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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988 Ana Cristina Soares de Alencar Fortaleza – CE Agosto – 2009

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO

DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988

Ana Cristina Soares de Alencar

Fortaleza – CE Agosto – 2009

ANA CRISTINA SOARES DE ALENCAR

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO

DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor Paulo Antônio Menezes de Albuquerque.

Fortaleza – Ceará 2009

______________________________________________________________________ A368a Alencar, Ana Cristina Soares de. Alienação fiduciária em garantia aplicada às relações de consumo : análise da recepção do decreto-lei nº 911/69 na ordem constitucional de 1988 / Ana Cristina Soares de Alencar. - 2009. 143 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009. “Orientação: Prof. Dr. Paulo Antônio Menezes de Albuquerque.” 1.Alienação fiduciária. 2. Código de defesa do consumidor. 3. Veículos automotores. I. Título. CDU 347.468 ______________________________________________________________________

ANA CRISTINA SOARES DE ALENCAR

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA APLICADA ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO

DECRETO-LEI N° 911/69 NA ORDEM CONSTITUCIONAL DE 1988

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Prof. Dr. Paulo Antônio Albuquerque de Menezes UNIFOR

_____________________________________________

Prof. Dr. Luciano Lima Rodrigues

UNIFOR

_____________________________________________

Prof. Dr. Juvêncio Vasconcelos

UFC

Dissertação aprovada em:

AGRADECIMENTOS

A Deus, por permitir a realização de mais um sonho.

À minha verdadeira família, pela dedicação, amor, incentivo e por acreditar em mim.

À Defensoria Pública, instituição a que pertenço, pela rica experiência de vida que

me oferece diariamente e por ter proporcionado a ampliação de meus conhecimentos

através do curso de mestrado.

Ao meu orientador, professor Paulo Antônio Menezes de Albuquerque, pela

orientação científica dada com maestria, dedicação, paciência e partilha de sua imensa

sabedoria.

Ao corpo docente do curso de mestrado da UNIFOR, pelos ensinamentos

proporcionados.

À professora Núbia Garcia pelo esmero e presteza na correção metodológica.

Aos que integram a secretaria do curso de mestrado, pela valiosa colaboração.

À banca examinadora, por aceitar o convite de pronto.

RESUMO

No vasto campo do direito privado, inúmeros contratos são diariamente celebrados no campo das relações de consumo, particularmente envolvendo a alienação fiduciária em garantia, que ocupa posição de relevo, vez que, criada para impulsionar o consumo, propicia a aquisição de bens mediante pagamento a prestação. No Brasil é usual a aquisição de veículos automotores por essa modalidade, que traz uma série de problemas de compatibilização com os princípios da ordem constitucional democrática, particularmente no que se refere à possibilidade do devedor ter o bem financiado rapidamente apreendido em razão da concessão de medida liminar em ação de busca e apreensão, independente e autônoma. Quanto mais há o fato de que o quadro jurídico inicial traçado pelo Decreto-lei n° 911/69, que regulamenta a alienação fiduciária em garantia, deixar claro que somente pode ser manejada por credor que integrante o Sistema Financeiro Nacional, permitida ao devedor a purgação da mora em caráter excepcional, com reserva de possibilidade de contestação judicial limitada à demonstração do cumprimento das obrigações constantes do contrato. Cabe, portanto, refletir acerca da constitucionalidade do Decreto-lei 911/69 não somente frente à Constituição de 1969, mas também em relação a sua recepção pela Carta Republicana de 1988, mesmo com as alterações legislativas posteriores. Neste particular a Lei n° 10.931/2004 traça novos desafios ao operador do direito, na medida em que permite a consolidação da propriedade e posse plena do bem fiduciariamente alienado nas mãos do credor. A análise da lei e do decreto mencionados envolve aspectos estruturais do Estado Democrático de Direito, envolvendo a relação deste com o que se convencionou chamar de “constitucionalização do direito privado” no que se refere ao direito à propriedade, ao princípio da igualdade e ao exame das garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Palavras-chave: Alienação fiduciária em garantia. Decreto-lei n° 911/69. Lei n° 10.931/2004. Código de Defesa do Consumidor. Ampla defesa.

ABSTRACT

In the vast field of private law, countless consumer contracts involving chattel mortgage are celebrated everyday. This modality is gaining a more and more important position, as it was created to stimulate consumption and it fosters the purchase of goods through the payment in installments. In Brazil, it is common to purchase cars through this system, which causes a number of compatibility problems with regards to democratic and constitutional principles, in particular those related to the risks debtors run, as they can have their purchased goods quickly seized by an independent and autonomous restraining order for search and confiscation. It is also relevant to mention that the Decree-law n°911/69, which regulates chattel mortgage, in the beginning makes it clear that it can only be used by a debtor who is part of the National Financial System, thus being the debtor granted exceptional tardiness redemption, making the reservation of legal defense rights subject to proof of compliance with contractual obligations. It is therefore suitable to reflect on the constitutionality of the Decree-law 911/69 not just with regards to the 1969 Constitution, but also in relation to its inclusion in the 1988 Republican Letter, even with its posterior legislative amendments. In this respect, Law n°10,931/2004 establishes new challenges for legal operators, as it allows the consolidation of property and ownership and also grants debtors possession in good faith of goods purchased through the chattel mortgage system. The analysis of the aforementioned law and decree involves structural aspects of the Democratic Legal State with regards to its relation with what was called “constitutionalization of private law”. This involves property right issues, equality principles and the evaluation of constitutional guarantees of legal processes, their contradictions and the right to legal defense.

Keywords: Chattel mortgage. Decree-law n° 911/69. Law n° 10,931/200. Consumer Defense Code. Equality. Ample Defense.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................10

1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO .....................................................................14

1.1 Formas de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas .............................18

1.1.1 Teoria da aplicabilidade indireta ............................................................................19

1.1.2 Teoria da aplicabilidade direta ...............................................................................22

1.1.3 (In) compatibilidade das normas anteriores com a nova ordem constitucional ....25

2 A PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988............32

2.1 O consumidor na Constituição Federal de 1988..............................................................32

2.2 O Código de Defesa do Consumidor (CDC) ...................................................................35

2.2.1 Conceitos aplicáveis ao Código do Consumidor (CDC) ........................................37

2.2.2 Princípios e direitos básicos no Código de Defesa do Consumidor (CDC) ...........40

3 LIMITES CONSTITUICIONAIS INCIDENTES NA CONTRATAÇÃO...........................44

3.1 Propriedade......................................................................................................................44

3.1.1 Conceito de propriedade.........................................................................................45

3.1.2 Função social da propriedade na Constituição de 1988 .........................................46

3.2 Contrato ...........................................................................................................................48

3.2.1 Conceito de contrato...............................................................................................48

