ADI4277MA
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Ao Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal Relator : Min. Ayres Britto Reqte.(s) : Procuradora-geral da Repblica Reqdo.(a/s) : Presidente da Repblica Adv.(a/s) : Advogado-geral da Unio Reqdo.(a/s) : Congresso Nacional Intdo.(a/s) : Conectas Direitos Humanos Intdo.(a/s) : Associao Brasileira de Gays, Lsbicas e Transgneros
- Abglt Adv.(a/s) : Marcela Cristina Fogaa Vieira e Outro(a/s) Intdo.(a/s) : Associao de Incentivo Educao e Sade de So
Paulo Adv.(a/s) : Fernando Quaresma de Azevedo e Outro(a/s) Intdo.(a/s) : Instituto Brasileiro de Direito de Famlia - Ibdfam Adv.(a/s) : Rodrigo da Cunha Pereira Intdo.(a/s) : Associao Eduardo Banks Adv.(a/s) : Reinaldo Jos Gallo Jnior Intdo.(a/s) : Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil - Cnbb Adv.(a/s) : Joo Paulo Amaral Rodrigues e Outro(a/s)
V O T O
O SENHOR MINISTRO MARCO AURLIO Na assentada de ontem,
proclamou-se o prejuzo parcial da Arguio de Descumprimento de Preceito
Fundamental n 132, levando-se em conta a edio de lei estadual que implicou a
extenso dos benefcios previstos nos artigos 19, incisos II e V, e 33, incisos I a X e
pargrafo nico, do Decreto-Lei n 220, de 18 de julho de 1975, do Estado do Rio
de Janeiro, aos servidores pblicos civis que tenham constitudo unies
homoafetivas. O pedido residual de reconhecimento de incompatibilidade entre
as decises administrativas e judiciais mencionadas na petio inicial e a
Constituio Federal foi recebido como ao direta de inconstitucionalidade com
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mesmo objeto da Ao Direta de Inconstitucionalidade n 4.277. Considerada a
identidade de pedidos, articulo um nico voto sobre o tema.
O pedido formulado pelo requerente de aplicao do regime jurdico
previsto no artigo 1.723 do Cdigo Civil s unies entre pessoas do mesmo sexo
com a inteno de instituir famlia. De acordo com a interpretao de alguns, o
regime estaria limitado s unies entre homem e mulher. O requerente articula
com a violao aos princpios e s regras constitucionais atinentes liberdade,
igualdade, dignidade e segurana jurdica. Defende ser obrigao constitucional
do poder pblico a aplicao analgica do regime da unio estvel s unies
homoafetivas.
Pois bem, eis o cerne da questo em debate: saber se a convivncia pblica,
duradoura e com o nimo de formar famlia, por pessoas de sexo igual deve ser
admitida como entidade familiar luz da Lei Maior, considerada a omisso
legislativa. Em caso positivo, cabe a aplicao do regime previsto no artigo 1.723
do Cdigo Civil de 2002?
A corrente contrria a tal reconhecimento argumenta que o 3 do artigo
226 da Carta da Repblica remete to-somente unio estvel entre homem e
mulher, o que se poderia entender como silncio eloquente do constituinte no
tocante unio entre pessoas de mesmo sexo. Alm disso, o artigo 1.723 do
Cdigo Civil de 2002 apenas repetiria a redao do texto constitucional, sem
fazer referncia unio homoafetiva, a revelar a dupla omisso, o que afastaria
do mbito de incidncia da norma a unio de pessoas de sexo igual.
Essa a opinio que pode ser pinada das decises judiciais anexadas ao
processo, compartilhada por lvaro Villaa Azevedo (Unio entre pessoas do
mesmo sexo, Direito de famlia e sucesses, 2008, p. 17). Na mesma linha, a
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manifestao da Associao Eduardo Banks, admitida como amiga da Corte
neste processo.
Da a dificuldade hermenutica: seria possvel incluir nesse regime uma
situao que no foi originalmente prevista pelo legislador ao estabelecer a
premissa para a consequncia jurdica? No haveria transbordamento dos limites
da atividade jurisdicional? A resposta ltima questo, adianto,
desenganadamente negativa.
