Goldsmith: Tanto Duchamp quanto Erik Satie preconizavam o desejo de viver sem memória, o que me soa comouma noção muito ligada ao século XX; talvez o desejo de viver sem memória seja uma maneira de responder àsperguntas de Adorno sobre poesia após Auschwitz. É bem diferente hoje, quando nada é “não­relembrado” e tudoexiste em websites e linhas do tempo eternamente. Existe um serviço aqui nos EUA em que você paga um preçoelevado para ter coisas removidas da internet. Quando tais vastos bancos de dados de material intelectualexistem, os melhores artistas são aqueles que conseguem fazer uma nova moldura, que conseguem retuitar ereblogar aquele material da forma mais atrativa possível. O trabalho do escritor agora é filtrar o conteúdo jáexistente — nossa memória coletiva —, em vez de criar algo novo. Fazendo isso, eles estão criando algo muito novo(a ideia de remix).

Valor: A cada dia nós temos mais e mais livros sendo escritos e lançados. Para algumas pessoas, escrever é umobjetivo, uma maneira de dar sentido à vida. O que gera e mantém a necessidade humana de livros (além daindústria)?

Goldsmith: Minha geração fez grandes afirmações de que no futuro uma coisa iria substituir outra. Nóspensávamos que a internet iria tornar os livros obsoletos. Em retrospecto, vejo como éramos tolos. Hoje, umamídia não substitui outra; ela complementa outra. Crianças hoje não pensam duas vezes sobre pintura a óleo efazer vídeos no YouTube. Eles ouvem tanto MP3 quanto vinil. Elas entendem que diferentes mídias têm diferentestexturas e são úteis em variar situações de maneiras diferentes.

Valor: O senhor disse certa vez que a UbuWeb não é eterna. É perigoso confiar na nuvem? Você consegue visualizarum futuro em que o conceito de remix no mundo da literatura será mais natural (como é hoje na música)?

Goldsmith: [Esta resposta é um “mix” de respostas anteriores de Goldsmith] Nunca pensada como um arquivopermanente, a UbuWeb pode desaparecer por uma série de motivos: nosso provedor de internet pode desligar atomada, o apoio da universidade pode secar ou podemos simplesmente nos cansar. Aquisição por uma grandeinstituição é impossível: nada está à venda. Não tocamos em dinheiro. Na verdade, o que abrigamos nuncarendeu dinheiro. É um hobby, e um hobby perigoso. Eu posso facilmente ser processado. Mas nós persistimos,sentindo que o bem que fazemos para o mundo prevalece sobre nossas transgressões. O mundo parece concordar,pelo menos nos últimos 17 anos. Amo a ideia de nuvem, mas odeio a realidade dela. A realidade dela não é nadacomo nos foi prometido. Confiar na nuvem é um erro: ela é muito centralizada, muito facilmente bloqueada,muito facilmente controlada. E é privatizada, tem dono, e é administrada por uma pessoa que não é você. Anuvem está presumidamente ao nosso redor, propagandeada como “seus dados, quando você quiser”. Masquando viajo, encontrar conexões “wi­fi” em qualquer parte do globo (com a exceção de, surpreendentemente, a[rede de café] Starbucks) é impossível. Em vez disso, quando estou, digamos, em Barcelona, sou forçado a usar 3Gpor US$ 20/mb. Mas se eu quisesse acessar meus valiosos materiais de mídia da minha “nuvem”, sou forçado apagar caro pelo privilégio. E grátis não é sempre grátis: frequentemente encontro uma altamente censurada

