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    A FORMAÇÃO CULTURAL DOS JOVENS DO MST 1A FORMAÇÃOCULTURAL DOS

    JOVENS DO MSTA EXPERIÊNCIADO ASSENTAMENTO MÁRIO LAGO,EM RIBEIRÃO PRETO (SP)FREDERICO DAIA FIRMIANO

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    A FORMAÇÃO CULTURAL DOS JOVENS DO MST

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    A FORMAÇÃO CULTURAL DOS JOVENS DO MST

    A EXPERIÊNCIA DO ASSENTAMENTO

    MÁRIO LAGO,EM R IBEIRÃO PRETO (SP)

    FREDERICO DAIA FIRMIANO

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    © 2009 Editora UNESPCultura Acadêmica

    Praça da Sé, 10801001-900 – São Paulo – SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) 3242-7172 [email protected]

    CIP – Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    F557f Firmiano, Frederico Daia

    A formação cultural dos jovens do MST : a experiência doassentamento Mário Lago, em Ribeirão Preto (SP) / Frederico Daia

    Firmiano. - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2009.288p.Inclui bibliografiaISBN 978-85-7983-043-31. Juventude rural - Assentamento Mário Lago (Ribeirão Preto, SP).

    2. Juventude rural - Assentamento Mário Lago (Ribeirão Preto, SP) - Atividades políticas. 3. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - Ribeirão Preto (SP). 4. Juventude rural - Brasil - Condições

    sociais. 5. Assentamentos humanos - Ribeirão Preto (SP).6. Movimentos sociais - Ribeir ão Preto (SP). I. Título.

    09-6236 CDD: 305.230981612CDU: 316.346.32-053.6(815.612)

    Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria dePós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)

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    Este livro é dedicado a

    Walmes Paulo Firmiano,Eliana Daia Firmiano e Juninho;

    e aos companheiros do MST,da regional de Ribeirão Preto (SP),

    que fazem a história sobre a qualnos debruçamos, repondo nossas utopias.

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    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer ao professor doutor Augusto Caccia--Bava, meu amigo Augusto, pela confiança, amizade e sobretudopela acolhida. Ao professor doutor Silas Nogueira, meu amigo Si-lão, mestre no ofício e na vida. À professora dra. Darlene Apareci-da de Oliveira Ferreira pelas grandes contribuições trazidas a estapesquisa. À Bruna Amália Rodrigues, Bru, pelo amor e paciência amim dedicados. Ao professor Eduardo Augusto Vessi, meu amigo--irmão Edu, pelos ombros confortáveis que sempre escoraram estecorpo e alma, por vezes entregues ao cansaço. À Aline Pedro, Li,minha amiga e colega de mestrado, por todo apoio, amizade e cari-nho. À Danielle Tega, Danny, amiga e colega de mestrado, peloafeto, incentivo e torcida. Ao professor doutor Wanderlei Clarindoda Silva, meu amigo-irmão Wandeco, pelo apoio, incentivo desdeas terças-feiras na UNESP, em Araraquara (SP). Aos companhei-ros do MST, da regional de Ribeirão Preto (SP) e do assentamentoMário Lago, jovens e adultos, pelo valioso e nem sempre retribuídoapoio, sem o qual nossa pesquisa, sintetizada neste livro, não seriapossível.

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    Num momento dado, num dia qualquerdos anos que venham após passarmos

    muitos sacrifícios, sim, depois de

    termo-nos porventura visto muitas vezesà beira da destruição [...] depois de

    assistirmos ao assassinato, à matançade muitos de nós e de reconstruirmos

    o que for destruído, quase sem repararmos,teremos criado, junto dos outros povos do

    mundo, a sociedade comunista, o nosso ideal.

    Ernesto Guevara,O que deve serum jovem comunista , 1962

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    SUMÁRIO

    Introdução 13

    1 Os grupos sociais e o espaço rural no Brasil e

    em Ribeirão Preto: processos de exclusãoe experiências de luta pela terra27

    2 Da terra de (agro)negócio à terra de trabalho:o MST em Ribeirão Preto e a formaçãodo assentamento Mário Lago 87

    3 Experiências e concepçõesde formação cultural de jovensno assentamento Mário Lago143

    4 A consciência dos jovens sobre aexperiência construída no assentamentoMário Lago e no MST 193

    Considerações finais: alguns horizontes edesafios do MST perante os jovens267

    Referências bibliográficas275

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    INTRODUÇÃO

    Aqui você está num lugar que você tem reunião, que você tem umregimento para cumprir, que se roubar, ou acontecer alguma coisa queprejudique o movimento a pessoa é expulsa e aí não tem direito de fi-

    car aqui. E também não é só o direito pela terra, mas o direito queo cidadão tem hoje, tipo, direito de ter um país que ajude mais [...] Nacidade a visão é outra. Quando eu morava na cidade eu não tinha essavisão que eu tenho hoje. Na cidade eu queria ser outra pessoa, ter ascoisas que, hoje se você for na cidade você tem vontade de ter, porque,hoje, [...] não se vive na cidade sem dinheiro. Tem que ter dinheiropara comprar as coisas que você necessita. Precisa de arroz, precisadisso, tudo que você tem na cidade, você tem que ter dinheiro. Aqui jáé diferente. Você quer comer uma fruta, não precisa roubar, é só arru-mar uma semente e plantar, vai crescer.

    As palavras acima são de uma jovem que, aos dezessete anos deidade, passou a integrar, junto com seus pais, a luta pela terra noMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. São pes-soas que carregam valores, sentimentos, direitos sociais constituí-dos e negados pela metrópole, pela cidade, pelo país em que vivem.Carregam a ruptura, a mudança, a transformação progressivamen-te sentida em seu cotidiano por meio da luta política, da passagemda candura à rebeldia.

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    Essa fala expressa elementos de uma consciência jovem sobre asportas fechadas da cidade para sua existência, para sua família, para

    seus iguais e, por que não dizer, para a classe de trabalhadores etrabalhadoras sem-terra; expressa também, dialeticamente, as por-tas abertas de um grupo de lutadores pela terra, lutadores por umavida com o mínimo de constrangimento possível, num territórioconquistado chamado assentamento rural.

    Qualquer assentamento rural? Não. Assentamento Mário Lago,espaço e lugar ocupado e construído no decorrer da luta de famílias

    de trabalhadores rurais sem-terra que integram as bases de mobili-zação do MST, no interior do Estado de São Paulo.Em qualquer cidade? Igualmente não, embora, se voltássemos o

    olhar para o contexto das cidades brasileiras, quaisquer similitudesnão seriam meras coincidências, dadas as “particularidades perver-sas que se manifestam [...] com a concentração de riquezas, a vio-lência e o extermínio, particularmente de adolescentes e jovensnegros nas periferias” pobres dos municípios do Brasil (Nogueira,2007, p.10). Trata-se da cidade de Ribeirão Preto, importante es-paço de realização do agronegócio nacional; história atravessadapor um processo de desenvolvimento apoiado pela grande proprie-dade rural e pela “vocação” para a exportação decommodities, sin-gularizada pela questão agrária como mediação fundamental dosprocessos de expansão da economia, da articulação política e de suaorganização social.

    Califórnia Brasileira. Era esse o título de Ribeirão Preto durante osanos de 1990, quando o PIB per capita da cidade era igual ao do ditoestado estadunidense. Não apenas a renda, mas Ribeirão possuía tam-bém “o melhor do campo com o melhor da cidade” [...] Hoje, a alcu-nha de Califórnia Brasileira está em desuso. Porém, foi substituída poruma outra que possibilita uma análise do que trata das contradições

    sempre escondidas pela propaganda dos setores dominantes: hoje Ri-beirão Preto sustenta o título de “Capital Brasileira do Agronegócio”.(MST, 2008, p.1)

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    Da exploração do café, em meados do século XIX, que emergecomo extensão do ciclo cafeeiro que engendrava as relações econô-

    micas, sociais e políticas do Estado de São Paulo naquele momento,passando pelo primeiro período de exploração de cana-de-açúcar,até seu novo ciclo verificado na contemporaneidade, o território ru-ral ribeirão-pretano foi caracterizado como uma estrutura territo-rial concentracionista e dominada pela monocultura. Na primeiradécada do novo século, a região onde fica o município emerge comoresponsável por quase um terço da produção de álcool do Brasil,

    tornando-se expoente da matriz neoliberal, em âmbito nacional einternacional, de um projeto hegemônico de desenvolvimento ter-ritorial denominadoagrobusiness ou agronegócio. Esse desenvolvi-mento recobre a exploração do território rural, com o cultivo damonocultura de cana-de-açúcar, os centros urbanos, com a indús-tria, o comércio e os serviços, articulando e integrando capitais aomercado financeiro.

    No âmbito da reprodução da existência de grupos que têm suasexperiências associadas à terra, as transformações seguem em com-passo com a grandeza do complexo do agronegócio. Sobretudo apartir da década de 1970, os mais afortunados grupos de famílias demeeiros, parceiros, arrendatários, pequenos produtores, que assimse configuraram com o primeiro ciclo de desenvolvimento da agri-cultura na região, passaram à condição de trabalhadores rurais as-salariados ou volantes, vivendo nas cidades, nas periferias pobresemergentes ou em confinamentos de usinas/agroindústrias da cana--de-açúcar. Outros vieram de estados federativos distintos, embusca da riqueza gerada pela cana-de-açúcar, seguindo amplosmovimentos migratórios. Na era da globalização dos mercados, daeconomia-mundo, muitos, poderíamos dizer a grande maioria,tornaram-se excedentes, sem direitos sociais efetivados e sem ga-rantias de uma vida digna para as novas gerações que formam.

    Desemprego, miséria, falta de acesso a bens públicos, convíviocom as mais variadas formas de violência são parte do repertórioque integra o cotidiano desses grupos que vivem na autodenomina-da “capital nacional do agronegócio” e sua região.