Em 19 de agosto de 2007, em artigo intitulado A igualdade colorida,
publicado na Folha de So Paulo, destaquei o preconceito vivido pelos
homossexuais. O ndice de homicdios decorrentes da homofobia revelador. Ao
ressaltar a necessidade de atuao legislativa, disse, ento, que so 18 milhes de
cidados considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam-
se a normas legais, mas, ainda assim, so vtimas preferenciais de preconceitos,
discriminaes, insultos e chacotas, sem que lei especfica a isso coba. Em se
tratando de homofobia, o Brasil ocupa o primeiro lugar, com mais de cem
homicdios anuais cujas vtimas foram trucidadas apenas por serem
homossexuais.
No fecho do artigo fiz ver: felizmente, o aumento do nmero de pessoas
envolvidas nas manifestaes e nas organizaes em prol da obteno de
visibilidade e, portanto, dos benefcios j conquistados pelos heterossexuais faz
pressupor um quadro de maior compreenso no futuro. Mesmo a reboque dos
pases mais avanados, onde a unio civil homossexual reconhecida
legalmente, o Brasil est vencendo a guerra desumana contra o preconceito, o
que significa fortalecer o Estado Democrtico de Direito, sem dvida alguma, a
maior prova de desenvolvimento social.
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No campo da atividade jurisdicional, ao negar a suspenso de liminar
pretendida na Petio n 1.984, embora por vrios fundamentos, tambm acenei
com a opinio ora veiculada.
H no mais de sessenta anos, na Inglaterra, foi intensamente discutido se
as relaes homossexuais deveriam ser legalizadas. As concluses ficaram
registradas no relatrio Wolfenden, de 1957. Vejam que apenas seis dcadas nos
separam de leis que previam a absoluta criminalizao da sodomia, isso no pas
considerado um dos mais liberais e avanados do mundo. Em lados opostos no
debate, estavam o renomado professor L. A. Hart e o magistrado Lorde Patrick
Devlin. O primeiro sustentava o respeito individualidade e autonomia
privada e o segundo, a prevalncia da moralidade coletiva, que poca
repudiava relaes sexuais entre pessoas de igual gnero1.
Em breve sntese, Devlin afirmou a necessidade de as leis refletirem o
tecido bsico de composio da sociedade, que exatamente a moralidade
comum. Sem a moralidade, asseverava, haveria a desintegrao da sociedade,
sendo tarefa do Direito impedir a produo desse resultado. Manifestou-se pela
mxima liberdade possvel na vida privada dos indivduos, desde que os atos
praticados no contrariassem esse preceito reputado singelo, de defesa do
mnimo tico. Questionava a prpria utilidade do direito liberdade quando
acionado para tomar decises que eram sabidamente prejudiciais ao indivduo e
sociedade. No se furtava a dizer que ningum via na homossexualidade um
bom projeto de vida de fato, essa era a opinio comum. Interrogado sobre o
que deveria ser considerado moralidade, recorreu ao juzo de uma pessoa
1 Os pontos de vista esto expressos nas obras seguintes: H. L. A. Hart, Liberty and Morality, e Patrick Devlin, The enforcemente of morals.
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normal (right-minded person), o que foi criticado por Hart pela extrema vagueza.
Afinal, o que o juzo moral de uma pessoa comum?
Segundo Hart, tais vises imputadas moralidade comum no passavam
de preconceito resultante da ignorncia, do medo e da incompreenso,
sentimentos incompatveis com a racionalidade que deve ser inerente cincia
jurdica. Apontou quatro razes para refutar a posio de Devlin. Primeira: punir
algum lhe causar mal, e, se a atitude do ofensor no causou mal a ningum,
carece de sentido a punio. Em outras palavras, as condutas particulares que
no afetam direitos de terceiros devem ser reputadas dentro da esfera da
autonomia privada, livres de ingerncia pblica. Segunda razo: o livre arbtrio
tambm um valor moral relevante. Terceira: a liberdade possibilita o
aprendizado decorrente da experimentao. Quarta: as leis que afetam a
sexualidade individual acarretam mal aos indivduos a ela submetidos, com
gravssimas consequncias emocionais.
Ao longo do tempo, os argumentos de Hart acabaram por prevalecer, ao
menos relativamente descriminalizao da sodomia.
J se concluiu que o Direito sem a moral pode legitimar atrocidades
impronunciveis, como comprovam as Leis de Nuremberg, capitaneadas pelo
Partido Nazista, que resultaram na excluso dos judeus da vida alem2. A cincia
do Direito moralmente assptica almejada por Hans Kelsen a denominada
teoria pura do Direito desaguou na obedincia cega lei injusta, e a histria j
revelou o risco de tal enfoque. O Direito, por ser fruto da cultura humana, no
pode buscar a pureza das cincias naturais, embora caiba perseguir a
objetividade e a racionalidade possveis.
