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Algumas Superfícies Notáveis em Espaços Não-Euclidianos Ion Moutinho Gonçalves Universidade Federal Fluminense 3 o Colóquio da Região Nordeste Setembro de 2014

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Algumas Superfícies Notáveis em

Espaços Não-Euclidianos

Ion Moutinho Gonçalves

Universidade Federal Fluminense

3o Colóquio da Região Nordeste

Setembro de 2014

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Sumário

1 Decompondo o espaço R3 em dois fatores 31.1 O espaço Euclidiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.2 O sistema de coordenadas esféricas no R3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61.3 O sistema de coordenadas cilíndricas no R3 . . . . . . . . . . . . . . . . . 71.4 Feixes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

2 O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo 132.1 Geometria Hiperbólica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132.2 Um modelo de Espaço Hiperbólico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132.3 Outros sistemas de coordenadas em H . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

3 Algumas superfícies notáveis do Espaço Hiperbólico 253.1 Algumas superfícies do R3 generalizadas para H . . . . . . . . . . . . . . 25

4 O Espaço Esférico 314.1 Um modelo de Espaço Esférico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314.2 As coordenadas esféricas e cilíndricas em S3 . . . . . . . . . . . . . . . . 32

5 Continuando o estudo 355.1 A noção de distância nos espaços não-euclidianos . . . . . . . . . . . . . 355.2 O Cálculo Diferencial para o estudo das formas em H . . . . . . . . . . . 365.3 Produto warped . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

Referências Bibliográficas 41

iii

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Introdução

Este texto é para um minicurso sobre espaços geométricos, de dimensão 3, não-euclidianos, o Espaço Hiperbólico e o Esférico. Destacamos em primeiro lugar quea abordagem que será adotada aqui é baseada no uso de modelos, isto é, não vamosestruturar as definições e propriedades por meio de uma apresentação axiomática. Emparticular, não vamos fazer uso sistemático de um estudo axiomático. Contudo, nãoestamos impedidos de fazer uso de resultados das teorias de Geometria. Vejamos,agora, esta questão em mais detalhes.

Adotamos um modelo para o Espaço Hiperbólico e outro para o Esférico. Estesmodelos dependerão de conhecimentos sobre o espaço euclidiano Rn, onde R

representa o conjunto dos números reais. Assim, nossa base de conhecimento é oconjunto Rn como modelo de espaço euclidiano, isto é, de espaço vetorial normado,com a norma proveniente de um produto interno, e de dimensão finita. Ao contráriodo que acontece num estudo axiomático e abstrato, quando não importa o que são osobjetos envolvidos, qual é a natureza destes, e só o que interessa são as propriedadesassumidas para os objetos, os axiomas da teoria, em um estudo baseado num modeloos objetos de estudo são explicitamente descritos e as propriedades devem, oumelhor, podem ser deduzidas a partir de conhecimentos da natureza destes objetos.Por exemplo, num modelo, propriedades, que num estudo axiomático são apenaspostuladas, podem ser provadas. Este tipo de estudo tem a grande vantagem de, nahora de justificar um resultado de interesse, não depender de muitos conhecimentosda teoria ou de grande habilidade na dedução de resultados intermediários. Poroutro lado, não estamos impedidos de fazer uso de eventuais propriedades queconheçamos por meio do estudo axiomático das Geometrias, elaborando argumentoslógico-dedutivos exclusivamente baseados nos axiomas e resultados já conhecidos dateoria estudada, a Geometria Hiperbólica ou a Geometria Esférica. Um exemplo naGeometria Euclidiana plana, suponhamos que precisemos mostrar que três pontos doR2 são vértices de um triângulo retângulo. Podemos determinar equações para asretas que contém cada par de ponto e analisar o ângulo entre elas. Ou, podemos usar oteorema de Pitágoras para triângulo retângulo válido para a Geometria Euclidiana. Severificarmos a relação entre as distâncias, de acordo com o teorema, temos que os trêspontos indicam um triângulo retângulo. Aliás, o quanto podemos usar de resultadosde um estudo axiomático vai depender da habilidade e conhecimento de cada um denós.

A proposta aqui é desenvolver um estudo mesclado, ora usando argumentosbaseados nas relações explícitas entre os objetos do modelo, ora usando argumentoslógico-dedutivos exclusivamente baseados nos axiomas e resultados básicos daGeometria Hiperbólica, ou Esférica. Um estudo assim, no caso euclidiano, é conhecido

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como Geometria Analítica. Assim, considerando um modelo de Espaço Hiperbólico ede Espaço Esférico, podemos seguir uma teoria que bem poderia se chamar GeometriaHiperbólica Analítica e Geometria Esférica Analítica.

O objetivo deste curso, além de apresentar um estudo analítico dos EspaçosHiperbólico e Esférico, é introduzir uma noção de decomposição nestes espaços. Estanão é uma tarefa imediata, pois os espaços não-euclidianos não possuem retângulos,isto é, não admitem duas famílias ortogonais formadas por retas ou planos paralelosentre si. Com o objetivo de buscar decomposições para espaços não-Euclidianosvamos estudar uma generalização das coordenadas esféricas e cilíndricas do R3. Comoaplicação deste estudo, vamos utilizar as decomposições como um critério para acriação de algumas superfícies bastante estudadas no espaço euclidiano, a saber, cones,cilindros e superfícies de rotação. Neste sentido, o Espaço Hiperbólico apresentasurpresas interessantes.

É importante destacar também que este texto não segue a abordagem matemáticatradicional da busca por teoremas. O objetivo principal aqui é conhecer e manipularnovos objetos, normalmente desconsiderados nos estudos tradicionais de Geometria.Temos, por outro lado, a pretensão de deixar questões de investigação, no caso do leitordesenvolver estudos na área de Geometria diferencial.

Os assuntos abordados neste texto são também uma apresentação elementar deobjetos que são temas de pesquisas matemáticas recentes na área de GeometriaDiferencial.

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Capítulo 1

Decompondo o espaço R3 em doisfatores

A introdução de novos sistemas de coordenadas em regiões do espaço R3 tem porfinalidade simplificar a descrição de certos conjuntos ou funções. Vamos apresentaralgumas definições relacionadas a este conceito a fim de estudar alguns subconjuntosespeciais, a saber, superfícies do tipo de rotação, cone e cilindro.

1.1 O espaço Euclidiano

O conjunto R3 = {(x, y, z) : x, y, z ∈ R} se torna um espaço vetorial de dimensão 3quando é munido das operações naturais de adição de vetores e de multiplicação devetor por escalar. O espaço vetorial R3 é chamado espaço euclidiano quando é munidotambém do produto interno usual.

Notações:

• o símbolo + denota a soma usual de vetores do R3:

(x, y, z) + (a, b, c) = (x + a, y + b, z + c), para todos (x, y, z), (a, b, c) ∈ R3;

• o símbolo . denota o produto usual de um vetor por um escalar:

a.(x, y, z) = (ax, ay, az), para todos a ∈ R e (x, y, z) ∈ R3;

• a notação 〈, 〉 é usada para o produto interno usual do R3:

〈(x, y, z), (a, b, c)〉 = xa + yb + zc, para todos (x, y, z), (a, b, c) ∈ R3;

• a notação ‖ ‖ é usada para a norma euclidiana, proveniente do produto interno:

‖(x, y, z)‖ =√

x2 + y2 + x2, para todos (x, y, z) ∈ R3.

Quando munido destas operações, o R3 vira um modelo de Espaço Euclidiano.Agora, a partir destes elementos, e com a construção de outros, como o conceito deângulo, temos que o R3 pode ser visto como um modelo da Geometria Espacial deEuclides. Dependendo da forma como interpretamos os objetos relacionados com o

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4 Capítulo 1: Decompondo o espaço R3 em dois fatores

R3, podemos chamá-los de modo diferente. Assim, podemos usar tanto o termo vetorquanto o termo ponto para os elementos de R3, dependendo do contexto.

Por ter dimensão 3, os pontos do espaço R3 podem ser determinados através de3 coordenadas formadas por números reais. Dada uma base {u1, u2, u3} de R3, todovetor u ∈ R3 pode ser escrito como combinação linear da base dada,

u = xu1 + yu2 + zu3, com x, y, z ∈ R3.

Os valores obtidos, x, y, z ∈ R3, são chamados coordenadas na base {u1, u2, u3}. Ascoordenadas de um vetor na base canônica, {(1, 0, 0), (0, 1, 0), (0, 0, 1)}, são conhecidascomo coordenadas cartesianas, e coincidem com as próprias coordenadas de definiçãodos objetos elementos de R3.

A determinação dos elementos de R3 através de um sistema de coordenadas numabase fixada pode ser visto como uma aplicação

(x, y, z) ∈ R3 7→ xu1 + yu2 + zu3 ∈ R

3.

De modo bem mais geral, vamos chamar toda aplicação bijetiva entre subconjuntos deR3 de um sistema de coordenadas (local) em R3. Com esta definição, incluímos exemploscomo as coordenadas esféricas e cilíndricas, exemplos que serão relembrados logo aseguir.

A ideia de um sistema de coordenadas de R3 é, a princípio, descrever pontos doconjunto em função de ternos de números reais, o que pode ser visto como uma formade decompor o espaço euclidiano em 3 fatores de dimensão 1, R × R × R. Agora,podemos ver se não é interessante tentar decompor R3 em dois fatores. Neste caso,temos um fator de dimensão 1 e outro de dimensão 2. Vejamos um exemplo parailustrar um pouco melhor esta ideia.

Exemplo: (decomposição ortogonal do R3 em dois fatores) Seja π um plano do R3 quepasse pela origem e seja r uma reta ortogonal a π, também passando pela origem deR3. A aplicação

(x, y) ∈ π × r 7→ x + y ∈ R3

descreve pontos do R3 em função de duas coordenadas, uma dada pelos elementos deπ, espaço de dimensão 2, e outra pelos elementos de r, espaço de dimensão 1. Estesistema de coordenadas determina uma representação do R3 como produto do planoπ pela reta r.

