abordagem ecossistemica da saude.pdf

202

Transcript of abordagem ecossistemica da saude.pdf

333

Marcus Vinícius PolignanoEugênio Marcos Andrade Goulart

Antônio Thomaz Gonzaga da Matta MachadoApolo Heringer Lisboa

Organizadores

Belo Horizonte - 2012

Abordagem ecossistêmica da saúde. Org.: Antônio Thomáz Gonzaga da Matta Machado, Apolo Heringer Lisboa, Eugênio Marcos Andrade Goulart, Marcus Vinícius Polignano. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy, 2012. 200p. il.:

ISBN 978 85 98659 04 6

Bibliografia.

A156

CDU 577.64

1. Saúde coletiva; 2. Meio ambiente; 3. Bacia hidrográfica; 4. Mobilizaçãosocial; 5. Extensão universitária; 6. Educação ambiental; 7. Metodologia epesquisa; 8. Projeto Manuelzão; 9. Rio das Velhas; I. Polignano, MarcusVinícius. II. Goulart, Eugênio Marcos Andrade. Lisboa, Apolo Heringer.Matta-Machado, Antônio Thomáz Gonzaga.

Ficha catalográfica elaborada por Júlio César Amorim CB17495

Universidade Federal de Minas GeraisReitor: Clélio Campolina Diniz

Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton

Faculdade de Medicina da UFMGDiretor: Francisco José Penna

Vice-Diretor: Tarcizo Afonso Nunes

Conselho Editorial do Projeto Manuelzão da UFMGAntônio Leite Alves Radicchi

Antônio Thomaz Gonzaga da Matta MachadoApolo Heringer Lisboa

Eugênio Marcos Andrade GoulartMarcus Vinicius Polignano

Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

Projeto Gráfico e ArteProcópio de Castro

Fotos da capaProcópio de Castro e Acervo Projeto Manuelzão

Revisão: Eugênio Marcos Andrade Goulart, Danielle Alves Lopes e Paulo Barcalla Peixoto.

Editora: Instituto Guaicy / Projeto Manuelzão da UFMGAv. Alfredo Balena 190, CEP 30130-100, Belo Horizonte, Minas Gerais

Telefone: 055 0XX 31 34099818 – www.manuelzão.ufmg.br

Distribuição gratuita.

Copyright © Projeto Manuelzão da Universidade Federal de Minas GeraisÉ permitida a reprodução de trechos deste livro desde que citados o autor e a fonte.

APRESENTAÇÃO

Aperspectiva ecossistêmica, para além da visão compartimenta-da e repartida da vida, coloca-se no contexto das mudanças etransformações que o mundo começa a experimentar, na auro-ra deste terceiro milênio, diante da percepção de que a existên-

cia dos seres vivos, entre eles os humanos, só se manifesta plenamente na suatotalidade, o que inclui a imensa e complexa teia de interações entre tudo oque vive e existe no universo.

A cultura antropocêntrica que domina a civilização humana, sobretudono ocidente, criou o mito da hegemonia do homem sobre a natureza e a ilu-são de que somos seres autônomos e independentes, como se a vida humanapudesse existir sem os demais seres vivos e o meio físico que a cerca. Na ver-dade, o que existe é uma total e irreversível relação de interdependência enteos recursos naturais e uma junção indissolúvel dos fatores bióticos, abióticose antrópicos.

Tudo está ligado a tudo.Por isso, este livro constitui uma extraordinária colaboração para a edifi-

cação de novos conceitos e paradigmas do novo pensamento contemporâ-neo: holístico e universalista. Todavia, o advento de paradigmas inovadorespressupõe mudança de mentalidade. Ou seja, é necessário mexer com amente das pessoas para estimular um jeito novo de pensar e de ver a realida-de. E eis aí o grande mérito deste livro.

Mais uma vez, o Projeto Manuelzão, idealizado pelo Professor ApoloHeringer Lisboa, contribui, pioneiramente, para introduzir no debate da polí-tica ambiental e de saúde a visão ecossistêmica que redescobre os seres huma-nos como parte da natureza. E, como um dos organizadores desta publica-ção, o professor Marcus Vinicius Polignano logra reunir artigos e ensaioscapazes de evidenciar a centralidade do tema.

Os autores nos informam que o binômio saúde-doença, na sua aparenteseparação e mal compreendida dualidade, não se resume exclusivamente aoque pode ocorrer com o nosso corpo, como se fora um ente vivo autômato,mas que deve ser percebido enquanto parte de um ecossistema integrado atodos os demais. Demonstram com exemplos e de forma didática que somosparte inseparável tanto do mundo natural quanto do mundo cultural, amboscom uma história de bilhões de anos. Integrados a este sistema complexo edele recebendo influências positivas ou negativas, dependendo do estado do

3

meio ambiente e da nossa mentalidade, percebemos que estamos imersos nadimensão evolutiva e cósmica dos meios físico, biológico e social, do qual acultura política e econômica são partes.

O meio ambiente está em nós, nos formou e forma, nos cerca, nos envol-ve, nos alimenta, nos veste, nos abriga e nele podemos encontrar os elemen-tos lúdicos da paz individual e coletiva da nossa saúde, enquanto seres vivosintegrados a todos os demais ecossistemas e em escala planetária.

A ausência de uma abordagem holística, levando em conta o paradigmada complexidade ecossistêmica, como preconizada neste livro, transforma adoença e não a saúde no foco das preocupações governamentais e das políti-cas públicas. Não por acaso, saneamento ambiental não está inserido na polí-tica de saúde no Brasil. Os recursos destinados ao saneamento crescem porpressão legitima da demanda e de lobbies de duvidosa idoneidade e entramem disputa com os da rede assistencial e vice-versa, numa competiçãoincompreensível. A degradação ambiental de nossos rios, pelo lançamento in-natura de esgoto e de outros efluentes indesejáveis, aguarda tratamento paraque tenhamos as águas da saúde, da irrigação saudável, da volta dos peixes edo nado das crianças.

Sem um meio ambiente saudável, a medicina preventiva, já relegada aplano secundário, é incapaz de cumprir seu papel e evitar as doenças provo-cadas pela degradação ambiental. Este contexto, lamentavelmente, reforça oparadoxo de a saúde estar subordinada à doença, aquela em função desta.

Engenheiro Florestal, Secretário de Estado de Meio Ambiente eDesenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais de 2003 a 2010

4

5

INTRODUÇÃO

Como todas as demais espécies, os seres humanos vivem em ecossis-temas criados pelos seus acúmulos culturais, onde desenvolvemhabitats e nichos cada vez mais sofisticados, mas nunca deixam deser uma espécie animal. E mais, compreendemos que a espécie

humana vive em sistemas econômicos que completam seu meio ambiente enecessita do meio ambiente para sua sobrevivência individual e social. Esta espé-cie poderia ser sujeito de uma grande obra ambiental, utilizando as ciências e tec-nologias no cuidado com a natureza, da qual é sua parte consciente. Precisamoster uma visão biocêntrica de gestão de nossa sociedade, respeitando o direito dasdemais espécies aos ecossistemas, que irão nos beneficiar sempre, e renunciar auma postura antropocêntrica insustentável. Daí a importância que atribuímos àtransformação da mentalidade cultural.

Ao focarmos inicialmente as atividades do Projeto Manuelzão da Universi dadeFederal de Minas Gerais no território da bacia hidrográfica do rio das Velhas, emMinas Gerais, o fizemos com objetivos metodológicos e estratégicos bem claros.

Criticando a visão aleatória e assistencialista de tratar o processo saúde-doen-ça feito pela saúde pública brasileira, subordinada aos programas centralizadosgovernamentais e do Estado, propusemos o enfoque da Saúde Coletiva, com avisão ecossistêmica da saúde humana subordinada a conceitos ecológicos.

Isso levou o Projeto Manuelzão a construir conceitos colocando a água nocentro da questão ambiental e a questão ambiental no centro da questão econô-mica. Desenvolvemos uma linguagem compatível em qualquer parte do planeta.Adotamos o território das bacias hidrográficas e os ecossistemas no centro da geo-grafia política e da vida. Fomos percebendo a base mais profunda da vida no ter-ritório geológico e nas águas, como suportes da biodiversidade, ela própria reflexode uma realidade sistêmica universal, natural e cultural. As águas nos levaram acompreender melhor a globalização. O ciclo hidrológico, as correntes marítimas,as migrações de aves e peixes pelos rios e mares são exemplos de que a vida naTerra não obedece fronteiras criadas pela divisão político-administrativa dos paí-ses. A natureza da gestão ambiental também não se subordina à lógica territorialda divisão político-administrativa internacional e dos países.

Costumamos dizer que a bacia do rio das Velhas nos deu régua e compasso,de onde estamos partindo para uma atuação mais extensa, com mais base territo-rial, sem a qual não sobrevivemos, pela natureza do nosso empreendimento e seusfundamentos políticos e metodológicos. Pretendemos agora inaugurar um novomomento universal e internacional, rompendo a exclusividade de atuação na bacia

6

do rio das Velhas, sem abandoná-la, pois é o nosso berço e referência mais intensa.O Projeto Manuelzão é fruto desta visão ética, política e filosófica. Visão que

procura equacionar e resolver a contradição entre a questão social e a questãoambiental; entre a natureza e a consciência; entre economia e biodiversidade;entre saúde humana e a saúde dos ecossistemas. Ele se consolida como alternati-va de construção de políticas transformadoras da sociedade e das relações huma-nas com o meio ambiente. Suas atividades têm possibilitado a elaboração de pro-postas políticas inovadoras dentro de uma perspectiva transdisciplinar.

A democracia que praticamos é fruto da coesão molecular de nossa propos-ta, de fácil compreensão, que possibilita a autonomia de ação em torno do terri-tório da bacia hidrográfica e da “volta do peixe”, constituindo a água um elemen-to central de mobilização e de monitoramento do processo de transformação damentalidade cultural humana. Esta proposta abriu caminho para a construção deum imaginário político e filosófico de articulação entre ações internacionais dediversos atores que, a partir de suas atividades específicas, contribuam para umaproposta de governo da Terra, aliando ciência, sociedade e sonhos.

Este livro apresenta a evolução do pensamento do Projeto Manuelzão nocampo da abordagem ecossistêmica em saúde nos últimos 16 anos. Mostra a evo-lução do pensamento complexo tendo como o eixo a relação saúde e ambiente,economia e ecologia.

Assim, nos primeiros capítulos, procuramos discutir os conceitos e a evoluçãodos conceitos de saúde, em especial da saúde coletiva, que moldaram a nossa formade enxergar e interpretar a questão. A partir desses conceitos, procuramos demons-trar a nossa prática focada na visão ecossistêmica num território geoambiental.

Na construção dos capítulos deste livro procuramos desenvolver conceitosque se aplicam ao entendimento amplo da relação da sociedade humana com asua ação transformadora da natureza, produzindo efeitos sinérgicos e sistêmicosem todo o planeta, comprometendo a vitalidade e a saúde de toda a biodiversida-de, inclusive do próprio ser humano.

Um outro esforço foi o de demonstrar a necessidade da interface dos saberes,dos profissionais e da sociedade para atuar em sistemas complexos envolvendo arelação saúde-ambiente, e isso passa necessariamente pela construção da transdis-ciplinaridade.

Esperamos, ao final, oferecer ao leitor uma visão crítica e sistêmica da abor-dagem ambiental que possa ajudar a construir novos modelos interpretativos e deintervenção no que denominamos de abordagem ecossistêmica em saúde.

Coordenadores do Projeto Manuelzão

7

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃOJosé Carlos Carvalho

INTRODUÇÃO

Saúde coletiva versus saúde pública: a visão ecossistêmica naconstrução de sistema de saúde

Marco conceitual do Projeto Manuelzão na construção dasaúde coletiva

A água como matriz de abordagem ecossistêmica

As cidades, a crise ambiental e novos territórios para a saúdecoletiva

Epidemiologia e bacia hidrográfica: a relação entre córregospoluídos, mortalidade infantil e diarréias, em Belo Horizonte,Brasil.

Educação Ambiental e a revitalização de córregos: a experiênciaem uma microbacia urbana

03

05

09

27

53

71

89

107

8

Indicador de Educação Ambiental de escolas públicas da baciahidrográfica do rio das Velhas – Minas Gerais: proposta de ummétodo analítico

A poluição na bacia aérea da Região Metropolitana de BeloHorizonte e sua repercussão na saúde da população

Agrotóxicos no Brasil: a saúde do trabalhador e a saúdeambiental sob risco.

A medicina e sua transdisciplinaridade

Abordagem ecossistêmica e a construção de políticas públicas

149

163

179

125

141

9

Saúde coletiva versus saúde pública:a visão ecossistêmica na construção de

sistema de saúde

1. Introdução

Oesforço de compreensão do processo saúde-doença tem umalonga história, do xamanismo até o pensamento complexocontemporâneo. Sucessivas teorias guiaram a humanidadeem momentos da longa travessia, na busca de explicações à

curiosidade natural que o advento da consciência criou no Homo sapiens. Emuitas outras teorias mais poderosas e abrangentes surgirão. Desde as con-cepções mágicas e divino-demoníacas que se enquadram no xamanismo, deuma linha de racionalidade religiosa, fomos passando por um período detransição à racionalidade científica, com teorias como da geração espontâ-nea, dos miasmas, da microbiana, da ecológica, da determinação social e,mais contemporaneamente, a visão ecossistêmica da saúde coletiva. Todosesses períoddos, ainda existentes hoje, na forma característica ou mesclada,tiveram seu auge mundial, e correspondem a diferentes concepções e visõesde mundo.

A abordagem clínica dos fenômenos, com enfoque individual, contrastacom a abordagem que veio a ser feita pela epidemiologia, que analisa o perfilcoletivo dos fenômenos. Foram um considerável avanço os estudos de JohnSnow na Inglaterra, em meados do século XIX, quando, pesquisando umaepidemia de cólera em Londres, por encomenda governamental, criou os fun-damentos científicos desta nova disciplina, a Epidemiologia. Suas conclusõesapontaram para a responsabilidade dos esgotos lançados no rio Tâmisa, cujaságuas eram utilizadas no abastecimento da população de Londres.

Os estudos da história natural das doenças infecciosas transmissíveis edas parasitárias, descrevendo conceitos como ciclos, hospedeiros,vetor/transmissor, agente etiológico e outros, marcaram a história da medi-

10

cina e da epidemiologia, representando um avanço científico e a superaçãodas teorias anteriores, como da geração espontânea e dos miasmas.

A abordagem clínica, a unicausalidade, a tríade ecológica têm uma abor-dagem compatível, seja com a determinação basicamente biologicista ou reli-giosa dos fenômenos, a partir do corpo e dos órgãos, degenerando ou sendoinvadidos por alguma causa externa, enquanto a epidemiologia e a multicau-salidade se abrem a uma abordagem com enfoque coletivo e plural, demons-trando, pela sua complexidade, um avanço nas considerações anteriores sem,no entanto, excluir essas considerações.

Historicamente, essas teorias se enfrentaram e, ainda se enfrentam, deforma dicotômica, excludentes entre si e de um possível terceiro termo daequação. Na multicausalidade, por exemplo, a abordagem pode ou nãoincluir a concepção social como uma de suas variáveis constitutivas. Não sãosinônimas, mas podem se entender. Também a epidemiologia, embora tenhaum enfoque coletivo, não necessariamente esse enfoque inclui a teoria dadeterminação social do processo saúde/doença. Em geral, cada teoria procu-ra engolir a outra, desconhecendo seus elementos agregadores. Pois até aquitem predominado a lógica formal excludente de A não é não-A, que prevale-ceu desde o sucesso da física clássica com Isaac Newton e outros, entre osséculos XVII e XVIII. Nessa lógica, não existe T, um terceiro termo que é, aomesmo tempo, A e não-A. O termo T é sistematicamente o terceiro excluí-do.

Com a física quântica, cuja descoberta mudou o mundo anterior, new-toniano, da física clássica, trazendo à cena as conseqüências das descobertasde Einstein e Max Planck, se trabalha com a complexidade: o indeterminis-mo; a causalidade geral e a descontinuidade. A lógica quântica trabalha comníveis de realidade diferentes, faz a crítica da causalidade local e da continui-dade da física clássica.

Os níveis de realidade são descontínuos, possuem leis próprias, leis estasque surgem junto com o próprio surgimento dos níveis na evolução doUniverso. E se articulam numa coerência descontínua. Por exemplo: para Ae não-A, faz um termo T, que pode se relacionar enquanto T com T¹ de outronível contíguo com um par A¹, e não-A¹; depois T¹ se articula com T² juntocom A² e não-A², e assim são os diversos níveis de realidade.

Interessante a analogia e a comparação com as pesquisas de opiniãopública, que são estratificadas, pois cada estrato representa um nível diferen-ciado de percepção e tem peso diferente em termos de quantum populacional.É uma forma de percepção de níveis de realidade, acoplados como as cascasde uma cebola.

11

O marxismo assumiu o isomorfismo em relação à física clássica e caiu natentação de imaginar a vida social com a perfeição e a simplicidade de umrelógio ou a previsibilidade das órbitas do nosso sistema solar. Essa visão colo-ca os fenômenos num mesmo nível de realidade, imaginando a continuidadee, assim, tentaram predizer o futuro da humanidade. O resultado nessescasos sempre é catastrófico. Exemplo: produziu-se um capitalismo deEstado, com acumulação primitiva de Estado e ditadura, na suposição deconstrução do socialismo. Primeiro, supuseram que A (capital) e não-A (tra-balho) eram excludentes, construindo a ideologia comunista da luta de clas-ses, na verdade uma redução do conceito de Marx; segundo, só admitiam umnível de realidade e não percebiam outros níveis nem o termo T um nívelacima, de caráter includente, que permitiria construir o socialismo democrá-tico, sem eliminar por decreto o capitalismo, incorporando-o como parteconstitutiva do processo de sua própria transformação, como, brilhantemen-te, compreendeu Karl Kautsky em seu livro “A ditadura do proletariado”,uma crítica do bolchevismo. Na lógica quântica A pode ser não-A; e há T, oterceiro incluído.

O que vem a ser lógica? Lógica é a ciência que tem por objeto de estudoas normas da validade, da “verdade”. O pensamento complexo da transdisci-plinaridade tem uma outra lógica, diferente da lógica clássica e os seguintespilares: 1) Admite os níveis diferentes de realidades; 2) Complexidade; 3) Oterceiro termo incluído T. Esses três pilares determinam a metodologia trans-disciplinar.

Um raciocínio que contribui para a construção do terceiro termo inclu-dente e de superação da dicotomia entre as concepções biologicista e dadeterminação social do processo de saúde/doença é o seguinte: a naturezatomando consciência de si produz a cultura, uma segunda natureza huma-na, que condiciona a primeira. Como exemplo, criou o matrimônio. A cultu-ra e a biologia são inseparáveis estruturalmente e, portanto, nenhuma con-cepção poderá excluí-las de uma abordagem integrada. A pulsão biológicanatural, construída nos processos evolutivos, passa, necessariamente, a terque se entender com os processos socioculturais da segunda natureza.

A forma excludente do questionamento da primeira teoria ecológica, aque trata dos ciclos parasitários dos hospedeiros, dos vetores, dos agentesetiológicos, feita pela teoria da determinação social, precisa ser revista à luzde nova lógica. A crítica que a teoria ecossistêmica de Saúde Coletiva possafazer da teoria da determinação social e da primeira teoria ecológica - Tríadeecológica de Leavell e Clark – não poderá incorrer nesse equívoco metodoló-gico. Nosso método de pesquisa não inclui, necessariamente, ou, obrigatoria-

12

mente, a exclusão dos elementos de níveis inferiores que possam compornossa teoria; pelo contrário, é nossa fonte de informações, no metabolismoda construção da transdisciplinaridade.

No livro Saúde na Sociedade (Breilh e Granda, 1986) publicado pelaAbrasco, no Capítulo 1: Introdução ao método de investigação epidemioló-gica, há um subcapítulo: Notas teórico-metodológicas - página 13, que ela-bora de forma didática a questão básica da metodologia de investigação.Trata as diferenças entre os métodos clínicos e epidemiológicos: 1) métodoclínico é um sistema de pensamento ligado ao indivíduo. Os limites da prá-tica clínica estão na investigação do indivíduo, no DNA ou no meio imedia-to ou familiar. Por isso concentra as atenções nos sistemas orgânicos-biológi-cos do indivíduo; 2) o método epidemiológico estuda o processo saúde-doen-ça em sua dimensão coletiva, não, necessariamente, social. Na epidemiolo-gia, as doenças são produto direto ou indireto das condições coletivas de exis-tência da sociedade.

A teoria da determinação social do processo saúde/doença enuncia osobstáculos da epidemiologia tradicional na interpretação científica do pro-cesso saúde-doença e das concepções de causalidade. Temos: 1) a origem posi-

Na epidemiologia, as doenças são produto direto ou indireto das condições coletivas deexistência da sociedade. Foto: Diego Lara.

13

tivista da epidemiologia – trata de fatores sem estudar as suas relações inter-nas. Exemplo da tuberculose. Seriam vários fatores, vistos como abstrações,como aglomeração, desgaste físico, alimentação, sono, mas a relação entreestes fatores não é estudada; 2) a visão de uma sociedade composta comoagregado de elementos homogêneos, naturais, o caráter ecológico da socieda-de e do meio ambiente em que se desenvolve. Assim, afasta a determinaçãoeconômico-social dos fenômenos de morbi-mortalidade.

Essa naturalização ou ecologização dos aglomerados humanos e seusproblemas, que seria característica da tríade ecológica de Leavell e Clark(1976), entraria em confronto conceitual com a diferenciação introduzidanaquela sociedade pelos processos socioeconômicos, como classes sociais eprocessos de trabalho, segundo a teoria da determinação social. Interessanteque a recíproca também deveria ser percebida na crítica e geralmente não é;fica sendo uma oposição mecânica de negação. Isso porque a teoria da deter-minação social não percebe a condição ecossistêmica da Saúde Coletiva,como a realidade social construída pela segunda natureza do habitat huma-no, e, portanto, não-natural e socialmente determinada. Transformaram suacrítica num panfleto anti-capitalista. Foi por isso que se omitiram na críticado socialismo real, não percebendo que era capitalismo de estado.

E mais: o desconhecimento das características da questão social, comodeterminantes, como classes, processo de trabalho, salários, insalubridadeetc., levaria a concepção ecológica a uma postura conservadora e de apoio aosistema de exploração.

Para a teoria da determinação social, a teoria da tríade ecológica se baseianum sistema equilibrado (saúde) no qual a normalidade é o equilíbrio e nãoa mudança, que traria ou seria a doença. Fica, então, uma percepção diferen-ciada entre a teoria da tríade ecológica e a teoria da determinação social. Ateoria da determinação social não leva na devida conta a proposição ecológi-co-biológica, antes excluíndo-a que integrando-a, atribuindo o conjunto dosfenômenos do processo saúde-doença às diferenças entre classes sociais e suasconseqüências patológicas. Caberia a pergunta: numa eventual sociedadecomunista no mais alto grau de desenvolvimento, que seria a sociedade anar-quista sem classes, não haveria doenças? Caso a resposta seja afirmativa,seria a confirmação da teoria ecossistêmica de Saúde Coletiva. Pois não have-ria exploração e discriminação social, seria de supor qualidade de vida e rendasuficiente para uma distribuição saudável. Caso contrário, seria a negação doprincípio de que as doenças seriam consequência da sociedade de classes. Esteé o preço que se paga com a aplicação da lógica clássica da exclusão do tercei-ro termo que ela não inclui em sua equação e, portanto, não pode enxergar.

14

Vamos fazer aqui alguns comentários atribuídos às três teorias de causa-lidade no processo saúde-doença: unicausalidade, multicausalidade e a tríadeecológica de Leavell e Clarke.

1) Unicausalidade – Atribuiria causa única colocada fora do organismoagredido. O exterior comandaria, gerando o temor à invasão, seja dos fluídosmiasmáticos invisíveis, dos demônios, maus olhados, mais tarde micróbios,produtos tóxicos ou outros, que como setas malditas realizariam seja o cas-tigo dos deuses, seja a maldição do capitalismo.

2) Multicausalidade – consolidada na década de 1960. A complexidadedas relações sociais e tecnológicas propiciou essa mudança. Macmahon(1975), um dos seus teóricos, dizia que “a epidemiologia pretende ter o pro-pósito prático de descobrir as relações que ofereçam possibilidades para a pre-venção da doença. Não somos capazes, muitas vezes, de descobrir algumpoder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligue o efeito à causa efaça com que um seja consequência infalível da outra”. A teoria da multicau-salidade não pode fornecer as causas fundamentadas, mas uma resposta prá-tica, segundo os críticos da teoria da determinação social, como cortandocadeia de variáveis. Somente a teoria da determinação social teria a graça detudo explicar. E o pior é que não explica, como veremos.

3) Tríade ecológica de Leavell e Clark – segundo Breilh (1986) seria umavariante mais dinâmica da concepção multicausal. As causas se ordenariamem três possíveis categorias que intervêm ou condicionam o aparecimento eo desenvolvimento da doença. Estes três fatores são: o ambiente; o hospedei-ro; o agente etiológico. Exemplo: falta de alimentos (desequilíbrio ambien-tal); baixa de resistência às infecções (hospedeiro); ativação do bacilo de Koch(agente), tudo isso provocando o desequilíbrio do organismo do indivíduo eo aparecimento da tuberculose. (Leavell e Clark, 1976)

Segundo seus críticos, filiados à teoria da determinação social, essa con-cepção ignora a categoria social do homem. Considerando-o um fenômenoou categoria meramente biológica, escondendo-se as determinações sociaisde produção.

Uma réplica às concepções tradicionais sobre a produção da doença foidesenvolvida por Thomaz Mc Keown (1976) a partir do fenômeno da tuber-culose na Inglaterra. Esse estudo teve grande importância ao ficar comprova-do que a tuberculose sofreu impacto muito pequeno com a introdução daestreptomicina, mas que cedeu, principalmente, por causa de mudanças naqualidade de vida. Em resumo, Mc Keown consegue superar as limitações daepidemiologia tradicional e não parte do individual para tratar de compreen-der o particular e o geral. Procede inversamente na colocação do problema do

15

processo saúde-doença. Essa conclusão é muito importante para a teoria dadeterminação social das doenças, mas também permite criticá-la tanto comouma volta a unicausalidade, quanto uma conclusão a favor da concepçãoecossistêmica em Saúde Coletiva.

Tem sido comum o questionamento da concepção ecossistêmica daSaúde Coletiva com argumentos utilizados no passado contra a teoria mul-ticausal da Tríade ecológica de Leavell e Clark. Já expusemos que essa rejei-ção em bloco feita com a visão excludente da lógica clássica é incompatívelcom a construção do conhecimento da realidade complexa. A teoria da SaúdeColetiva supera em complexidade a teoria da Tríade ecológica, pois assimilaboa parte da crítica construída pela teoria da determinação social. Por outrolado, fizemos a crítica da visão isomórfica que a teoria da determinação socialherdou da assimilação acrítica do classicismo da visão marxista, herdada dainfluência gigantesca que sofreu da física clássica newtoniana, como da con-tinuidade e da previsibilidade dos fenômenos.

A teoria da determinação social do processo saúde-doença, com prepon-derante influência de correntes marxistas, tem história análoga às de outrasdisciplinas e ciências. Embora contribuam para o avanço do pensamentohumano, tornam-se conservadoras no momento seguinte. A busca das cau-sas das doenças tem sido o motor das teorias explicativas desses processos.As teorias de causalidade mais importantes podem ser classificadas em uni-causais, multicausais e a tríade ecológica. No século XX, a teoria da determi-nação social do processo saúde/doença questionou fortemente as concepçõesanteriores, fundadas nas descobertas científicas a partir de Louis Pasteur,Robert Koch e outros, cujas teorias tinham embasamentos científicos e foconos aspectos orgânicos e individuais.

2. Os conceitos de saúde e a construção de sistema de saúde

O divisor de águas dos nossos dias, quando o tema é saúde, se situa entrea teoria da determinação social e a teoria ecossistêmica. Em outras palavras:entre a Saúde Pública e a Saúde Coletiva, conceitos que se tornaram diame-tralmente opostos, mas, cujas fronteiras conceituais, estão sendo dissimula-das pela teoria hegemônica, que é a da Saúde Pública. No Brasil, é o caso doSistema Único de Saúde (SUS), condicionado aos interesses das elites e deEstado, onde os interesses da população entram como coadjuvantes. Naconstituição do SUS, o interesse dos lobbies da indústria da doença nos con-tratos de fornecimento universal de equipamentos, insumos e instalações écamuflado dos nossos olhos, como o é a face oculta da Lua. Jamais o SUS

16

teria sido implantado apenas pela pressão popular, mesmo porque a sua pro-posta não é de Saúde Coletiva, e, sim, de extensão de cobertura, um apeloque pode ser assumido pelo populismo sem comprometer o processo dedominação.

O sanitarismo oficial, vertente da Saúde Pública que dirige o SUS, abri-ga diversas correntes de interesses mais que de pensamentos, todas oriundasda esquerda. Elas ascenderam politicamente no enfrentamento do modelohospitalocêntrico e do cruel e prolongado abandono das classes sociais de tra-balhadores urbanos e rurais. Tem ele, reconhecemos, um caráter progressistademocrático-burguês, assumindo a teoria da determinação social do proces-so saúde/doença, fazendo uma leitura marxóide e propondo a simplificaçãoe generalização da prestação dos serviços assistenciais de massa. Propõe aextensão de cobertura assistencial e a atenção primária, através dos mecanis-mos que hoje se consolidaram no SUS, anunciando o acesso universal emigualdade de condições e a equidade na qualidade dos serviços como pilaresdo sistema. Vai além: garante legalmente o acesso aos serviços na categoriade altos custos e a atenção hospitalar de nível terciário e quaternário. Foi umavanço importantíssimo sobre o modelo anterior, embora esse acesso sejamuitas vezes garantido apenas virtualmente e seja letra morta, como o prin-cípio da equidade. Participei pessoalmente desse momento político profícuode fundação do SUS. Contribuí e o conheço profundamente, tendo me afas-tado dele no processo de construção da alternativa ecossistêmica. Mas énecessário afirmar e grifar: a Saúde Publica brasileira morreu na praia, foi atéonde podia e ficou prática e conceitualmente aquém das necessidades e daspossibilidades históricas, se degenerando e inchando.

Essas correntes começaram lentamente a ocupar o aparelho de Estado,ainda no período da ditadura militar, e com sua racionalidade de Estado tive-ram sucesso burocrático. Só perdem a fleuma quando a população conside-rada despolitizada e ingrata denuncia o SUS diante do desatendimento. Elashabituaram-se ao uso do Sistema Único de Saúde como solução de controlepolítico-social para as massas pobres ou discriminadas, o que traz legitimida-de institucional ao Estado e a eles, perdendo, a partir daí, qualquer papeltransformador e crítico diante do sistema político-econômico. Hoje, são ape-nas os teóricos do Estado, gerindo no interesse do sistema as questões sociais,políticas e econômicas que giram em torno da assistência médica e do discur-so ideológico sobre a saúde. Foi o que sobrou ao atingirem o topo institucio-nal e anunciarem o fim da história! Impacientam-se diante dos questiona-mentos ao SUS e assumem atitudes repressivas diante dos episódios de revol-tas individuais ou coletivas ao mau atendimento dos serviços públicos. Todo

17

debate conceitual os irrita, o que é tanto compreensível quanto inaceitável.Na prática, estão dizendo: “o SUS em si é bom, em mim não”.

Pessoalmente optaram pelos melhores planos médicos, receitando o SUSpara as famílias dos outros. No caso específico da assistência médica, não sig-nifica dizer que a opção dos dirigentes do SUS pelos planos médicos seja umbom negócio ou que atribuem qualidade a esses planos, nem que tudo noSUS não funciona. Nossa crítica não tem essa linearidade e superficialidade.A discussão é mais séria. É até muito comum os ricos se utilizarem do SUSpara eventuais procedimentos de alto custo, passando por fora das chamadasportas de entrada do sistema, e isso ajuda a fortalecer o clientelismo políticopara os dirigentes do país junto aos mais ricos ou eleitores de classe média.

Frequentemente nos enganamos ao supor que o clientelismo beneficiaprioritariamente ou somente aos pobres. Empresários ricos e líderes políticosnão jogam voto fora, vendem-no caro e o comercializam. Vide o compulsivoe amplo financiamento de campanhas eleitorais e as contrapartidas a essesapoios.

Não sei se a denominação apartheid social seria perfeito para designar asociedade que estamos construindo com as desigualdades qualitativas deacesso à educação, à assistência médica, aos transportes públicos, à distribui-ção de renda, na propaganda e qualidade supérflua voltada ao consumo demassa, na construção de moradias, na geografia dos bairros, nos nomes-mar-cas de supermercados e nas opções dirigidas para canais de televisão etc. Olivre arbítrio torna-se um truque.

Conceitualmente, como analisar todas essas diferenças de pensamentosem partir para a desqualificação política e moral dos diferentes? Recorremosao educador Neidson Rodrigues (2003), recentemente falecido, brilhante pro-fessor da FAE/UFMG, em seu livro “Glórias e misérias da razão: deuses esábios na trajetória do mundo ocidental”. Este livro nos apresenta sua expo-sição no concurso para professor titular, sendo uma edição póstuma, resulta-do de um esforço digno de admiração de sua apaixonada esposa MarileneRodrigues. Tive o privilégio de ser seu aluno no curso de mestrado, na disci-plina Teoria do Conhecimento, e ter me tornado amigo desta família. Suamorte tão prematura foi um desperdício trágico de um talento invulgar.

Neidson discorre sobre a racionalidade tanto do pensamento religiosoquanto do pensamento científico. Fala da racionalidade religiosa e da racio-nalidade científica enquanto esforço humano em decifrar os fenômenos.Considera que, em todas as sociedades, há uma concepção de mundo preva-lente, que estrutura o conjunto da vida e lhe dá a sua qualidade. Ele estudaas concepções de mundo até aqui existentes, a religiosa e a científica, e afir-

18

ma que nada escaparia dessa determinação. Mas dentro de cada concepçãode mundo surgem visões de mundo diferenciadas. As visões de mundo sur-gem de grupos diversos, como classes sociais, igrejas, partidos, regiões,momentos vividos etc. Se um grupo desses predomina socialmente, a suavisão de mundo poderá se expandir e assumir o poder, subordinando-se a elaas demais visões de mundo numa dada concepção de mundo prevalente. Esseprocesso é permanente e mutante ao longo da história. No mundo egípcio ehebraico a concepção de mundo prevalente era a de racionalidade religiosa;na Grécia nasceu a concepção de mundo com predominância da racionalida-de científica. Numa mesma região, país ou nação podem conviver as duasconcepções de mundo. A intolerância e a violência crescem quando há von-tade e ação visando eliminar as concepções e visões diferentes, negando adiversidade cultural.

3. A construção de um novo modelo de sistema de saúde

O Projeto Manuelzão surgiu no processo de crítica à teoria da SaúdePública e ao SUS, enquanto concepção sanitária para o consumo das classesdominadas. Essa crítica se respalda no desenvolvimento da teoria ecossistê-mica de Saúde Coletiva, que é capaz de metabolizar aspectos positivos daSaúde Pública. Um aspecto importante da teoria da Saúde Coletiva que esta-mos desenvolvendo é que ela reavalia e situa o campo de validade do concei-to da luta de classes, que vê o Universo girando em torno da nossa espécie,de onde deriva a teoria da determinação social e que restringe o conceito daluta de classes à espécie humana, sendo que a vida na Terra precede e superaas questões da luta de classes. A teoria ecossistêmica recoloca a discussão dasaúde no conjunto dos ecossistemas que povoam a Terra, incorporando-lheuma dimensão ecológica evolutiva, darwinista, de interdependência dasespécies entre si e com o ambiente.

Nós, que realizamos essas discussões, fazemos parte de uma parcela dasociedade brasileira onde a concepção de mundo com racionalidade científi-ca é dominante; o que não pode ser afirmado para o conjunto da sociedade.Mas as nossas visões de mundo podem diferir de outras visões de mundotambém de racionalidade científica. Um exemplo é que nos alinhamos àtransdisciplinaridade numa Universidade onde predomina a visão de mundodisciplinar. Outro exemplo: consideramos ser a luta das espécies pela sobre-vivência expressão maior da complexidade da vida na Terra, e dentro dessadimensão situamos a categoria da luta de classes, como expressão interiorcaracterística de uma determinada espécie. Sendo nossa espécie dominante

19

tecnologicamente e, agindo através do poder da sua produção cultural, elaleva vantagens na luta pela sobrevivência geral dos seres vivos. Mas a luta declasses não é o centro motor da história natural nem a consciência diretriz dahistória da nossa luta pela sobrevivência na Terra. Ela tem reduzido o alcan-ce da política, da consciência e do nosso suposto papel diretor da relação decuidados com a vida na Terra.

O paradigma antrópico de domínio da natureza ignorou duas questões:que a natureza associa o ser humano ao restante da flora e fauna; e que asatuais relações sociais excluem a maioria dos seres humanos das conquistassociais e técnico-científicas, cassando suas cidadanias e o direito à saúde. Esseparadigma entrou em confronto antagônico agudo com o ambiente e com asociedade, ameaçando a vida da atual e das futuras gerações. As doenças sãosinais e sintomas de uma crise paradigmática do ecossistema humano, ondeo estoque de saúde poderia ser promovido e não desprovido.

Um dos impulsos básicos da criação do Projeto Manuelzão foi a interro-gação acerca da relação do SUS com a questão da saúde. Sentíamos a neces-sidade de contribuir para viabilizar o SUS como um sistema verdadeiramen-te de saúde. Sua origem tem um viés a ser considerado.. Foi viabilizado nãoapenas pela força do movimento social, mas pela expectativa de proveito doslobbies da “indústria da doença”. Essa indústria é a única do sistema capitalis-ta a ter 100% do mercado garantido por lei do estado brasileiro, não pela leide mercado, ao garantir a assistência universal. Essa hegemonia ideológica da"indústria da doença" está perpetuando um modelo social incompatível coma Saúde Coletiva. Caso o objetivo fosse realmente saúde, e não a assistênciamédica, obteríamos melhores resultados com o direito universal à alimenta-ção, à moradia, à escola pública, ao saneamento, ao lazer e às artes, mesmoem detrimento da assistência médica do SUS.

Isto só foi possível pela natureza da teoria e da ideologia subjacentes àproposta da Reforma Sanitária. Na prática, consideram saúde como uma“questão médica” com base em princípios como o da municipalização da ges-tão e da universalidade assistencial, enquanto racionalização do Estado, semconteúdo econômico-social de reformas democratizantes. Há uma clara con-tradição entre a declaração da proposta constitucional do SUS, artigo 196(CRFB, 1988) em diante (SUS legal), e o sistema erigido, com a gestão asso-ciada à Reforma Sanitária. Ela tratou a saúde como produto do setor assis-tencial. Em nenhum momento a gestão fez a distinção radical e necessáriaentre Saúde Pública e Saúde Coletiva. Fica clara a dissociação entre a excelên-cia da declaração constitucional e de algumas leis complementares com o sis-tema que foi construído. Já se pode falar em interesses corporativos da buro-

20

cracia estatal do SUS, contrários aos interesses da sociedade, como ocorreuna ex-URSS. A indústria da doença envolve bilhões de dólares de lucros, comsubconsumo imposto a uns, superconsumo a outros, além de superfatura-mento e todo tipo de corrupção. Sua proposta é complemento do sistemafinanceiro internacional e da divisão internacional do trabalho, que vem, hádécadas ou séculos, estrangulando as economias mais frágeis através de regrasinjustas de comércio internacional, de políticas tecnológicas, de políticassociais e de política financeira. Sobre os subprodutos deste sistema político,que são as doenças em escala maciça, erige-se a nossa indústria da doença.

A gestão do SUS trata saúde como objetivo setorial de um ministério oude uma secretaria, mostrando o caráter limitado da própria racionalizaçãoadministrativa gerada pela Reforma Sanitária. A ausência do pensamentosistêmico na burocracia do SUS impede a incorporação do caráter ecossistê-mico da saúde coletiva.

A questão da crise ambiental ainda não foi internalizada pelo SUS, hajavista o que está acontecendo com o Programa de Saúde da Família (PSF), quereproduz a restrita prática do atendimento no posto médico em detrimentodas possibilidades amplas do novo conteúdo previsto. O SUS não pode con-tinuar sendo a medicina do apartheid social brasileiro, nem manter a incoe-rência de ser gerido por pessoas não-usuárias, que, não confiando no sistemaque dirigem, contratam para suas famílias planos de assistência médica pri-vados. O que não é bom para eles é receitado para a população. O SUS, emsi, é bom, em mim, não! Não para meus filhos!

Daí, a importância da discussão nos marcos da Saúde Coletiva. A SaúdeColetiva foi introduzida pela abrangência da questão ambiental e da promo-ção da saúde, trazendo parâmetros novos para a determinação da naturezado objeto e da metodologia de abordagem da questão saúde, com base natransdisciplinaridade, transinstitucionalidade e pensamento sistêmico.Revoluciona ríamos a situação se, em vez de Ministério da Saúde e Governoda doença, por que não Ministério da Assistência e Governo da Saúde?!

Grande parte dos meios acadêmicos e gestores do SUS, bem como milha-res de funcionários, têm envidado esforços para aprimorar o setor assisten-cial. Mas há falhas estratégicas e metodológicas básicas nesta abordagem quepõem a perder esse esforço. Estão tratando saúde como setor da assistênciamédica e tratando as duas coisas de forma assistêmica. Propiciar melhoriasna qualidade de vida para as populações usuárias do SUS é dever de casa aolado da melhoria da assistência. A qualidade do sistema de saúde de umasociedade é questão política central e não pode ser subproduto aleatório dasdecisões corporativas autônomas do Banco Central em relação ao setor

21

financeiro. Deveria ser o principal foco da política econômica e financeira doEstado brasileiro, sua razão de ser.

Na construção do SUS, os movimentos sociais e sanitaristas não amadu-receram suficientemente a visão de promoção socioeconômica, ambiental ecultural para concretizar a Saúde Coletiva, que determina mexer na estrutu-ra política e econômica do país, conforme está no artigo 196 da ConstituiçãoFederal (CRFB,1988). Que sentido teriam os avanços legais e as lutas sociaisse a Constituição e as leis complementares do SUS são sistematicamentedescumpridas? O Ministério abdicou da luta pelo exercício efetivo do poderno âmbito de suas prerrogativas legais e da função política articuladora, queseria sua obrigação. O cargo de ministro da Saúde é disputado pelos partidosem função dos valores orçamentários, capilaridade eleitoral e espaço deempregos. São os atributos que pesam no leilão de cargos entre os partidos.Não é tanto o caso do Banco Central ou do Ministério da Fazenda, que cui-dam da saúde da economia. Aliás, saúde animal dá lucro. Na sociedadehumana, doença é que dá lucros. Investir em saúde humana (educação públi-ca, planos habitacionais, transporte coletivo, esporte e lazer, assistênciamédica de qualidade) aumenta o custo Brasil, a economia não suporta.

A saúde humana ficou sem sustentação sistêmica, como se fosse apenasassistência médica, reivindicando mais verbas! Há uma bancada parlamentarem Brasília associada aos lobbies da doença. Situação resultante de percepçãoequivocada entre sistema de saúde, de elevada complexidade sistêmica, comgestão operacional do setor de assistência ao qual foi reduzido o SUS. A ges-tão do SUS está entregue a uma burocracia de Estado descolada da visãocientífica e ecossistêmica da saúde.

A prática dos SUS não está fundada nos princípios teóricos da SaúdeColetiva, nem condicionada e determinada pelos interesses da população. Porisso a denominamos Saúde Pública, no sentido de Estado, não da população.O apartheid social no Brasil está se consolidando com a segregação praticadapelo Estado em importantes áreas determinantes da saúde coletiva: educa-ção, habitação, renda, transporte, lazer, justiça social. No plano assistencial,longe está a prática da equidade e da qualidade da atenção que fosse plausí-vel e digna para qualquer cidadão.

