Adriane Hernandez

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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 ISBN: 978-85-62309-06-9 408 Poética e fenomenologia Proposições para pesquisa e ensino da arte Adriane Hernandez 1 Resumo: A partir de uma produção artística que integre pesquisa plástica e conceitual, propõe-se colocar em evidência um modo de pesquisar e ensinar que traga o máximo de interação possível entre ação/fazer, pensamento e texto. O caminho experimentado pressupõe uma certa delicadeza e muita atenção para o processo dos estudantes e orientandos, uma escuta mais do que um discurso, o que quer dizer, ouvir, mais do que falar. Um percurso que encontra nas abordagens sutis de Roland Barthes o maior exemplo, sendo “Aula”, o pequeno livro que traz a transcrição da aula inaugural de Barthes no Collège de France, o referencial mais agudo. A pesquisa proposta tem como objetivo o desenvolvimento de parâmetros para uma abordagem filosófica dos processos de criação artística que possibilite uma constante renovação de ferramentas discursivas. Palavras-Chave: Artes visuais. Poéticas visuais. Pesquisa em arte. Processo de criação. Grupo Superfície 5. 1. Desarmar o discurso As reflexões que seguem são vinculadas à experiência da pesquisadora no cotidiano do ateliê de pintura, mais especificamente nas disciplinas de Pintura II e Pintura III, que passaram a se chamar Ateliê de Pintura II e Ateliê de Pintura III, respectivamente, com a mudança curricular implantada no Bacharelado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas, em 2011. O recorte temporal está situado entre os anos de 2009 e 2012. Os apontamentos contidos nessa parte da pesquisa estão circunscritos principalmente à turma que iniciou Pintura II, no segundo semestre de 2009. Este recorte se deve ao fato de alguns alunos desta turma terem continuado a desenvolver suas pesquisas na UFPel, possibilitando-me acompanhar, como orientadora, em alguns casos, o desenrolar de suas trajetórias acadêmicas que, até o momento, atingem a pós-graduação lato senso Ensino e Percursos Poéticos, na UFPel. Penso, ainda, ser importante salientar que meu ingresso na UFPel data de 2009. Estas experiências didáticas são, então, inaugurais para mim nessa Universidade e na cidade de Pelotas e se deram com a turma em questão, principal foco de minha pesquisa. Minha 1 Doutora em Artes Visuais, Poéticas Visuais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Pelotas. Membro do Grupo de Pesquisa Percursos Poéticos (UFPel).

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POÉTICA E FENOMENOLOGIA: Proposições para pesquisa e ensino da arte

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Poética e fenomenologia

Proposições para pesquisa e ensino da arte

Adriane Hernandez1

Resumo: A partir de uma produção artística que integre pesquisa plástica e conceitual, propõe-se

colocar em evidência um modo de pesquisar e ensinar que traga o máximo de interação possível

entre ação/fazer, pensamento e texto. O caminho experimentado pressupõe uma certa delicadeza e

muita atenção para o processo dos estudantes e orientandos, uma escuta mais do que um

discurso, o que quer dizer, ouvir, mais do que falar. Um percurso que encontra nas abordagens

sutis de Roland Barthes o maior exemplo, sendo “Aula”, o pequeno livro que traz a transcrição

da aula inaugural de Barthes no Collège de France, o referencial mais agudo. A pesquisa

proposta tem como objetivo o desenvolvimento de parâmetros para uma abordagem filosófica dos

processos de criação artística que possibilite uma constante renovação de ferramentas

discursivas.

Palavras-Chave: Artes visuais. Poéticas visuais. Pesquisa em arte. Processo de criação. Grupo

Superfície 5.

1. Desarmar o discurso

As reflexões que seguem são vinculadas à experiência da pesquisadora no cotidiano do

ateliê de pintura, mais especificamente nas disciplinas de Pintura II e Pintura III, que

passaram a se chamar Ateliê de Pintura II e Ate liê de Pintura III, respectivamente, com a

mudança curricular implantada no Bacharelado em Artes Visuais, da Universidade Federal de

Pelotas, em 2011. O recorte temporal está situado entre os anos de 2009 e 2012.

Os apontamentos contidos nessa parte da pesquisa estão circunscritos principalmente à

turma que iniciou Pintura II, no segundo semestre de 2009. Este recorte se deve ao fato de

alguns alunos desta turma terem continuado a desenvolver suas pesquisas na UFPel,

possibilitando-me acompanhar, como orientadora, em alguns casos, o desenrolar de suas

trajetórias acadêmicas que, até o momento, atingem a pós-graduação lato senso Ensino e

Percursos Poéticos, na UFPel.