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1.1: O espaço Euclidiano 5

Um exemplo de aplicação deste sistema de coordenadas é a descrição datransformação reflexão com relação ao plano π que, neste sistema, fica bemsimplificada. De fato, quando o R3 é representado como o produto de π por r, atransformação reflexão é expressa por

(x, y) ∈ π × r 7→ (x,−y) ∈ π × r.

Este tipo de sistema de coordenadas também é útil para a descrição de umsubconjunto especial, a saber, as superfícies cilíndricas. Vamos apresentar uma descriçãoparamétrica para este tipo de conjunto.

Seja α : I ⊂ R → π ⊂ R3 uma curva. Então, a aplicação

(s, t) ∈ I × r 7→ (α(s), t) ∈ π × r

representa um cilindro sobre a curva α.

Exercício: A aplicação, f (s, t) = (2s2 + s − t, s2 + s + t, s2 − s + 2t), parametriza umcilindro. Encontre a decomposição ortogonal do espaço em dois fatores que permitaobter uma parametrização do cilindro como no exemplo anterior.

Exercício: Encontre, se possível, outros objetos e transformações do espaço cujaexpressão em função de uma decomposição ortogonal em dois fatores fiquesimplificada.

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6 Capítulo 1: Decompondo o espaço R3 em dois fatores

1.2 O sistema de coordenadas esféricas no R3

Outro sistema de três parâmetros muito usado para descrever pontos do espaçoR3 é o sistema que considera a distância de um ponto dado à origem e a sua direçãono espaço, conhecido como sistema de coordenadas esféricas. Mais precisamente, dadop ∈ R3 − (0, 0, 0), se ρ > 0 é a distância de p à origem e se θ ∈ [0, π) e σ ∈ [0, 2π)são os parâmetros que determinam a direção de p, representando a colatitude, isto é, oângulo que o vetor p faz com o eixo z, e representando a longitude, isto é, o ângulo que aprojeção de p sobre o plano xy faz com o eixo x, respectivamente, então as coordenadasesféricas de p são representadas por (ρ, θ, σ). Neste caso, as coordenadas cartesianasde p, (x, y, z), são expressas em função das coordenadas esféricas pelas relações

x = ρ sin(θ) cos(σ)y = ρ sin(θ) sin(σ).z = ρ cos(σ)

Em linguagem vetorial, temos

(x, y, z) = ρ(sin(θ). cos(σ), sin(θ). sin(σ), cos(σ)).

Note (verifique) que (sin(θ). cos(σ), sin(θ). sin(σ), cos(σ)) é um ponto da esferaS2 =

{

u ∈ R3 : ‖u‖ = 1}

. Às vezes, um problema envolvendo coordenadas esféricasnão exige que se mencione explicitamente os parâmetros θ e σ. Neste caso, a expressãode um ponto (x, y, z) de R3 em coordenadas esféricas pode ser simplificada para

(x, y, z) = ρu, onde ρ > 0 e u ∈ S2.

Em particular, a expressão fornece uma decomposição do R3 − (0, 0, 0) como produtode dois fatores, ρ ∈ (0,+∞) e u ∈ S2 (o primeiro fator pertence a um espaço dedimensão 1 e o segundo pertence a um espaço de dimensão 2). Em resumo, a aplicação,

(ρ, u) ∈ (0,+∞)× S2 7→ ρu ∈ R

3 − (0, 0, 0),

define um sistema de coordenadas sobre R3 − (0, 0, 0), chamado também decoordenadas esféricas, que representa o espaço como um produto de uma semirreta poruma esfera.

Exemplo: A equação da esfera de centro em (0, 0, 0) e raio r é dada, em coordenadasesféricas, por ρ = r. De fato, a expressão ρ = r significa que o parâmetro ρ é fixado e oparâmetro u ∈ S2 varia livremente, ou seja, todo ponto que satisfaça à equação ρ = rtem que ter a norma fixada, mas pode variar a direção, o que permite descrever todosos pontos da esfera de raio r.

Exemplo: A equação da semirreta de R3 que parte da origem e passa por um ponto a,em coordenadas esféricas, é da forma u = a

‖a‖(vetor unitário). De fato, um ponto de

R3 da forma p = ρu, com u = a‖a‖

, só tem o parâmetro ρ livre, ou seja, só pode variar

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1.3: O sistema de coordenadas cilíndricas no R3 7

o seu comprimento, enquanto que a direção fica constante. Como ρ > 0, tais pontosestão sobre uma semirreta.

Exemplo: (descrição paramétrica de um cone) Um cone é uma figura geométricaformada por um feixe de semirretas com origem em um ponto do espaço e que passampor uma curva. Por exemplo, se α : I ⊂ R → R3 é uma curva então a aplicação

(s, t) ∈ (0,+∞)× I 7→ sα(t) ∈ R3

parametriza o cone gerado pela curva α com vértice na origem.A escolha arbitrária de uma curva α para descrever um cone pode não ser uma

boa opção. Por exemplo, o conhecimento de α pode ainda não deixar claro como éo formato do cone. Só para ilustrar, poderíamos ter α parametrizando um círculo noespaço sem que o cone seja reto e de base circular. Além disso, as curvas coordenadas,s = constante e t = constante, podem não ser ortogonais.

Uma maneira ótima de descrever um cone a partir de uma curva é considerarque a curva α é tal que ‖α(t)‖ = 1 para todo t ∈ I, ou seja, α é uma curva daforma α : I ⊂ R → S2. Neste caso, as coordenadas esféricas servem para uma boaparametrização. Em coordenadas esféricas, temos

(s, t) ∈ (0,+∞)× I 7→ (s, α(t)) ∈ (0,+∞)× S2.

1.3 O sistema de coordenadas cilíndricas no R3

Outro sistema de coordenadas que fornece uma decomposição do espaço em doisfatores é o sistema de coordenadas cilíndricas,

(x, ρ, θ) ∈ R× (0,+∞)× [0, 2π) 7→ (x, ρ cos(θ), ρ sin(θ)) ∈ R3 − {(x, 0, 0) : x ∈ R} .

Agora, fazendo R2+ denotar o semiplano

{

(t1, t2) ∈ R2 : t2 > 0}

e S1 denotar o círculo{

x ∈ R2 : ‖x‖ = 1}

, a aplicação acima pode ser revista como a seguinte decomposição

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8 Capítulo 1: Decompondo o espaço R3 em dois fatores

(t1, t2, x) ∈ R2+ × S

1 7→ (t1, t2x) ∈ R×R2 ≈ R

3.

Exemplo: Considere a decomposição do R3 como produto de um semiplano por umcírculo, obtida através do sistema de coordenadas cilíndricas, e seja α : I → R2

+ umacurva. Então, a aplicação

(t, x) ∈ I × S1 7→ (α(t), x) ∈ R

2+ × S

1

representa a superfície de rotação gerada pela curva α. De outra forma, quando o R3

está decomposto como o produto de um semiplano por um círculo, segundo o sistemade coordenadas cilíndricas, uma superfície de rotação do espaço é o produto de umacurva do semiplano com o círculo e é parametrizada pela parametrização da curvavezes a identidade do círculo.

As curvas coordenadas, t 7→ (α(t), x0) ∈ R2+ × S1 e x 7→ (α(t0), x) ∈ R2

+S1,

parametrizam, respectivamente, os meridianos e os paralelos da superfície de rotação.

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1.4: Feixes 9

O objetivo, neste texto, para a definição dos sistemas de coordenadas estabelecidosaqui é bem simples, é simplesmente o de estabelecer uma maneira de representaras superfícies discutidas nos exemplos, cilindros, cones e de rotação. Por exemplo,se consideramos um sistema de coordenadas, ϕ : R2

+ × S1 → R3, a aplicação,f : I × S1 7→ R2

+ × S1, f (t, x) = (α(t), x), deve ser reconhecida como uma superfíciede rotação. Essa notação será muito útil quando buscarmos um estudo análogo sobresuperfícies nos espaços hiperbólico e esférico.

Cabe chamar a atenção do leitor para o fato de que é possível, e muitoútil, desenvolver conhecimentos matemáticos relacionados com os sistemas decoordenadas que estamos vendo aqui. Contudo, isso exigiria conhecimentos que aindanão estamos assumindo no texto.

Exercício: Defina um sistema de coordenadas cilíndricas em R4 do tipo R2+ × S2 e

utilize-o para definir uma noção hipersuperfície de rotação em R4. Neste caso, qualé a dimensão dos meridianos e dos paralelos? Qual é a natureza dos meridianos? Edos paralelos? Você também pode definir outro sistema de coordenadas cilíndricas emR4 agora do tipo R3

+ × S1. Utilize-o para definir mais uma noção de hipersuperfíciede rotação R4. Como fica a dimensão dos meridianos e dos paralelos neste novo caso?Qual é a natureza dos meridianos? E dos paralelos?

1.4 Feixes

Podemos definir sistemas de coordenadas a partir das aplicações mais variadas.Contudo, os exemplos vistos até agora podem ser colocados dentro de um único pontode vista, desenvolvido a partir do conceito de feixe, de retas e semirretas e de planos esemiplanos.

Um feixe de semirretas com origem p é o conjunto das semirretas com origem noponto p. Vamos também considerar a noção de feixe de retas paralelas, o conjunto dasretas paralelas a uma reta dada. De modo análogo se define feixe de semilplanos e feixede planos paralelos.