Num primeiro momento, o discurso do SUS era a incorporação univer-sal dos necessitados – a quantidade. Agora, a prioridade precisa ser a qualida-de, mas sem investimento na qualidade de vida fica inviável a medicina dequalidade. Porém, os lobbies e a burocracia insistem em mais verbas para con-sumo de ações médicas dissociadas da qualidade de vida das pessoas e da qua-lidade das ações, sobretudo pela desorganização da assistência e visão frag-

22

mentada do processo saúde/doença.As tentativas do Projeto Manuelzão em modificar a matriz assistencial

do SUS, com os estagiários de medicina nos municípios da bacia do rio dasVelhas, não deram bons resultados. Priorizamos o PSF (Programa de Saúde daFamília) pensando que as questões ambientais e da promoção da saúdeseriam aceitas. Supúnhamos lógico preparar os agentes comunitários desaúde e meio ambiente, pegando de cheio questões como saneamento, qua-lidade das moradias, ambientes de trabalho, pobreza, proliferação de perni-longos que afetam a qualidade do sono da população mais pobre, uso deagrotóxicos e outras drogas. Mas a gestão municipal está distante dessas pro-blemáticas, não as veem como a engrenagem sistêmica do processosaúde/doença. Para eles, saúde é atendimento médico. E não difere do que sepassa em nível estadual e federal. A qualidade de vida, como pré-condição dasaúde, não é questão de princípio sine qua non do SUS; ela foi desprezada.

Expressando a concepção hoje, hegemônica, que não se assume, afirma-mos que está centrada em três pilares perversos de promoção da doença:

1) conservar e promover a instalação da doença, através de omissões e depolíticas subordinadas a interesses exclusivamente financeiros, para,depois, agir com a assistência, para faturar política e financeiramente,medicalizando questões sociais; 2) praticar medicina de qualidade inferior ou irracionalmente cara epouco resolutiva, que julgam ser adequada aos pobres, garantindo umafaixa razoável de lucros, e, negando assim, os princípios da universalida-de e da equidade dos serviços;3) promover, pelo desespero, a migração de camadas médias para planosassistenciais privados caros e de má qualidade, mas com atendimentomaquiado.Salta aos olhos que os milhões de usuários do SUS não desfrutam de

qualidade de vida social e ambiental, vivem em regiões e moradias insegurase são socialmente marginalizados. Mas há diversos tipos de usuários espe-ciais: os que obtêm acesso privilegiado ao financiamento de alto custo, semser pela via prevista de entrada no sistema; os que obtêm dividendos políti-cos e privilégios através do poder de gestão do SUS; os empresários produto-res e fornecedores; os funcionários de alto escalão que podemos denominar aburguesia burocrática do SUS, que usufruem do poder na máquina de Estadocom os bônus e sem os ônus de uma empresa privada. E outros.

Com a exclusão da classe média do SUS, que migrou para planos médi-cos privados, oferecidos na banca como planos de saúde (!), os miseráveisficaram isolados e perderam a capacidade de pressão tanto social quanto polí-

23

tica. Isto acontece pelas mesmas razões presentes no acesso ao transporte, àeducação, à Justiça, à moradia e a outros determinantes de saúde. É o forta-lecimento do apartheid social.

Quando acusamos as omissões e políticas perversas não estamos exage-rando. Os altos impostos cobrados aos que recebem salários e consumidoresé o primeiro exemplo, chegando próximo aos 40% da renda. Mas vamos aoutros exemplos de promoção da doença: a forma como é regulamentada avenda e utilização de agrotóxicos no Brasil; o descaso com a política de trans-porte coletivo e priorização da venda do automóvel; a má qualidade damanutenção das estradas; a privatização e alto custo do ensino fundamentale o abandono qualitativo do ensino fundamental público; o descuido com aqualidade da dieta no país; a falta de investimentos nos setores de esporte elazer de massas, incluídos o turismo popular de qualidade e o acesso às artes;o generalizado desmatamento e degradação dos ecossistemas naturais dopaís; incluindo-se, aqui, os ecossistemas humanos urbanos, com a expansãode favelas, a marginalização social, o desemprego e o subemprego, a violên-cia em suas diversas formas. Só para citar alguns exemplos.

4. Conclusão

O Projeto Manuelzão pensa na construção de ecossistemas humanossaudáveis, pensa ecologicamente a relação da sociedade com o solo, com abiodiversidade (flora e fauna), com as águas, com o ar. Não deveríamosenxergar a cidade prioritariamente como um território político-administrati-vo e econômico, mas como um território de exercício da cidadania através davida num ecossistema saudável, como as águas de uma bacia hidrográfica.Elas refletem isso em primeira mão, elas são um meio sistêmico impar, toma-do por nós como um eixo metodológico de monitoramento, de gestão e demobilização em torno da volta do peixe.

Daí, buscar compreender nossa relação com as águas disponíveis nanatureza foi nosso primeiro olhar em termos de estratégia de promoção desaúde e busca de qualidade de vida para a população. A partir desse raciocí-nio, foi um passo redescobrir o território de bacia hidrográfica e atribuir-lheum papel essencial em nossa teoria, enquanto território coerente de planeja-mento. Daí, propor trazer o peixe de volta, como indicador mais amplo desaúde coletiva, foi um passo. Buscamos a utopia dos textos legais fundado-res do SUS, completamente abandonados quando o SUS se subordinou aosinteresses dominantes do estado e da indústria da doença.

Vejamos alguns textos legais. No artigo 196 da Constituição Federal de

24

1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polí-ticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e outrosagravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promo-ção, proteção e recuperação”. No artigo 225: “Todos têm direito ao meioambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essen-cial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade odever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

A Lei complementar n° 8.080 de 19/09/90, no artigo 3º: “A saúde temcomo fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, amoradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a edu-cação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveisde saúde da população expressam a organização social e econômica do País”.

As Normas Operacionais Básicas do SUS de 1996, NOB/96: “A atençãoà saúde, que encerra todo o conjunto de ações levadas a efeito pelo SUS, emtodos os níveis de governo, para o atendimento das demandas pessoais e dasexigências ambientais, compreende três grandes campos, a saber:

a) o da assistência, em que as atividades são dirigidas às pessoas, indivi-dual ou coletivamente, e que é prestada no âmbito ambulatorial e hospitalar,bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar;

b) o das intervenções ambientais no seu sentido mais amplo, incluindoas relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e trabalho, o con-trole de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamentoambiental (mediante o pacto de interesses, as normalizações, as fiscalizaçõese outros) e;

c) o das políticas externas ao setor saúde, que interferem nos determi-nantes sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partesimportantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, àhabitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimen-tos.”

A Assembléia Nacional Constituinte aprovou a nova Constituição em 5de Outubro de 1988. Entre outras conquistas democráticas ela instituiu oSistema Único de Saúde – SUS, que, teoricamente, esboçou uma legislaçãoconceitualmente compatível com a visão de Saúde Coletiva, como vimos naslinhas precedentes. Apesar das declarações ufanistas, o SUS que foi imple-mentado nega a Visão Ecossistêmica de Saúde Coletiva, que o texto daConstituição possibilitava, e priorizou a assistência médica universalizada,mas sem equidade e qualidade. O documento complementar à Constituiçãoque mais se aproximou da visão ecossistêmica presente na Constituição foielaborado durante a gestão do ministro Adib Jatene, em 1996, denominado

25

Normas Operacionais Básicas do SUS, ou NOB/96, citada anteriormente.Outro momento de aproximação de uma visão de promoção sistêmica desaúde ocorreu com a criação do PSF, que, infelizmente, involuiu. O SUS foicrescendo como assistência médica universalizada para pobres e de baixaqualidade. Essa realidade produziu o crescimento da oferta de serviços dosplanos assistenciais médico-hospitalares privados, para onde foram migran-do setores sociais obrigados a pagar por mais esse serviço.

A visão ecossistêmica de saúde coletiva articula meio ambiente, produ-ção, saúde, educação, segurança, liberdades democráticas e respeito aos direi-tos humanos e animais em seus biomas, ecossistemas, nichos e habitats. Atransformação da mentalidade civilizatória é imperativa. Assistência médicanão é saúde. Qualidade de vida, numa visão ecossistêmica, sim.

Referências Bibliográficas

BREILH, J. Epidemiologia: economia, medicina y política. México, Ed. Fontamara,1986. p. 102

Expedição no ribeirão da Mata. Mobilização pela melhoria das águas da bacia hidrográfica e avolta do peixe. Foto: Gustavo Camargos Chagas.

26

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 15 de outubro de 1988.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 15 abr. 2008.

BRASIL. Lei n. 8.080, de 19/09/90. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm>. Acesso em 10 abr. 2008.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Norma Operacional Básica do SUS 01/96. Brasilia,1996.

LALONDE, M. A new perspective on the health of canadians. A working document.Government of Canada, Ottawa, 1974.

LEAVELL H & CLARK EG. Medicina preventiva. McGraw-Hill do Brasil, São Paulo,1976.

MACMAHON B, PUGH T. Princípios y métodos de epidemiología. México: La PrensaMédica Mexicana, 1975, p.15.

MC KEOWN, T. The role of medicine: dream, mirage, or nemesis?.London, NuffieldProvincial Hospital Trust, 1976.

MARX, Karl. O capital. Coleção Os economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

RODRIGUES,N. Glórias e misérias da razão: deuses e sábios na trajetória do mundoocidental. Sâo Paulo: Cortez Editora, 2003

Marco conceitual do Projeto Manuelzão naconstrução da saúde coletiva

1. Introdução

Ao longo de sua existência, o Internato em Saúde Coletiva(Rural) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal deMinas Gerais esteve presente em centenas de cidades doEstado de Minas Gerais, tendo contribuído histórica e politica-

mente com construção de projetos de saúde coletiva e da formação de pro-fissionais médicos. Por se tratar de um processo de integração docente-assis-tencial, vem sofrendo modificações e transformações ao longo de sua exis-tência, determinadas pela própria dinâmica entre sociedade, poder público, ea Universidade (discentes e docentes da Faculdade de Medicina).

Ocorre que o Internato Rural, desde a sua formação histórica até a pre-sente data se preocupou principalmente com as aproximações de nível local,enfocando a realidade e as propostas político-sociais a este nível, contrastan-do com uma menor intensidade de esforço teórico-conceitual no sentido deformar, explicitar ou fundamentar teoricamente as suas intervenções nocampo da saúde.

O Projeto Manuelzão (Lisboa et al, 2008), surge em 1997 como conse-quência de uma reflexão de um grupo de professores do Internato Rural sobrea intervenção da medicina na saúde coletiva, procurando avançar no concei-

27

28

to e na abordagem da questão saúde.O Projeto Manuelzão vinculou a determinação da saúde com a qualida-

de de vida com ênfase nas questões ambientais e de cidadania, construindouma concepção teórica e territorial para se pensar e desenvolver as açõessaúde coletiva. Neste sentido o projeto formulou algumas premissas. A pri-meira é o que o produto final das ações médicas deve ser a saúde coletiva, enão simplesmente ou somente a criação de um modelo assistencial para osdoentes. Isto, porque, se o nosso modelo for simplesmente o de tratar doen-tes, temos que investir em sistemas de atendimentos individuais e em hos-pitais, equipamentos, medicamentos. Esse modelo demanda um custo eleva-do, não atua nos determinantes do processo saúde-doença (fábrica de doen-tes), o que implicará em aplicação de recursos crescentes com resolutividadelimitada.

Por outro lado, para termos saúde, temos que investir na qualidade devida de uma dada sociedade. Isto demanda uma política de desenvolvimen-to econômica e socioambiental compatível. Portanto, investir em saúde nãoé simplesmente investir no tratamento de doentes. Demanda uma outravisão e aplicação de recursos em outras áreas.

O governo do Canadá (Lalonde, 1974), na década de 1970, interessadoem saber onde investir os recursos públicos para a obtenção de melhoresníveis de saúde para a população, elaborou uma pesquisa para conhecer quaiseram os principais determinantes da nosologia prevalente existente na popu-lação. O resultado demonstrou que o meio ambiente tinha uma relaçãomediata ou imediata com 60% dos agravos a saúde, a alimentação represen-tava 25% e a assistência médica tinha um impacto de somente 5%.

Desde então, cresceu em importância o conceito de que a saúde decorremuito mais da qualidade de vida de uma dada sociedade, do que propriamen-te de ações e intervenções médicas.

Mas qual é o conceito de qualidade de vida?Qualidade de vida é um conceito amplo que envolve variáveis econômi-

cas, socioculturais de uma dada sociedade e o desenvolvimento de ecossiste-mas saudáveis, que permita aos indivíduos desenvolver em plenitude a suacapacidade biopsicosocial.

Por sua vez a qualidade de vida é uma decorrência da qualidade do meioambiente. A destruição do meio ambiente é a demonstração concreta da des-preocupação com a qualidade de vida.

O ser humano é o único ser vivo capaz de criar e modificar o meioambiente. O modelo de apropriação do meio ambiente é que vai determinarem última análise a sua qualidade e a sua degradação. São necessárias algu-

29

mas explicações a respeito desta afirmação. Primeiro: o ser humano é um ser social, membro de uma sociedade pro-

dutiva e capitalista. Em toda a história da evolução da humanidade, presu-mivelmente em dois milhões de anos, nunca se transformou ou se danificoutanto o meio ambiente quanto no século XX.

Segundo: quando o homem cria ou modifica o ecossistema, o faz comoser social e dentro de uma lógica proposta pelo sistema. A lógica do sistemaestá submetida ao modelo econômico. Este preconiza como valor fundamen-tal o capital em detrimento de outros valores, mesmo que isso inclua a depre-dação do meio ambiente até a exaustão para a realização do capital. Nomodelo comunista dos países do leste Europeu, que sofreu um colapso nadécada de 1980, que pode ser compreendido como uma variante estatizantedo capitalismo, o capitalismo de Estado, aconteceu o mesmo.

Terceiro: os ecossistemas criados dentro desta lógica nem sempre privile-giam valores humanísticos, gerando por vezes fatores hostis à saúde dos indi-víduos dentro do próprio ecossistema humano, propiciando o aparecimentode problemas de saúde coletiva.

O desenvolvimento econômico na medida em que cria o seu próprio

A falta de saneamento básico e de planejamento da ocupação do solo como fatores dedegradação das águas e da falta de qualidade de vida. Foto Acervo Projeto Manuelzão

30

ecossistema artificial representado pelas cidades, fábricas, atividades extrati-vas minerais e agrícolas, pode acabar gerando uma degradação acentuada doecossistema natural, contribuindo para a má qualidade de vida e saúde.Embora dialeticamente possa também contribuir para o desenvolvimentohumano.

O subdesenvolvimento, decorrente de uma divisão internacional desi-gual de riquezas e do capital, gera a exclusão de grandes parcelas de comuni-dades do nível satisfatório de educação, saneamento, habitações, o que pro-duz mais degradação do meio ambiente, gerando como consequência ecos-sistemas inadequados à saúde coletiva e comprometendo o próprio desenvol-vimento econômico.

Para que possamos entender melhor toda essa complexa relação existen-te entre saúde-meio ambiente-sociedade é necessário avançar na discussão deparadigmas que sustentam a atual visão socioambiental, o que será feito nasequência do texto.

Expedição rio Taquaraçu, mobilização de moradores da bacia como atores pela consciênciaambiental. Foto: Rogério Sepúlveda.

31

2. Bases históricas do pensamento ambiental

É preciso mencionar alguns aspectos históricos que trouxeram a questãoambiental para a agenda da atualidade.

No ano de 1972, Dennis L. Meadows e um grupo de pesquisadores(Meadows et all, 1972), publicaram o estudo Limites do Crescimento apresen-tando as seguintes teses:

1- Se as atuais tendências do crescimento da população mundial –industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recur-sos naturais – continuarem imutáveis, os limites do crescimento nesteplaneta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. Oresultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto dapopulação quanto da capacidade industrial.2- É possível modificar essas tendências de crescimento e formar umacondição de estabilidade ecológica e econômica que se possa manter atéum futuro remoto. O estado de equilíbrio global poderá ser planejado, detal modo, que as necessidades materiais básicas de cada pessoa na Terrasejam satisfeitas e que cada pessoa tenha igual oportunidade de realizaro seu potencial humano individual.3- Se a população do mundo decidir empenhar-se em obter este segun-do resultado, em vez do primeiro, quanto mais cedo ela começar a tra-balhar para alcançá-lo, maiores serão suas possibilidades de êxito.

Para alcançar a estabilidade econômica e ecológica o Clube de Roma pro-pôs o congelamento do crescimento da população global e do capital indus-trial, pedras angulares do desenvolvimento do capitalismo.

A teoria do crescimento zero e as previsões catastróficas do Clube deRoma foram criticadas tanto por representantes dos países desenvolvidosquanto pelos subdesenvolvidos, estes levantando a tese de que as sociedadesocidentais, depois de um século de crescimento industrial acelerado, estariamfechando este caminho do desenvolvimento para os países pobres, justifican-do esta prática com uma retórica ecológica.

No ano de 1972 aconteceu a Conferência de Estocolmo (2008) sobreambiente humano. Nem a publicação do Clube de Roma nem a Conferênciade Estocolmo se deram ao acaso. Elas foram conseqüências de debates sobreos riscos da degradação do meio ambiente que de forma esparsa, começaramnos anos 60 e ganharam no final dessa década e no início dos anos 70 certadensidade, o que possibilitou a primeira grande discussão internacional sobreo tema.

32

Na primeira Conferência Mundial sobre Meio Ambiente realizada emEstocolmo se evidenciaram dois posicionamentos antagônicos sobre a ques-tão ambienta mundial. A primeira posição, originada principalmente nospaíses desenvolvidos ou industrializados, enfatizou o perigo da ruptura doequilíbrio ecológico global e propôs soluções drásticas como a detenção docrescimento econômico, a revisão dos estilos de produção e consumo e a con-tenção compulsória do crescimento demográfico.

Em contrapartida, os países em desenvolvimento destacaram a dimen-são social do tema, demonstrando que o subdesenvolvimento também geranecessidades de programas ambientais prioritários como programas sanitá-rios, nas condições muito deficientes de assentamentos humanos, desempre-go, déficit de habitação e escolas, de destruição dos recursos naturais, eoutros. Portanto, para estes países uma redução no ritmo de crescimento sóconsolidaria uma situação de injustiça na distribuição dos recursos nomundo.

Em 1973, o canadense Maurice Strong propõe pela primeira vez o con-ceito de ecodesenvolvimento para caracterizar uma concepção alternativa depolítica de desenvolvimento.

Posteriormente, Ignacy Sachs (2002) formulou os princípios básicosdesta nova visão de desenvolvimento, que deveria se guiar pela:

• satisfação das necessidades básicas;• solidariedade com as gerações futuras;• participação da população envolvida;• preservação dos recursos naturais e do meio ambiente em geral;• elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurançasocial e respeito a outras culturas;• elaboração de programas educacionais.

Em 1974 foi elaborada a Declaração de Cocoyok, como resultado de umareunião da Conferências das Nações Unidas sobre Comércio eDesenvolvimento – UNCTAD e do Programa do Meio Ambiente das NaçõesUnidas – UNEP e que destaca:

• a explosão populacional tem como suas causas a falta de recursos dequalquer tipo: pobreza gera desequilíbrio demográfico;• a destruição ambiental na África, Ásia e América Latina é tambémresultado da pobreza que leva a população carente à super utilização dosolo e dos recursos vegetais;• os países industrializados contribuem para os problemas do subde-senvolvimento por causa do seu nível exagerado de consumo. Não exis-

33

te somente um mínimo de recursos necessários para o bem estar do indi-víduo; existe também um máximo. Os países industrializados têm quebaixar seu consumo e sua participação desproporcional na poluiçãoambiental.

Este relatório aponta e ultrapassa outros documentos elaborados atéentão, para a problemática do abuso do poder e sua interligação com a degra-dação ecológica. O sistema colonial concentrou solos mais aptos para a agri-cultura na mão de poucos, o que fez com que grandes massas da populaçãooriginal fossem expulsos e marginalizados, sendo forçados a usar solosmenos apropriados, causando a devastação de paisagens inteiras.

Finalmente, com o Relatório Brundtland (2008), resultado do trabalhoda Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento –UNCAD/ONU, é proposto o conceito de desenvolvimento sustentável queé definido como o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presentesem comprometer a capacidade das futuras gerações satisfazerem as suaspróprias necessidades.

No entanto, devemos trabalhar com um conceito que vá além da idéiade desenvolvimento econômico sustentável apenas. Tal visão é insuficiente ereflete uma concepção economicista, deixando também implícita uma visãoambientalista antrópica, onde a inclusão ou não no mercado, é que define oque é ou não o homem.

O relatório propõe a interligação entre economia, tecnologia, sociedadee política e chama também atenção para uma nova postura ética, caracteri-zada, pela responsabilidade tanto entre as gerações quanto entre os membroscontemporâneos da sociedade atual.

Em junho de 1992 reuniram-se no Rio de Janeiro mais de 35 mil pessoas,entre elas 106 chefes de governo, para participar da Conferência da ONUsobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida internacionalmentecomo Eco-92 (2008).

O relatório da Worldwatch Institute, de 1993, critica os resultados dessaconferência: “Apesar do interesse mundial mais intensivo pelo futuro do pla-neta, a Conferência da ONU não correspondeu nem às esperanças e nem àsexpectativas a ela associadas. Muitos problemas surgiram em conseqüênciada pressão da delegação dos Estados Unidos em favor da eliminação dasmetas e dos cronogramas para a limitação da emissão do CO2 de acordo como clima. Também a convenção sobre a proteção da biodiversidade teve algunspontos fracos; o mais grave foi a falta da assinatura dos Estados Unidos”. Noentanto, a Conferência teve o grande mérito de demonstrar o crescimento da

34

consciência sobre os perigos que o modelo atual de desenvolvimento econô-mico significa. Nas circunstâncias atuais, o desdobramento de uma polêmi-ca apontando deficiências, parece mais fácil do que a reconstrução de alter-nativas teóricas e práticas do desenvolvimento.

Governos abraçam, ainda, com a coragem dos desorientados, a idéia demodernização, sem perceber que o modelo da industrialização tardia é capazde modernizar alguns centros ou setores da economia, mas incapaz de ofere-cer um modelo de desenvolvimento equilibrado da sociedade inteira. Amodernização, não acompanhada de correções partindo da sociedade civil,desestrutura a composição social, a economia territorial e seu conteúdo eco-lógico e ético.

Dada a importância do tema do aquecimento global foi criada umaagenda internacional para discutir medidas eficazes para a redução destefenômeno. Propostas foram formatas e compromissos assumidos por gover-nos do mundo inteiro no chamado Protocolo de Kyoto.

O Protocolo de Kyoto foi um acordo internacional para reduzir as emis-sões de gases-estufa dos países industrializados e para garantir um modelo dedesenvolvimento limpo aos países em desenvolvimento. O documento previaque, no período de 2008 a 2012 os países desenvolvidos reduziram suas emis-sões em 5,2% em relação aos níveis medidos em 1990. O tratado foi estabele-cido em 1997 em Kyoto, Japão, e assinado por 84 países. Destes, cerca de 30 otransformaram em lei. Os Estados Unidos, o país que mais emite gases estu-fa, se retiraram do acordo em março de 2001. O que praticamente inviabili-zou o acordo e praticamente não houve avanços na redução de gases-estufa.

Reunindo em dezembro de 2009 em Copenhagen (COP-15), chefes degoverno do mundo inteiro tentaram estabelecer um novo acordo sobre aquestão climática, que mais uma vez foi inviabilizado pala nações economi-camente mais desenvolvidas e responsáveis pela maior parte da emissão degases de efeito estufa.

As esperanças voltam-se para o encontro Rio+20 realizado em junho de2012 no Rio de Janeiro – Brasil.

3. Eixo conceitual: novas bases para um novopensamento ambiental

Segundo Rohde (1982), o século XX produziu eventos extraordinários nateoria do conhecimento e nos paradigmas científicos. Seu início foi marcadopela invasão das desordens nas ciências ditas “duras” e a inclusão das noçõesde probabilidade, incerteza e risco em diversas disciplinas. O findar do sécu-

35

lo XX assistiu ao definhamento do paradigma cartesiano-newtoniano, subs-tituído por visão de mundo integradora, sistêmica, conjuntiva e holística.

As chamadas ciências ambientais se espremem em vazios epistemológi-cos entre ciências naturais e sociais, adjetivam disciplinas existentes e provo-cam a necessidade de interdisciplinaridade. Elas colocam questões vitais aserem respondidas, frente a questão de sustentabilidade em relação aosseguintes fatores:

• crescimento populacional humano exponencial em alguns espaços;• depressão da base de recursos naturais;• sistemas produtivos que utilizam tecnologias poluentes e de baixaeficácia energética;• sistema de valores que propicia a expansão ilimitada do consumomaterial;• crescimento contínuo e permanente em um planeta finito;• aacumulação, cada vez mais rápida, de materiais, energia e riqueza;• a ultrapassagem de limites biofísicos;• a modificação de ciclos bioquímicos fundamentais;• a diminuição dos sistemas de sustentação de vida;• a limitação de tecnologia para minimizar os efeitos causados pelocrescimento.

Podemos assentar o novo paradigma da questão ambiental nos seguintesprincípios científicos:

• Princípio holístico – Afirma a inseparabilidade de todas as coisas eprocura eliminar o discurso e a prática dualista.• Princípio de contingência – Assume a forma das “propriedades emer-gentes” dos sistemas que não estão previstos pelo somatório particulardas partes que os compõem.• Princípio de complexidade – Opõe-se ao reducionismo praticado deforma generalizada pelas ciências. A complexidade traz embutida anecessidade de associar o objeto do seu ambiente, de ligar o objeto doseu observador.• Princípio sistêmico – Engloba a abordagem holística quanto à totali-dade, além de incluir aspectos sobre autonomia e integração.• Princípio da recursividade – Aprofunda e articula pontos de vista dis-juntos do saber em um ciclo ativo. A visão deste novo paradigma parteda idéia de organização ativa como sinônimo de reorganização perma-nente. A raiz “re” representa uma categoria fundamental, assim, repetir,reorganizar, reproduzir, reciclar, retornar, rememorar, recomeçar, refletir,

36

revolver, revisar.• Princípio da conjunção – É articulação dos campos do conhecimen-to, dos saberes e das abordagens permeando todos os paradigmas cientí-ficos novos.• Princípio da transdisciplinaridade – É, sobretudo na abordagem sistê-mica, na complexidade e na questão ambiental que a transdisciplinari-dade possui maior relevância.

Definido os princípios científicos para um novo pensamento ambientalé preciso definir os princípios psicológicos-políticos-sociais derivados:

1- A nova ética – um ambientalismo laico não tem condições de perce-ber as causas profundas da crise ecológica, nem de avaliar sua gravidade.A inibição e repressão da sensibilidade religiosa e da espiritualidade emgeral sofridas por nossa civilização especialmente a partir dos séculosXVIII e XIX, não deve ser atribuída a aspectos secundários das mudan-ças da época. Essa repressão foi uma condição indispensável para o pro-gresso, entendido como o desenvolvimento de um modelo organizadopor uma razão instrumental e centrado na realização de interesses indi-viduais contra interesses comuns relacionados com a sociedade e a natu-reza.A crise ecológica não tem alternativas realistas fora de um ambientalis-mo sustentado numa ética complexa multidimensional que recupera osentido da fraternidade, o sentido espiritual da vida social e natural.A compreensão da relação homem-natureza é um ponto central, e repre-senta uma expansão e recuperação dramática de experiência moral dahumanidade (Leis & D’Amato, 1995).2- Princípio do desenvolvimento – não pode ser mais centrado na sim-ples realização do capital, no consumismo desenfreado e no desenvolvi-mento excludente que privilegia alguns e marginaliza outros.O desenvolvimento terá que ter por finalidade o desenvolvimento plenoe igualitário da humanidade compatível com a busca da preservaçãoambiental, considerando:• a satisfação das necessidades básicas de todos os homens;• a solidariedade com as gerações futuras;• a participação da população envolvida;• a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente em geral;• a elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurançasocial, assistência à saúde e respeito ao cidadão, que não seja paternalis-ta;

37

• educação.3- Cidadania – desenvolver o conceito de que são cidadãos que lutam econquistam direitos sociais, forçam as políticas do Estado, formulam aconcepção de si e do ambiente em que vivem.No campo da saúde, é possível repensar todo o processo saúde-doençadentro deste novo modelo consciente de que nos cabe um papel impor-tante na medida em que é no meio ambiente, incluindo o social, que sedão as relações entre os agentes, os atores sociais e toda as complexasrelações do processo saúde-doença. 4- Princípio da generalização – devemos sempre fazer localmente e pen-sar globalmente. Para o Projeto Manuelzão também é fundamental agirglobalmente, na medida em que os fatores que geraram e sustentam acrise ambiental se encontram institucionalizados no modelo político eeconômico internacional, é impossível pensar que somente ações locaispor si só serão possíveis de reverter o processo. É preciso incorporarnovas atitudes políticas, econômicas e sociais nas cidades, nos países eno mundo.

4. Mobilização social

Todos os conceitos mencionados anteriormente convergem para a neces-sidade de uma nova consciência social. Sem esta será impossível a constru-ção de um novo modelo social. A sociedade que polui, adoece e degrada, seráa única capaz de trabalhar pelo meio ambiente, saúde, e qualidade de vida.

Portanto, a mentalidade civilizatória deve ser trabalhada. E, enquantoinstituição produtora e transmissora do saber cabe à Universidade um papelimportante no sentido de informar, discutir, mobilizar, conscientizar e cons-truir a cidadania.

O Projeto Manuelzão tem como eixo de sua ação a busca dessa novaconsciência social através da mobilização.

Ao procedermos assim estamos colaborando para a sociedade fazer a suahistória, construir a sua cidadania, e ao mesmo tempo transformando omundo “temporal” em que vivemos.

Para conceituar o trabalho de mobilização social, utilizaremos algumasdefinições de Toro & Werneck (1997) divulgadas pelo Movimento deCidadania pelas Águas:

“A mobilização social é muitas vezes confundida commanifestações públicas, com a presença das pessoas em

38

uma praça, passeata, concentração. Mas isso não caracte-riza uma mobilização. A mobilização ocorre quando umgrupo de pessoas, uma comunidade ou uma sociedadedecide e age com um objetivo comum, buscando, quoti-dianamente, resultados decididos e desejados por todos.

Participar ou não de um processo de mobilizaçãosocial é um ato de escolha. Por isso se diz convocar, porquea participação é um ato de liberdade. As pessoas são cha-madas, mas participar ou não é uma decisão de cada um.Essa decisão depende essencialmente das pessoas se veremou não como responsáveis e como capazes de provocar econstruir mudanças.”

Aqui vale um comentário da importância do conhecimento e da infor-mação como instrumento da liberdade de escolha. Aquele que não possui oconhecimento, não tem na verdade como escolher. Por exemplo, se uma pes-soa desconhece quais são os elementos que estão poluindo e matando os pei-xes do rio, como ela vai poder se instrumentalizar para decidir e participar deum processo de mudanças?

A universidade, enquanto instituição de saber, pode e deve democratizareste saber para instrumentalizar o cidadão na sua ação.

Segundo Toro & Werneck (1997) convocar vontades significa convocardiscursos, decisões e ações no sentido de um objetivo comum, para um atode paixão, para uma escolha que “contamina” todo o cotidiano.

Toda mobilização é mobilização para alguma coisa, para alcançar umobjetivo pré-definido, um propósito comum, por isso é um ato de razão.Pressupõe uma convicção coletiva da relevância, um sentido de público,daquilo que convém a todos. Para que ela seja útil a uma sociedade ela temque estar orientada para a construção de um projeto de futuro. Se o seu pro-pósito é passageiro, converte-se em um evento, uma campanha e não em umprocesso de mobilização. A mobilização requer uma dedicação contínua eproduz resultados cotidianos.

O que dá estabilidade a um processo de mobilização social é saber que oque eu faço e decido, em meu campo de atuação cotidiano, está sendo feitoe decidido por outros, em seus próprios campos de atuação, com os mesmospropósitos e sentidos.

Toda ordem de convivência é construída, por isso é possível falar emmudança.

Toda ordem social é criada por nós. O agir ou não agir de cada um con-

39

tribui para a formação e consolidação da ordem em que vivemos. Em outraspalavras, o caos que estamos atravessando na atualidade não surgiu esponta-neamente. Esta desordem que tanto criticamos também foi criada por nós.Portanto – e antes de converter a discussão em juízo de culpabilidade – sefomos capazes de criar o caos, também podemos sair dele. Somos capazes decriar uma ordem distinta.

Segundo Eduardo Gianetti da Fonseca (1993) o paradoxo do brasileiro éo seguinte cada um de nós isoladamente tem o sentimento e a crença since-ra de estar muito acima de tudo isso que ai está. Ninguém aceita, ninguémagüenta mais, nenhum de nós pactua com o mar de lama, o deboche e a ver-gonha da nossa vida pública e comunitária. O problema é que, ao mesmotempo, o resultado final de todos nós é exatamente isto que aí está.

Não aceitar a responsabilidade pela realidade em que vivemos é, aomesmo tempo, nos desobrigarmos da tarefa de transformá-la, colocando namão do outro a possibilidade de agir. É não assumirmos o nosso papel, nãonos sentirmos responsáveis por ele, porque não nos sentimos capazes de alte-rá-lo. A atitude decorrente dessas visões é sempre de fatalismo ou de subser-viência, nunca uma atitude transformadora.

Evento promovido pelo Projeto Manuelzão para multiplicadores e lideranças em prol da revi-talização do rio das Velhas. Foto: Foca Lisboa.

40

A formação de uma nova mentalidade na sociedade civil, que se percebaa si mesma como fonte criadora da ordem social, é o caminho para a cons-trução da verdadeira cidadania.

A participação em um processo de mobilização social é ao mesmo tempometa e meio. Por isso, não podemos falar da participação apenas como umpressuposto, mas como condição intrínseca e essencial de um processo demobilização. Mas ela cresce em abrangência e profundidade ao longo do pro-cesso, o que faz destas duas qualidades (abrangência e profundidade) umresultado desejado e esperado.

Considerá-la como meta e meio significa:• Considerar a participação como valor democrático. Como já foi dito,toda ordem social é construída pelos homens e mulheres que formam asociedade. A ordem social não é natural e cada sociedade é que constróisua ordem social. Porque ela não é natural é possível falar em mudanças.Quando a sociedade começa a entender que é ela que constrói a ordemsocial, vai adquirindo a capacidade de auto-fundar a ordem social, deconstruir a ordem desejada, vai superando o fatalismo e percebendo aparticipação, a diferença e a deliberação de conflitos como resultadosfundamentais para a construção da sociedade. A participação deixa deser uma estratégia para converter-se em ação rotineira, essencial. Nessesentido, a participação é o modo de vida da democracia.• Considerar a abrangência desta participação como valor e sinaldemocrático. Não é possível desenhar, nem saber como será a ordem deconvivência democrática e de produtividade sem a participação ativa detoda a sociedade. Não se trata de ser construída uma ordem social porquem acha que sabe fazê-lo para que os outros se integrem a ela. Trata-se de construir com todos, inclusive com os banidos pelo mercado, umaordem social onde todos os que dela participam pode fazer competirorganizadamente seus interesses e projetar novos futuros. A exclusão deum setor pode ser definida como a impossibilidade de fazer competir osseus interesses frente a outros interesses. Para uma dinâmica de mobili-zação social é preciso acreditar que existe sempre alguma coisa que umapessoa pode fazer para que os objetivos sejam alcançados, que todos têmcomo e porque participar. • Considerar a participação de todos como uma necessidade para odesenvolvimento social. A participação é uma aprendizagem. Se conse-guimos hoje nos entender, decidir e agir para alcançar alguma coisa(como a melhoria da escola do bairro), depois seremos capazes de cons-truir e viabilizar soluções para outros problemas (como a preservação de

41

uma área verde ou a melhoria do trânsito). Podemos ainda nos articularcom outros grupos para desafios maiores, como o fim da violência, ocombate ao desemprego, etc. Aprendemos a conversar, a decidir, a agircoletivamente, ganhamos confiança na nossa capacidade de gerar e via-bilizar soluções para nossos problemas, fundamentos para a construçãode uma sociedade com identidade e autonomia.

Um passo importante no planejamento de um processo de mobilizaçãosocial é a explicitação de seu propósito. Esse propósito está diretamente liga-do à qualidade da participação que será alcançada.

Esse propósito deverá estar expresso sob a forma de um horizonte atra-tivo, um imaginário “convocante” que sintetize de uma forma atraente eválida os grandes objetivos que se busca alcançar. Ele deve expressar o senti-do e a finalidade da mobilização. Ele deve tocar a emoção das pessoas. Nãodeve ser só racional, mas ser capaz de despertar a paixão. “A razão controla,a paixão move” (Toro & Werneck, 1996).

Um imaginário validamente proposto é, ao mesmo tempo, uma fonte dehipóteses que provê as pessoas de critérios para orientar a atuação e paraidentificar alternativa de ações.

No caso do Projeto Manuelzão o imaginário geral é representado pelavolta do peixe ao rio das Velhas.

A volta do peixe aos rios representa a mudança da consciência da socie-dade em relação ao meio ambiente, a adequação das ações de saneamento, apreocupação com a qualidade de vida para esta geração e as gerações vindou-ras, a concepção da saúde como um bem estar coletivo, e a construção dacidadania representada pela capacidade de modificação da realidade.

É preciso que a nível local sejam formulados alguns conceitos de imagi-nário que possibilitem ações de mobilização a nível local, dentro do princípiode fazer localmente e pensar globalmente.

A mobilização social não é uma oportunidade de conseguir pessoas paraajudar a viabilizar nossos sonhos, mas de congregar pessoas que se dispõema contribuir para construirmos juntos um sonho, que passa a ser de todos. Seesse sonho excluir alguém, esse alguém não vai se comprometer e vai buscaratacar, desestimular e destruir o movimento e a disposição dos outros paraagir.

O imaginário enuncia uma forma de futuro para construir, contém ele-mentos de validade formais (históricos e científicos) e, nesse sentido, é umafonte de hipóteses para ação e o pensamento.

42

5. As relações entre a concepção do corpo humano,medicina e ambiente

Segundo Almeida Junior (1995) muito longe de serem consensuais, asconcepções correntes sobre o corpo humano são extremamente variadas etêm origens muito antigas. Veremos que o modo de conceber o corpo huma-no é extremamente importante, repercutindo profundamente nas proposi-ções teóricas sobre a medicina, meio ambiente, ecologia, economia, etc. Aidéia de corpo foi e é socialmente constituída, interferindo em quase todos os

O territorio da bacia hidrográfica é o espaço onde se refletem todas as interrelações naturais ehumanas. Ilustração de Procópio de Castro, idealizada por Marcus Vinicius Polignano.

43

domínios do pensamento.A concepção de corpo predominante na biologia e na Medicina atual é o

resultado de um longo desenvolvimento da análise reducionista ou mecani-cista. A importância da concepção biológica e reducionista do corpo está emsua difusão no meio social pela escola, universidade, clínica, meios de comu-nicação em massa, instituições estatais e privadas de saúde, meio ambiente,influenciando inclusive o pensamento econômico.

A concepção do corpo formulada pela biologia pode parecer distante,contudo, devemos ter em mente que essa visão de corpo interfere no com-portamento dos agentes econômicos. Ela orienta a ação dos empresários quelidam com seres vivos, como é o caso na agricultura e na pecuária, na indús-tria de alimentos, na indústria farmacêutica, nas empresas de saúde, etc.Sabemos também que o corpo é um elemento imprescindível de marketingcontemporâneo porque sua imagem faz vender. Essa imagem é cultural e, noOcidente, a biologia contribui muito para sua formação. São freqüentes nascampanhas publicitárias de produtos alimentícios ou farmacêuticos as refe-rências a determinados componentes químicos, por exemplo, “rico em vita-minas”.

A história da concepção do corpo é marcada por uma atitude reducionis-ta/mecanicista amplamente reconhecida. Deixando de lado as fases maisantigas dessa atitude reducionista, vejamos algumas transformações impor-tantes no conhecimento sobre o ser vivo que ocorreram durante os últimosséculos.

Na segunda metade do século XVII, muitos pesquisadores fizeramobservações microscópicas. Entre eles, podemos destacar alguns exemploscomo Leenwenhoek, Malpighi, Robert Hook. Este último é lembrado pelasdescrições microscópicas detalhadas que realizou sobre pedaços de cortiça.Nessas descrições, Hook chamou de células as estruturas que encontrou.Leenwenhoek descreveu infusórios, espermatozóides, glóbulos vermelhosnucleados de peixes e, até mesmo, bactérias cujas proporções são muito redu-zidas.

Esses primeiros observadores constataram a existência de um mundomicroscópico, mas foram incapazes de elaborar uma teoria coerente sobre omundo que eles descobriram e, ainda menos, uma concepção de corpo deri-vada das observações microscópicas. Somente no século XIX, com a melho-ria das técnicas de microscopia e a aparição dos primeiros laboratóriosmodernos, Schwann e Schleiden formularam uma teoria celular, estabelecen-do a célula como a primeira unidade viva do ser vivo. Essa teoria celular foiuma das bases para a formulação das concepções atuais da biologia.

44

Atualmente, num dado patamar de abstração, pensa-se o corpo como cons-tituído por uma célula autônoma ou por várias células funcionando de modointegrado. E, como veremos, a célula é pensada como uma máquina químicacomandada pelo DNA.

Dentro do domínio da biologia, a teoria celular, a evolução darwinista ea genética mendeliana parecem ser algumas das principais contribuições doséculo XIX, mas elas não foram as únicas importantes.

Para citar somente mais um exemplo das descobertas do século XIX,Pasteur fez contribuições decisivas. No caso de Pasteur, vemos um vínculodireto entre as suas descobertas e a expansão de um conceito de corpo da bio-logia em direção ao meio social que a cerca. Não somente pela proposição denovos hábitos de higiene, mas também pelo emprego de vacinas capazes delibertar os homens de doenças mortais. A imunidade frente a determinadasdoenças passa a ser artificialmente adicionada ao corpo humano e de algunsanimais. O sistema imunológico passou a ser pensado como fonte de umaidentidade próprias a cada indivíduo, como capaz de distingir entre algo quefaz ou não parte de um organismo.

As demonstrações de Pasteur sobre assepsia passaram a interferir nas ati-vidades cotidianas dos seres humanos. As preocupações básicas com a sani-dade dos alimentos e sua conservação, as práticas hospitalares, a higiene dasresidências e dos espaços públicos foram profundamente modificadas, devi-do às descobertas de Pasteur e de outros pesquisadores. As práticas corporaisforam visivelmente alteradas pela difusão dessas descobertas. Grande partedas descobertas científicas, importantes no campo da biologia, teve repercus-sões sobre as atitudes do cidadão comum e do técnico, estabeleceram novoshábitos, modificaram padrões psicológicos, instituíram novas verdades,novas regras morais. O exemplo dos anticoncepcionais que permitiramnovos padrões de comportamento sexual é conhecido, mas não é nem o maisimportante nem o mais radical.

Em 1940 a cibernética e a física nuclear começaram a fazer parte doambiente científico. O físico Erwin Schrodinger sugeriu que a estrutura atô-mica do material genético fosse pensado como um cristal aperiódico porta-dor de informações codificadas.

Em 1953, Watson e Crick revelaram a estrutura de dupla hélice do DNA.O DNA passou a ser compreendido como uma verdadeira memória molecu-lar da estrutura protéica dos seres vivos.

Todo esse conhecimento fortaleceu a concepção hegemônica de reduçãoatual dos seres vivos a máquinas químicas. Os reducionistas parecem acredi-tar na possibilidade de uma explicação global do ser vivo, recorrendo cada

45

vez mais a um novo patamar de redução analítica. Quanto aos fenômenosobservados, recorreu-se aos organóides celulares, mais tarde às moléculas.Podemos perguntar se o último patamar da redução já foi atingido, ou seainda devemos esperar novas reduções que transformem os componentessubatômicos do DNA e das outras moléculas nos elementos explicativos cen-trais das novas teorias.