Penso, ainda, ser importante salientar que meu ingresso na UFPel data de 2009. Estas

experiências didáticas são, então, inaugurais para mim – nessa Universidade e na cidade de

Pelotas – e se deram com a turma em questão, principal foco de minha pesquisa. Minha

1 Doutora em Artes Visuais, Poéticas Visuais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Su l. Professora do

Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Pelotas. Membro do Grupo de Pesquisa Percursos

Poéticos (UFPel).

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experiência didática anterior data de 1999 até 2004, na Univerdade Tuiuti do Paraná, em

Curitiba, também em um Curso de Artes Visuais e também em uma disciplina de pintura.

Sou artista plástica, natural de Porto Alegre, RS, tendo realizado minha formação

acadêmica, em nível superior, integralmente no Instituto de Artes da UFRGS. Apesar de

conhecer muito pouco a cidade de Pelotas, minha adaptação não poderia ter sido mais rápida.

Comecei participando como colaboradora de um curso de extensão em pintura com o colega

professor substituto, Roger Coutinho. Quando se iniciou o semestre, duas participantes desse

curso, ingressaram no Bacharelado de Artes Visuais, com matrícula especial e posteriormente

tornaram-se minhas alunas nas disciplinas de pintura.

As disciplinas de Pintura II e Pintura III, como eram relativas ao final do curso,

pertenciam ao 6° e 7° semestres. Os alunos que ali chegavam já tinham cumprido em torno de

dois terços do currículo. Um dado comum a todos, na turma em questão, é que não tinham

estabelecido uma poética, digamos assim. Ainda não tinham um problema de pesquisa que

desse impulso ao processo individual ou a um processo coletivo, sendo que, se não

reprovassem ou abandonassem o curso, em um ano e meio estariam formados. Após os

primeiros contatos com os alunos, tomando conhecimento dos trabalhos que haviam feito até

então, tendo ouvidos seus relatos, suas perspectivas e anseios, momento mais delicado no meu

ponto de vista, onde se ganha ou se perde a confiança individual e do grupo, percebi que a

realidade que se apresentava então poderia ser propícia para algumas experimentações e a

debates profícuos.

Meu interesse, desde o início, era tentar desenvolver com os alunos uma experiência

recente, que tinha conseguido vivenciar em meu doutorado em Poéticas Visuais. Antes disso,

quando era docente em Curitiba, sentia que me faltava a prática daquilo que aconselhava,

sendo que por esse motivo um de meus objetivos com a pesquisa de doutorado era testar, em

mim mesma, se as proposições que dirigia aos estudantes eram, de fato, exequíveis. Foi assim

que experienciei realizar uma pesquisa que fosse prazerosa para mim. Eu não deveria ter

medo do desconhecido, deveria dar espaço e assumir as incertezas do processo de criação.

Buscaria, com o texto, gerar um movimento semelhante ao da criação, nunca no sentido de

explicar os trabalhos, subtraindo- lhes as ambiguidades. Minhas fontes bibliográficas

pertenceriam aos campos do saber para os quais meu trabalho apontava e para os quais eu

nutria interesse e curiosidade. Foi assim que me vi mais próxima da literatura, da filosofia, da

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teoria da história, da psicanálise e de outros campos. Minhas vivências cotidianas não seriam

excluídas do texto, assim como não seriam excluídas da produção artística. Experiências

didáticas e trabalhos de alunos também teriam lugar no meu texto, porque era o que tinha de

mais próximo, acreditando que minha pesquisa não deveria afastar-se de minha vida para que

tivesse algum “valor” científico. Uma ideia para um trabalho surge as vezes de algo muito

simples e banal, interessei-me por desmistificar a criação, trazendo a tona essas simplicidades.

Os artistas citados por mim eram aqueles cujas as obras tinham realmente contaminado meu

modo de pensar e produzir o trabalho artístico, não excluindo a contaminação de meu olhar

pela fotografia impressa da obra, levando em consideração que as vezes essa experiência é a

que mais permanece no imaginário. A “verdade” da significação de uma obra, mesmo que

colocada pela fala de seu autor, ou de um crítico tido como autoridade, não me satisfazia.

