Adriane Hernandez
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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
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Poética e fenomenologia
Proposições para pesquisa e ensino da arte
Adriane Hernandez1
Resumo: A partir de uma produção artística que integre pesquisa plástica e conceitual, propõe-se
colocar em evidência um modo de pesquisar e ensinar que traga o máximo de interação possível
entre ação/fazer, pensamento e texto. O caminho experimentado pressupõe uma certa delicadeza e
muita atenção para o processo dos estudantes e orientandos, uma escuta mais do que um
discurso, o que quer dizer, ouvir, mais do que falar. Um percurso que encontra nas abordagens
sutis de Roland Barthes o maior exemplo, sendo “Aula”, o pequeno livro que traz a transcrição
da aula inaugural de Barthes no Collège de France, o referencial mais agudo. A pesquisa
proposta tem como objetivo o desenvolvimento de parâmetros para uma abordagem filosófica dos
processos de criação artística que possibilite uma constante renovação de ferramentas
discursivas.
Palavras-Chave: Artes visuais. Poéticas visuais. Pesquisa em arte. Processo de criação. Grupo
Superfície 5.
1. Desarmar o discurso
As reflexões que seguem são vinculadas à experiência da pesquisadora no cotidiano do
ateliê de pintura, mais especificamente nas disciplinas de Pintura II e Pintura III, que
passaram a se chamar Ateliê de Pintura II e Ate liê de Pintura III, respectivamente, com a
mudança curricular implantada no Bacharelado em Artes Visuais, da Universidade Federal de
Pelotas, em 2011. O recorte temporal está situado entre os anos de 2009 e 2012.
Os apontamentos contidos nessa parte da pesquisa estão circunscritos principalmente à
turma que iniciou Pintura II, no segundo semestre de 2009. Este recorte se deve ao fato de
alguns alunos desta turma terem continuado a desenvolver suas pesquisas na UFPel,
possibilitando-me acompanhar, como orientadora, em alguns casos, o desenrolar de suas
trajetórias acadêmicas que, até o momento, atingem a pós-graduação lato senso Ensino e
Percursos Poéticos, na UFPel.
Penso, ainda, ser importante salientar que meu ingresso na UFPel data de 2009. Estas
experiências didáticas são, então, inaugurais para mim – nessa Universidade e na cidade de
Pelotas – e se deram com a turma em questão, principal foco de minha pesquisa. Minha
1 Doutora em Artes Visuais, Poéticas Visuais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Su l. Professora do
Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Pelotas. Membro do Grupo de Pesquisa Percursos
Poéticos (UFPel).
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experiência didática anterior data de 1999 até 2004, na Univerdade Tuiuti do Paraná, em
Curitiba, também em um Curso de Artes Visuais e também em uma disciplina de pintura.
Sou artista plástica, natural de Porto Alegre, RS, tendo realizado minha formação
acadêmica, em nível superior, integralmente no Instituto de Artes da UFRGS. Apesar de
conhecer muito pouco a cidade de Pelotas, minha adaptação não poderia ter sido mais rápida.
Comecei participando como colaboradora de um curso de extensão em pintura com o colega
professor substituto, Roger Coutinho. Quando se iniciou o semestre, duas participantes desse
curso, ingressaram no Bacharelado de Artes Visuais, com matrícula especial e posteriormente
tornaram-se minhas alunas nas disciplinas de pintura.
As disciplinas de Pintura II e Pintura III, como eram relativas ao final do curso,
pertenciam ao 6° e 7° semestres. Os alunos que ali chegavam já tinham cumprido em torno de
dois terços do currículo. Um dado comum a todos, na turma em questão, é que não tinham
estabelecido uma poética, digamos assim. Ainda não tinham um problema de pesquisa que
desse impulso ao processo individual ou a um processo coletivo, sendo que, se não
reprovassem ou abandonassem o curso, em um ano e meio estariam formados. Após os
primeiros contatos com os alunos, tomando conhecimento dos trabalhos que haviam feito até
então, tendo ouvidos seus relatos, suas perspectivas e anseios, momento mais delicado no meu
ponto de vista, onde se ganha ou se perde a confiança individual e do grupo, percebi que a
realidade que se apresentava então poderia ser propícia para algumas experimentações e a
debates profícuos.