3.2.2 Princípios contratuais antes e depois da Constituição de 1988 ..............................50

3.2.3 Práticas e cláusulas abusivas na Lei do Consumidor .............................................56

3.2.4Limites aos contratos de adesão ..............................................................................61

4 APLICABILIDADE DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO ..................65

4.1 Negócio fiduciário: conceito e validade ..........................................................................65

4.2 Conceito de alienação fiduciária em garantia..................................................................68

9

4.3 Propriedade fiduciária......................................................................................................71

4.4 Legislação aplicável à alienação fiduciária .....................................................................76

5 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES COMO RELAÇÃO DE CONSUMO.................................................................................................83

5.1 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1969 ....................................85

5.2 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1988 ....................................86

5.2.1 O Decreto-lei n° 911/69 no Estado Democrático de Direito ..................................87

5.2.2 O Decreto-lei n° 911/69 e o princípio da igualdade ...............................................88

5.2.3 O Decreto-lei n° 911/69 sob a ótica das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. ..................94

5.2.3.1 Análise do Decreto-lei n° 911/69 após o advento da Lei n° 10.931/2004....96

5.2.4 Consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor ............111

5.2.5 Constitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciário ...................................116

CONCLUSÃO........................................................................................................................125

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................129

INTRODUÇÃO

A conquista de uma ordem jurídica democrática passa não só pelo estabelecimento de

princípios e diretrizes gerais, mas pela crítica específica de institutos e práticas jurídicas

específicas. No caso do direito privado, inúmeros contratos são celebrados diariamente,

muitos destes classificados como contratos de consumo, já que travados entre fornecedores

e consumidores, ocupando os contratos de alienação fiduciária em garantia posição de

destaque, eis que permitem ao consumidor a aquisição de bens móveis e imóveis mediante

o pagamento a prestação.

No Brasil, a modalidade é comum em aquisição de automóveis pelo consumidor.

Nem sempre, contudo, consegue o fiduciante cumprir integralmente o contrato firmado e

atrasa o pagamento de uma ou mais prestações do financiamento. Não entregando

espontaneamente o bem ao credor fiduciário, pode ter o devedor, e via de regra tem, o

veículo rapidamente apreendido por determinação judicial. Isto porque o Decreto-lei n°

911/69 engenhou meio processual de busca e apreensão independente e autônoma de

qualquer outro procedimento ulterior, agilíssima ação que apenas pode ser manejada por

instituições financeiras – e agora pelo Fisco e Previdência, inicialmente permitindo ao

fiduciante a purgação da mora em caráter excepcional, e quando já pago mais de 40%

(quarenta por cento) do financiamento. Além disto, a defesa ocorreria unicamente em ação

própria, já que a contestação – e não resposta – versaria exclusivamente ou sobre o

pagamento do débito vencido ou sobre o cumprimento das obrigações constantes do

contrato.

A permanência de tal remanescente normativo de uma ordem jurídica não

democrática convida o operador do direito a refletir acerca da constitucionalidade do

mencionado Decreto-lei até mesmo frente a Constituição de 1969 e/ou sua recepção pela

Carta Republicana de 1988. Tal reflexão deve alcançar ainda a análise da possibilidade

jurídica de alteração do mencionado decreto-lei pela Lei n° 10.931/2004, que tencionou

alargar a defesa do devedor fiduciante nessa ação de busca e apreensão independente e

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autônoma. Mesmo neste caso, porém, continua a lei a impor o pagamento da integralidade

da dívida pendente – e não das parcelas vencidas – segundo os valores apresentados pelo

credor. Tanto que a purgação da mora importa na devolução do bem livre de ônus ao

devedor, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado

de registro de propriedade ou em nome do credor ou em nome de um terceiro por ele

indicado, livre desse ônus.

Optando, entretanto, o devedor fiduciante pela apresentação de defesa sem purgar a

mora, consolidar-se-á a propriedade e posse plena do bem fiduciariamente alienado nas

mãos do credor no sexto dia após a execução da medida que determinou sua apreensão.

Nesses termos, decidimos pelo estudo da alienação fiduciária em garantia de veículo

automotor no âmbito das relações de consumo, voltado especificamente ao devedor

inadimplente ou moroso, tema de indiscutível relevância devido ao considerável volume de

ações de busca e apreensão de veículos intentadas pelas instituições financeiras em face do

devedor fiduciante moroso, que, não raro, desconhece as implicações dessa mora. Trata-se,

portanto, de investigar a recepção pela Constituição Republicana de 1988 do Decreto-lei n°

911/69, bem como a possibilidade de sua alteração pela Lei n° 10.931/2004, cuja

constitucionalidade será aqui apreciada sob aspectos que vão desde a possibilidade de

existência deste decreto-lei em um Estado Democrático de Direito até sua obediência ao

princípio da igualdade, direito à propriedade e observância das garantias constitucionais do

devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Com base em tais premissas é que se examina também a compatibilidade da

conversão da ação de busca e apreensão independente e autônoma em ação de depósito,

com a consequente possibilidade de prisão civil do devedor fiduciante inadimplente ou

moroso, mesmo após a proibição, em 2008, desse tipo de prisão pelo Supremo Tribunal

Federal, invocando o disposto no Artigo 5º- LXVII, da Carta Federal de 1988 e nos Pactos

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e de San José da Costa Rica, tratados

internacionais que foram firmados pela República Federativa do Brasil e que proíbem a

prisão civil do devedor quando o débito não versa sobre a falta de pagamento de pensão

alimentícia. Para tanto, convém questionar também em que medida os protagonistas das

relações de consumo - especialmente o fornecedor - vinculam-se, nas suas relações, aos

direitos fundamentais ou se estes, em razão do princípio da autonomia da vontade, cânon

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do direito privado, aplicam-se basicamente às relações indivíduo-Estado, ou apenas de

forma mediata ou indireta.

Daí que a pertinência da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações

de consumo que envolvam contratos de alienação fiduciária em garantia para aplicar as

disposições normativas ali constantes, incluindo os princípios norteadores das relações de

consumo, tendo em vista que a Constituição de 1988 fez do consumidor titular de direitos

fundamentais, erguendo sua defesa à categoria de princípio da ordem econômica. Para

tanto, lançou-se mão de metodologia de natureza qualitativa com pesquisa bibliográfica de

fins descritivos, método interpretativo e analítico, através de técnica de leitura específica e

sistemática e consulta aos endereços da rede mundial de computadores.