Repetir ou reafirmar esse discurso não fazia mais sentido, mas construir um outro, formulando

uma linha que atravessasse meu próprio trabalho. É de meu trabalho e de minha vivência que

surge o meu olhar, aquele que lanço para as coisas do mundo. Minha vontade era tentar

perceber os meandros sutis da criação procurando manter uma certa delicadeza nessa busca.

Desejei ter meus pés fincados na realidade, para melhor perceber os fenômenos que a

implicam. Essas procuras todas tinham um fundo didático muito importante para mim. Isso

me levou também a desenvolver um senso de alteridade, ele vem principalmente com a

atenção ao outro. Surge da atenção. O não julgamento e a não interpretação tem a mesma raiz,

para Heidegger consiste em “deixar cada coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência”

(2001, p. 129), para Merleau-Ponty “retornar as coisas mesmo é retornar a este mundo

anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda a

determinação científica é abstrata, significativa e dependente” (1999, p. 4). Retirar, com

delicadeza, a névoa que o conhecimento deposita sobre a experiência.

No começo de meus encontros com estes estudantes, em Pintura II, reparei que eles

tinham adquirido a prática “teorista” de justificar cada dado do trabalho, com argumentação

bastante frágil. O que o sintoma nas falas apontava era a execução de trabalhos onde

pudessem encaixar um discurso constituído previamente ou um discurso que explicava o

significado de cada forma ou objeto presente no trabalho, não havia espaço para a incerteza

ou para o não-sentido. Meu exercício era de tentar desconstruir a partir de perguntas e

conscientizá- los na falta de propósito em justificar um trabalho de arte. Eles diziam ser

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cobrados, por outros professores e por outras pessoas, sempre com a pergunta: “O que você

quer dizer com isso?”, concluindo, a partir disso, que deveriam sempre explicar os trabalhos.

O que me fez compreender melhor o que Roland Barthes colocou em sua Aula: “O que pode

ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas

discursivas através das quais ele é proposto” (1978, p. 43).

Nesse momento de meu relato, faço um salto para o presente, para verificar a atualidade

de minha experiência e a presentificação de tais questões.

Existe hoje, na cidade de Pelotas, um coletivo de artistas plásticas, chamado Grupo

Superfície. Tal grupo tem dois anos de existência e um modo particular de trabalhar. Integram

o Grupo Superfície, atualmente, seis artistas: Carla Borin, Carla Thiel, Daniela Meine, Mariza

Fernanda, Natália Hax e Paloma de Leon. Em sua formação original eram oito. Dois artistas

optaram em não permanecer no grupo, Rogério Franck e Adelina Petiz. As artistas se reúnem

semanalmente e realizam ações pictóricas sobre um suporte de algodão. Tais ações, em

suporte grande, são construídas por mais de uma artista, ao mesmo tempo, elas vão revezando

a atuação. Mas esta não é a parte mais surpreendente de seu processo. Quando começaram a

produzir coletivamente, cada artista já tinha uma ou mais ações características de suas

poéticas, que eram para Paloma, escorrer a tinta de modo a formar linhas paralelas, para

Mariza Fernanda, gravar carimbando, para Carla Thiel, manchar, contornar e vazar, para

Carla Borin, manchar e carimbar duplicando. Já Daniela Meine trabalhava com estêncil e

repetia um tipo de forma que representava para ela a memória de pedras, sendo que Natália

Hax era a única que não fazia pinturas antes da existência do trabalho coletivo no grupo.

Teve, no entanto, uma experimentação inicial, com um tipo de ornamentação repetitiva, mais

linear do que pictórica. Foi a partir da ação de apropriação da ação de outro integrante do

grupo, por parte de Natália, na casualidade da ausência daquele, que um novo modo que fazer

se instituiu. As artistas decidiram então, estabelecer trocas de suas ações originais (FIG.1).

Uma componente do grupo passou a fazer a ação de outra, ultrapassando a ideia de imitação,

porque não foi reproduzido nem o gesto, como modo de fazer, nem o resultado, mas sim a

ação. O que difere gesto e ação para Jersy Grotowski é que “o gesto é uma ação periférica do

corpo, não nasce do interior do corpo, mas da periferia (...) A ação é algo a mais porque nasce

do interior do corpo” (Grotowski, 1988).