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    Exclusão econômica e política? José de Souza Martins dirá quenão simplesmente, pois “existem vítimas de processos sociais, polí-

    ticos e econômicos excludentes”, mas também “existe o conflitopelo qual a vítima dos processos excludentes proclama seu incon-formismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança, sua força rei-vindicativa e sua reivindicação corrosiva”. São as reações que“constituem o imponderável de tais sistemas, fazem parte delesainda que os negando”. Ocorrem no interior da “realidade proble-mática, ‘dentro’ da realidade que produziu os problemas que as

    causam” (1999, p.14).Assim, a luta contemporânea pela reforma agrária em RibeirãoPreto emergiu como projeto e experiência quando, em fins da dé-cada de 1990, o MST chegou a esse território, promovendo umafecunda mobilização em torno de temas que integram a questãoagrária brasileira, arregimentando famílias de trabalhadores que,dominantemente, viviam nos centros urbanos em situação infor-mal no mercado de trabalho ou mesmo em situação de desemprego.Muitos deles migrantes que buscam construir novas relações nascidades que prosperam, que ostentam parte dos resultados oriun-dos do desenvolvimento econômico, mas que, no encontro com oambiente urbano, conheceram o trauma, a degradação material emoral, de todo o grupo familiar.

    Em pouco tempo, o movimento formou seu primeiro acam-pamento que, a partir da resistência de famílias integradas por ho-mens, mulheres, idosos, adultos, crianças, adolescentes e jovens,construiu o assentamento Mário Lago, configurando outra expe-riência, marcada pela elevação das condições de vida e existênciadesses grupos sociais, tanto no plano material como no moral.

    É com a perspectiva de se distanciar das experiências que tra-zem das relações constituídas nas cidades, como o convívio com amiséria material, com a fome, com o narcotráfico, com a ausênciade trabalho ou o trabalho precarizado, degradante, que esses gru-pos de famílias lutam pela reforma agrária, lutam pela terra, pelotrabalho e pela vida no espaço rural, constituindo o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra.

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    Aquela jovem, cuja manifestação consciente sobre a cidade e oassentamento em que vive foi citada em nossa epígrafe, integrou-se

    à luta pela terra em Ribeirão Preto junto com sua família. Comoseus iguais, é filha de trabalhadores e com eles viveu na cidade,dentro da singularidade deste tempo, da história de seu país, queproduziu uma cultura apoiada pelo ostracismo, pelo não reconheci-mento público-institucional dos jovens como categoria social,como sujeitos portadores de direitos.

    Foi no Movimento Sem Terra que, junto de outros, aquela jo-

    vem encontrou acolhida, proteção e respeito. Pois, longe de identi-ficar seus jovens a partir dos possíveisriscos sociais, o MST permiteque eles se tornem visíveis, seja como objetos de contestação, con-denação, críticas, seja como grupos reconhecidos pela coragem eresistência, dando início a uma nova formação dada, em princípio,pela mobilização de suas capacidades para protagonizar processospolíticos e culturais para além das referências institucionais, públi-cas ou privadas. Assim, é na luta política pela posse da terra queeles, os jovens, encontram perspectivas para a superação das amar-ras impostas ao seu desenvolvimento.

    Para o MST, certamente, os jovens ainda são um desafio, a co-meçar pela mobilização de suas capacidades para que entrem na lutapela terra, com outros jovens, com seus pais ou outras referênciasadultas. Para aqueles que optam pela vida debaixo da lona preta, omovimento volta esforços para a construção de uma nova sociabili-dade, esforços para formar e/ou revelar novos militantes, uma novageração de lutadores pela terra, quadros dirigentes.

    Este livro – originalmente uma dissertação de mestrado defen-dida junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Fa-culdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista,em 2009 – é um esforço de reflexão sobre um momento pedagógicoconstituído por experiências concretas de jovens que buscam for-mas distintas de viver as relações presentes; um momento voltado àtransição de formas espontâneas de consciência para a condição dereconhecimento ético-político da necessidade de defesa da integri-dade da reprodução da existência, que Augusto Caccia-Bava, ainda

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    em 1995, chamou de processo de formação cultural (Caccia-Bava,1995).

    Os sujeitos de nossa pesquisa são grupos de jovens que formam, junto com adultos, idosos, crianças, homens e mulheres, as basesda mobilização do MST; são aqueles que têm suas experiências as-sociadas ao assentamento onde vivem; integram famílias que lutampor uma experiência distinta daquela que tiveram nos centros ur-banos ou rurais de onde chegaram, identificados a partir de suasmanifestações grupais.

    Nossa pesquisa conferiu relevância ao envolvimento afetivo,ético e político dos jovens com as formas de viver no assentamentoMário Lago, do MST, no município de Ribeirão Preto. Para al-guns, trata-se, pois, de produzir outro padrão de sociabilidade, norelacionamento com seus iguais, com seus pais, com seus compa-nheiros de labuta cotidiana que vivem no assentamento MárioLago. Para outros, trata-se de dar continuidade à luta já iniciadapor seus pais ou outras referências adultas, formar-se para a mili-tância para, no futuro, integrar quadros dirigentes do MovimentoSem Terra.

    De uma forma ou de outra, esses jovens estão construindo refe-rências coletivas para viver e refletir a luta política, o trabalho, oestudo, as manifestações culturais, os constrangimentos, os sofri-mentos, as expectativas para o futuro, para além das mediaçõesdominantes que constituem as relações sociais na contemporanei-dade: o mercado de trabalho, a formação profissional, a prevençãopúblico-estatal contra orisco, as práticas de violência, os efeitoscompensatórios de políticas governamentais.

    Em nosso estudo, os jovens ganharam voz, foram reconhecidoscomo sujeitos capazes de buscar alternativas às situações que consi-deram inaceitáveis, praticadas por instituições, públicas e privadas,e grupos de interesse; foram reconhecidos pela capacidade de se en-volver em projetos coletivos, no esforço de criar outro padrão derelações sociais para seus iguais. Por essa razão, o presente livroprivilegia a consciência prática dos jovens, pesquisando referên-cias, valores e sentimentos coletivos que podem ser base para a pro-

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    jeção de relações sociais mais igualitárias, solidárias, acima doindividualismo, do interesse, de práticas de degradação do gênero

    humano.No primeiro capítulo procuramos trazer aspectos significativosda questão agrária no Brasil e em Ribeirão Preto, a partir de umaleitura histórico-crítica de seu desenvolvimento econômico, políti-co e social, tendo como perspectiva a configuração dos termos deprocessos de exclusão e de luta, em torno de projetos políticos dis-tintos, entre as classes dominantes e subalternas. Com isso, iden-

    tificamos momentos do confronto pela terra no Brasil e na regiãodo município de Ribeirão Preto, segundo suas particularidades;contextualizamos a emergência e consolidação do MST e das no-vas formas de luta encampadas por esse importante movimentosocial em todo o território brasileiro, bem como seu desenvolvi-mento histórico, no contexto das profundas transformações eco-nômicas, políticas e sociais do país e na região em questão, nacontemporaneidade.

    No segundo capítulo, recuperamos os momentos mais signifi-cativos da história do MST em Ribeirão Preto: sua chegada, a con-quista de alianças políticas entre as forças de esquerda e os refluxosda luta pela terra. Refletimos o processo de mobilização de famíliaspara a ocupação da Fazenda da Barra até a construção do assenta-mento Mário Lago e, consequentemente, as transformações, mu-danças e a criação de condições políticas e éticas, no territórioconquistado, para a inauguração do processo de formação dos no-vos sujeitos, lutadores pela terra, lutadores pela vida.

    No terceiro capítulo, trazemos algumas experiências e concep-ções de formação cultural e política dos jovens, no assentamentoMário Lago e no MST; as principais atividades culturais e políticasque estiveram e estão associadas desde o início de sua participaçãona luta pela terra, em Ribeirão Preto; a emergência de jovens mili-tantes para o movimento de luta pela terra; a compreensão das lide-ranças do MST sobre o sentido da formação das novas gerações esua tarefa no território em que vivem.

    Por fim, no quarto capítulo, conferimos voz aos jovens sem-

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    -terra e passamos à reflexão crítica da consciência prática dessessujeitos sobre o que vivem no assentamento Mário Lago, junto

    com suas famílias, com seus iguais, com o MST; as referências co-letivas que produzem e reproduzem, os constrangimentos, os valo-res que orientam sua existência, seu lugar no assentamento MárioLago e no MST e suas expectativas para o futuro.

    Sobre os procedimentos metodológicosda pesquisa

    Num primeiro momento, nossa pesquisa sobre o processo deformação cultural dos jovens do assentamento Mário Lago, doMST, no município de Ribeirão Preto, trouxe, de um ponto de vis-ta histórico-crítico,movimentos de grupos sociais que se integram àclasse trabalhadora e cuja experiência está entrelaçada à disputa daterra no Brasil, especialmente ao Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra. Como veremos, isso se deu em decorrência daconfiguração de processos de exclusão, da organização para a luta ede disputas por diferentes projetos de desenvolvimento políticoe econômico ocorridas ao longo da história brasileira e, de formamais estrita, na região e município de Ribeirão Preto. Contexto noqual encontramos o processo de formação cultural experimentadopor jovens entre 15 e 25 anos que passaram a integrar a luta pelaterra nessa localidade.

    A partir dessa etapa passamos ao desenvolvimento de trabalhode campo, no território de existência dos jovens, lugar de sua for-mação cultural, apoiados, metodologicamente, pelas contribuiçõestrazidas ao trabalho etnográfico pelo sociólogo português TelmoCaria.

    Para esse sociólogo, o objeto da atenção acadêmica não é passí-vel de manipulação técnico-instrumental, não sendo nem mesmoimediatamente visível ou evidente à observação sociológica. Damesma forma que a “objectividade em Ciências Sociais não é umacto de neutralidade da observação”. Por essa razão, propõe “con- jugar e fazer coexistir a linguagem da experiência, de estar e pensar

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    no trabalho de campo, com a linguagem da teoria, que permite ob- jectivar e racionalizar o que ocorreu” (2003, p.10).