É preciso mencionar que todo esse desenvolvimento para dentro docorpo, em que a ciência se enveredou, coincide com a instalação da revoluçãoindustrial e do capitalismo. As mazelas sociais produzidas pelo sistema prin-cipalmente no final do século XIX e início do século XX, foram demonstra-das por vários relatos históricos que davam conta das precárias condições devida da classe operária e dos altos índices de mortalidade que atingia estesgrupos. Como não interessava naquele momento a discussão mais social dainserção do indivíduo, e da apropriação do corpo pelo sistema, foi fundamen-tal o desenvolvimento da visão biológica e reducionista dos problemas desaúde como interno, para dentro do corpo de cada indivíduo. A degradaçãoambiental e social que o sistema produziu, é desmistificada por uma visãoque procura reduzir os problemas de saúde às características individuais einterações maléficas com outras espécies. A degradação ambiental é possível,pois o sistema procura separar claramente o corpo do homem (meio interno)do seu meio ambiente onde ele vive. A degradação ambiental é visto comoum processo inevitável do avanço econômico, e um preço a ser pago, semconseqüências para os indivíduos e os seus corpos que não são parte inte-grante e nem dependente deste ambiente.

Assim nós construímos a sociedade do século XX.A medicina comprometida com uma visão clínica e hospitalar adotou a

visão reducionista do corpo humano, procurando dissecá-lo em componen-tes cada vez menores (sistemas, órgãos, células, moléculas,átomos, partícu-las subatômicas) e entender os mecanismos físico-químicos envolvidos nadinâmica do funcionamento do indivíduo, estabelecendo a partir daí oentendimento do ser humano e os mecanismos de atuação sobre ele. Nãoque isso não tenha produzido avanços históricos no tratamento de doenças,porém não é suficiente para explicar e cuidar do ser humano na sua integra-lidade.

Os médicos, por questões de formação, por vezes abstraem o indivíduodo lugar onde mora, como sobrevive, como é o seu processo de trabalho, oque pensa, como entende a sua doença, detendo-se apenas sobre o corpo,sobre o seu funcionamento biológico mediados por alguns exames comple-mentares. Desta forma distanciam-se das percepções da saúde coletiva, espe-

46

cialmente do vinculo com meio ambiente, pois a concepção do corpo huma-no proposto é distinto e independente do ambiente externo.

É preciso rever essa concepção de mundo. Não se trata aqui de negar oconhecimento e o avanço que a medicina trouxe para o desenvolvimentohumano. Trata-se, na verdade, de adequá-lo a uma lógica maior, mais sensa-ta que perceba a integralidade da relação do corpo-indivíduo como parte doambiente natural, interagindo e participando ativamente dele, na possibili-dade de uma interação positiva e de preservação mútua. Entenda-se estainteração não somente como biológica, mas também mental e social.

O Projeto Manuelzão propõe rever estes conceitos, baseando nos seguin-tes fundamentos:

• o compromisso da medicina é acima de tudo com a vida, este deveser sempre o seu sentido ético maior;• o ser humano é a representação maior da complexidade da vida, edeve ser entendido em sua plenitude como integrante e dependente do

O Manuelzão toma as águas do rio das Velhas como espelho da sociedade que reflete a quali-dade de vida e de saúde da população. Foto Marcelo Andrê

47

ambiente natural, interagindo, partilhando e participando da sua con-servação;• portanto a vida deve ser o valor social preponderante de toda a orga-nização social;• a preservação da vida sobre todas as suas formas deve ser um princí-pio básico da sociedade;• a prática de saúde tem que entender o binômio homem-natureza eatuar sobre ele;• na água surgiu a vida; 70% do corpo humano é constituído de água;portanto a água é absolutamente essencial à vida. Se uma sociedade nãopreserva o que é essencial a ela, que modelo de sociedade é esse que nãobusca preservar as condições básicas para a sua própria sobrevivência;• o Projeto toma as águas do rio das Velhas como espelho desta a socie-dade, do modelo de apropriação do meio ambiente que foi adotado ecomo isso se reflete na qualidade de vida e de saúde da população, e anecessidade de se repensar todo este processo.

6. Território de ação

O eixo operacional de ação do Projeto é o território de bacia. No caso doProjeto Manuelzão iniciamos pela bacia do rio das Velhas. Esta delimitaçãoterritorial não deve, por sua vez, limitar a visão de mundo ao nível local, mastambém permitir pensar e agir sobre as questões globais e sistêmicas quedeterminam os ecossistemas onde vivemos.

É no território local que as pessoas vivem e convivem, estabelecem osseus laços sociais e culturais, estabelecem a sua visão de mundo, de saúde, demeio ambiente, e a sua capacidade de mobilização e transformação da reali-dade. A forma como aquela comunidade vai se apropriar do meio ambienteé fundamental na determinação das conseqüências deste modelo para o meioambiente e a saúde.

É também nesse território onde se darão a atuação de diversos atores einstituições sociais como os profissionais de saúde, a prefeitura, o estado, eoutros. A forma como eles vão atuar no território trará consequências impor-tantes também para o meio ambiente, a saúde e a mentalidade daquela cole-tividade.

Portanto, a nossa práxis deverá se dar em um território definido, no qualpossa ser utilizado todo o arsenal metodológico científico, que permita a ela-boração de um diagnóstico da condição de saúde-ambiente-sociedade, capazde demonstrar as correlações existentes, e a necessidade transformadora de

48

mudar as relações existentes. Diante da complexidade da questão ambiental, torna-se claro que o tra-

balho deverá buscar a parceria com outras áreas de conhecimentos, outrasinstituições, com órgãos governamentais, e com a sociedade civil em geral.Isto caracteriza o projeto como social, interdisciplinar e interinstitucional.

7. Concepção pedagógica

O projeto assenta-se na pedagogia do aprendizado no trabalho. Estacaracterística permite superar a dicotomia entre disciplina de graduação eatividade de extensão, que compromete a qualidade do ensino universitário.A boa pedagogia necessita associar intrinsecamente o diagnóstico e a resolu-ção do problema com o aprendizado e o ensino.

O Projeto Manuelzão propõe como metodologia pedagógica a atuaçãono território de bacia hidrográfica como espaço para exercício da transdisci-plinaridade e cidadania.

O conceito de bacia remete à visão ecológica integrando processossociais, políticos, econômicos e de saúde dentro do contexto das relações

O território da bacia hidrográfica permite uma visão sistêmica a realidade local a partir deuma visão global ecossistêmica. Foto: Acervo Projeto Manuelzão

ambientais existente na bacia, que no fundo deve dar a sustentabilidade atodos esses processos.

Portanto, a viabilidade de uma nova geografia médica é tangível. Ela énova porque busca se basear nas relações sociais, isto é, supera o determinis-mo positivista da ecobiologia (como se a natureza e a genética fossem a his-tórica) e procura o entendimento do processo saúde/doença a partir da inser-ção das pessoas na produção e reprodução da sociedade dentro de um deve-nir histórico.

Segundo Samaja & Ynoub (1998) “o desenvolvimento dos indivíduossão inseparáveis dos ambientes do desenvolvimento social das populaçõesenvolvidas e inseparáveis dos problemas da reprodução e do desenvolvimen-to das sociedades. As sociedades, cotidianamente, desenvolvem um grandenúmero de processos para reproduzirem-se em sua dimensão biológica, cul-tural, econômica e política”.

A construção da nova geografia médica deve ser entendida, portanto,como um movimento dentro da estratégia de geopolitização da saúde noslugares.

Em meio a esse caos geral é que a necessidade da construção de umanova epistemologia da ciência é, sobretudo, ideológica e se assenta na geogra-fia dos lugares. Ou seja: não há como fugir à geografização da Medicina, daEducação, da Pedagogia, etc, e da própria ciência. Só que esse processo de geo-grafização deve estar comprometido com a busca de respostas às necessida-des do povo e considerando-o (povo) como sujeito principal deste processogeopolítico. (Santos et all, 2002 )

O desenvolvimento da nova geografia médica nos permite cumprir umprograma de trabalho que se adapte às circunstâncias dos lugares e estimuleà investigação dos fatos e dos fenômenos de modo que a produção do novoconhecimento potencialize as nossas práticas. Nessa nova proposta de geo-grafia médica é possível propor uma classificação epidemiologia de previsibi-lidade de resolução dos problemas de saúde (controláveis, redutíveis e evitá-veis), ou seja, a partir da prevalência dos pacientes nos lugares pode-se prevera efetividade das ações de saúde pública cuja essência epistemológica é aconstrução de novas relações sociais superando a base paradigmática queserve de apoio para as práticas de planejamento e de programação em saúdeexecutadas até hoje e cujos resultados são catastróficos para os pacientes emuito úteis para o processo de acumulação capitalista, e, cada vez menosefetivos do ponto de vista da conquista de legimitidade política pelo Estado.

O Projeto Manuelzão propõe como metodologia a continuidade dessasatividades, enfatizando as atividades de saúde coletiva, e a introdução de ati-

49

vidades de saúde ambiental: diagnóstico das condições ambientais do muni-cípio (abastecimento de água, esgotamento sanitário, lixo, uso de agrotóxi-cos, drenagem pluvial e controle de vetores), reuniões com as comunidades,mobilizações da sociedade local (autoridades e população em geral) atravésde realização de eventos (cursos, seminários e outros).

A preparação dos alunos selecionados para a área de atuação do Projeto,se dá a partir de um treinamento com a participação de professores e convi-dados que os orientam sobre os diversos temas relacionados à saúde ambien-tal, envolvendo diversas instituições que vêm participando junto ao Projetodentro da citada perspectiva interdisciplinar e intersetorial (Companhia deSaneamento de Minas Gerais – COPASA, Fundação Estadual de MeioAmbiente – FEAM, Secretaria de Estado de meio Ambiente e DesenvolvimentoSustentável – SEMAD, Superintendência de Limpeza Urbana – SLU de BeloHorizonte e outras unidades da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG,como a Comunicação, Biologia, Geologia).

No estudo de demanda ambulatorial, atividade que os alunos vêmdesenvolvendo ao longo dos anos na disciplina de saúde coletiva, é acrescidoo estudo dos aspectos ambientais, buscando coletar informações sobre dadossocioambientais dos pacientes atendidos sobre o uso de água, disposição de

50

O conceito de bacia hidrográfica: visão ecológica integrando processos sociais, políticos,econômicos e de saúde. Foto: Marcelo Bahia Cantella

resíduos sólidos e esgotos domésticos, poluição de cursos d’água, uso de agro-tóxicos dentre outros.

O maior desafio e a maior missão da universidade no atual estágio dasaúde brasileira é construção da transdisciplinaridade, condição básica para oprogresso do conhecimento e da saúde coletiva. Para isso devemos não ape-nas formar profissionais aptos ao diálogo técnico e leigo com os mais varia-dos setores, mas também que sejam capazes de ter uma visão sistêmica eintegrada da relação ambiente/saúde/cidadania, que lhes permitam interagircom outras áreas do conhecimento e exercer atividades políticas e socioam-bientais junto a grupos populacionais, institucionais e setor privado para naconstrução de uma sociedade saudável e sustentável do ponto de vista social,econômico e ecológico.

Referências biblográficas

ALMEIDA Jr. A idéia de corpo: suas relações com a Natureza e os assuntos huma-nos. In: CAVALCANTI, C (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma socie-dade sustentável. São Paulo, Cortez, 1995.p.139-52.

DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO. Disponível em: www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/arquivos/estocolmo.doc (acesso em 08/12/2008)

CLUBE DE ROMA. Disponível em: www.clubofrome.org/archive/publications.php(acesso em 08/12/2008)

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Eco 92.disponível em: www.unb.br/temas/desenvolvimento_sust/eco_92.php (acesso em12/12/2008)

GIANNETTI DA FONSECA, E. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riquezadas nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

LISBOA, AH; GOULART, EMA; DINIZ, LFM. Projeto Manuelzão: a história damobilização que começou em torno de um rio. Belo Horizonte: Instituto Guacuy,2008. 255 p.

LALONDE, M. A new perspective on the health of canadians. A working document.Government of Canada, Ottawa, 1974.

LEIS HR, D’AMATO JL. O ambientalismo como movimento vital: uma análise desuas dimensões história, ética e vivencial. In: CAVALCANTI, C. Desenvolvimento enatureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez, 1995.p.29-40.

MEADOWS, Dennis L., MEADOWS, Donella H., RANDERS, Jorgen & BEHRENS,William W. Limites do crescimento- um relatório para o Projeto do Clube de Romasobre o dilema da humanidade. São Paulo, Perspectiva. 1972.

51

NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdiplinaridade.3 ed, São Paulo: Triom,1999.167 p

SACHS, I. Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: EditoraGaramond, 2002

RELATÓRIO BRUNDTLAND. Disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/Relatório_Brundtland (acesso em 10/12/2008)

Protocolo de Kyoto: a convenção sobre mudança no clima. Brasília: Ministério daCiência e Tecnologia. Disponível em: http://www.mct.gov.br/clima/quito/proto-col.htm>acesso em 18 de nov.2004

ROHDE, G M. Simetria. São Paulo, Hemus. 1982.

Strong, M Ecodesenvolvimento. In: Sachs,I. Estratégias de transição para o SéculoXXI: Desenvolvimento e Meio Ambiente. FUNDAP, São Paulo, 1993.

TORO, A J B & Werneck, N M D. Mobilização Social: um modo de construir a demo-cracia e a participação. Brasília MMA/Abeas/Unicef, 1996.

SAMAJA, J.; YNOUB, R. Monitoramento de los ambientes de desarollo humano.Recife (Mestrado em Saúde Pública) NESC/CPqAM/FIOCRUZ. Texto de Apoio uti-lizado na Disciplina Saúde, Ambiente e Trabalho, 1998. (mimeografado) 25p.

SANTOS, M.; SOUZA, M.A. & SILVEIRA, M.L. Território: globalização e fragmen-tação. São Paulo: Hucitec, 2002. 5ª edição.

Watson. J. D. The Double Houx. Nova York, The New American Lybrary, 1968.

52

53

A água como matriz de abordagemecossistêmica

1. Introdução

Uma questão fundamental na abordagem ecossistêmica é aidentificação de um elemento sistêmico existente na nature-za que vincule diferentes componentes e variáveis ambientaisdentro de uma visão de complexidade. Nesse sentido, a água

tem demonstrado ser capaz de estabelecer correlações ecossistêmicas.Este capítulo aborda a importância da água e suas relações complexas

imprescindíveis para a vida, e, ainda, a sua capacidade de matriz transdisci-plinar que possibilita integrar e correlacionar diferentes áreas do conheci-mento.

Existem muitas controvérsias científicas sobre a origem da água no pla-neta Terra.

Porém, não existe a menor dúvida de que a vida começou na água, e issosomente foi possível por ela existir na Terra em sua forma líquida, proporcio-nada pela temperatura média do planeta, que é de 150C .

Todas as espécies vivas, sejam animais ou vegetais, são dependentes daágua (salgada ou doce) e têm, na sua composição, diferentes percentuais deágua – no caso do homem, 70% do peso corporal. Os seres humanos, assimcomo todas as espécies terrestres, necessitam de água doce.

A água do planeta, em termos de quantidade, é a mesma desde sempre,ocupando ¾ da sua superfície, e 97% é salgada.

Existem, apenas, 3% de água doce no planeta, sendo que 2% localizam-se nas calotas polares, e apenas 0,001% está disponível superficialmente emrios e lagos para o abastecimento humano, de outras espécies e para as ativi-dades econômicas.

Por essas razões, a disponibilidade de água doce tem se colocado comoum dos grandes desafios ambientais do presente e do futuro dos povos em

diferentes partes do mundo. Exemplo disso é intensificação dos conflitospelo uso da água em diferentes bacias hidrográficas do mundo, alguns deforma violenta (guerras).

2. A água como um elemento civilizatório

Como a água sempre foi, é e será essencial à vida e às atividades huma-nas, o homem sempre buscou estar próximo de mananciais de água. As civi-lizações ricas e poderosas da antiguidade prosperaram ao longo do rio Nilo(Egito), dependendo dele para a sobrevivência e para o desenvolvimento.

A história da humanidade foi marcada pelas grandes navegações atravésdos mares, que permitiu a expansão das civilizações, o crescimento e o domí-nio do poderio econômico e político de diferentes povos ao longo do tempo.

No caso do Brasil, a ocupação do interior do Brasil se deu pela navegaçãodo rio São Francisco, não por acaso denominado de rio da integração nacio-nal.

Por sua importância, a água constituiu-se num elemento cultural queinfluenciou o pensamento, a filosofia e a história das civilizações.

Catalão citando Novalis define a água como “caos sensível”, reconhecen-do, nesta forma informe, elemento plástico por excelência para a modelagemda vida. Na mitologia grega, é a matéria primordial da vida e, para o filósofoThales de Mileto, o elemento fundador de todas as coisas.

Grande parte da narrativa bíblica tem como referência a água e os rios doOriente Médio. Para os cristãos, se as águas não representam o princípio cria-dor, eles permitem o renascimento do homem novo. Pelo batismo, realizadopela imersão nas águas de um rio ou de uma fonte, restabelecem-se os laçosentre Deus e os homens. As águas detêm o poder de mediar o céu e a terra.O arco-íris, esse jogo amável entre a luz e a transparência das águas, passoua simbolizar, desde então, a aliança entre Deus e os homens.

A água, segundo a tradição chinesa, pode assumir as 10 mil formas dacriação, e aparece nas religiões, nas mitologias, na poesia e nas artes comometáfora da alma humana. Os indus renovam as suas energias espirituais naságuas do Ganges.

O fluxo das águas é inexorável; correr faz parte da natureza. Ela aceitaser tocada, mas nunca detida. Diante dos obstáculos, ela os contorna e flui.“A água escapa entre nossos dedos e, como a chama, perfura de inquietanteestranheza as nossas certezas estreladas”, diz R. Barbier. Os chineses a com-param ao tempo que passa, pois, em vão, tentamos deter a água e o tempo.A água que corre e o tempo que passa são percebidos como sinônimos do

54

fluxo universal.Uma das melhores imagens simbólicas das águas está relatada na Carta

do índio Seattle:“Essa água brilhante que escorre nos riachos não é

apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Selhes vendermos a terra, vocês devem lembrar que ela ésagrada, e devem ensinar as suas crianças que ela é sagra-da, e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala deacontecimentos e lembranças da vida de meu povo. Omurmúrio das águas é a voz de meus ancestrais. Os riossão nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregamcanoas e alimentam nossas crianças.”

3. O ciclo das águas e da vida

A exuberância e a diversidade da vida na Terra somente foi possível pelaexistência do ciclo da água. A água salgada existente nos mares evapora,transforma-se em água doce que, sob a forma de nuvens, é carreada pelas cor-rentes de ar na direção dos continentes. Neles deságuam através das chuvas,penetrando no solo, alimentando os lençóis freáticos e as nascentes, que cor-rem para os rios em direção ao mar, estabelecendo assim o ciclo da vida.

Este ciclo é essencial para a existência da biodiversidade, para nossas ati-vidades agrícolas e econômicas. Nem a vida nem a economia sobreviveriam

55

Ciclo das águas. Ilustração: Procópio de Castro

sem a manutenção desse ciclo, que, por sua vez, deveria ser respeitado emsua integridade dada sua importância No entanto, não é isso o que tem ocor-rido.

As intervenções humanas têm provocado diferentes impactos no cicloda água, comprometendo, principalmente, a disponibilidade de água doceem várias partes do mundo. Podemos citar como fatores de pressão que cau-sam impactos na quantidade e na qualidade das águas:

1. Expansão da atividade econômica no campo e nas cidades;2. Depredação da integridade de ecossistemas;3. Desmatamentos;

56

Comparação didática do sistema hídrico com o sistema circulatório do sangue humano.Ilustração: Acervo Projeto Manuelzão.

4. Uso e ocupação inadequados do solo;5. Impermeabilização do solo 6. Assoreamento dos rios;7. Destruição de nascentes;8. Destruição de mata ciliar;9. Deposição de lixo, esgotos domésticos e industriais diretamente noscursos d’água sem tratamento prévio;10. Aquecimento global. Essas questões serão abordadas em outros capítulos deste livro.

4. As águas e a ciência

Pela suas características físicas e sistêmicas, a água contribuiu muitopara o desenvolvimento científico.

No campo da física, permitiu descobertas como a teoria do empuxo deArquimedes, os vasos comunicantes e desenvolvimento das concepções dahidráulica, as quais permitiram a construção de barragens, navios, geração deenergia e outros inventos.

Outro campo do saúde, pouco lembrado, as águas foram decisivas parao avanço do conhecimento da promoção de saúde..

Numa epidemia de Coléra ocorrida em Londres – epidemia da "BroadStreet" de 1854 – o médico inglês John Snow, através de uma pesquisa, ava-liou todos os casos ocorridos, a distribuição geográfica e a variação temporaldos casos em Londres, constatando que a epidemia tinha atingido algumasregiões mais do que outras. A partir da distribuição geográfica dos doentes,ele procurou estabelecer uma correlação com a distribuição de água na cida-de, descobrindo que, a parte da cidade que era abastecida com água que rece-bia um tratamento primário – filtração – possuía menos doentes.

Numa época em que as bactérias ainda não tinham sido descritas e agênese das doenças era atribuída à teoria miasmática, John Snow mudou oparadigma, demonstrando que a gênese de Cólera estava relacionada a fato-res ambientais e não místicos, portanto passíveis de prevenção. Por tudo issoJohn Snow foi considerado um dos fundadores da moderna Epidemiologia.

5. Doenças de veiculação hídricas

No século XIX, as doenças de veiculação hídrica eram basicamentetransmissíveis, infecciosas, provocadas por diferentes agentes microbianos(vírus, bactérias, protozoários) que eram veiculados por águas contaminadas

57

58

John Snow (1813-1858) considerado fundador da moderna epidêmiologia. Foto: internet.

(Tabela 1).Ao contrário de outras espécies, o homem sempre se mostrou muito sus-

cetível aos agentes microbianos existentes na água, especialmente as crian-ças, que apresentam índices elevados de letalidade por essas doenças, sendo,portanto, uma causa importante de mortalidade infantil.

Ao longo da história a edificação das cidades às margens dos cursosd’água, seguida de deposição de esgotos sem tratamento, provocou umaampla disseminação dessas doenças, causando grandes epidemias.Gradativamente, com a implantação dos serviços de tratamento da águaatravés das chamadas Estações de Tratamento de Água (ETA), essas doenças

59

Tabela 1. Doenças infecciosas de veiculação hídrica

passaram a ser evitadas. Como consequência, as doenças de veiculação hídrica passaram a ser um

indicador de qualidade socioambiental. A presença dessas doenças reflete aprecariedade dos serviços de saneamento ambiental ofertados à população.Esse grupo de doenças foi um dos principais responsáveis pelos altos índicesde mortalidade infantil no Brasil, especialmente nas décadas de 1970-1980,quando estes índices atingiuvalores acima de 100/1000 e, em alguns estadosdo nordeste, mais de 200/1000.

De acordo com dados da monitorização das doenças diarréicas agudas(DDA) do Ministério da Saúde (2012), de 2000 a 2011 foram notificados33.397.413 de casos de DDA no Brasil. Em 2006, a estimativa de incidênciaaumentou nas regiões Sul (13 por 1.000), Centro-oeste (25 por 1.000) eNordeste (28 por 1.000). Em relação à estimativa de incidência de DDA porfaixa etária, o ano de 2006 apresentou a maior estimativa para os menores de1 ano (140 por 1.000), o ano de 2008 apresentou as maiores estimativas paraos de 1 a 4 anos (78 por 1.000) e 5 a 9 anos (27 por 1.000), e, nos anos de 2008e 2009, os maiores de 10 anos tiverem as mesmas estimativas de incidência(11 por 1.000).

Em relação ao ano de 2012, registraram-se 217.169 casos de DDA, sendo17.987 em menores de 1 ano, 44.595 casos entre 1 e 4 anos, 24.392 entre 5 e9 anos, 127.764 em maiores de 10 anos e 2.431 ignorados.

Segundo dados do sistema de informação de mortalidade, de 2000 a 2009

60

Condições precárias de saneamento ambiental. Fotos: ONU Habitat

o Brasil teve 49.603 óbitos por diarréia e gastroenterite de origem infecciosapresumível. A taxa de mortalidade, de 2000 a 2009, para cada 100.000 habi-tantes, variou de 27,18 a 85,21 em menores de 1 ano, de 2,37 a 4,11 na faixaetária de 1 a 4 anos, de 0,18 a 0,38 na faixa etária de 5 a 9 anos e de 1,58 a2,18 em maiores de 10 anos.

Dados preliminares de 2010 registram 3.948 óbitos, sendo 622 em meno-res de 1 ano, 230 de 1 a 4 anos, 41 de 5 a 9 anos, 3.052 em maiores de 10 anose 03 ignorados. (Ministério da Saúde, 2012).

Com a evolução do processo industrial e o descuido com a questãoambiental, uma infinidade de produtos químicos passaram a circular noambiente e a poluir os cursos d’água, transformando-se numa nova fonte decontaminação e caracterizando outro agrupamento de doenças de veiculaçãohídrica, como danos provocados pelos metais pesados e agrotóxicos. Essegrupo é igualmente importante, dado que podem gerar importantes agravosà saúde, conforme podem ser vistos alguns exemplos na Tabela 2.

6. Água potável

A saúde humana está vinculada diretamente à disponibilidade de águapotável.

Não se pode estabelecer a potabilidade apenas pelos aspectos físicos daágua (incolor, inodora e insípida), pois ela pode possuir contaminantes quí-micos e microbiológicos não perceptíveis à visão ao olfato ou ao paladar. Aágua para consumo humano é aquela cujos parâmetros microbiológicos, físi-cos, químicos e radioativos atendem ao padrão de potabilidade e que não ofe-reçam riscos à saúde.

Dada à importância do tema, os países adotam critérios legais que defi-nem o padrão de qualidade da água para o consumo humano. No caso doBrasil, os critérios adotados e que estão em vigor foram definidos pelaPortaria do Ministério da Saúde 2914/2011.

O CONAMA, pela resolução 20/86, classifica as águas no Brasil de acor-do com a sua salinidade, assim água com salinidade inferior ou igual a 0,5%é classificada como doce; com salinidade entre 0,5% e 30% é salobra e comsalinidade superior a 30%, é água salina.

Do ponto de vista microbiológico, os critérios de potabilidade da águaadotadas pela portaria MS 2914/2011 para consumo humano estão expres-sos na Tabela 3.

A água, por ser um solvente universal, tem uma capacidade de dissolveroutras substâncias que são carreadas do solo e do ar através do ciclo da água.

61

62

Tabela 2. Componentes químicos e efeitos sobre a saúde humana

A água doce natural contém quase todos os elementos existentes na nature-za e são esses sais minerais, na verdade, que saciam nossa sede, e, inclusive,são fundamentais para o nosso organismo, dentro de limites de tolerância. AOrganização Mundial de Saúde (OMS) classifica como potável uma águacom teor mineral de até 500 mg por litro (mg/l). No Brasil, com cerca de 8%dos recursos hídricos do planeta, é considerada aceitável uma água com teormineral de até 150 mg/l. Em regiões menos providas, como o Nordeste, essepercentual pode até ultrapassar 200 mg. No que se refere ao padrão de pota-bilidade para as substâncias químicas, os valores expressos na legislação bra-sileira estão listados na Tabela 4.

Observa-se na Tabela 4 que as mudanças e contaminações produzidaspela atividade antrópicas na qualidade das águas estão sendo gradativamen-te assimiladas pelos critérios da potabilidade da água para o consumo huma-no. Assim, podemos citar como exemplo os “índices toleráveis” de agrotóxi-cos e outros compostos químicos.

Ocorre que grande parte destes compostos são classificados comoDisruptores endócrinos, ou seja são agentes que promovem alterações no sis-tema endócrino, substituindo os hormônios ou bloqueando a sua ação natu-ral, ou ainda aumentando ou diminuindo a quantidade original de hormô-nios (Waissmann, 2002).

Grande parte destes produtos químicos que mimetizam os hormônios

63

Tabela 3. Padrão microbiológico da água para consumo humano

NOTAS (1) Valor máximo permitido.(2) Indicador de contaminação fecal.(3) Indicador de eficiência de tratamento.(4) Indicador de integridade do sistema de distribuição (reservatório e rede).

64

Tabela 4. Padrão de potabilidade para substâncias químicas que repre-sentam risco à saúde

do nosso corpo se acumulam em tecidos gordurosos, não são eliminados epassam a agir como se fossem os hormônios segregados pelas glândulastomando o seu lugar e alterando o funcionamento do corpo humano

65

Tabela 4. Continuação

NOTAS: (2) Valor Máximo Permitido.

(Colborn, 2002).São exemplos de disruptores endócrinos: metais pesados (chumbo, cád-

mio, arsênico, mércurio), pesticidas como clordano, dieldrin, DDT, endosul-fan e outros.

Doenças associadas a estas substâncias: redução na qualidade e quanti-dade de esperma; hipotireoidismo; aborto; prematuridade; diminuição defunções imunológicas; neoplasia da tireoide; teratogenia; deficiência cerebral;câncer de próstata e de ovário; câncer de mama; infertilidade dentre outras.É importante frisar que o aparecimento destas doenças depende da quanti-dade e da persistência da exposição aos agentes.

7. Usos e gestão das águas

Por ser fluida e sistêmica, a gestão das águas tem que se dar dentro doterritório da bacia hidrográfica, no qual diferentes atores dentro da a gestãotripartite, procuram gerir os múltiplos usos das águas (Tabela 5). Todas essasdefinições estão expressas na Lei 9433/1997:

• A água é um bem de domínio público• A água é um recurso natural limitado• O uso prioritário deve ser o consumo humano e a dessendentação deanimais• A gestão deve contemplar o uso múltiplo das águas• A bacia hidrográfica é a unidade territorial de planejamento• A gestão de bacia deve ser descentralizada e contar com a participaçãodo poder público, dos usuários, das comunidades e da iniciativa privadaNão há como fazer gestão das águas sem focar no território geoambien-

tal da bacia hidrográfica. A lei 9433/1997 representa um avanço ao proporuma participação democrática dos três segmentos (governo, setor privado esociedade civil) na gestão deste território.

No processo de gestão há que se levar em consideração o enquadramen-to dos cursos d’água, estabelecendo-se a qualidade e os usos dos cursosd’água. Evidentemente, quanto melhor a qualidade das águas, melhores sãoas condições ambientais e de saúde do ecossistema do entorno. Essa classifi-cação foi estabelecida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONA-MA, através da resolução no 357, de 17 de Março de 2005:I - classe especial: águas destinadas ao abastecimento para consumo huma-no, com desinfecção; à preservação do equilíbrio natural das comunidadesaquáticas; e à preservação dos ambientes aquáticos em unidades de conser-vação de proteção integral.

66

67

Tabela 5. Descrição dos múltiplos usos da água eda qualidade requerida

II - classe 1: águas que podem ser destinadas ao abastecimento para consu-mo humano, após tratamento simplificado; à proteção das comunidadesaquáticas; à recreação de contato primário, tais como: natação, esqui aquáti-co e mergulho; à irrigação de hortaliças que são consumidas cruas e de frutasque se desenvolvam rentes ao solo e que sejam ingeridas cruas sem remoçãode película; e à proteção das comunidades aquáticas em Terras Indígenas.III - classe 2: águas que podem ser destinadas ao abastecimento para consu-mo humano, após tratamento convencional; à proteção das comunidadesaquáticas; à recreação de contato primário, tais como: natação, esqui aquáti-co e mergulho; à irrigação de hortaliças, plantas frutíferas e de parques, jar-dins, campos de esporte e lazer,com os quais o público possa vir a ter conta-to direto; e à aquicultura e à atividade de pesca.

68

Tabela 5. Continuação

IV - classe 3: águas que podem ser destinadas ao abastecimento para consu-mo humano, após tratamento convencional ou avançado; à irrigação de cul-turas arbóreas, cerealíferas e forrageiras; à pesca amadora; à recreação de con-tato secundário; e à dessedentação de animais.V - classe 4: águas que podem ser destinadas à navegação e à harmonia pai-sagística.

Por tudo o que foi explicitado, podemos afirmar que a água é uma matrizque permite integrar diferentes áreas do conhecimento na construção datransdisciplinaridade, possibilitando a participação de diferentes atoressociais na construção de políticas públicas intersetoriais. Além disso, propi-cia a construção de uma metodologia de abordagem ecossistêmica dentrouma nova relação homem-natureza, cujos paradigmas se recriam e permitamsustentar o desenvolvimento socioambiental e da saúde coletiva.

Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Recursos Hídricos e AmbienteUrbano. Águas subterrâneas: um recurso a ser conhecido e protegido. Brasília, 2007.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Recursos Hídricos. Água:manual de uso: vamos cuidar de nossas águas implementando o Plano Nacional deRecursos Hídricos. Brasília, 2006. 106p.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS Nº 2914 DE 12/12/2011. Disponível em:< http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1549>.Acesso em: 08 de fev. 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde (2012). Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1549>. Acesso em 20 de janeiro de2012.

COLBORN, T et al. O futuro roubado. Porto Alegre: L&M, 2002.

Carta do índio Seattle. Disponível em http://culturadoconhecimento.blogspot.com.br/2009/06/carta-do-chefe-indio-seattle.html Acesso em 20 de janeiro de 2012.

CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente (2005). Resolução nº 357, de 17 demarço de 2005. Ministério do Meio Ambiente, 23p.

MACHADO, C. J. S. Recursos hídricos e cidadania no Brasil: limites, alternativas e desa-fios. Am¬biente e Sociedade, v. 6 (2) : p. 121-136, 2003.

69

TUNDISI, J. G. Recursos hídricos no futuro: problemas e soluções. Estudos Avançados,São Paulo, v. 22, n.63, p. 7-16, 2008.

WAISSMANN, W. Health surveillance and endocrine disriptors. Cad. Saúde Pública,Rio de Janeiro : v.18 (2) mar./abr. 2002.

70

As cidades, a crise ambiental enovos territórios para a saúde coletiva

1. Introdução

OProjeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais,criado em 1997, permitiu construir durante esses anos umtipo de ação e reflexão socioambiental, entendendo o meioambiente como um complexo sistema natural e social

(Waltner-Toews, 2001). O projeto adota uma concepção particular de territó-rio: a bacia hidrográfica, utilizada, usualmente, para a gestão dos recursoshídricos como um espaço de promoção de saúde. Tal perspectiva, combinadacom proposições da Saúde Coletiva (Carta de Ottawa, 1986), principalmen-te no que concerne à participação da população na mudança das condiçõesde vida e de saúde, superou, na prática, a dualidade homem/natureza, ques-tionando os tradicionais limites de território adstrito de atuação propostopelo sistema de saúde. Efetivamente, o Manuelzão, em sua prática, demons-trou que, sem a adesão da população na mudança da degradação socioambien-tal, sobretudo no que se refere ao cuidado com os cursos de água, não se criauma intervenção sustentável que realmente inverta a situação existente.

As motivações para a criação do projeto surgiram do contato, nas peri-ferias da cidade de Belo Horizonte, com problemas de saúde relacionadosdiretamente com a degradação dos cursos de água.

Historicamente o processo de urbanização destinou para as camadaspopulares a ocupação inadequada dos fundos de vale. Era inquietante obser-var as consequências desse processo de urbanização nas demandas nosCentros de Saúde. Os efeitos sobre a qualidade da vida e da saúde dos mora-dores das proximidades dos córregos eram tão graves – doenças infectocon-

71

72

tagiosas e parasitárias, saneamento precário, enchentes e a aviltante estéticadecorrente – que denunciavam os equívocos daquele processo. Apesar dasevidências, ainda não estava em pauta a necessidade de mudança no modode tratar a relação entre o homem e o ambiente.

A Saúde Pública, seguindo o espírito das diferentes disciplinas envolvidas noplanejamento urbano, tais como a arquitetura e a engenharia, trabalhava essasquestões de forma dissociada de uma concepção ambiental sistêmica. Contudo,o aguçamento da crise ambiental transformou a relação homem/natureza, antesperiférica, em foco das preocupações políticas em escala mundial. A perspectivade aquecimento global, a possibilidade de escassez de água doce e os sinais dedegradação do ecossistema - que acarretam danos irreversíveis e grande númerode perdas humanas e da biodiversidade - assustaram e provocaram a mobiliza-ção de diferentes instâncias das sociedades globalizadas.

A dimensão da crise demanda uma reflexão sobre os paradigmas que sus-tentam as diferentes políticas historicamente construídas, que, por sua vez,reduziram o ambiente a mero objeto da apropriação humana. O ambientetem sido pensado, modificado, recriado e degradado, tomando como referên-cia a concepção de que a natureza deveria estar a serviço do homem. Comoafirma Lisboa (2001), esse paradigma ignorou dois pontos: “que a naturezaassocia o ser humano ao restante da fauna e flora e que as atuais relaçõessociais excluem a maioria dos seres humanos das conquistas sociais e técni-co-científicas, cassando suas cidadanias e o direito de usufruí-las”. A visãoantropocêntrica inclui em seu fundamento a desigualdade social, colocandoem confronto o ambiente e a sociedade, ameaçando a vida da atual e dasfuturas gerações. A sintonia desse modelo de pensamento e de ação com odesenvolvimento econômico, que corre ao sabor dos interesses do capital, éevidente. Porém, em razão das potenciais e graves consequências, começa-sea preconizar e a adotar medidas de restrição à destruição do ecossistema e derecuperação daquilo já degradado. No entanto, o poder de expansão do capi-tal, avançando sobre as novas práticas, tende a redefini-las ao seu modo.

A intenção deste capítulo é contribuir para o debate sobre a criseambiental e seus desdobramentos, particularmente no campo da SaúdeColetiva, seguindo a incitação de Milton Santos (2000), quando nos concla-ma a uma mutação filosófica:

“Muito falamos hoje nos progressos e nas promessasda engenharia genética, que conduziriam a uma mutaçãodo homem biológico, algo que ainda é domínio da históriada ciência e da técnica. Pouco, no entanto, se fala das con-dições, também hoje presentes, que podem assegurar uma

73

mutação filosófica do homem, capaz da atribuir um novosentido à existência de cada pessoa, e também do planeta.”

2. A questão urbana e a saúde da população

No final do século XVIII e durante todo o século XIX, o impacto da revo-lução industrial nas cidades europeias despertou a preocupação com as rela-ções entre produção de doenças e o ambiente. A necessidade de concentraçãopopulacional imposta pelo modelo econômico consolidou a ocupação dascidades, tornando perceptível a associação da gênese das doenças com os efei-tos rápidos e descontrolados do processo de industrialização e urbanizaçãosobre as condições de trabalho, de vida e de saúde da população.

Nesse período, explicitou-se a preocupação do Estado com o uso damedicina para organizar e controlar a sociedade, que Foucault vai considerarcomo as condições para o nascimento da medicina social. Em uma de suasversões, a medicina urbana surgida na França no século XVIII, era, comomostra Foucault (1981), uma medicina que tinha como objetivos: analisar oslugares de acúmulo e amontoamento de tudo que, no espaço urbano, podeprovocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ouendêmicos; o controle da circulação das coisas ou dos elementos, essencial-mente a água e o ar, e uma especial preocupação com a ordenação das águasque correm na cidade, separando as sujas das limpas, uma “polícia” da vida flu-vial, que redundou na elaboração do primeiro plano hidrográfico de Paris, em1742. As ações desenvolvidas representavam uma forma de política autoritária

O modelo de ocupação das cidades tornou clara a associação do meio ambiente com a saúde.Foto: Acervo Manuelzão

74

sobre o espaço, a organização da cidade e o comportamento da população. No século XIX, o Relatório Chadwick, publicado na Inglaterra em 1842,

demonstrava que o ambiente das cidades exercia influência sobre as condi-ções de saúde da população. Destacam-se aspectos relativos à incipienteestrutura de drenagem urbana, de intercepção de esgotos, suprimentos deágua potável, coleta e deposição do lixo e as habitações insalubres.

A partir desse relatório, iniciou-se, na Inglaterra, o desenho de uma res-posta ao problema, que vinculava a intervenção do Estado na área da saúde.O movimento, que ficou conhecido como Sanitarismo, definiu o ambientedas cidades como “objeto medicalizável” e concebeu uma estratégia de inter-venção. A estratégia envolvia a vigilância e o controle dos espaços urbanos(ruas, habitações, locais de lixo, sujeiras e toxicidade) e de grupos populacio-nais (pobres, minorias étnicas e as classes trabalhadoras) considerados derisco, bem como um conjunto de normatizações e preceitos a ser seguido noâmbito individual e coletivo.

Na mesma época, particularmente na segunda metade do século XIX, avisão ambientalista predominava nos debates médicos e, no Brasil, provocoua criação de uma agenda de viés higienista/ambientalista que condicionou aatuação dos médicos, fornecendo a chave interpretativa para os problemasrelacionados à saúde pública (Sanjad, 2004).

Ainda no século XIX, desenvolveu-se outra forma de abordagem dasaúde pública pela formulação da teoria microbiana, a partir das teorias deHenle da causalidade das doenças infecciosas por microorganismos vivos, em1840; da teoria dos Germes de Pasteur, em 1861; da descoberta do bacilo datuberculose, por Koch em 1882 e do vibrião do cólera, em 1883. A bacterio-logia médica desenvolvida a partir da teoria microbiana deu suporte à ideiade intervenção no ambiente como medida preventiva, pois ali poderiam estarfontes de agentes físicos e biológicos responsáveis pelo surgimento de doen-ças. A purificação do ambiente doméstico – considerada vital para a saúdedos habitantes da cidade – e o saneamento e controle de vetores passaram aser considerados os principais focos das ações ambientais da saúde pública(Ribeiro, 2004). O sucesso desses conceitos e das práticas deles derivadas nasaúde pública, como cita Ribeiro (2004), propiciou: decréscimo das taxas demortalidade, aumento da esperança de vida, desenvolvimento de tratamen-tos eficientes com antibióticos, melhores procedimentos cirúrgicos, vacinase alto nível de confiança dos pacientes. Esses êxitos provocaram o refluxo nosestudos da relação saúde-ambiente. Isso, no entanto, não quer dizer, comolembra a mesma autora, que as desigualdades relacionadas aos níveis socioe-conômicos tivessem diminuído.

75

Em meados do século XX, institucionalizou-se a concepção preventivista,incorporando a teoria de causalidade físico/biológica da doença, expressa nomodelo da tríade agente/hospedeiro/ambiente de Leavell e Clark (1976). Oambiente era apresentado como cenário onde se estabeleciam e se travavam rela-ções entre agente e hospedeiro, o que respaldou o foco das políticas no “sanea-mento básico” – água tratada, coleta de esgoto, coleta de lixo e controle de veto-res – e nos chamados grupos de risco. Em termos de resultados epidemiológicoshouve efetiva redução das doenças infecciosas e parasitárias. Porém, a persistên-cia da visão antropocêntrica do ambiente gerou tecnologias que visavam destruirou isolar os agentes microbianos do contato humano, causando impactos impor-tantes como a contaminação dos cursos d’água por esgotos domésticos, indus-triais e pelo lixo e a canalização de córregos e desmatamentos.

No final do século XX, começou-se a repensar a relação entre saúde eambiente. A Primeira Conferência Internacional sobre a Promoção da Saúde,realizada em Ottawa em 1986 (Organização Mundial de Saúde, 1986), deli-neou preceitos inovadores sobre a questão. A Carta amplia o escopo da açãodo campo da saúde, incluindo o ambiente físico e social, onde os problemasde saúde ocorrem. Propõe como condições e requisitos para a saúde: paz,moradia, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, justiça social eequidade. No que se refere à promoção da saúde, a noção de cuidado não ficamais restrita à prestação dos serviços, mas compreende “um cuidar uns dosoutros, das comunidades e do ambiente natural” (OMS,1986).

No mesmo documento pondera-se ser essencial realizar avaliação sistemá-tica do impacto que as mudanças no meio ambiente produzem na saúde, par-ticularmente nos setores da tecnologia, trabalho, energia, produção e urbanis-mo, que deverá ser acompanhada de medidas que garantam o caráter positivodos efeitos na saúde pública. A proteção, tanto dos ambientes naturais comodos artificiais, e a conservação dos recursos naturais devem, como dita a Carta,fazer parte das prioridades de todas as estratégias de promoção da saúde.

