Alguns dedos de Prosa: conversando sobre Psicologia ... · ética e estética, de cultivar padrões...

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21/8/2011 | Maristela Barenco Corrêa de Mello | (24) 2237-5801 Alguns dedos de Prosa: conversando sobre Psicologia, Educação Ambiental, Cultura da Paz e Espiritualidade Este Informativo é uma publicação semanal dedicada a Educadores, cujos conteúdos são de inteira responsabilidade da autora. Seu objetivo é formativo: oferecer subsídios e reflexões em Psicologia, Educação Ambiental, Cultura da Paz e Espiritualidade, e renovar o propósito rumo a uma educação transformadora. Uma Educação Ambiental como desafio de resgatar as dimensões e os momentos essenciais da existência No último informativo, de no. 5, iniciamos dizendo que apesar de quase um século que nos separa dos primórdios de uma virada paradigmática em ciência, com o advento da física quântica, continuamos pensando o mundo a partir dos postulados de uma física clássica. A física de Newton e a filosofia de Descartes configuraram uma ciência moderna com contornos mecanicistas e dualistas. Entre os nossos muitos dualismos, há um, especial, que gera impactos em todos os níveis da vida: é a dicotomia sujeito-objeto. O sujeito é concebido como instância isolada da vida, com primazia em relação a todos os seres, em função de sua racionalidade. A isto se chamou antropocentrismo: o ser humano concebe-se como centro da criação, ápice, em torno do qual a vida e os seres se justificam. Tal dualismo não apenas corroborou para o ser humano se desidentificar com o meio ambiente circundante, que tem contornos de objeto, como foi responsável pela consolidação de uma forma de conhecimento, racionalista e científica, cujo método coloca em questão os objetos (considerados científicos), mas nunca o sujeito e seus postulados. É nesta perspectiva que se fala em crise ambiental, como se a crise fosse do ambiente e não consequência de um modelo humano de desenvolvimento. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos fala das ausências que a modernidade ocidental imputou sobre todas as formas de vida diferentes de sua versão de mundo. Nesta perspectiva, gostaria, nesta oportunidade, de postular que há duas ausências, cujos impactos foram e são desastrosos a todas as moradas (corpo, casa e planeta). A primeira é bem explicada por Félix Guattari, filósofo, psicanalista e militante Boletim No. 6, Ano I

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21/8/2011 | Maristela Barenco Corrêa de Mello | (24) 2237-5801

Alguns dedos de Prosa:

conversando sobre Psicologia,

Educação Ambiental, Cultura

da Paz e Espiritualidade

Este Informativo é uma

publicação semanal dedicada a

Educadores, cujos conteúdos

são de inteira responsabilidade

da autora. Seu objetivo é

formativo: oferecer subsídios e

reflexões em Psicologia,

Educação Ambiental, Cultura

da Paz e Espiritualidade, e

renovar o propósito rumo a

uma educação transformadora.

Uma Educação Ambiental como desafio de

resgatar as dimensões e os momentos essenciais da

existência

No último informativo, de no. 5, iniciamos dizendo que apesar de quase um

século que nos separa dos primórdios de uma virada paradigmática em ciência, com o

advento da física quântica, continuamos pensando o mundo a partir dos postulados de

uma física clássica. A física de Newton e a filosofia de Descartes configuraram uma

ciência moderna com contornos mecanicistas e dualistas.

Entre os nossos muitos dualismos, há um, especial, que gera impactos em

todos os níveis da vida: é a dicotomia sujeito-objeto. O sujeito é concebido como

instância isolada da vida, com primazia em relação a todos os seres, em função de sua

racionalidade. A isto se chamou antropocentrismo: o ser humano concebe-se como

centro da criação, ápice, em torno do qual a vida e os seres se justificam. Tal dualismo

não apenas corroborou para o ser humano se desidentificar com o meio ambiente

circundante, que tem contornos de objeto, como foi responsável pela consolidação de

uma forma de conhecimento, racionalista e científica, cujo método coloca em questão

os objetos (considerados científicos), mas nunca o sujeito e seus postulados. É nesta

perspectiva que se fala em crise ambiental, como se a crise fosse do ambiente e não

consequência de um modelo humano de desenvolvimento.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos fala das ausências que a

modernidade ocidental imputou sobre todas as formas de vida diferentes de sua versão

de mundo. Nesta perspectiva, gostaria, nesta oportunidade, de postular que há duas

ausências, cujos impactos foram e são desastrosos a todas as moradas (corpo, casa e

planeta). A primeira é bem explicada por Félix Guattari, filósofo, psicanalista e militante