Antes de analisarmos os referidos sistemas de coordenadas de R3 do ponto devista de feixes, vamos fazer algumas observações sobre uma versão planar da questão,vamos falar sobre o sistema de coordenadas polares do R2. Uma forma de descrever o

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10 Capítulo 1: Decompondo o espaço R3 em dois fatores

sistema de coordenadas polares é considerá-lo como a aplicação

(ρ, u) ∈ (0,+∞)× S1 7→ ρu ∈ R

2 − {(0, 0)} ,

onde S1 ={

u ∈ R2 : ‖u‖ = 1}

. Este sistema de coordenadas induz uma decomposiçãodo plano num produto de uma semirreta por um círculo. Note que todo vetor u ∈ S1

pode ser escrito da forma u = (cos(θ), sin(θ)) e a aplicação acima se escreve emcoordenadas como

(ρ, θ) 7→ (ρ cos(θ), ρ sin(θ)),

forma que talvez o leitor esteja mais acostumado.As curvas coordenadas do sistema de coordenadas polares são as curvas u =

constante, que formam um feixe de semirretas com origem (0, 0), e as curvas ρ =constante, que formam os círculos de centro (0, 0).

Note que as coordenadas polares formam um sistema no qual a rede de curvascoordenadas é tal que elas se interceptam ortogonalmente. Note também que esta é aúnica maneira de se obter um sistema de coordenadas cuja rede de curvas coordenadasé formada por um feixe de semirretas com origem num ponto e por uma família decurvas ortogonais a este feixe. De fato, a única família de curvas ortogonais a um feixede semirretas é a família de curvas formadas por círculos concêntricos e com centro naorigem do feixe.

Uma variação deste tipo de construção ocorre quando fazemos a origem do feixede semirretas se deslocar, na direção do eixo y, para o infinito. Neste caso, o feixe desemirretas se transforma num feixe de retas paralelas e a família de círculos, sempreortogonal ao feixe, muda para um outro feixe de retas paralelas, ortogonal ao feixelimite. Ou seja, o sistema de coordenadas cartesianas aparece como um caso limite desistemas de coordenadas polares.

Como foi dito no início desta seção, podemos expressar o espaço R3 em termosdos mais variados tipos de sistemas de coordenadas. Entretanto, se quisermos definirum sistema de coordenadas no espaço que o decomponha em dois fatores e que sejadescrito em termos de feixes de retas e semirretas, ou de planos e semiplanos, e de

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1.4: Feixes 11

famílias de superfícies, ou de curvas, ortogonais ao feixe, as possibilidades se reduzemaos sistemas já vistos aqui, de coordenadas esféricas, cilíndricas e ortogonais.

Em função do uso constante que faremos das famílias de curvas e superfíciesrelacionadas com os sistemas de coordenadas, vamos introduzir a seguinteterminologia. Dado um sistema de coordenadas, o conjunto das famílias de curvas,ou superfícies, induzidas pela equação, coordenada = constante, será chamado derede induzida pelo sistema de coordenadas. Por exemplo, no plano, a rede induzida pelascoordenadas polares é formada pelas semirretas com origem em (0, 0) e pelos círculosde centro em (0, 0). No sistema de coordenadas esféricas do R3, a rede induzidaé formada pelas semirretas de origem (0, 0, 0) e as esferas de centro em (0, 0, 0).Resumindo, temos três casos.

Caso 1: Imagine um feixe de retas paralelas em R3. Sendo o feixe uma família decurvas, isto é, de objetos de dimensão 1, uma família ortogonal ao feixe de retas deveser formada por superfícies. A única maneira de se obter uma família de superfíciesortogonais a um feixe de retas paralelas é formando uma família de planos paralelos,ortogonais ao feixe.

Um sistema de coordenadas em R3 cuja rede induzida tenha estas característicastem, então, que coincidir com o sistema de coordenadas ortogonais.

Caso 2: Imagine um feixe de semirretas com origem em (0, 0, 0). A única maneira de seobter uma família de superfícies ortogonais a um feixe de semirretas é formando umafamília de esferas com centro na origem de feixe.

Um sistema de coordenadas em R3 cuja rede induzida tenha estas característicastem, então, que coincidir com o sistema de coordenadas esféricas.

Caso 3: Imagine agora um feixe de semiplanos, ou seja, um conjunto de semiplanoscom origem em uma determinada reta do espaço. Sendo o feixe uma família desuperfícies, isto é, de objetos de dimensão 2, uma família ortogonal ao feixe desemiplanos deve ser formada por curvas. A única maneira de se obter uma famíliade curvas ortogonais a um feixe de semiplanos é formando uma família de círculoscom centro na reta origem do feixe, ortogonais ao feixe.

Um sistema de coordenadas em R3 cuja rede induzida tenha estas característicastem, então, que coincidir com o sistema de coordenadas cilíndricas.

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12 Capítulo 1: Decompondo o espaço R3 em dois fatores

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Capítulo 2

O estudo da Geometria Hiperbólica pormeio de um modelo

Vamos estudar um modelo de Geometria Espacial diferente da Euclidiana. Nestemodelo poderemos explorar e investigar sobre conhecimentos relacionados com aGeometria Hiperbólica. O foco é estudar algumas superfícies notáveis, por analogiaao caso euclidiano.

2.1 Geometria Hiperbólica

A Geometria Hiperbólica é resultado de um longo processo de questionamentos eanálises da estrutura axiomática da Geometria Euclidiana, e até de experimentaçõespráticas. Como consequência deste processo, no século XIX, estabeleceu-se uma novaestrutura axiomática que deu origem a outra geometria, de características próprias.Basicamente, a Geometria Hiperbólica nasce quando se troca o quinto postulado deEuclides pelo postulado que diz que por um ponto fora de uma reta podem ser traçados pelomenos duas retas que não encontram a reta dada.

Considerando esta mudança axiomática, cabe lembrar que muitos enunciados denatureza métrica, ou quantitativa, dependem do quinto postulado de Euclides paraserem considerados como resultados da Geometria Euclidiana. Por exemplo, temos oteorema de Pitágoras para triângulos retângulos e o teorema sobre a soma dos ângulosde um triângulo ser 180o.

A proposta aqui não é desenvolver um estudo axiomático da GeometriaHiperbólica, muito menos se pretende fazer uso sistemático deste conhecimento.Vamos, sim, fazer referência a elementos da Geometria Hiperbólica e, para isto,faremos nosso estudo apoiados num modelo desta teoria.

2.2 Um modelo de Espaço Hiperbólico

O modelo de espaço hiperbólico que vamos considerar é o conhecido modelo dosemiespaço de Poincaré, H, onde:

• H ={

(x, y, z) ∈ R3 : z > 0}

;

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14 Capítulo 2: O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo

• os pontos de H são os elementos do próprio conjunto;

• as retas de H são os semicírculos de R3 contidos em H que têm centro no planoz = 0 e estão contidos num plano perpendicular ao plano z = 0; além dassemirretas de R3 que estão contidas em H, têm origem no plano z = 0 e sãoperpendiculares a este;

• os planos de H são as semiesferas de R3 contidas em H e que têm centro no planoz = 0, além dos semiplanos com origem no plano z = 0 e perpendiculares a este.

Em primeiro lugar, não custa lembrar que estes elementos não definem exatamentea Geometria Hiperbólica. Estas são somente as primeiras referências para seestabelecer o conjunto H como um modelo da teoria.

Quando for necessário ser mais específico, usaremos os termos ponto hiperbólico, retahiperbólica e plano hiperbólico como referência aos elementos geométricos de H.

Exemplo: Num estudo axiomático e abstrato, não importa o que são os objetosenvolvidos, qual é a natureza deles. Só o que interessa são as propriedades assumidaspara os objetos, os axiomas da teoria. Por outro lado, num estudo baseado nummodelo, os objetos de estudo são explicitamente descritos e as propriedades devem,ou melhor, podem ser deduzidas a partir do conhecimento da natureza destes objetos.

A partir do modelo estabelecido aqui, podemos verificar resultados da teoriada Geometria Hiperbólica levando em consideração os elementos do modeloexplicitamente definidos. Por exemplo, num estudo axiomático e abstrato desta teoria,a propriedade, dois pontos distintos quaisquer pertencem a uma única reta, é um de seusaxiomas, é uma propriedade postulada. Agora, no nosso modelo, podemos verificartal propriedade. De fato, dados P e Q em H, se as respectivas projeções ortogonaisdestes pontos sobre z = 0 não coincidem, existe um único plano euclidiano, α, queé perpendicular ao plano euclidiano z = 0 e que contém P e Q. Para este casoconsideramos o ponto médio, A = (P+Q)/2, e, então, consideramos a reta euclidiana,r, que passa por A, é perpendicular ao segmento euclidiano PQ e está contida em α. Areta hiperbólica que contém P e Q é dada pelo semicírculo contido em α que contémP e Q e tem centro dado pela interseção da reta r com o plano z = 0. Se a projeçãoortogonal de P sobre z = 0 é igual à projeção ortogonal de Q sobre z = 0, a retahiperbólica é dada pela semirreta que contém P e Q e tem origem no plano z = 0.A verificação da unicidade é imediata de conhecimentos de Geometria Euclidianaespacial. Veja uma representação gráfica da situação aqui descrita.

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2.2: Um modelo de Espaço Hiperbólico 15

Observação: Procedendo como no exemplo anterior, podemos usar o modelo paraprovar propriedades da Geometria Hiperbólica. Contudo, podemos também mesclaro estudo, ora usando argumentos baseados nas relações explícitas entre os objetosdo modelo, ora usando argumentos lógico-dedutivos exclusivamente baseados nosaxiomas e resultados básicos da Geometria Hiperbólica. Um estudo assim, no casoeuclidiano, é conhecido como Geometria Analítica. Assim, considerando o nossomodelo de espaço hiperbólico, podemos seguir uma teoria que bem poderia se chamarGeometria Hiperbólica Analítica.

Continuando com a descrição do modelo de espaço hiperbólico, quero agorafalar sobre um conhecimento fundamental, as isometrias do espaço hiperbólico. Asisometrias de H são dadas pelas restrições a H de isometrias euclidianas, homotetias einversões (que levam H sobre H), além das composições destas.

Lembro que uma homotetia é uma aplicação de R3, definida a partir de um pontoC ∈ R3 e um fator r > 0, que transforma um ponto X num ponto X′ da semirreta ~CXde modo que CX′ = r.CX. E uma inversão é uma aplicação definida a partir de umponto C ∈ R3 e um fator r > 0, que leva um ponto X 6= C num ponto X′ da semirreta~CX de modo que CX.CX′ = r2 (A inversão funciona como a reflexão com relação a

uma esfera).