Na área do planejamento urbano também iniciou-se a revisão da aborda-gem antropocêntrica, procurando incorporar o ambiente de modo maisabrangente, visando a preservação do ecossistema. Prova disso foi a inclusãoda avaliação dos impactos sobre os ecossistemas como uma etapa importan-te do planejamento das ações de saneamento ambiental.

3.A crise ambiental

A atual crise ambiental é um reflexo da contradição do modelo de desen-volvimento, em que o conflito entre o capital e a natureza se aprofunda por

76

meio da degradação ecológica. O modelo de desenvolvimento proposto pelocapitalismo exige apropriação da natureza e sua transformação em mercado-rias. É, portanto, compreensível que este mesmo sistema desincentive ações deconhecimento ou de respeito ao ambiente que não sejam numa perspectiva deuso para fins de sustentabilidade econômica e apropriação dos bens naturais.Dessa forma, discutir o problema ecológico sem discutir os fundamentos mate-riais, institucionais e culturais da sociedade resulta em discurso vazio.

O desenvolvimento econômico capitalista globalizado expôs os seuslimites no que se refere à questão ambiental. A demanda cada vez maior dematéria prima e energia gerou a necessidade de apropriação da natureza emescala nunca antes vista na história, com impactos importantes no ecossis-tema planetário. Tendo por base o ano de 1890, cem anos depois, em 1990, aeconomia mundial tinha crescido 14 vezes; a produção industrial, 40 vezes;o uso de energia, 16, e a produção de carvão, sete vezes. No mesmo período,a poluição do ar quintuplicou e houve redução de florestas e perda de biodi-versidade O mesmo modelo produtivo estruturou o crescimento e a distri-buição da população humana no mundo. Passou-se de um bilhão de habitan-tes em 1800 para seis bilhões em 2005, com estimativa de atingir novebilhões em 2050 – considerando que essa população passou a habitar cadavez mais em cidades. Em 2007, metade da população mundial já vivia emáreas urbanas, que, em conjunto, ocupava 2,4% da superfície do planeta.(Freitas, 2006)

A concentração nas grandes cidades tem gerado conurbações, realidadecada vez mais complexa, de onde se irradiam demandas para além de suasfronteiras que, ao mesmo tempo, atraem as forças produtivas da sociedade(Quadro1). Os efeitos dessa dinâmica modificam radicalmente a natureza nointerior do seu território e para além dele, e, em consequência, como partedela: o homem. Essa construção social foi incapaz de gerar um ambiente har-mônico; ao contrário, reproduziu e aprofundou as desigualdades sociais quese expressam na distribuição dos equipamentos sociais, na qualidadeambiental e de vida.

As consequências desse modelo, geradas principalmente pelas cidades,começaram a se reverter sobre elas. As projeções do Intergovernmental Panelon Climate Change – IPCC preveem, até 2100, crescimento na temperaturamédia da superfície global de 2,00 C a 6,40 C, afetando o clima, provocando oderretimento das camadas polares e a elevação do nível do mar, causando,enfim, impactos importantes e imprevisíveis sobre diferentes ecossistemas.Entre os eventos de temperatura alterada, espera-se a exposição de popula-ções a ondas de calor, principalmente nos centros das grandes cidades.

77

Nesses locais, a temperatura tende a ser, normalmente, mais alta por contadas ilhas de calor criadas a partir das construções e asfalto. Para os eventoscomo furações, enchentes e deslizamentos, o quadro também é preocupantequando se considera que populações vêm, crescentemente, ocupando áreas eregiões vulneráveis aos desastres naturais. O número de pessoas necessitan-do de auxílio externo em relação a esses eventos quadruplicou nas últimas qua-tro décadas. No que se refere às áreas costeiras, há projeções de aumento adicio-nal no nível do mar de 8 a 88 centímetros até 2100, sendo que aproximadamen-te metade das cidades do mundo com mais de 500.000 habitantes está localiza-da a cerca de 50 km da costa (Freitas, 2006). As conseqüências desse fenômenosobre a população, sua qualidade de moradia e de vida devem pressionar forte-mente a demanda por serviços públicos, entre eles, a saúde pública.

Apesar do pleno conhecimento sobre a crise que assola o planeta e dosseus efeitos para o futuro do homem e da biodiversidade, estamos distantesde uma revisão do atual modelo de produção. Prova disso foi o fracasso dareunião mundial sobre o clima (COP 15) realizada em Copenhague emdezembro de 2009, que reuniu os chefes de governo de todas as potênciaseconômicas mundiais e, apesar disso, incapaz de produzir um acordo sobre adiminuição de gases responsáveis pelo aquecimento global. A respeito destefracasso Boff (2010) fez a seguinte análise:

“O grande vilão [crise] é o modo de produção capita-lista, mundialmente articulado com sua cultura consu-mista. Enquanto for mantido, será impossível um consen-so que coloque no centro a vida, a humanidade e a Terra.O capitalismo distorceu a natureza da economia comotécnica e arte de bens necessários à vida. Ecologia e capita-lismo se negam frontalmente. Não há acordo possível. Odiscurso ecológico procura o equilíbrio de todos os fatores,

Quadro 1. Vantagens e problemas gerados pelo modelo de urbanizaçãocom visão antropocêntrica.

78

a sinergia com a natureza e o espírito de cooperação. Ocapitalismo rompe com o equilíbrio ao sobrepor-se à natu-reza, estabelecendo uma competição feroz entre todos epretende tirar tudo da Terra, até extenuá-la.”

4. A transição paradigmática e a crise ambiental

Como alerta Boaventura de Souza Santos (2001), a ciência moderna,desde o século XIX, está a serviço do desenvolvimento capitalista. Por isso épremente, diz o autor, que a ciência recupere uma autonomia, transforman-do o conhecimento para “torná-lo menos elitista, mais ativo, mais envolvidonas questões de cidadania e menos dependente dos programas e das necessi-dades do capitalismo”.

O impacto da questão ambiental exige mudança de paradigma.Assumindo todas as consequências desse conceito em sua origem, na filoso-fia de Thomas Kuhn (1994), o paradigma assemelha-se a uma visão domundo. Na perspectiva do autor, a ciência opera dentro de um quadro deassunções, e, em períodos excepcionais e revolucionários, o velho paradigmafracassa. Após um período de competição, é substituído por um novo. Sendoassim, a mutação paradigmática é de ordem radical, de fundamento, queimpõe a redefinição do problema a ser estudado e a forma de sua resolução.

A mudança de paradigma depende de duas condições, segundoBoaventura de Souza Santos. Uma delas, já anunciada por Kuhn, é de ordemepistemológica, que resulta da acumulação de crises no interior do paradig-ma de tal forma que as soluções propostas, ao invés de resolver os problemas,geram crises ainda mais profundas. A segunda é indicada por Santos e serefere à existência de condições sociais e teóricas “que permitam recuperartodo o pensamento que não se deixou pensar pelo paradigma e que foi sobre-vivendo em discursos vulgares, marginais, subculturais” Para Souza Santos(2001), a atual situação ambiental aponta para a existência dessas duas con-dições, a epistemológica e a teórico-prática, às quais se agrega outra da ordemda Ética: a crise da consciência moral em relação às várias questões humanas,sendo a de maior visibilidade a relativa ao ambiente.

A degradação ambiental e as ameaças que ela gera rechaçaram a ideia deo homem ser vítima de um ambiente natural hostil, agressivo e selvagem. Aoinverso, passou a ser visto como violentado pela ação humana. O marco his-tórico da emergência da consciência social da crise ambiental como preocu-pação planetária foi a Conferência Mundial de Meio Ambiente, emEstocolmo, Suécia, em 1972. A Declaração resultante do encontro fez o diag-

79

nóstico da situação ambiental considerando perigosos os índices de poluiçãona água, no ar, na terra e nos seres vivos; os grandes e indesejáveis distúrbiosno equilíbrio ecológico da biosfera; a destruição e exaustão de recursosinsubstituíveis. O documento proclama que “a proteção e a melhoria domeio ambiente humano constituem desejo premente dos povos do globo edever de todos os Governos”.

O declínio da consciência ética que caracterizou o mundo contemporâ-neo em relação ao ambiente está posto sob questionamento. A ”nova” cons-ciência moral, que assume a culpa humana pela deterioração do ambiente,propõe um novo caminho, como está posto na Declaração de Estocolmo(1972):

“Atingiu-se um ponto da História em que devemosmoldar nossas ações no mundo inteiro com a maior pru-dência, em atenção às suas consequências ambientais. Pelaignorância ou indiferença podemos causar danos maciçose irreversíveis ao ambiente terrestre de que dependemnossa vida e nosso bem-estar... Tornou-se imperativo paraa humanidade defender e melhorar o meio ambiente,tanto para as gerações atuais como para as futuras. A con-secução deste objetivo ambiental requererá a aceitação eresponsabilidade por parte de cidadãos e comunidades, deempresas e instituições, em equitativa partilha de esforçoscomuns. Indivíduos e organizações, somando seus valores

Degradação ambiental causada pela mineração Foto: Acervo Manuelzão

80

e seus atos, darão forma ao ambiente do mundo futuro.”

Propugna-se, agora, uma ética de responsabilidade transgeracional com oambiente, respondendo para um futuro, para uma humanidade que ainda nãoestá aqui, um compromisso com a sobrevivência da própria espécie humana.

5. A crise ambiental e a saúde coletiva

Nesse cenário sociopolítico, o campo da Saúde Coletiva não pode maiscontinuar adepto da visão tradicional de focar as ações de saúde no sanea-mento básico e nos grupos de risco. Na transição paradigmática, a SaúdeColetiva deve incorporar o reconhecimento da degradação do ar, do solo e dafauna e a correlata ética ambiental em seu objeto de estudo e de trabalho.Não há alternativa: deve-se assumir a defesa do ambiente nessas diferentesesferas com responsabilidade sobre o futuro da espécie humana.

Na operacionalização do Sistema Único de Saúde - SUS vêm ocorrendodiscussões sobre a superação do paradigma médico-assistencialista e sanitá-rio ainda hegemônico, que se expressam, principalmente, nas proposiçõesconceituais e operacionais sobre vigilância da saúde e promoção de saúde. Ascríticas ao atual modelo do SUS apontam para a insuficiência das estratégiasintrassetoriais de análise e de intervenção, pautadas na assistência e nas prá-ticas isoladas de vigilância entre os setores clássicos, com recortes específicosde controle e intervenção. E se pergunta: como transcender a visão genéricade promoção de saúde que exorta a buscar mudanças macroestruturais dasociedade, mas que termina, de forma normativa e reducionista, propondomudanças de estilos de vida, como não fumar e fazer ginástica? Para superara visão segmentada da questão, é importante transcender e incorporar umcontexto socioambiental que permita captar a saúde como um objeto inte-gral e complexo da realidade.

A abordagem ecossistêmica em saúde é uma das linhas de análise dasquestões ambientais que apresenta um enfoque fecundo para a apreensão dasaúde para além do paradigma biomédico. Segundo Freitas (2006), a aborda-gem ecossistêmica, pioneiramente colocada pelo artigo do canadenseWaltner-Toews (2001), trabalha o ambiente como objeto complexo, incorpo-rando a proposição de que as incertezas são inerentes aos sistemas socioeco-lógicos. Dessa maneira, conduz a uma abordagem que tem por base o plura-lismo metodológico, incorporando fortemente os princípios de participaçãosocial que, como demonstra Werneck, pressupõem “não mais apenas intervirna dimensão pública da política, mas, sobretudo, intervir nas decisões que

81

concernem à vida privada dos indivíduos: onde morar, como preservar asaúde, em que ofício trabalhar etc.” (Vianna, Cavalcanti e Cabral, 2009)

A abordagem ecossistêmica contribui, também, para o planejamento epara as estratégias de geração e gestão de políticas públicas. Tem por base osprocessos de aprendizagem social e colaborativa entre especialistas e atoressociais locais. O objetivo dessa metodologia é conduzir a um tipo de gestãoadaptativa. O enfoque adaptativo presume que as decisões em torno dasquestões ambientais envolvem o mapeamento da visão de como os territó-rios ou os ambientes devem coevoluir como uma entidade auto-organizada.Esse caminho permite identificar quais são os atores e interesses sociais emjogo, histórias de vida, preocupações e perspectivas futuras. Essa abordagemtem que ser incorporada à promoção de saúde, tornando-a mais “densa e demaior profundidade”.

A metodologia da abordagem ecossistêmica se encontra centrada no pro-cesso, considerando dois aspectos fundamentais: que as fronteiras de umecossistema e/ou problema ambiental são constituídas através da negociaçãoentre os diferentes atores sociais envolvidos e seus papeis e que as responsa-bilidades dos diferentes atores são definidas a cada passo.

A concentração de poder e riqueza e a decorrente exclusão dos mais afe-tados dos processos decisórios que regulam os riscos ambientais tornam cer-tos territórios e populações mais vulneráveis às principais cargas do desen-

A visão ecossistêmica de saúde deve considerar a degradação da água, do ar, do solo, da florae da fauna e como o ser humano se relaciona e ocupa o ambiente-território.

Foto: Procópio de Castro.

82

volvimento econômico. A vulnerabilidade de camadas da população na dis-tribuição espacial no território: “refere-se aos perigos desproporcionalmenteou injustamente distribuídos entre grupos social e economicamente maisvulneráveis, geralmente pobres e minorias, acarretados pelos riscos ambien-tais relativos à vida moderna”. (Harbermann e Gouveia, 2008)

Nesses casos, problemas de saúde e ambiente podem ser vistos como de(in)justiça ambiental, o que já está sendo discutido pela Ecologia Política e seexpressa no conceito de vulnerabilidade social. Esse conceito permite repen-sar as dinâmicas sociais, econômicas e institucionais numa perspectiva terri-torialista e política, cujo desafio básico é fortalecer a integridade e a saúde dascomunidades e os ecossistemas.

Na atualidade, reconhece-se a tendência de relocalização socioespacial dosprocessos produtivos, que estariam aproveitando as facilidades de transporte ecomunicação hoje disponíveis para reduzir os custos de produção e agregarcompetitividade a seus produtos, por meio do dumping social e ambiental. Ospaíses "desenvolvidos" do hemisfério Norte – pressionados pela sociedade e peloEstado a uma reforma ecológica – estariam exportando riscos para os países"subdesenvolvidos" ou "emergentes" do Sul. Aqueles processos mais consumido-res de recursos naturais, mais geradores de poluentes e que se caracterizam porprocessos de trabalho mais insalubres e perigosos tenderiam a localizar-se emalguns locais: os que apresentam legislações ambientais e trabalhistas menosrigorosas; onde o aparato institucional de vigilância não tenha condições defazer valer as políticas consensadas em que a população e os trabalhadores este-jam fragilizados pelas precárias condições de vida, e dispostos a "aceitar qual-quer coisa" em troca de uma fonte de renda; onde a sociedade civil não estejasuficientemente informada e organizada para defender seus interesses.

6. A promoção da saúde e os territórios de gestão

Perceber a crise ambiental no cotidiano, em especial das cidades, não é umaquestão fácil. Individualmente, a questão ambiental não é mobilizadora por terum significado muito genérico. Na operacionalização da noção de ambiente uti-liza-se, geralmente, a aproximação do seu significado ao de um território. NaSaúde Pública brasileira o território é entendido como uma estratégia de gestãodos serviços de saúde. Seus limites estão circunscritos à área de abrangência deuma unidade básica de saúde, sendo um dos pressupostos do trabalho doPrograma de Saúde da Família (Monken & Barcelos, 2007).

Apesar da importância da delimitação administrativa para o trabalhodas unidades de saúde, é evidente que os processos socionaturais, como ques-

83

tões ambientais e condições de saúde da população, não obedecem a tais con-tornos. Ainda mais que, na contemporaneidade, a globalização do capitalimplica a constituição de um território de escala mundial nos espaços locaisque são “moldados e penetrados por influências sociais bem distantes”.(Giddens, 1990) Deve-se também considerar que a percepção do territóriocomo espaço delimitado se dá por meio de escalas que são construçõessociais. O território é uma ferramenta mais conceitual do que técnica, “umadimensão da qual é necessário aproximar-se criticamente” (Reboratti, 2001)

O território de uma bacia hidrográfica fornece uma delimitação interes-sante para a abordagem da complexa relação entre ambiente, sociedade esaúde da população. Superpõe-se a divisões administrativas e introduz adimensão da fluidez – o adjetivo fluvial que designa a natureza do rio derivado verbo latino fluère, que significa correr, fluir.

A experiência do Projeto Manuelzão demonstra a utilidade de se traba-lhar com a noção de bacia hidrográfica como território, porque propicia aapreensão da qualidade ambiental, espelhada pelo curso d’água, refletindo aqualidade de vida e de saúde e a mentalidade das comunidades do seu entor-no. Ao mesmo tempo, pela condição de fluidez das águas, as interferênciasdos homens sobre sua natureza afetam diferentes comunidades e grupossociais, interligando espaços físico-sociais antes isolados.

O curso d’água perfila, assim, como eixo estratégico da promoção dasaúde. A qualidade do curso d’água indica a qualidade do meio ambiente. Oexame da água permite detectar o conjunto dos impactos causados pela açãohumana, advindos da contradição entre modelo de desenvolvimento e a pre-servação ambiental que os cursos d’água vêm sofrendo. Uma das pesquisarealizadas pelo Projeto Manuelzão (2001) na bacia do rio das Velhas demons-tra a relação existente entre os Índices de Desenvolvimento Humano – IDH,que se baseia em dados populacionais de longevidade, educação e renda – e oÍndice de Qualidade da Água – IQA. A amostragem abrangeu diferentes pon-tos da bacia (Gráfico 1).

Pode-se observar a existência de uma relação inversa entre os dois índi-ces: nos locais onde o desenvolvimento humano (IDH) atingiu os maioresvalores, a qualidade de água (IQA) do rio atingiu os mais baixos níveis. Asituação é pior nos municípios do alto rio das Velhas, na região metropolita-na de Belo Horizonte, onde as intervenções sobre o ecossistema naturalforam mais intensas, ocorrendo até mesmo sua substituição pelo ecossiste-ma artificial. Deve-se notar que o IDH não leva em consideração o impactoambiental. Essa omissão é uma demonstração da pouca importância da pre-servação do ambiente natural no modelo de desenvolvimento econômico. É

84

incoerente a avaliação do grau do “desenvolvimento humano” desconside-rando os seus impactos sobre o ecossistema, do qual somos totalmentedependentes.

O conceito de bacia hidrográfica incorpora, também, a ideia de unidadede planejamento ambiental. A solução de inúmeros problemas ambientaisestá no cuidado, na manutenção das bacias hidrográficas. A bacia contémfauna, flora, territórios geológicos diversos, populações humanas, a calha dorio e seus afluentes. A legislação brasileira incorpora a ideia de bacia hidrográ-fica como unidade de planejamento desde 1997 (Lei 9433/97), definindobacias internacionais, nacionais e estaduais. Propõe, também, a criação deComitês de Bacia, compostos de representantes da União, estados, municí-pios, usuários da água e sociedade civil.

O Projeto Manuelzão, desde 1997, partindo de concepção ecossistêmica,considerou a bacia hidrográfica como território de ação, desenvolvendo umametodologia que permitiu identificar atores e interesses sociais em jogo, mapearo território e os problemas socioambientais envolvidos. A possibilidade demudança da condição degradada dos cursos d’água foi representada pela ideiada "volta do peixe aos rios" como um objetivo pontual operacional comum.

Os indicadores biológicos da qualidade ambiental são úteis na avaliação daqualidade de vida humana. Alguns desses indicadores, entre eles o peixe, sãoclassificados como "indicadores carismáticos" em razão da grande identificaçãoda população com esse símbolo, o que facilita a execução de programas de con-trole ambiental. A volta dos peixes exige mudanças de hábitos, atitudes, estilos

Gráfico 1: Comparação entre o Indice de qualidade das àguas e o Indice de DesenvolvimentoHumano no ano de 2000, na bacia do rio das Velhas - Minas Gerais.

85

de vida e mentalidade civilizatória. A “volta do peixe” é representativa do pen-samento complexo na procura de um eixo favorável para romper com a predo-minância ou até com a exclusividade das ações políticas em torno de interessessempre antropocêntricos. Procura enfrentar a questão de como ampliar a visãohumana sobre o conflito pela vida, travado entre o conjunto das formas de vidana Terra, e a política exclusivista da espécie Homo sapiens. A árdua luta pelasobrevivência da nossa espécie gerou entre os seres humanos a luta de classes,sem levar em conta os interesses e o direito à vida das demais espécies, ignoran-do-se um sistema planetário integrado e interdependente, onde a nossa sortedepende de soluções ecossistêmicas globais.

Do ponto de vista estratégico, o Projeto desenvolveu ações na bacia dorio das Velhas, rompendo os limites geográficos, administrativos e políticosdos municípios e incorporando um novo território de planejamento e açãopolítica.

Este território geoambiental permitiu ao projeto desenvolver atividadestransdisciplinares, transetoriais e transinstitucionais em relação à mobiliza-ção e educação socioambiental; pesquisa e monitoramento sistêmico defauna aquática e da qualidade das águas; monitoramento da evolução deindicadores de saúde das comunidades existentes na bacia do rio das Velhas;consolidação de políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidadeambiental e de vida; discussão de novos paradigmas sobre saúde, ambiente ecidadania. Não há como pensar a relação saúde/ambiente descontextualiza-da dessa dimensão sistêmica, nas quais as possibilidades de gerar saúdedependem de relações econômicas e políticas que interferem na gestãoambiental.

Essas ações mobilizam a sociedade no sentido de alcançar objetivos espe-cíficos, mas a transformação da mentalidade civilizatória permanece como ogrande objetivo geral a ser atingindo, a razão principal da ação.

7. Consideraçoes finais

A crise ambiental expõe os limites e as inconsistências do atual modelode desenvolvimento econômico, comprometendo a própria viabilidade davida no planeta. A emergência da mudança de atitude frente à gravidade dacrise aponta para a construção de um novo paradigma ambiental. Para isso,é fundamental considerar que o ambiente cada vez mais se torna um espaçonatural modificado pelas ações humanas a partir de um modelo de produçãoatrelado a um modelo de consumo.

A abordagem ecossistêmica em saúde apresenta novas possibilidades

86

para o entendimento e a análise das questões ambientais, bem como umnovo enfoque para a noção de saúde para além do paradigma biomédico.Consideramos que a vantagem desse enfoque, que é a base para a elaboraçãode modelos adaptativos em saúde e sustentabilidade, encontra-se no fato deter como premissa que uma sociedade sustentável deve manter-se no contex-to de um sistema ecológico maior do qual é parte.

A abordagem ecossistêmica embute uma crítica epistemológica à ciêncianormal de caráter positivista e funcionalista, ainda hegemônica nas análisesdos problemas ambientais e de saúde pública. A ciência “normal” é excessi-vamente especializada e incapaz de reconhecer a complexidade e as incerte-zas em jogo, é despolitizadora por não considerar as dinâmicas de poder enão dialogar com a sociedade, em especial os mais vulneráveis, diante dosproblemas analisados. Portanto, esse modelo de ciência e as instituições e ins-tâncias decisórias nele baseadas são consideradas inadequadas para enfrentara gravidade de problemas frente aos quais as sociedades cada vez mais se sen-tem ameaçadas e exigem soluções emergenciais.

A qualidade da vida, as doenças e as mortes relacionadas às condições doambiente, fenômeno natural e social, exigem a absorção da questão ambien-tal pela área da Saúde Coletiva. Urge a ruptura com o paradigma sanitaristaque dominou historicamente as intervenções da saúde coletiva sobre oambiente, especialmente nas áreas urbanas. A construção de modelos susten-táveis ambientalmente e saudáveis socialmente requer, necessariamente, aconstrução de políticas econômicas e públicas que assegurem a participaçãoda sociedade nos processos decisórios e que estejam comprometidas com aviabilidade ecossistêmica.

O Projeto Manuelzão esboça, na sua prática, uma nova abordagem que, doponto de vista da saúde coletiva – procurando romper os espaços “tradicional-mente” delimitados como sendo da saúde – propõe uma nova geografia para asaúde. A noção de território adstrito fica sob questionamento. Os fenômenosque afetam a qualidade de vida e saúde da população não respeitam os limitesgeográficos arbitrados para a gestão das ações de saúde, não sendo possível serlocalizados no âmbito das “unidades de saúde” ou das áreas de abrangência doPrograma de Saúde da Família – PSF. O território onde se analisam as relaçõeshomem/natureza não pode se restringir às fronteiras de ambientes construídossegundo critérios essencialmente operacionais, mas deve se considerar osambientes sociais e naturais sistêmicos onde estão inseridos.

A incorporação de novos territórios de planejamento é fundamentalpara projetar políticas públicas inovadoras no campo da saúde/ambiente.Nesse sentido, o Projeto Manuelzão da UFMG, na sua ação, demonstra a

87

potencialidade dessa nova visão. A atuação no território de bacia hidrográfi-ca procura incorporar novas concepções, rompendo, na prática, a dicotomiaentre gestão econômica, ambiental e de saúde além de fomentar a constru-ção do movimento social e das políticas públicas com uma visão comprome-tida com a melhoria da qualidade de vida para o homem e para a biodiversi-dade. Sob o eixo temático saúde, ambiente e cidadania, o Projeto abre espa-ço para questionar o conceito hegemônico de saúde como produto da indús-tria e dos serviços de atenção aos doentes.

Referências Bibliográficas

BARCELLOS,C & QUITÉRIO, LAD. Vigilância ambiental em saúde e sua imple-mentação no sistema Sistema. Revista Saúde Pública,São Paulo, 40(1) : 38- 47, 2006.

BOFF, L. Depois de Copenhague, é a treva: caminhamos rumo ao desastre. Jornal OTempo, Belo Horizonte: 8 jan. 2010, p. 18.

FOUCAULT, M. Origens da Medicina Social. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro:Edições Graal, 1981.

FREITAS, C M; PORTO, M F. Saúde, ambiente e sustentabilidade. Rio de Janeiro:Fiocruz, 2006.

FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA. Relatório Integração homem-natureza e seus efeitos na saúde: uma intervenção interdisciplinar na bacia do rio dasVelhas. Belo Horizonte, FUNDEP, 2000.

Giddens, ,A. AsConsequências da Modernidade. São Paulo UNESP, 1990.

HABERMANN, M; GOUVEIA, N. Justiça Ambiental: uma abordagem ecossocialem saúde. Rev. Saúde Pública , São Paulo, vol.42 (6) :1105-1111, 2008.

KUHN, T S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.

LEAVELL H & CLARK EG. Medicina preventiva. McGraw-Hill do Brasil, São Paulo, 1976.

LISBOA, AH. Concepção do Projeto Manuelzão. In: Projeto Manuelzão/UFMG:Conceitos para uma prática de saúde e cidadania. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

MONKEN, M. & BARCELLOS, M C. Vigilância em saúde e território utilizado: pos-sibilidades teóricas e metodológicas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(3):898-906, mai-jun, 2005.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa, 1986. Disponível em<http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/ottawa/en/print.html> Acesso em: 03 nov. 2008.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração da Conferência

88

das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Declaração de Estocolmo, dispo-nível em: www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/arquivos/estocolmo.doc (acessoem 08/12/2008)

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS - Intergovernmental Panelon Climate Change – IPCC

PAIM, JS & ALMEIDA FILHO, N. Saúde coletiva: uma nova saúde pública ou campoaberto a novos paradigmas. Revista Saúde Pública, São Paulo, 32(4): 41-49, 1998.

PROJETO MANUELZÃO UFMG. Conceitos para uma prática de saúde e cidadania.Belo Horizonte: UFMG, 2001.

RAQUEL, MR & LIA, GSA. Saúde e ambiente no Brasil: desenvolvimento, territórioe iniquidade social. Cad. Saúde Pública, vol.23, 4, Rio de Janeiro, 2007

REBORATTI, C. Una cuestión de escala: sociedad, ambiente, tiempo y territorioSociologias, Porto Alegre, no.5 Jan./June 2001.

RIBEIRO, H. Saúde Pública e meio ambiente: evolução do conhecimento e da práti-ca, alguns aspectos éticos. Saúde soc. vol.13, n.1 pp. 70-80, 2004.

SANJAD, N. Cólera e medicina ambiental no manuscrito 'Cholera-morbus' (1832),de Antonio Correa de Lacerda (1777-1852). Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio deJaneiro, vol.11, no.3, p.587-618, dez. 2004.

SANTOS, BS. In: CANÇADO, JM et al. Entrevista de Boaventura de Sousa SantosTeoria e Debate, nº 48, agosto de 2001. Disponível em: <http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/entrevista-boaven-tura-de-sousa-santos>. Acesso em 17 jul. 2011.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Riode Janeiro: Editora Recorde, 2000.

SOUZA SANTOS, B. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

SOARES, RAS; BERNARDES, RS; NETTO, OMC. Relações entre saneamento,saúde pública e meio ambiente: elementos para formulação de um modelo de plane-jamento em saneamento. Cadernos de. Saúde Pública, São Paulo,18(6):23-31, 2002.

SOUSA SANTOS, B. As tensões da modernidade. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura>. Acesso em: 17 jul. 2011.

ROSEN, G. Da Polícia Médica à Medicina Social. Graal,Rio de Janeiro, 1979.

VIANNA, MLTW; CAVALCANTI,ML;CABRAL, MP. Participação em saúde: do queestamos falando?. Sociologias, Porto Alegre, n.21: 218-251, 2009.

Waltner-Toews, D. Ecosystem Sustainability and Health - a Practical Approach.Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

Waltner-Toews, D. An Ecosystem Approach to Healt and its Applications to TropicalAnd Emerging Diseases. Cad. Saúde pública , 2001.

89

Epidemiologia e bacia hidrográfica:a relação entre córregos poluídos,mortalidade infantil e diarréias,

em Belo Horizonte, Brasil.

Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UniversidadeFederal de Minas Gerais – Doutor em Medicina – Coordenador do Projeto Manuelzão

Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UniversidadeFederal de Minas Gerais – Doutor em Medicina

1. Introdução

Diversas disciplinas científicas vêm, nos últimos anos, incorpo-rando a racionalidade ambiental em seus pressupostos teóri-cos. Este movimento decorre, em parte, da crise ambientalque emergiu como problema planetário a partir do fim do

século passado. A saúde coletiva acompanha essa abordagem principalmen-te através da definição do conceito de promoção da saúde, que aponta anecessidade de a prática sanitária adotar o cuidado do ambiente com relevân-cia semelhante ao cuidado individual. Um dos cinco objetivos da promoçãoda saúde é o de criar ambientes a ela favoráveis. Sua realização depende dadefinição de territórios de intervenção que podem ser as cidades, distritos,unidades de planejamento ou mesmo escolas e locais de trabalho. A promo-ção da saúde, apesar de ser um conceito pouco preciso, possui o mérito depropor uma abordagem socioecológica da saúde (Minayo, 2002).

O conceito de bacia hidrográfica foi utilizado historicamente em funçãode seu aspecto geográfico puramente morfológico no desenho do planeta edos países. A consciência da escassez da água ou do caráter finito de sua dis-ponibilidade fez emergir a bacia hidrográfica como território de excelênciapara a gestão das águas. Bacia hidrográfica é um território que contém água,fauna, flora e, nas cidades, homens, mulheres, habitações, centros de comér-cio, serviços e indústria, entre outros.

90

A geografia tem procurado incorporar a história social e humana em seuarcabouço teórico. A epidemiologia, por sua vez, procura o reencontro com oambiente, que foi seu ponto de partida como ciência moderna. Trata-se agorade compreender o processo saúde/doença não apenas a partir de efeitos defatores de risco no nível individual, mas, também, incorporando outrosníveis, entre eles o ambiente físico e social com o qual o ser humano se rela-ciona ao longo de sua vida e história.

A Prefeitura Municipal de Belo Horizonte utiliza as denominadas baciaselementares como território de planejamento do saneamento ambiental. Emum território de 196 km², com população de 2.350.000 habitantes, foramdelimitadas 99 bacias elementares. Estão previstas para os próximos anosintervenções nas bacias, com o objetivo de garantir água tratada, esgoto cole-tado e destinado para o tratamento, coleta seletiva de resíduos sólidos e dis-posição final adequada e uma nova concepção de drenagem urbana que eli-mina, ou evita, intervenções com eixo na canalização de rios e córregos(Champs, 2001).

Isso significa que populações humanas, em um grande centro urbano,vão conviver com rios e córregos em leito natural, podendo-se prever queestes serão, no mínimo, uma variável de contexto importante a ser conside-rada na ocorrência de eventos relacionados à saúde em tais ambientes.

O sanitarismo clássico higienista elegeu como solução saneadora a cana-lização de rios e córregos, afastando as pessoas da fonte poluidora e viabili-zando o sistema viário e a expansão imobiliária em grandes centros urbanos.Recentemente, a escassez da água, a consciência ambiental e o desenvolvi-mento técnico-científico na área de macrodrenagem urbana passaram aquestionar a canalização. As canalizações de rios e córregos em centros urba-nos baseiam-se no princípio de escoar a água precipitada o mais rápido pos-sível para evitar as inundações. O crescimento urbano provoca uma tendên-cia crescente de impermeabilização dos solos com conseqüente aumento dospicos de cheias que, mesmo com canalizações, causam o recrudescimento dasinundações. Desde a década de 1970, em países desenvolvidos e, mais recen-temente, no Brasil, outra concepção de macrodrenagem urbana tem sidodesenvolvida, baseada em detenções e retenções da água desde os loteamen-tos até as áreas públicas (Tucci, 2003). Essa nova abordagem, denominadadrenagem sustentável, propõe o reconhecimento da complexidade das rela-ções entre os ecossistemas naturais, o sistema urbano artificial e a sociedade,preconizando a recuperação dos rios e córregos através de sua despoluição,evitando as canalizações e criando áreas de lazer (Pompêo, 2000).

Esse estudo tem como hipótese que uma nova concepção da macrodre-

91

nagem urbana sustentável, em um período em que a tendência ao declíniodas taxas de mortalidade infantil e das diarréias infantis está evidenciada,necessita da incorporação de avaliações epidemiológicas que possibilitemindicar a sua compatibilidade com os benefícios do saneamento básico alcan-çados pelas populações urbanas. Essa solução vai requerer vigilância perma-nente da qualidade da água das bacias recuperadas. A diarréia infantil e o coe-ficiente de mortalidade infantil estão fortemente relacionados com fatoresambientais e socioeconômicos. A situação dos rios e córregos com relação aessa e a outras doenças em geral não é estudada, porque se pressupõe sim-plesmente que estes devam ser canalizados. O presente estudo pode tambémcontribuir com a definição de uma linha de base para futuras comparações eavaliações da relação entre saúde/doença e balneabilidade em bacias elemen-tares recuperadas na cidade de Belo Horizonte.

Para investigar a relação entre mortalidade infantil e hospitalização pordiarréia infantil com os cursos d’água em leito natural de Belo Horizonte, foidelineado um estudo observacional ecológico-exploratório que tomou asbacias elementares da cidade como unidades de análise. Foram coletadasvariáveis de contexto e de composição relativas a cinco agrupamentos dedeterminantes: situação dos leitos dos córregos, cobertura de serviços desaneamento básico, domicílios, demografia e situação socioeconômica.

2. Objetivos

2.1 – Objetivo GeralAnalisar as relações entre cursos d’água em leito natural com mortalida-

de infantil e hospitalização por diarréia em crianças abaixo de 5 anos nasbacias elementares definidas no Plano Municipal de Saneamento de BeloHorizonte.

2.2 – Objetivos específicosa) Estabelecer os padrões de distribuição dos cursos d’água em leito natu-ral e canalizados nas bacias elementares definidas no Plano Municipal deSaneamento de Belo Horizonte.b ) Estabelecer os padrões na distribuição das taxas de mortalidade infan-til e prevalência de hospitalização por diarréia em crianças abaixo de 5anos nas bacias elementares definidas no Plano Municipal deSaneamento de Belo Horizonte.c) Verificar as relações entre os eventos relacionados à saúde com fatoresdemográficos, socioeconômicos, serviços de saneamento básico e situa-ção dos domicílios.

92

3. Material e método

Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, possui uma populaçãoestimada de 2.375.329 pessoas vivendo em 628.334 domicílios (IBGE, 2004). Omunicípio possui nove regiões político-administrativas que são bastante hete-rogêneas em seus aspectos demográficos, sociais, urbanos e econômicos. OPlano Municipal de Saneamento definiu como unidade de planejamento asbacias hidrográficas delimitadas no município (Diário Oficial do Município deBelo Horizonte, 2001). Os seus limites são basicamente geográficos, definidospor divisores de água naturais. Foram delimitadas 99 bacias elementares.

A metodologia escolhida buscou identificar o efeito da composição e docontexto, onde estão implícitas relações não reprodutíveis no nível indivi-dual, e verificar a existência de associação com os coeficientes de mortalida-de infantil e as prevalências de hospitalizações por diarréia infantil. As variá-veis independentes são contextuais e de composição populacional, estasreprodutíveis no nível individual. Todas as variáveis foram agregadas em cadauma das unidades de análise.

As variáveis independentes de composição utilizadas em cada bacia ele-mentar foram: renda predominante do responsável pelo domicilio (até 1 salá-rio, de 1 a 2, de 3 a 5, de 6 a 10, de 10 a 20, acima de 20), escolaridade predo-minante do responsável pelo domicilio (menos de 1 ano de estudo, de 1 a 4,de 11 a 13, de 14 a 16, acima de 17).

As variáveis independentes de composição foram: extensão total doscursos d’água em metros (m), extensão total dos cursos d’água em leitonatural (m), extensão total dos cursos d’água com canal aberto (m), exten-são total dos cursos d’água com canal fechado (m), proporção dos cursosd’água em leito natural (porcentagem), proporção dos cursos d’água comcanal aberto em porcentagem, proporção dos cursos d’água com canal fecha-do (%), densidade demográfica (habitante por quilômetro quadrado), núme-ro de habitantes por domicílio, proporção de domicílios com acesso à rede deágua tratada (%), proporção de domicílios com esgoto coletado (%), propor-ção de domicílios com coleta regular de resíduos sólidos (%). Todas as variá-veis são contínuas.

As variáveis dependentes escolhidas foram as taxas de mortalidadeinfantil e as taxas de hospitalização por diarréia como causa principal. A sele-ção dessas variáveis deu-se em função de sua freqüente relação com fatoresde risco ambientais, da sua disponibilidade em dados secundários na cidadede Belo Horizonte e da evidência de seu declínio.

Os eventos foram: número de crianças nascidas vivas e aquelas mortas até

93

um ano de idade, residentes em Belo Horizonte, entre 01 de janeiro de 2000 e31 de dezembro de 2005, e hospitalizações de crianças com até cinco anos deidade, portadoras de diagnóstico de diarréia infantil, residentes em BeloHorizonte, ocorridas no mesmo período. As taxas de prevalência de hospitali-zação por diarréias para cada bacia elementar foram calculadas como taxasmédias no período 2000/2005 a partir da seguinte fórmula: número de hospi-talização por diarréia infantil/número de anos vezes 1 /população de criançasaté cinco anos da bacia elementar. Os coeficientes de mortalidade infantilforam definidos a partir das crianças nascidas vivas e mortas residentes emBelo Horizonte no mesmo período. O coeficiente utilizado na análise foi amediana dos coeficientes entre os anos 2000/2005. Os eventos foram pontual-mente georreferenciados ao seu respectivo endereço de residência e, na ausên-cia do mesmo, foi utilizado o endereço mais próximo, considerando as basesgeográficas de quadras e trechos de logradouros. Os casos foram agregados nasbacias elementares que funcionaram como unidades espaciais de análise.

As variáveis independentes referentes à situação dos cursos d’água foramdefinidas a partir do processamento do layer de drenagem disponibilizadopela Empresa de Informática e Informação do município de Belo Horizonte– (PRODABEL) e adaptado pelo Núcleo Transdiciplinar e Transinstitucionalda Bacia do Rio das Velhas (NUVELHAS/Projeto Manuelzão/UFMG), queacrescentou os seguintes atributos: nome do curso d’água, extensão e situa-ção (leito natural, canalizado aberto e canalizado fechado), utilizando o soft-ware MAPINFO.

As variáveis derivadas de dados sobre cobertura de serviços de saneamen-to básico, domicílios, demografia e situação socioeconômica foram definidasa partir do Sistema de Informação Geográfica do NUVELHAS/ProjetoManuelzão/UFMG, cuja base de informações foi o Censo Demográfico doIBGE, ano 2000, para o município de Belo Horizonte. O software utilizadopara a extração das informações do IBGE foi o Estatcart – Sistema deRecuperação de Informações Georreferenciadas - versão 2.0 do IBGE.

Foi feita a comparação entre a área do Censo Demográfico do municípiode Belo Horizonte com as áreas das bacias elementares de Belo Horizonte,onde geograficamente foram identificados os setores censitários contidos emcada bacia elementar. Foram realizados ajustes nos limites das bacias elemen-tares em relação ao limite municipal de Belo Horizonte, com vistas a sanaras diferenças inerentes às escalas utilizadas em cada base. O ajuste foi reali-zado nas bordas onde o limite do município coincide com o limite naturaldas bacias. Para os setores censitários contidos em mais de uma bacia foi cal-culada a porcentagem relativa da área contida em cada uma delas.

94

Os dados que definiram as variáveis dependentes foram obtidos a partirdo Sistema de Informação Hospitalar – Sistema Único de Saúde – SIH-SUS,do Sistema de Nascidos Vivos – SINASC e do Sistema de Informação sobreMortalidade – SIM disponibilizados por endereço pela Secretaria Municipalde Saúde. Eles foram georreferenciados para cada bacia elementar utilizandoo software MAPINFO.

O número de habitantes e de domicílios, calculado por meio da propor-ção entre a área do setor censitário inserido na bacia elementar, não é exato,sendo que valores muito baixos podem significar ausência de habitações emoradores. Em função disso foram consideradas apenas as bacias com maisde quinhentos habitantes.

Em relação à variável salário mínimo, os dados originários dos setores cen-sitários foram os da renda predominante. Em nenhuma das bacias elementaresocorreu, após a sistematização dos dados, renda predominante entre 5 e 10salários. Em função disso, ela não foi considerada.

Os dados relativos aos nascidos vivos em 2001, fornecidos pelo SINASC, fica-ram muito abaixo das médias dos outros anos e foram descartados. As medianasdos coeficientes de mortalidade infantil foram definidas para os anos de 2000,2002, 2003, 2004, 2005. Foi utilizado o programa Stata Coorporation versão 9.2para processamento e análise dos dados. As associações entre os indicadoresambientais, socioeconômicos e demográficos com a mediana dos coeficientes demortalidade infantil e a taxa média de hospitalização por diarréia infantil foramrealizadas através da análise e regressão univariada, linear simples e múltipla.Considerou-se como nível de significância o valor p ≤ 0,05.

4.Resultados

A dimensão e a densidade demográfica das bacias são extremamentevariadas. Os cursos d’água têm em média 6963 metros, com desvio padrão de9438 metros e mediana de 2787 metros (Tabela 1). As bacias estudadas têm40.27% dos seus córregos com 100% de leito natural, ao lado de 24.68% commais de 50% de seus leitos canalizados (Figura 1).

O abastecimento de água tratada ultrapassava, no ano 2000, 95% dosdomicílios em 79.45% das bacias elementares estudadas. A coleta de resíduossólidos superou 95% em 65.48% das bacias. O serviço de coleta de esgotodoméstico estava, no ano 2000, distante da universalização, com apenas26.03% das bacias alcançando mais que 95 % dos domicílios. (Figura 2).

Em 68% das bacias a renda predominante foi de 3 a 5 salários mínimos,ao lado de 12% com renda até 1 salário e apenas 8% ultrapassando 20 salá-

95

rios. Quanto à escolaridade predominante entre os chefes de domicílio, em78% das bacias eles têm entre 1 e 4 anos de estudo e em apenas 15% dasbacias predominam 11 ou mais anos de estudo (Figura 3).

A taxa média de mortalidade ficou em 19.61/1000 nascidos vivos comdesvio padrão de 9.28 e mediana de 17.17 A prevalência média de hospitali-zações por diarréia infantil em crianças abaixo de 5 anos foi 6.47/1000 crian-ças com desvio padrão de 2.53 e mediana de 6.025.