Boletim No. 6, Ano I

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silêncio, o cosmos, a mística, o tempo. Tal

apagamento ganhou força em uma

sociedade onde só se valoriza a dimensão de

objetividade e que se rejeita tudo o que diga

respeito ao sujeito, à dimensão de

interioridade e ao nível das emoções e

sentimentos. Ainda hoje, ciências como a

Psicologia e a Filosofia são olhadas com

desconfiança por algumas áreas do

conhecimento, e grande parte da literatura

que trata desse sujeito é rotulada, de forma

pejorativa, como “autoajuda”. Ajudamos a

propagar a ideologia de que o que sentimos,

nossas tristezas, frustrações e dores, devem

ser dimensões evitadas, porque negativas.

Acontece que Guattari, ao nos alertar sobre

francês, que pensou com profundidade, crítica

e ousadia os processos relativos ao sujeito.

Guattari evidenciou que o capitalismo moderno

não tem a ver apenas com a produção de um

modelo de mundo ou de economia, mas,

sobretudo, com a produção de subjetividades.

Nestes seus estudos memoráveis e desafiantes,

Guattari postulou um enunciado que considero

fundamental a uma Educação Ambiental que se

aspire crítica, política e emancipatória. Em sua

obra com Suely Rolnik, Cartografias do Desejo

(Vozes, 1986, p. 43), Guattari afirma que uma

das estratégias do capital foi criar processos de

subjetivação que recalcaram as “dimensões

essenciais da existência”, como a morte, a dor,

o fracasso, a solidão, o medo, a sombra, o

Sugestões de Leituras

LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus

símbolos. Uma Antropologia Essencial. 7ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, 133 p.

Jean-Yves é filósofo, psicólogo e sacerdote da tradição hesicasta, da Igreja Ortodoxa. Hesychia, que significa paz, quietude e silêncio, faz parte de uma tradição espiritual que vem dos primeiros séculos da era cristã, do Egito, que deu impulso aos chamados “terapeutas de Alexandria”, “terapeutas do deserto”. Por trás do silêncio, há a prática de um modo de invocação do nome do Senhor.

Neste livro, o autor propõe, com maestria ímpar, uma aproximação psicológica, física e simbólica do corpo e de cada parte dele, indo buscar elementos e interpretações nas tradições passadas. Conta-nos histórias e mitos sobre nosso corpo e suas inter-relações. O que marca a sua abordagem, além de uma transdisciplinaridade que rompe com o olhar de qualquer especialista, é a percepção holística deste corpo, que é também alma, psiqué. Um livro fantástico para quem almeja o autoconhecimento e conhecimento.

Voltar às moradas significa uma postura ética e estética, de cultivar padrões e valores subjetivos

elaborados com contornos próprios, autônomos, alternativos, singulares, a partir de dentro...

este processo, chama-nos a atenção para o fato de que, quando negamos as

dimensões essenciais de nossa existência, diminuímos a nossa potência de agir, a

nossa força de viver, a nossa disposição de atuar no mundo e transformá-lo, tornando-

nos mais frágeis, tornando-nos estranhos aos processos da vida . Queremos amar, mas

não queremos correr o risco de perder aqueles a quem amamos. Queremos viver, mas

não queremos adoecer, nem sentir dor, nem envelhecer e muito menos morrer.

Rejeitamos profundamente algumas dimensões da existência. Esta é a nossa primeira

grande ausência.

A segunda ausência caminha na mesma linha da primeira, do

recalque das dimensões essenciais da existência. Tem a ver com o recalque dos

momentos essenciais da existência, aqueles que se dão nas relações miúdas do

cotidiano: preparar prazerosamente um almoço em casa com uma receita da infância;

sentar com as crianças para brincar sem olhar ao relógio; contar histórias ao redor do

fogo, com os amigos, numa noite estrelada; plantar flores no jardim ou em vasos para

iluminar nossa casa e nossa vida; fazer um piquenique ao ar livre... são situações que,

por não fazerem parte de nossos papéis sociais, profissionais e por não se adequarem

ao tempo que nos é imposto, tornaram-se desprestigiadas em nosso modelo de

sociedade e não “cabem” mais no mundo em que escolhemos viver. Optamos por

viver em moradas de fachada, moradas-vitrine, assépticas, mecânicas, afastadas dos

momentos mágicos da existência, exatamente aqueles aos quais nos emocionamos ao

contatar. Na melodia da vida, escolhemos não levar em conta a sua partitura:

enfatizamos os tempos de outra melodia e acabamos esquecendo a canção que nos

move. Talvez por estas duas ausências, a das dimensões essenciais da existência e a

dos momentos essenciais da existência, vivamos mergulhados em memórias

nostálgicas de um passado ou ansiosos por um futuro mágico.