Page 5: Abaixo a Criatividade!, entrevista com Kenneth Goldsmith

nuvem “familiar” na Amtrak [empresa estatal federal de transporte ferroviário de passageiros dos EUA] ou modosde transporte similares, que falsifica suas conexões “hotspot” como uma maneira de preencher seus bancos. Àparte as restrições de conteúdo, a nuvem deles funcionam esporadicamente e lentamente, quando funcionam.“Media streaming” é tão censurada e firmemente controlada quanto a nuvem. YouTube ou SoundCloud não sãobenevolentes ou livres: elas são entidades sólidas em busca de lucros igualmente sólidos — fora de controle,remove e censura o conteúdo. (YouTube na verdade tem um algoritmo que fareja qualquer coisa na forma de umavagina ou um pênis e os remove, seja anatômico ou não). O grátis deles não é grátis: é um anzol, um meio parauma finalidade. Ficamos deslumbrados pelo grátis. Mas na cultura comercial, não há grátis. E há a questãopolítica. Recentemente, quando participei de uma conferência na China, muitos dos presentes deixaram seusdocumentos na nuvem — Google Docs, para ser mais preciso. Você sabe como essa história termina: eles foram àChina e não havia Google. Falta de sorte. O Gmail, que fica na nuvem, estava também indisponível, assim comoestavam as nuvens com fechadura em que eles guardaram suas ricas apresentações. Agendas similarmentetransparentes estavam por trás do desmonte do Megaupload, que, você se lembra, ocorreu no dia seguinte que oprojeto de lei [antipirataria] Sopa foi derrotada [no começo de 2012]. Estou atônito pelo efeito dominó que esseincidente teve em toda a ecologia da nuvem e evidenciou sua fragilidade, vulnerabilidade e controlabilidade.

Valor: O senhor tem algo a dizer (talvez um conselho) para os jovens e tradicionais escritores que querem viver deescrever?

Goldsmith: Não tenho muita coisa a dizer para eles. Recentemente tive uma experiência ruim de falar para umgrande grupo de estudantes de escrita criativa de Master of Fine Arts aqui em Nova York. Após falar sobre minhasideias a respeito de escrita não­criativa, vi que eles não estavam mais prestando atenção. Eles não estavaminteressados em ideias; eles estavam interessados em vender livros pelo maior valor que eles pudessem, quepudessem ter chance de ser transformados em filmes de Hollywood. Eles vivem num mundo diferente daquele quevivo. Não os invejo por quererem fazer dinheiro, apenas me ressinto que o que eles fazem ainda é chamado pelamídia “mainstream” de “arte” e vence prêmios como se fossem os mais “criativos” escritores, quando é obviamenteformulaico. Mesmo quando a escrita audaciosa se proclama formulaica (escrita conceitual, escrita não­criativa),ela é rejeitada como “experimental”, “avant­garde” ou “não­comercial”. Novamente, eu não os invejo pelo quefazem, apenas gostaria que fossem honestos sobre o quão não­criativo eles são de fato!

Valor: O senhor poderia falar sobre sua conferência no MoMA [Museum of Modern Art, em Nova York], “Minhacarreira na poesia, ou como aprendi a parar de me aborrecer e amar a instituição”? Por que a crítica à instituição éo próximo passo da poesia?

Goldsmith: A poesia despreza a instituição. Não confia nela, o que é algo que entendo, já que a poesia étradicionalmente ignorada pelas instituições. Então a suspeita é mútua. No entanto, minha trajetória tem sidodiferente. Fui aceito pelas instituições e tenho achado­as insanamente abertas a ideias estranhas. Ensino aplagiar na Ivy League — grupo de universidades de prestígio nos EUA —, tenho defendido a cultura livre e lidotrabalhos apropriados na Casa Branca para o presidente Obama e a primeira­dama, e recentemente, fui o primeiropoeta laureado do MoMA. Em todas essas situações, fiz o que era esperado que eu fizesse, fiz o que não erapermitido, e ainda assim, de alguma forma, eles me deram permissão para fazer o que eu queria. Ninguém temdito não. Então isso me faz repensar a relação de adversário da poesia com a instituição. Agora que a instituiçãonos aceitou e nos apoiou, é nosso dever quebrar a instituição — ou ao menos morrer tentando.

(Bruno Yutaka Saito | Valor)