    Em trabalho anterior, Telmo Caria afirmou que

    a objetivação do olhar sociológico passa a depender da intervenção doinvestigador sobre o grupo social em estudo, pois no desenvolvimentode um discurso sobre a identidade coletiva e sobre os “problemas” co-tidianos, o investigador convoca os atores sociais a pensarem para alémdas urgências do dia-dia e para além daquilo que tinha sido explicita-mente pensado até por eles mesmos. (1999, p.25)

    Disso decorre que, ao mesmo tempo em que buscamos ampliarnossas expectativas acerca do grupo sobre o qual refletimos, essegrupo passou a ser considerado sujeito da pesquisa, refletindo so-bre suas relações conosco. Com isso, delimitamos aí uma “fron-teira intercultural”, que se materializou numa relação social deconhecimento entre os sujeitos da pesquisa (pesquisador e grupoestudado).

    Propomo-nos, então, à realização de um trabalho etnográfico,recorrendo à observação participante do assentamento Mário Lago,“acompanhando o quotidiano da vida de um grupo social par-ticular”, estabelecendo uma relação social de pesquisa, de reco-nhecimento mútuo, ou seja, “como processos interculturais deconstrução do conhecimento” (Caria, 1999, p.6), para refletir asmanifestações conscientes dos jovens, considerando suas especi-ficidades no contexto histórico-social do Brasil contemporâneo.

    O antropólogo português Paulo Raposo sintetizou a prática et-nográfica como resultado dos processos de observação, descrição einterpretação de outras culturas, efetivado por meio da passagemde uma ilusória condição de distanciamento e de não familiaridadea uma relação intersubjetiva:

    A performance etnográfica está intrinsecamente ligada a um es-paço de intersubjectividade e de negociação constante dos limites ins-táveis e conjunturais entre [...] olhares [...]. As práticas culturais

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    tornam-se, portanto, processos em construção, dialógicos, polifônicos,frequentemente multisituados, e nos quais as “culturas” emergemcomo implicações analíticas, diferentemente das “sociedades”, que sãoessencialmente unidades empíricas. (Raposo, 2003, p.44)

    É importante ressaltar que o início da construção de “fronteirasinterculturais” ou de reconhecimento mútuo entre pesquisador egrupo estudado remonta ao ano de 2003, quando o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra promoveu a ocupação da Fazendada Barra, no município de Ribeirão Preto, dando início à cons-trução do assentamento Mário Lago. Naquele momento, na quali-dade de estudante universitário do curso de Comunicação Social,integrei um grupo de apoio às famílias sem-terra e ao seu movi-mento de luta pela terra, coordenado por Silas Nogueira. Com isso,passei a me dedicar ao estudo e à reflexão das manifestações polí-ticas do grupo em questão, reconhecendo seus membros como su- jeitos da luta pela terra e sendo reconhecido como interlocutor dostrabalhadores.

    Muito embora tenhamos acompanhado o grupo de trabalha-dores, formação e consolidação do assentamento Mário Lago desde2003 – desenvolvendo, inclusive, nosso trabalho de conclusãode curso, na Faculdade de Comunicação Social, sob o título de“Movimentos sociais e cidadania: o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST) em Ribeirão Preto (SP)” –, nesta pesqui-sa, o trabalho etnográfico foi efetivado ao longo de todo o ano de2008, quando fizemos visitas periódicas ao assentamento MárioLago, com o objetivo de acompanhar o cotidiano dos jovens e iden-tificar seus grupos constituídos, as estruturas políticas às quais seassociam, suas manifestações político-culturais, seu lugar como jo-vens no território de sua existência e sua consciência, como grupo,da experiência consolidada nesse terreno, nos termos de Paulo Ra-poso, ou seja, “espaço partilhado de experiências, de discursos [...]de estruturas de acção simultaneamente objecto de negociação e de-correntes de múltiplos fluxos performáticos”, em outras palavras,“local onde as acções dos sujeitos e a consciência dessas acções

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    se vêem reconstruídas pela acção e consciência de um terceiro –o investigador” (2003, p.45). Além disso, estivemos presentes em

    grande parte das atividades culturais e políticas que envolveram os jovens no período, tanto no interior do assentamento como foradele, em Ribeirão Preto e outros municípios da região. Recorremos,também, aos arquivos e registros de toda nossa experiência de cam-po no assentamento Mário Lago.

    Identificamos os jovens em torno dos setores ou instâncias queestruturam organizacional e politicamente o assentamento em

    questão, bem como seus interlocutores, com o intuito de “centrar aatenção sobre as [...] tensões, as facções e os conflitos, sobre os con-sensos, [...] e o sentido prático das coisas e das situações e sobre [...]os processos de socialização” (Caria, 1999, p.26), na busca pelaidentificação e reconhecimento do que poderíamos chamar de sub- jetividade dos jovens, dentro da investigação sobre seu processo deformação cultural. Tomando a referência gramsciana de que a falase constitui como expressão da consciência dos indivíduos, realiza-mos entrevistas semiestruturadas com os jovens, compondo umuniverso de pré-noções, noções e valores que evidenciam aspectossignificativos de sua concepção de mundo, consolidada a partir dasexperiências compartilhadas com seu grupo de referência.

    Procuramos trazer a consciência dos jovens em torno de trêsgrandes temas. O primeiro tratou da vida cotidiana no assentamen-to Mário Lago e buscou identificar os grupos de referência dos quaisos jovens estão mais próximos, os aspectos positivos e negativos deviver no assentamento, a diferença entre viver lá e na cidade, o sig-nificado da terra, os valores que estruturam sua vida, as atividadesculturais e políticas de que participam no Mário Lago, os setorese instâncias de organização política do assentamento e do MST queintegram e os grupos dos quais participam, seu lugar no assenta-mento, por meio da descrição de seu cotidiano e das principais ativi-dades desempenhadas (trabalho, estudo, outras).

    O segundo tema concerne à luta pela terra, quando buscamos aconsciência juvenil perante esse fenômeno, perante o MST no con-texto das lutas sociais e perante seu lugar no assentamento e no mo-

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    vimento. Indagamos sobre o papel do MST na construção de umasociedade mais justa e sua responsabilidade, como jovem, na cons-

    trução dessa sociedade, além de seu papel, como integrante doMST, na luta pela terra no horizonte familiar e no do movimentosocial; como o MST vê os jovens e se eles têm voz no movimento deluta. Por fim, buscamos assinalar a capacidade juvenil de projetarseu futuro.

    Para Gramsci,

    O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é real-mente, isto é, “conhecer-te a ti mesmo” como produto do processohistórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade detraços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer inicialmente essaanálise. (1999, p.94)

    Apoiando-nos nessa referência, procuramos evitar aquilo queNestor Garcia Canclini denominou deculturalismo antropológico ,cuja aproximação restringe o “objeto de estudo”, “isolando [suas]supostas propriedades imanentes”, evidenciando a “diferença semexplicar a desigualdade que confronta [os grupos distintos], e osvínculos a outros setores”; dissimulando as distâncias entre cultu-ras desiguais com a doutrina do relativismo cultural, pois, nessavertente dos estudos antropológicos,

    a investigação consiste em “resgatar” o que ele [objeto] faz em seuspróprios termos; a tarefa antropológica ou folclorista se reduz a dupli-car “fielmente” o discurso do informante [...] Esse empirismo ingênuodesconhece a divergência entre o que pensamos e nossas práticas, entrea autodefinição das classes populares e o que podemos saber sobre avida delas a partir das leis sociais que estão inseridas. Opera como seconhecer fosse aglomerar segundo seu aparecimento “espontâneo”,em vez de construir conceitualmente as relações que lhes dão sentidona lógica social. (1993, p.71)

    Assim, antes de ser relevado como base potencial de ação trans-formadora, a aproximação científica das manifestações conscientes

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    dos jovens que integram o Movimento Sem Terra partiu da críticaao “conjunto de noções e conceitos determinados” que fundamen-

    tam suas práticas.No horizonte de nossas referências teóricas e metodológicas,buscamos superar a compreensão da juventude que a associa aosconceitos de população e/ou demanda, como categoria social dis-tinta apenas pela faixa etária e pelo suposto tempo de ociosidade.Para Augusto Caccia-Bava e Maria do Carmo Caccia-Bava, osconceitos de população e demanda fazem com que “os grupos so-

    ciais [...] [tornem-se] homogêneos, o que é uma compreensão, anosso ver, equivocada e muito presente nos processos políticos do-minantes e hegemônicos de práticas de gestão pública”. Para essesautores, “do ponto de vista de teorias que consideram os grupossociais como sujeitos da história presente, o conceito de ‘população’[e também de demanda] torna-se igualmente inadequado, para tra-tar de sua experiência concreta”. Dessa forma,

    esse[s] conceito[s] deixa[m] de contribuir para qualquer esclarecimen-to, devendo ser superado[s], dialeticamente, por outros, como grupofamiliar, grupos de alunas, grupos de crianças, comunidade escolar,comunidade de moradores, comunidades ativas, entre outros. (Caccia--Bava & Caccia-Bava, 2007, p.30-1).

    Por essa razão, buscamos entrevistar os jovens que emergemcomo interlocutores entre seus iguais, considerando a organizaçãopolítica interna do assentamento Mário Lago. Tendo em vista que,lá, as famílias são organizadas por núcleos, definimos, inicialmen-te, que seriam entrevistados, pelo menos, um jovem e uma jovemde cada núcleo, com idade entre 15 e 25 anos, de acordo com o nú-mero de interlocutores que o núcleo revelasse ao longo da pesquisa.Sabendo que o assentamento possui vinte núcleos de famílias, esti-mamos a realização de cerca de quarenta entrevistas, se todos osnúcleos contassem com jovens.