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Com isso, saliento a diferença que há em tentar reproduzir algo olhando para o modelo,

buscando reduzir ao máximo as ambiguidades dos gestos vacilantes e, partir de uma ação, que

de certo modo, é geradora de um conceito que se associa mais imediatamente ao modo

particular como esta ação é feita. A particularidade conduzida pelo corpo de quem a faz é

mais evidente, lembrando ainda a célebre frase de Merleau-Ponty em O olho e o espírito: “O

pintor „emprega seu corpo‟, diz Valéry. E, com efeito, não se vê como um espírito pudesse

pintar. Emprestando seu corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura”

(1984, p.88). Com esta frase que inicia a segunda parte do texto, Merleau-Ponty, já insere a

tônica do que desenvolveria a seguir, o ser humano como um fenômeno. Fenômeno este que

só pode ser pensando pela integração e não pela separação de suas partes, uma ingenuidade

que o autor percebia na ciência, naquele momento.

Nesse sentido, o que move os participantes do Grupo Superfície não é a representação,

mas a ação. Ação esta, revelada por uma carga indicial, percebida na marca que o gesto

imprime no suporte. Ora, desse modo o processo se torna, então, evidente aos olhos.

O Grupo Superfície já realizou inúmeras exposições em Pelotas, Porto Alegre e outras

cidades do Rio Grande do Sul, com esta produção realizada coletivamente. Contribui o fato de

que os seus integrantes se revezam também no momento de enviar propostas para editais e em

outras funções, tais como solicitação de apoio, entrevistas, transporte de obras, encomenda e

compra de materiais. Para a exposição realizada em 2011, no Porão do Paço Municipal, em

Porto Alegre, produzi um texto de apresentação, onde se lia:

Devemos reconhecer que é necessário tal desprendimento das noções de autoria

individual em benefício, não somente do resultado coletivo, mas principalmente de

um „desvio pelo outro‟ em uma experiência de deslocamento do eu. Se o outro é

aquele que não sou eu, como se fala, quando o outro se parece comigo, ou me imita,

fica mais explícito, o que nele difere de mim. Às vezes ao se procurar algo se

encontra coisa diversa do que se está procurando, nesse caso, a contrapartida se

transforma em empreendimento ético: as concessões da troca geram uma

desidentificação do sujeito que se dilui no outro coletivo. (HERNANDEZ, 2011)

São justamente objeto de meu relato e de minha pesquisa as artistas do Grupo

Superfície que foram alunas da turma que começou a cursar Pintura II em 2009, incluindo

Adelina Petiz e Carla Borin, que ingressaram depois de realizar o curso de extensão em

pintura. Certamente, ninguém me contestaria se me ouvisse dizer que elas eram as

participantes mais entusiasmadas da turma. Já formadas, a curiosidade, a vontade de construir

algo e o prazer de pesquisar as motivou continuamente e esta motivação contaminou a turma

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inteira. Carla Thiel e Paloma de Leon concluíram a Especialização em 2012, enquanto Carla

Borin a iniciou neste mesmo ano. Realizei e realizo a orientação destas artistas. A monografia

de Carla Thiel foi inteiramente sobre o Grupo Superfície.

Percebo que o estímulo dos estudantes dirigiu-se em vários sentidos, que se pode

distinguir como: criação artística, desenvolvimento textual, leitura, debate, pensar filosófico,

relações éticas ligadas à alteridade, atuação e o questionamento do circuito da arte, entre

outros. Considero também aqui, e somando a esse trabalho, a contribuição de meus colegas

professores na formação destas artistas, mas que, no entanto, não desenvolveram uma relação

de cumplicidade com a turma, como aconteceu comigo. Olhando para esses tantos sentidos

diversos, propiciar estes estímulos pode parecer uma tarefa árdua e difícil ou talvez até

impossível. Porém, se seguirmos Merleau-Ponty e pensarmos no fenômeno do conjunto,

veremos que tudo advém de uma única fonte, que Roland Barthes, em sua Aula coloca como

sapiência, interligando pela etimologia saber e sabor. Em certo ponto do livro O prazer do

texto pode-se ler a seguinte questão: “(...) e se o próprio conhecimento fosse por sua vez

delicioso?”

Estes dois pequenos livros de Roland Barthes foram fundamentais para minha

formação, eles me influenciaram sobremaneira, principalmente em minha atuação como

professora. Reside neles uma simplicidade complexa – por paradoxal que isso possa parecer –

dada no modo do discurso, por ser possível situar-se nos lugares descritos e ter as sensações

destes lugares, na delicadeza sutil das percepções vivenciais que se ligam ao corpo, desde a

infância e, até mesmo, no tamanho dessas publicações, fato percebido como intencional

quando o autor coloca que um texto sobre o prazer só pode ser curto, porque o prazer se esvai

rapidamente. No entanto, tais livros tem uma dimensão irredutível ao número de suas páginas,

dimensão esta conquistada pela abertura dada na poeticidade de sua escritura.