Meu interesse, desde o início, era tentar desenvolver com os alunos uma experiência
recente, que tinha conseguido vivenciar em meu doutorado em Poéticas Visuais. Antes disso,
quando era docente em Curitiba, sentia que me faltava a prática daquilo que aconselhava,
sendo que por esse motivo um de meus objetivos com a pesquisa de doutorado era testar, em
mim mesma, se as proposições que dirigia aos estudantes eram, de fato, exequíveis. Foi assim
que experienciei realizar uma pesquisa que fosse prazerosa para mim. Eu não deveria ter
medo do desconhecido, deveria dar espaço e assumir as incertezas do processo de criação.
Buscaria, com o texto, gerar um movimento semelhante ao da criação, nunca no sentido de
explicar os trabalhos, subtraindo- lhes as ambiguidades. Minhas fontes bibliográficas
pertenceriam aos campos do saber para os quais meu trabalho apontava e para os quais eu
nutria interesse e curiosidade. Foi assim que me vi mais próxima da literatura, da filosofia, da
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teoria da história, da psicanálise e de outros campos. Minhas vivências cotidianas não seriam
excluídas do texto, assim como não seriam excluídas da produção artística. Experiências
didáticas e trabalhos de alunos também teriam lugar no meu texto, porque era o que tinha de
mais próximo, acreditando que minha pesquisa não deveria afastar-se de minha vida para que
tivesse algum “valor” científico. Uma ideia para um trabalho surge as vezes de algo muito
simples e banal, interessei-me por desmistificar a criação, trazendo a tona essas simplicidades.
Os artistas citados por mim eram aqueles cujas as obras tinham realmente contaminado meu
modo de pensar e produzir o trabalho artístico, não excluindo a contaminação de meu olhar
pela fotografia impressa da obra, levando em consideração que as vezes essa experiência é a
que mais permanece no imaginário. A “verdade” da significação de uma obra, mesmo que
colocada pela fala de seu autor, ou de um crítico tido como autoridade, não me satisfazia.
Repetir ou reafirmar esse discurso não fazia mais sentido, mas construir um outro, formulando
uma linha que atravessasse meu próprio trabalho. É de meu trabalho e de minha vivência que
surge o meu olhar, aquele que lanço para as coisas do mundo. Minha vontade era tentar
perceber os meandros sutis da criação procurando manter uma certa delicadeza nessa busca.
Desejei ter meus pés fincados na realidade, para melhor perceber os fenômenos que a
implicam. Essas procuras todas tinham um fundo didático muito importante para mim. Isso
me levou também a desenvolver um senso de alteridade, ele vem principalmente com a
atenção ao outro. Surge da atenção. O não julgamento e a não interpretação tem a mesma raiz,
para Heidegger consiste em “deixar cada coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência”
(2001, p. 129), para Merleau-Ponty “retornar as coisas mesmo é retornar a este mundo
anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda a
determinação científica é abstrata, significativa e dependente” (1999, p. 4). Retirar, com
delicadeza, a névoa que o conhecimento deposita sobre a experiência.
No começo de meus encontros com estes estudantes, em Pintura II, reparei que eles
tinham adquirido a prática “teorista” de justificar cada dado do trabalho, com argumentação
bastante frágil. O que o sintoma nas falas apontava era a execução de trabalhos onde
pudessem encaixar um discurso constituído previamente ou um discurso que explicava o
significado de cada forma ou objeto presente no trabalho, não havia espaço para a incerteza
ou para o não-sentido. Meu exercício era de tentar desconstruir a partir de perguntas e
conscientizá- los na falta de propósito em justificar um trabalho de arte. Eles diziam ser
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cobrados, por outros professores e por outras pessoas, sempre com a pergunta: “O que você
quer dizer com isso?”, concluindo, a partir disso, que deveriam sempre explicar os trabalhos.