2 In Enciclopdia do Holocausto, United States Holocaust Museum, disponvel em http://www.ushmm.org/
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Por outro lado, o Direito absolutamente submetido moral prestou
servios perseguio e injustia, como demonstram episdios da Idade
Mdia, quando uma religio especfica capturou o discurso jurdico para se
manter hegemnica. Como se sabe, as condenaes dos Tribunais da Santa
Inquisio eram cumpridas por agentes do prprio Estado que tambm
condenava os homossexuais, acusados de praticar a sodomia ou o pecado
nefando que resultou, para alguns, na destruio divina da cidade de Sodoma,
conforme interpretada a narrativa bblica. O jurista espanhol Gregrio Peces-
Barba Martnez (Curso de Derechos Fundamentales: teora general, 1991, p. 32)
assinala que a separao entre Direito e moral constitui uma das grandes
conquistas do Iluminismo, restaurando-se a racionalidade sobre o discurso
jurdico, antes tomado pelo obscurantismo e imiscudo com a moral religiosa.
Em sntese, se no possvel conceber o Direito e a moral como duas
esferas independentes, como queria Kelsen, tambm no se pode adotar a teoria
dos crculos concntricos, preconizada por Jeremy Bentham (citado por Paulo
Nader, Introduo ao estudo do Direito, 2010, p. 42), que considera a ordem jurdica
inteiramente circunscrita ao campo da moral. Moral e Direito devem ter critrios
distintos, mas caminhar juntos. O Direito no est integralmente contido na
moral, e vice-versa, mas h pontos de contato e aproximao.
fcil notar a influncia da moral no Direito, por exemplo, em institutos
como o casamento no direito de famlia e em tipos penais, como eram muitos
dos denominados crimes contra os costumes, os quais tm origem comum em
sentimentos morais e religiosos. A afirmao peremptria de que o discurso
jurdico no pode, sob nenhuma condio, incorporar razes morais para
justificar proibies, permisses ou formatar instituies mostra-se equivocada,
caso contrrio a prpria referncia constitucional ao princpio da moralidade,
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presente no artigo 37, cabea, da Carta Federal, haveria de ser tachada de
ilegtima. Essa constatao, porm, no afasta outra: incorreta a prevalncia, em
todas as esferas, de razes morais ou religiosas. Especificamente quanto
religio, no podem a f e as orientaes morais dela decorrentes ser impostas a
quem quer que seja e por quem quer que seja. As garantias de liberdade religiosa
e do Estado Laico impedem que concepes morais religiosas guiem o
tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais, tais como o direito
dignidade da pessoa humana, o direito autodeterminao, o direito
privacidade e o direito liberdade de orientao sexual.
A ausncia de aprovao dos diversos projetos de lei que encampam a tese
sustentada pelo requerente, descontada a morosidade na tramitao, indica a
falta de vontade coletiva quanto tutela jurdica das unies homoafetivas. As
demonstraes pblicas e privadas de preconceito em relao orientao
sexual, to comuns em noticirios, revelam a dimenso do problema.
A soluo, de qualquer sorte, independe do legislador, porquanto decorre
diretamente dos direitos fundamentais, em especial do direito dignidade da
pessoa humana, sob a diretriz do artigo 226 e pargrafos da Carta da Repblica
de 1988, no que permitiu a reformulao do conceito de famlia.
O reconhecimento de efeitos jurdicos s unies estveis representa a
superao dos costumes e convenes sociais que, por muito tempo, embalaram
o Direito Civil, notadamente o direito de famlia. A unio de pessoas com o fim
de procriao, auxlio mtuo e compartilhamento de destino um fato da
natureza, encontra-se mesmo em outras espcies. A famlia, por outro lado,
uma construo cultural. Como esclarece Maria Berenice Dias (Manual de direito
das famlias, 2010, p. 28), no passado, as famlias formavam-se para fins exclusivos
de procriao, considerada a necessidade do maior nmero possvel de pessoas
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para trabalhar em campos rurais. Quanto mais membros, maior a fora de
trabalho, mais riqueza seria possvel extrair da terra. Os componentes da famlia
organizavam-se hierarquicamente em torno da figura do pai, que ostentava a
chefia da entidade familiar, cabendo aos filhos e mulher posio de
subservincia e obedincia. Esse modelo patriarcal, fundado na hierarquia e no
patrimnio oriundo de tempos imemoriais, sofreu profundas mudanas ao
tempo da revoluo industrial, quando as indstrias recm-nascidas passaram a
absorver a mo de obra nos centros urbanos. O capitalismo exigiu a entrada da
mulher no mercado de trabalho, modificando para sempre o papel do sexo
feminino nos setores pblicos e privados. A aglomerao de pessoas em espaos
cada vez mais escassos nas cidades agravou os custos de manuteno da prole,
tanto assim que hoje se pode falar em famlia nuclear, em contraposio famlia
extensa que existia no passado.