O texto é composto de cinco capítulos. No primeiro analisa-se a possibilidade e

forma de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, bem como a

questão da (in)compatibilidade de normas anteriores com a nova ordem constitucional. No

segundo capítulo aborda-se a proteção dispensada ao consumidor pela Constituição Federal

de 1988 e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações de consumo,

observando os conceitos básicos e princípios por ele adotados, além da proteção conferida

ao consumidor na contratação. No terceiro capítulo trata-se dos limites constitucionais na

contratação, enfocando a propriedade e o contrato juntamente com a função social que

devem desempenhar, além dos princípios contratuais aplicáveis, que precisam permear a

relação de consumo, e as práticas e cláusulas abusivas constantes do CDC. O quarto

capítulo estuda a aplicabilidade da alienação fiduciária em garantia e a propriedade

fiduciária nas relações de consumo, conceituando e delimitando o negócio fiduciário para

poder chegar à alienação fiduciária propriamente dita, propriedade fiduciária e legislação

aplicável a tais institutos. Finalmente, o quinto capítulo versa sobre a alienação fiduciária

em garantia de veículos automotores enquanto relação de consumo e contém a análise de

constitucionalidade do Decreto-lei n° 911/69 relativamente à Constituição de 1969 e sua

recepção pela Constituição Federal de 1998, sob os aspectos do Estado Democrático de

Direito, do direito à propriedade, do princípio da igualdade e das garantias do devido

processo legal, ampla defesa e contraditório, averiguando ainda a possibilidade de alteração

do Decreto-lei n° 911/69 pela Lei n° 10.931/2004, além da constitucionalidade desta última

norma.

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Este trabalho, como não poderia deixar de ser, parte de uma escolha valorativa

fundamental, em torno do qual foi elaborado: espera-se contribuir, através do o exame das

principais idéias, conceitos e teorias desenvolvidas e fundamentadas no decorrer da

presente dissertação em torno do contrato de alienação fiduciária em garantia, para que se

reafirme a importância da conformação das normas que compõem o ordenamento jurídico à

ordem constitucional democrática, com a efetivação dos direitos fundamentais por ela

consagrados.

1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Antes de se mergulhar no estudo da alienação fiduciária em garantia de bens móveis

no âmbito das relações de consumo, tema específico deste trabalho, voltado ao devedor

fiduciante inadimplente ou moroso (Decreto-lei n° 911/69), convém falar sobre a

constitucionalização do direito.

A ideia de constitucionalização do direito diz respeito não exatamente ao estado de

dependência (subordinação) que deve ter o ordenamento jurídico para com a Constituição

Federal, mas, sobretudo, aos reflexos produzidos pelas normas constitucionais, por seus

efeitos, nos outros ramos do direito, especialmente do direito privado. Este é o caso da

análise deste estudo, do Direito Civil e do Direito do Consumidor, nas relações entre os

particulares, traduzindo-se na vinculação destes, nas suas relações, aos direitos

fundamentais.1

O fenômeno da constitucionalização do direito também não se resume, na ótica de

Daniel Sarmento, ao acolhimento, pela Constituição, “[...] das matérias que no passado

eram versadas pelo Código Civil [...]”, mas vai além, eis que exige nova interpretação,

tanto do Código Civil como das leis especiais editadas neste campo, à luz da Constituição

Federal, envolvendo matérias como “[...] Propriedade, posse, contrato, empresa e família,

[...], exemplos de institutos centrais do Direito Privado, que terão de ser redefinidos para

harmonizarem-se com os princípios solidarísticos inscritos na Constituição [...].” 2

Superada se encontra a tese, essencialmente liberal, de que os direitos fundamentais,

surgidos inicialmente para proteger os indivíduos do poder, ou melhor, do arbítrio do

Estado (direitos de defesa), aplicam-se unicamente às relações indivíduo-Estado. Isto 1 Eficácia externa, efeitos em relação a terceiros, eficácia horizontal, aplicação dos direitos fundamentais às

relações privadas, aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares são termos que se referem à constitucionalização do direito. Preferimos, contudo, o termo aplicação ou vinculação dos direitos fundamentais às relações entre particulares porque se afigura mais adequado, haja vista existirem relações de poder (verticais) nas relações entre particulares. Ademais, o Poder Público também pode atuar na esfera privada como particular quando, por exemplo, realiza determinados contratos administrativos.

2 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p.99.

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porque a realidade demonstrou que não é apenas entre Estado e indivíduo que pode haver

relação de subordinação. Também entre os particulares isso pode ocorrer. Não se pode

fechar os olhos ao fato de que as relações entre particulares podem encerrar enormes

desigualdades, principalmente no campo das relações de consumo, dada a existência de um

poder social, vale dizer, da existência de “[...] relações entre particulares que não são

detentores de um efetivo poder social e outros que detêm parcelas expressivas de poder

social [...].”3

Nesses tipos de relação, que predominam no mercado de consumo pós-Revolução

Industrial, que é marcado, senão dominado, pelos contratos de adesão, instrumentos que

têm cláusulas contratuais preestabelecidas pela parte mais forte da relação: o fornecedor,

os ideais de igualdade entre as partes não passam assim de mera utopia, não havendo

relação de coordenação entre os particulares, mas de verdadeira subordinação, em que uma

das partes envolvidas determina as regras do jogo e a outra se limita a aceitá-las ou não. É

o jogo do “tudo ou nada”: ou o consumidor aceita tudo que lhe é imposto pelo fornecedor,

ou nada, nada de contrato, nenhum contrato haverá entre aquelas partes.

Atualmente, o entendimento doutrinário é majoritário no sentido de que os

particulares, nas suas relações, também se submetem aos direitos fundamentais. A

problemática da questão reside, portanto, no fato de como se dá a aplicação dos direitos

fundamentais nas relações entre particulares, em razão do princípio da autonomia da

vontade, grande cânon do direito privado.4

3 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de

Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 16, n. 61, p.91-125, jan./mar. 2007c, p.108. 4 Faz-se necessário tecer breve comentário acerca da doutrina da norte-americana da “State Action”, que,

segundo Virgílio Silva, busca um certo controle judicial das relações entre particulares quando estas ofendem direitos fundamentais, em especial se envolvido está o direito de igualdade, o que importa em verdadeira estratégia de aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares, muito embora não de forma direta. SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p.98-102. É que é pacífico na doutrina norte-americana que os direitos fundamentais previstos na Carta Política dos Estados Unidos obrigam apenas o Estado, não incidindo nas relações entre particulares, à exceção apenas, como anota Sarmento, da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão. A justificativa da doutrina americana para rechaçar a aplicação dos direitos fundamentais às relações inter particulares, além de ter cunho essencialmente liberal, está baseada no pacto federativo dos Estados Unidos, eis que compete aos Estados legislar sobre direito privado, como leciona Sarmento: “Além do argumento liberal, outra justificativa invocada para a doutrina da state action liga-se ao pacto federativo. Nos Estados Unidos, cumpre não esquecer, compete aos Estados, e não à União, legislar sobre Direito Privado, a não ser quando a matéria normatizada envolva o comércio interestadual ou internacional. Assim, afirma-se que a state action preserva o espaço de autonomia dos Estados, impedindo que as cortes federais, a pretexto de aplicarem a Constituição, intervenham na disciplina das relações privadas.” Para driblar os argumentos apontados pela doutrina norte-americana, a Suprema Corte acabou intervindo no conteúdo negocial entre particulares, fazendo incidir os direitos fundamentais no caso