Barthes, como se sabe, teve uma aceitação muito controversa na França, acusado de

escorregar demasiadamente no subjetivismo. Ainda hoje sua produção textual é rechaçada por

intelectuais de alguns segmentos acadêmicos. Penso que a polêmica maior aparece no

momento que o autor tenta romper com o academicismo, ao vincular o saber com o sabor,

apontando, pela etimologia da palavra sapientia, em direção a “nenhum poder, um pouco de

sabedoria, e o máximo de sabor possível.” É nesse ápice que termina a aula inaugural que o

professor proferiu no Colégio da França, em 07 de janeiro de 1977.

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Parece-me que o mais difícil de ser abdicado por um professor é o poder. Para Barthes

esse poder se insere no discurso de uma maneira astuciosa, com o que ele chama de libido

dominandi. Deste modo é preciso, em seu projeto mais profundo, interrogar-se sobre as

maneiras de se desviar da recusa da liberdade pelo desejo de fixar, de prender, “de agarrar”,

esta última, conforme a tradução de Leyla Perrone-Moisés. Muitos professores são adeptos da

mistificação do conhecimento, como se este fosse algo muito distante do aluno, muito difícil

para aquele que inicia a busca pelo saber. Talvez porque esses professores não tenham

passado pela experiência de integrar saber e prazer.

De um modo semelhante, só que apontando para os efeitos nocivos do teorismo, que se

pode definir como a teoria aplicada, Yve-Alain Bois, em “A pintura como modelo” coloca

que a primeira lição que se deve aprender, “é que não se aplica uma teoria; os conceitos

precisam ser moldados a partir do objeto investigado ou importado de acordo com a

exigência específica daquele objeto.” (Bois, 2009, p. xv)

Pareceu-me então, em um dado momento de minha formação, principalmente a partir do

contato com os textos de Barthes, que qualquer conhecimento sedimentado é um saber morto.

Este que exercia sobre mim um efeito contrário, deixando-me mais insegura de minha

atuação. Poderia então um professor se colocar como aprendiz, ao lado, do lado dos

estudantes? E, sendo possível eliminar a condição de aluno, ainda marcada pela hierarquia de

poder, atribuindo em seu lugar a de interlocutor, poderíamos entrever um outro tipo de

relação? Buscando a pausa no velho discurso lecionador, exortador, ensaiando a retomada a

qualquer momento de novos sentidos, assumo essa postura com a frequência possível, no

cotidiano do atelier de pintura e em outras salas de aula.

Mas na prática, como estas, até então utópicas relações, apareceram?

Em seu trabalho de especialização sob o título “Grupo Superfície: percursos poéticos da

criação compartilhada”, Carla Thiel Lautenschlager escreveu sobre as aulas:

Criou-se um clima de descobertas, onde o debate das teorias e também a nossa

produção artística era discutida o tempo todo, isto fazia-nos mais motivados em um

momento em que descobríamos nossos próprios conceitos, o debate acontecia como

parte do trabalho. Colocava-se em questão o fazer, dando especial atenção ao

processo, ao gesto, aprimorando nossas percepções e discutindo isso abertamente,

criando, cada um, uma identidade própria que não estava exatamente ligada aos

princípios da história da pintura, mas a uma variedade de linguagens que cada um

foi se identificando e pondo em prát ica. Em um universo de discursos pictóricos,

surgiram trabalhos dos mais variados, desde pinturas espessas com marcas de

encobrir e sobrepor, até pinturas aguadas, escorridas, onde o gesto era ampliado pela

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força da gravidade dando direções à pintura. Mas também surgiram trabalhos onde a

pintura se estabelecia como conceito, ou como ponto de partida e, neste caso,

objetos se faziam presentes, fotografias e muitos desenhos, gerando uma zona

híbrida. (Lautenschlager, 2012, p. 12)