As modificaes pelas quais a famlia passou no impediram a
permanncia de resqucios do modelo antigo, os quais perduraram e alguns
ainda perduram at os dias recentes. Fao referncia a pases em que ainda h a
proeminncia do homem sobre a mulher, como ocorre no Oriente Mdio, e os
casamentos arranjados por genitores feito por interesses deles e no dos
nubentes , que continuam a ter vez em determinadas reas da ndia.
Especificamente no Brasil, o Cdigo Civil de 1916 atribua efeitos jurdicos
somente famlia tradicional, consumada pelo matrimnio entre homem e
mulher, em vnculo indissolvel. Famlia era apenas uma: aquela resultante do
matrimnio. Os relacionamentos situados fora dessa esfera estavam fadados
invisibilidade jurdica, quando no condenados pecha da ilicitude, rotulados
com expresses pouco elogiosas lembrem-se dos filhos adulterinos, amsias e
concubinas.
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A situao foi mudando gradualmente. Primeiro, com a edio da Lei n
4.121/62 Estatuto da Mulher Casada, que atribuiu capacidade de fato mulher,
admitindo-lhe ainda a administrao dos bens reservados. Em seguida, o
divrcio, implementado pela Emenda Constitucional n 9/77 e pela Lei n
6.515/77, modificou definitivamente o conceito de famlia, ficando reconhecidas a
dissoluo do vnculo e a formao de novas famlias.
O processo evolutivo encontrou pice na promulgao da Carta de 1988. O
Diploma o marco divisor: antes dele, famlia era s a matrimonial, com ele, veio
a democratizao o reconhecimento jurdico de outras formas familiares.
Segundo Gustavo Tepedino: A Constituio da Repblica traduziu a
nova tbula de valores da sociedade, estabeleceu os princpios fundamentais do
ordenamento jurdico e, no que concerne s relaes familiares, alterou
radicalmente os paradigmas hermenuticos para a compreenso dos modelos de
convivncia e para a soluo dos conflitos intersubjetivos na esfera da famlia
(A legitimidade constitucional das famlias formadas por unies de pessoa do
mesmo sexo, Boletim Cientfico da Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio,
nmeros 22 e 23, p. 91). Maria Berenice Dias afirma que agora no se exige mais
a trplice identidade: famlia-sexo-procriao (Unio homoafetiva, 2009, p. 178).
inegvel: ela tem razo.
O 5 do artigo 226 da Constituio Federal equiparou homens e mulheres
nos direitos e deveres conjugais, determinando a mais absoluta igualdade
tambm no interior da famlia. O 4 do mencionado dispositivo admitiu os
efeitos jurdicos das denominadas famlias monoparentais, formadas por apenas
um dos genitores e os filhos. Por fim, o 3 desse artigo expressamente imps ao
Estado a obrigatoriedade de reconhecer os efeitos jurdicos s unies estveis,
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dando fim ideia de que somente no casamento possvel a instituio de
famlia.
Revela-se, ento, a modificao paradigmtica no direito de famlia. Este
passa a ser o direito das famlias, isto , das famlias plurais, e no somente da
famlia matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimnio,
elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos
centrais de caracterizao da entidade familiar. Alterou-se a viso tradicional
sobre a famlia, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a
existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum.
Abandonou-se o conceito de famlia enquanto instituio-fim em si mesmo,
para identificar nela a qualidade de instrumento a servio da dignidade de cada
partcipe, como defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito de famlia
e o novo Cdigo Civil, p. 93, citado por Maria Berenice Dias, Manual de direito das
famlias, 2010, p. 43).