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O princípio da autonomia da vontade, num passado próximo, era tido por quase

absoluto, legado do liberalismo econômico, que, para garantir a ampla liberdade individual,

apregoava a dicotomia entre o direito público e o direito privado, separação que traz dois

universos essencialmente distintos, em que o público e o privado não se misturam, de

forma que o espaço do público pode ir apenas até onde principia o espaço do privado e, de

forma igual, o direito privado apenas pode chegar até onde começa o direito público. Isto

porque, nas palavras de Vieira de Andrade:

[...] A sociedade burguesa vivia da liberdade econômica, na crença da «mão invisível do mercado», que automaticamente conduziria ao melhor dos mundos possíveis. Para isso, tinha de evitar a interferência do Estado (do Executivo) na vida econômica e social, reduzir à abstenção essa mão invisível, que devia apenas velar pela segurança pública, garantindo a autonomia da esfera privada e a liberdade e a propriedade dos indivíduos (os seus direitos fundamentais).5

Assim, a subordinação dos particulares, nas suas relações, aos direitos fundamentais

consagrados na Magna Carta de 1988 não deixa também de significar a superação da

dicotomia do direito público e privado, pelo menos, como dantes entendida. Nesse sentido

é o escólio de Facchini Neto:

O fenômeno da constitucionalização do direito privado representa, de certa forma, a superação da perspectiva que via o universo jurídico dividido em dois mundos radicalmente diversos: o direito público de um lado, e o direito privado de outro. [...] a esfera do público chega até onde começa a esfera do privado e vice-versa. 6

A justificativa para essa separação absoluta entre o direito público e o direito privado

reside, respectivamente, na desigualdade e na igualdade dos sujeitos envolvidos na relação.

Ou seja, a relação entre indivíduo e Estado se caracteriza como uma relação de

subordinação, dada a patente desigualdade entre as partes, sendo o Estado superior ao

indivíduo. Já a relação indivíduo-indivíduo, estendida para alcançar também a relação entre

particulares, classifica-se como relação de coordenação, em razão da existência de

Shelley v. Kramer, onde os proprietários de imóveis de um determinado loteamento acordaram em não vender seus imóveis a pessoas que não tivessem cor branca, acordo que fora reduzido a escrito. No momento em que um dos proprietários resolveu alienar seu imóvel a um negro, os demais proprietários buscaram o Judiciário para fazer prevalecer o acordo dos condôminos, obtendo, na primeira instância, êxito na quizila. A Suprema Corte, contudo, fazendo valer os direitos fundamentais do comprador negro naquele caso, penetrou no conteúdo do contrato firmado entre os proprietários dos imóveis daquele loteamento, através do ato do juiz estadual, que chancelou a discriminação ali perpetrada contra o comprador negro, ratificando a alienação imobiliária ocorrida. SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004, p.228.

5 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.271-297, p.273.

6 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: Ibid., 2003, p.11-60.

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igualdade entre os protagonistas da relação, mesmo que essa igualdade seja meramente

formal.7

Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, ocorrida durante o século

XX, passa-se a exigir do Estado que abandone o estado letárgico em que até então se

encontrava e comece a implementar ações que visem a diminuir a desigualdade entre os

seres, buscando assim uma maior igualdade material entre os membros da sociedade. Para

tanto, é necessário que o Estado se faça presente nas relações entre particulares, regulando-

as, o que representa uma relativização do princípio da autonomia da vontade. “[...] É a fase

do dirigismo contratual, que consolida a publicização do direito privado”, como salienta

Luís Roberto Barroso.8

Mas não é só a igualdade, como núcleo essencial da democracia que é, reclama a

promoção de justiça social, incumbindo essa tarefa não apenas ao Estado, mas também

àqueles que, na linguagem de Sarlet, “[...] detêm parcelas expressivas de poder social.

[...]”. Afinal de contas, todos estão submetidos ao ordenamento jurídico, cujo vértice é

ocupado pela Constituição da República Federativa do Brasil, que abriga farto rol de

direitos fundamentais.9

7 Ficou para trás, contudo, o tempo em que o Direito Civil e o Direito Constitucional não se comunicavam ou

viviam em “mundos apartados”, como muito bem descreve Luís Roberto Barroso, senão vejamos: “1. Fases da relação entre o direito constitucional e o direito civil. As relações entre o direito constitucional e o direito civil atravessaram três fases bem distintas: a) 1a fase: Mundos apartados. Revolução Francesa é um marco tanto para o direito constitucional quanto para o direito civil. Deu a cada um o seu objeto: a Constituição escrita, ao direito constitucional, e o Código Napoleônico ao direito civil. Mas ambos integravam mundos apartados, que não se comunicavam: (i) a Constituição era a Carta política, que servia de referência para as relações entre o Estado e o cidadão; e (ii) o Código Civil era o documento jurídico que regia as relações entre particulares, ou como se costumava dizer, era a Constituição do direito privado. [...].” (Destaques no original). BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional e a constitucionalização do direito. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto (Org.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006b, p.325.

8 BARROSO, Luís Roberto, op. cit., 2006b, p.326. Sobre a passagem do Estado Liberal ao Social, Paulo Valério Moraes ensina que “Os jurisdicionados, não mais satisfeitos, com a exclusiva garantia de ordem e segurança, esta última principalmente contra os inimigos externos, começam a exigir dos entes públicos um leque de proteção que abrangesse suas necessidades de emprego, de saúde, de consumo etc.”, principiando, “assim o chamado Welfare State, caracterizado por uma atitude do ente público, visando à realização de políticas públicas orientadas no sentido de efetivar o desenvolvimento humanizado da sociedade. Assume o Estado uma conformação diversa da posição de mero expectador, passando a organizar estruturas capazes de atender aos anseios sociais de obtenção de uma vida digna.” Isto porque “[...] a liberdade em excesso gera a potência em excesso, e a potência exagerada causa a iliberdade dos mais fracos.” MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais. Porto Alegre: Síntese, 1999, p.192.

9 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2007c, p.108.

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Demais, não se pode olvidar constituir um dos fundamentos da República Federativa

do Brasil o princípio da dignidade humana, que deve ser respeitado não apenas pelo

Estado, mas igualmente pela comunidade e pelos particulares em suas relações, tendo a

ordem econômica por fim assegurar a todos existência digna, nos moldes do artigo 170 da

CF/88.10

Importa saber como devem ser aplicados os direitos fundamentais às relações entre

particulares ou, dito de outra forma, como se dá a vinculação dos particulares nas suas

relações com os direitos fundamentais constantes na Lei Maior: de maneira direta ou

imediata ou de maneira indireta ou mediata. Isto porque tem-se, de um lado, a defesa dos

direitos fundamentais capitulados na Carta Magna de 1988, que podem sofrer ataques tanto

do Estado como de particulares, e, de outro, o amparo à autonomia privada de cada ser,

traduzida na liberdade de cada indivíduo de se relacionar e de estabelecer negócios, bem

como o conteúdo desses negócios, com seus pares ou outros particulares, autonomia

igualmente garantida por um Estado democrático, como o brasileiro, o que sugere a

aplicação do princípio da proporcionalidade ou mandamento de proibição do excesso, cuja

função é buscar o equilíbrio dos princípios em choque, preservando os direitos

fundamentais.11

1.1 Formas de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas

Antes de se chegar ao cerne da questão, importa esclarecer que o debate doutrinário,

acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais em suas relações, surgiu

nos anos 50 na Alemanha.