Exercício: Descreva explicitamente quais são as isometrias, homotetias e inversõesde R3 que levam H sobre H. Mostre que o conjunto das composições destes tipos deaplicações forma um subgrupo de Bij(H), conjunto de todas as bijeções de H.

Uma curiosidade, se tivéssemos iniciado este estudo de acordo com a abordagemproposta por Felix Klein, em seu Erlanger programm, em 1872, para se estabelecer oconjunto H como modelo de espaço hiperbólico, definiríamos em primeiro lugar umdeterminado grupo de transformações de H. No caso, devemos considerar o subgrupode bijeções de H, Iso(H), que é gerado pelos três tipos de aplicações que acabamosde destacar. Podemos dizer que Iso(H) é o grupo das transformações hiperbólicas e seuselementos são chamados de transformações isométricas, ou simplesmente de isometrias.Pela interpretação do termo, transformação, que se dá a uma função, dizemos que ogrupo Iso(H) age sobre H.

Segundo a proposta de Klein, o estudo da Geometria Hiperbólica se dá a partirdo estudo de propriedades que são invariantes pela ação de Iso(H) e, assim, a análisede invariantes hiperbólicos também pode ser uma possibilidade de abordagem paradesenvolvimento do nosso estudo sobre Geometria Hiperbólica. Por exemplo, umavez estabelecido o grupo de transformações que agem sobre H, podemos verificar

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16 Capítulo 2: O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo

que as retas e os planos hiperbólicos são de fato elementos da Geometria Hiperbólica,pois as propriedades, "ser reta hiperbólica"e "ser plano hiperbólico", são propriedadesinvariantes pela ação de Iso(H).

Exercício: Verifique que as isometrias de H levam retas hiperbólicas em retashiperbólicas e planos hiperbólicos em planos hiperbólicos, isto é, retas e planoshiperbólicas são invariantes pela ação de Iso(H). Aproveitando o exercício, mostreque, dadas duas retas hiperbólicas, existe uma isometria de H que transforma umareta na outra (o mesmo vale para dois planos hiperbólicos).

Exercício: Verifique se são invariantes pela ação de Iso(H), sempre que estão contidosem H: as esferas euclidianas; os círculos euclidianos (contidos num plano euclidiano);os semiplanos euclidianos; os planos euclidianos; as semirretas euclidianas; as retaseuclidianas.

Com relação à noção de ângulo, o conceito é análogo ao caso euclidiano e a medidade ângulo em H deve coincidir com a noção de medida de ângulo entre curvas de R3.Observe que só pode ser assim, pois as aplicações escolhidas como as isometrias deH são aplicações conformes de R3. Ou seja, a noção euclidiana de medida de ânguloentre curvas é uma propriedade invariante pela ação do grupo Iso(H).

Exercício: Uma aplicação f : U ⊂ R3 → R3, com U sendo um aberto de R3, é ditauma aplicação conforme se é diferenciável e, para todo p ∈ U, para todos u, v ∈ R3,tem-se 〈 f ′(p)u, f ′(p)v〉 = λ(p) 〈u, v〉 , onde λ(p) representa um número que dependede p. Verifique que as isometrias de H são aplicações conformes. Verifique queuma aplicação conforme preserva ângulo entre curvas, ou seja, se f é uma aplicaçãoconforme e α, β são curvas que se interceptam em p ∈ R3 então o ângulo entre α e βem p é igual ao ângulo entre f ◦ α e f ◦ β em f (p).

Exemplo: Um cilindro da Geometria Euclidiana é obtido pela união de retas paralelasentre si e que contém algum ponto de uma curva plana (para simplificar nossadiscussão, vamos considerar a noção de cilindro completo, isto é, com as geratrizessendo retas). Assim, um cilindro euclidiano fica determinado quando é dada umacurva contida num plano e uma reta secante a este plano. Contudo, transferir esteconceito para o espaço hiperbólico não é um ação imediata. De fato, quando seestabelece uma reta hiperbólica e uma curva sobre um plano hiperbólico, dado umponto da curva, não é possível determinar precisamente a reta paralela que contém esteponto, pois, ao contrário do que acontece na Geometria Euclidiana, existem infinitasretas paralelas a uma reta dada e sobre um mesmo ponto.

Dada uma reta hiperbólica e um ponto fora desta, existem uma infinidade de retashiperbólicas paralelas à reta dada que contém tal ponto. Porém, podemos usar a noçãode ângulo para determinar uma reta específica. Vejamos, então, o cilindro euclidianosobre outro enfoque. Dado um cilindro euclidiano, consideramos uma geratriz docilindro e um plano euclidiano perpendicular à geratriz. A interseção deste plano coma superfície é uma curva. Assim, podemos ver um cilindro como o conjunto das retasperpendiculares a um plano e que passam por algum ponto da curva.

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2.2: Um modelo de Espaço Hiperbólico 17

Com base nessa preliminar, parece ser razoável definir a seguinte noção. Umcilindro hiperbólico completo é a união de retas hiperbólicas que passam por umacurva contida num plano hiperbólico e são perpendiculares a este. A pergunta quesegue depois desta definição é: Esta é uma boa definição? Ou melhor, será queas propriedades conhecidas para os cilindros euclidianos são preservadas para estaversão hiperbólica? Ou, será que esta definição gera propriedades tão boas quanto aversão euclidiana gera? Vou deixar estas perguntas no ar por enquanto e o leitor estáconvidado a pensar sobre o assunto.

Observação: No exemplo anterior, eu chamei a atenção para o fato de que, dada umareta r e um ponto fora desta, existe uma infinidade de retas paralelas a r que passampor P. Na verdade, esta situação não é aleatória. Veja uma interpretação da situação naseguinte representação do nosso modelo de espaço hiperbólico. É claro que a discussãosobre retas paralelas só faz sentido quando restritas a um plano. A figura representauma reta r dada e um ponto P fora desta. Aí, percebemos uma infinidade de retashiperbólicas que passam por P e são paralelas a r, isto é, percebemos um feixe deretas paralelas a r e passando por P. Note, pelo desenho, que devem existir duas retasespeciais, são retas que vou chamar, por hora, de retas limites do feixe. Estas retasgozam de propriedades especiais. Por exemplo, é possível mostrar que se s é uma dasduas retas limites do feixe então dH(r, s) = inf {dH(p, q) : p ∈ r e q ∈ s} = 0, onde dHdenota a distância hiperbólica (noção que ainda vamos apresentar). Assim, duas retashiperbólicas paralelas com um ponto em comum no plano z = 0 são chamadas de retasassintóticas. Duas retas hiperbólicas paralelas que não sejam assintóticas são chamadasde retas ultraparalelas.

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18 Capítulo 2: O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo

Observação: Antes de continuarmos, é preciso chamar atenção para uma questão queo leitor certamente já conhece, mas que acredito que deva ser enfatizada para melhorapreciação do estudo que estamos desenvolvendo. A pura e simples definição deum conjunto não determina exatamente o que é este conjunto. Para isto, é precisotambém estabelecer uma estrutura para o conjunto. Talvez seja mais fácil falar sobreisto a partir de um exemplo. O R2 é um conjunto formado por pares de númerosreais. Bom, definindo alguns elementos para este conjunto, ele pode ser visto comoum plano da Geometria Euclidiana. Por outro lado, definindo operações adequadas, omesmo conjunto pode ser visto como um conjunto numérico, o conjunto dos númeroscomplexos. Ou, então, podemos ver o conjunto R2 como espaço de vetores. A forma deentender o conjunto R2 só vai mudando, dependendo da estrutura que consideramos.Por exemplo, o R2 pode ser visto como um espaço vetorial de dimensão 2, quandoé um espaço vetorial real. Mas, também pode ser visto como um espaço vetorialde dimensão 1, quando é um espaço vetorial complexo. Neste texto, nós vamosconsiderar várias estruturas diferentes para um mesmo conjunto, o R3. Aí, devemosver este conjunto de várias maneiras. Nós já lidamos com esta diferença de uma formabastante evidente, quando consideramos o conjunto R3

+ ={

(x, y, z) ∈ R3 : z > 0}

comelementos que o munem com a estrutura de espaço hiperbólico (ainda falta falar sobrealguns elementos). Tanto é assim que para destacar esta diferença, usamos a letra H

para indicar o conjunto R3+ com esta nova estrutura geométrica. Fique atento para

estas mudanças de estrutura, leitor. Às vezes elas são sutis, mas são importantes.Com o modelo do semiespaço de Poincaré, a introdução de um sistema de

coordenadas em H é bem simples, basta considerar a aplicação, i : R3+ → H, i(x) = x,

para todo x ∈ R3+, onde R3

+ ={

(x, y, z) ∈ R3 : z > 0}

. Analisando a questãosobre conjuntos e estruturas, podemos ver a aplicação i, do ponto de vista deconjunto, apenas como a aplicação identidade. Mas, considerando possíveis estruturasassociadas ao mesmo conjunto, podemos ter uma aplicação com característicasbastante variadas. Prestar a atenção para estas questões é um ótimo exercício deMatemática, leitor.

Exemplo: O conjunto {(x, y, z) ∈ H : x = a, y = b} descreve uma reta hiperbólica. Aequação (x − a)2 + (y − b)2 + z2 = r2, determina um plano de H.

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2.2: Um modelo de Espaço Hiperbólico 19

Exemplo: As aplicações T : H → H, T(p) = p + (a, b, 0), e L : H → H, L(p) =p−p0

‖p−p0‖2 + p0, onde p0 = (a, b, 0), descrevem isometrias de H.