    Em campo, encontramos um total de 53 jovens, residindo em14, dos vinte núcleos de famílias. Em seis núcleos, apresentaram-se

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    como interlocutores legítimos apenas um jovem por núcleo; em ou-tros seis núcleos, dois jovens por núcleo emergiram como interlo-

    cutores de seus núcleos e, por fim, em dois núcleos, encontramostrês jovens representando seus iguais por núcleo. Em seis núcleosnão encontramos a presença de jovens entre 15 e 25 anos, sendoque, em dois, os assentados afirmaram residir um jovem em cadanúcleo que não foram encontrados, pois estariam passando tempo-rada em suas cidades de origem.

    Iniciamos as entrevistas com dois jovens do sexo masculino

    já destacados pela militância política no MST que residem noCentro de Formação Sócio-Agrícola Dom Hélder Câmara. Poste-riormente, passamos a percorrer os núcleos de famílias do assenta-mento Mário Lago à procura de jovens que falassem em nome deseu grupo de iguais.

    Ao longo do trabalho, um jovem já destacado pela militâncianos acompanhou nas andanças pelo assentamento, apresentando--nos em cada núcleo de famílias e colocando-nos em contato comoutros jovens. Os próprios jovens apresentaram-se como nossosinterlocutores de seus grupos. Assim, totalizamos 24 entrevistas,das quais doze dos entrevistados são homens e doze mulheres, comidade entre 15 e 25 anos.

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    1OS GRUPOS SOCIAIS E O ESPAÇO RURAL NO BRASIL E EM RIBEIRÃO PRETO:

    PROCESSOS DE EXCLUSÃO E EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA TERRA

    Ribeirão Preto: indicações sobresua formação econômica e social no

    contexto do desenvolvimento do BrasilO município de Ribeirão Preto, seguindo a tradição paulista de

    meados do século XIX, é fruto da extensão do ciclo cafeeiro queengendrou as relações econômicas, sociais e políticas do Estado deSão Paulo e do Brasil nesse período, integrando, desde logo, a cha-mada frente pioneira de expansão da cafeicultura. Para LucianaPinto, com a chegada da ferrovia no município de Campinas, em1872, “houve uma corrida à região do Oeste paulista, especialmen-te para as cidade de São Simão, Cravinhos, Sertãozinho e RibeirãoPreto” (2000, p.72). Com isso, a região e o município passam afazer parte do conjunto do ciclo desenvolvimentista do Estadode São Paulo.

    T. Walker e Agnaldo Barbosa afirmam que, nesse período, “for-tunas foram feitas praticamente da noite para o dia”. O caráter pas-toril assumido pela região até sua fundação oficial passava, a partirde então, a dar lugar a um verdadeiro centro dinâmico de atividadesagrícolas. “A prosperidade agrícola estimulou o crescimento do co-mércio e da indústria”, tornando Ribeirão Preto a “base de opera-

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    ções para os vendedores e comerciantes que trabalhavam na regiãonordeste do Estado” (2000, p.40).

    Com a expansão das linhas férreas e a propalada qualidade dosolo dessa região, o município em pouco tempo, na virada do séculoXIX para o século XX, tornou-se uma das referências do desenvol-vimento agrário brasileiro. De forma compassada, o espaço urbanoacompanhava a produção da riqueza no campo. Sebastião Geraldoressalta que, já em 1900, a cidade contava com infraestrutura com-posta de sistemas de água, esgoto, energia elétrica e telefone (2002,

    p.20).É importante lembrar que, até 1850, vigorava no país o sistemade sesmarias. Neste, a posse era concedida ao agricultor, que deve-ria fazer uso produtivo da terra, mas o domínio ou a propriedadeeminente da terra ficava reservada ao Estado. Caso não fosse feitouso produtivo da terra, esta caía em comisso, quer dizer, voltava aodomínio do Estado. O ocupante da terra não possuía direito terri-torial: o Estado poderia conceder o território a qualquer pessoa, emqualquer tempo.1

    À medida que o regime escravista entrava em colapso, no pós--Independência, o Parlamento brasileiro passou a incorporar àlegislação mecanismos para que fosse garantida a permanência damão de obra nos latifúndios. É criada, então, a Lei de Terras de1850, como mecanismo impeditivo à livre ocupação que engendra-va parte das relações no campo até então. “Pois, com o fim do cati-veiro e a permanência de um regime de livre ocupação da terra, oslibertos dificilmente se contentariam com a condição de trabalha-dores das mesmas fazendas em que haviam sido escravos.” Assim,prossegue José de Souza Martins:

    1 José de Souza Martins explica: “até pelo menos o século XVIII, era costumeque não podiam receber terras em sesmaria os que não fossem brancos, purosde sangue e católicos. O acesso às terras estava interditado aos hereges e aosgentios, aos negros, aos mouros, aos judeus. Os escravos não podiam se tornarsesmeiros, como de resto não podia ser proprietário de coisa alguma. Tudo oque viesse a lhes pertencer, pertencia de direito a seus senhores” (1997, p.63).

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    Pela Lei de Terras [a Lei no 601, de setembro], de 1850, a posse eo domínio se fundiram num direito só. Com isso, o Estado brasileiro,senhor de domínio de todas as terras, abriu mão desse direito e literal-mente fez dele doação aos proprietários particulares. Manteve o domí-nio apenas em alguns casos: em relação ao subsolo, às terras de marinhae às terras do atual Distrito Federal. (1997, p.63)

    Sem a possibilidade de ocupar áreas livres para a reprodução daexistência, os grupos de libertos e trabalhadores livres viam-seobrigados a trabalhar em fazendas de terceiros. Criou-se, portanto,um direito de propriedade (a Lei de Terras de 1850) que, ao mesmotempo, foi obstáculo ao livre acesso à terra pelos grupos pobres eex-escravos. “Essa restrição ao direito de propriedade criava umasuperpopulação relativa artificial ou uma postiça mão de obra so-brante que não teria outro meio de sobrevivência a não ser o deoferecer-se como mão de obra ao grande proprietário” (Martins,1997, p.50).

    Para José de Souza Martins, a “Lei de Terras foi um artifíciopara criar um problema e, ao mesmo tempo, uma solução social embenefício exclusivo dos que tinham e têm terra e poder”, no mo-mento em que as elites eram, ao mesmo tempo, econômicas, políti-cas, sociais e intelectuais (ibidem, p.67).

    Até por volta de 1880, as relações de trabalho desenvolvidas nasfazendas de café na região da Alta Mogiana fundaram-se no escra-vismo. Ubaldo Silveira revela que, “apenas dois anos antes da abo-lição da escravatura, havia no município de Ribeirão Preto 1.379escravos, numa população de 10.420 habitantes [...] Ao todo, a po-pulação escrava alcançava cerca de 13% dos habitantes” (1998,p.33).

    Com o fim da livre ocupação e com o obstáculo criado pelaLei de 1850 ao acesso à terra, José de Souza Martins afirma que amão de obra nacional ainda era insuficiente, tendo em vista a altaprodutividade das fazendas de café e a extinção do tráfico negreiro,registrada no mesmo ano. Para resolver tal situação, passou a serestimulada a arregimentação de camponeses europeus que consti-

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    Prossegue afirmando que até o ano de 1900 entraram no país2.092.847 imigrantes, número inferior aos “braços inaproveitados

    pela lavoura” brasileira que, até o final do século XIX, contava commais de quatro milhões de forros e desclassificados (negros livres enão negros) fora do mercado de trabalho (ibidem, p.86).

    Além disso, a importação de imigrantes em massa, constituindoo mercado de trabalho livre no país, foi, para Petrônio Domingues,uma política genuinamente paulista, tendo em vista que os negrosforam “aproveitados” em outras regiões, como no Nordeste ou no

    Estado do Rio de Janeiro, cujas elites não recorreram ao programade imigração subsidiada como ocorreu no Estado de São Paulo (ibi-dem, p.65).

    Na região e município de Ribeirão Preto, os imigrantes, sobre-tudo europeus, chegaram após a inauguração da linha férrea, em1883. Em sua grande maioria, se transformaram em colonos, re-configurando, com isso, a composição étnica da cidade.

    Petrônio Domingues afirma que a política imigrantista ofereciaaos camponeses brancos europeus “um dinâmico padrão de incen-tivos econômicos positivos”, pois, “além do imigrante ser aprovei-tado como assalariado na expansão da lavoura cafeeira, diversosnúcleos coloniais foram colocados à sua disposição”. Para esse au-tor, a política de privilégios destinados aos imigrantes em detri-mento de negros ex-escravos também criava condições para que,em pouco tempo, esses grupos se tornassem proprietários (ibidem,p.67).

    Ubaldo Silveira, porém, não corrobora a consideração de Do-mingues, visto que, segundo ele, “as condições sob as quais o imi-grante era levado à fazenda e contratado o colocavam numa situaçãodesde logo subalterna e espoliativa”, pois ele chegava ao Brasil“desprovido quase por completo do que era essencial para a manu-tenção da família”. Assim, prossegue o autor:

    O fazendeiro entregava-lhe uma pequena casa de tijolos, fornecia--lhe os objetos de primeira necessidade e abria-lhe um crédito, geral-mente uma conta no armazém da fazenda. Os colonos também rece-

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    biam pequenos lotes onde toda a família trabalhava, cultivando milho,feijão, batatas e legumes. (Silveira, 1998, p.41)

    O fato foi que, com o êxito da política imigrantista, as classestrabalhadoras nessa região serão formadas, basicamente, por negrosex-escravos e pela ampla predominância de camponeses europeusimigrantes. Assim, a disponibilidade de capital e mão de obra parao início e desenvolvimento da cultura foi essencial para a expansãodo modelo agroexportador que norteou o desenvolvimento econô-

    mico e social da região e município de Ribeirão Preto nos termoshegemônicos que se processavam no restante do país (cf. Geraldo,2002, p. 20; Silveira, 1998, p. 24; cf. Pinto, 2000, p. 30).