Consoante Pietro Pierlingieri, a famlia no fundada no casamento ,
portanto, ela mesma uma formao social potencialmente idnea ao
desenvolvimento da personalidade dos seus componentes e, como tal, orientada
pelo ordenamento a buscar a concretizao desta funo (O direito civil na
legalidade constitucional, 2008, p. 989). Se o reconhecimento da entidade familiar
depende apenas da opo livre e responsvel de constituio de vida comum
para promover a dignidade dos partcipes, regida pelo afeto existente entre eles,
ento no parece haver dvida de que a Constituio Federal de 1988 permite
seja a unio homoafetiva admitida como tal. Essa a leitura normativa que fao
da Carta e dos valores por ela consagrados, em especial das clusulas contidas
nos artigos 1, inciso III, 3, incisos II e IV, e 5, cabea e inciso I.
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Percebam que a transformao operada pela atual Constituio no se
resumiu ao direito de famlia. A partir de 1988, ocorreu a ressignificao do
ordenamento jurdico. Como cedio, compete aos intrpretes efetuar a
filtragem constitucional dos institutos previstos na legislao infraconstitucional.
Esse fenmeno denominado constitucionalizao do Direito, na expresso de
uso mais corriqueiro, revela que no podemos nos ater ao dogmatismo
ultrapassado, que ento prevalecia no Direito Civil.
Esse ramo do Direito voltou-se tutela das situaes jurdico-existenciais
e, apenas em carter secundrio, s situaes jurdico-patrimoniais. O Direito
Civil possivelmente o ramo da cincia jurdica mais afetado pela insero do
princpio da dignidade da pessoa humana como fundamento da Repblica,
porquanto estampa diretamente os costumes e os valores da sociedade, razo
pela qual tantas vezes o Cdigo Civil rotulado como a Constituio do homem
comum.
O Direito Civil, sabemos, restringia-se ao ter. O titular da propriedade
era o grande destinatrio das normas do Direito Civil, e a propriedade era o
direito por excelncia. O direito de famlia oriundo do Cdigo Bevilcqua
concernia a questes patrimoniais.
O Direito Civil, na expresso empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu
uma virada de Coprnico, foi constitucionalizado e, por consequncia,
desvinculado do patrimnio e socializado. A propriedade e o proprietrio
perderam o papel de centralidade nesse ramo da cincia jurdica, dando lugar
principal pessoa. o direito do ser, da personalidade, da existncia.
Relegar as unies homoafetivas disciplina da sociedade de fato no
reconhecer essa modificao paradigmtica no Direito Civil levada a cabo pela
Constituio da Repblica. A categoria da sociedade de fato reflete a realizao
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de um empreendimento conjunto, mas de nota patrimonial, e no afetiva ou
emocional. Sociedade de fato sociedade irregular, regida pelo artigo 987 e
seguintes do Cdigo Civil, de vocao empresarial. Sobre o tema, Carvalho de
Mendona afirmava que as sociedades de fato so aquelas afetadas por vcios
que as inquinam de nulidade, e so fulminadas por isso com o decreto de morte
(Tratado de direito comercial brasileiro, 2001, p. 152 e 153). Para Rubens Requio,
convm esclarecer que essas entidades sociedades de fato e sociedades
irregulares no perdem a sua condio de sociedades empresrias (Curso de
direito comercial, 2010, p. 444). Tanto assim que as dissolues de sociedades de
fato so geralmente submetidas competncia dos Juzos cveis, e no dos Juzos
de famlia. Nada mais descompassado com a essncia da unio homoafetiva, a
revelar o propsito de compartilhamento de vida, e no de obteno de lucro ou
de qualquer outra atividade negocial.
A homoafetividade um fenmeno que se encontra fortemente visvel na
sociedade. Como salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto causa da
atrao pelo mesmo sexo, se gentica ou se social, mas no se trata de mera
escolha. A afetividade direcionada a outrem de gnero igual compe a
individualidade da pessoa, de modo que se torna impossvel, sem destruir o ser,
exigir o contrrio. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem para a vida
afetiva comum, o ato no pode ser lanado a categoria jurdica imprpria. A
tutela da situao patrimonial insuficiente. Impe-se a proteo jurdica
integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar. Caso contrrio,
conforme alerta Daniel Sarmento3, estar-se- a transmitir a mensagem de que o
afeto entre elas reprovvel e no merece o respeito da sociedade, tampouco a
3 SARMENTO, Daniel. Casamento e Unio Estvel entre Pessoas do Mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais.In Igualdade, Diferenas e Direitos Humanos. p 644.