Exemplo: Consideremos as três retas sobre o plano y = 0, r, s e t, dadas,respectivamente, pelas equações (x − 1)2 + y2 = 2, (3 + x)2 + y2 = 18 e x = 0.Consideremos agora o triângulo formado a partir destas retas. Usando as equações,é fácil falar sobre os ângulos deste triângulo. Com contas elementares, podemos obter,usando aproximações, 71o para o ângulo entre as retas r e s, e 45o para os outrosdois ângulos. Note que a soma dos ângulos é menor do que 180o. Usando umarepresentação geométrica de R3 e das retas hiperbólicas, podemos analisar a situaçãoa partir da seguinte figura.

Exercício: Consideremos os pontos (0, 0, 2) e (0, 0, 1) e o grupo G formado por todasas isometrias de H que deixam invariante o plano hiperbólico dado pela equaçãox = 0 e que deixam o ponto (0, 0, 2) fixo. Ou seja, se g ∈ G então g(0, y, z) =(0, g2(y, z), g3(y, z)) e g(0, 0, 2) = (0, 0, 2). Determine uma equação que descreva oconjunto X = {g(0, 0, 1) ∈ H : g ∈ G}. Reescreva o conjunto X usando a noção dedistância. O conjunto X descreve que objeto da Geometria Hiperbólica? (Note queainda não falei sobre a noção de distância hiperbólica, mas é natural esperar, ou pedir,que esta seja invariante pela ação de Iso(H).)

Exercício: Novamente, consideremos os pontos (0, 0, 2) e (0, 0, 1). Mas, agora G denotao grupo de todas as isometrias de H que deixam o ponto (0, 0, 2) fixo. Determine umaequação que descreva o conjunto X = {g(0, 0, 1) ∈ H : g ∈ G}. Reescreva o conjuntoX usando a noção de distância. O conjunto X descreve que objeto da GeometriaHiperbólica?

Projeto: Segundo a apresentação deste texto, ainda não sabemos falar sobre a noçãode distância hiperbólica. Contudo, podemos comparar tamanhos com apoio dasisometrias. O programa de Geometria Dinâmica, GeoGebra, pode ser uma ótimaferramenta para o estudo de transformações dadas pelas isometrias hiperbólicas.Sugiro tentar perceber o modelo do semiespaço de Poincaré como Espeço Hiperbólicocom a ajuda deste programa. Por exemplo, tente obter um segmento isométricoa outro dado, em uma mesma reta e em retas distintas. Procure notar como

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20 Capítulo 2: O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo

a percepção euclidiana é bem diferente da percepção oferecida pelo modelo dageometria hiperbólica. Sugiro também entender a transitividade das transformaçõeshiperbólicas, isto é, a propriedade de que dados p, q ∈ H, existe g ∈ Iso(H) talque q = g(p). Inclusive, alguns exercícios podem ser resolvidos com recursos doGeoGebra.

2.3 Outros sistemas de coordenadas em H

O sistema de coordenadas, i : R3+ → H, i(x) = x, não é tão especial quanto no

caso euclidiano. Em H, este sistema de coordenadas não é cartesiano, apesar de serortogonal. Ou seja, as curvas coordenadas, x = constante e y = constante, formamuma rede de curvas ortogonais entre si, mas estas curvas não são retas hiperbólicas,pelo menos as curvas da família y = constante não são. Vale lembrar que a GeometriaHiperbólica não permite nenhum sistema de coordenadas cartesianas, isto é um dosresultados da teoria.

No entanto, em R3, encontramos outros sistemas de coordenadas ortogonaisimportantes, como as coordenadas cilíndricas e as coordenadas esféricas. Será possívelencontrar algo análogo no espaço hiperbólico? Se sim, estes sistemas de coordenadasdescreveriam mais facilmente superfícies e sólidos de interesse?

Em primeiro lugar, vejamos como seria um sistema de coordenadas polares noplano hiperbólico. Vamos analisar esta questão a partir da noção de feixes de retashiperbólicas, e de semirretas hiperbólicas.

Um sistema de coordenadas polares no plano euclidiano é caracterizado por terduas famílias ortogonais de curvas coordenadas, uma dada por um feixe de semirretascom origem num mesmo ponto e outra formada necessariamente por círculos comcentro na origem do feixe. A reprodução desta ideia para o plano hiperbólico éilustrada nas próximas figuras.

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2.3: Outros sistemas de coordenadas em H 21

Caso 1: (feixe de semirretas hiperbólicas)

Considerando um feixe de semirretas hiperbólicas, a família de curvas ortogonaisnecessariamente é formada por círculos, mas o centro dos círculos não coincide coma origem do feixe de semirretas. O leitor pode provar este fato, mas também podepercebê-lo com recursos da Geometria Dinâmica.

A situação aqui é realmente análoga ao caso euclidiano, pois as curvas ortogonaisao feixe de semirretas são também círculos hiperbólicos.

Projeto: Com os recursos do GeoGebra, realize transformações sobre um segmentoPQ com o grupo das isometrias que deixam P fixo. Verifique que o conjunto dasimagens de Q pela ação deste grupo é um círculo euclidiano contido em H. Os círculoseuclidianos são círculos hiperbólicos.

O interessante da versão hiperbólica das coordenadas polares é que podemos obtermais dois casos.

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22 Capítulo 2: O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo

Caso 2: (feixe de retas hiperbólicas paralelas assintóticas)

Uma curiosidade na relação entre as coordenadas polares e as cartesianas no planoeuclidiano é que a última pode ser vista como uma situação limite da primeira, quandofazemos a origem do feixe de semirretas ir para infinito. As duas figuras a seguirrepresentam dois sistemas de coordenadas quando levamos para o infinito a origemde um feixe de semirretas hiperbólicas.

Apesar do aspecto diferente entre as duas figuras, os dois sistemas de coordenadassão equivalentes, pois um pode ser visto com resultado da transformação por umaisometria do tipo reflexão com relação a um círculo.

Os sistemas de coordenadas ilustrados no caso 2 podem ser descritos como umsistema de coordenadas com uma família de curvas coordenadas formada por umfeixe de retas hiperbólicas assintóticas. Note que as curvas ortogonais ao feixe de retashiperbólicas assintóticas são invariantes pela ação de Iso(H).

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2.3: Outros sistemas de coordenadas em H 23

Caso 3: (feixe de retas hiperbólicas ultraparalelas)

Seguindo a generalização, e utilizando feixes de retas hiperbólicas paralelas agorado tipo ultraparalelas, obtemos mais uma generalização do sistema de coordenadaspolares. A figura a seguir ilustra este caso.

Novamente, as curvas ortogonais ao feixe de retas hiperbólicas ultraparalelas sãoinvariantes pela ação de Iso(H).

A partir das versões hiperbólicas das coordenadas polares, podemos especularsobre versões hiperbólicas para coordenadas esféricas e cilíndricas. Se estasgeneralizações fizerem sentido, temos, então, seis possibilidades, três possibilidadesde coordenadas esféricas e três de coordenadas cilíndricas.

A introdução de sistemas de coordenadas no espaço hiperbólico a partir dos trêscasos apresentados leva a formalização de seis sistemas de coordenadas ortogonaisbastante interessantes, três casos do tipo coordenadas esféricas hiperbólicas e três casos dotipo coordenadas cilíndricas hiperbólicas. Vejamos como seriam estas generalizações.

As coordenadas esféricas do espaço euclidiano são obtidas considerando um feixede semirretas. Neste caso, a família ortogonal é formada por esferas com centro naorigem do feixe. A reprodução desta ideia para o caso 1 das coordenadas polareshiperbólicas gera um sistema de coordenadas a partir da decomposição de H por umafamília formada por um feixe de semirretas hiperbólicas e por uma família de esferaseuclidianas ortogonais ao feixe. Podemos reproduzir esta ideia a partir dos outros doiscasos de coordenadas polares hiperbólicas.

As coordenadas cilíndricas do espaço euclidiano são obtidas a partir de um feixede semiplanos. Neste caso, a família ortogonal é um conjunto de círculos ortogonaisaos semiplanos e com centro no eixo origem do feixe. A reprodução desta ideia parao caso 1 das coordenadas polares hiperbólicas coincide com a imagem euclidiana deum sistema de coordenadas cilíndricas. Novamente podemos reproduzir a ideia decoordenadas cilíndricas para o espaço hiperbólico a partir dos outros dois casos decoordenadas polares hiperbólicas.

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24 Capítulo 2: O estudo da Geometria Hiperbólica por meio de um modelo

Vamos formalizar a ideia de sistema de coordenadas. Toda aplicação bijetiva,ϕ : U ⊂ R3 → H, onde U denota um conjunto aberto de R3, será chamada de umsistema (local) de coordenadas emH. Assim, podemos indicar um sistema de coordenadasesféricas hiperbólicas, por exemplo, por

ϕ : R× (N − {p}) ⊂ R3 → H,

onde N denota uma esfera euclidiana contida em H e tangente ao plano z = 0, ep é o ponto de tangência. Devemos observar que a notação não explicita como aaplicação parametriza o espaço H, mas não deixa dúvidas sobre qual dos três tiposde coordenadas esféricas estamos nos referindo. Neste exemplo, a referência só podeser com relação às coordenadas esféricas que generalizam o 2o caso de coordenadaspolares.

Exercício: Faça desenhos que representem os três casos de coordenadas esféricas e ostrês casos de coordenadas cilíndricas.

Exercício: Represente todos os tipos de coordenadas esféricas, e cilíndricas, por meiode aplicações do tipo ϕ : U ⊂ R3 → H.

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Capítulo 3

Algumas superfícies notáveis do EspaçoHiperbólico

De posse de sistemas de coordenadas análogos aos sistemas de coordenadasesféricas e cilíndricas, vamos criar, por analogia ao caso euclidiano, algumassuperfícies notáveis.

3.1 Algumas superfícies do R3 generalizadas para H

A introdução de novos sistemas de coordenadas em regiões do espaço euclidianocostuma ter por finalidade simplificar a descrição de certos conjuntos ou funções.Vamos aplicar esta ideia no espaço hiperbólico a fim de criar alguns subconjuntosespeciais, a saber, superfícies do tipo de rotação e cone.