Em 31.51% das bacias a mediana das taxas de mortalidade infantil foiigual a zero. Isso ocorreu quando não houve mortes até 1 ano em mais dedois anos da série estudada (2000, 2002, 2003, 2004), sendo, portanto, descar-tadas nas análises de regressão. A manutenção das 23 bacias com a taxa damortalidade infantil igual a zero faria com que as taxas médias utilizadas naanálise tendessem para números muito baixos, o que a comprometeria.Portanto, a análise foi feita considerando as 50 bacias que tiveram os eventosque permitissem o cálculo das medianas.

Os valores e variações da variável dependente, apresentados na tabela 1,

(*) salário mínimo em dez/2000 – R$ 151,00

Tabela 1 – Variáveis dependentes e independentes para baciaselementares - Belo Horizonte, 2006.

96

consideraram também o número de 50 bacias. As taxas de mortalidade infan-til na análise univariada mostraram associação no limite (p ≤ 0.10) ou esta-tisticamente significativa (p ≤ 0.05) com todas as variáveis referentes à cober-tura de serviços de saneamento e com a variável proporção dos cursos d’água emcanal aberto (Tabela 2).

Na análise multivariada foi considerada apenas a variável proporção doscórregos em leito natural entre aquelas referentes à situação dos córregos, emfunção da forte correlação entre elas, de sua predominância nas bacias e desua relevância no presente estudo. As variáveis proporção de coleta de esgoto elixo são as que apresentaram significância estatística, o que não ocorreu coma variável proporção dos córregos em leito natural. Esses três fatores são for-temente correlacionados de acordo com o coeficiente de Pearson. Ao final, naregressão múltipla, o modelo mais explicativo incluiu apenas proporção dedomicílios com esgoto coletado. Quanto maior a proporção de coleta deesgoto em uma bacia, menor a taxa de mortalidade infantil.

[β (-0,30) + IC 95% (-0,48 -0,13)] p< 0.001

Em apenas 5.88% das bacias não houve ocorrência de hospitalização pordiarréia infantil em crianças abaixo de 5 anos, o que determinou o descarte

Figura 1 – Relação entre a extensão dos cursos d’água e a área das 73 bacias elementaresFonte: NUVELHAS/UFMG – 2006

Figura 2 – Proporção entre serviços de água, esgoto e lixo nas 73 bacias elementares de BeloHorizonte. Fonte: NUVELHAS/UFMG - 2006

97

98

de 4 bacias antes da análise de regressão. Portanto, foram consideradas naanálise 69 bacias. Os critérios de descarte das 4 bacias foram os mesmos apre-sentados na análise de regressão feita com as taxas de mortalidade infantil.A análise univariada indicou que nenhuma variável relativa ao saneamentoapresentou relação com as hospitalizações por diarréia infantil estatisticamentesignificante, o que ocorreu com: densidade demográfica, habitantes/domicílio,anos de estudo, renda, extensão total dos cursos d’água, extensão dos cursos

Figura 3 – Renda predominante e anos de estudo do responsável pelo domicílio nas 73 baciaselementares de Belo Horizonte.Fonte: NUVELHAS/UFMG - 2006.

Tabela 2 – Análise univariada para taxa de mortalidade infantil em 50bacias elementares - Belo Horizonte, 2006.

(*) IC (intervalo de confiança)

99

d’água com canal fechado, proporção dos cursos d’água com canal fechado eproporção dos cursos d’água em leito natural (Tabela 3).

Na regressão múltipla foi considerada apenas a variável proporção dos cur-sos d’água em leito natural, entre aquelas referentes à situação dos córregos,pelas mesmas razões descritas acima. As variáveis renda e anos de estudo sãomuito correlacionadas, sendo que renda tende a anular anos de estudo. Aofinal, o modelo mais explicativo incluiu proporção dos córregos em leito natural,renda e densidade demográfica (Tabela 4). Quanto maior a proporção de cur-sos d’água em leito natural, maior a taxa de hospitalização por diarréia infan-til. Também a densidade demográfica possui relação positiva com as diar-réias, ao contrário da renda predominante, cujo crescimento é acompanhadopela queda das taxas de hospitalização por diarréias.

Tabela 3 – Análise univariada para taxa de hospitalização por diarréia infantilem menores de cinco anos em 69 bacias elementares - Belo Horizonte, 2006.

(*) IC (intervalo de confiança)

Tabela 4 – Modelo de regressão multivariada para taxa de hospitalizaçãopor diarréia infantil em menores de cinco anos em 69 bacias elementares -

Belo Horizonte, 2006.

(*) IC (intervalo de confiança)

100

5.Discussão

Uma grande parte das bacias da cidade de Belo Horizonte ainda contacom seus cursos d’água preservados em leito natural (40.27%), destacando-se que foram consideradas apenas as bacias com mais de 500 habitantes(Figura 4).

As bacias elementares da cidade apresentaram mediana das taxas demortalidade infantil em níveis relativamente elevados (19.61/1000). Odesvio padrão é alto (9.28/1000), sugerindo a persistência de doenças infec-ciosas ligadas ao complexo Diarréia – Pneumonias – Desnutrição. Esses even-tos permanecem quando a mortalidade infantil está acima de 20/1000(Caldeira, 2001). A prevalência média de hospitalização por diarréia infantilé elevada (6.11/1000), situando-se acima de prevalências encontradas empaíses desenvolvidos (Hiramoto, 2004). A cobertura de abastecimento deágua foi também alta, ao lado de várias bacias com baixa cobertura de cole-ta de lixo e esgoto doméstico.

A mortalidade infantil apresentou importante correlação com as variáveisde contexto ligadas ao saneamento. A força do marcador cobertura com água

Figura 4 – Bacias elementares estudadas em Belo Horizonte, 2006Fonte: NUVELHAS/UFMG – 2006

101

tratada foi demonstrada com sua ocorrência, com significância estatística, emuma cidade próxima da universalização desses serviços. As coberturas dosserviços de coleta de lixo e de esgoto foram as variáveis estatisticamente maisexplicativas da mortalidade infantil. A forte correlação entre elas impôs a escol-ha de apenas uma para inclusão no modelo final. A justificativa epidemiológi-ca para a escolha da coleta de esgotos decorre da sua proximidade com a princi-pal variável de exposição deste estudo, a proporção dos cursos d’água em leitonatural. Os rios urbanos se transformaram, em muitas cidades, em parte doscondutos de esgotos. A drenagem sustentável advoga a interceptação dos esgo-tos antes de atingirem os cursos d’água, que devem ser incorporados à malhaurbana. Neste estudo, quanto maior a proporção de cursos d’água em leito nat-ural, menor a proporção de domicílios com acesso à coleta de lixo e esgoto. Éprovável que, nas proximidades das margens dos cursos d’água em leito natu-ral, ambas as coletas sejam mais raras.

As prevalências de hospitalizações por diarréia abaixo dos 5 anos apre-sentaram as associações mais significativas com as duas variáveis de com-posição escolhidas para este estudo: renda e anos de estudo. As duas tambémapresentaram correlação significativa entre si, fato que impôs a eleição deuma delas para inclusão no modelo final. As diarréias têm sido relacionadascom renda familiar e anos de estudo das mães das crianças acometidas coma patologia (Fuchs & Victora, 2002). Neste estudo as duas variáveis se refer-em ao responsável pelo domicílio, que era conceitualmente no censo de 2000,o maior provedor da família, podendo ou não coincidir com a mãe. Portanto,a variável renda nesse caso é mais representativa da situação da família e doseu conhecimento de atitudes no cuidado às crianças do que anos de estudo,que seria mais representativa quando o responsável pelo domicílio é a mãe,informação não disponível nas fontes de dados deste trabalho.

A relação da mortalidade infantil com o saneamento é conhecida e aindamuito estudada. Os maiores progressos alcançados para a saúde humana,assim como grande parte dos estudos, ainda se concentram na relação daágua tratada ou não, com a mortalidade infantil e prevalência de diarréias(Silva, 1999); (Villena et al, 2003); (Gasana, 2002); (Gascón et al, 2000) e(Holcman, 2004). Da mesma forma, a associação das diarréias infantis comouma das principais causas da mortalidade infantil tem sido demonstrada. Asdiarréias têm sido associadas a condições socioeconômicas tais como renda,condições do domicílio e saneamento; e biológicas, e são, muitas vezes, sin-tomas de outras patologias (Victora & Barros, 1994), (Claeson, et al, 2000).

A associação entre mortalidade infantil, diarréia, condições socioe-conômicas e saneamento tem sido estudada mediante diferentes desenhos

102

epidemiológicos, os quais têm demonstrado relações estatisticamente signi-ficativas. Estudo ecológico elaborado a partir do banco de dados Indicadores eDados Básicos para a Saúde – 2003 – IDB – 2003 do Ministério da Saúde, queabrange os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, encontrou significânciaestatística para a associação entre a mortalidade infantil e os indicadoresesperança de vida ao nascer e cobertura por sistemas de esgotamento san-itário, que apresentaram uma relação inversamente proporcional com a taxade mortalidade infantil. Foi encontrada também, na regressão múltipla, cor-relação entre mortalidade proporcional por doença diarréica aguda emmenores de cinco anos e a cobertura por sistemas de esgotamento sanitárioe a proporção de pobres (Teixeira & Guilhermino, 2006). Um desenhoecológico feito em 2005 avaliou os sistemas de saneamento com indicadoresepidemiológicos em municípios de estados brasileiros – Pernambuco, Bahia,Paraná e Rio Grande do Sul. A mortalidade infantil apresentou associaçãosignificativa com a turbidez da água e com o percentual da população domunicípio com coleta regular de lixo (Costa et al, 2005).

A relação entre cursos d’água, mortalidade infantil e diarréia não é relatadana literatura recente. Em geral os trabalhos selecionam variáveis ambientaispróximas das residências e destas com o sistema de saneamento básico. As var-iáveis proporção dos domicílios com coleta de esgoto, renda, densidade e proporção doscursos d’água em leito natural analisadas em conjunto permitem discutir ahipótese aventada acima. As crianças de famílias de baixa renda que vivem emaglomerados urbanos, densos, sem acesso ao serviço de esgotamento sanitário,próximos de córregos em leito natural, têm maior risco de adquirirem diarréiagrave e estão mais expostas à mortalidade infantil. Viver em uma bacia cujo cór-rego está em leito natural não significa necessariamente a exposição a ele. Aprópria malha urbana da bacia dificulta o acesso, aliado ao fato de que apoluição de suas águas tende a afastar as pessoas do curso d’água. O córrego sig-nifica risco porque está poluído com esgoto e lixo, o que permite concluir quesua recuperação e despoluição, deixando-o em leito natural, podem atenuar sig-nificativamente o seu potencial de risco epidemiológico.

A correlação da mortalidade infantil com saneamento, ao lado da poucosignificativa relação com renda e anos de estudo, aponta para avanços naárea de assistência médica. O acompanhamento pré-natal das gestantes, avacinação e outras tecnologias utilizadas no cuidado primário das criançastêm contribuído para o declínio da mortalidade infantil. O aumento dacobertura do cuidado primário de saúde tem diminuído a importância darenda e da escolaridade na mortalidade infantil (Polignano, 2000). Essesfatores foram importantes no Brasil e ainda o são em muitos países e regiões

103

do Brasil. Por outro lado, o resultado da análise aponta também que o cuida-do com o ambiente precisa ser melhorado. Esse cuidado pode ser resumidonos cinco eixos da OMS para a promoção da saúde: definição e criação depolíticas públicas saudáveis, criação de ambientes favoráveis à saúde,mudança de hábitos e atitudes das pessoas, promover a ação comunitáriasolidária e reorientar os serviços de atenção médica, incorporando o ambi-ente como meta e espaço a ser cuidado (Buss, 2000).

Outro conjunto de limitações resulta do próprio estudo. As variáveis dosagrupamentos cobertura de serviços de saneamento básico e socioeconômi-cas foram definidas no ano 2000 e os eventos se referem aos 6 primeiros anosda década. Nesses anos vem ocorrendo ampliação nas coberturas dessesserviços, principalmente na área de coleta e interceptação de esgotos em BeloHorizonte (Messias, 2006). A análise utilizou três totais de bacias, por causados zeros. A rigor, a comparabilidade entre os resultados para mortalidadeinfantil com as hospitalizações por diarréia infantil é muito baixa porque onúmero de bacias estudadas foi diferente. De um lado, a utilização de dadossecundários facilita e barateia o estudo; de outro, exige testes de confiabili-dade e validade. A sua não realização agrega limitações neste estudo.

Outra limitação foi a não utilização de análise espacial, que seria umrecurso útil na avaliação da proximidade dos córregos com os aglomeradosurbanos subnormais. Poderia também, por exemplo, agregar informaçõespara a avaliação da densidade demográfica nesses locais. Uma análise espa-cial, feita no Rio de Janeiro, da distribuição da leptospirose utilizou dadossecundários e metodologias que permitiram a aproximação dos locais maisatingidos por epidemias (Tassinari et al, 2004).

Finalmente, as variáveis dependentes foram apenas duas. Outras poderi-am ter sido utilizadas considerando critérios de definição utilizados para aseleção de mortalidade e diarréias infantis. O alcance do estudo fica limitadoao levantamento de hipóteses e à abertura de possibilidades do acompan-hamento epidemiológico das intervenções urbanas de recuperação de rios ecórregos em Belo Horizonte, Brasil.

6.Conclusão e recomendações

A conclusão é que, a despeito das limitações deste estudo, as bacias ele-mentares funcionaram como unidade de análise em epidemiologia, e os cursosd’água em leito natural, poluídos com esgoto e lixo, emergiram como impor-tante variável de contexto na determinação das hospitalizações por diarréiainfantil quando associados com baixa renda e alta densidade demográfica. A

104

universalização do serviço de esgotamento sanitário, da coleta e do tratamentodos resíduos sólidos permite a incorporação dos cursos d’água na malha urbanaporque eles passarão a oferecer menor risco epidemiológico.

No caso dos sistemas de esgotamento sanitário é importante ressaltar anecessidade de eles incorporarem a coleta, a interceptação e o tratamento dosefluentes. Reconhece-se, ao lado de benefícios com a coleta e o afastamento dasexcretas das residências das pessoas, a existência de impactos negativos apóssua implantação. Os principais problemas estão ligados aos vazamentos e aolançamento in natura dos esgotos nas redes coletoras e nos rios, causando riscosà saúde humana e aos ecossistemas aquáticos (Soares, 1999). Portanto, énecessária a construção de interceptores e estações de tratamento de esgoto,incorporando à vigilância sanitária o acompanhamento da qualidade da águados córregos. Os rios poluídos afastam os indivíduos. Na medida em que ocor-rer a sua despoluição, a tendência será a atração das pessoas para perto de suasmargens. Por isso é fundamental também o investimento em educação ambi-ental e em capital social, responsabilizando a cidadania com o cuidado ao ambi-ente. Em São Francisco, Califórnia, na Finlândia e na Austrália, avaliações feitasem lagos, rios e córregos em leito natural apontam a possibilidade de, principal-mente em períodos chuvosos, ocorrer o aumento da presença de coliformes einsetos. A principal razão está na poluição difusa presente nas cidades, que car-reia matéria orgânica para dentro dos corpos d’água (Casteel et al, 2005);(Sptizer, et al, 2005); (Greenway, 2005); (Ruth, 2005).

Uma conjectura exeqüível é a de que a volta do ecossistema aquático nacidade de Belo Horizonte virá contígua com a continuidade do declínio da mor-talidade infantil e da incidência de diarréias infantis. Esse declínio tende a con-tinuar com a universalização dos serviços de abastecimento de água, coleta einterceptação de esgoto, coleta de lixo, melhoria das condições da estruturaurbana nos aglomerados urbanos, avanço na qualidade do cuidado primário,vacinação (rotavirus), educação ambiental e aumento da renda familiar.

A preservação dos cursos d’água, ao lado desse conjunto de medidas,melhorará a qualidade da águas dos córregos, com conseqüente retorno departe do ecossistema aquático. Portanto, a preservação dos cursos d’água emleito natural pode ser compatível com o declínio das taxas de mortalidadeinfantil e incidência de diarréias infantis em Belo Horizonte.

A existência de um Programa de Recuperação Ambiental em BeloHorizonte baseado na nova concepção de drenagem urbana permite a real-ização de estudos agregados de intervenção longitudinal. Trabalhos combacias elementares que sofrerão intervenção, definindo bacias de controle,oferecerão subsídios para a compreensão dos efeitos do programa em eventos

105

relacionados à saúde. Recomenda-se, para esses estudos, a escolha de umnúmero maior de eventos, incluindo também doenças crônico-degenerativas.A mudança da qualidade ambiental, com a criação de áreas de lazer e espaçosmais aprazíveis, poderá reduzir esses agravos. É importante também que sebusquem dados primários relativos ao ambiente e à percepção das popu-lações das bacias sobre a saúde e o entorno em que vivem.

O NUVELHAS /Projeto Manuelzão forneceu parte dos dados deste trabalho,tem também montada uma base de 37 estações de coleta de bentons e plânctons,sendo 13 na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Recomenda-se, portanto,através da utilização dessas informações disponíveis, a criação de uma base para oacompanhamento da qualidade de vida e de saúde das populações das bacias emBelo Horizonte, buscando subsídios para a formulação de tecnologia de vigilânciaà saúde, ambiente e monitoramento do ecossistema aquático.

Referências bibliográficas

Buss, PM. Promoción de la salud y la salud pública: una contribución para el debate entre las escue-las de salud pública de América Latina y el Caribe. Rio de Janeiro: (s. nº.), 202 p. 2000.

Casteel M, Bartow, G, Taylor, SR; Sweetland, P. Removal of bacterial indicators offecal contamination in urban stormwater using a natural riparian buffer. 10thInternational Conference on Urban Drainage Copenhagen, Denmark, August 21-26, 2005.

Champs J. R. O planejamento do sistema de drenagem urbana na cidade de BeloHorizonte. 21º Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental. Maio 2001.

Claeson M, Bos ER, Mawji T, Pathmanathan I. Reducing child mortality in India inthe new millennium. Bull WHO; 78:1192-9. 2000.

Costa SS, Heller L, Brandão CCS, Colosimo EA. Indicadores epidemiológicos aplicá-veis a estudos sobre a associação entre saneamento e saúde de base municipal.Engenharia Sanitária. Ambiental. 118 Vol.10 - Nº 2 - abr-jun, 118-127. 2005.

Diário Oficial do Município de Belo Horizonte, 2001. Lei 8,260/2001.

Fuchs SC e Victora CG. Risk and prognostic factors for diarrheal disease in Brazilianinfants: a special case-control design application. Cad. Saúde Pública, vol. 18, nº. 3pp. 773-782. 2002.

Gasana J, Morin J, Ndikuyeze A, Kamoso P. A Impact of Water Supply and Sanitationon Diarrheal Morbidity among Young Children in the Socioeconomic and CulturalContext of Rwanda (Africa). Environmental Research Section A 90, 76}88. 2002

Gascón J, Vargas M, Schellenberg D, Urassa H, Casals C, Kahigwa E, Aponte JJ, MshindaH, Vila J. Diarrhea in Children under 5 Years of Age from Ifakara, Tanzania: a Case-ControlStudy. Journal of Clinical Microbiology, p. 4459-4462, Vol. 38, nº. 12. December 2000.

106

Greenway M. Stormwater treatment trains in subtropical Australia - wetland andpond systems: How effective are they in improving water quality and enhancingecosystem biodiversity? 10th International Conference on Urban Drainage Copenhagen,Denmark, August 21-26, 2005.

Hiramoto I, Nakagomi T, Nakagomi O. Population – Based estimates of the cumulati-ve risk of hospitalization potencial y associated with rotavirus diarrhea among childrenliving in two cities in akita prefecture, Japan. JPN J. Infect Dis, 58, 73-77. 2005.

Holcman MM. et al. Evolução da mortalidade infantil na região metropolitana deSão Paulo, 1980-2000. Revista de Saúde Pública, v.38, n.2, p.180-186, 2004.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2005. http://www.ibge.gov.br/cida-de/sat/default.php.

Messias, LT, Meta 2010 – Propostas e ações necessárias a sua efetivação. CadernoManuelzão. V.1, n.º 1. Junho. 2006. Belo Horizonte.

Minayo MCS, 2001 Enfoque Ecossistêmico de Saúde e Qualidade de Vida.III,II: pg 173-191. In: Saúde e Ambiente sustentável: estreitando nós.Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.

Polignano, MV. Uma análise crítica sobre as interpretações e as implicações científicas esociais relativas à mortalidade infantil no Brasil no período de 1960-1998. 2000, 174p. Tese(doutorado em pediatria social) - Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte.

Pompêo AC. Drenagem urbana sustentável. Revista Brasileira de Recursos Hídricos /Associação Brasileira de Recursos Hídricos, vol. 5, nº. 1, pag. 15-23, Porto Alegre, RS, 2000

Silva GAP, Lima MC, Lira PIC. Clinical characteristics of diarrheal disease in sucklingchildren in the Zona da Mata Meridional in the State of Pernambuco. Rev. Bras.Saúde Mater. Infant., Recife, v. 2, n. 3, pp. 239-244. 2002.

Silva H.K, Alves, R.F.F. O saneamento das águas no Brasil. In: O estado das águas noBrasil. Brasília: Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, p. 83-102, 1999.

Spitzer A, Jefferies, C. Water quality performance of SUDS ponds analysed on a WQI.10th International Conference on Urban Drainage Copenhagen, Denmark, August 21-26, 2005.

Tassinari WS, Pellegrini DCP, Sabroza PC. Spatial distribution of leptospirosis in thecity of Rio de Janeiro, Brazil, 1996-1999. Cad. Saúde Pública. 2004, vol. 20, nº. 6.2007-01-23], pp. 1721-1729.

Teixeira JC e Guilhermino RL. Análise da associação entre saneamento e saúde nos esta-dos brasileiros, empregando dados secundários do banco de dados, indicadores e dadosbásicos para a saúde 2003- IDB 2003. Eng. Sanit. Ambient., Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, 2006.

Tucci CEM. Drenagem urbana. Cienc. Cult., Oct./Dec. 2003, vol.55, no.4, p.36-37.ISSN 0009-6725.

Victora CG e Barros FC. Repensando a associação entre indicadores de saúde e dequalidade de vida. In: Costa MFFL, Sousa RP, orgs. Qualidade de vida: compromissohistórico da epidemiologia. Belo Horizonte: Coopmed - ABRASCO; 1994. p.19-23.

Educação Ambiental e a revitalização decórregos: a experiência em uma

microbacia urbana

Médico Generalista, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais

Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina daUniversidade Federal de Minas Gerais – Doutor em Medicina – Coordenador Geral do

Projeto Manuelzão

Professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federalde Minas Gerais – Doutor em Medicina – Coordenador do Projeto Manuelzão

1. Introdução

Contraponto-se à visão hegemônica do sanitarismo, o ProjetoManuelzão propõe a concepção ecossistêmica centrada no ter-ritório de bacia hidrográfica e defende que a gestão das cidadesnão pode desconhecer a gestão das águas, sob pena de que as

soluções se tornem cada mais vez mais complexas e ineficazes. Não há comodesconhecer a força das águas e deixar de entender o seu fluxo, os seus cami-nhos. Mais do que drenagens urbanas, as cidades precisam de “desdrenagem”,como afirma o professor Edésio (1999).

O Projeto Manuelzão vem lutando pela implantação de políticas públi-cas que incorporem esses novos paradigmas.

Em 2000, a Prefeitura de Belo Horizonte criou o programa de revitaliza-ção de fundos de vales, denominado DRENURBS.

O programa Drenurbs, concebido no âmbito do Plano Diretor deDrenagem Urbana, se constrói em torno do princípio de substituição da siste-mática adoção das canalizações por soluções alternativas para os problemasdos córregos urbanos da cidade, mantendo-os em leito natural. Essa é umaimportante mudança conceitual que vem repercutindo em vários setores daadministração pública e na sociedade, exigindo um esforço adicional de comu-nicação, mobilização e capacitação dos atores envolvidos. Além dessa inflexão

107

no conceito de drenagem urbana, o Programa DRENURBS adota uma concep-ção ampla e sistêmica, bem como uma abordagem socioambiental sofisticadae inovadora. Sob a perspectiva social, sua contribuição é inegável, tanto pelaintervenção nos fundos de vale ocupados irregularmente, como pela transfor-mação dessas áreas em parques lineares passíveis de serem incorporados à pai-sagem urbana e pelas comunidades do entorno.

Nesse processo de apropriação de um novo paradigma, a educaçãoambiental exerce um papel fundamental, principalmente em grandes cidadescomo Belo Horizonte, onde as concepções dominantes na política de sanea-mento sempre preconizaram as canalizações. Assim, a maioria da populaçãofoi se afastando de rios e córregos poluídos proirizando o microambientedoméstico e o combate às doenças e aos vetores, em detrimento de uma visãosistêmica da promoção da saúde e da construção do ambiente saudável. Oresultado foi o desenvolvimento de um imaginário popular que conduz apopulação a reivindicar as canalizações.

Um dos grandes desafios é mobilizar a população para conviver com cór-regos abertos e revitalizados em áreas urbanas, evitando novamente a suacontaminação e degradação, visto que, no imaginário coletivo, córregos emregião urbana são sinônimos de lixo e esgoto a céu aberto.

A educação ambiental procura conciliar a gestão ambiental efetiva,baseando-se no desenvolvimento de uma nova pedagogia ambiental. Pormeio de um conjunto de etapas sucessivas e interdependentes, que buscaincorporar gradativamente novos conhecimentos, valores e atitudes e a par-ticipação efetiva na gestão ambiental, visando à transformação da realidadesocioambiental (Polignano, 2008)

Dentro das diversas áreas de atuação do DRENURBS, destacamos asintervenções realizadas na bacia do córrego 1º de Maio para avaliação da pro-posta e da metodologia utilizada.

Esta sub-bacia está localizada na região Norte de Belo Horizonte, pos-suindo a maior parte de sua superfície nos bairros Minaslândia e Primeiro deMaio. O córrego 1º de Maio tem sua nascente situada em área pouco habita-da, porém sofreu processos de degradação resultantes de deposição de lixo,entulhos e dos lançamentos de esgotos in natura.

Este capítulo pretende mostrar os resultados de um projeto de educaçãopara saúde ambiental executado em parceria com o DRENUBS, da Prefeiturade Belo Horizonte.

As mudanças foram mensuradas a partir de um conjunto de variáveisobtidas por intermédio de questionário semiestruturado, aplicado em umaamostra de moradores antes e após o término das intervenções.

108

2. Método

No presente trabalho, utilizou-se de dados produzidos pelo ProgramaDrenurbs-Fundep através de diagnósticos socioambientais obtidos de fontesoficiais e pesquisa junto à população local.

O planejamento das ações de educação ambiental levou em consideraçãoos dados obtidos pelo diagnóstico ex-ante.

O presente trabalho buscau estabelecer correlações entre os dados obti-dos pelo ex-ante e ex-post para verificar mudanças na percepção e imáginárioda população beneficiada.

A equipe DRENURBS utilizou-se de um questionário semiestruturadopara obter informações junto à população local, sendo que o mesmo questio-nário foi aplicado no ex-ante e no ex-post. O questionário ex-ante foi compos-to por 56 perguntas fechadas e abertas e aplicado no período de 04 a 11 dejaneiro de 2007, totalizando 95 entrevistados. O ex-post foi realizado entre osdias 18 de agosto a 1º de setembro de 2008, totalizando, também, 95 entre-vistas.

109

Córrego 1º de Maio localizado dentro da malha urbana de Belo Horizonte. Fotomontagemsobre imagem Google

A metodologia utilizada obedeceu a todo o rigor estatístico. Utilizou-seo cálculo do tamanho mínimo da amostra proposto por Barbetta (2001).Considerou-se nível de confiança de 90% e um erro provável de 10%, tidocomo satisfatório para este tipo de pesquisa. A residência foi a unidade amos-tral. Diante do universo (N) de 750 residências na bacia, conforme a base dedados do Prodabel, definiu-se como 88 o número mínimo de residências daamostra a ser pesquisada. Aproximou-se o número total de entrevistas daamostra para 95. Foram entrevistados indivíduos adultos de ambos os sexosque estavam responsáveis pela residência no momento da entrevista.

A distribuição da amostragem foi definida proporcionalmente ao núme-ro de moradias de cada rua existente na microbacia, ou seja, foi feita umadivisão entre o número de moradias que havia em cada rua pelo número totalde moradias da microbacia. Após esse resultado, multiplicou-se por 100, indi-cando a percentagem de questionários da amostra que seriam aplicadosnaquela rua.

Nas duas ocasiões procurou-se entrevistar os mesmos endereços.Entretanto, as pessoas entrevistadas não foram necessariamente as mesmas,e alguns endereços foram alterados devido à recusa ou à desapropriação dacasa. Isso é importante para minimizar possíveis interferências sobre osresultados, uma vez que o nível de escolaridade, tempo e local de moradia sãofatores que podem alterar as concepções dos sujeitos. Ainda assim, a inten-ção de manter certa coerência no perfil dos entrevistados nas pesquisas foialcançada. Observa-se uma semelhança bastante significativa no que se refe-re ao perfil dos entrevistados e isso favorece a comparação entre as pesquisasrealizadas.

A comparação do perfil dos entrevistados do ex-ante e do ex-post demons-tram homogeneidade dos grupos quanto à distribuição de renda, tempo demoradia, escolaridade e casa própria, o que pode ser observado no Gráfico 1.As diferenças observadas nos inquéritos antes e depois em relação às setecaracterísticas descritas no gráfico não mostraram significância estatística.

Outra parte dos resultados que retrata bem esse rigor metodológico é aque avalia as condições de moradia dos entrevistados. Ela demonstra certahomogeneidade de distribuição da amostra – que varia quanto ao indivíduoentrevistado –, mas não apresenta variação quanto ao perfil dos entrevista-dos (já demonstrado) nem das moradias, o que será apresentado nos resulta-dos.

Para o estudo da distribuição das frequências observadas foi empregadoo teste do qui quadrado e, quando necessário, o teste exato de Fisher (valoresperado em uma casela menor do que 5). Foi considerado o valor p<0,05

110

como limiar de significância estatística. Partindo deste pressuposto, os resul-tados encontrados foram agrupados em: variações estatisticamente insigni-ficantes; variações significantes positivas e variações significantes negativas.Logo, os indicadores de impacto da educação ambiental podem ser escolhi-dos a partir daquelas variações que apresentam significância estatística tantopositiva quanto negativa, no intuito de avaliar criticamente todo o trabalhoe destacar as medidas eficazes e não eficazes.

3. Resultados

A parte do questionário que avalia as condições de moradia dos entrevis-tados inaugura e ilustra bem o item que trata das variações estatisticamenteinsignificantes. As residências que são abrangidas por água tratada, esgotoencanado e coleta de lixo apresentaram altas frequências já no questionárioanterior, sendo que, dos 95 entrevistados, um número maior ou igual a 90,respondeu que tinha acesso a esses serviços. Em todas as comparações acimao valor de p>0,05.

Na relação do entrevistado com o bairro observa-se uma mudança paramelhor no índice de satisfação do entrevistado com o bairro: ocorre umaumento na incidência dos indivíduos que apresentam algum grau de satis-fação e uma queda importante entre os que apresentam insatisfação (Tabela1). Entretanto, na avaliação estatística, observa-se que estas alterações não semostram significativas (p>0,05).

111

Gráfico 1. Comparação do perfil dos entrevistados entre as pesquisas antes e depois

Quando o item analisado é a identificação de problemas na região porparte dos entrevistados, os resultados mostram que a frequência de entrevis-tados que identificaram dois problemas diminuiu. Entretanto, houve aumen-to na frequência dos que identificaram um ou três problemas, bem como umadiminuição entre os que não identificaram problemas. Logo, observa-se umaredução do número de entrevistados que não identificaram problemas, e umaumento entre os que identificaram, neste caso, essas alterações não mostra-ram relevância estatística. A tabela 1 detalha essas variações.

Outro critério que não mostrou alteração significativa foi o da divulga-ção do trabalho dos movimentos pelo córrego durante o processo de educa-ção ambiental. O mesmo fenômeno ocorreu quando se tratou dos movimen-tos atuantes na bacia. Neste caso, também, o trabalho de educação ambien-tal não foi eficiente na sua divulgação. Apesar disso, observou-se um aumen-to na frequência de participação nos movimentos da comunidade no inter-valo entre as pesquisas; entretanto, esse aumento não foi suficiente pararepresentar significância estatística. Contrariando o aumento do índice departicipação nas questões relativas à comunidade – mas também com varia-ções não significativas – a participação em reuniões para discutir sobre as

112

Tabela 1 – Percepção dos entrevistados em relação à região da baciahidrográfica do córrego 1º de Maio

obras das intervenções apresentaram queda. A tabela 2 mostra esses resulta-dos.

Um segundo enfoque de abordagem dos resultados compreende os queapresentaram variações estatisticamente significantes com resultados nega-tivos em relação ao esperado. Neste item estão as variáveis que foram colo-cadas no questionário, esperando que houvesse uma alteração no aumentoda distribuição de frequência. Todavia, verificou-se, na realidade, uma queda.

A questão que avalia a divulgação do córrego durante as obras, assimcomo pela equipe de educação ambiental, inaugura este tópico: observou-seuma queda significativa (p<0,01) no conhecimento do córrego entre as pes-quisas (Tabela 3).

Quando a variável é a definição do conceito de bacia hidrográfica, onúmero de indivíduos que fazem algum tipo de associação ao conceito cor-reto de bacia hidrográfica subiu – apesar de estatisticamente não significati-vo. Entretanto, o número de pessoas que conseguem efetuar uma definição

113

Tabela 2 – Abrangência dos movimentos locais e envolvimento dosentrevistados com eles

adequada caiu. Além disso, o incremento da frequência de alguma associaçãose deu à custa do aumento de uma vinculação genérica de bacia hidrográficaà água ou rios, como se observa a seguir.

Outra surpresa foi a observada na questão que trata do conhecimentodas obras realizadas pelo Drenurbs na região, que também apresentou umaqueda significativa (p<0,01) entre as duas pesquisas. A tabela 3 mostra adimensão destes resultados.

Outra queda significativa ocorreu no item que avalia a importância dasobras para os entrevistados. Observaram-se quedas expressivas na frequência

de entrevistados que acham as obras muito importantes ou importantes eum grande aumento na frequência dos entrevistados que se abstiveram deresponder. Seguindo a tendência, ocorreu uma queda significativa na fre-quência de entrevistados que acham que a sua atitude em relação ao córregomudou após a conclusão das obras. Também houve queda - porém não sig-nificativa do ponto de vista estatístico – em outras questões que tratam dasexpectativas dos entrevistados em relação ao córrego após as obras. A tabela4 mostra essas alterações.

Finalmente, aparecem os quesitos que apresentaram variações estatísti-cas significantes e esperadas. Esses resultados foram almejados pelo traba-lho de educação ambiental a fim de que houvesse uma mudança na comuni-

114

Tabela 3 – Conhecimento sobre o córrego, sobre o conceito de baciahidrográfica e sobre as obras realizadas pelo Drenurbs

dade no sentido de preservação do córrego e na sua incorporação à paisagemnatural da bacia hidrográfica como um aspecto positivo.

Inicialmente, será mostrado o crescimento qualitativo do conhecimentosobre o córrego, ou seja, o aumento da frequência de entrevistados que con-seguem denominar corretamente o córrego após os trabalhos de educaçãoambiental e da eficiente divulgação do nome do córrego promovida por ele.Além disso, observa-se um entendimento, por parte dos entrevistados, deque as obras que foram realizadas ocorreram no intuito de despoluir o córre-go: houve um crescimento da frequência dos que acham o córrego limpo euma redução entre os que o acham poluído.

A tabela 5 e o gráfico 2 mostram também: o aumento da frequência de

115

Tabela 4 – Importância das obras e expectativas dos entrevistados emrelação ao córrego e sua região após as obras

entrevistados que conseguem fazer alguma associação à complicada defini-ção do conceito de bacia hidrográfica e o aumento do conhecimento do pro-grama Drenurbs, apesar do nome de difícil assimilação. Os resultados apre-sentados na próxima tabela podem ser associados aos apresentados na tabe-la 3, e analisados em conjunto, possibilitando, inclusive, um paralelo entre o

116

Tabela 5 – Conhecimento do nome e da situação do córrego, associações aoconceito de bacia hidrográfica, conhecimento do Programa Drenurbs

Grafico 2: Situação do Córrego (p<0,01)

conhecimento sobre o córrego e sobre o nome do córrego; número de relaçõesatribuídas ao termo de bacia hidrográfica, detalhamento do conceito econhecimento sobre o Programa Drenurbs e e suas respectivas ações.

Quanto à avaliação da percepção dos entrevistados em relação à regiãoonde moram, o item que mais bem demonstrou a variação da percepção dalocalidade a partir dos benefícios trazidos pelas obras e sua internalizaçãocomo benefício para a própria comunidade foi a questão que tratava das van-tagens da região. Observou-se um aumento da frequência de entrevistadosque enumeraram vantagens, queda entre os que não enumeraram nenhumavantagem e substancial aumento da frequência dos que enumeraram trêsvantagens, como mostram a tabela 6 e o gráfico 3.

Também foi observado um aumento da frequência de entrevistados quenutrem sentimentos positivos pelo córrego, bem como diminuição da fre-quência de entrevistados que têm sentimentos negativos em relação aomesmo. Além disso, foi observada uma queda na frequência de entrevistadosque identificaram os mais diversos problemas no córrego.

Outro objetivo alcançado pela equipe de educação ambiental foi umarepercussão esperada para o futuro, mas que já se esboçou de maneira signi-ficativa durante a pesquisa do posterior. Este objetivo trata do âmbito da ati-tude dos entrevistados em relação ao córrego. O trabalho de educaçãoambiental, no sentido de responsabilização pela conservação do patrimônioque estava sendo dispensado àquela comunidade, foi muito eficiente e apopulação se apropriou desse compromisso. Logo, a frequência de entrevista-dos que chamaram a responsabilidade para a comunidade aumentou signifi-cativamente entre as pesquisas, enquanto a variação daqueles que a atri-buem ao poder público, se colocando em posição neutra, teve uma alteraçãopouco significante (Tabela 6).

4. Discussão

A comparação entre características (perfil dos entrevistados) dos doisinquéritos não mostrou diferenças com significância estatística em relação àssete características estudadas. Os resultados que não mostraram variação signi-ficativa são importantes nesta pesquisa porque demonstram a homogeneidadede distribuição da amostra, que varia quanto ao indivíduo entrevistado, masnão apresenta variação quanto ao perfil deste nem quanto ao perfil das mora-dias. Ou seja, não foram observadas diferenças estatísticas relevantes entre asduas pesquisas nos quesitos: posição na família, sexo, escolaridade, composiçãoda família e condições de moradia. Esse quadro se mantém quando são analisa-

117

118

Tabela 6 – Percepção e atitudes em relação à região da bacia hidrográfica e ao córrego

Gráfico 3: Evolução dos sentimentos em relação ao córrego (p<0,01)

das as condições sanitárias dos moradores do bairro entrevistado por dois moti-vos: primeiro porque já havia uma grande abrangência dos serviços sanitários,como esgoto encanado, água tratada e coleta de lixo nas localidades avaliadas;segundo porque as intervenções realizadas não priorizaram esse aspecto, ouseja, elas objetivaram aumentar a abrangência da adequação sanitária dos domi-cílios, uma vez que essa cobertura já se mostrava suficiente antes das interven-ções.

Quanto à não alteração no índice de satisfação do entrevistado com aregião (Tabela 1), talvez isso seja um reflexo da pequena variação quantitativados problemas, apesar do trabalho de educação ambiental e das intervençõesrealizadas. Isso pode ter ocorrido porque o trabalho de educação ambiental, nasua natureza inquietante, tenha sensibilizado mais os moradores para a percep-ção dos problemas que os rodeiam. Entretanto, prefere-se acreditar que esteresultado está inserido num outro contexto de – como já assinalado por Ferrara(1993, p. 119) – “uma descaracterização crescente da imagem ambientalenquanto espaço público. As ruas vazias [...] a repulsa por elas enquanto pon-tos de encontro e lazer evidenciados pela veemente reivindicação de um espaçoadequado e equipado para o lazer infantil e juvenil, a busca de um lazer pitores-co porque distante, o escapismo de fim de semana, a impossibilidade de identi-ficar uma forma de passar o tempo que caracterize o local, são índices claros dadificuldade de identificar o espaço público local, a rua, a praça ou a avenida,como espaços de apropriação coletiva”. Ou seja, as melhorias realizadas porintermédio das obras estão no contexto do espaço público e, por mais que elasrepresentem, este contexto é paradigmaticamente estereotipado como hostil,na medida que o entrevistado não se sente abrangido.

Este mesmo fenômeno de não apropriação e, além dele, o da ausência delegitimidade, afeta os movimentos sociais locais. Apesar de se objetivar o traba-lho de educação ambiental por meio desses movimentos – empoderando-os ecapacitando-os para a continuidade das atividades após a saída da equipe deeducação ambiental, para garantir sua sustentabilidade – observa-se a não aten-ção a esse propósito, de modo que esses movimentos não ficaram mais conhe-cidos pela população. Logo, a divulgação não foi eficaz, nem para a apropriaçãoda continuidade – sustentabilidade – do trabalho pelos movimentos, nem noque se refere ao reconhecimento dos movimentos como referência de militân-cia pelos interesses locais. A explicação para isso está no cerne do próprio pro-grama que preferiu ignorar parcialmente as entidades historicamente existentesna bacia e criou uma comissão para ser público-alvo das atividades, e não per-mitiu que se fomentasse a realização das atividades por iniciativa e controle dasentidades locais com a equipe de educação ambiental apenas dando suporte.

119

Portanto, o que ocorreu foram atividades desenvolvidas pela equipe de educa-ção ambiental, onde a sociedade participou de forma passiva e a parcela partici-pante não foi capaz de reverberar ou multiplicar o conhecimento produzido nasatividades.

Seguindo a lógica de resultados não esperados, estão as variáveis que apre-sentaram queda estatisticamente significativa. O primeiro resultado desfavorá-vel é o que trata do conhecimento do córrego, que apresentou queda importan-te entre as pesquisas, isso se deu talvez pela mudança da metodologia da per-gunta feita pelos entrevistadores nas duas ocasiões. Entretanto, esses dados nãopodem ser analisados separadamente porque, ao observar a distribuição de fre-quência dos entrevistados que conseguem nomear corretamente o córrego,ocorre um aumento substancial entre aqueles que o nomeiam devidamente. Ouseja, foi observada uma queda quantitativa no conhecimento do córrego, mashouve um incremento substancial no conhecimento qualitativo. A percepçãodos entrevistados em relação ao córrego também se mostrou significativamen-te melhorada. Na questão que verificou se o entrevistado interpretava o córre-go como limpo ou poluído, a variação de poluído para limpo entre as duas pes-quisas apresentou um elevado grau. Além disso, foi observada também umaqueda na frequência de entrevistados que identificaram os mais diversos proble-mas no córrego. Logo, a inversão do valor do córrego para os entrevistados foium objetivo alcançado pela equipe de educação ambiental. Esse resultadoencontra ressonância em Malzyner et al, 2005, onde se salienta que o conheci-mento da realidade e sua análise constituem uma referência para tomadas dedecisão em relação ao futuro do ponto de vista dos atores sociais envolvidos.

No sentido inverso desse raciocínio, o conhecimento da definição de baciahidrográfica aumentou em quantidade e perdeu em qualidade no intervaloentre as pesquisas. O número de indivíduos que fazem algum tipo de associa-ção ao conceito de bacia hidrográfica subiu; , entretanto, o número de pessoasque conseguem efetuar uma definição adequada caiu, e o incremento da fre-quência de alguma associação se deu à custa do aumento de uma associaçãogenérica de bacia hidrográfica à água ou rios. Esse resultado mostra o quanto asdefinições são complexas e encontra respaldo em Toledo e Pelicioni (2005, p.763) em um outro termo: meio ambiente. Na ocasião, o “meio ambiente foidefinido de diversas maneiras pelas pessoas que atuavam nos parques estaduaispaulistas, caracterizando esse termo como uma representação social, em queestão presentes os valores, as referências e as práticas cotidianas dos responden-tes, diferenciados cultural e socialmente”. Logo, observa-se um afastamento dasdefinições científicas e uma retratação social e até cultural permeando estesconceitos.