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tutela do Estado, o que viola a dignidade dessas pessoas, que apenas buscam o
amor, a felicidade, a realizao.
Se as decises judiciais que permitiram o reconhecimento das sociedades
de fato entre pessoas do mesmo sexo representaram inegvel avano quando
foram proferidas, atualmente elas apenas reproduzem o preconceito e trazem
balha o desprezo dignidade da pessoa humana. Igualmente, os primeiros
pronunciamentos que reconheceram aos heterossexuais no casados direitos
sucessrios com fundamento na sociedade de fato foram celebrados como
inovaes jurdicas. Nos dias de hoje, esses atos judiciais estariam em franca
incompatibilidade com a Constituio e mesmo com a moralidade comum.
O princpio da dignidade da pessoa humana ostenta a qualidade de
fundamento maior da Repblica. tambm mencionado no artigo 226, 7, onde
figura como princpio inerente ao planejamento familiar, e nos artigos 227 e 230,
quando da referncia ao dever da famlia, da comunidade e do Estado de
assegurarem, respectivamente, a dignidade da criana e do idoso. As opinies
doutrinrias asseveram tratar-se do valor dos valores, do ponto de
Arquimedes no Estado constitucional (Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa
humana e direitos fundamentais, 2002, p. 81), de modo que a importncia enquanto
fonte autnoma de obrigaes e direitos no pode ser negligenciada.
A unidade de sentido do sistema de direitos fundamentais encontra-se no
princpio da dignidade humana, porque aqueles existem exatamente em funo
da necessidade de garantir a dignidade do ser humano. A dificuldade de extrair
o exato significado da expresso dignidade humana conduz concluso de
que os rgos investidos de legitimidade democrtico-eleitoral devem ter papel
destacado nesse mister, mas no impede o reconhecimento de uma zona de
certeza positiva no tocante aos elementos essenciais do conceito.
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A proibio de instrumentalizao do ser humano compe o ncleo do
princpio, como bem enfatizado pelo requerente. Ningum pode ser
funcionalizado, instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de
sociedade alheio, ainda mais quando fundado em viso coletiva preconceituosa
ou em leitura de textos religiosos. A funcionalizao uma caracterstica tpica
das sociedades totalitrias, nas quais o indivduo serve coletividade e ao
Estado, e no o contrrio. As concepes organicistas das relaes entre
indivduo e sociedade, embora ainda possam ser encontradas aqui e acol, so
francamente incompatveis com a consagrao da dignidade da pessoa humana.
Incumbe a cada indivduo formular as escolhas de vida que levaro ao
desenvolvimento pleno da personalidade. A Corte Interamericana de Direitos
Humanos h muito reconhece a proteo jurdica conferida ao projeto de vida (v.
Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral Benavides versus Peru), que
indubitavelmente faz parte do contedo existencial da dignidade da pessoa
humana. Sobre esse ponto, consignou Antnio Augusto Canado Trindade no
caso Gutirrez Soler versus Colmbia, julgado em 12 de setembro de 2005:
Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente
por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocbulo projeto encerra em si toda uma dimenso temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo-se ideia de realizao pessoal integral. dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder s opes que lhe paream acertadas, no exerccio da plena liberdade pessoal, para alcanar a realizao de seus ideais. A busca da realizao do projeto de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido vida de cada um. (traduo livre)
O Estado existe para auxiliar os indivduos na realizao dos respectivos
projetos pessoais de vida, que traduzem o livre e pleno desenvolvimento da
personalidade. O Supremo j assentou, numerosas vezes, a cobertura que a
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dignidade oferece s prestaes de cunho material, reconhecendo obrigaes
pblicas em matria de medicamento e creche, mas no pode olvidar a dimenso
existencial do princpio da dignidade da pessoa humana, pois uma vida digna
no se resume integridade fsica e suficincia financeira. A dignidade da vida
requer a possibilidade de concretizao de metas e projetos. Da se falar em dano
existencial quando o Estado manieta o cidado nesse aspecto. Vale dizer: ao
Estado vedado obstar que os indivduos busquem a prpria felicidade, a no
ser em caso de violao ao direito de outrem, o que no ocorre na espcie.
Certamente, o projeto de vida daqueles que tm atrao pelo mesmo sexo
resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de formar famlia. Exigir-
lhes a mudana na orientao sexual para que estejam aptos a alcanar tal
situao jurdica demonstra menosprezo dignidade. Esbarra ainda no bice
constitucional ao preconceito em razo da orientao sexual.