Uma Educação Ambiental comprometida em religar as moradas corpo, casa

e planeta, não deveria se concentrar em lições e atividades que envolvam tão somente

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Sugestões de Atividades:

Iniciando um trabalho de

sensibilização corporal.

Desenvolver vivências de

sensibilização corporal é um trabalho

importantíssimo para qualquer área

do conhecimento, sobretudo tendo

em vista nossa tendência racional e

mental, onde o corpo, no

aprendizado, não participa como

sujeito. Começar pelos pés é de

grande importância. Segundo Jean-

Yves, somos todos mancos e temos

feridas existenciais que precisam ser

curadas ao nível dos pés. Os pés são

nossas raízes, que auscultam a vida e

a terra, e manifestam o nosso desejo

e força de permanecermos de pé na

vida, com disposição para atravessá-

la. Uma atividade simples, mas

potente, é ficarmos descalços, para

restabelecermos o contato direto com

a terra, que perdemos com a

Modernidade. Em silêncio e sempre

fazendo contato com a respiração, um

trabalho de sensibilização pode ser

feito sugerindo que as pessoas

caminhem na ponta dos pés, só com

os calcanhares, pulando, bem

devagar, depressa, dançando,

massageando a sola dos pés com uma

bola. Tal atividade, que sugere

concentração, precisa ser feita em

silêncio, ao som de uma música, ou

em um jardim. Ao final, partilham-se

as impressões e reforça-se o sentido

de resgatar as raízes e a reorientação

do desejo desta morada que somos.

ações “objetivas” em relação ao meio ambiente, e que não possibilitem ao ser

humano retomar contato com sua vida, com seus sentimentos, com seu cotidiano,

com sua morada primordial, a partir de onde as outras moradas se configuram.

Guattari falava destas dimensões como uma realidade política e não clínica-

psicológica.

Voltar às moradas não significa uma tendência isolacionista ou narcisista,

de vivermos encerrados sobre nós mesmos. Voltar às moradas significa uma postura

ética e estética, de cultivar padrões e valores subjetivos elaborados com contornos

próprios, autônomos, alternativos, harmoniosos, singulares, a partir de dentro, de si

mesmo, e não padrões introjetados e ditados de fora de nossas moradas.

Nossas moradas estão entrando em colapso. Depressão, síndrome do

pânico, ansiedade extrema, rupturas familiares, violência estrutural, destruição da

natureza... são pequenos exemplos dos colapsos que experimentamos por vivermos

demasiadamente a partir de padrões da existência que não são afins à vida e nem

nos pertencem. Mas podemos interpretar estes colapsos e implosões com

pessimismo ou com otimismo. Para mim, são formas de resistência, são implosões

libertadoras e emancipatórias, que reivindicam novas possibilidades de mundo e

novos modos de existência.

Uma Educação Ambiental crítica e política é aquela que nos encoraja a

voltar às moradas, para que possamos cultivar modos singulares de viver, para que

possamos multiplicar versões, crenças, premissas de mundo, que não sejam apenas

hegemônicas, no sentido de reafirmar a direção desta modernidade, mas que

possam propor modos de vida diversos, singulares, criativos, estéticos, que, como diz

Ana Godoy, rompam com uma ecologia comprometida com a produção de um

padrão de existência, mas, antes, que reafirmem o potencial da vida na proposição

de muitas ecologias. Se o ser humano destrói a natureza é porque, antes, afastou-se

da própria vida. O retorno à natureza passa pelo retorno às dimensões de sua

existência.

Enfim, como educadores ambientais e sociais, precisamos nos fazer,

cotidiana e coletivamente, algumas perguntas: Como os discursos socioambientais

têm situado a questão de uma cartografia do desejo e do inconsciente? Nas formas

de organização política e pedagógica, que espaço e que tempo têm sido dados às

análises e reflexões sobre as relações cotidianas? Como ampliar esta dimensão para

que ela possa nos proporcionar a apropriação de “dimensões essenciais da

existência, como a morte, a dor, a solidão, o silêncio, a relação com o cosmos, com o

tempo” – dimensões estas que nos possibilitam ampliar nossa singularidade, romper

com os modelos dominantes e expandir nossa potência de vida? Como a Educação

Ambiental tem buscado superar o maniqueísmo e o dualismo, no sentido de

evidenciar um ser humano complexo, que convive com uma multiplicidade de modos

de referência e que, por isso, não pode se sentir separado dos processos de

transformação a que postula?