O sistema de coordenadas cilíndricas euclidianas é útil para a descrição dassuperfícies conhecidas como superfície de rotação. Vamos generalizar este conceitopara o espaço hiperbólico por analogia. Assim, um subconjunto S ⊂ H será chamadode superfície de rotação hiperbólica se puder ser parametrizado por uma aplicação do tipo

(s, t) ∈ I × N 7→ ϕ(α(s), t),

onde ϕ : V × N ⊂ R3 → H representa um sistema de coordenadas cilíndricashiperbólicas e α : I ⊂ R → V representa uma curva sobre o semiplano, ou plano(dependendo do caso), V. Numa superfície de rotação parametrizada, os paralelossão dados pela imagem das curvas t ∈ N 7→ (s0, t) ∈ I × N 7→ ϕ(α(s0), t) ∈ H e osmeridianos são dados pela imagem das curvas s ∈ I 7→ (s, t0) ∈ I × N 7→ ϕ(α(s), t0) ∈H.

O primeiro caso de coordenadas cilíndricas hiperbólicas leva a uma imagem dasuperfície de rotação hiperbólica semelhante à euclidiana.

Agora, considerando os outros casos de coordenadas cilíndricas hiperbólicas, asimples generalização do conceito euclidiano de superfície de rotação não parece fazermuito sentido para nossa percepção euclidiana. Veja um caso representado na próximafigura.

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26 Capítulo 3: Algumas superfícies notáveis do Espaço Hiperbólico

No caso ilustrado, a superfície de rotaçãohiperbólica possuiria uma parametrização do tipo (s, t) ∈ I × N 7→ ϕ(α(s), t), ondeϕ : V × N ⊂ R3 → H representa um sistema de coordenadas cilíndricas hiperbólicasa partir de um feixe de planos hiperbólicos ultraparalelos. O primeiro fator, N, é umdesses planos hiperbólicos. A imagem da curva α contida em N se estende ao longode curvas ortogonais ao feixe de planos hiperbólicos. Curiosamente, a figura obtidacoincide com a percepção euclidiana de um cone. Será que podemos mesmo chamareste tipo de superfície de superfície de rotação?

Uma propriedade que caracteriza as superfícies de rotação no espaço euclidiano éa invariância destas pelo subgrupo das isometrias do espaço que deixa uma reta fixa.Será que as superfícies de rotação hiperbólicas gozam desta propriedade?

Exercício: Seja S uma superfície de rotação hiperbólica obtida do primeiro caso decoordenadas cilíndricas. Seja G o grupo das isometrias que deixa o eixo do feixe desemiplanos fixo. Entenda, com um bom desenho, que S é invariante por G, isto é,para todo g ∈ G, g(S) ⊂ S. Verifique que, quando o eixo do feixe é uma semirretaeuclidiana, G é dado justamente pelas rotações do espaço euclidiano que deixam taleixo fixo.

Exercício: Entenda que, para os dois outros casos de superfície de rotação hiperbólica,também existe um subgrupo de isometrias de Iso(H) que deixa a superfície invariante.Nestes casos, existe um subconjunto deixado fixo?

O conceito de superfície de rotação foi muito importante para a navegação aoredor de nosso planeta. Numa época em que se imaginava que a forma da Terra eraesférica, em 1569, o cosmógrafo e cartógrafo, Gerhard Kremer, desenvolveu a Projeçãode Mercator, que permitia representar o globo terrestre numa região plana de umamaneira muito especial, onde os meridianos e os paralelos da Terra são representadospor segmentos de reta e os segmentos de reta, de modo geral, representavam as curvasde rumo (ou loxodrômicas), curvas que permitiam um navegante traçar rotas a partirda medição de direções (com bússolas ou pelas estrelas, por exemplo). Contudo,posteriormente, a partir de trabalhos de Newton, descobriu-se que a terra não tinha

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3.1: Algumas superfícies do R3 generalizadas para H 27

uma forma esférica, mas algo do tipo elipsoidal. O interessante é que a projeção deMercator continuou sendo útil para o novo modelo matemático da Terra. O fato é queo conceito de projeção de Mercator serve para qualquer superfície de rotação, isto é,qualquer superfície de rotação possui um mapa plano de navegação (ver [1], página276, exercício 20). Além das superfícies cilíndricas, as superfícies de rotação são assuperfícies navegáveis, no sentido da Projeção de Mercator.

As superfícies de rotação hiperbólicas passaram a ter algumas característicasdiferentes das que percebemos no caso euclidiano. Por exemplo, os paralelos nemsempre são curvas fechadas (isso acontece no segundo caso). Contudo, os três casosde superfície de rotação hiperbólica possuem a propriedade de serem navegáveis, istoé, possuem uma rede formada por meridianos e paralelos e admitem o conceito deloxodrômicas.

Projeto: O leitor interessado certamente encontrará bons problemas dentro do tema,navegação em superfícies hiperbólicas. Explicitar a Projeção de Mercator e as curvasloxodrômicas para as superfícies de rotação hiperbólicas parece ser um bom problemade investigação.

Ainda falaremos sobre outras propriedades das superfícies de rotação hiperbólicas.No espaço euclidiano, as coordenadas esféricas serviram para a definição do

conceito de cone. Um cone é obtido a partir de uma curva da esfera e de um ponto, oumelhor, é a união de um feixe de semirretas a partir de um ponto e passando por umacurva dada na esfera. Esta ideia é facilmente reproduzida no espaço hiperbólico. Paraisso, considere um sistema de coordenadas esféricas hiperbólicas,

ϕ : I × N ⊂ R3 → H.

Um cone hiperbólico é a superfície obtida por uma parametrização do tipo

(s, t) ∈ I × J 7→ ϕ(s, α(t)),

onde α : J ⊂ R → N representa uma curva sobre a superfície N.

No espaço euclidiano, quando a curva está contida numa esfera com centrona origem do feixe de semirretas, o vértice do cone, não precisamos conhecerexplicitamente tal vértice. Neste caso, o cone fica determinado pelo feixe das semirretasque passam pela curva e são ortogonais à esfera que contém a curva. Esta ideia

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28 Capítulo 3: Algumas superfícies notáveis do Espaço Hiperbólico

também se propaga no caso hiperbólico. O interessante é que esta observação nosleva a exemplos sem correspondência com o caso euclidiano.

Quando consideramos um sistema de coordenadas esféricas hiperbólicas do tipo,ϕ : R× (N − {p}) ⊂ R3 → H, onde N denota uma esfera euclidiana contida em H etangente ao plano z = 0, e p é o ponto de tangência, temos um cone sem comparaçãono espaço euclidiano, um cone sem vértices. É o que chamamos de um cone completo. Oterceiro caso de coordenadas esféricas também gera cones completos. Mas, existe umaparticularidade neste caso.

A figura a seguir representa um cone obtido a partir do terceiro caso decoordenadas esféricas. O leitor já viu esta figura. Ela também representou a construçãode um cilindro hiperbólico. Agora a generalização dos dois conceitos ficou confusa. Nocaso euclidiano, as superfícies cilíndricas e os cones têm características bem distintas,tirando o fato de serem todas superfícies regradas.

Podemos chamar uma superfície como a representada na figura acima de conehiperbólico? De cilindro hiperbólico? Num cilindro euclidiano, as seções paralelas a talsuperfície são figuras isométricas entre si. Tal fato se propaga no Espaço Hiperbólico?Como falar em seções paralelas no espaço hiperbólico é mais complicado, será quepodemos falar em seções perpendiculares as retas hiperbólicas que formam o cilindro?Existem outras propriedades sobre superfícies cilíndricas do espaço euclidiano quepoderiam ser preservadas no caso hiperbólico?

Se olharmos uma superfície como a representada na última figura como um conehiperbólico, podemos verificar que as curvas obtidas de secções pela família desuperfícies ortogonais ao feixe de retas hiperbólicas possuem a mesma forma, mastamanhos diferentes, assim como acontece no caso euclidiano?

Projeto: Crie uma representação bidimensional de um cilindro hiperbólico/conehiperbólico, como na figura abaixo, no programa GeoGebra. Use as isometriashiperbólicas para tentar responder as últimas perguntas.

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3.1: Algumas superfícies do R3 generalizadas para H 29

Leitor, precisamos tomar muito cuidado com generalizações, ou analogias,principalmente na hora de dar nomes ou de classificar. No último capítulo vamosterminar esta discussão sobre a classificação das superfícies consideradas aqui.

Projeto: Estudar a possibilidade de estender o conceito de helicóide, que encontramosno Espaço Euclidiano, para o espaço H.

Projeto: Falar de cones, ou mesmo de cilindros, no espaço euclidiano, significa falarde superfícies que não são necessariamente planas, mas que podem se deformadasisometricamente num plano. Por exemplo, um cone de papel, quand cortado, podeser esticado sobre uma mesa e assume uma forma plana. Não podemos fazer isso comqualquer superfície, não podemos planificar uma esfera. E no Espaço Hiperbólico, seráque os cones hiperbólicos podem ser deformados isometricamente sobre um planohiperbólico? Este parece ser um bom problema de investigação.

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30 Capítulo 3: Algumas superfícies notáveis do Espaço Hiperbólico

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Capítulo 4

O Espaço Esférico

De posse de sistemas de coordenadas análogos aos sistemas de coordenadasesféricas e cilíndricas, vamos criar, por analogia ao caso euclidiano, algumassuperfícies notáveis.