O que me fez compreender melhor o que Roland Barthes colocou em sua Aula: “O que pode
ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas
discursivas através das quais ele é proposto” (1978, p. 43).
Nesse momento de meu relato, faço um salto para o presente, para verificar a atualidade
de minha experiência e a presentificação de tais questões.
Existe hoje, na cidade de Pelotas, um coletivo de artistas plásticas, chamado Grupo
Superfície. Tal grupo tem dois anos de existência e um modo particular de trabalhar. Integram
o Grupo Superfície, atualmente, seis artistas: Carla Borin, Carla Thiel, Daniela Meine, Mariza
Fernanda, Natália Hax e Paloma de Leon. Em sua formação original eram oito. Dois artistas
optaram em não permanecer no grupo, Rogério Franck e Adelina Petiz. As artistas se reúnem
semanalmente e realizam ações pictóricas sobre um suporte de algodão. Tais ações, em
suporte grande, são construídas por mais de uma artista, ao mesmo tempo, elas vão revezando
a atuação. Mas esta não é a parte mais surpreendente de seu processo. Quando começaram a
produzir coletivamente, cada artista já tinha uma ou mais ações características de suas
poéticas, que eram para Paloma, escorrer a tinta de modo a formar linhas paralelas, para
Mariza Fernanda, gravar carimbando, para Carla Thiel, manchar, contornar e vazar, para
Carla Borin, manchar e carimbar duplicando. Já Daniela Meine trabalhava com estêncil e
repetia um tipo de forma que representava para ela a memória de pedras, sendo que Natália
Hax era a única que não fazia pinturas antes da existência do trabalho coletivo no grupo.
Teve, no entanto, uma experimentação inicial, com um tipo de ornamentação repetitiva, mais
linear do que pictórica. Foi a partir da ação de apropriação da ação de outro integrante do
grupo, por parte de Natália, na casualidade da ausência daquele, que um novo modo que fazer
se instituiu. As artistas decidiram então, estabelecer trocas de suas ações originais (FIG.1).
Uma componente do grupo passou a fazer a ação de outra, ultrapassando a ideia de imitação,
porque não foi reproduzido nem o gesto, como modo de fazer, nem o resultado, mas sim a
ação. O que difere gesto e ação para Jersy Grotowski é que “o gesto é uma ação periférica do
corpo, não nasce do interior do corpo, mas da periferia (...) A ação é algo a mais porque nasce
do interior do corpo” (Grotowski, 1988).
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Com isso, saliento a diferença que há em tentar reproduzir algo olhando para o modelo,
buscando reduzir ao máximo as ambiguidades dos gestos vacilantes e, partir de uma ação, que
de certo modo, é geradora de um conceito que se associa mais imediatamente ao modo
particular como esta ação é feita. A particularidade conduzida pelo corpo de quem a faz é
mais evidente, lembrando ainda a célebre frase de Merleau-Ponty em O olho e o espírito: “O
pintor „emprega seu corpo‟, diz Valéry. E, com efeito, não se vê como um espírito pudesse
pintar. Emprestando seu corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura”
(1984, p.88). Com esta frase que inicia a segunda parte do texto, Merleau-Ponty, já insere a
tônica do que desenvolveria a seguir, o ser humano como um fenômeno. Fenômeno este que
só pode ser pensando pela integração e não pela separação de suas partes, uma ingenuidade
que o autor percebia na ciência, naquele momento.
Nesse sentido, o que move os participantes do Grupo Superfície não é a representação,
mas a ação. Ação esta, revelada por uma carga indicial, percebida na marca que o gesto
imprime no suporte. Ora, desse modo o processo se torna, então, evidente aos olhos.