    Com isso, até meados de 1930, o regime de trabalho predomi-nante nessa região foi o colonato – termo que, invariavelmente, éuma alusão ao branco (Domingues, 2004, p.31-2). Particularmenteem Ribeirão Preto, os colonos eram responsáveis por cerca de trêsou quatro mil pés de café, quantidade que variava de acordo comsua composição familiar. Em geral, o pagamento pelo trabalho erarealizado a cada três meses e, no caso das atividades do colonoencerrarem-se em vinte dias, o restante do mês podia ser dedicadoà produção familiar de alimentos para sua reprodução.

    O café predominou como a principal atividade econômica daregião de Ribeirão Preto, seguindo, aliás, a tendência do Estado deSão Paulo, que durante a primeira metade do século XX, como afir-mam Walker e Barbosa (2000), foi o principal produtor de café doBrasil (2000, p.21).

    As décadas de 1930 e 1940, no entanto, marcariam o Brasil como fim da hegemonia agrário-exportadora, inaugurando-se, progres-sivamente, uma estrutura produtiva de base urbano-industrial que,por sua vez, produziu uma nova correlação de forças sociais volta-das para a expansão do sistema capitalista no país.

    Sob a premissa da singularidade histórica, como “modo de serde uma contradição nacional geral”, Francisco de Oliveira configu-rou os termos do desenvolvimento econômico da sociedade brasi-leira em seu importante e polêmico texto “A economia brasileira:

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    crítica à razão dualista”, de 1972. Nessa obra, o economista destacaalguns aspectos do desenvolvimento da economia do país.

    O primeiro foi a regulamentação das relações entre trabalho ecapital. No processo de acumulação capitalista instaurado a partirde 1930, “as leis trabalhistas fazem parte de um conjunto de me-didas destinadas a instaurar um novo modelo de acumulação”.Antes de ser determinado pelo jogo livre das forças de mercado oupelo embate capital/trabalho, “a regulamentação das leis do traba-lho operou a reconversão a umdenominador comum de todas as cate-

    gorias, com o que, antes de prejudicar a acumulação, beneficiou-a”.Além do trabalho, a intervenção estatal operou também “na fi-xação de preços, na distribuição de ganhos e perdas entre os di-versos estratos ou grupos das classes capitalistas, no gasto fiscal”,dentre outros. Esse tipo de intervenção tinha caráter planificador,ou seja, “o de criar as bases para que a acumulação capitalista in-dustrial, no nível das empresas [pudesse] se reproduzir” (Oliveira,2003, p.38-40).

    Nesse sentido, o papel do Estado fora o de criar bases jurídicas epolíticas para o afloramento das novas condições de desenvolvi-mento, sob a égide do capital produtivo de base urbano-industrial.

    Objeto da intensa e produtiva discussão entre Francisco de Oli-veira e Celso Furtado nos anos 1970, a função da agriculturaatra-sada no tocante à acumulação de capital no âmbito interno emergecomo outro aspecto central donovo processo de acumulação capita-lista verificado no Brasil. Para Francisco de Oliveira, a agriculturaatrasada financiava a agricultura moderna e a industrialização:

    as culturas de subsistência tanto ajudavam a baixar o custo de repro-dução da força de trabalho nas cidades, o que facilitava a acumulaçãoindustrial, quanto produziam um excedente não-reinvertível em simesmo, que se escoava para financiar a acumulação urbana. (Ibidem,p.129)

    A necessidade de manter o papel ativo da agricultura residia nofato de que, por um lado, os produtos de exportação deveriam aten-

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    se é verdade que a criação do “novo mercado urbano-industrial” exi-giu um tratamento discriminatório e até confiscatório sobre a agricul-tura, de outro lado é também verdade que isso foi compensado atécerto ponto pelo fato de que esse crescimento industrial permitiu àsatividades agropecuárias manterem seu padrão “primitivo”, baseadonuma alta taxa de exploração da força de trabalho. (Ibidem, p.46)

    Para Francisco de Oliveira, a repercussão nos centros urbanosdo processo combinatório de padrão primitivo com novas relaçõesde produção foi a formação de amplos contingentes populacionais,o chamado exército de reserva, associado ao excedente alimentícioque engendrou o crescimento industrial. Então, do ponto de vistada compreensão do (sub)desenvolvimento do capitalismo brasilei-ro, tratou-se antes de uma integração dialética – agricultura/indús-tria – que a constituição de um dualismo.

    De modo geral, o desenvolvimento histórico da sociedade bra-sileira, particularmente de sua economia, identifica-se com a ex-pansão de uma economia capitalista distinta do modelo clássico dodesenvolvimento do sistema nos países centrais. Processo este de-terminado antes por condições internas que externas, apesar da co-nhecida necessidade de reconstrução das economias dos países ex--inimigos, com a emergência da Segunda Guerra Mundial, além dacrise econômica instalada em 1929 e, em consequência, da defini-ção do lugar dos países não industrializados, na divisão internacio-

    nal do trabalho, como produtores de matérias-primas e agrícolas.

    Assim, inaugura-se um longo período de convivência entre políti-cas aparentemente contraditórias, que, de um lado, penalizam a pro-dução para a exportação, mas procuram manter a capacidade deimportação do sistema – dado que são as produções agropecuárias asúnicas que geram divisas – e, de outro, dirigem-se inquestionavelmen-te no sentido de beneficiar a empresa industrial motora da nova expan-são. Seu sentido político mais profundo é o de mudar definitivamentea estrutura do poder, passando as novas classes burguesas empresário--industriais à posição de hegemonia. No entanto, o processo se dá sobcondições externas geralmente adversas – mesmo quando os preços de

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    exportação estão em alta – e, portanto, um dos seus requisitos estrutu-rais é o de manter as condições de reprodução das atividades agrícolas,não excluindo, portanto, totalmente, as classes proprietárias ruraisnem da estrutura do poder nem dos ganhos da expansão do sistema.Como contrapartida, a legislação trabalhista não afetará as relações deprodução agrária, preservando um modo de “acumulação primitiva”extremamente adequado para a expansão global. (Ibidem, 2003, p.65)

    Disso decorre que se, por um lado, desenvolveram-se as ativi-dades propriamente industriais, por outro, a população rural conti-nuou a crescer (até pelo menos a década de 1970). À progressão domodelo de expansão capitalista brasileira correspondeu, portanto, areprodução das antigas formas de acumulação.

    Nesse contexto, a produção cafeeira irá mover a dinâmica eco-nômica da região de Ribeirão Preto até meados de 1940. Sobre abase das novas condições de acumulação de capital registradas nopaís, unida às crises do ciclo produtivo regional, a diversificação

    agrícola foi a saída encontrada pelas classes dominantes para a ma-nutenção da agricultura moderna como uma das bases da economiabrasileira. “A partir de meados dos anos trinta [...] desenvolvem-secom maior velocidade as novas culturas como a do algodão, cana--de-açúcar, frutas cítricas, arroz, feijão, amendoim entre outras”(Geraldo, 2002, p.24; cf. Silveira, 1998, p.47). Do mesmo modoque o colapso do café indicava a derrocada da antiga classe de pro-

    prietários rurais, fazia emergir uma nova categoria social, integradapor pequenos e médios proprietários de terras que eram ex-colonos,como explica Sebastião Geraldo:

    Eles compravam seus lotes de terra das companhias colonizadorasou dos próprios fazendeiros, com o dinheiro acumulado, resultante dassobras dos salários, da produção das roças que pegavama meia e da

    venda de animais que criavam. Às vezes, recebiam as terras dos pa-trões como pagamento de dívidas, ainda que não tivessem seus direitosreconhecidos legalmente. (2002, p.25)

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    te categoria de produtores rurais na região:os usineiros. Estes passarama incorporar, nas décadas posteriores à crise cafeeira, os pequenos lotesàs suas propriedades, retomando assim, a concentração da proprieda-de agrária, quando não, proporcionando condições para que os peque-nos proprietários, ilhados pelos canaviais, passassem a produzir canapara as usinas. (Ibidem, p.27-8. Grifo nosso.)

    A produção de cana-de-açúcar inseria-se, portanto, no contextomaior das atividades políticas e econômicas do país. Com a criaçãodo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), em 1933, no governoVargas, promoveu-se o deslocamento do centro produtor nacionalde açúcar e álcool para a região Centro-Oeste do país, o que favore-ceu diretamente a região e município de Ribeirão Preto.

    No tocante às relações políticas brasileiras, a chamada revolu-ção burguesa não exigiu uma ruptura radical entre as condiçõessob as quais se expandia o desenvolvimento da sociedade brasileirae as novas condições de acumulação e inserção no capitalismo mun-dial. As classes proprietárias agrárias – dominantes no âmbito docontrole das relações externas da economia – viram-se, com a criseinternacional de 1929, em condições de perda da hegemonia, for-çadas a buscar outras formas de acumulação que substituíssemo acesso ao mercado externo da economia primário-exportadora, oque exigiu a criação de outras relações de produção. A operaçãopara essa adequação, ou tentativa de destituição do poderio dasclasses agrárias, foi, na perspectiva de Francisco de Oliveira, em-preendida no populismo varguista, que estabelecia a junção entre o“arcaico” e o “novo” para constituir fontes internas de acumulação.É nesse contexto que foi criada a legislação trabalhista que iria selaro pacto entre as emergentes classes burguês-industriais e as classestrabalhadoras urbanas (Oliveira, 2003, p.65). Nos termos do au-tor, tratou-se, assim, de afirmar um certo caráter produtivo que pro-duzia o atraso como a forma política da expansão capitalista no Brasil:“revolução produtiva sem revolução burguesa” (ibidem, p.131).