120

Outro resultado imprevisto, e diretamente relacionado com o método daarguição da pesquisa, foi o observado nas variações da questão sobre o conhe-cimento das obras realizadas pelo programa DRENURBS. Na primeira pesqui-sa os entrevistadores perguntavam sobre as obras do DRENURBS e da prefeitu-ra que seriam realizadas. No inquérito posterior, a pergunta foi mais específicae direcionada, ou seja, se eles conheciam as obras do programa Drenurbs. Comoo nome do programa é de difícil assimilação e pouco divulgado, esta questão foiprejudicada e prefere-se entender que o ocorrido não foi, necessariamente, umaqueda no conhecimento em relação às obras, mas uma não associação, pelosentrevistados, de que as obras que eles conhecem são do programa Drenurbs.

No item que trata da importância das obras e da mudança na relação dosentrevistados com o córrego, as quedas podem ser explicadas por uma atribui-ção de expectativa grande sobre as obras, especificamente, das quais se espera-va a solução de todos os problemas do bairro. Após seu término, observaramque elas foram boas, mas não significaram tanto assim para o entrevistado.Percebeu-se que as obras não afetaram a vida dos moradores conforme era espe-rado ou que o trabalho de educação ambiental não conseguiu mostrar-lhes issode maneira eficiente. Além disso, há o aspecto já mencionado do contexto dasmelhorias que é o público e esse contexto apresenta-se estigmatizado, comocitado por Ferrara (1993, p. 120).

Em seguida, apesar de o nome do programa DRENURBS ser de difícil assi-milação pelos entrevistados, houve significativo aumento de seu conhecimen-to. É possível concluir que, se o nome fosse de assimilação mais acessível ao per-fil dos participantes, a abrangência desse conhecimento seria maior, haja vista aampla divulgação do programa, promovida em todas as atividades de educaçãoambiental desenvolvidas durante a obra.

A pesquisa anterior, além de apresentar uma quantidade grande de entre-vistados que não sabiam o nome da microbacia, mostra um número considerá-vel dos que a nomeavam incorretamente. Já na posterior, aumentou o númerodaqueles que nomeiam o córrego corretamente à custa da queda entre os quenão o nomeiam e dos que o nomeiam incorretamente. Esse raciocínio é fortale-cido e melhor caracterizado quando se associam as questões sobre a situação docórrego, os sentimentos que o entrevistado nutre pelo córrego e os problemasque o entrevistado identifica no mesmo. A questão que trata da situação atualdo córrego mostra como a comunidade da bacia internalizou sua revitalizaçãocomo limpeza, abandonando a alternativa de canalização como única opção.Ou seja, a educação ambiental conseguiu socializar a nova concepção essencialdo programa.

Quando se trata dos sentimentos dos entrevistados em relação ao córrego,

121

observa-se um caminho contrário ao encontrado por Ferrara (1993, p. 125) quedenuncia a perda dos espaços comuns de signo e de significado na medida emque já não fazem parte do cotidiano da ação construída coletivamente. Nabacia do córrego 1º de Maio ocorreu um resgate desses significados. Não se podedizer que já se observa um resgate do cotidiano coletivo, mas o primeiro passo,que é o esboço de uma mentalidade mais aberta para o público e o externo, jáse pode notar quando se tem o crescimento de sentimentos positivos em rela-ção ao córrego e a seu entorno e uma queda de sentimentos ruins . A questãoque mostra a queda dos problemas do córrego revela o quanto as intervençõessobre o mesmo. Foram dados importantes para se alterar a percepção do córre-go, ou seja, a população muda o signo na medida em que muda o ambiente eessa mudança lhe é apresentada num contexto de melhorias.

Essa mudança na percepção já mostra repercussão nas vantagens levanta-das pelos entrevistados e esboça uma sutil mudança de comportamento dosentrevistados. Segundo Ferrara (1993, p. 122), “A descaracterização do ambien-te público e o confinamento na habitação levam a um total esquecimento doambiente e suas condições enquanto responsabilidade coletiva”. Na bacia emquestão, ocorreu um processo de caracterização do ambiente público e isso já seapresenta com uma reivindicação da comunidade local da responsabilidade pelapreservação do córrego e dos espaços de lazer que foram entregues. Entende-se,aí, o passo inicial para uma apropriação coletiva dos espaços públicos, da gestãodeles e libertação do “confinamento na habitação” de que a sociedade contem-porânea tem sido vítima de forma viciosa. Assumir essa responsabilidade é umato de cidadania onde se percebe a contribuição do trabalho da educaçãoambiental, pois, segundo Pedro Demo (1995), é a educação, neste caso, ambien-tal, que “instrumenta a pessoa com a habilidade crucial de manejar a arma maispotente de combate que é o conhecimento e, no lado político, alimenta a cida-dania”. O autor diz, ainda, que esse conhecimento capacita o indivíduo paratomar iniciativa, mudar a história para um rumo pretendido coletivamente,questionar e adotar práticas alternativas.

João Paulo Paes salienta que ocorre um ciclo vicioso na sociedade urbanacontemporânea que a “confina” entre grades e muros altos, e que esse ciclo seinicia quando o desconhecido se apresenta no mundo externo, o desconhecidogera medo e a sociedade se afasta dos espaços públicos e de convivência. Essesespaços ficam vazios, ociosos, desertos e propícios para a ocupação clandestinapela violência, o que faz aumentar o medo do público, dos espaços de convi-vência coletiva e retroalimenta esse ciclo que vai cada dia mais cultivando umasociedade individual, de pouca convivência, de pouca participação e de enfra-quecimento do indivíduo como cidadão.

122

5. Conclusões

O objetivo do trabalho de educação ambiental era produzir alteraçõessignificativas nas avaliações do conhecimento e da percepção dos entrevista-dos, além de algumas alterações não significativas na avaliação das atitudes.Esta pesquisa surpreendeu e ensinou o quanto outros fatores também inter-ferem nos resultados, que não dependem apenas de um trabalho efetivo, masde um método de pesquisa rigoroso, de apresentação de conceitos que sejampalpáveis ao público e possíveis de serem assimilados.

Portanto, salientou-se a potencialidade do trabalho de educação ambien-tal, revelou que há indicadores que são passíveis de avaliação com o métodoanterior versus posterior e outros devem ser avaliados com o passar dotempo, como a familiarização da comunidade com a nova paisagem incorpo-rada no seu cotidiano. Este estudo mostrou, por outro lado, que a avaliaçãodos itens não deve ser feita de forma isolada, mas de forma quali-quantitati-va, observando quais foram as variações, onde elas ocorreram, por que ocor-reram e se são significativas ou não estatisticamente. Por isso, observou-seque alguns itens são insuficientes para medir o trabalho, outros já demons-tram com mais transparência os pontos positivos, os negativos, as dificulda-des e as limitações do método.

Considera-se que o trabalho realizado pela equipe de educação ambientaldo DRENURBS contribuiu efetivamente para que a comunidade do entorno docórrego 1º de Maio disponha de ferramentas necessárias para ampliar as açõesde gestão desse novo espaço, para que ela mesma construa o sentido e o concei-to de educação ambiental, meio ambiente e preservação aplicados.

Referências bibliográficas

BARBETTA, P. A. Estatística aplicada às ciências sociais. 4.ed. Florianópolis: UFSC,2001. 838p.

BUARQUE SC. Metodologia de planejamento do desenvolvimento local e municipal susten-tável. Brasília: IICA; 1999. p. 69-125.

Carvalho, E. T. Geologia Urbana para Todos: uma visão de Belo Horizonte. BeloHorizonte,1999. 176p.

DEMO, P., Educação e qualidade, 2.ed – Campinas, SP: Ed. Papirus, 1995. 160p.

FERRARA, LDA. Olhar Periférico: Informação, Linguagem, Percepção Ambiental. SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

GIL AC, Métodos e Técnicas de Pesquisa em Educação Ambiental. In: Arlindo

123

Philippi Jr., Maria Cecília Focessi Pelicioni, [editores] Educação ambiental e sustentabi-lidade. Barueri, SP: Manole, 2005.

LOUREIRO, CFB, Problematizando conceito em educação ambiental. In: Programade educação ambiental CST. Educação, ambiente e sociedade: ideais e prática em debate.Serra: Companhia Siderúrgica de Tubarão, 2004. p. 29 - 52

LÜDKE M, ANDRÉ M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU;1986

MALZYNER C, et all. Planejamento e Avaliação de Projetos em EducaçãoAmbiental. In: Arlindo Philippi Jr., Maria Cecília Focessi Pelicioni, [editores] Educaçãoambiental e sustentabilidade. Barueri, SP: Manole, 2005.

MENDONÇA, F. A Geografia socioambiental.Terra Livre São Paulo n. 16 p. 139-158 1osemestre/2001.

POLIGNANO, M.V., Educação ambiental: dez anos de Projeto Manuelzão. In: ProjetoManuelzão: A história da mobilização que começou em torno de um rio – organiza-ção: Apolo Heringer Lisboa et all – Belo Horizonte, 2008, 73-84p.

TOLEDO RF e PELICIONI MCF, Educação Ambiental em Unidades deConservação. In: Arlindo Philippi Jr., Maria Cecília Focessi Pelicioni, [editores]Educação ambiental e sustentabilidade. Barueri, SP: Manole, 2005.

Tratado de educação ambiental para sociedades sustentáveis e responsabilidade glo-bal. In: Fórum Internacional de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais;1992 jun. 7. Rio de Janeiro

124

125

Indicador de Educação Ambiental deescolas públicas da bacia hidrográfica dorio das Velhas – Minas Gerais: proposta de

um método analítico

Educadora e coordenadora do Manuelzão vai à Escola –Projeto Manuelzão

Médica do Programa Saúde da Família

Professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federalde Minas Gerais – Doutor em Medicina– Coordenador do Projeto Manuelzão

Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina daUniversidade Federal de Minas Gerais – Doutor em Medicina – Coordenador Geral do

Projeto Manuelzão

1. Introdução

OProjeto Manuelzão/UFMG, por meio da revitalização dabacia do Rio das Velhas – MG, busca mudar o paradigmavigente da relação homem-natureza, em que as atitudes dapopulação levam à degradação do rio pela deposição de lixo e

esgotos. De fato, em muitas ocasiões na História mundial, a decadência dascivilizações foi acontecendo à medida que cada uma destruiu seu ambiente eesgotou a base de recursos dos quais dependia (Fernandez, 2005). A poluiçãodifusa gerada acarreta sérias conseqüências sobre o ambiente aquático, suafauna e flora, e sobre a saúde humana, tornando-se veículo de enfermidade emorte por doenças infecciosas e parasitárias ou por intoxicações, principal-mente para as populações mais pobres. “A educação ambiental é uma dasmais importantes ações do Projeto Manuelzão, uma vez que o processo dedegradação das águas é fruto da mentalidade civilizatória, expressa no com-

126

portamento e nas atitudes da sociedade” (Polignano in Goulart et al, 2005).A promoção de saúde, definida na Carta de Ottawa (1986) preconiza

que, para atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social, osindivíduos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades emodificar favoravelmente o meio ambiente.

O eixo temático do Projeto Manuelzão saúde, ambiente e cidadania abreespaço para questionar o conceito hegemônico de considerar saúde como umproduto da indústria e dos serviços de atenção aos doentes. Essa hegemoniaideológica da indústria da doença está perpetuando um modelo social exclu-dente, incompatível com a saúde coletiva e associada com a alta lucrativida-de dos setores mais mórbidos da economia. Saúde está correlacionada à qua-lidade de vida, e, qualidade de vida, ao ambiente e ao caráter das relaçõessociais. “A saúde, como uma afirmação positiva e não simplesmente como anegação da doença, deve ser vista como a expressão máxima da qualidade devida e do ambiente” (Lisboa et al, 2008).

A educação ambiental, uma das ações do Projeto Manuelzão, instiga acomunidade escolar por tratar das questões do seu cotidiano e, ao inserirnovos valores culturais, modifica a realidade local para além dos muros daescola. As escolas públicas da bacia do Rio das Velhas são a todo tempo esti-muladas a elaborar projetos para a prática da gestão ambiental. Um dos desa-fios da educação ambiental é a sua própria avaliação, pela dificuldade demensurar os resultados obtidos, como o grau de conscientização e a mudan-ça de atitude dentro e fora do âmbito escolar. Por isso, o Projeto Manuelzãopropôs a criação de um indicador que pudesse demonstrar a qualidade do tra-balho desenvolvido em cada escola e as mudanças alcançadas ao longo dotempo.

2. Metodologia

Para o cálculo amostral, considerou-se o universo de 1572 escolas públi-cas da bacia do rio das Velhas (SEE/MG). Como a estimativa do evento emestudo, ou seja, a porcentagem de ações satisfatórias em educação ambien-tal, era desconhecida, considerou-se a cifra de 50%, que resulta em maiortamanho amostral. Considerou-se o valor de ± 5% como a precisão da cifrafinal obtida. Para o nível de confiança de 95%, o cálculo amostral resultou em309 escolas. Foram acrescentados 20% a esse valor devido à possibilidade derecusas. Para a comparação das proporções foi empregado o teste do qui qua-drado, e para a comparação de médias, o teste t de Student. Foi consideradoo valor de 5% (p<0,05) como limiar de significância estatística.

127

A metodologia consistiu na construção de um banco de dados, de janei-ro de 2007 a dezembro de 2008, em que foram estudadas 369 escolas públi-cas da bacia do rio das Velhas, 23% no universo desse território. Das escolaspesquisadas, 55% são municipais e 45% estaduais. Elas pertencem a 19 muni-cípios, sendo a maioria localizada na Região Metropolitana de BeloHorizonte. O município mais representado é Belo Horizonte (39%), seguidode Contagem (14%), Sete Lagoas (8%) e Curvelo (7%). A maioria das escolasestudadas está localizada no epicentro das ações Meta 2010 do ProjetoManuelzão – Navegar, pescar e nadar no rio das Velhas na RegiãoMetropolitana de Belo Horizonte, cujos rejeitos industriais e esgotos domés-ticos constituem a grande fonte de agressões ao rio das Velhas (Lisboa et al,2008). A sub-bacia do ribeirão Arrudas é a mais representada (33%), seguidada sub-bacia do ribeirão Onça (22%), e do ribeirão da Mata (10%) (Figura 1).

Um questionário foi elaborado e aplicado às escolas, sendo que o profes-sor, ou o profissional da área pedagógica, foi, na maioria das vezes, o respon-sável pelo seu preenchimento. As informações contidas no questionárioforam criteriosamente escolhidas para caracterizar a educação ambiental rea-lizada pela escola. A partir delas, foi possível saber a duração da gestão dodiretor e avaliar o grau de envolvimento da escola com o Projeto Manuelzão,através da difusão do conhecimento pela Revista Manuelzão, material para-didático distribuído bimestralmente às escolas públicas da bacia. Além disso,o questionário identificou as escolas que detém o conhecimento da sua loca-lização por bacia hidrográfica, e aquelas que desenvolvem projetos socioam-bientais e por quanto tempo o desenvolvem, demonstrando o grau de apro-priação das questões ambientais para o cotidiano da escola.

O indicador de educação ambiental proposto neste trabalho apresentacinco componentes, sendo que a contribuição de cada um deles é a mesmana constituição do indicador:

1. Duração da gestão do diretor;2. Recebimento e utilização da Revista Manuelzão pelas escolas;3. Conhecimento de bacia hidrográfica;4. Elaboração de projetos socioambientais;5. Continuidade de projetos socioambientais ao longo do tempo.

As escolas da bacia do rio das Velhas foram avaliadas, recebendo umanota de acordo com o indicador de educação ambiental. Para cada um doscinco quesitos que o compõem, a escola recebeu de zero a dois pontos, tota-lizando 10 pontos (Tabela 1). As escolas também foram agrupadas em perfis

128

Figura 1: Sub-bacias do rio das Velhas. Fonte: Acervo Projeto Manuelzão.

Tabela 1: Critérios usados para a distribuição de pontos de acordo comcada componente do indicador de educação ambiental.

*Para cada componente, a escola que não forneceu resposta à questão proposta também rece-beu nota zero.

129

de educação ambiental – insuficiente, regular, bom e ótimo – segundo a pon-tuação obtida (Tabela 2).

3. Resultados

A duração da gestão do diretor na maioria das escolas (58%) é de um aquatro anos. Essas escolas receberam nota um. Em 20% das escolas, o diretorestá há menos de um ano neste cargo, e por isso tiveram nota zero. E em 22%das escolas, o diretor está há mais de quatro anos e, assim, obtiveram notadois.

A duração da gestão do diretor influi diretamente na elaboração de pro-jetos socioambientais (Tabela 3). Constatou-se que no grupo de escolas cujo

Tabela 2: Pontuação equivalente a cada perfil de educação ambiental.

diretor está há mais de quatro anos, a porcentagem de projetos elaborados foimaior (72%). No grupo de escolas cujo diretor está entre um e quatro anos,a porcentagem de desenvolvimento de projetos foi um pouco menor (54%).E no grupo de escolas cujo diretor está há menos de um ano, a porcentagemfoi ainda menor (19%) (Gráfico 1). Da mesma forma, a duração da gestão dodiretor também tem influência direta sobre a continuidade desses projetos(Tabela 4).

Tabela 3: Duração da gestão do diretor e elaboração de projetos

Tabela 4: Duração da gestão do diretor e continuidade dos projetos

p = 0,0284

Gráfico 1: Relação entre a elaboração de projetos socioambientais e duração da gestão dodiretor.

130

p<0,0001

As escolas estaduais mantêm seus diretores por mais tempo no cargo doque as municipais o fazem (Tabela 5), e também a elaboração de projetos nasescolas estaduais é maior (79%) do que nas municipais (69%) (Tabela 6). Jáas escolas municipais, apesar de, comparativamente às estaduais, manteremos diretores no cargo por menos tempo, apresentam maior continuidade dosseus projetos socioambientais (38%) que as estaduais (26%) (Tabela 7).

A maioria das escolas (64%) recebem e utilizam a Revista Manuelzão emsala de aula, e por isso receberam nota dois. Somente 14% das escolas as rece-bem, mas não as utilizam, e tiveram então nota um. E 22% das escolas nãorecebem a revista, e, assim, tiveram nota zero.

Cerca de 60% das escolas não sabem em qual sub-bacia do rio das Velhasa escola se localiza, e por isso tiveram nota zero. Enquanto 40% sabem, e,assim, obtiveram nota dois.

74% das escolas desenvolvem projetos socioambientais, e por isso rece-

Tabela 5: Distribuição das escolas estaduais e municipais quanto àduração da gestão do diretor.

p<0,0001

Tabela 6: Distribuição das escolas estaduais e municipais quanto àelaboração de projetos socioambientais.

p = 0,0531

Tabela 7: Distribuição das escolas estaduais e municipais quanto àcontinuidade dos projetos socioambientais.

p = 0,019

131

beram nota dois. Somente 26% não desenvolvem; assim, obtiveram notazero.

Do total de projetos desenvolvidos, 44% têm continuidade, ou seja, sãodesenvolvidos há mais de um ano, e por isso tiveram nota dois. E 56% dasescolas não têm continuidade dos seus projetos, e, assim, obtiveram notazero.

Pela somatória das notas de cada um dos cinco componentes do indica-dor, as escolas obtiveram notas de zero a 10. A distribuição das escolas deacordo com as notas obtidas é do tipo gaussiana, onde há predomínio dasnotas médias, com pequeno desvio à direita (Gráfico 2).

Entre as escolas, 9% pertencem ao perfil insuficiente, com nota zero ouum; 29% pertencem ao perfil regular, com dois a quatro pontos; 47% dasescolas pertencem ao perfil bom, com cinco a sete pontos; e 15% pertencemao perfil ótimo, com oito a 10 pontos (Gráfico 3). A maior parte das escolas(62%) situam-se no perfil bom/ótimo de educação ambiental, desempenhoem educação ambiental considerado satisfatório pela metodologia utilizada.

Não houve diferença estatisticamente significativa entre a contribuiçãode escolas estaduais e municipais em cada um dos perfis de educaçãoambiental (Tabela 8).

As escolas estaduais e municipais foram comparadas sob cada um doscomponentes do indicador de educação ambiental (Tabela 9). Elas são seme-lhantes quanto ao recebimento e utilização da Revista Manuelzão e quantoao conhecimento de bacia hidrográfica. As estaduais se destacam quanto à

Gráfico 2: Distribuição das 369 escolas quanto à nota total obtida pelo indicador de educaçãoambiental.

132

duração da gestão do diretor e quanto à elaboração de projetos socioambien-tais. Já as escolas municipais têm desempenho superior quanto à continuida-de de projetos socioambientais.

Gráfico 3: Distribuição das escolas por perfil de educação ambiental.

Tabela 8: Distribuição das escolas estaduais e municipais de acordocom o perfil de educação ambiental.

p = 0,2575

133

Tabela 9: Nota média obtida pelas escolas estaduais e municipais emcada um dos componentes do indicador de educação ambiental.

4. Discussão

EDUCAÇÃO AMBIENTAL: Em 1977, durante a primeira ConferênciaIntergovernamental sobre Educação Ambiental, foram elaborados os objeti-vos, princípios, estratégias e recomendações para a educação ambiental. Eladeveria ser atividade contínua, interdisciplinar, pluridimensional, ser voltadapara a participação social e para a solução de problemas ambientais, e aindavisar a mudança de valores, atitudes e comportamentos sociais. Em 1990, oRelatório Nosso Futuro Comum – Brundtland apresentou o conceito dedesenvolvimento sustentável, onde a educação ambiental se destaca comoalavanca indispensável para sua construção (Lima, 1999). A educaçãoambiental promovida pelo Projeto Manuelzão atua de maneira concordantecom os valores determinados pelos documentos e encontros ambientaisinternacionais.

O Projeto Manuelzão almeja a mudança de compor-tamento e hábitos através de educação ambiental compro-metida com a formação da cidadania, procurando incor-porar o sentimento de pertencimento, ou seja, de quefazemos parte do ambiente seja ele construído ou natural,que dele dependemos para a nossa existência, e que somosos agentes do processo da sua transformação e da sua pre-servação (Polignano in Goulart et al, 2005).

A consciência ecológica, que se manifesta, principalmente, como com-preensão intelectual de uma realidade, desencadeia e materializa ações e sen-timentos que atingem, em última instância, as relações sociais e as relaçõesdos homens com a natureza abrangente (Lima, 1998). Essa consciência jáchegou à escola e muitas iniciativas têm sido tomadas em torno dessa ques-tão, por educadores de todo o país. Por essas razões, vê-se a importância deincluir Meio Ambiente nos currículos escolares como tema transversal, per-meando toda prática educacional. É fundamental, na sua abordagem, consi-derar os aspectos físicos e biológicos e, principalmente, os modos de intera-ção do ser humano com a natureza (Brasil, 1996).

DURAÇÃO DA GESTÃO DO DIRETOR: Trabalhos de pesquisa deescolas de muitos países procuram compreender, elucidar e propor soluçõespara o fracasso escolar. Eles apontam para uma coisa em comum: o reconhe-cimento da figura do diretor como fator essencial para a implantação e odesenvolvimento de qualquer inovação pedagógica, e também para o suces-

134

so e/ou continuidade dos referidos programas. Hierarquicamente, o diretorocupa uma posição peculiar, uma vez que pode legitimar para a comunidadeas iniciativas e ações do professorado e da instituição. O diretor pode criar,permitir ou tolerar a abertura de novos espaços necessários à transformaçãodo cotidiano escolar. A ação do diretor mostra-se fundamental, igualmente,na constituição da rede de relações e ações que constitui o tecido socioinsti-tucional no qual o aluno se insere (Lima, 1992).

Para cumprir as propostas de sua gestão, o diretor deve, a priori, manter-se no cargo tempo suficiente para executá-las. Dessa maneira, em concordân-cia com os resultados obtidos nesta pesquisa, quanto maior o tempo do dire-tor no cargo, maior é a elaboração de projetos socioambientais e também acontinuidade dos mesmos.

REVISTA MANUELZÃO: A Revista Manuelzão, desde sua criação em1997, ultrapassa a mera perspectiva da divulgação de atividades e transmis-são de informações, e viabiliza iniciativas autônomas da população, qualifi-ca a intervenção dos diferentes agentes sociais e alimenta o estabelecimentode novas parcerias para o desenvolvimento do Projeto (Lisboa et al, 2008).

Bimestralmente, 25.000 exemplares da Revista Manuelzão são distribuí-dos diretamente às escolas públicas da bacia do rio das Velhas. A revista éfonte de informação, mobilização e pesquisa para toda a população e, espe-cialmente, para a comunidade escolar. O conhecimento nela contido pode serpotencializado e adaptado para alunos de todas as idades, tornando-a ummaterial didático valioso no dia-a-dia da escola. A distribuição tem sido efi-ciente, atingindo 78% das escolas estudadas. 82% daquelas que a recebemtambém a utilizam, ou seja, o aproveitamento da Revista como materialparadidático é bastante satisfatório.

BACIA HIDROGRÁFICA: O Projeto Manuelzão tem como território deação a bacia hidrográfica do rio das Velhas, e acredita que a água é um ele-mento integrador, capaz de determinar a identidade de um povo, pela íntimarelação estabelecida com o rio. O conceito de território delimitado pelaságuas é abrangente e inovador, não sendo reconhecido pela divisão políticaadministrativa do país.

A opção de ter como objeto uma bacia hidrográficareside no fato de que ela representa uma unidade de diag-nóstico, de planejamento, de organização, de ação e deavaliação de resultados. A bacia permite integrar naturezae história, meio ambiente e relações sociais, possibilitandoque um complexo sistema social seja referenciado na bio-

135

136

diversidade dos corpos d’água da bacia (Lisboa in Goulartet al, 2005).

Dessa maneira o conhecimento de bacia hidrográfica tem o intuito derevelar o mínimo grau de identificação da comunidade com essa linha depensamento. 40% das escolas sabem a qual sub-bacia do rio das Velhas per-tencem. Mais escolas identificam o rio das Velhas, mas não seus afluentes,que certamente estão mais próximos de onde vivem e com os quais deveriamter maior relação.

PROJETOS SOCIOAMBIENTAIS E CONTINUIDADE: A organizaçãode projetos se constitui como a construção de uma prática pedagógica centra-da na formação integral dos alunos. O projeto é um conjunto de tarefas quetendem a um progressivo envolvimento individual e social do aluno nas ati-vidades empreendidas voluntariamente, por ele e pelo grupo, sob a coordena-

Leitura da revista Manuelzão, por alunos da bacia do rio das Velhas. Foto: Procópio de Castro

ção do professor. Um projeto situa-se como uma proposta de intervençãopedagógica que dá à atividade de aprender um sentido novo, no qual a apren-dizagem aflora na tentativa de se resolver situações problemáticas. Um proje-to favorece a construção da autonomia e da autodisciplina por meio de situa-ções criadas em sala de aula. A reflexão, a discussão e a tomada de decisão pro-porcionam ao aluno, ainda, a implementação do seu compromisso com osocial, tornando-o sujeito do seu próprio conhecimento (Portes, 2010). 74%das escolas estudadas desenvolvem projetos socioambientais, o que sinalizapara um caminho efetivo de conscientização e mudança de atitude.

A continuidade do projeto socioambiental, desenvolvido ao longo dosanos, demonstra ser condizente com a realidade da escola, produz resultadose, por isso, se mantém como estratégia pedagógica. 44% das escolas quedesenvolvem projetos lhes dão continuidade, ou seja, eles são desenvolvidoshá mais de um ano.

INDICADORES: Indicadores são instrumentos de verificação do alcan-ce dos objetivos formulados. Eles devem expressar, de forma quantitativa equalitativa, mudança de uma condição específica ou situação dada (Simião,2008).

A utilização de indicadores como instrumentos de mensuração de aspec-tos da realidade e das práticas se dá nas diversas práticas sociais, políticas,culturais e econômicas. Apesar de os indicadores serem considerados muitosintéticos, imperfeitos e sujeitos a interpretações, reside justamente nessasíntese a capacidade de eles produzirem imagens ou mensagens poderosas,ampliando a percepção que as pessoas têm da questão. A possibilidade decomparação rápida, imediata e significativa aproxima as pessoas do indica-dor, gera reações e permite que se reflita a partir dele. Em torno dos indica-dores, podem ser gestadas e orientadas ações, projetos, programas e estraté-gias (Varelli, 2001).

Somando os pontos obtidos em cada um dos cinco componentes doindicador de educação ambiental, as escolas da bacia do rio das Velhas alcan-çaram nota de zero a 10. Essa pontuação reflete o grau de envolvimento daescola com a educação ambiental, pelas diversas maneiras de inserir essaquestão no ensino, seja pela elaboração de projetos, pela utilização de mate-riais paradidáticos nessa área ou pela utilização do conceito de bacia hidro-gráfica como integrador do cidadão ao seu ambiente. Os critérios escolhidospara a composição do indicador e o valor atribuído a cada um deles resulta-ram em um padrão de distribuição das escolas por pontuação, onde umpequeno número de escolas preencheu poucos quesitos, e por isso obtevepontuação baixa; a maior parte cumpriu medianamente os quesitos propos-

137

138

tos, e teve pontuação média; e um terceiro grupo limitado preencheu muitosquesitos, e por isso teve melhor pontuação. Essa reflexão permite inferir queo indicador de educação ambiental proposto foi adequado, permitindo dife-renciar as escolas com distintos perfis de educação ambiental: 62% das esco-las apresentaram perfil bom ou ótimo de educação ambiental, perfis conside-rados satisfatórios;. 29% pertencem ao perfil regular e apenas 9% pertencemao perfil insuficiente. Esse resultado reflete o esforço referente à conscienti-zação e mobilização em torno da bacia do rio das Velhas.

O indicador proposto neste trabalho poderá sofrer aperfeiçoamentos nosentido de valorizar resultados intermediários quanto aos quesitos conheci-mento de bacia hidrográfica, elaboração de projetos socioambientais e conti-nuidade de projetos.

5. Conclusão

As escolas públicas da bacia do rio das Velhas caracterizam-se de modogeral por manterem seus diretores por 1 a 4 anos no cargo, terem amplo aces-so à Revista Manuelzão e a utilizarem como material paradidático, por nãoapresentarem muito conhecimento de bacia hidrográfica, por desenvolverem

Aula prática de educação ambiental em horta escolar. Foto: Acervo Projeto Manuelzão.

139

projetos socioambientais de forma consistente e conservarem pouco os pro-jetos ao longo dos anos.

Por meio da amostra analisada, é possível concluir que as escolas públi-cas da bacia do rio das Velhas estão medianamente mobilizadas e atentas àquestão ambiental, sendo que 62% das escolas estudadas obtiveram perfilbom/ótimo de educação ambiental. 29% pertencem ao perfil regular e ape-nas 9% pertencem ao perfil insuficiente. Escolas estaduais e municipais dis-tribuem-se igualmente pelos diversos perfis, recebem e utilizam a RevistaManuelzão igualmente e conhecem a bacia hidrográfica da mesma maneira.As estaduais têm maior duração da gestão do diretor e elaboram mais proje-tos. As municipais têm maior continuidade de projetos.

O indicador utilizado foi fundamental para essa análise e forneceu umpanorama da educação ambiental na bacia do rio das Velhas. Ele indicou aparcela de contribuição do Projeto Manuelzão para a mobilização e engaja-mento das escolas à questão ambiental e também mostrou o grau de organi-zação da própria escola no desenvolvimento dessa temática em seu cotidia-no.

Referências bibliográficas

BRASIL. Temas transversais: Meio Ambiente. Ministério de Educação e do Desporto– MEC. 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/meioambiente.pdf>. Acesso em: 19/08/2010;

FERNANDEZ, Fernando A.S. (2005). Aprendendo a lição de Chaco Canyon: do"Desenvolvimento Sustentável" a uma Vida Sustentável. Instituto Ethos Reflexão,15: 1-19;

GOULART, Eugênio Marcos Andrade. Navegando o Rio das Velhas das minas aos gerais.Belo Horizonte: Projeto Manuelzão/UFMG, 2005;

LIMA, Elvira Cristina de Azevedo Souza. A Escola e Seu Diretor: algumas reflexões.Artigo da Série Ideias n. 12. São Paulo: FDE, 1992. Páginas: 117-124;

LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. Consciência ecológica: emergência, obstáculos edesafios. Rev. Eletrônica “Política e trabalho” – setembro, 1998. pp139-154;

LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. Questão ambiental e educação: contribuições parao debate. Ambiente & Sociedade, NEPAM/UNICAMP, Campinas, ano II, nº 5, 135-153, 1999;

LISBOA, Apolo Heringer; GOULART, Eugênio Marcos Andrade; DINIZ, LetíciaFernandes Malloy. Projeto Manuelzão: a história da mobilização que começou emtorno de um rio. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy, 2008;

140

MINAS GERAIS, Secretaria de Estado de Educação. Lista de Escolas. https://www.educacao.mg.gov.br/escolas/lista-de-escolas. Acesso em 2008.

PORTES, Kátia Aparecida Campos. A organização do currículo por projetos de trabalho,2010;

SIMIÃO, Daniel S. Elaboração de Projetos Sociais: Metodologia e Técnicas. BeloHorizonte. CECAPS, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG, 2008;

VARELLI, Leandro Lamas. Um panorama sobre o estado da arte do debate sobre indicado-res. Rio de Janeiro: GT Indicadores Plataforma NOVIB, 2001.

A poluição na bacia aéreada Região Metropolitana de Belo Horizontee sua repercussão na saúde da população

Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina daUniversidade Federal de Minas Gerais – Doutor em Medicina – Coordenador do Projeto

Manuelzão

1. Introdução

Oar é vital para a manutenção da vida. Guardadas as devidasdiferenças entre metabolismos, pode-se dizer que um serhumano é capaz de permanecer 70 dias sem comida, uns setedias sem água e não mais que sete minutos sem ar.

A poluição do ar pode ser definida como a liberação na atmosfera dequalquer substância (partículas ou gases) que altere a constituição natural doar, afetando negativamente espécies animais (sobretudo o homem) e vege-tais, ou provocando modificações físico-químicas indesejáveis em espéciesminerais.

Estudos realizados em todo o mundo, especialmente nos últimos 50anos, apontam associações positivas entre a exposição aos contaminantes doar atmosférico, sobretudo nas áreas urbanas, e os efeitos adversos à saúde. Oscontaminantes provenientes principalmente da queima de combustíveis fós-seis, em especial o material particulado (PM 10 e PM 2,5μ), o dióxido deenxofre, os óxidos nitrosos, o monóxido de carbono, o chumbo, além do ozô-nio, são os mais importantes e comprovadamente nocivos. Existem outroscontaminantes presentes no ar das cidades, como os compostos orgânicosvoláteis e os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, porém, seus impactosna saúde não estão devidamente documentados. Materiais particuladosultrafinos e constituintes importantes das partículas, como os metais, estãotambém envolvidos.

O quadro 1 sintetiza os principais poluentes, suas fontes, processos deemissão e efeitos ambientais e sanitários.

O exemplo clássico sobre os efeitos da poluição do ar na saúde é o queocorreu em Londres, em 1952, quando cinco dias de elevadíssimos níveis de

141

Quadro 1 - Principais poluentes

142

poluentes no ar acarretaram acentuado aumento nas taxas de mortalidadepor doenças cardíacas e respiratórias durante algumas semanas, e que perma-neceram acima do esperado por vários meses.

As crianças, os idosos e os portadores de doenças cardíacas e respiratóriasestão entre os grupos mais suscetíveis aos efeitos adversos da contaminaçãodo ar. Para separar os efeitos do tabagismo e do ambiente de trabalho sobre asaúde, os estudos em crianças são os mais indicados, embora limitados pelofato de que muitas doenças só se manifestam após décadas de exposição àpoluição atmosférica.

Os efeitos na saúde, em termos gerais, vão desde leves, agudos e passa-geiros distúrbios fisiológicos, até graves, crônicos e prolongados, que podemculminar com a morte. Estudos de séries temporais realizados em diferentespopulações mais expostas à poluição do ar confirmam um excesso de morta-lidade por doenças respiratórias e cardiovasculares. As internações hospitala-res e os atendimentos de emergência por tais causas aumentam quando háepisódios de elevação dos níveis de contaminação do ar. Estudos recentesapontam a associação de poluição do ar e crescimento intra-uterino restrito,prematuridade e baixo peso ao nascimento. Baixo peso ao nascer é definidocomo peso ao nascimento inferior a 2500 gramas, parto prematuro, o queocorre antes de 37 semanas completas de gestação; e feto com crescimentointra-uterino restrito, aquele com peso ao nascimento menor do que o per-centil 10 para a idade gestacional.

A explicação fisiopatológica para esses efeitos é atribuída à inflamaçãodas vias aéreas através do mecanismo pelo qual a contaminação do ar afetao sistema respiratório e, indiretamente, o cardiovascular, com a consequentediminuição da função pulmonar e das variações do ritmo cardíaco. Para obaixo peso ao nascimento admite-se que a inalação de partículas aumente aviscosidade sanguínea, o que pode ter efeito adverso na função placentária,reduzindo o crescimento fetal.

O material particulado (PM 10 e 2,5μ), como já mencionado, é um dosprincipais poluentes responsáveis pelos efeitos nocivos à saúde e consistenuma complexa mistura de materiais advindos principalmente da queima doóleo diesel combustível e conhecido pela sigla DEP´s – diesel exhaust particles.

Esses materiais são capazes de danificar a mucosa brônquica, aumentan-do a permeabilidade epitelial e reduzindo a atividade ciliar protetora. Essesefeitos permitem um maior contato de alérgenos com o sistema imunológi-co através da mucosa respiratória, provocando doenças como a asma, a bron-quite e a rinite alérgica.

O crescimento da população urbana – fenômeno mundial –, mais acen-

143

tuado nas periferias das grandes cidades de países subdesenvolvidos, além docrescimento vertiginoso do número de veículos automotores, tem causadomaior exposição das pessoas aos contaminantes do ar.

2. A bacia aérea como unidade de controle ambiental

Assim como a água que se distribui no território em forma de bacia (abacia hidrográfica), também o ar apresenta uma dispersão por uma área geo-gráfica conhecida como bacia aérea. Na Região Metropolitana de BeloHorizonte, a bacia aérea é conformada pelo cinturão das serras do Curral DelRei e da Moeda, ao Sul, e o complexo do Espinhaço, ao Norte. Nesse corre-dor, onde o vento circula predominantemente no sentido leste-oeste, ospoluentes atmosféricos se concentram na região do Barreiro, em BeloHorizonte, região industrial de Contagem e centro de Betim.

Essa concentração de poluentes é resultado da emissão de fontes fixas(indústrias) e móveis (veículos automotores), que, dependendo do seu nívelde concentração, satura a bacia aérea desse material, dada a dificuldade dedispersão. Essa saturação, conhecida como Conceito Bolha (Bubble Concept),já vem sendo aplicada nos EUA desde 1979 e, desde 1985, pelo estado de São

144

Poluição do ar nas proximidades da área industrial de Contagem na área da bacia aérea daRegião Metropolitana de Belo Horizonte. Foto: Acervo Projeto Manuelzão.

Paulo (Ferling, 2008). A aplicação desse conceito em Minas Gerais, através daFundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM, seria um instrumento decontrole da poluição atmosférica, ao regular o crescimento e a qualidade dafrota veicular e na implantação de empreendimentos industriais de altoimpacto na emissão de poluentes.

3. A situação na Região Metropolitana de Belo Horizonte

A Região Metropolitana de Belo Horizonte apresentou, nas últimasdécadas, um grande e desordenado crescimento, com aumento expressivo deseu parque veicular, o que tem provocado uma progressiva deterioração daqualidade do ar. Além do crescimento do número absoluto de veículos, épreocupante observar o percentual cada vez maior de motocicletas em circu-lação, uma vez que a emissão de poluentes deste tipo de veículo é, em média,de oito a vinte vezes maior que a de um automóvel. Dados do monitora-mento ambiental de anos anteriores revelam as dimensões do problema,especialmente nos meses de inverno e início da primavera, quando as con-centrações diárias do material particulado em suspensão na atmosfera che-gam a superar os parâmetros estabelecidos pela legislação. Nessa época doano, a baixa umidade relativa do ar, a névoa seca, a inversão térmica e, mui-tas vezes, a baixa velocidade dos ventos ocorrem simultaneamente. A quali-dade do ar pode então se tornar crítica pela maior dificuldade de dispersãovertical (gradiente térmico) e horizontal (falta de vento) dos poluentes.

Embora a situação de Belo Horizonte não possa ser considerada alar-mante, os níveis considerados toleráveis pela Organização Mundial de Saúdetêm sido ultrapassados em alguns pontos da região metropolitana, como emContagem e Betim, principalmente. Mesmo quando os níveis de poluentesatendem os critérios de qualidade do ar, alguns efeitos podem ser observadosnas pessoas mais suscetíveis.

Evidentemente, toda a população está exposta à poluição atmosférica,mas, como mencionado acima, a parcela mais vulnerável está representadapelos idosos, crianças e doentes crônicos. Considerando-se todas as idades,observa-se que as internações por doenças respiratórias foram a segundacausa de internação em Belo Horizonte durante o ano de 2002, superandoaté mesmo as doenças cardiovasculares. No grupo de crianças com até 14anos, as causas respiratórias representam o principal motivo de internação,sendo responsáveis por mais de 50% das internações entre crianças de 1 a 4anos de idade.

Fatores familiares e sócio-demográficos também contribuem para o

145

incremento da incidência das doenças respiratórias. Dados de internaçãohospitalar de residentes na cidade de Belo Horizonte, no ano de 2002, mos-tram que 18% das crianças de 0-5 anos internadas com diagnóstico de pneu-monia e/ou bronquite são moradoras do Barreiro, sabidamente uma regiãocom altos índices de poluição atmosférica. (Tabela 1.)

Um grupo interdisciplinar do Projeto Manuelzão, composto por médi-cos, engenheiros, arquiteto e climatologista, denominado Ar & Saúde, emsua maioria professores da Universidade Federal de Minas Gerais, realizouum estudo, em 2007, comparando os efeitos da poluição do ar em criançasde 6 a 8 anos residentes nos municípios de Betim e Belo Horizonte. Os resul-tados apontaram maior prevalência de asma e rinite alérgica nas criançasresidentes em Betim, onde os índices de contaminação do ar são os mais ele-vados da região metropolitana (Radicch & cols., 2007).

4. O controle da qualidade do ar na Região Metropolitana

Existem nove estações automáticas de controle da qualidade do ar naregião metropolitana de Belo Horizonte, com as seguintes localizações:Aeroporto Carlos Prates/Belo Horizonte, Praça Rui Barbosa/Belo Horizonte,

146

Incêndio em fábrica de reciclagem de plásticos, com grande emissão de partículas na cidadede Matozinhos – Região Metropolitana de Belo Horizonte. Foto: Procópio de Castro.

Avenida Amazonas/Belo Horizonte, Tancredo Neves/Contagem, RodoviaRenato Azeredo/Ibirité, Jardim das Alterosas/Betim, Cascata/Betim,Petrovale/Betim e Centro Administrativo/Betim. Essas estações medem osseguintes poluentes: Material Particulado, Ozônio, Dióxido de Enxofre,Monóxido de Carbono e Dióxido de Nitrogênio, além dos parâmetrosmeteorológicos: velocidade e direção dos ventos, temperatura e umidade rela-tiva do ar.

Os índices de qualidade do ar são apresentados pelo quadro 2:

5. Perspectivas

O controle da poluição do ar representa uma importante oportunidadede prevenir doenças, sobretudo as pulmonares e cardiovasculares, e diminuira sua letalidade.

Medidas que reduzam a emissão de poluentes, tais como estímulo aotransporte coletivo (sobretudo implantação de trem metropolitano), melho-

Tabela 1 – Distribuição das internações por algumas causasrespiratórias em crianças de 0 a 5 anos no ano de 2002.

Belo Horizonte, Minas Gerais.

Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte

147

148

ria da qualidade dos combustíveis, substituição por energias menos poluen-tes (etanol, energia eólica e solar), melhoria dos processos industriais eimplantação de eficientes filtros são fundamentais para melhorar a qualida-de do ar e acarretar a consequente melhora da qualidade de saúde e vida.