O Grupo Superfície já realizou inúmeras exposições em Pelotas, Porto Alegre e outras
cidades do Rio Grande do Sul, com esta produção realizada coletivamente. Contribui o fato de
que os seus integrantes se revezam também no momento de enviar propostas para editais e em
outras funções, tais como solicitação de apoio, entrevistas, transporte de obras, encomenda e
compra de materiais. Para a exposição realizada em 2011, no Porão do Paço Municipal, em
Porto Alegre, produzi um texto de apresentação, onde se lia:
Devemos reconhecer que é necessário tal desprendimento das noções de autoria
individual em benefício, não somente do resultado coletivo, mas principalmente de
um „desvio pelo outro‟ em uma experiência de deslocamento do eu. Se o outro é
aquele que não sou eu, como se fala, quando o outro se parece comigo, ou me imita,
fica mais explícito, o que nele difere de mim. Às vezes ao se procurar algo se
encontra coisa diversa do que se está procurando, nesse caso, a contrapartida se
transforma em empreendimento ético: as concessões da troca geram uma
desidentificação do sujeito que se dilui no outro coletivo. (HERNANDEZ, 2011)
São justamente objeto de meu relato e de minha pesquisa as artistas do Grupo
Superfície que foram alunas da turma que começou a cursar Pintura II em 2009, incluindo
Adelina Petiz e Carla Borin, que ingressaram depois de realizar o curso de extensão em
pintura. Certamente, ninguém me contestaria se me ouvisse dizer que elas eram as
participantes mais entusiasmadas da turma. Já formadas, a curiosidade, a vontade de construir
algo e o prazer de pesquisar as motivou continuamente e esta motivação contaminou a turma
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inteira. Carla Thiel e Paloma de Leon concluíram a Especialização em 2012, enquanto Carla
Borin a iniciou neste mesmo ano. Realizei e realizo a orientação destas artistas. A monografia
de Carla Thiel foi inteiramente sobre o Grupo Superfície.
Percebo que o estímulo dos estudantes dirigiu-se em vários sentidos, que se pode
distinguir como: criação artística, desenvolvimento textual, leitura, debate, pensar filosófico,
relações éticas ligadas à alteridade, atuação e o questionamento do circuito da arte, entre
outros. Considero também aqui, e somando a esse trabalho, a contribuição de meus colegas
professores na formação destas artistas, mas que, no entanto, não desenvolveram uma relação
de cumplicidade com a turma, como aconteceu comigo. Olhando para esses tantos sentidos
diversos, propiciar estes estímulos pode parecer uma tarefa árdua e difícil ou talvez até
impossível. Porém, se seguirmos Merleau-Ponty e pensarmos no fenômeno do conjunto,
veremos que tudo advém de uma única fonte, que Roland Barthes, em sua Aula coloca como
sapiência, interligando pela etimologia saber e sabor. Em certo ponto do livro O prazer do
texto pode-se ler a seguinte questão: “(...) e se o próprio conhecimento fosse por sua vez
delicioso?”
Estes dois pequenos livros de Roland Barthes foram fundamentais para minha
formação, eles me influenciaram sobremaneira, principalmente em minha atuação como
professora. Reside neles uma simplicidade complexa – por paradoxal que isso possa parecer –
dada no modo do discurso, por ser possível situar-se nos lugares descritos e ter as sensações
destes lugares, na delicadeza sutil das percepções vivenciais que se ligam ao corpo, desde a
infância e, até mesmo, no tamanho dessas publicações, fato percebido como intencional
quando o autor coloca que um texto sobre o prazer só pode ser curto, porque o prazer se esvai
rapidamente. No entanto, tais livros tem uma dimensão irredutível ao número de suas páginas,
dimensão esta conquistada pela abertura dada na poeticidade de sua escritura.
Barthes, como se sabe, teve uma aceitação muito controversa na França, acusado de
escorregar demasiadamente no subjetivismo. Ainda hoje sua produção textual é rechaçada por
intelectuais de alguns segmentos acadêmicos. Penso que a polêmica maior aparece no
momento que o autor tenta romper com o academicismo, ao vincular o saber com o sabor,
apontando, pela etimologia da palavra sapientia, em direção a “nenhum poder, um pouco de
sabedoria, e o máximo de sabor possível.” É nesse ápice que termina a aula inaugural que o
professor proferiu no Colégio da França, em 07 de janeiro de 1977.