    Nesse processo, outro aspecto marcante e particular do desen-volvimento do capitalismo no Brasil, especialmente no campo, é

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    seu caráter rentista, no qual se fundem capitalista e proprietário deterra em uma só pessoa. A aliança entre capital produtivo e pro-

    priedade da terra consolidou não somente a concentração fundiáriacomo marca histórica do Brasil, como passou a integrar a própriaforma como o capitalismo se desenvolve no país. Para o geógrafoAriovaldo Umbelino de Oliveira, tratou-se de “um capitalismoque revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna noverso e outra atrasada no reverso” (Oliveira, 2001, p.187), que, an-tes de uma dualidade, mostra-se como uma relação dialética, uma

    singularidade histórica.Como resultado desse processo de revitalização da estruturaagrária brasileira ascendia uma nova classe de produtores rurais emRibeirão Preto, com as famílias Marchesi, Biagi, Balbo, Simione eCarolo, cuja maioria ainda permanece nas atividades vinculadas àprodução de cana-de-açúcar. Segundo o jornalDiário da Manhã ,de 7 de janeiro de 1979, essas famílias foram “conquistando” a ter-ra e ampliando suas dimensões “comprando sítios, fazendinhas,engenho de aguardente, mourejando, educando filhos, netos e bis-netos [...] com respeito ao ser humano, e sabendo exigir respeito àsua digna atividade empresarial”. Nascia, assim, ainda nos dizeresno jornal, “um empresariado atento na agroindústria, homens quedebatem em Brasília, onde vão reaver o poder político perdido pe-los coronéis em [19]29” (Diário da Manhã , Ribeirão Preto,7/1/1979, apud Geraldo, 2002, p.29).

    Reiterada a cada ciclo de desenvolvimento do país, a produçãode cana-de-açúcar no município e região de Ribeirão Preto chega-ria ao ano de 1962 com índices maiores que a produção de café: aprimeira ocupava 10.850 ha., cerca de 34% da área cultivada nomunicípio e região, enquanto a segunda ocupava 4.925 ha., o equi-valente a pouco mais de 15% da mesma (ibidem, p.30).

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    O campesinato no Brasil: exploração, lutase vilipendiamento da classe trabalhadora

    Posseiros, parceiros, meeiros, colonos, entre outros, vão seconstituir no Brasil como grupos que, ao longo dos idos do séculoXX, têm sua experiência associada à terra. Vale ressaltar, experiên-cia marcada pela falta de domínio sobre a terra, embora em algunscasos detenham a posse – ainda que sem o respaldo jurídico-legal.Índios e negros, além de mestiços, caboclos e aqueles excluídos do

    morgadio, imigrantes europeus, agregados das fazendas e um ex-tenso grupo de excluídos, sem quaisquer possibilidades de repro-duzir sua existência longe da mediação do senhor da terra.

    Assim, constitui-se para José de Souza Martins o “campesinatobrasileiro”, que emerge na cena política do país como classe insub-missa, a partir de lutas sociais pelo trabalho e/ou pela terra, aindaque fragmentadas, desarticuladas e sem conformação de interesses.

    Não como fato externo das relações constituídas no Brasil, mascomo produto interno da expansão das relações capitalistas nocampo. De acordo com o autor:

    No nosso caso, o avanço do capitalismo não dependeu da aberturade um espaço livre à ocupação do capital. O trabalhador já era expro-priado. Foi o próprio capital que, com a crise do trabalho escravo, ins-tituiu a apropriação camponesa da terra; uma contradição evidentenum momento em que o capital necessitava de força de trabalho, detrabalhadores destituídos de toda a propriedade que não fosse unica-mente a da sua própria força de trabalho. Por essa razão, o nosso cam-ponês não é um enraizado. Ao contrário, o camponês brasileiro édesenraizado, é migrante, é itinerante. (Martins, 1983, p.17)

    Ao contrário de boa parte da literatura sociológica brasileira quetrata do conceito e existência do “homem do campo”, José de SouzaMartins propõe que este seja entendido como “camponês” pelaexistência da luta como mediação de sua experiência histórica, pois,pelo caráter que assumem as relações capitalistas no campo brasi-

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    leiro, esse conceito pode expressar a unidade da situação de classe – da mesma maneira que o latifundiário é, antes, uma referência

    política, definida na radicalização do processo de luta (o oponente,opressor) (ibidem, p.22-3).Nesse sentido, o camponês no Brasil tem especificidade histó-

    rica, o que, em termos teóricos, significa que não pode ser com-preendido nem a partir da realidade russa do final do século XIX – tese comumente apresenta por parte da literatura sociológica bra-sileira3 –, como resquício de um contexto feudal inexistente, nem

    arbitrariamente reduzido à condição de assalariado que não fora.Da mesma maneira, os grupos que ocupam os espaços rurais e alireproduzem sua experiência não podem ser submetidos à classifi-cação positivista das várias formas e relações de trabalho, tampou-co a cada modalidade de pagamento pelo trabalho. Desse modo, José de Souza Martins defende o conceito de camponês para tratardaquele sujeito que luta pelo trabalho e pela vida na terra. Tambémo faz a fim de compreender a emergência da luta dos trabalhadoresrurais como parte do movimento geral de expansão das relações docapitalismo aqui estabelecidas (ibidem, p.24).

    Esse aspecto fundamental, da centralidade da reprodução daexistência a partir do território em que grupos de famílias viveme experienciam suas relações, que para nós é referência para a com-preensão de um dos aspectos da questão agrária brasileira, tambémfoi tratado por Maria Aparecida de Moraes Silva, em sua obra Aluta pela terra: experiência e memória . Nesse esforço, a socióloga re-lata o processo de expropriação dos trabalhadores rurais, “cam-poneses”, que ocorre progressivamente pela modernização econô-

    3 Ver, por exemplo, Bertero, para quem o camponês e a produção mercantil, ne-cessariamente, se excluem, desconfigurando a suposta questão agrária e a exis-tência do camponês no Brasil. Em suas palavras: “o campo não é mais campo. Juntou-se à cidade. Forma com esta uma nova síntese. A questão agrária já era[...] Envolve o conjunto dos trabalhadores, do campo e da cidade, predominan-temente proletarizados ou semiproletarizados“ (2006, p.62). Ainda sobre a dis-cussão acerca da existência de um campesinato brasileiro, ver Fabrini (2004) ePorto-Gonçalves (2005).2005)..

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    mica e amparado pela estrutura político-estatal. A autora trabalhaa tríade terra/capital/Estado para identificar os movimentos his-

    tóricos mediante os quais os trabalhadores são expulsos de seusterritórios de existência para integrar, ao longo do século XX, oscontingentes populacionais dos centros urbanos modernos ouos centros dinâmicos da agricultura (Silva, 2004).

    No entanto, resgatando as primeiras experiências de luta cam-ponesa no país, Silas Nogueira apoia-se em Flávio dos Santos Go-mes para afirmar que “estão nos quilombos as primeiras formas

    de luta pela terra, hoje traduzidas emlutas pela reforma agrária ,quanto as origens do próprio campesinato brasileiro”. Segundo seuautor de referência:

    Desde o século XVII – ganhando força nos séculos XVIII e XIX –constituiu-se um campesinato no Brasil. Suas origens são os própriosquilombos [...] as comunidades de fugitivos de índios aldeados (refu-giados de aldeamentos religiosos e leigos, que se redefiniam etnica-mente); as comunidades camponesas formadas por setores sociais dehomens livres pobres “marginalizados” e/ou “desclassificados” (de-nominamos a população livre pobre fora do controle privado dos mun-dos coloniais), como os desertores militares; as atividades econômicasde roceiros (gestadas a partir de economias próprias dos escravos, qualseja o tempo e roças destinadas aos escravos por seus próprios senho-res para que garantissem seu próprio sustento e a gestação de setores

    camponeses de lavradores pobres – homens livres – nas áreas não vol-tadas para a agroexportação e/ou nas franjas das áreas econômicas defronteiras abertas). (Gomes apud Nogueira, 2005, p.135)

    De um ponto de vista histórico, podemos apontar que os “cam-poneses” emergem como expressão política da forma singular de ex-pansão e consolidação do capitalismo no Brasil. Desde a experiênciade colonização, da posse da terra dos povos aqui constituídos e dosnegros trazidos à força e vilipendiados – processo radicalizado pelaLei de Terras de 1850 – até o golpe militar de 1964, perpassando osperíodos de industrialização do Brasil, nas décadas de 1930 e 1950,os processos políticos pelos quais o país passou criaram condições

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    para que a propriedade da terra – fonte do poder político de umaimportante classe dominante brasileira – não se constituísse como

    impeditivo para a realização de um projeto de desenvolvimentoeconômico propriamente capitalista. A Lei de Terras impede a pos-sibilidade histórica de amplos grupos de famílias que têm suas ex-periências associadas ao espaço rural de se territorializar, ou seja,de ali construir sua existência de forma “livre”. Do mesmo modo, aexpansão da indústria já na década de 1930 não significou a consti-tuição de um conflito político entre proprietários de terras e capital;

    estes, ao contrário, se fundiram, conformando as bases da políticanacional, ainda que os primeiros tenham deixado o centro do pro-cesso. O novo ciclo de industrialização verificado na década de 1950promoveu a expansão das atividades agrícolas pela introdução denovas culturas, agora com utilização de tecnologias industriais,reafirmando o caráter concentracionista da organização fundiáriae a progressiva expulsão de famílias de seu espaço social historica-mente construído.

    A luta pela terra emerge, fundamentalmente, como um dos as-pectos mais significativos da questão agrária brasileira; como a ma-nifestação de resistência de povos, grupos e movimentos organi-zados aos processos de exclusão, expulsão e expropriação da terra,da vida na terra. No limite, em períodos determinados, serão as lu-tas sociais que transformarão a reforma agrária em projeto políticopopular amplo.

    Assim, a história brasileira pode também ser lida através da lutados povos negros, povos indígenas e demais grupos que vivem docampo. Igualmente, através dos posseiros, além de famílias de pe-quenos produtores, de trabalhadores rurais que, na década de 1950,produziram inúmeros movimentos de luta pela terra, pelo trabalhoe pela reforma agrária (e com eles um acirrado debate acadêmico).