10 A dignidade da pessoa humana foi definida por Sarlet como: “[...] a qualidade intrínseca e distintiva

reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhes garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (Itálico no original). SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007b, p. 62.

11 Embora não haja na nossa Magna Carta previsão expressa do princípio da proporcionalidade, decorre o mesmo, segundo Guerra Filho, do princípio da isonomia, que traduz a idéia de justiça distributiva. Ademais, o parágrafo segundo do artigo 5º da Carta Maior, declara que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados [...].”BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2003, p.65.

19

Dada sua importância e polêmica, a questão ultrapassou a fronteira germânica e

atingiu países como França, Itália, Portugal, Espanha, Brasil, dentre outros.

Tem-se então a teoria da aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais às

relações particulares e a teoria da aplicabilidade indireta ou mediata dos direitos

fundamentais às relações entre particulares.12

1.1.1 Teoria da aplicabilidade indireta

A teoria da aplicabilidade indireta ou mediata dos direitos fundamentais às relações

entre particulares foi desenvolvida na Alemanha por Günter Dürig e predica a necessidade

de ação do legislador infraconstitucional na edição de normas próprias do direito privado.

Isto porque os direitos fundamentais não constituem direitos subjetivos quando a relação se

desenvolve entre particulares, mas apenas ordem de valores. “[...] Quando muito [...]”,

lembra Vieira de Andrade, “[...] os preceitos constitucionais serviriam como princípios de

interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados susceptíveis de

concretização [...] ou, em casos extremos, colmatando as lacunas [...], mas sempre dentro

do ‘espírito’ do direito privado”. (Destaques no original)13

Nesse sentido, ao contrário do que ocorre nas relações indivíduo-Estado, nas quais os

direitos fundamentais são, indiscutível e diretamente, aplicados, é lícito aos particulares nas

suas relações, pondo de lado os direitos fundamentais, priorizarem sua autonomia e

decidirem o conteúdo de seus negócios/relações da forma como melhor lhes aprouver.

Trata-se de uma concepção incontestavelmente liberal, umbilicalmente ligada às razões

históricas do surgimento dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos e do papel a

ser por eles cumprido: o de proteger os indivíduos dos arbítrios do Estado.

Para os adeptos dessa teoria, a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações

interparticulares culminaria no esmagamento do princípio da autonomia da vontade dos

indivíduos e, por conseguinte, do próprio direito privado, acabando não apenas com a

12 Existe ainda uma terceira teoria, que predica a aplicação de soluções diferenciadas em cada caso concreto, e

que representa, segundo Canotilho, “[...] uma superação da dicotomia eficácia mediata/eficácia imediata a favor de soluções diferenciadas [...]” – itálico no original. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p.95.

13 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., 2003, p.276. Diga-se nesse tópico, por oportuno que a história sobre as teorias da aplicabilidade direta e indireta dos direitos fundamentais às relações entre particulares consta das obras de Virgílio Silva e de Daniel Sarmento. SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005. SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004.

20

liberdade de cada indivíduo, mas igualmente com a segurança jurídica, dado o poder de que

o Judiciário seria investido para interferir no conteúdo das relações entre particulares,

poder este emanado dos direitos fundamentais. Para eles, os direitos fundamentais

consagrados na Constituição da República devem permear as relações entre particulares

através das próprias disposições do direito privado, por meio da ação do legislador. Na

visão de Virgílio Silva, as cláusulas gerais, que reclamam um preenchimento valorativo,

seriam responsáveis pela ligação entre os direitos fundamentais, enquanto sistema de

valores, e o direito privado. Acompanhe-se o raciocínio do mencionado autor:

O principal elo de ligação entre os direitos fundamentais como sistema de valores e o direito privado, segundo o modelo de efeitos indiretos, são as chamadas cláusulas gerais. Essas são cláusulas que requerem um preenchimento valorativo na atribuição de sentido, pois são, para usar uma expressão difundida na doutrina jurídica brasileira, conceitos abertos, cujo conteúdo será definido por uma valoração do aplicador do direito. Essa valoração não pode ser, contudo, ao contrário do que muitos ainda pensam, uma valoração baseada em valores morais extra ou supralegais. (Itálicos no original).14

Exemplo de cláusula geral pode ser encontrado no artigo 422 do Código Civil de

2002, que determina aos contratantes “[...] guardar, assim na conclusão do contrato, como

em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”, conceitos estes que serão

preenchidos pelo juiz no caso concreto.15

A teoria ou modelo dos efeitos indiretos ou mediatos, embora seja a mais aceita na

Alemanha, não está imune a críticas. É que as chamadas cláusulas gerais se mostram

insuficientes para fazer incidir os direitos fundamentais nas relações entre particulares,

como observa Virgílio Silva, senão veja-se:

Outra forte crítica ao modelo de eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares baseia-se na possibilidade de proteção ineficaz dos direitos fundamentais nessas relações se seus efeitos puderem a elas chegar apenas por meio das chamadas cláusulas gerais. Isso porque é difícil imaginar que tais cláusulas sejam sempre suficientes para servir de ‘porta de entrada’ para os direitos fundamentais nas relações interprivadas. O mais provável é que, para um grande número de situações em que seria desejável que os efeitos dos direitos fundamentais se fizessem presentes, não haverá uma dessas cláusulas para dar vazão a esses efeitos.16

Além disso, esse sistema acaba por priorizar o direito privado, fazendo-o superior ao

direito público, o que é desprovido de sentido no mundo contemporâneo, valorizador que é

do Estado social.

14 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.78. 15 BRASIL. Código Civil Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 16 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.85.