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Parece-me que o mais difícil de ser abdicado por um professor é o poder. Para Barthes
esse poder se insere no discurso de uma maneira astuciosa, com o que ele chama de libido
dominandi. Deste modo é preciso, em seu projeto mais profundo, interrogar-se sobre as
maneiras de se desviar da recusa da liberdade pelo desejo de fixar, de prender, “de agarrar”,
esta última, conforme a tradução de Leyla Perrone-Moisés. Muitos professores são adeptos da
mistificação do conhecimento, como se este fosse algo muito distante do aluno, muito difícil
para aquele que inicia a busca pelo saber. Talvez porque esses professores não tenham
passado pela experiência de integrar saber e prazer.
De um modo semelhante, só que apontando para os efeitos nocivos do teorismo, que se
pode definir como a teoria aplicada, Yve-Alain Bois, em “A pintura como modelo” coloca
que a primeira lição que se deve aprender, “é que não se aplica uma teoria; os conceitos
precisam ser moldados a partir do objeto investigado ou importado de acordo com a
exigência específica daquele objeto.” (Bois, 2009, p. xv)
Pareceu-me então, em um dado momento de minha formação, principalmente a partir do
contato com os textos de Barthes, que qualquer conhecimento sedimentado é um saber morto.
Este que exercia sobre mim um efeito contrário, deixando-me mais insegura de minha
atuação. Poderia então um professor se colocar como aprendiz, ao lado, do lado dos
estudantes? E, sendo possível eliminar a condição de aluno, ainda marcada pela hierarquia de
poder, atribuindo em seu lugar a de interlocutor, poderíamos entrever um outro tipo de
relação? Buscando a pausa no velho discurso lecionador, exortador, ensaiando a retomada a
qualquer momento de novos sentidos, assumo essa postura com a frequência possível, no
cotidiano do atelier de pintura e em outras salas de aula.
Mas na prática, como estas, até então utópicas relações, apareceram?
Em seu trabalho de especialização sob o título “Grupo Superfície: percursos poéticos da
criação compartilhada”, Carla Thiel Lautenschlager escreveu sobre as aulas:
Criou-se um clima de descobertas, onde o debate das teorias e também a nossa
produção artística era discutida o tempo todo, isto fazia-nos mais motivados em um
momento em que descobríamos nossos próprios conceitos, o debate acontecia como
parte do trabalho. Colocava-se em questão o fazer, dando especial atenção ao
processo, ao gesto, aprimorando nossas percepções e discutindo isso abertamente,
criando, cada um, uma identidade própria que não estava exatamente ligada aos
princípios da história da pintura, mas a uma variedade de linguagens que cada um
foi se identificando e pondo em prát ica. Em um universo de discursos pictóricos,
surgiram trabalhos dos mais variados, desde pinturas espessas com marcas de
encobrir e sobrepor, até pinturas aguadas, escorridas, onde o gesto era ampliado pela
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força da gravidade dando direções à pintura. Mas também surgiram trabalhos onde a
pintura se estabelecia como conceito, ou como ponto de partida e, neste caso,
objetos se faziam presentes, fotografias e muitos desenhos, gerando uma zona
híbrida. (Lautenschlager, 2012, p. 12)
Uma das aulas que os estudantes descreveram como marcante foi uma projeção de
dezenas de imagens de obras de artistas contemporâneos, momento em que duas questões
eram colocadas a eles. A primeira foi: Onde está a pintura? E a segunda: Qual a ação utilizada
pelo artista para criar o trabalho? Esta foi uma aula elaborada por mim, com obras sempre
ambíguas e enigmáticas. Diante das questões colocadas, os alunos se viram estimulados e um
espaço de jogo foi gerado. Inúmeras polêmicas surgiram e a curiosidade se instaurou para
nunca mais abandoná- los. Lembro que nos primeiros momentos eles sempre esperavam que
eu desse uma resposta única, que extirpasse o debate. Isso perdurou mais em alguns
estudantes do que em outros, mas ao final do curso, todos já estavam convencidos e se
tornaram adeptos das perguntas, mais do que das respostas. Procurei mostrar como a leitura
que estava propondo era bastante acessível, até para leigos, já que a explicação, a análise ou a
interpretação das obras não era importante naquele primeiro momento, mas um olhar atento e
descritivo, que é a base da fenomenologia. Como aponta Merleau-Ponty é preciso que se
perceba que anterior ao cogito existe o mundo, questão que percorre toda a obra do filósofo:
“o verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem
(...) não substitui o próprio mundo pela significação mundo” (1999, p. 9). O que começa a se
romper é o automatismo que costuma estar ligado a uma negação do olhar em favor,
principalmente, nesse caso, da crença no conceito previamente constituído.