    Naquele momento, afirma Francisco de Oliveira, a amplifica-ção da política foi maior entre os trabalhadores rurais que entre ostrabalhadores da cidade, pois havia a possibilidade da “dessubor-dinação” da posição de “apêndice da velha classe dominante lati-fundiária” (1999, p.63). Dentre os inúmeros movimentos de traba-

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    lhadores, destacam-se as Ligas Camponesas no Nordeste, contandotanto com o apoio dos setores progressistas da Igreja Católica quan-

    to do Partido Comunista Brasileiro, ainda que sua situação fosseilegal.Silas Nogueira relata que “surgiram Ligas em vários estados

    brasileiros principalmente no Nordeste”. As Ligas Camponesasdefendiam

    camponeses contra a expulsão da terra, contra a elevação do preço dosarrendamentos e fins de práticas de exploração como o “cambão”, me-dida imposta aos colonos que os obrigava a trabalhar um dia de graçapara o fazendeiro. Mas a bandeira que caracterizaria as Ligas comoinimigas primordiais do latifúndio era a defesa da expropriação de ter-ras sem indenização prévia. (2005, p.164-5)

    José de Souza Martins explica que, no final dos anos de 1950,

    Dominava a concepção de que o País estava fraturado – de um ladoo País próspero e de outro o País miserável. Mais importante nissotudo, e aí estava a verdadeira subversão que convulsionaria o País nosanos seguintes, era a tomada de consciência por importantes setoresdas elites (os bispos e o clero, os intelectuais, numa parcela dos políti-cos, alguns empresários) de que a questão da miséria era uma questãopolítica. (1999, p.67)

    Para Silas Nogueira, as eleições de Juscelino Kubitschek e de João Goulart marcam uma experiência de maior intensidade dasliberdades democráticas no âmbito institucional, expressa no cres-cimento de entidades populares de base urbana, com a organizaçãosindical e estudantil, e com o avanço das Ligas Camponesas. “Trata--se da chamada ‘fase desenvolvimentista’ marcada por aceleradaindustrialização e por forte crescimento da urbanização.” Nessecontexto, segundo o autor, o Partido Comunista Brasileiro, mesmona ilegalidade, influencia a maior parte dos sindicatos, urbanos erurais, tendo inclusive criado a Ultab (União dos Lavradores e Tra-balhadores Agrícolas), que se expandiu em quase todo o Brasil. “As

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    Ligas Camponesas crescem e, ainda que divergindo dos setores in-fluenciados pelo PCB, avançam com a proposta da reforma agrária,

    realizando ocupações de terra e intensificando a discussão sobre aprevalência do latifúndio.” Ao mesmo tempo, diz Nogueira (2005),os setores progressistas da Igreja Católica criam o Movimento deEducação de Base, que chega sobretudo aos trabalhadores e mora-dores do espaço rural (2005, p.165).

    Destarte, havia grandes expectativas por amplas reformas, so-bretudo a reforma agrária, em virtude da atividade política das Li-

    gas Camponesas, da percepção atenta de setores da Igreja Católicaacerca da miséria que tomava o espaço rural brasileiro. Ao mesmotempo, o operariado urbano ganhava força e organização política.Em âmbito internacional, assistiam-se aos êxitos da Revolução Cu-bana (1959) e à expansão do comunismo como horizonte políticoamplos. Emerge, pois, a possibilidade de solapar as bases latifun-distas que, em grande medida, fundamentavam o poder político doEstado brasileiro.

    As liberdades democráticas [possibilitadas em grande medida pelogoverno Jango] permitem um avanço dos movimentos sociais inicia-dos na década anterior [...] A chamada “ala progressista” da Igreja Ca-tólica, com base na Teologia da Libertação, parte para atuação maisofensiva, contribuindo tanto para a criação de sindicatos, associaçõescomo para outros mecanismos de ação comunitária [...] No campo,

    continua a violência contínua com as expulsões de posseiros e explo-ração da força de trabalho [...] O movimento popular responde comocupações e intensificação da luta pela reforma agrária. As Ligas Cam-ponesas crescem em quantidade e importância política no cenárionacional. Nas cidades, as diferentes categorias de trabalhadores em-preendem mobilizações, grandes greves e manifestações. Os estu-dantes fortalecem a UNE enquanto instrumento de participação etransformação política. (Nogueira, 2005, p.168-9).

    Além disso, afirma Francisco de Oliveira, as reformas de basedos anos 1950 e 1960 apontavam para o questionamento da distri-buição da riqueza, “unificando também categorias diversas de tra-

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    balhadores urbanos, classes médias antigas e novas, profissionaisde novas ocupações, agora autonomizados”. Unido a esse fato ha-

    via intensa discussão sobre a educação, mais precisamente sobre opapel da escola pública, da produção intelectual, a função dos inte-lectuais que, “nessa nova relação, tornavam-se ‘intelectuais orgâ-nicos’ da política, sem que estivessem necessariamente ligados apartidos políticos” (Oliveira, 1999, p.64).

    José de Souza Martins relata que os militares viam fortes tensõesno campo, suficientes para produzir uma base de desestabilização

    política no país. “Na falta de uma elite dirigente capaz, as tensões nocampo viabilizavam e fortaleciam a ação dos diferentes grupos deesquerda, que não podiam deixar de representar e protagonizar asmudanças sociais e políticas radicais.” Visto de um ângulo maior,isso significa que as tensões no campo, junto com as mobilizaçõesdos setores operários nas cidades – num contexto global onde emer-giam experiências de revoltas e revoluções, sobretudo na AméricaLatina do pós-Segunda Guerra Mundial –, poderiam levar o Brasila uma opção político-ideológica desalinhada do chamado “blocoocidental” que se constituíra, ainda que essas tensões no campo nãotivessem (e, de fato, não tinham) força para tanto (Martins, 1999,p.75). Nessa atmosfera, acontece o golpe de Estado de 1964.

    Para José de Souza Martins, o golpe se deu “para evitar a cha-mada revolução agrária [...] Essencialmente, a dinâmica do proces-so vinha das inquietações rurais”, além do medo do comunismo(1997, p.83).

    A “anulação do dissenso” vinha, mais uma vez, pela coerção,pela repressão das forças populares, ou, como afirmou Francisco deOliveira, como o “esforço desesperado de anular a construção po-lítica que as classes dominadas haviam realizado no Brasil, pelomenos desde os anos trinta” do século passado. Assim, “tortura,morte, exílio, cassação de direitos, tudo era como uma sinistra re-petição da apropriação dos corpos e do seu silenciamento, do seuvilipendiamento” (1999, p.64).

    Mas, para acalmar os ânimos que se exaltavam no espaço rural ea ameaça de uma insurgência vinda do campo, fora, também, cria-

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    do o Estatuto da Terra que, para José de Souza Martins, era “umalegislação suficientemente ambígua para dividir os proprietários de

    terra e assegurar ao mesmo tempo o apoio do grande capital, inclu-sive o apoio do grande capital multinacional”. O Estatuto da Terraclassificava o uso e extensões de propriedade, formulando um con-ceito operacional de latifúndio a fim de estabelecer distinções entreterras desapropriáveis e terras não desapropriáveis. Nesse sentido,pequenas propriedades sem uso social poderiam ser desapropria-das, enquanto uma flexível noção de empresa rural atribuía função

    social a muitas propriedades, excluindo-as das desapropriações.Esse sistema, desde logo, indicou aorientação modernizadora queviria nos anos 1970, com a expansão do capitalismo no campo bra-sileiro (Martins, 1999, p.78).

    Ao mesmo tempo, a proposta de reforma agrária era contra-balançada com o projeto de ocupação da Amazônia, a partir dacriação da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Ama-zônia) e do Banco da Amazônia, que deveria conceder incentivosfiscais aos empresários que investissem 50% de seu imposto de ren-da no financiamento de projetos de desenvolvimento na Amazônia.“Os investimentos orientaram-se de preferência para a agropecuá-ria, de modo que um grande número de empresários e de empresas,especialmente do Sudeste, sem tradição no ramo, tornaram-se pro-prietários de terras”, o que animava o mercado imobiliário, conver-tendo proprietários de terra em proprietários de capital. Portanto,numa relação diametralmente oposta ao modelo clássico, a terra,em geral considerada entrave à expansão capitalista, convertia-seno modo singular da expansão do sistema: “no modelo brasileiro oempecilho à reprodução capitalista do capital na agricultura não foiremovido por uma reforma agrária, mas por incentivos fiscais ”. Oempresário comprava a terra e recebia incentivo fiscal, que trans-formava em capital, para torná-la produtiva. “O modelo brasileiroinverteu o modelo clássico. Nesse sentido, reforçou politicamente a ir-racionalidade da propriedade fundiária no desenvolvimento capitalis-ta, reforçando, consequentemente, o sistema oligárquico nela apoiado ”(ibidem, p.79-80. Grifos nossos).

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    Enquanto se transformava a base técnica da agricultura (com oaumento médio da produtividade), gerando divisas por meio das

    exportações agrícolas, intensificava-se o êxodo rural, pois esse pro-cesso reafirmava a concentração da propriedade e os entraves parao acesso à terra, fazendo com que, progressivamente, meeiros, pos-seiros, pequenos arrendatários, dentre outros, dessem lugar ao tra-balhador rural volante, também conhecido como “boia-fria”, quevive na cidade e trabalha nos complexos rurais.

    No geral, o sistema se apoiou na alta taxa de exploração do tra-

    balho e da condição humana, aliada à modernização tecnológica,que, progressivamente, eliminou várias categorias de trabalhadoresdo circuito produtivo. O empobrecimento dos grupos de famíliasintegrantes das classes populares, especialmente no campo, foi vi-sível; promovia-se não apenas a esterilização da força de trabalho,mas também a eliminação de modos de vida distintos.