Consubstancia objetivo fundamental da Repblica Federativa do Brasil
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminao (inciso IV do artigo 3o da Carta
Federal). No dado interpretar o arcabouo normativo de maneira a chegar-se a
enfoque que contrarie esse princpio basilar, agasalhando-se preconceito
constitucionalmente vedado. Mostra-se invivel, porque despreza a sistemtica
integrativa presentes princpios maiores, a interpretao isolada do artigo 226,
3o, tambm do Diploma Maior, no que revela o reconhecimento da unio estvel
entre o homem e a mulher como entidade familiar, at porque o dispositivo no
probe esse reconhecimento entre pessoas de gnero igual.
No mais, ressalto o carter tipicamente contramajoritrio dos direitos
fundamentais. De nada serviria a positivao de direitos na Constituio, se eles
fossem lidos em conformidade com a opinio pblica dominante. Ao assentar a
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prevalncia de direitos, mesmo contra a viso da maioria, o Supremo afirma o
papel crucial de guardio da Carta da Repblica, como o fez no julgamento do
Recurso Extraordinrio n 633.703, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes,
quando declarou a inconstitucionalidade da aplicao da Lei da Ficha Limpa
s eleies de 2010, por desarmonia com o disposto no artigo 16 da Carta
Federal. Assim j havia procedido em outras oportunidades, tal como na Ao
Direta de Inconstitucionalidade n 1.351/DF, de minha relatoria, relativamente
aos pequenos partidos polticos, no clebre caso Clusula de Barreira.
Com base nesses fundamentos, concluo que obrigao constitucional do
Estado reconhecer a condio familiar e atribuir efeitos jurdicos s unies
homoafetivas. Entendimento contrrio discrepa, a mais no poder, das garantias
e direitos fundamentais, d eco a preconceitos ancestrais, amesquinha a
personalidade do ser humano e, por fim, desdenha o fenmeno social, como se a
vida comum com inteno de formar famlia entre pessoas de sexo igual no
existisse ou fosse irrelevante para a sociedade.
Quanto equiparao das unies homoafetivas ao regime das unies
estveis, previsto no artigo 1.723 do Cdigo Civil de 2002, o bice gramatical
pode ser contornado com o recurso a instrumento presente nas ferramentas
tradicionais de hermenutica. No recente a evoluo doutrinria relativa
teoria das normas jurdicas, nas quais se ampliou a compreenso da funo e do
papel dos princpios no ordenamento jurdico. Ana Paula de Barcellos (A eficcia
dos princpios constitucionais, 2010) relembra que os princpios so dotados de
mltiplas possibilidades de eficcia jurdica, destacando-se a utilizao como
vetor hermenutico-interpretativo. Casos h em que os princpios possuem
eficcia positiva, o que ocorre precisamente quando o ncleo essencial de sentido
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deles violado. Por isso Celso Antnio Bandeira de Mello, em Elementos de direito
administrativo, 1980, p. 104, ressalta:
Violar um princpio muito mais grave que transgredir uma norma. A desateno ao princpio implica ofensa no apenas a um especfico mandamento obrigatrio, mas a todo o sistema de comandos. a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalo do princpio violado, porque representa insurgncia contra todo o sistema, subverso de seus valores fundamentais, contumlia irremissvel a seu arcabouo lgico e corroso de sua estrutura mestra.
Extraio do ncleo do princpio da dignidade da pessoa humana a
obrigao de reconhecimento das unies homoafetivas. Inexiste vedao
constitucional aplicao do regime da unio estvel a essas unies, no se
podendo vislumbrar silncio eloquente em virtude da redao do 3 do artigo
226. H, isso sim, a obrigao constitucional de no discriminao e de respeito
dignidade humana, s diferenas, liberdade de orientao sexual, o que impe
o tratamento equnime entre homossexuais e heterossexuais. Nesse contexto, a
literalidade do artigo 1.723 do Cdigo Civil est muito aqum do que consagrado
pela Carta de 1988. No retrata fielmente o propsito constitucional de
reconhecer direitos a grupos minoritrios.
Por isso, Senhor Presidente, julgo procedente o pedido formulado para
conferir interpretao conforme Constituio ao artigo 1.723 do Cdigo Civil,
veiculado pela Lei n 10.406/2002, a fim de declarar a aplicabilidade do regime da
unio estvel s unies entre pessoas de sexo igual.