A aula teve inúmeros desdobramentos no ateliê. Os alunos, ao listarem as açõ es que
haviam identificando nas obras dos artistas, poderiam escolher algumas delas para
desenvolver seus trabalhos. Tal exercício, proposto na disciplina de Pintura II, propiciou o
início da poética destes novos artistas, que mais tarde formariam o Grupo Superfície e
compartilhariam tranquilamente suas ações com seus parceiros de grupo. Isso acabou gerando
também um outro tipo de atitude nestas pessoas, em que as temáticas, senso comum nos
trabalhos de conclusão do Bacharelado foram abolidas. A investigação dos processos, e a
pesquisa de conceitos provenientes do saber substituíram a cansada abordagem historiográfica
do tema, e a experiência foi colocada no centro da indagação.
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A narrativa do processo de criação artística surgiu como aliada às ideias que levavam a
construção, assim como os sucessos, frustrações e desistências, mas também as
contaminações com outros artistas. O estímulo ao debate, a produção de textos também
narrativos sobre o percurso individual, sobre textos filosóficos e sobre o trabalho de artistas e
colegas, levou-os a perceber o quanto é profícuo desviar-se para o “campo do outro”,
proceder a um vai e vem de si mesmo para o outro, formulando um distanciamento crítico,
como já apontou Jean Lancri (In: Brites; Tessler, 2002, p. 20). Com três encontros semanais
de quatro horas cada, em Pintura III, foi possível reservar uma tarde somente para leitura e
discussão de textos complexos: literatura, filosofia e textos de artistas, estavam no foco. Para
elaborar seus textos, os alunos eram convidados a entrecruzar os textos lidos com sua
experiência de produção artística ou quaisquer outras experiências, por mais incipientes que
fossem. Tais textos formulados eram lidos na aula levantando discussões sobre forma,
conteúdo, argumentação, coerência e outros aspectos ligados a análise do discurso. Com isso,
eram estimulados a exercitar a fala sobre suas produções. De Adelina Petiz, ouvi nas
primeiras páginas lidas de O olho e o espírito: “parece que ele faz questão de não ser
compreendido!” Algumas aulas depois ouvi da mesma, ao compartilhar com as colegas um
texto que havia escrito e que trazia citações dos autores lidos: “Merleau-Ponty é fascinante!”.
Finalmente o prazer em conhecer era atingido, uma situação que exerce sobre mim um grande
fascínio, e que me move na continuidade de meu trabalho como docente.
FIGURA 1: Interconexões I, Grupo Superfície, 2011, técnica mista, 100 x 100 cm.
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2012. 76f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais). Universidade Federal de Pelotas,
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Sites
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Texto para apresentação de exposição
HERNANDEZ, Adriane. Idiorritmias . In: Exposição Idiorritmias, Grupo Superfície, Porão do Passo Municipal
da Prefeitura de Porto Alegre, Porto Alegre, 2011.