21

Não há dúvida de que os direitos fundamentais nasceram com esta missão, de defesa

do indivíduo nas suas relações com o Estado, relações estas marcadas pela verticalidade,

pela superioridade daquele. Contudo, não se pode olvidar, como alerta Vieira de Andrade,

o fato de que as teorias liberal-burguesas veem os indivíduos como sujeitos isoladamente

contrapostos ao Estado, como se na sociedade apenas houvesse choques de interesses entre

indivíduo e Estado e não também entre os próprios particulares. Nas suas palavras:

Por outro lado, torna-se patente que os indivíduos não estão isoladamente contrapostos ao Estado como pressupunham as teorias liberais-burguesas. A área da sociedade deixa de ser (ou de poder ser vista como) o palco de actuações individuais, à medida que se verifica a profunda diversificação e imbricação entre os interesses das pessoas e se multiplica a actividade dos partidos e dos grupos de interesse - sindicatos, associações patronais, igrejas, grupos económicos, associações cívicas, profissionais, desportivas, etc. - que dispõem, cada vez mais, de elevado poder social e político. Além de o Estado-Administração aparecer na vida social metamorfoseado em diversas figuras jurídicas e, cada vez mais, na veste de sujeito privado, as entidades privadas passam a exercer tarefas de interesse colectivo ou determinam em termos fundamentais os comportamentos de indivíduos em diversas áreas sociais - esbate-se a distinção entre entidades públicas e privadas e, em consequência, a diferença entre o direito público e o direito privado como critério de relevância dos direitos fundamentais.17

Ademais, a sociedade evoluiu e, com ela, também evoluíram os direitos

fundamentais. Com a chegada do Estado social, os direitos fundamentais ganharam uma

dimensão objetiva, deixando de ser qualificados como direitos subjetivos exigidos

exclusivamente pelo indivíduo em face do Estado, expandindo-se também para o âmbito

das relações privadas, protegendo as pessoas dos poderes sociais não estatais presentes na

sociedade, como observou Daniel Sarmento, cujas palavras merecem ser transcritas:

No mesmo diapasão, afirma-se que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes transcendam o domínio das relações entre cidadão e Estado, às quais estavam confinados pela teoria liberal clássica. Reconhece-se então que tais direitos limitam a autonomia dos atores privados e protegem a pessoa humana da opressão exercida pelos poderes sociais não estatais, difusamente presentes na sociedade contemporânea. [...].18

Aqui, a crítica que se desfere à teoria dos efeitos indiretos é mordaz, pois ataca os

princípios que fundamentam a autonomia da vontade dos indivíduos: igualdade e liberdade,

princípios estes umbilicalmente ligados, já que um não sobrevive sem o outro. Não se pode

falar em liberdade de indivíduos se estes não são iguais, nem falar de igualdade se

liberdade não existe. A autonomia da vontade sem igualdade material não passa de quimera

e, sem igualdade material, também não existe liberdade. A igualdade e a liberdade

apregoadas pelos adeptos do modelo dos efeitos indiretos não passam da igualdade e da

17 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., 2003, p.274. 18 SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004, p.135-136.

22

liberdade na sua concepção formal, de igualdade perante a lei, como se a sociedade não

abrigasse em seu seio tantas injustiças que não foram corrigidas pela lei.

1.1.2 Teoria da aplicabilidade direta

A teoria da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações particulares,

por sua vez, dispensa a ação intermediária do legislador na aplicação daqueles direitos

interparticulares como sói acontecer nas relações entre Estado e indivíduos. Surgida na

Alemanha no início dos anos 50, teve como defensor pioneiro Nipperdey, que constatou

que a violação aos direitos fundamentais não parte exclusivamente do Estado. Os poderes

sociais e os terceiros em geral também constituem ameaças aos direitos fundamentais, que

precisam ser respeitados pelos particulares nas suas relações.19

Na Espanha e em Portugal, a maioria dos doutrinadores são adeptos desta teoria.

Aliás, o artigo 18º/1 da Constituição da República Portuguesa, de abril de 1976, dispõe que

“Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são

directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”20 A Constituição

brasileira, ao contrário da portuguesa, não determina a aplicabilidade direta dos direitos

fundamentais nas relações entre particulares, o que não constitui nenhum óbice à aceitação

da doutrina da aplicabilidade direta, que é aqui bem aceita e conta, dentre outros, com

adeptos de renome, como Daniel Sarmento, Ingo Sarlet, Luiz Edson Fachin.21

É hoje indiscutível a força normativa da Constituição que, no caso brasileiro, também

cumpre a missão de unificar todo o sistema de normas, não sendo demais lembrar que os

direitos fundamentais possuem status jurídico diferenciado, posto que alçados à categoria

19 Sobre a parte histórica das teorias da aplicabilidade direta e indireta dos direitos fundamentais às relações entre

particulares consultar as obras de Virgílio Silva e de Daniel Sarmento. SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005. SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004.

20 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.

21 Para Fachin, “[...] também não se pode negar a eficácia direta e imediata da norma constitucional nas relações pertinentes ao Direito Civil. Sustentar o inverso é fazer da Constituição letra morta.” FACHIN, Luiz Edson. Ensaio sobre a incidência dos direitos fundamentais na construção do direito privado brasileiro contemporâneo a partir do direito civil-constitucional no Brasil. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (Coord.). Direitos fundamentais e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.67-76, p.71.

23

de cláusulas pétreas, conforme artigo 60, §4º, IV, da Magna Carta, a inviabilizar sua

extinção e/ou enfraquecimento pela ação inclusive do poder Constituinte derivado.22

Diga-se, outrossim, que os direitos e garantias fundamentais estão positivados no

início da Constituição, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, possuindo

aplicabilidade imediata, como determina o §1º do artigo 5º desse Diploma Legal. Mas não

é só: reduzir as desigualdades sociais e regionais constitui objetivo fundamental da

República Federativa do Brasil, missão que não pode ser desempenhada se se olvidar a

aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares.23

Muitos dos dispositivos da própria Constituição Federal da República brasileira,

ensina Virgílio Silva, “[...] já dão a entender que eles não têm efeitos apenas na relação

indivíduo-Estado, mas também nas relações dos indivíduos entre si.” Alude o autor

especificamente à liberdade de expressão, constante no artigo 5º, IV, da CF/88, que

também garante, logo no inciso seguinte, o direito de resposta, tendo este “[...] sua

aplicação quase exclusivamente no âmbito da relação entre particulares.[...]”.24

Tal constatação, contudo, não conduz à supressão, nas relações entre particulares, do

princípio da autonomia contratual, tampouco afasta a dificuldade de como se devem aplicar

os direitos fundamentais nessas relações, em razão do inquestionável fato de que ambas as

partes envolvidas nessa relação são titulares dos direitos fundamentais, ao contrário do que

ocorre na relação indivíduo-Estado, em que apenas aquele é titular de direitos

fundamentais.

Além disso, a teoria da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais às relações

entre particulares, conforme esclarece Virgílio Silva, não prega que todo direito

fundamental seja aplicável às relações particulares, eis que impõe uma análise do caso

concreto e depende das características de cada norma de direito fundamental até porque,

acresça-se, direitos fundamentais há que, por sua própria natureza, não se coadunam e, por

conseguinte, não se aplicam às relações entre particulares. São suas palavras:

22 Reza o artigo 60, § 4º, IV, da CF/88: “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º: - Não

será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV – os direitos e garantias individuais.” BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008.