4.1 Um modelo de Espaço Esférico

A Geometria Hiperbólica nasceu de uma mudança do sistema axiomático quedefiniu a Geometria Euclidiana. Considerando novas mudanças podemos obter outrasgeometrias. Considerando um novo sistema axiomático que contenha a troca do oquinto postulado de Euclides pela afirmação de que por um ponto fora de uma retanão podem ser traçados retas que não encontram a reta dada, podemos definir a conhecidaGeometria Esférica. Esta é a versão tridimensional da bastante conhecida

geometria da esfera. Este capítulo é um exercício de generalização do que foiestudado neste texto. Vamos novamente adotar um modelo para o estudo. Umagrande diferença na nova abordagem é considerar um modelo definido no espaçoquadridimensional, R4. Agora não teremos mais o apoio de uma boa visualização dosobjetos de estudo, pois estamos falando de objetos de um espaço de dimensão quatro.O modelo de Espaço Esférico que vamos considerar é o dado pelo conjunto, S3, onde:

• S3 ={

p ∈ R4 : ‖p‖ = 1}

;

• os pontos de S3 são os elementos de próprio conjunto;

• as retas de S3 são as interseções de subespaços vetoriais bidimensionais de R4

com S3, os chamados círculos máximos;

• os planos de S3 são as interseções de subespaços vetoriais tridimensionais de R4

com S3.

Novamente, estes objetos ainda não definem completamente um modelo de GeometriaEsférica, são apenas as primeiras referências para se estabelecer o conjunto S3 como ummodelo de Espaço Esférico.

Outros elementos que definimos facilmente são ângulo e as isometrias do espaço.A noção de ângulo entre retas esféricas é a dada pela noção de ângulo entre curvas do

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32 Capítulo 4: O Espaço Esférico

R4. As isometrias de S3 são justamente as isometrias de R4 que deixam S3 invariante,isto é, são os operadores ortogonais de R4.

Exercício: Leitor, note que não dissemos que o conceito de ângulo é análogo aocaso euclidiano, assim como fizemos para o espaço hiperbólico. O que acha, vocêconseguiria reproduzir o conceito de ângulo euclidiano para o espaço esférico? Penseno problema num plano esférico, isto é, na esfera S2 de R3. Uma dica, você já ouviufalar em lúnulas, ou biângulos? A propósito, você sabe o que significa ângulo entrecurvas? Cuidado para não confundir a noção com a de mediada de ângulo!

O espaço esférico também não goza de um sistema de coordenadas cartesianas.Assim, a busca por outras formas de decomposições pode se basear na técnica utilizadano caso hiperbólico.

Exercício: Mostre que não existem retângulos em S3.

O leitor interessado pode encontrar informações interessantes sobre a GeometraEsférica em [5].

4.2 As coordenadas esféricas e cilíndricas em S3

As coordenadas esféricas e cilíndricas de S3 serão definidas como generalização dasrespectivas noções nos espaços euclidiano e hiperbólico a partir da ideia de feixe. Antesde apresentarmos estes sistemas de coordenadas, vamos analisar como seria o sistemade coordenadas polares no plano esférico S2 ⊂ R3. Neste caso, as retas esféricas sãoos círculos máximos e, em particular, não temos a noção de feixe de retas paralelas(não existem retas paralelas num plano esférico). Também não parece ter sentido falarem semirretas. Assim, consideramos só a noção de feixe de retas concorrentes. Dadoum ponto p ∈ S2, um feixe de retas esféricas concorrentes em p é um conjunto de círculosmáximos que passam por p. Uma família de curvas ortogonais a um feixe de retasconcorrentes em p é dada por círculos da esfera obtidos como interseção de S2 complanos euclidianos de R3 ortogonais ao vetor p.

Um sistema de coordenadas em S2 com uma rede induzida sendo formada por umfeixe de retas esféricas concorrentes em e3 = (0, 0, 1) e por uma família de círculosortogonais ao feixe pode ser descrita por

(t, x) ∈ (0, π)× S1 7→ sin(t)x + cos(t)e3 ∈ S

2 − {±e3} ,

onde S1 ={

(x, y, 0) ∈ R3 : x2 + y2 = 1}

. Neste sistema, quando t varia, segmentos deretas do feixe são descritos e, quando s varia, círculos ortogonais ao feixe são descritos.

As coordenadas esféricas no espaço esférico S3 (com origem no ponto e4 =(0, 0, 0, 1), por simplicidade) são generalizadas da seguinte maneira. A aplicação

(t, x) ∈ (0, π)× S2 7→ sin(t)x + cos(t)e4 ∈ S

3 − {±e4} ,

onde S2 ={

(x, y, z, 0) ∈ R4 : x2 + y2 + z2 = 1}

, define um sistema de coordenadas emS3 − {±e4}. As curvas t 7→ sin(t)x + cos(t)e4 estão no plano gerado pelos vetores x

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4.2: As coordenadas esféricas e cilíndricas em S3 33

e e4. Daí, estão na interseção de S3 com um plano, ou seja, estão sob retas esféricasque passam por e4. Portanto, as curvas x = constante parametrizam o feixe das retasesféricas concorrentes em e4. É imediato verificar que as curvas t = constante sãoesferas ortogonais ao feixe.

Assim, pelas características observadas, vemos que o sistema de coordenadasdefinido acima generaliza a noção de coordenadas esféricas para o espaço S3. Noteque as coordenadas esféricas combrem S3 menos dois pontos antípodas.

Exemplo: Seja α : I ⊂ R → S2 uma curva. Fazendo analogia com o caso euclidianotemos que a aplicação

(s, t) ∈ (0, π)× I 7→ sin(s)α(t) + cos(s)e4 ∈ S3 − {±e4}

descreve uma superfície de S3 que, por suas características, pode ser chamada de umcone do espaço esférico, ou cone esférico. Podemos representar esta parametrização demodo mais breve por

(s, t) ∈ (0, π)× I 7→ ϕ(s, α(t)),

onde ϕ é a aplicação que representa um sistema de coordenas esféricas em S3, isto é,é uma aplicação do tipo ϕ : J × N → S3, com J sendo um círculo máximo menosdois pontos antípodas e N sendo uma esfera bidimensional contida em S3. Nestanotação, as curvas coordenadas t ∈ J 7→ ϕ(t, x0) parametrizam retas esféricas e ascurvas coordenadas x ∈ N 7→ ϕ(t0, x) parametrizam esferas esféricas.

Uma propriedade análoga ao caso euclidiano que percebemos imediatamente é queas curvas parametrizadas por t ∈ ϕ(s0, α(t)) possuem a mesma forma, mas tamanhosdiferentes. Uma curiosidade é que os cones esféricos têm dois vértices.

Deixamos como exercício para o leitor desenvolver um sistema de coordenadascilíndricas para o Espaço Esférico S3. O primeiro passo é desecrever um feixe desemiplanos com origem num círculo máximo.

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34 Capítulo 4: O Espaço Esférico

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Capítulo 5

Continuando o estudo

Este capítulo encerra o texto mostrando como o estudo de espaços não-euclidianospoderia continuar, a saber, por meio de recursos do Cálculo Diferencial e Integral.

5.1 A noção de distância nos espaços não-euclidianos

Podemos fazer várias perguntas sobre os objetos apresentados aqui e,consequentemente, estender o estudo. Na verdade, já deixamos perguntas. Contudo,é importante desenvolver ferramentas adequadas para a abordagem de novosproblemas. Uma técnica que funcionou muito bem para a Geometria Euclidiana foi oCálculo Diferencial e Integral. Será que podemos fazer uso dos conceitos desta área nosespaços hiperbólicos e esféricos? Certamente podemos aplicar estes conhecimentosno espaço esférico. Por exemplo, podemos falar em distância entre dois pontosexplicitamente e facilmente. Se α : [0, 1] → S3 parametriza o menor segmento dereta que liga dois pontos p e q, então a distância entre eles é dada por

∫ 10 ‖α′(t)‖ dt?

A extensão do Cálculo Diferencial e Integral para o espaço hiperbólico não é tãosimples. Para esse caso, é preciso rever o conceito de espaço vetorial munido de umproduto interno e generalizar para a ideia de métrica Riemanniana. Na prática, o queprecisamos fazer é definir uma noção de produto interno para o espaço tangente a H

em cada um de seus pontos. Lembramos que o espaço tangente a H em p ∈ H é dadopor

TpH = {(p, v) ∈ H×R3 : v = α′(0), com α : (−ǫ, ǫ) → H

curva diferenciável tal que α(0) = p}

Normalmente, identificamos TpH com R3 e escrevemos simplesmente v ∈ TpH, emvez de (p, v) ∈ TpH.

Para cada ponto p = (x, y, z) ∈ H, definimos o produto interno em TpH, 〈, 〉p, por

〈u, v〉p = 〈u, v〉 , para todo u, v ∈ TpH,

onde 〈, 〉 representa o produto interno canônico de R3. Assim, o produto interno 〈, 〉p

varia de acordo com o ponto p. A aplicação g : H×R3 ×R3 → R, g(p, u, v) = 〈u, v〉p

é chamada de métrica riemanniana hiperbólica de H. Com esta métrica podemos falar

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36 Capítulo 5: Continuando o estudo

em comprimento na Geometria Hiperbólica. Dada uma curva α : [a, b] → H, ocomprimento de α em H é definido por

l(α) =∫ b

a

∥α′(t)∥

α(t) dt.

Exemplo: Seja α : [a, 1] → H dada por α(t) = (0, 0, t), onde 0 < a < 1. Então,

l(α) =∫ 1

a‖(0, 0, 1)‖α(t) dt =

∫ 1

a

1t

dt = − ln(a).

Note que o comprimento de α aumenta indefinidamente, à medida que a se aproximade 0. Vista como um curva do espaço euclidiano, o comprimento de α é dado porl(α) = 1 − a, valor que não ultrapassa 1.

Exercício: Mostre que para toda isometria ϕ de H e para todo p ∈ H, vale que:⟨

ϕ′(p)u, ϕ′(p)v⟩

ϕ(p) = 〈u, v〉p .

Exercício: Mostre que se α é uma curva então α e ϕ ◦ α têm o mesmo comprimento,

qualquer que seja a isometria ϕ de H. Ou seja, o conceito de comprimento de curva éum invariante da Geometria Hiperbólica.

Exercício: Descreva como reparametrizar uma curva de H pelo comprimento de arco.Parametrize uma reta de H pelo comprimento de arco.