Referências Bibliográficas

FERLING, F. F. Gestão de bacias aéreas como instrumento de gestão ambiental: estudo decaso em projetos de geração de energia no Estado de São Paulo, Dissertação, EscolaPolitécnica da Universidade de São Paulo, 2008.

RADICCHI, A. L. A.; FILOGONIO, C. J. B.; SCHAWABE, W. K.; RIBEIRO, C. M. ;MACEDO, M. I. A. . Estudo de prevalência da asma e rinite alérgica em crianças resi-dentes em Belo Horizonte e Betim e sua relação com a poluição do ar. In: 24ºCongresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental, 2007, Belo Horizonte.Anais do 24º Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental, 2007.

RADICCHI, A. L. A.; SENNA, M. I. B.; CAMARGOS, P. A. M.; SCHAWABE, W. K.Estudo de tendência da asma e rinite alérgica em crianças residentes em duas áreasgeográficas com diferentes níveis de poluição do ar, Ibirité/MG. In: 11º CongressoMundial de Saúde Pública, 2006, Rio de Janeiro. Revista Ciência e Saúde Coletiva. Riode Janeiro: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 2006. v.Anais.

Quadro 2 - Qualidade do Ar na Região Metropolitana de BH.

Fonte: EPA/2009

149

Agrotóxicos no Brasil: a saúde dotrabalhador e a saúde ambiental sob risco

Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina daUniversidade Federal de Minas Gerais – Doutor em Medicina – Coordenador do Projeto

Manuelzão

Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina daUniversidade Federal de Minas Gerais – Doutora em Saúde Coletiva

Professora do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicasda Universidade Federal de Minas Gerais – Doutora Microbiologia e Imunologia

Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina daUniversidade Federal de Minas Gerais – Mestre em Medicina do Trabalho

1. Contextualizando o uso de agrotóxicos

Ouso de agrotóxicos e seus impactos à saúde humana e ao meioambiente têm se constituído numa relevante e desafiantequestão para a Saúde Coletiva/Saúde Pública, não só noBrasil, mas também internacionalmente. Agrotóxicos têm

sido usados de forma crescente e intensa em diversos países, apresentandocaracterísticas gerais/globais e específicas/regionais. Centenas de substânciasquímicas estão no mercado, sendo aplicadas através de diversos meios, sobvariadas condições e para diferentes finalidades. Milhões de trabalhadores eextensas populações estão expostos a estas substâncias, bem como o meioambiente em geral sofre seus impactos dado a sua possibilidade de dissemi-nação sistêmica e a ontaminação daságua da bacia hidrográfica. Por outrolado, existem políticas públicas e um grande aparato legal e jurídico regula-mentando seu uso e suas possíveis conseqüências. Hoje estamos sujeitos aosefeitos dos agrotóxicos, direta ou indiretamente, enquanto trabalhadorese/ou enquanto consumidores, habitando tanto nas cidades quanto nos cam-pos. Portanto, é uma questão que diz respeito a todos.

Por sua vez, este tema é extremamente polêmico, já que é permeado poruma ampla gama de conflitos de interesse envolvendo dimensões de nature-za política, econômica, social, científica, técnica, cultural e ideológica. A mer-cadoria agrotóxico tem distribuição mundial e movimenta um frenéticomercado de bilhões de dólares. Nesse cenário não houve nem há consenso deposicionamentos e entendimentos.

A humanidade, desde os seus primórdios, convive com a presença depragas nas suas atividades agropecuárias. O uso de substâncias químicas,como o arsênio e a nicotina, é milenar no combate às pragas. No século pas-sado desenvolveu-se uma série de produtos químicos que foram largamenteusados como armas na II Guerra Mundial (LariniI,1999; Ecobichon, 2001).Eram eficazes nos seus propósitos de exterminar pessoas e rebanhos, além decontaminarem pastagens, alimentos, solo, ar e mananciais de água. Após otérmino da II Guerra Mundial, houve a “conversão” e “adaptação” dessasfinalidades e as mesmas substâncias passaram a ser utilizadas intensamentena agricultura (eliminação e prevenção de pragas) e na saúde pública (contro-le de vetores). Os agrotóxicos passaram a fazer parte do receituário de ummovimento mais amplo, conhecido mundialmente como Revolução Verde, etambém das ações de saúde pública.

Nos anos de 1960, o Brasil passou a reproduzir o modelo da RevoluçãoVerde e o da Saúde Pública americana em seu território, tendo sido os mes-mos fortemente incorporados pela ditadura militar de 1964. É neste cenáriopolítico de restrita participação da sociedade civil, de grande expansão eco-nômica e reorganização produtiva do capital que os agrotóxicos foram sendoincorporados no cotidiano dos campos e das cidades e, concomitantemente,produziram-se também as primeiras estatísticas de seus impactos na saúdehumana e no meio ambiente. Nas atividades agropecuárias vinculadas aoagronegócio passaram a ser intensa e extensamente utilizados os agrotóxi-cos. Todavia, também nas pequenas e médias propriedades e nos assenta-mentos rurais se tem observado a presença maciça desses produtos nos pro-cessos de cultivo. (Pinheiro,1985; Faria, 2000; Silva, 2000; Castro, 2011).

Esse mercado se expandiu progressivamente e o Brasil é hoje o maiorconsumidor mundial de agrotóxicos. Segundo a ANVISA – AssociaçãoBrasileira de Vigilância Sanitária, em 2009 havia no mercado brasileiro maisde 470 princípios ativos de agrotóxicos em mais de 1.000 apresentações deprodutos. Diga-se de passagem, o Brasil é também o maior consumidor deprodutos já banidos do mercado em outros países por motivos de perigo àsaúde e ao meio ambiente (Frazier, 2010; Londres, 2011). Se houve uma notó-ria expansão da agropecuária química, tem havido também um crescente

150

movimento de resistência e de busca de práticas alternativas ao uso de agro-tóxico, que encontra eco nos movimentos sociais do campo, organizaçõesnão governamentais ligadas ao meio ambiente, universidades, institutos depesquisa, setores governamentais e no parlamento.

Se as estatísticas quanto ao avanço da produção e do uso são exuberan-tes, o mesmo se pode dizer de seus impactos negativos. Todavia, pouco seconhece sobre a extensão e magnitude de seus danos à saúde humana e aomeio ambiente, sobretudo quanto aos seus efeitos crônicos. As estatísticasdos riscos e dos agravos são imprecisas, parciais, fragmentadas e não refletema realidade (Oliveira et alii, 2003, Silva et al, 2005). Por sua vez, a limitadainformação disponível pouco é utilizada para a análise, a tomada de decisão,o planejamento, a execução, o acompanhamento e a avaliação das políticaspúblicas adotadas.

Inúmeros estudos epidemiológicos, clínicos, laboratoriais e ambientaistêm sido desenvolvidos ao longo dos anos, tentando elucidar os impactosprovocados pela exposição e intoxicação por agrotóxicos na populaçãohumana e no meio ambiente (Pinheiro,1986; Silva, 2000; Silva, 2007).

Esses são apenas alguns dos ingredientes do cenário desafiante dos agro-tóxicos no Brasil.

Neste capítulo pretende-se abordar a questão dos agrotóxicos sob o olhar

151

Aplicação de agrotóxico com uso correto de Equipamento deProteção Individual – EPI.Foto: Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

do campo da Saúde Coletiva e da Saúde do Trabalhador, enfocando aspectosepidemiológicos e ocupacionais.

2. A epidemiologia

Do ponto de vista ocupacional, diversas categorias de trabalhadorespodem estar expostas a agrotóxicos, dentre as quais podemos citar e desta-car: trabalhadores das indústrias produtoras, dos setores de transporte, dearmazenamento e de comércio desses químicos; trabalhadores rurais; jardi-neiros e trabalhadores de floricultura; trabalhadores da saúde pública; deempresas de desinsetização e do setor moveleiro. Deve-se destacar que traba-lhadores de qualquer atividade econômica que tenham tido seus ambientesde trabalho desinsetizados ou pulverizados também podem estar expostos aagrotóxicos.

A população em geral pode estar exposta a agrotóxicos através do con-sumo de alimentos ou através do contato com a água, o solo e o ar contami-nados.

Estima-se que o contingente de trabalhadores rurais no mundo seja emtorno de 1.300.000.000, e que intoxicações por agrotóxicos representem cercade 14% de todos os agravos ocupacionais (Palis et al, 2006).

Cerca de 70% das intoxicações ocorrem nos países “subdesenvolvidos”,embora estes sejam responsáveis só por 30% do consumo (OMS, 1990). Esteaparente paradoxo e inversão epidemiológica podem ter várias explicaçõesdentre as quais lista-se: legislações menos restritivas à produção, comerciali-zação e o uso de agrotóxicos (utilização de produtos altamente tóxicos, peri-gosos e já banidos de mercados nos países centrais); deficiências nas ações devigilância, fiscalização e de atenção à saúde (promoção, prevenção, trata-mento); e populações em condições de grande vulnerabilidade (condições detrabalho inadequadas, dificuldade de acesso à informação, restrito nível decidadania e de seguridade social).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava que ocorriam cercade 3 milhões de intoxicações agudas, 700.000 casos crônicos, 75.000 casos decâncer e 220.000 óbitos devido a agrotóxicos por ano no mundo (Who, 1990).

Os dados estatísticos brasileiros são extremamente precários e subesti-mam a real dimensão do problema. Peres et al. (2000) relatam que, para cadacaso notificado de intoxicação por agrotóxico, existem 50 que não o são.

Segundo as estatísticas dos Centros de Intoxicação e Apoio Toxicológico(CIAT), para o ano de 2009 no Brasil registrou-se que 10,5% de seus casosatendidos se relacionam a intoxicações por agrotóxicos. (SINITOX, 2012).

152

Existe outra ordem de preocupação que se refere aos custos decorrentesdos agravos provocados pelos agrotóxicos às pessoas e ao meio ambiente.Soares e Porto (2012) analisaram os impactos provocados apenas pelas into-xicações agudas no estado do Paraná nos anos de 1998 e 1999, e concluíramque este custo seria de US$ 149 milhões. Aqui não estão computados osdanos decorrentes das intoxicações crônicas nem os danos ambientais.

3. Os produtos agrotóxicos

Agrotóxicos são também conhecidos como pesticidas, praguicidas edefensivos agrícolas. Os ambientalistas e profissionais de saúde dos trabalha-dores consideram mais adequado o termo agrotóxico por julgarem que essesprodutos são essencialmente tóxicos. Já os fabricantes, comerciantes e gran-des produtores rurais se referem aos mesmos como defensivos agrícolas,numa postura mais favorável ao seu uso. O Estado e a legislação brasileiraadotam majoritariamente o termo agrotóxico. Nos países de língua inglesa otermo referido é pesticida, e nos países de língua espanhola adota-se a deno-minação praguicida. Já os trabalhadores brasileiros comumente os reconhe-cem como “venenos” e/ou “remédios”. (Pinheiro, 1986; Peres et alii, 2003;Silva et alii, 2005; Gomide, 2005)

Existem diversos conceitos para agrotóxicos, e a legislação brasileiraassim os define:

“São os produtos e os componentes de processos físi-cos, químicos ou biológicos destinados ao uso nos setoresde produção, armazenamento e beneficiamento de produ-tos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas nati-vas ou implantadas e de outros ecossistemas e tambémambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidadeseja alterar a composição da flora e fauna, a fim de preser-vá-la da ação danosa de seres vivos considerados nocivos,bem como substâncias e produtos empregados como des-folhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores do cres-cimento.” (BRASIL, Lei 7.802, 11/07/89)

Deste conceito acima citado, ficam excluídos os fertilizantes, os adubose os produtos de uso veterinário, que são amplamente encontrados nos pro-cessos produtivos rurais e que por sua vez também podem produzir efeitosnegativos à saúde e ao meio ambiente. Alguns autores preferem utilizar o

153

termo agroquímicos na perspectiva de englobarem os agrotóxicos, os fertili-zantes, os adubos, os produtos veterinários e outros químicos empregues noprocesso de trabalho rural.

Os agrotóxicos podem ser classificados de acordo com a finalidade deseus usos, com a sua natureza química e com seu nível de toxidade. No qua-dro 1, a título de exemplo, identificamos alguns dos principais usos e gruposquímicos de agrotóxicos.

Por sua vez, os agrotóxicos também podem ser classificados de acordo

QUADRO 2. Classificação dos agrotóxicos de acordo com a toxidade.

Fontes: Peres (2003)

154

QUADRO 1. Principais tipos de uso e grupos químicos de agrotóxicos

com o seu nível de toxidade (Quadro 2)Estas classificações são úteis para se identificar o agente químico e seus

potenciais de risco à saúde. É importante frisar que elas tem limites, uma vezque se referem apenas à toxidade aguda. Ter uma baixa toxidade aguda nãosignifica ter uma baixa toxidade crônica.

Para a fabricação e comercialização de um agrotóxico no Brasil é neces-sária a aprovação conjunta de três setores ministeriais: Agricultura, Pecuáriae Abastecimento (adequação e eficácia no combate às pragas), Saúde (impac-tos à saúde humana) e Meio Ambiente (impactos ao meio ambiente). Osfocos de atuação desses setores costumam ter conceitos, perspectivas e inte-resses diferentes e nem sempre há um consenso técnico-político entre elesnesse processo de aprovação de um produto. No momento, a ANVISA estáreanalisando pedidos de licenciamento de agrotóxicos comercializados no

Brasil e que foram banidos de alguns países por motivo de risco à saúde e aomeio ambiente (Quadro 3). Cabe aqui uma indagação: se um produto já foibanido em algum país por motivo comprovado de risco à saúde, por que nãodeveria ser também banido de todos os demais países imediatamente?

155

QUADRO 3. Agrotóxicos em avaliação para banimentodo Brasil pela ANVISA, 2011.

OBS: 1. Banido dos países da União Européia (UE)2- Banido dos Estados Unidos da América do Norte

Metamidofós (methamidophos) 1,2 Parationa-metílica (parathion methyl) 1,2 Forate (Diethyldithiophosphate) (DEDTP)Fosmete (phosmet) Triclorfom (trichlorphon) Endossulfam (endosulfan) 1Carbofurano (carbofuran)1,2 (o popular chumbinho)Paraquate (paraquat)1 Glifosato (glyphosate) Abamectina (abamectin) Tiram (thiram)1 Lactofem (lactofen) Cihexatina (cyhexatin)2

4. Os contatos e as exposições aos agrotóxicos

É importante observar alguns aspectos relativos ao modo e às circuns-tâncias do uso de agrotóxicos. Por lei, todo trabalhador tem o direito de sabersobre os riscos ocupacionais aos quais está sendo submetido no trabalho,bem como dos mecanismos de proteção à sua saúde, fato também nem sem-pre respeitado e cumprido. Diga-se de passagem, que também todo cidadãotem direito a um meio ambiente saudável (sem poluição e contaminação) eque o consumidor também tem o direto de saber o que está consumindo –no caso, o alimento e a água.

Uma vez que existem centenas de produtos químicos com diferentessubstâncias e composições, é fundamental identificar qual(is) agrotóxico(s)especificamente foram utilizados, de modo que se reconheçam o(s) princí-pio(s) ativo(s) e as possíveis substâncias inertes associadas. Não se trata deuma tarefa fácil e nem sempre alcançável, principalmente se levarmos emconta que é frequente a exposição a múltiplos agrotóxicos por períodos lon-gos e em circunstâncias variadas. A informação do trabalhador é pois essen-cial, todavia existem situações em que o próprio trabalhador não é informa-do ou essa informação lhe é negada ou omitida. Existem muitas e razoáveiscríticas quanto às embalagens/bulas dos agrotóxicos. Elas não costumaminformar sobre quais são os inertes veiculados (que podem eventualmenteser mais tóxicos que os próprios princípios ativos), além de utilizarem umalinguagem técnica de difícil compreensão para o trabalhador.

De acordo com a legislação vigente, para que se efetive a venda de agro-tóxicos é necessária a apresentação de receituário agronômico, com as devi-das orientações e especificações de uso (produto, tipo de praga a ser comba-tida, cultura a ser pulverizada, dose, frequência, preparo, proteção, armaze-nagem, descarte, período de reentrada e de carência). O comprador deve, noprazo de um ano, devolver a embalagem do produto adquirido no estabeleci-mento comercial onde se realizou a compra. As embalagens vazias nãodevem, portanto, ser enterradas ou queimadas, mas devolvidas para passa-rem por um processo de reciclagem. No entanto, a realidade tem nos mostra-do que nem sempre o prescrito é observado e seguido.

Para os profissionais de saúde e de segurança no trabalho é muito impor-tante o levantamento da dose (concentração), da intensidade (quantidade) eda frequência da exposição (hs/dia, hs/mês). Essas informações são relevan-tes para que se reconheçam os níveis de exposição dos trabalhadores e para oestabelecimento de vulnerabilidades e prioridades de intervenção e atuação.

Em diversas etapas ou tarefas do processo de trabalho pode ocorrer o

156

contato com o agrotóxico: no transporte, no armazenamento, no preparo,na aplicação, na reentrada em culturas pulverizadas e no descarte. O conta-to não ocupacional também precisa ser pesquisado: ingestão de alimentadoscontaminados e ambientes contaminados no peridomicílio e no domicílio(água, ar, solo).

As formas e equipamentos de aplicação dos agrotóxicos são diversos,sendo que os mais comuns em nosso meio são: manuais, pulverizadores cos-tais, tratores, aviões e pivôs. As exposições são heterogêneas e dependem dosmeios utilizados e dos seus estados de conservação. Alguns países já proibi-ram o uso de aviões agrícolas pulverizadores, sobretudo em plantações loca-lizadas próximas às cidades ou a mananciais e cursos de água, devido àimprevisibilidade e à precariedade de controle de direções e propagações deagrotóxicos por correntes de ar. (Pignatti, Machado & Cabral, 2007). Comocoloca Pignatti (2007), trata-se de uma contaminação fundamentalmenteintencional e não acidental.

A proteção ao meio-ambiente e aos animais em especial se mostra muitomais complexa. Se estratégias como o uso de equipamentos de proteção indi-vidual – EPI’s e campanhas educativas já são extremamente limitadas para aproteção de pessoas, isso sequer se aplica a animais domésticos e silvestrescomo pássaros, tatus, peixes etc. Parece utópico defender a tese do uso segu-ro de agrotóxicos para o ecossistema inteiro.

Como os agrotóxicos podem ser absorvidos por via dérmica, respiratóriaou oral, os EPI’s deveriam proteger integralmente o trabalhador, e não ape-nas a pele, o nariz ou só outra parte específica do corpo. Os limites e a baixaadesão ao uso dos EPI’s são amplamente reconhecidos (desconforto, inade-quação, ineficácia, custos, dificuldades de conservação) e se constituem naúltima prioridade de medida de proteção a ser empregada. EPI’s não elimi-nam o risco, apenas são uma tentativa de proteger os trabalhadores de umpossível dano. Por isso a medida técnica mais eficaz para a saúde do trabalha-dor e o meio ambiente é eliminar o risco na fonte e nos seus determinantes,de modo que não haja a exposição ou a contaminação. A questão polêmicaque se coloca é: o objetivo maior é controlar ou banir o risco?

Existe uma preocupação crescente quanto ao consumo de alimentos deorigem animal e vegetal contaminados com agrotóxicos. Trata-se de umaforma de exposição de complexa mensuração e de grande variabilidade inter-pessoal. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA,através do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos nos Alimentos –PARA, anualmente divulga relatório sobre os principais resultados de conta-minação de alimentos por agrotóxicos. Trata-se de um levantamento de

157

abrangência nacional com padronização que analisa a presença e a quantida-de de agrotóxicos em diversos produtos agrícolas comercializados. O relató-rio de 2010 aponta que das 2.488 amostras analisadas, em 37% não foramencontrados resíduos de agrotóxicos, em 35% os resíduos estavam dentro devalores permitidos e em 28% os resultados foram insatisfatórios. Os resulta-dos insatisfatórios se deveram a três fatores básicos: excesso de resíduos noalimento, uso não permitido para determinado cultivo ou agrotóxico semregistro (já banido ou clandestino) (ANVISA, 2011)

5. Efeitos adversos à saúde

Os danos à saúde humana decorrentes da exposição aos agrotóxicos sãomuito variáveis quanto às manifestações, repercussões, gravidades e conse-quências. Esses efeitos guardam uma relação com a natureza química do(s)produto(s) utilizado(s), as características e intensidades das exposições, osmecanismos de defesa dos próprios organismos, além da eficiência dos cuida-dos à saúde prestados às pessoas acometidas. Alguns trabalhadores podemestar assintomáticos, ao passo que outros podem apresentar quadros de into-xicações agudas, subagudas e crônicas, culminando, inclusive, com o óbitoprecoce.

Nem sempre é fácil estabelecer o diagnóstico de um agravo relacionadoa agrotóxicos. Nas situações agudas, o reconhecimento desses agravos é maisprontamente estabelecido, seja porque o próprio paciente ou seus familiaresjá informam sobre o possível agente causal, seja porque a equipe de saúde dis-põe de fortes evidências clínicas e apoio laboratorial.

Entretanto, o diagnóstico se torna extremamente difícil nos eventoscrônicos. A história de exposição não é tão precisa nem a causalidade tão evi-dente. O quadro clínico pode ser bastante inespecífico, acompanhado porvezes de um longo período de latência, e pode simular outras patologias. Olaboratório costuma apresentar várias limitações para a confirmação diag-nóstica. Uma detalhada anamnese (inclusive ocupacional) se constitui numinstrumento de fundamental importância para se suspeitar, diagnosticar econduzir um caso crônico de agravo relacionado a agrotóxicos.

Embora a clínica seja múltipla e variável, com repercussões locais e/ousistêmicas, diversos efeitos à saúde são descritos pela literatura científica(quadro 4).

Um grande desafio com que a ciência se depara hoje é identificar efeitostardios de exposições a múltiplos agrotóxicos e em baixas doses. Trata-se deuma situação frequente para grande parte da população trabalhadora rural

158

do Brasil. Embora não seja objetivo deste capítulo e ainda que com diferenças e espe-

cificidades, os estudos com animais têm mostrado quadros mórbidos semelhan-tes aos observados nos seres humanos, como, por exemplo: malformações,infertilidade, cânceres, neuropatias e etc. Algumas espécies de animais têm-semostrado hipersensíveis à ação de agrotóxicos. (Grisolia, 2005)

Quadro 4 – Possíveis órgãos e sistemas acometidos nos agravosassociados a agrotóxicos

Fontes: OPAS/OMS (1996), Larini (1999) Ecobichon (2001), Grisolia (2005), Frazier(2007).

159

160

6. Palavras finais

Os determinantes maiores do uso e dos impactos dos agrotóxicos para asaúde e o meio ambiente estão no modo e no modelo de produção rural ado-tado no Brasil. Este modelo privilegia o uso de agrotóxicos, que vem se dandode um modo extensivo, intensivo, desordenado e perigoso.

Os possíveis danos à saúde dos trabalhadores, da população em geral edo meio ambiente ainda são mal conhecidos, mal reconhecidos, mal identifi-cados e mal dimensionados. A abordagem dos efeitos crônicos se constituinum grande desafio.

As políticas públicas adotadas têm se mostrado inadequadas e ineficien-tes para fazer frente aos impactos observados e estimados. Tem-se privilegia-do o enfoque assistencial, com poucas medidas de natureza preventiva e depromoção da saúde.

Entende-se que é necessária uma ação multiprofissional, transdisciplinare interssetorial, com amplo e efetivo controle e participação social. Destaca-se aqui a importância do engajamento e do empoderamento dos movimen-tos sociais e de trabalhadores.

Por outro lado tornam-se necessárias a busca e a implementação de prá-ticas alternativas para a superação do uso de agrotóxicos nas atividades pro-

Caminhão tanque de agrotóxico para abastecimento dos aplicadores. Foto: Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

dutivas e na saúde pública. As práticas agroecológicas já são uma realidade etalvez possam se constituir numa alternativa viável e sustentável internacio-nalmente.

Referências bibliográficas

ANVISA – Agencia Nacional de Vigilância Sanitária. Programa de Análise deResíduos de Agrotóxicos nos Alimentos (PARA) Relatório de Atividades de 2010.Disponível em: <http://anvisa.gov.br> Acesso em 15 de março de 2012.

BRASIL. LEI Nº 7.802, DE 11 DE JULHO DE 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a expe-rimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento,a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação,o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a ins-peção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras provi-dências. DOU, 12/07/1989.

CASTRO, Maria Goretti Gurgel Mota; FERREIRA, Aldo Pacheco; MATTOS, InêsEchenique. Uso de agrotóxicos em assentamentos de reforma agrária no municípiode Russas (Ceará, Brasil): um estudo de caso. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v.20,n.2, p. 245-254, 2011.

ECOBICHON, Donald J. Toxic Effects of Pesticides. In: KLAASEN,C.D. (ed) CASA-RETT & DOULL’S. Toxicology of poisons. 6ed. New York: McGraw-Hill, 2001. p-763-810.

FARIA, Neice Muller Xavier ; FACCHINI, Luiz Augusto; TOMASI, E. Processo deprodução rural e saúde na Serra Gaúcha. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 1, p. 115-128, 2000.

FRAZIER, LM. Reproductive disorders associated with pesticide exposure. JAgromedicine. v.12, n.1, p.27-37, 2007.

GOMIDE, Márcia. Agrotóxicos: que nome dar?. Ciência e Saúde Coletiva, v.10, n.4, p.1047-1054, 2005.

GRISOLIA, Cesar Koppe. Agrotóxicos: mutações, câncer & reprodução. Brasília;Editora Universidade de Brasília, 2005.

LARINI, Lourival. Histórico. In: _______ . Toxicologia dos Praguicidas. São Paulo,Manoele, 1999. p.1-8

LONDRES, Flávia. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio deJaneiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011 (190p.)

OLIVEIRA, Magda Lúcia Félix; SILVA, Adaelson Alves; BALLANI, Tanimária SilvaLira; BELLASALMA, Ana Carolina Manna. Sistema de Notificação de Intoxicações:desafios e dilemas. In: PERES, Frederico; MOREIRA, Josino Costa. É veneno ou é remé-

161

dio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro, editora Fiocruz, 2003. p.303-315

ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE – OPAS/ORGANIZAÇÃO MUN-DIAL DE SAÚDE - OMS. Manual de Vigilância da Saúde de populações expostas a agro-tóxicos. Brasília, OPAS/OMS, 1996.

PALIS,F. et alii. Our farms at risk:behaviour and belief system in pesticide safety.JPublicHealth, v.28, n.1, p.43-48, 2006.

PERES, Frederico; MOREIRA,Josino Costa; Dubois, Gaetan Serge. Agrotóxicos,saúde e ambiente: uma introdução ao tema. In: PERES, Frederico; MOREIRA,JosinoCosta. É veneno ou é remédio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro, editoraFiocruz, 2003. p.21-41

PIGNATI, Wanderlei Antônio, MACHADO, Jorge Mesquita Huet, CABRAL, JamesF. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade deLucas do Rio Verde-MT. Ciência & Saúde Coletiva, v.12, n.1, p.863-872, 2007.

PINHEIRO, Tarcísio Márcio Magalhães. Intoxicação por pesticidas organofosforados ecarbamatos na população rural do distrito de Mário Campos, Ibirité, Minas Gerais, 1985.Belo Horizonte: Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais, 1986(dissertação de mestrado)

PINHEIRO, Tarcísio Márcio Magalhães. Cadernos do Internato Rural, v. 3, n.1/2 , p.51-61, 1984.

SILVA, Jandira Maciel; NOVATO-SILVA, Eliane; FARIA, Horácio Pereira; PINHEI-RO, Tarcísio Márcio Magalhães. Agrotóxico e Trabalho: uma combinação perigosapara a saúde do trabalhador rural. Ciência e Saúde Coletiva, v.10, n.4, p. 891-903,2005.

SILVA, Jandira Maciel. Processo de Trabalho e condições de exposição aos agrotóxicos: o casodos horticultores de Baldim, Minas Gerais, Brasil. Belo Horizonte, Escola deEngenharia da Universidade Federal de Minas Gerais, 2000. (dissertação de mestra-do)

SILVA, Jandira Maciel. Cânceres Hematológicos na Região Sul de Minas Gerais.Campinas: Faculdade Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas,2007. (tese de doutorado)

SINITOX – Sistema Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas. Casos, óbitos eletalidade de intoxicação humana por agente e por região, Brasil, 2009. Disponível em: <http://www.fiocruz.br/sinitox_novo/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=homeAcesso em 22 de março de 2012.

SOARES, Wagner L.; PORTO, Marcelo Firpo. Uso dos agrotóxicos e impactos econô-micos sobre a saúde. Revista de Saúde Pública, v. 1, n.2, p. 1-25, 2012.

WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Public health impact of pesticides used inagriculture. Geneve, WHO, 1990 . 128p.

162

163

A medicina e suatransdisciplinaridade

Professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UniversidadeFederal de Minas Gerais – Doutor em Medicina

1. Introdução

Ainteração entre as condições biológicas, psicológicas, sociológi-cas, culturais e espirituais na vida da pessoa, de sua família e dacomunidade é o que determina o bem-viver, o bem-estar, a suasaúde. Essa interação se expressa por intermédio da forma

como a pessoa interage consigo e com as outras pessoas, na reflexão sobresuas dúvidas, impressões, atitudes e preocupações, e que permite entendersobre seu corpo, seus sentimentos, sua expectativa social.

A obtenção desse bem-estar biopsicossocialculturalespiritual depende dacompreensão de inúmeros fatores, desde a percepção crítica, transformadorae transgressora do ser humano sobre si mesmo e a natureza até o entendi-mento do limite expresso na dinâmica planetária em reciclar-se, e permitir ascondições propícias para a manutenção do equilíbrio desejável para a vida;isto é, na homeostasia implícita nas necessidades de todos os seres vivos, e adisponibilidade limitada da matéria de nosso planeta.

A Terra possui recursos limitados, por isso não pode ser explorada àexaustão, caso contrário, será impedida de manter as condições tão especiaisque permitem a existência da vida como é por nós conhecida. A exploraçãoplanetária como é atualmente feita para servir às oito maiores economias domundo, se fosse disponibilizada para todos os países necessitaria dos recur-sos de quatro planetas Terra! A degradação do meio ambiente tem a ver coma própria degradação da vida, que este ambiente sustenta e permite, portan-to, a vida depende da capacidade da própria natureza de obter equilíbrio, queé dinâmico, e em algum momento pode não ser mais capaz de se recuperar,como acontece com situações limites e críticas da vida.

A medicina (Medeo = cuidar, Kline = postar-se ao lado de, debruçarsobre) representa profissão milenar composta por massa mutável de conhe-cimentos, habilidades e tradições aplicáveis à preservação da saúde, cura das

164

enfermidades e redução do sofrimento. O médico em seu exercício acolhe ecuida da pessoa, de sua família e da comunidade, em momento em que sesinta com perda da saúde. Essa prática, diante das relações de dependência davida em relação à saúde do nosso planeta, exige mais do que a aplicação deprincípios científicos; requer visão da natureza, da vida, da humanidade. Asua essência constitui-se na busca contínua, perseverante e conjunta com opaciente, sua família e a comunidade, do entendimento da natureza queultrapassa a organicidade da matéria, que perscruta a existência e a transcen-dência, que revela a plenitude cósmica, e o bem-estar conseqüente, que seinterliga ao bem-estar do planeta.

A saúde pressupõe, portanto, estabelecer pressupostos de cidadania, har-monia com a natureza, solidariedade com tudo e todos, que potencializa oafeto e distribui com equanimidade bens sociais renováveis, que reconhece aimportância dos ecossistemas como parte integrante da própria vida e pro-move dignidade e prazer, com justiça social e paz.

2. Necessidade de visão abrangente

A atividade médica, na maioria das vezes, representa desafio que não selimita ao diagnóstico e à abordagem terapêutica, mas implica perceber a pes-soa em sua total dimensão, o que extrapola a objetividade e pressupõe a suapercepção subjetiva e integrada na família e na sociedade, plena e em inter-câmbio com as implicações resultantes de sua opinião, atitude e crença.

A visão unilateral e restrita do médico em relação ao ser humano, limi-tada a um órgão ou sistema, determina a atitude observada quando se fixaalgum parâmetro como variável dependente, ou apenas independente, noestudo de um fenômeno físico-químico, como se fosse um objeto. Pode semanifestar como tendência a ver o paciente e a comunidade em partes oucomo objeto e não como pessoa.

Esse risco pode considerar que a saúde humana depende da realização deexames complementares, o que representa risco de reducionismo a expressarapenas parte da matéria, e não necessariamente o seu todo. A individualida-de do paciente pode se perder entre exames complementares e na tendênciaem tratar a parte pelo todo, ao invés de tratar a pessoa. Muitas vezes o médi-co se pergunta: devo solicitar algum exame complementar para confirmarminha impressão diagnóstica? O desempenho de exames múltiplos aumen-ta a probabilidade de resultado anormal em paciente sem doença. A realiza-ção de um exame relaciona-se, em geral, com a busca da probabilidade de95% de resultado normal se o paciente é normal; entretanto, em 20 exames

165

a probabilidade de o paciente saudável ter pelo menos um resultado anormalé elevada. Isto é, a maioria das pessoas saudáveis tem pelo menos um resul-tado anormal quando se submete a 20 exames complementares diferentes.Qual o seu significado? É necessário juízo para avaliar o normal e o patoló-gico, e discernimento para não provocar distúrbio ou doença, objetiva ousubjetiva (psíquica), em pessoa normal.

A ampla visão da pessoa, sem limites de órgãos ou sistemas, do corpo ealma, indivíduo e coletivo, permite ao médico ultrapassar seus conhecimen-tos e habilidades técnicas e ampliar sua capacidade de criar relacionamentoconsigo e com o paciente. Essa percepção constitui o pressuposto fundamen-tal que permite avaliar as características do paciente e seu pensamento sobrea vida e a natureza, sua autopercepção e natural inserção na sociedade, e ovalor que cada um dá à sua vida e à das outras pessoas.

A capacidade que o médico possui de entender o seu próprio potencialterapêutico e de utilizá-lo com juízo, equilíbrio, sem aproveitar da boa-fé daspessoas, é a chave de todo relacionamento médico-paciente-família, que pro-move respeito, confidência, esperança e beneficia com motivação, aliança eenlevo, de forma integral, o paciente em seu contexto planetário. Não é atecnologia que impõe confiança e confidência, mas a ação empreendida pelomédico como agente de ausculta e ação – médico como agente terapêutico.

O médico, por isso mesmo, deve aprender a se conhecer o suficiente paraimpedir que seus preconceitos e problemas naturais perturbem a sua relaçãomédico-paciente-família-sociedade, bem como precisa criar atmosfera queconduza ao relacionamento adequado a fim de evitar que sua interação como paciente conduza a erros que decorram de sua visão unilateral e preconcei-tuosa.

A dimensão completa da vida e do trabalho médico, portanto, desdobra-se, na prática, em todos os níveis em que é vivida, desde o compromisso irres-trito com a inovação, que pressupõe a coragem de criar e transformar o seutrabalho cotidiano, e de se envolver e participar em movimentos e lutas jus-tas e necessárias para o desenvolvimento humano. Revela a procura de meiosde atingir, pelo exercício de sua profissão, de lugares e experiências que seespalham e recriam por onde a Medicina e o médico se encontram com aspessoas. Por isso mesmo, requer participar efetivamente do seu encontro comtoda a experiência humana que puder acumular e entender, que se realiza emtodos os momentos e locais, em sua interação com a vida e com as coisas. Oseu papel como perscrutador da alma humana em todos os seus recônditostorna-se imprescindível para, como educador, reconhecer os limites própriose de cada um. Esse processo busca entender a singularidade de cada pessoa e

166

de sua harmonia com a própria natureza, com as forças propícias em cadamomento.

De cada 1000 problemas de saúde que ocorrem usualmente no ambien-te doméstico, 750 são resolvidos em sua própria casa, por atitudes usadasmilenarmente, como observação, repouso, limpeza, banho, ventilação,tomar sol, dormir; ou pelo uso de água, chá ou compressa. O restante recor-re à atenção primaria à saúde, sem influência de ato médico, recebendo medi-das como hidratação oral, limpeza de feridas, orientação dietética, exercícioadequado, sendo 100 encaminhados para consulta médica. De cada 100pacientes sob avaliação médica, em 10 eventualidades a primeira consulta ésuficiente para identificar o problema e ajudar em sua resolução; em 35 énecessário um retorno, para controle e vigilância, sem necessidade de examecomplementar; e em 40 o acompanhamento médico ocorre por mais de seismeses, sendo 14 encaminhados para a observação de especialista e um para ainternação hospitalar. Na atenção primária à saúde com resolubilidade médi-ca de quase 85% ocorrem, em geral, oito grupos nosológicos, sendo necessá-rios 11 exames complementares e 14 medicamentos para a sua abordagem.Essa observação decorre, em sua essência, de que “o que é raro é raríssimo, eo comum é comuníssimo”. Revela que há na prática da medicina a necessi-dade de ruptura com o consumismo e a valorização de bens sociais para aqualidade de vida, aliadas da saúde, como: educação, trabalho, seguridadesocial, além da atenção e do cuidado médico. É preciso entender que os avan-ços da biologia molecular-estrutural, da imunologia, da genética, não podemimpedir o valor da psicologia, da antropologia, da sociologia sobre o entendi-mento da vida e da morbi-mortalidade.

A ciência requer dos médicos muito mais do que aplicar o conhecimen-to do último segundo; é preciso conhecer e aplicar o padrão do pensamentocientífico, desenvolver mente inquisitiva, crítica, independente; projetarexperimentos; obter dados; analisar sua validade e especificidade; questionare responder no limite da precisão definida; estabelecer medidas de limite doque é adequado ou não, o que significa medida fútil ou não, ajuizar o equilí-brio do que deve e não deve ser feito. Os resultados falso-positivos podemsujeitar procedimento desnecessário. O exame complementar que confirmao diagnóstico já feito constitui desperdício de recursos. É preciso avaliar se oexame complementar pode modificar a escolha da estratégia de tratamento.A compreensão da “alma humana”, entretanto, ultrapassa todos esses dadosobjetivos, e sem a sua perscrutação não se consegue perceber o pedido deajuda, de auxílio, do encontro com o ser que está em cada pessoa.

A ação médica nem sempre significa diagnóstico ou tratamento em sen-

167

tido de que é preciso aplicar alguma fórmula físico-química industrializada.Muitas vezes caracteriza-se por aliviar o impacto da enfermidade, ajudar apessoa a se integrar nela mesma, em sua família e comunidade, perceber oesforço da pessoa em se adaptar à perda de sua saúde e a conviver com limi-tações, e no compromisso com o bem-estar biopsicossocialculturalespiritual.As enfermidades tendem a ocorrer em situações de excessiva exigência pes-soal ou diante de necessidade insatisfatoriamente resolvida de vida. As doen-ças incuráveis inspiram desesperança, sofrimento, angústia. A morte podedevastar o paciente e sua família, o que inclui ansiedade, medo, pânico, enig-ma sobre o futuro, responsabilidade pela família, trabalho, dívidas. É precisoajudar o paciente a entender o correto para si, sentir-se valorizado, assumircom esperança recursos existentes para reduzir sofrimento, cooperar para acura e o controle da doença.

É preciso perceber e conviver com as limitações próprias e as da medici-na, é preciso ao médico conhecer-se para impedir que a primeira impressão, nãoadequadamente reflexiva, afete sua relação ou promova erros em sua intera-ção com o paciente.

O interesse e o bem-estar do paciente devem estar acima daqueles pró-prios do médico. É essencial transcender a capacidade técnica, o conhecimen-to científico, a compaixão, o interesse, e distinguir o que é ou não supérfluo.A atenção insuficiente dispensada ao paciente tende a substituir a conversa,o esclarecimento, e a motivação, por exames complementares e por terapêu-tica. (creio que período pede nova escrita) O diagnóstico e a prescriçãopodem ser corretos, e insensíveis, calculistas e impessoais. O paciente podecurar-se e sentir-se insatisfeito. A tecnologia, portanto, não significa melhorassistência; pode inclusive descaracterizar e despersonalizar o médico outorná-lo minimizador da tensão social.

É preciso respeito, confidência, solidariedade desde o nascer até experi-mentar-se, ajuizar a experiência, entender a existência, viver a sabedoria dojuízo, buscar bem-estar na própria essência, conscientizar-se da própriamorte, transcender à matéria, isso representa fazer o doente melhor, e sentir,inclusive, o limite ou a doença em paz.

3. Como as doenças são determinadas

Vários são os fatores capazes de desencadear alterações da relação saúde-doença. Os fatores observados que mais exerceram impacto nos últimos sécu-los foram os relacionados com: 1. Mudanças ecológicas, inclusive relacionadasao desenvolvimento econômico e uso da terra, como os empreendidos na agri-

168

cultura; na construção de represas para a geração de eletricidade ou irrigação daterra; na mudança nos ecossistemas hídricos, com des e reflorestamentos, e queresultaram em enchentes, secas, fome, mudança climática, e que se associamcom: esquistossomose, febre hemorrágica, expansão da leishmaniose, dissemi-nação do arbovírus (sabiá, rocio, mayaro, oropouche), catástrofes, inundações decidades; 2. Demografia e comportamento humano: relacionados com o cresci-mento populacional, migrações populacionais, guerra, conflitos civis, deteriora-ção de centros urbanos, adensamento populacional, modificações no compor-tamento sexual, uso de drogas ilícitas venosas, que se relacionam com a intro-dução e disseminação do vírus da imunodeficiência humana e outras doençassexualmente transmissíveis, de dengue e ressurgência da tuberculose; 3.Comércio e viagens internacionais, que propiciam movimento de bens e pes-soas, a rapidez permitida pelas viagens aéreas, que se relacionam com a dissemi-nação da malária, mosquitos vetores, introdução de cólera e dengue; 4.Indústria e tecnologia: responsáveis pela globalização em relação ao suprimen-to de alimentos, o que gerou mudanças em seu processamento e empacotamen-to, na técnica de transplantes de órgãos e tecidos, no uso de imunossupressorese a antibioticoterapia irracional em seres humanos e em animais fontes de ali-mentos, que se relacionam com encefalite bovina, síndrome hemolítica urêmi-ca (E. coli), doenças transfusionais (hepatites virais, chagas), infecções em imu-nossuprimidos; 5. Adaptação e mudança de agentes: que demarcam a evolução

Inundação do centro de Vespasiano em dezembro de 2011, criando condição para proliferaçãode doenças. Foto: Adriana Lara

169

de microrganismos, a pressão seletiva e o desenvolvimento de resistência aosantibacterianos e antivirais, e que determinam variações naturais e mutaçõesem vírus (vírus da imunodeficiência humana, vírus influenza), bactérias (febrepúrpurica brasileira por H. influenzae); e resistência aos antibióticos, antivirais,antimaláricos, pesticidas; 6. Colapso de medidas de saúde pública: responsáveispelos problemas decorrentes de saneamento precário e controle inadequado devetores, cortes em programas de prevenção de doenças, e que se relacionam comcólera, dengue, difteria.

A opção pelo modelo econômico brasileiro baseado na exploração do tra-balho, competição, solidão, menor capacidade afetiva, estresse, ação predató-ria sobre o meio, desvios da nutrição (sub e supernutrição), desemprego,moradia, urbanização e saneamento conduziu a questões também de grandeimpacto sobre a saúde, que incluíram a busca por alimentos industrializados,falta de financiamento para a educação e a saúde; que favoreceram a variabi-lidade de comportamento de vetores e que se associaram com fome, tuber-culose, tuberculose multirresistente, hanseníase, cólera, febre amarela, den-gue, sida, hantavirose, hepatites virais, papilomavirose, leishmaniose, doen-ça de Chagas, malária, estresse, esquistossomose, violência, pesticidas, usoindevido de antibióticos e de herbicidas, desequilíbrio ecológico, infecçãopelo H. pylori e Chlamydia, exploração inadvertida de nichos ecológicos, usode transgênicos, saúde e educação não priorizadas nas políticas públicas.