23 Dispõe o § 1º do artigo 5º da Carta Política que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata.” BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008.

24 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.22.

24

É preciso que se esclareça, contudo, que o modelo de aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre particulares não implica que todo direito fundamental necessariamente seja aplicável a tais relações. A verificação dessa aplicabilidade deve ser individualizada e dependerá das características de cada norma de direito fundamental. Nesse sentido, o que o modelo propõe é mais restrito do que se costuma imaginar. Ele apenas sustenta que se o direito fundamental for aplicável às relações entre particulares, então essa aplicação será direta. Mas o modelo não exclui a possibilidade de que alguns direitos sejam aplicáveis somente nas relações cidadãos-Estado.25

Referido posicionamento é compartilhado por Daniel Sarmento, para quem existe

a “[...] a possibilidade de aplicação direta da Constituição nas relações privadas, sempre

que possível [...].”, muito embora seu pensamento seja completado da seguinte forma:

[...] Como norma jurídica que é, dotada de imperatividade, a Constituição não necessita da mediação do legislador civil para incidir sobre tais relações, podendo, por si só, alcançá-las com seus comandos. O fato de o legislador privado quedar-se inerte não frustra a possibilidade de incidência das normas constitucionais no âmbito privado, desde que tais normas, pela sua natureza, comportem aplicação imediata [...].26

Diga-se ainda que quando o caso concreto envolve princípios, como o da dignidade

da pessoa humana, vetor de interpretação não apenas das normas constitucionais, mas

igualmente das normas infraconstitucionais, a observância deste princípio deve se dar tanto

por parte do Estado como da comunidade e dos particulares em suas relações de forma

direta.27

Atualmente, não se afigura mais possível negar a aplicação direta dos direitos

fundamentais às relações entre particulares quando o legislador infraconstitucional se

quedar silente ou até mesmo quando a legislação existente regula mal a matéria por não ter

se curvado aos direitos fundamentais consagrados na Carta Política de 1988, que, sem

sombra de dúvidas, obrigam o legislador ordinário. Nestes termos, a insubordinação do

legislador ordinário aos princípios e direitos fundamentais que habitam a Carta

Republicana de 1988 culmina na inconstitucionalidade dessa mesma norma ou responde

pela sua não recepção, caso se trate de norma anterior à promulgação da Carta Maior que,

25 SILVA, Virgílio Afonso, op. cit., 2005, p.91. 26 SARMENTO, Daniel, op. cit., 2004, p.101. 27 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., 2007b, p.114. Os Tribunais pátrios, conferindo força à idéia de que a

Constituição Federal não pode ficar à mercê da inércia do legislador infraconstitucional, vêm se pronunciando no sentido aplicar diretamente os direitos fundamentais às relações privadas em alguns casos. Vejam-se o Recurso Extraordinário Nº 202829 e a Apelação Cível Nº 70020817516: BRASIL. Recurso Extraordinário Nº 202829/RJ – Rio de Janeiro. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Ellen Gracie. Julgado em 11 out. 2005. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008. RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70020817516. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Odone Sanguiné. Julgado em 26 set. 2007. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008. – CONFERIR COM A NÚBIA.

25

sem sombra de dúvidas, implantou uma nova ordem de valores, mais comprometida com o

social e, portanto, mais voltada à dignidade da pessoa humana e à solidariedade, veiculando

seu expresso propósito de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de redução

das desigualdades sociais e de erradicação da pobreza e da marginalização.

Neste momento, convém tecer considerações acerca da (in)constitucionalidade ou da

(não) recepção das normas infraconstitucionais, que antecedem análise específica da

integração do Decreto-lei n° 911/69 na ordem instituída pela Carta Política de 1988.

1.1.3 (In) compatibilidade das normas anteriores com a nova ordem constitucional

A questão da incompatibilidade de determinada norma com a Constituição Federal,

desde que aquela seja editada após a vigência desta, não suscita maiores discussões

doutrinárias porque pode ser a mesma objeto, inclusive, de controle prévio ou preventivo

por parte de qualquer poder. Isso sem se falar que as leis ou atos normativos editados

posteriormente à Constituição da República podem ser objeto de Ação Direta de

Inconstitucionalidade ou de Ação Declaratória de Constitucionalidade, ações de

competência originária do Supremo Tribunal Federal, nos moldes do artigo 102, I, a, da

Carta Constitucional de 1988.28

Já a questão da recepção ou não da norma por uma nova Constituição é objeto de

mais profundas discussões doutrinárias porque parece improvável que “[...] sobrevinda

uma nova Constituição, seja possível aferir, de imediato, esse tipo de incompatibilidade.”,

como ressalta Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz. Para ele, aliás:

Admitir-se que uma Constituição nova, pelo só início de sua vigência, revoga automaticamente todas as disposições normativas anteriores, cujo conteúdo seja com ela incompatível implica, em verdade, o reconhecimento de que haverá um vácuo normativo, pois a tarefa integradora do legislador infraconstitucional ainda não terá ocorrido em sua plenitude.29

O que, entretanto, ocorre com uma norma que não foi recepcionada pela nova

constituição? É revogada ou deixa de existir no mundo jurídico? Pode-se lançar mão de

28 Reza o artigo 102, inciso I, letra A, da CF/88, que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a

guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.

29 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Controle de constitucionalidade e teoria da recepção. São Paulo: Malheiros, 1995, p.13.

26

Ação Direta de Inconstitucionalidade ou de Ação Declaratória de Constitucionalidade para

se saber se determinada norma editada antes do advento da nova Carta Constitucional foi

ou não por esta recepcionada? É o que se tentará responder nas linhas que se seguem.

Todavia, é necessário fazer-se breve digressão acerca do sistema jurídico brasileiro,

mais precisamente de como se dá a validade da ordem normativa infraconstitucional. Para

tanto, recorrer-se-á à teoria pura do direito, formulada por Kelsen, para quem o fundamento

de validade de uma norma dá-se por outra norma, sendo a fundamentadora a norma

superior e a fundamentada a norma inferior, de forma que a estrutura do ordenamento

jurídico “[...] é uma construção escalonada de normas supra e infraordenadas umas às

outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão

inferior [...].” Para ele, portanto, uma norma não “[...] é verdadeira nem falsa, mas válida

ou não válida.”30 Assim, o ordenamento jurídico posto é formado por normas jurídicas

sistemáticas e hierarquicamente ordenadas, cujo vértex é ocupado pela Constituição, sendo

esta o fundamento último de validade das demais normas positivas. Para que esse

ordenamento jurídico seja coerente, um todo harmônico, exige-se que não haja conflitos

entre as normas que o compõem. Nestes termos, afirma Kelsen que:

Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma de escalão inferior tem seu fundamento de validade na norma de escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior.31

30Recorremos à Kelsen pela sua presença no imaginário dos juristas e função demonstrativa que desempenha na práxis

jurídica. Não abordaremos, contudo, a questão da norma fundamental que, segundo Kelsen, é pressuposta, e responde pelo fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, por extrapolar, em muito, os limites do presente trabalho. Sobre a norma fundamental consultar KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Traduzido por João Baptista Machado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 207, 230 e 240. Ibid., 1987, p.220-221. Para esse autor, “como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida de uma determinada maneira, isto é, da maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infraordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas [...].” Nestes termos, a Constituição de um Estado, que se funda na norma hipotética fundamental, “[...] representa o escalão do Direito positivo mais elevado [...].” Ibid., 1987, p.240.