    Silas Nogueira, citando Zander Navarro, afirma que, na décadade 1970, em todo o país, quase 16 milhões de pessoas deixaram ocampo. Nesse período, houve uma redução de 68% para 44% da po-pulação rural. Processo que se seguiu na década de 1980, na qual apopulação do campo representava 32% da população total (Navarroapud Nogueira, 2005, p.173). A geração de excedentes populacio-nais nos médios e grandes centros urbanos integra parte do re-pertório dos resultados mais visíveis da modernização do campo.Outros feitos importantes podem ser vislumbrados na construçãodas rodovias Transamazônica e Rio-Santos; nas inúmeras usinashidrelétricas, dentre as quais, Itaipu; e no Pró-Álcool, programa deaceleração do desenvolvimento da produção sucroalcooleira.

    Uma luta na região da Alta Mogiana e o MSTno Brasil: emerge um novo sujeito políticoe uma nova forma de luta

    O desenvolvimento da cultura canavieira acelerou-se aindamais a partir de 1975, com o Proálcool. Em âmbito internacional,vivia-se uma crise energética, em função da diminuição da produ-

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    ção do petróleo. Para tanto, o governo militar brasileiro buscadinamizar a produção do álcool, a fim de que este seja uma alter-

    nativa para o momento de crise. O Proálcool foi, então, o progra-ma de aceleração do desenvolvimento da produção sucroalcooleirae, ainda, importante mecanismo do modelo geral de desenvolvi-mento econômico do país, uma vez que utilizava tecnologias eequipamentos nacionais, aliviando a dependência do açúcar bra-sileiro das oscilações do mercado internacional; além disso, garan-tia o abastecimento da frota nacional, reduzindo as despesas de

    importação de petróleo. O programa tinha como meta produzir10,7 bilhões de litros de álcool em 1985 e 14 bilhões em 1987 e,assim, “gerar álcool suficiente para misturar à gasolina (na pro-porção de 20% de álcool e 80% de gasolina)” (Silveira, 1998, p.55;cf. Geraldo, 2002, p.31).

    No município e região de Ribeirão Preto, o Proálcool

    acentuou a tendência de concentração de capital pelos grandes pro-prietários e usineiros [conferindo-lhes força política], influi no aspectodemográfico, promovendo movimentos migratórios para a região,acentuou o estabelecimento de novas formas de relações de trabalho.Influenciou no acesso à propriedade da terra, ao inviabilizar a sobrevi-vência dos pequenos proprietários e consolidou a monocultura da cana--de-açúcar [...] A região de Ribeirão Preto foi o centro preferencial doprograma. Recebeu o maior volume de investimentos e absorveu maiorgrau de transformação no seu espaço econômico. (Geraldo, 2002,p.31)

    Para os pequenos proprietários, isso significou a inviabilidadeda produção, já que a intensificação da indústria sucroalcooleiracriou a necessidade da utilização de cana-de-açúcar própria, ouseja, produzida pelos próprios usineiros, forçando, então, a “desa-propriação” de terras de baixa escala produtiva (pequena produçãoou familiar). Em decorrência disso, nos anos de 1970 e 1980, a re-gião de Ribeirão Preto sofreu significativo aumento de sua popula-ção urbana.

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    Com a instalação de usinas e grandes plantações, os municípiosmenores passaram a abrigar novos trabalhadores e boias-frias, o

    que foi arrefecido na década de 1990 pela indefinição do programagovernamental. A industrialização do município se deu, em boamedida, concomitante à expansão industrial verificada no Brasil;contudo, como afirmam Walker & Barbosa (2000), nunca ultrapas-sou as atividades do setor terciário, embora, em 1980, a populaçãorural seja apenas de 15% do total (2000, p.176-7).

    Segundo Ubaldo Silveira, a safra 1993/1994 de cana-de-açúcar

    alcançou os maiores índices produtivos até então já vistos na regiãode Ribeirão Preto: “80% das 29 usinas e 17 destilarias da região ter-minaram a moagem da cana com um aumento médio de 10% naprodução. Nessa safra os usineiros colheram 65 milhões de tonela-das de cana” (1998, p.55).

    Com a consolidação da agroindústria na região de Ribeirão Pre-to, em pouco tempo edificaram-se os setores modernos da indús-

    tria de bens de produção para a agricultura. Constituiu-se, assim,um verdadeiro complexo agroindustrial, que combinou a indústriae as atividades agrícolas com o processo de urbanização acelerado.

    Nesse contexto, “o povo camponês, pobre, [...] mestiço, caipi-ra, era obstáculo a ser removido, ou com a sorte de condenados,transformados em força de trabalho barata para a expansão da agro--indústria”. A promoção da morte, ciladas e massacres contra tra-

    balhadores, no entanto, não impediu que a luta e a organizaçãoprosseguissem:

    Os muitos pontos de resistência, na cidade e no campo, com o iní-cio do esgotamento da ditadura [...] ganham força e capacidade orga-nizativa. O movimento sindical urbano rompe as amarras repressivas,cresce e instala nova fase de lutas político-operárias. Moradores das

    grandes periferias mostram que, a despeito da violenta repressão, o an-seio de participação política e de transformação da realidade nuncadeixou de existir entre os excluídos. Com inúmeras dificuldades, frag-mentadas ideológica, cultural e politicamente, as manifestações popu-lares ganham as ruas e mostram que nem todos foram atingidos pela

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    desesperança e pelo desânimo, impostos pela ditadura do grande capi-tal e das elites. (Nogueira, 2005, p.174-5)

    Na região da Alta Mogiana, o ano de 1983 é significativo no quetoca à organização dos trabalhadores rurais após a ditadura militar(1964-1984). Nessa região, o corte da cana-de-açúcar era feito pelosistema chamado “5 ruas”, ou seja, “cada trabalhador recebia 5 fi-leiras de cana para cortar e, em cada espaço previamente estabeleci-do, ele amontoava a cana cortada”. Contudo, as usinas afirmavam

    que o melhor seria atribuir “7 ruas” para cada trabalhador, poisisso poderia propiciar tanto a economia de combustível utilizadopelas carregadeiras quanto um aumento da capacidade produtiva,em vista da intensificação do ritmo de trabalho dos volantes, ouboias-frias (Geraldo, 2002, p.49).

    A organização sindical reivindicaria, no município e região deRibeirão Preto, melhores condições de salário e trabalho às catego-

    rias rurais a partir de ampla movimentação realizada pela Pastoralda Terra nessa região. Assim, um forte movimento adentrou o anode 1984 e precipitou-se em Guariba (SP) quando, numa importan-te manifestação, o prédio da Sabesp foi depredado, em virtude dasabusivas taxas de água. “Dias depois, ganhava a adesão de cortado-res de cana e de apanhadores de laranjas de cidades da região comoAraraquara, Sertãozinho e Bebedouro. Em pouco tempo, a greve

    expandiu-se por todo o estado“ (ibidem, p.49-50). O movimento(ibidem, p.49-50). O movimentopassaria a ser conhecido como o levante de Guariba.No entanto, veio a reação:

    A violenta repressão, com tiros e forte pancadaria, tinha por objeti-vo dar exemplo ao país inteiro. A ditadura ainda vigente não poderiadeixar a enorme categoria encontrar os caminhos de utilizar a sua forçae mostrar as mazelas do emergente setor agro-industrial. O Proálcool,como todas as formas de subsídios que o sucederam, era vendido pelomarketing oficial e oficioso como solução para o desemprego, para adesigualdade e até mesmo para os problemas ecológicos gerados pelamonocultura. [...] Grande parte dos meios de comunicação da região,

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    incluindo jornais, rádios e televisão, usou de dois artifícios bastantecomuns na época, ou silenciavam ou batiam com bordões comoarrua-ça de uma minoria e baderna entre trabalhadores . Entrevistas com usi-neiros, seus representantes e comandantes policiais inundaram amídia; imagens da violência somente aquelas cometidas pelos traba-lhadores em resposta à repressão policial. (Nogueira, 2005, p.202-3)

    O movimento esmoreceu, porém, o sindicalismo rural prosse-guiu fortalecido. É importante ressaltar que as lutas sociais no cam-É importante ressaltar que as lutas sociais no cam-as lutas sociais no cam-po em Ribeirão Preto não emergem do episódio contemporâneooriundo da organização dos trabalhadores volantes. Remontam,pelo menos, ao processo de expansão do ciclo cafeeiro.4 No entanto,desse episódio em diante, as lutas ganhariam novos conteúdos eoutras formas, ainda que persistisse a organização sindical e pon-tual dos trabalhadores rurais. Essa reformulação do processo deluta se inseria no contexto político, econômico e social do Brasil dosfins da ditadura militar.

    No Rio Grande do Sul, também a partir da década de 1970, umconjunto de aspectos econômicos e políticos, associado ao que se con-vencionou chamar de modernização da agricultura, faria emergir oempobrecimento dos grupos de famílias de pequenos produtorese trabalhadores rurais, concomitantemente à emergência de um se-tor agrícola com novos padrões de produção, centrados no usointensivo de tecnologias. Amplos contingentes de trabalhadores

    rurais viam-se, nesse processo, jogados às margens do circuito eco-nômico das relações sociais, passando a integrar massas excedentesnos centros urbanos. Em razão da concentração de imigrantes eu-ropeus entre os trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul e danecessidade concreta e política da permanência na terra – território--base de suas experiências sociais –, emerge umanova luta social nocampo brasileiro.

    Ao mesmo tempo, no Mato Grosso do Sul, em São Paulo, em

    4 Sobre as lutas camponesas na região de Ribeirão Preto, ver: Welch & Geraldo(1992). A obra, no entanto, abarca o período do ciclo cafeeiro em diante. Nãoencontramos registro de lutas camponesas no período histórico anterior.

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    Santa Catarina e outros estados do Norte e do Nordeste, setoresprogressistas da Igreja Católica já desenvolviam, desde os idos de

    1950, importante trabalho noespaço rural , que desaguaria, em1975, no surgimento da Comissão Pastoral da Terra – CPT. De-senvolvendo trabalho de formação política e de conscientização danecessidade da luta pela terra de trabalho com diversos grupos, aCPT passa a atuar para aproximar os movimentos que se encontra-vam distantes, realizando, em julho de 1982, em Medianeira, noParaná, um encontro nacional de grupos e organizações de luta pela