Projeto: Como chegar à expressão da métrica riemanniana hiperbólica? Existem algunscaminhos para justificar a fórmula apresentada e discutir estes caminhos para umaabordagem elementar pode ser assunto para um bom estudo. Sugestão: um doscaminhos é trabalhar com as isometrias hiperbólicas. Para a métrica ser um objetoda Geometria Hiperbólica, é preciso que seja um invariante pela ação de Iso(H).

De posse do conceito de métrica riemanniana hiperbólica, podemos definir poranalogia ao caso euclidiano, além da noção de comprimento, noções como de áreae volume, e até outras como a de gradiente ou laplaciano de uma função, por exemplo.

Direcionando para o nosso tema central, podemos agora perguntar se relaçõesmétricas do Espaço Euclidiano conhecidas para as superfícies estudadas aqui segeneralizam para os Espaços Hiperbólicos e Esféricos.

5.2 O Cálculo Diferencial para o estudo das formas em H

É interessante poder falar em aceleração, curvatura de uma superfície e, demodo mais geral, de derivada de um campo com relação a outro campo. Ouseja, é interessante poder falar numa noção de derivada compatível com a estruturageométrica de H.

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5.2: O Cálculo Diferencial para o estudo das formas em H 37

Vamos apresentar para o leitor a noção de derivada para campo de vetores que éútil para o estudo geométrico do espaço hiperbólico. De modo geral, precisamos sercapazes de avaliar a variação de um determinado campo de vetores, Y, com respeitoa outro campo de vetores, X. No espaço euclidiano, esta noção é obtida pelo cálculoda derivada, dY(p)X(p), quando Y é visto como uma aplicação de R3 em R3. Nonosso contexto, a notação utilizada para este conceito de derivação entre campos édada por ∇XY para indicar a derivada covariante de Y com respeito a X. Lembramosque um campo diferenciável de vetores tangentes é uma aplicação X : H → TH com ascoordenadas sendo funções diferenciáveis. O conjunto dos campos diferenciáveis devetores tangentes é denotado por X (H).

Para definir a derivada covariante em H, é desejável que as seguintes propriedadessejam satisfeitas.

Propriedades: Dados X, Y, X ∈ X (H) e dada uma função diferenciável f ,

• ∇X + YZ = ∇XZ +∇YZ

• ∇ f XY = f∇XY

• ∇X(Y + Z) = ∇XY +∇XZ

• ∇X( f Y) = X( f )Y + f∇XY

• X(〈Y, Z〉) = 〈∇XY, z〉+ 〈Y,∇XZ〉

• ∇ ∂∂xi

∂∂xj

= ∇ ∂∂xj

∂∂xi

A notação X( f ) representa a derivada de f num ponto dado na direção de Xtambém no ponto dado.

A partir destas propriedades, determinamos a expressão de ∇XY:

∇XY(p) = (X(y1)−1z(x1y3 + x3y1) , X(y2)−

1z(x2y3 + x3y2),

X(y3) +1z(x1y1 + x2y2 − x3y3))

Exercício: Dada uma curva α : I → H a derivada covariante ∇α′(t)α′(t) deve

representar a aceleração da curva no Espaço Hiperbólico. Verifique a aceleraçãode α(t) = (0, 0, t) é ∇α′(t)α

′(t) = (0, 0,− 1t ). Como α parametriza uma reta,

deveríamos esperar que o resultado fosse 0, aceleeração nula. Isso aconteceu por que aparametrização não estava pelo comprimento de arco. Veja que a curva β(t) = (0, 0, et)tem aceleração nula. Verifique também que β está parametrizada pelo comprimentode arco.

Exercício: Prove que se ϕ : H → H é uma isometria então dϕ(∇XY) = ∇dϕXdϕY.

Com a derivada covariante, podemos estudar a forma geométrica das superfíciesde H. Para isso, consideramos um campo N de vetores unitários e ortogonais a uma

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38 Capítulo 5: Continuando o estudo

superficie dada. O quanto uma superfície S deixa de ser um plano hiperbólico pode sermedido pela aplicação ∇N : TS → TS. Podemos verificar, por exemplo, que quandoS é um plano hiperbólico, ∇N : TS → TS é a aplicação nula.

Com a derivada covariante podemos voltar à questão das generalizações dascoordenadas esféricas em H, e em S3 também. Pode-se verificar que para as superfíciesortogonais aos feixes de semirretas e retas, nos três casos, a aplicação ∇N : TS → TSé um múltiplo da identidade. Isto significa que as superfícies se curvam da mesmamaneira em todas as direções. No espaço euclidiano, esta propriedade caracterizaas esferas euclidianas. Mais uma propriedade análoga propagada para o EspaçoHiperbólico.

Projeto: Estude as formas das superfícies apresentadas aqui no contexto da GeometriaHiperbólica.

5.3 Produto warped

Um dos objetivos básicos deste texto é iniciar o leitor na área de GeometriaDiferencial. ntão, vamos terminar com algumas orientações rápidas sobre como oestudo poderia continuar.

Apresentamos neste texto sistemas de coordenadas que permitiram descreversuperfícies de rotação e cones. Contudo, não nos utilizamos destes sistemas decoordenadas para estudar melhor estas superfícies. A razão é que não temosferramentas matemáticas suficientes para um estudo assim. Pelo menos, não asencontramos neste texto.

Bom, com os conceitos apresentados neste capítulo já podemos pensar no acesso aessas ferramentas. Com relação a conhecimentos sobre comprimento, área e volume,o leitor pode aplicar conhecimentos sobre o Cálculo Integral em R3, em particular afórmula de mudança de variável para integrais múltiplas.

Vamos falar um pouco mais sobre uma forma de produto que é bastante estudadoem Geometria Diferencial e muito útil em Física Matemática, a saber a noção deproduto warped. Principalmente, desenvolvemos aqui conceitos a partir da noção dedecomposição do espaço como um produto de dois fatores, mas um produto comparticularidades. Quando escrevemos o sistema de coordenadas ϕ : V × N → H(S3),em todos os casos, esférico ou cilíndrico, no Espaço Hiperbólico ou Esférico, temosas aplicações x ∈ V 7→ ϕ(x, y0) representando cópias de V, isto é, imagens de V poruma isometria do espaço ambiente. Por outro lado, as aplicações y ∈ N 7→ ϕ(x0, y)representam objetos diferentes N, mas são objetos com mesma forma, só tamanhodiferente. Ou melhor, temos imagens de N por uma homotetia. O produto warpedé a definição de uma métrica riemanniana para um produto que leve em consideraçãoestas características.

Suponhamos que as métricas riemannianas definidas, respectivamente, para V epara N sejam conhecidas, digamos, 〈, 〉V e 〈, 〉N. Então, é possível escolher uma funçãodiferenciável, ρ : V → (0,+∞) tal que a métrica riemanniana do ambiente, esférico ouhiperbólico, possa ser expressa por

〈, 〉 = 〈, 〉V + ρ2 〈, 〉N .

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5.3: Produto warped 39

A função ρ multiplicando a métrica riemanniana de N indica a variação do segundofator como objeto homotético a N. Por exemplo, no caso euclidiano mesmo, nascoordenadas esféricas, temos as cópias do segundo fator como esferas de raiosdiferentes, todas figuras homotéticas entre si.

Para se aprofundar neste tema, recomendo ao leitor ler o livro de O’Neill ([11]). Oartigo Dajczer e Tojeiro ([3]) fala sobre o assunto no contexto de imersões isométrica,conceito que generaliza a noção de superfícies, e é uma boa referência para se encontraras definições de cone, cilíndros e superfícies de rotação. Aliás, outro ótimo artigo quese aprofunda no conceito de produto warped é o de Nölker ([10]).

Colocamos em discussão neste texto o problema de conceituar algumas superfíciesem Espaços não-Euclidianos por generalização. O propósito maior foi mesmoapresentar estes objetos. O fato é que construções deste tipo têm se mostradouma importante fonte de exemplos para a compreensão de outros conceitos, comoo de superfície mínima. Alguns exemplos de pesquisas que se utilizaram dasgeneralizações consideradas aqui são [6], [9], [8] [2], [7], [4], [12].

Se o leitor quiser ver aplicações da noção de produto warped minha sugestão é lersobre o conceito de espaço-tempo de Robert-Walker também no livro de O’Neill ([11]),assunto relacionado ao tema Relatividade Geral.

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40 Capítulo 5: Continuando o estudo

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Referências Bibliográficas

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[2] CARMO, M. do, DAJCZER, M.. Rotation hypersurfaces in spaces of constantcurvature. Trans. Amer. Math. Soc., 277 (2) (1983), 685-709.

[3] DAJCZER, M., TOJEIRO, R., Isometric immersions in codimension two ofwarped products into space forms. Illinois J. Math. 48 (3) (2004), 711-746.

[4] EJIRI, N.. A generalization of minimal cones. Trans. Am. Math. Soc. 276 (1983),347-360.

[5] GREENBERG, M. J.. Euclidean and Non-Euclidean Geometry, W.H.Freeman,New York, 1994.

[6] HSIANG, W. Y.. Generalized rotational hypersurfaces of constant meancurvature in the Euclidean Spaces. I. J. Diff. Geom. 17 (1982), 337-356.

[7] MORI, H.. Minimal Surfaces of Revolution in H3 and Their Global Stability,Indiana Univ. Math. J., 30 (5) (1981), 787-794.

[8] MOUTINHO, I.. G-variedades riemannianas como hipersuperfícies de formasespaciais. Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos.

[9] MOUTINHO, I., TOJEIRO, R.. Polaractions on compact Euclidean hypersurfaces. Annals Global An. Geom. 33 (4)(2008), 323-336.

[10] NÖLKER, S., Isometric immersions of warped products. Diff. Geom. App. 6 (1996),1-30.

[11] O´NEILL, B.. Semi-Riemannian Geometry, Academic Press, 1983.

[12] TAM, L.F., ZHOU, D.. Stability properties for the higher dimensional catenoidin Rn+1, Proceedings of the American Mathematical Society 137.10 (2009): 3451-3461.

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