Na base desse processo encontra-se o neoliberalismo que tecnocratizadecisões, centraliza riquezas, justifica o desemprego e a desigualdade, excluio cidadão do destino de seu país, incita o consumismo e a competição exces-siva, que desagregam e promovem pressões psíquicas insuportáveis.

Observa-se na trajetória humana que a prevalência da ganância, a lutapela manutenção do poder e do dinheiro constituem o principal motivo derisco de impedir o equilíbrio e a percepção sensível do outro. Este comporta-mento, ou modelo, gera: onipotência, desconfiança, paralisia afetiva, intole-rância, incapacidade para lidar com a realidade, vazio existencial, individua-lismo, violência, delinqüência, falta de moradia, indefinição de políticassobre a terra e sobre a produção de alimentos, ausência de água potável eesgotos, deficiência de imunizações, descaso com a saúde, destruição plane-tária, desenvolvimento falacioso, temporário, limitado.

O que adoece e mata são menos os microorganismos e mais a criminali-dade, a violência, os acidentes, a solidão, a angústia, a depressão, o estresse,a deterioração ambiental, os intoxicantes químicos, as drogas lícitas e ilícitas,o sedentarismo, a má-alimentação, a ignorância, a miséria, a desonestidade,o fisiologismo e a impunidade.

4. Perspectivas atuais do trabalho médico e seu impactosobre o exercício da medicina

A idéia de que a tecnologia poderia deixar o médico mais disponível parase dedicar ao seu paciente não se realizou. À medida que a tecnologia éimplantada na medicina, a assistência médica despersonaliza-se, o que des-caracteriza o seu pressuposto básico de sensibilidade em cuidar das pessoas.

O médico contemporâneo é incitado a atuar, principalmente, para mini-mizar a tensão social acarretada pela necessidade da assistência médica àsaúde, para manter a reserva humana assalariada para o trabalho, ou paraparticipar comercialmente de algum negócio gerenciado mercadologicamen-te, com exploração da mais-valia, associado à poderosa corporação produto-ra de química fina, de terapêutica e de equipamento médico-hospitalar.Quem lucra com esse tipo de comportamento?

O objetivo parece associar-se à ganância pelo aumento do patrimônio deforma rápida e desmesurada. A sobrevivência do médico o impulsiona para a

170

“O que adoece e mata são menos os microorganismos e mais a deterioração ambiental, osintoxicantes químicos e a impunidade”. Foto: Procópio de Castro

competição desenfreada, com exercício de sua atividade como se estivesse embalcão de loja, ou em produção em série como numa fábrica, com competên-cia e qualidade total definidas pela aparência, padronizada pela beleza emoda, juventude, riqueza; e por guias, regras, e diretrizes definidas muitasvezes por conflitos de interesse, medo de demanda judiciária e de ser consi-derado obsoleto. Esse comportamento conduz à solicitação de mais examescomplementares, à confiança maior em equipamentos do que na própria sen-sibilidade e capacidade de discernimento, o que mantém o lucro das indús-trias, distanciando o médico da pessoa.

O objetivo é a estética, a eternidade material, o individualismo, quenegam a solidariedade, a espontaneidade, o respeito, a confiança, pressupos-tos do acolher e cuidar.

O médico se submete ao processo da concorrência que predispõe à des-lealdade, ao clientelismo e ao subemprego, que oprime e avilta o seu salário.A exigência de múltiplos empregos, muitos sob sistema de produtividade ede plantões extenuantes, promove adaptações de comportamento indignas ehumilhantes. O médico passa a ser elemento da engrenagem da cadeia pro-dutiva, como número de sala, leito ou de paciente numerado.

O ato médico, que requer sensibilidade de olhos, ouvidos, mãos, senti-dos, sentimentos, coração, como a essência para a compreensão da pessoa, ésubstituído pela razão, racionalidade, evidência, programa, protocolo e técni-ca, que veem o doente como doença e distanciam o paciente de seu médico.O médico pode perder a sua ação fundamental de educador para a saúde, emdefesa do equilíbrio da natureza e da preservação de seu meio.

5. Percepção ampla de saúde

A maioria das pessoas diagnostica e decide sobre terapêuticas, usualmen-te, sem o benefício do aconselhamento médico. A maioria dos pacientes comalgum problema de saúde socorre-se em familiares, vizinhos e líderes comu-nitários. As pessoas procedentes de grupos socioeconômicos menos privile-giados tendem a ser menos aptas em identificar sintomatologias geraiscomuns, o que as incita a procurar serviço médico.

A procura do cuidado médico incorpora escolhas associadas com a situa-ção pessoal, o contexto cultural, o comportamento e suas conseqüências, otemor de um diagnóstico grave.

A atenção à saúde é usualmente centrada na doença e no indivíduo, comtecnologia de alto custo, sem critérios para favorecer a utilização eqüitativade serviços.

171

172

6. Determinação dos conceitos de saúde e de doença.Comportamento em relação à necessidade de saúde.

As opiniões, atitudes e crenças determinam as precondições, que influen-ciam as orientações e incitam as ações em busca do entendimento de saúde edoença e que expressam o anseio pela obtenção de bem-estar.

As condições que predispõem e a eficácia das medidas de preserva-ção da saúde dependem das orientações individuais e da situação socioe-conômica das pessoas e da comunidade. As crenças, valores e atitudesdas pessoas e da comunidade determinam, significativamente, o enten-dimento de saúde, doença e do cuidado médico. Influenciam a percep-ção e o significado da sintomatologia, que também dependem das habi-lidades cognitivas e adquiridas nas experiências formais ou informaissobre saúde e doença aprendidas durante a vida, interpretadas e usadasem busca da preservação do bem-estar. As condições socioeconômicasdeterminam a classe social e, muitas vezes, o estilo de vida, que influen-ciam o aprendizado de experiências, a extensão da exposição da pessoaà informação. A intervenção nessas variáveis depende de programassociais de grande escala por longo período de tempo, incluindo educa-ção, oportunidades de intercâmbio com outras experiências culturais esociais.

A percepção, a característica, o limiar de percepção da sintomatologiadependem da descoberta do seu significado. São relacionados com as circuns-tâncias críticas e vivenciadas e dependem da presença de barreiras: estrutu-rais (custo, acesso, disponibilidade, tempo gasto para buscá-lo, distância dacasa ao atendimento); psicológicas (individuais e coletivas) e sociais (estigmacom relação à doença, rupturas das relações sociais).

As ações de diagnóstico e de terapêutica são, geralmente, mais valoriza-das e consideradas, pelas pessoas e pela coletividade, do que as de prevençãoe de recuperação da saúde.

O entendimento sobre a saúde nas situações de risco, inclusive na hos-pitalização, é inicialmente influenciado pelo médico e pela enfermeira, o quepode ser modificado pela experiência com a doença e pela possível dependên-cia do paciente com a equipe encarregada de seu controle e recuperação.Alguns pacientes possuem medo de serem abandonados como retaliação pelocomportamento indevido durante a internação hospitalar. O bom comporta-mento é gratificado. Esse comportamento é também prevalente em pacien-tes atendidos no nível ambulatorial.

173

7. Intervenção possível para a busca de melhorescondições de saúde

É necessário atuar em vários níveis para modificar as condições pessoaise sociais que impedem o bem-estar.

A educação representa o ponto essencial em que o conhecimento e ainformação, reflexivos, críticos, libertários, alteram o padrão de comporta-mento frente às prerrogativas pessoais e sociais transformadoras. A educaçãopara a saúde amplia o conhecimento sobre o bem-viver, a consciência do pró-prio corpo individual e social, incita as ações de prevenção, o reconhecimen-to de doenças prevalentes, o equilíbrio com a natureza, impede a exploraçãodo trabalhador.

É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valo-res culturais sobre a doença, a saúde, a tolerância, a dor, a legitimidade de rea-ções ao mal-estar.

É fundamental perceber que a dimensão dos incidentes críticos e doseventos de impacto sobre a vida de cada pessoa pode predizer, com conside-rável veracidade, a probabilidade de início de doenças físicas e emocionais.

A intervenção para obtenção de bem-estar é tarefa de cidadania, e podeser feito em todos os seus níveis de complexidade.

A transferência de responsabilidades de serviços básicos para o setor pri-vado, sem garantia de eqüidade na sua oferta; a crença no usuário-consumi-dor, na lógica do custo-benefício, não no cidadão que possui um bem, asaúde; a competição em saúde pela lucratividade, não como benefício para aspessoas e o planeta; a centralização do conceito de saúde na doença e no indi-víduo, baseado na tecnologia, sem critérios para favorecer a utilização eqüi-tativa de serviços adequados ou apropriados; os gastos exorbitantes comatenção médica, medicamentos, exames e equipamentos tornam impossívelpensar em preservar a pessoa e o planeta.

A lógica do individualismo não permite a preservação do planeta paratodos, em privilegiar o equilíbrio e a harmonia do corpo e da alma e de suainteração com a natureza, que é dinâmica e materialmente finita!

A decisão política de privilegiar o ser humano e não o capital como osubstantivo de todas as decisões, portanto, significa: educação para todos,como pressuposto da humanidade; financiamento adequado para o cuidadocom as pessoas e o meio ambiente; valorização do trabalho como princípiofundamental da organização social; estrutura social com oportunidades igua-litárias para todas as pessoas, incluindo a reflexão sobre questões estigmati-zantes; as condições físicas dos serviços de atenção à saúde e a doença, como

tipo de consultório, privacidade do paciente, proximidade do médico, aten-dimentos domiciliar, à noite, aos sábados, disponibilidade de recursos diag-nósticos, terapêuticos e de reabilitação.

8. A função do médico

As qualidades do médico dependem de sua formação moral e ética e doequilíbrio emocional que desenvolve em sua experiência de vida. É demons-trável pelo interesse real que expressa pelo paciente. Depende do conheci-mento da natureza humana, da equanimidade com que trata as questões emque participa, sem preconceitos nem interesse pessoal (conflito de interesse),do entendimento e envolvimento com as lutas justas e necessárias para asolução dos complexos problemas individuais e sociais, que marginalizam esubjugam o ser humano. Torna-se mais exigente a tarefa médica quando sesabe que toda pessoa que sente a perda da saúde de forma inconsciente espe-ra e delega, como em pacto, ao seu médico, a luta e a defesa de sua vida emrisco, mais até do que o médico faria por si mesmo.

Ninguém é dotado de todas essas qualidades ou atinge essa perfeição. Porisso, é necessário que o médico se conheça para julgar qual a melhor formade se aproximar desses ideais, para entender os seus limites e as salvaguardasnecessárias para o seu exercício profissional. Os erros são comuns, decorremde exercício profissional que se baseia em probabilidade, e devem ensinarcom humildade a obtenção de prática adequada, sensível, sem maniqueísmo,paternalismo ou domesticação, mas libertária para a vida de bem-estar, queresulta em felicidade que todos almejam.

Esse papel justifica o esforço do médico em se preparar para acolher ecuidar das pessoas.

As intervenções médicas são justificadas quando os seus benefícios supe-ram os riscos a elas inerentes. Por isso, é necessário considerar que: 1. A modi-ficação favorável de um fator de risco ou processo patogênico não implica,necessariamente, em alteração favorável das condições globais de saúde ou derisco, como a hiperlipidemia relaciona-se com doenças, e a sua terapêuticapode agravar ou promover outros fatores de risco; 2. Muitos pacientes trata-dos não apresentarão benefício em sua morbimortalidade; 3. O benefícioobservado em estudos populacionais pode não ser explícito se transpostopara cada pessoa. Não existe doença, mas doente, portanto, e o cuidado deveser individualizado; 4. Em algumas situações pode ser necessário que o médi-co assuma inteiramente a responsabilidade pela escolha da conduta; emoutras, a participação do paciente pode ser maior.

174

A vida do médico, portanto, não está afeita ao desânimo ou ao descompro-misso, mas incita esperança e gana, o que exige autocontrole, confiança e sen-sibilidade para a dignidade e o respeito pessoal. O papel do médico, entretanto,torna-se grandioso quando se aproxima do limite da ciência médica, quando aarte, que depende do talento e do dom, pode ser moldada pela sensibilidade eatenção, e se torna vanguarda da assistência ao paciente. A ousadia em com-preender-se, e em estabelecer o seu próprio limite, permite a acolhida e o cuida-do da pessoa, com a grandiosidade, complexidade e magia do apoio, amizade,solidariedade, compreensão. A essência substantiva é a pessoa, em que a vida ea morte se completam em ciclo necessário para o encontro da matéria com asua transcendência em sua plenitude e eternidade, que se completa em Deus.

A compreensão do papel médico com a pessoa e sua família são, portan-to, indistinguíveis e interpenetráveis com a sua atuação social.

9. Alocação de recursos sociais

A sociedade não possui recursos ilimitados para oferecer o melhor emsaúde para todos. O custo da ressuscitação cardiopulmonar é estimado emR$ 750.000,00 reais por vida salva. O dever do médico para com seu pacien-te e a sociedade pode ser conflituoso em algumas situações em que essesrecursos financeiros são limitados e desproporcionalmente consumidos poruma pessoa em estado crítico e sem perspectivas reais.

175

O papel do médico exige uma série de qualidades que requer esforço para se preparar para aescolha de cuidar de pessoas. Foto: Acervo Projeto Manuelzão

176

Os gastos públicos com a saúde no Brasil são orçados em 127 bilhões dereais por ano, para a cobertura de quase 200 milhões de pessoas. Na França eno Reino Unido é de cerca de 700 bilhões de reais por ano, com população deum terço da brasileira. O investimento em saúde realizado no Brasil é infe-rior ao da Argentina, e Chile, à média do continente africano e de outros paí-ses com as mesmas condições macroeconômicas que as brasileiras, e umterço do orçamento dos Estados Unidos da América para o setor. AOrganização Mundial de Saúde considera que o Brasil é dos países commenos investimento proporcional em saúde no mundo.

O problema brasileiro, entretanto, ultrapassa a questão de financiamen-to, constituindo-se fatores fundamentais também o gerenciamento, o des-perdício, os cargos ocupados por critérios políticos, o trabalho sem controlede qualidade, a ausência de metas precisas, os profissionais mal pagos e des-valorizados. Cerca de 40% das verbas para a saúde se perdem por má gestão.

É possível que em muitas situações a discussão sobre a tomada de deci-são seja baseada em eficácia ou eficiência. A eficácia representa a disponibili-dade dos melhores recursos para a obtenção de melhores resultados; a eficiên-cia, a obtenção dos melhores resultados sem a disponibilidade dos melhoresrecursos. A equanimidade social discrimina que todos têm acesso aos recur-sos disponíveis para a obtenção de saúde. A medicina, portanto, é exercidacom a singularidade da individualidade, entretanto, com a perspectiva daigualdade de direitos e deveres sociais de todos.

Os conselhos de saúde (locais, municipais, estaduais) podem se tornarelementos-chave na determinação de ações cidadãs para o encontro de solu-ções justas para as necessidades de saúde.

10. Os problemas sociais, a organização dos serviços de saúde

Muitos dos problemas enfrentados pelas pessoas e trazidos ao médicodependem de soluções político-administrativas e legais, não estritamente desolução médica. O papel do médico, entretanto, é transcendental na avalia-ção de como os grupos sociais podem atuar em busca de melhores condiçõesde vida. A sua formação humanística e humanitária é a base para enfrentarcom o paciente todas as suas frustrações e propor melhor convivência com adesesperança, a dor, a agonia.

À medida que a sociedade foi se tornando complexa e a medicina, espe-cializada, várias tarefas, antes realizadas pelos médicos, passaram a ser exer-cidas por outros profissionais.

Essa perspectiva profissional requer visão interdisciplinar e multiprofis-

177

sional, com respeito não só entre os vários profissionais que compõem a equi-pe de saúde, mas com o paciente que é o substantivo de todas as ações, empreservar a sua dignidade e de seus familiares.

11. É possível, diante da complexidade das relaçõesbiopsicossociaisculturaisespirituais o médico trabalhar sozinho?

O trabalho transdisciplinar é a base da atenção completa à saúde. A interação dos vários profissionais que compõem a equipe de saúde

diminui algum dos seus membros? – “Mestre é aquele que de repente aprende”. A participação da medicina, enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacio-

nal, nutrição, serviço social, psicologia e tantas quantas forem as profissõese as ações cidadãs é bem-vinda na tarefa de proteger a vida e o planeta.

De que dependem as relações profissionais? Dependem da discussão doprocesso de trabalho, da organização do conhecimento a ser alcançado e daparticipação de cada um, do limite que se associa ao convívio com respeito,confiança. Da integração em busca da plenitude de todos.

A distinção das ações na área da saúde diz respeito, especialmente, a amiza-de, respeito e solidariedade, em que “tudo vale a pena se a alma não for pequena”.

A saúde é dos bens mais significativos da expressão humana e da vida. Valeo esforço, a gana, o trabalho para a busca do bem-estar que todos merecem.

12. Preparo para a prática

A prática médica depende de todas essas condições que moldam o médi-co para a sua missão e se relacionam ao seu estilo de vida, ao local escolhidopara o trabalho, ao tamanho e às características da comunidade escolhidapara o seu exercício profissional.

Não é tarefa fácil. Por isso, a principal revolução que o médico pode fazeré consigo, por intermédio da imersão em busca do autoconhecimento, capazde perceber e sentir a plenitude do limite pessoal, que torna solidário o espí-rito humano e potencializa o esforço em busca de vida equânime, do bem-estar, da felicidade e da paz.

Referências bibliográficas

ADAY LA. Economic and nom-economic barriers to the use of neede medical servi-ces. Med. Care, 13: 447, 1975;

178

APPELBAUM PS. Clinical practice. Assessment of patients' competence to consentto treatment. N Engl J Med 2007; 357:1834;

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 2ª ed. Rio de Janeiro. ForenseUniversitária, 1978: 270 pág.

CANTOR MD, Braddock CH 3rd, Derse AR et al. Do-not-resuscitate orders and medicalfutility. Arch Intern Med 2003; 163: 2689;

COPELAND, RB; Noble, I. On entering the practice of medicine. A guide to transi-tion. In: Noble. J. Textbook of General Medicine and Primary Care. Boston, Toronto,Little, Brown and Co. 1987: XXVII-XXXIII.

FOUCAULT. O Nascimento da Clinica. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1977:241 pág.

HIPPOCRATES APHORISMS, In: The Genuine Works of Hippocrates. Translated fromGreek by FRANK Adams. New York. William Wood and Company, 1849: 192.

HIPPOCRATES, The Oath. In: The Genuine Works of Hippocrates. Translated from Greekby FRANK Adams. New York. William Wood and Company, 1849: 278.

LATIMER EJ. Ethical care at the end of life. CMAJ 1998; 158: 1741;

LYNN J. Conflicts of interest in medical decision-making. J Am Geriatr Soc 1988; 36:945;

MACK JW, Weeks JC, Wright AA, et al. End-of-life discussions, goal attainment, and dis-tress at the end of life: predictors and outcomes of receipt of care consistent with preferences. JClin Oncol 2010; 28:1203;

PEDROSO, ERP. O Médico Generalista. In: Pedroso, ERP; Rocha, MO; Silva, OA.Clínica Médica. Os Princípios da Prática Ambulatorial. Atheneu. Rio de Janeiro, 1993,Cap. 2. pág. 9.

PEDROSO , ERP. Princípios Gerais do Atendimento Ambulatorial. In: Pedroso, ERP;Rocha, MO; SILVA, OA. Clínica Médica. Os Princípios da Prática Ambulatorial.Atheneu. Rio de Janeiro, 1993, Cap. 2. pág. 13.

TÄHKA, V. O Relacionamento Médico-Paciente. Artes Médicas, Porto Alegre, 1988;

TAKEMURA YC, Atsumi R, Tsuda T. Which medical interview behaviors are associatedwith patient satisfaction? Fam Med 2008; 40:253;

TRUOG RD, Brett AS, Frader J. The problem with futility. N Engl J Med 1992;326:1560;

YUN YH, Kwon YC, Lee MK, et al. Experiences and attitudes of patients with terminalcancer and their family caregivers toward the disclosure of terminal illness. J Clin Oncol2010;28:1950.

A abordagem ecossistêmica e aconstrução de políticas públicas

1. Introdução

Na busca de internalização da questão ambiental na área dasaúde coletiva, vem ganhando força e espaço a abordagemecossistêmica da saúde. O enfoque ecossitêmico apresentaduas vertentes.

A primeira, denominada de Abordagem da Saúde de Ecossistemas (Opas,2009), refere-se ao conhecimento transdisciplinar, abordando e integrando asciências naturais (dimensão biofísica), sociais (dimensão socioeconômica) eda saúde (dimensão da saúde humana) e procurando:

• Diagnosticar as disfunções dos ecossistemas, por meio de monitora-mento de sinais e indicadores, com o objetivo de identificar riscos dedeterioração, distinguindo ecossistemas saudáveis daqueles consideradosdoentes;• Discutir e apresentar opções para as mudanças de estado dos ecossis-temas, focalizando as estratégias preventivas a fim de reduzir custos deintervenções pós-danos, riscos à saúde humana e rupturas sociais porconta da degradação ambiental ocorrida;

A Abordagem da Saúde de Ecossistemas utiliza como critérios de avalia-

179

180

ção as seguintes categorias: vigor, resiliência, organização, manutenção dosserviços ecossistêmicos, opção de gestão, danos aos ecossistema vizinhos,efeitos sobre a saúde humana.

O outra vertente proposta é denominada de Abordagem Ecossistêmicada Saúde, que parte da premissa de que as manifestações de doença e saúdeocorrem em contextos socioecológicos complexos. Essa abordagem, partindoda questão da saúde humana, busca entender as correlações existentes entrea saúde e o estado do ecossistema.

As duas vertentes têm em comum: uma visão transdisciplinar e sistêmi-ca, o que gera a necessidade do compartilhamento do conhecimento e da for-mação de equipes transdisciplinares; um pluralismo metodológico e incorpo-ram os princípios da participação social; a definição de um território de açãoa ser analisado e compartilhado de forma transdisciplinar; a complexidadeem contraposição ao reducionismo proposto pelo modelo cartesiano de abor-dagem da natureza; incorporação das incertezas como inerentes aos sistemascomplexos.

O Projeto Manuelzão procurou trabalhar numa lógica de convergênciadessas duas vertentes quando definiu o território de bacia hidrográfica paraatuar. Pois a qualidade das águas pode sinalizar danos provocados ao ecossis-tema pelas ações humanas, assim como pode indicar riscos à saúde humana.

A questão que se colocava era: seria possível transformar esse modeloteórico de abordagem ecossistêmica em política pública?

A resposta veio com a construção e proposição da Meta 2010 – navegar,pescar e nadar no rio das Velhas no trecho da região metropolitana de BeloHorizonte.

A meta 2010 incorporou as seguintes premissas ecossistêmicas:• Navegar, pescar e nadar dizem respeito aos usos múltiplos do rio, ouseja, aos serviços ambientais prestados pelos rios;• O pescar refere-se à revitalização do ecossistema aquático;• O nadar refere-se à melhoria da qualidade das águas no que se refereàs necessidades humanas;• O prazo de 2010 refere-se à construção temporal de políticas públicas;

Para que tudo isso fosse possível, partiu-se de um diagnóstico transdisci-plinar e sistêmico das questões socioambientais (fatores de pressão) da bacia,propondo, a partir dele, as ações estratégicas a serem desenvolvidas.

Outra questão fundamental foi o compartilhamento desse diagnósticocom a sociedade, identificando os atores sociais a serem envolvidos no pro-cesso. Dessa forma, foram mobilizados o setor público, o setor privado e a

181

sociedade civil.Foram protocolados e assinados termos de cooperação e compromissos

com todos os segmentos envolvidos.Neste capitulo procuramos sinalizar, através de diferentes indicadores,

os resultados obtidos na construção da política pública dentro de uma abor-dagem ecossistêmica, visando à revitalização da bacia do rio das Velhas.

2. A construção de indicadores

A questão de indicadores para avaliar resultados de uma abordagemecossistêmica representa, em si, um grande desafio por se tratar de fenôme-nos complexos e transdisciplinares.

Indicadores socioambientais devem nos mostrar como está o estado domeio ambiente e o que pode acontecer a curto e a longo prazo de forma com-preensível e útil (Ribeiro, 2006).

Portanto, um indicador de revitalização é complexo e deve refletir resul-tados obtidos quanto aos múltiplos usos das águas.

Do ponto de vista conceitual a revitalização no sentido pleno e susten-tável implica em compatibilizar a qualidade das águas com o desenvolvimen-to econômico, a balneabilidade e a preservação da biodiversidade.

Para atender uma demanda tão complexa, foi proposta, a princípio, acriação de um indicador geral específico, envolvendo todos os conceitos men-cionados anteriormente. Assim, um Indicador de Revitalização ideal deveriaser composto e incluir os Índices de Qualidade de Água – IQA, deDesenvolvimento Humano – IDH, de Balneabilidade e de DiversidadeBiológica – IDB.

Disposto na forma de um gráfico (Figura 1) é possível, em um determi-nado ponto do rio, verificar a correlação entre os diferentes índices – a pon-tuação 10 seria a melhor possível. Com ele seria possível definir se a gestãodas águas está ou não contribuindo para fomentar todas vertentes

Infelizmente, por questões metodológicas, não foi ainda possível conso-lidar a formatação de um único Índice de Revitalização. Apesar disso, foimantida a mesma concepção metodológica na avaliação da Meta 2010,embora abordando cada item separadamente:

• Evolução do IQA• Evolução da Biodiversidade• Evolução do Saneamento• Evolução Socioambiental

182

3. Evolução socioambiental – fator de pressão da urbanização

Um dos fatores de pressão importante no território da bacia refere-se aouso e ocupação do solo e, em especial, ao adensamento humano nas cidades.

Inicialmente, é importante destacar que a área do epicentro da Meta 2010incluiu 26 municípios, que se encontravam no limite geográfico compreendi-do entre o rio Itabirito e o ribeirão Jequitibá (Figura 2). Esse epicentro foi defi-nido por concentrar os principais focos de degradação da bacia e os piores Índi-ces de Qualidade de Água – IQA e de biodiversidade – ausência de peixes .

Há que se mencionar que nem sempre a área territorial do municípiocoincide com os limites geográficos da bacia. Isto porque o limite da bacialeva em consideração a área de drenagem, ou seja, todo o território do entor-no dos cursos d’água que drenam na direção da calha do rio das Velhas, e nemsempre o limite geográfico do município coincide com o limite da bacia.

Considerando o fato de que não existem dados desagregados, quer sejado IBGE ou de outras fontes, que respeitem rigidamente os limites geográfi-cos da bacia hidrográfica, as informações aqui apresentadas se referem aosdados absolutos do município. A favor desta análise há que se afirmar que assoluções ambientais dependem de decisões políticas que são tomadas para omunicípio inteiro, e que os dados apresentados refletem, portanto, uma ten-dência geral do município.

O modelo de desenvolvimento socioeconômico tem levado a uma con-

Figura 1: Composição do Índice de Revitalização

183

Figura 2: área de ação da Meta 2010 na Bacia do rio das Velhas.

184

centração da população humana nas cidades. Esse fenômeno da urbanizaçãoé mundial, e na bacia do rio das Velhas não tem sido diferente ao longo dasúltimas quatro décadas.

Na última década a população total da bacia na região da Meta cresceua uma taxa anual de 1,75 %, passando de 3.989.621 (2000) para 4.407.511(2010) (Tabela 1).

Fonte: Censos IBGE de 1990, 2000 e estimativa 2008.

Tabela 1: Evolução da População por municípios na região da Meta2010 nos anos 1990, 2000 e 2008

185

Esta concentração populacional é um dos principais fatores de pressãona região da Meta. Iniciou-se com o crescimento de Belo Horizonte, comocapital do estado, e, a seguir, irradiou-se para os municípios limítrofes, con-solidando uma região metropolitana – conurbação.

A taxa de urbanização (percentual da população que habita na zona

Figura 3 - Grau de urbanização da área da meta 2010 nas últimas décadas.Fonte: CensosIBGE 1990, 2000 e estimativa 2008.

urbana em relação à população total) vem apresentando um crescimentoacentuado em todas as cidades da bacia, especialmente em Belo Horizonte eContagem (Figura 3).

O vetor de crescimento na região é variável, e depende de diferentes fato-res, como vias de acesso, facilidade no parcelamento do solo, especulaçãoimobiliária e pólos de crescimento econômico. Enquanto alguns municípiospermanecem com população praticamente estagnada – o caso de Raposos,Jaboticatubas e Prudente de Morais –, outros apresentaram um crescimentoacelerado – o caso de Ribeirão das Neves e Santa Luzia.

Como consequência desse processo, pode-se afirmar que os cursosd’água afetados dependem do sentido do vetor de crescimento, que, na últi-ma década, atingiu, sobretudo, as bacias do ribeirão Arrudas, Onça e ribeirãoda Mata.

Esse crescimento desordenado afetou seriamente os cursos d’água emfunção do comprometimento das Áreas de Proteção Permanente - APPs pelaocupação das margens e da deposição inadequada de lixo e esgotos.

Outra questão importante diz respeito ao modelo de construção dascidades que adota práticas incompatíveis com a gestão das águas, como aimpermeabilização do solo e a canalização, que intensificam as ações deeventos naturais, causando enchentes (Figura 4).

186

Figura 4: enchente do rio Arrudas. Fonte: Jornal O Tempo, 2009

Assim, torna-se fundamental rever e equacionar o modelo de gestão dascidades com a gestão das águas, visto os danos socioambientais provocadospelas inadequações entre os dois modelos. É preciso tratar melhor este temanos Planos Diretores dos Municípios.

Esses fatores de pressão são preocupantes, pois, em grande parte, não sãoenfrentados por políticas públicas consistentes, gerando processos de degra-dação que têm efeitos sistêmicos e implicam em danos ambientais e compro-metimento à saúde coletiva.

Em grande parte, essa urbanização sem ordenamento vem acompanha-da de uma precariedade da infraestrutura sanitária, o que agrava os proble-mas em geral.

4. Evolução do saneamento

Observa-se que o processo de urbanização contribuiu de uma formaimportante para a universalização do abastecimento de água tratada (Figura5). Importante destacar que 45% da água que abastece a região metropolita-

187

Figura 5: Órgãos de gestão do abastecimento público de água potável, 2009. Fonte: ProjetoManuelzão, 2009.

na de Belo Horizonte é captada do rio das Velhas, em Bela Fama, Nova Lima. A COPASA é responsável pelo abastecimento de água de, aproximada-

mente, 80% dos municípios da Meta 2010, com um padrão consideradomuito bom no quesito qualidade da água para o consumo humano.

Ao longo do desenvolvimento das ações da Meta 2010, foi possível veri-ficar um crescimento da população atendida por água tratada nos municí-

188

Fonte: IBGE, Censo 2000 e COPASA, 2009.

Tabela 2: Evolução do percentual de atendimento do serviço de águapotável nos municípios atendidos pela COPASA, 2000 e 2009

pios servidos pela COPASA, consolidando a tendência de universalizaçãodeste serviço (Tabela 2)

É importante mencionar que três municípios possuem SistemasAutônomos de Água e Esgoto – SAAE, que têm procurado melhorar a quali-dade dos serviços prestados à população – destaque para Itabirito e Caeté – ,mas ainda existem dificuldades financeiras e políticas, que, por vezes, com-prometem os resultados.

Por outro lado, a geração de efluentes industriais e domésticos tem sidoum fator de pressão sobre a bacia do rio das Velhas. Historicamente, os cur-sos d’água têm sido utilizados como diluentes dos efluentes in natura.

Era facultado aos municípios, pela legislação, dar a concessão do abaste-cimento de água para uma empresa de saneamento – no caso a COPASA –desvinculada da concessão do sistema de esgotamento sanitário. A conse-quência desse processo histórico foi que um grande número de prefeituras(onze) na área da Meta não geriu adequadamente o sistema de esgotamentosanitário e não priorizou o tratamento, permanecendo a deposição in naturados esgotos nos cursos d’água.

O tratamento dos esgotos domésticos foi um dos principais focos dasações do Projeto Estruturador do Governo do Estado de Minas Gerais – Meta2010. Houve progressos importantes no que se refere a este item, principal-mente nos municípios onde a COPASA atua – em especial, Belo Horizonte eContagem. No gráfico 1 é possível verificar o crescimento no volume deesgoto tratado pela Copasa na bacia do rio das Velhas, que passou de 4milhões de metros cúbicos em 1999 para mais de 100 milhões em 2009, oque corresponde a 68% do esgoto gerado.

5. Gestão dos resíduos sólidos

Uma população vivendo em cidades dentro de padrões de consumo cres-cente gera uma produção de resíduos cada vez maior (figura 6).

Utilizando os dados populacionais atualizados da bacia (IBGE, 2010),podemos afirmar que o total de resíduos sólidos gerados na bacia supera as4.000 toneladas/dia. Todo esse lixo deve ser coletado e ter uma destinaçãofinal adequada.

No que se refere à coleta, observa-se uma grande diferença dos municí-pios quanto à capacidade do serviço público para coletar o lixo produzido,sendo que Belo Horizonte e Contagem apresentam os melhores índices decoleta, próximo de 100% .

Por outro lado, no que se refere ao destino final dos resíduos sólidos, a

189

situação é ainda muito ruim. A política do “enterramento do lixo” prevalecesob a forma de lixões (oito), aterros controlados (dezesseis) e aterros sanitá-rios (dois), conforme pode ser visto na figura 7. Há que se comemorar a redu-ção dos lixões na última década.

A deposição inadequada com o “enterramento do lixo” gera a contami-nação do solo pelo chorume e, consequentemente, do lençol freático, com-prometendo a qualidade das águas do rio.

A coleta seletiva não avançou significativamente na região da Meta2010. Ou seja, houve pouco investimento tanto no campo político como noeconômico para modificar o modelo da gestão dos resíduos sólidos na regiãoda Meta 2010.

6. Evolução dos indicadores de saúde e desenvolvimento humano.

Para verificar o impacto das políticas públicas da Meta 2010 sobre asaúde da população e o desenvolvimento humano, utilizamos o Índice deMortalidade Infantil e o IDH.

190

Gráfico 1: Evolução da vazão dos esgotos tratados, 2009. Fonte: Copasa, 2009.

A taxa de mortalidade infantil apresenta uma relação direta com osaneamento ambiental, pois as crianças são mais suscetíveis às doenças deveiculação hídrica que, por sua vez, dependem da qualidade da água forneci-da.

Houve uma queda da taxa de mortalidade infantil em todos os municí-pios da Meta 2010, durante o período observado (Figura 8), passando de umamédia de 21,3 por mil em 2003, para 15,5 por mil em 2008.

Embora outras ações desenvolvidas no campo da atenção primária pro-vavelmente tenham contribuído para a redução da mortalidade infantil, nãohá como negar que também as ações de saneamento promovidas pela Meta2010 contribuíram para essa redução.

7. Impacto das intervençoes humanas sobre os usos d’água da bacia.

Os fatos mencionados nos itens anteriores refletem na qualidade daságuas de diferentes afluentes, comprometendo, por um efeito sinérgico e sis-têmico, a qualidade das águas do rio das Velhas.

191

Figura 6: Quantidade de resíduos sólidos produzidos nos municípios da Meta em 2002.

A situação de alguns afluentes sintetiza os impactos mencionados acimasobre a calha do rio das Velhas na região da Meta 2010.

O ribeirão Arrudas, que drena a região central de Belo Horizonte, contri-bui de forma negativa para o IQA do rio das Velhas (Gráfico 2)

A análise do gráfico mostra que a qualidade do rio das Velhas, nesse tre-cho, está diretamente relacionada com o IQA do ribeirão Arrudas.

Nas análises do IQA é importante ressaltar a influência positiva da ins-talação da Estação de Tratamento Arrudas – ETE Arrudas, que está em ope-ração com tratamento primário desde outubro de 2001, e com tratamentosecundário a partir de janeiro de 2003. A ETE propiciou uma tendência deestabilização do IQA, com menos variações bruscas da qualidade das águasdo rio das Velhas e melhorando a concentração de oxigênio dissolvido(Gráfico 3). Isso reduziu a ocorrência de mortandade de peixes, conforme os

192

Figura 7: Destino final de resíduos sólidos municipal, 2002/2010.

193

Figura 8: Evolução da taxa de mortalidade infantil, 2000, 2003, 2006. Fonte: cadernos doSUS 2000, 2003, 2006.

estudos de biomonitoramento do pesquisador Carlos Bernardo Marcarenhas(Projeto Manuelzão /UFMG).

Na região crítica da Meta houve uma melhora do IQA. Em BeloHorizonte, os principais cursos d’água afluentes do rio das Velhas, ribeirão do

194

Gráfico 2: IQA do ribeirão Arrudas e do rio das Velhas, 1997-2009. Fonte: IGAM, dados domonitoramento das águas superficiais do rio das Velhas,1997- 2009.

Gráfico 3: Oxigênio dissolvido e demanda bioquímica de oxigênio na foz do ribeirão Arrudas,1997-2009. Fonte: Dados do monitoramento das águas superficiais do rio das Velhas, IGAM,

1997 a 2009

Onça e ribeirão Arrudas, possuíam, juntos, a média de IQA de 18,3 em 2002,valor que saltou para 25,2 em 2008. Uma melhora significativa de 37 %, quepoderá ser acrescida, ainda mais nos próximos meses, com a implantação dotratamento secundário da ETE Onça.

É possível verificar que, à medida que nos afastamos da região metropo-litana e do processo de urbanização, existem contribuições positivas de dife-rentes afluentes para a qualidade das águas do rio das Velhas, em especial asub-bacia do rio Cipó-Paraúna.

8. Bioindicador – a volta do peixe

Os peixes são bioindicadores complexos, uma vez que a sua existênciadepende dos parâmetros relacionados à qualidade das águas, tais como:Demanda Bioquímica de Oxigênio, Oxigênio Dissolvido (OD), Turbidez,dentre outros. Dependem, também, de uma cadeia alimentar, que inclui apresença de seres bentônicos, cuja presença e diversidade estão correlaciona-das com a qualidade das águas (figura 9)

A implantação das políticas públicas visando a Meta 2010, especialmen-te no que se refere ao tratamento dos esgotos, produziu melhora na qualida-de das águas com o aumento do oxigênio dissolvido (OD). Como consequên-cia desse fato, houve mudanças positivas nas condições do ecossistema aquá-tico, resultando na volta dos peixes para a região metropolitana - o que já nãoocorria há décadas (figura 10).

9. Considerações finais

Os resultados obtidos pela Meta 2010 e discutidos neste capítulo permi-tem afirmar a viabilidade da abordagem ecossistêmica na construção de polí-ticas públicas.

A definição da bacia hidrográfica como um território para exercício dagestão ambiental de forma transdiciplinar foi fundamental, pois permitiuincorporar aspectos geofísicos, ecológicos e econômicos, para além das polí-ticas municipalistas. Este éum território sistêmico e complexo, uma vez queos cursos d’água que compõem a bacia hidrográfica incluem os ecossistemashumanos e naturais.

Do ponto de vista social e político, a Meta 2010, idealizada e propostapelo Projeto Manuelzão, permitiu a construção de uma rede de parceriasenvolvendo o governo do estado e a sociedade civil em um movimento sinér-gico em prol da revitalização de um rio. Pela primeira vez na história, as polí-

195

ticas públicas estão sendo avaliadas pela qualidade das águas do rio.Houve melhorias nos ecossistemas humanos com o aumento do abaste-

cimento público de água potável, de interceptação e tratamento de esgotos ediminuição dos lixões. Houve também uma melhoria do ecossistema aquáti-co demonstrado pela volta do peixe.

A Meta 2010 foi sucesso, principalmente na região do baixo e do médiorio das Velhas. Essas áreas, beneficiadas pelas intervenções na região metro-politana de Belo Horizonte, apresentaram melhorias significativas na quali-dade das suas águas. Os relatos de pescadores, ribeirinhos e os dados obtidospela Expedição 2009 do Projeto Manuelzão demonstram que o rio se revita-lizou, e o “milagre da multiplicação dos peixes” é confirmado por todos ereferendado pelos pesquisadores coordenados por Carlos Bernardo

196

Figura 9: Bioindicadores bentônicos da qualidade das águas. Fonte: Nuvelhas

Mascarenhas Alves e Marcos Calixto do biomonitoramento do NuvelhasManuelzão/UFMG (Figura 10).

Após as intervenções na região mais degradada, é necessário voltar-separa cada afluente identificando e buscando soluções para os focos de polui-ção destes rios.

197

Figura 10: Análise comparativa do retorno dos peixes ao rio das Velhas 200/2007 Fonte:Nuvelhas Manuelzão.

A Meta 2010, proposta pelo Projeto Manuelzão e incorporada pelo esta-do, é um marco na história de Minas, do Brasil e da revitalização de rios nomundo. Podemos afirmar, em uma avaliação qualitativa, que a meta atingiu60% do esperado. Demonstrou, na prática, que a sociedade pode reverter, emcurto espaço de tempo, o processo de degradação desde que estabeleça esseobjetivo como meta política.

A sequência do processo de revitalização vai requerer um grande esforçopolítico-institucional para pactuar algumas questões importantes, como bar-ragens, mineração, agrotóxicos, uso e ocupação do solo, gestão dos resíduossólidos e tratamento de esgotos em todos os municípios da bacia, bem comotratamento terciários nas ETE’s de Belo Horizonte, objetivos a serem estru-turados e efetivados na Meta 2014.

Referências biblográficas

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística. Anuário estatístico. Rio deJaneiro: IBGE, 1980.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário estatístico. Rio deJaneiro: IBGE, 1991.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário estatístico. Rio deJaneiro: IBGE, 2001

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário estatístico. Rio deJaneiro: IBGE, 2011

COMITÊ DE BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DAS VELHAS. Plano Diretor: resu-mo executivo. Belo Horizonte: IGAM, 2004.

BRASIL. Ministério da Saúde. Datasus: Cadernos de informações de saúde. Disponívelem: <www.saude.gov.br>. Acesso em. 01 de nov. 2009.

DRENURBS. Programa de recuperação ambiental de Belo Horizonte. Belo Horizonte:PBH. impresso

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Condições de vida nos municípios de Minas Gerais.Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2000.

FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA. Diagnóstico de percepçãosocioambiental da bacia do córrego primeiro de maio. Belo Horizonte: Fundep, 2007.

INSTITUTO MINEIRO DE GESTÃO DAS ÁGUAS (IGAM). Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM;2003. CD

INSTITUTO MINEIRO DE GESTÃO DAS ÁGUAS (IGAM). Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM;2004. CD

198

INSTITUTO MINEIRO DE GESTÃO DAS ÁGUAS (IGAM). Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM;2006. CD

INSTITUTO MINEIRO DE GESTÃO DAS ÁGUAS (IGAM). Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM;2007. CD

LISBOA, A H; GOULART, E M A; DINIZ, L F M. Projeto Manuelzão: a história damobilização que começou em torno de um rio. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy –SOS Rio das Velhas, 2008.

MINAS GERAIS. Fundação Estadual do Meio Ambiente. Saneamento e cidadania nabacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: FEAM, 2006.

MINAS GERAIS. Instituto Mineiro de Gestão das Águas. Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM;2003. CD-ROM.

MINAS GERAIS. Instituto Mineiro de Gestão das Águas. Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM,2005. CD-ROM.

MINAS GERAIS. Instituto Mineiro de Gestão das Águas. Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM,2006. CD-ROM.

MINAS GERAIS. Instituto Mineiro de Gestão das Águas. Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM,2007. CD-ROM.

MINAS GERAIS. Instituto Mineiro de Gestão das Águas. Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM,2008. CD-ROM.

MINAS GERAIS. Instituto Mineiro de Gestão das Águas. Projeto Águas de Minas:qualidade das águas superficiais – bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte: IGAM,2004. CD-ROM.

OPAS. Enfoques ecossistêmicos em saúde: perspectivas para sua adoção no Brasil e paí-ses da América Latina. Brasilia:OPAS, 2009.

POLIGNANO,MV et al. Saúde e ambiente na bacia do rio das Velhas. Belo Horizonte:Belo Horizonte, 2002.

POLIGNANO, MV et al. Meta 2010: revitalização da bacia do rio das Velhas. BeloHorizonte: Instituto Guaicuy – SOS Rio das Velhas, 2008.

199