Uma das aulas que os estudantes descreveram como marcante foi uma projeção de

dezenas de imagens de obras de artistas contemporâneos, momento em que duas questões

eram colocadas a eles. A primeira foi: Onde está a pintura? E a segunda: Qual a ação utilizada

pelo artista para criar o trabalho? Esta foi uma aula elaborada por mim, com obras sempre

ambíguas e enigmáticas. Diante das questões colocadas, os alunos se viram estimulados e um

espaço de jogo foi gerado. Inúmeras polêmicas surgiram e a curiosidade se instaurou para

nunca mais abandoná- los. Lembro que nos primeiros momentos eles sempre esperavam que

eu desse uma resposta única, que extirpasse o debate. Isso perdurou mais em alguns

estudantes do que em outros, mas ao final do curso, todos já estavam convencidos e se

tornaram adeptos das perguntas, mais do que das respostas. Procurei mostrar como a leitura

que estava propondo era bastante acessível, até para leigos, já que a explicação, a análise ou a

interpretação das obras não era importante naquele primeiro momento, mas um olhar atento e

descritivo, que é a base da fenomenologia. Como aponta Merleau-Ponty é preciso que se

perceba que anterior ao cogito existe o mundo, questão que percorre toda a obra do filósofo:

“o verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo pensamento de existir que ele tem

(...) não substitui o próprio mundo pela significação mundo” (1999, p. 9). O que começa a se

romper é o automatismo que costuma estar ligado a uma negação do olhar em favor,

principalmente, nesse caso, da crença no conceito previamente constituído.

A aula teve inúmeros desdobramentos no ateliê. Os alunos, ao listarem as açõ es que

haviam identificando nas obras dos artistas, poderiam escolher algumas delas para

desenvolver seus trabalhos. Tal exercício, proposto na disciplina de Pintura II, propiciou o

início da poética destes novos artistas, que mais tarde formariam o Grupo Superfície e

compartilhariam tranquilamente suas ações com seus parceiros de grupo. Isso acabou gerando

também um outro tipo de atitude nestas pessoas, em que as temáticas, senso comum nos

trabalhos de conclusão do Bacharelado foram abolidas. A investigação dos processos, e a

pesquisa de conceitos provenientes do saber substituíram a cansada abordagem historiográfica

do tema, e a experiência foi colocada no centro da indagação.

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A narrativa do processo de criação artística surgiu como aliada às ideias que levavam a

construção, assim como os sucessos, frustrações e desistências, mas também as

contaminações com outros artistas. O estímulo ao debate, a produção de textos também

narrativos sobre o percurso individual, sobre textos filosóficos e sobre o trabalho de artistas e

colegas, levou-os a perceber o quanto é profícuo desviar-se para o “campo do outro”,

proceder a um vai e vem de si mesmo para o outro, formulando um distanciamento crítico,

como já apontou Jean Lancri (In: Brites; Tessler, 2002, p. 20). Com três encontros semanais

de quatro horas cada, em Pintura III, foi possível reservar uma tarde somente para leitura e

discussão de textos complexos: literatura, filosofia e textos de artistas, estavam no foco. Para

elaborar seus textos, os alunos eram convidados a entrecruzar os textos lidos com sua

experiência de produção artística ou quaisquer outras experiências, por mais incipientes que

fossem. Tais textos formulados eram lidos na aula levantando discussões sobre forma,

conteúdo, argumentação, coerência e outros aspectos ligados a análise do discurso. Com isso,

eram estimulados a exercitar a fala sobre suas produções. De Adelina Petiz, ouvi nas

primeiras páginas lidas de O olho e o espírito: “parece que ele faz questão de não ser

compreendido!” Algumas aulas depois ouvi da mesma, ao compartilhar com as colegas um

texto que havia escrito e que trazia citações dos autores lidos: “Merleau-Ponty é fascinante!”.

Finalmente o prazer em conhecer era atingido, uma situação que exerce sobre mim um grande

fascínio, e que me move na continuidade de meu trabalho como docente.

FIGURA 1: Interconexões I, Grupo Superfície, 2011, técnica mista, 100 x 100 cm.

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LAUTENSCHLAGER, Carla Viv iane Thiel. Grupo Superfície. Percursos poéticos da criação compartilhada.

2012. 76f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais). Universidade Federal de Pelotas,

Pelotas, 2012.

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GROTOWSKI, Jersy. Sobre o método das ações físicas (palestra de 1988). Disponível em

<www.grupotempo.com.br/tex_grot.html>. Acesso em 14.09. 2012.

Texto para apresentação de exposição

HERNANDEZ, Adriane. Idiorritmias . In: Exposição Idiorritmias, Grupo Superfície, Porão do Passo Municipal

da Prefeitura de Porto Alegre, Porto Alegre, 2011.