Não nos cabe mais falar das moradas como se fossem instâncias isoladas,

materiais, estáticas, inanimadas, sem relação. Num novo paradigma, sistêmico,

relacional, complexo e energético, as nossas moradas corpo e casa, são

fundamentais: à medida que as curamos e as harmonizamos, irradiamos esta energia

para todas as moradas do universo. Importante é começar!

VOCÊ SABIA?

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Experiências que vale a pena compartilhar

Neste Informativo gostaria de apresentar, aos que não os

conhecem, dois autores, contemporâneos, que trabalham - cada

um ao seu modo – as moradas corpo, casa e planeta, de forma

única, com excelência, na perspectiva holística e complexa e são,

por isso, ao meu ver, referências obrigatórias em Educação

Ambiental.

O primeiro é o arquiteto e escritor Carlos Solano, de Belo Horizonte, que a

partir de 2001, tornou-se colunista da Revista Bons Fluidos, da Editora Abril,

assinando uma seção chamada Casa Natural. Solano, estudioso da cultura

oriental e especialista em Feng Shui (a arte chinesa de harmonização das

moradas), também é especialista na cultura popular, dos conhecimentos do Vale

do Jequitinhonha, além de conhecer bem a lógica das Ecovilas (já que morou em

Findhorn, na Escócia). Trabalha as terapias da casa, além de ser ambientalista e

autor da Campanha “Vamos plantar 1 milhão de árvores para salvar o mundo”.

Em seus cursos, imperdíveis, trabalha com maestria, a integração dos saberes do

corpo, da casa e do planeta, a partir de várias tradições culturais e espirituais.

Colecionei todas as suas Revistas, aprendi e aprendo muito com ele. Para quem

quiser conhecê-lo melhor, fazer os seus cursos (estarei no dia 07/09 em seu

Seminário anual de Feng Shui, em Tiradentes (MG)), vá ao seu site:

www.carlosolano.com.br.

O segundo é o gerontólogo e escritor Pedro Paulo Monteiro, de Petrópolis, que

trabalha de forma única as terapias do corpo (aqui entendido de forma holística),

também reunindo saberes científicos, da tradição popular e espiritual. Mas Pedro

se destaca pela forma única e pioneira de compreender o envelhecimento, mas

também conjugar este conhecimento com técnicas terapêuticas aos velhos, como

ele carinhosamente os chama. Pedro trabalha com uma abordagem sistêmica e

complexa, buscando superar todos os estereótipos que se constituíram em

relação aos processos de envelhecimento, ao trabalho com os idosos e o trabalho

com o próprio corpo. Seu trabalho terapêutico envolve técnica, espiritualidade,

criatividade, configurando uma arte terapêutica. Pedro escreveu já diversos

livros, que são encontrados em seu site. Destaco, com carinho, o livro “Quem

somos nós? O enigma do corpo”, cuja abordagem é um convite a adentrar esta

morada, que é um enigma e tem seus mistérios, mas que pode ser desvelada.

Pedro foi o meu professor de neurofisiologia, na faculdade de Psicologia, ocasião

em que tive o privilégio de me tornar sua monitora. Não só aprendi e aprendo

com o Pedro, como me tornei, com ele, uma pessoa melhor. Seu site é

www.pedropaulomonteiro.com.

Agradeço, de coração e com reverência, a estes dois Mestres, que tornaram

minhas moradas mais esclarecidas, inspiradas e sagradas!

SEÇÃO COM INDICAÇÃO DE FILMES

O querido amigo Reinaldo Lima, companheiro da Fernanda, empreendedores de uma

Escola Construtivista “Canto de Criar”, em Areal (RJ), que é um pedagogo-filósofo

fantástico, e também cinéfilo, a partir do próximo Informativo, estará elaborando uma

seção sobre a indicação de filmes, com sua breve resenha, para complementar o

trabalho da indicação de livros. Ele nos indicará um filme por Informativo, o que será

muito enriquecedor. Obrigada, Reinaldo, por ter aceito ao convite-desafio, e seja bem-

vindo!

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Graduada em Teologia (ITF

Petrópolis), Psicologia (Universidade

Católica de Petrópolis), Mestre em

Educação (UERJ) e Doutora em Meio

Ambiente (UERJ). Formada em

Terapias Holísticas (ASBAMTHO).

Educadora social há 25 anos.

Fotografias:

1) Jardim numa pequena varanda

2) Minha filha Clara, meditando.

3) Trabalho com os pés em um

urso de Educação Ambiental

4) Cata-vento na minha varanda,

entre a árvore da felicidade.

Maristela Barenco

Corrêa de Mello

(24) 2237-5801 [email protected]