31 Ibid., 1987, p.223. Segundo comenta Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, “a estrutura escalonada do sistema jurídico confere à Constituição o status de fonte primária de validade de todas as demais normas positivadas. Qualquer ruptura dessa relação hierárquica implica a invalidade da norma inferior.” DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.26. É a Constituição, portanto, a Lei Suprema, a quem todas as demais normas devem conformação. A teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico por Kelsen elaborada, diga-se, é aceita por juristas como Bobbio, para quem “essa teoria serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo [...].” Para Bobbio, “a norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico [...].” E “[...] sem uma norma fundamental, as normas [...] constituiriam um amontoado, não um ordenamento [...].” BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento

27

Mas, o que ocorre com as normas infraconstitucionais quando há mudança no plano

constitucional? Para Wilson Batalha, subsistem as normas subordinadas que podem

encontrar seu fundamento de validade nos novos textos constitucionais. As demais “[...]

deixam de viger, por se tornarem carentes de fundamento.”32

É a norma que valia perante a antiga Constituição, mas agora contrária à nova Lei

Suprema por esta revogada? Deixa a norma de existir no mundo jurídico? Segundo Wilson

Batalha, não é possível haver revogação de tais normas porque a revogação apenas se dá

entre normas de igual hierarquia, deixando a mesma de existir no plano do ordenamento

jurídico estatal por haver perdido seu fundamento de validade:

A rigor, não se poderá dizer que a Constituição revogou as normas anteriores que lhe eram contrárias. A revogação opera-se apenas entre normas de igual hierarquia: a lei revoga-se por outra lei, o decreto revoga-se por outro decreto e assim por diante. [...] A Constituição não revogou as leis anteriores que lhe eram contrárias; apenas estas deixaram de existir no plano do ordenamento jurídico estatal, por haverem perdido seu fundamento de validade.33

Não sendo, contudo, automática a revogação, pela nova Constituição, de norma

válida ante a ordem constitucional anterior, deixa a norma inquinada de

inconstitucionalidade de existir? Ou perguntado de outra forma: Seria correto igualar a

nulidade da lei inconstitucional, reputá-la juridicamente inexistente? Sobre a questão, digna

de transcrição é a lição de Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, para quem:

jurídico. Traduzido por Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p.49.

32 BATALHA, Wilson de Sousa Campo. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.33. Para ele, “quando a uma Constituição outra se lhe substitui, quer pelo processo estabelecido pela primeira Constituição, quer violentamente cortando a juridicidade para implantar novos quadros jurídicos, todas as normas jurídicas elaboradas na vigência da Constituição anterior deixam de encontrar nela seu fundamento de validade. Pode ocorrer, entretanto, e é o que frequentemente ocorre, venham tais normas jurídicas adequar-se aos termos da nova Constituição. Continuam aquelas a vigorar, mudando-se apenas o seu fundamento de validade. Se, ao contrário, essas normas jurídicas elaboradas na vigência da Constituição anterior vierem a atritar-se com os novos textos constitucionais, cessarão de vigorar, a partir da data do início da vigência da Constituição recente, porque não poderão encontrar nesta fundamento para sua validade; serão normas inconstitucionais.” Ibid., 1980, p.434. Para Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, em razão do princípio da continuidade do ordenamento jurídico, “[...] as normas de hierarquia inferior, preexistentes à mudança do sistema constitucional, só subsistirão se puderem encontrar, na nova ordem, seu fundamento de validade.” DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.57. Também para Kelsen, “[...] as leis ditadas sob a antiga Constituição e que não são recebidas já não são consideradas válidas [...].”KELSEN, Hans, op. cit., 1987, p. 225.

33 Ibid., 1980, p.434. Para Marcelo Neves, a norma infraconstitucional incompatível com uma nova constituição, é igualmente inexistente no mundo jurídico, dado que ocorreu sua revogação, muito embora se trate de normas de diferente hierarquia: “[...] a lei incompatível com norma constitucional superveniente submeteu-se também, apesar de sua inferioridade hierárquica, à aplicação do princípio lex posterior derrogat priori, sendo, portanto, lei revogada e, por esta razão, juridicamente ‘inexistente’, ou menor (sic), não mais pertencente ao ordenamento jurídico [...].” (itálicos no original). NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988,, p.96.

28

O Direito brasileiro, desde a primeira Constituição republicana, adotou a teoria da nulidade da lei inconstitucional, reputando-a juridicamente inexistente [...]. Tal formulação teórica, todavia, confunde os conceitos de nulidade e inexistência jurídica da lei. [...] [...] Não podem, sob pena de incoerência, ser confundidos os planos da existência e eficácia. [...] Para que possa ser passível de um juízo de inconstitucionalidade, a norma deverá previamente existir [...]. [...] Poder-se-ia argumentar, neste passo, que a lei inconstitucional não é nula, mas apenas inválida [...]. [...] O dogma da nulidade ‘ab initio’, equiparada à inexistência do ato normativo inconstitucional, deve, portanto, ao nosso sentir, ser encarado com moderação, já que enfrenta o problema da inconstitucionalidade sob um prisma puramente lógico-formal, sem se preocupar com as situações jurídicas anteriormente estabelecidas. [...] A existência da norma é condição indispensável para que possa revestir-se de validade, vigência e eficácia. Seria incoerência atribuir tais qualidades ao que juridicamente não é, ao que juridicamente inexiste. [...] Em nosso sistema jurídico a validade da lei ordinária decorre do fato de ter sido elaborada de acordo com as regras de competência e forma, previstas na Constituição, bem como, no que se refere ao seu conteúdo, não infringir as normas e princípios plasmados no Texto Constitucional.34 (Itálico no original).

De fato, sob o ponto de vista lógico, uma norma juridicamente válida perante a ordem

constitucional anterior não pode simplesmente ser considerada nula ou juridicamente

inexistente ante a instauração de nova ordem constitucional que com ela seja incompatível,

principalmente se continua a surtir seus efeitos como se válida fosse. Nesse sentido, vem a

calhar a lição de Kelsen, que entende que:

[...] dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula, mas apenas que pode ser anulável. Mas esta anulabilidade prevista pela ordem jurídica pode ter diferentes graus. Uma norma

34 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p. 38-41, 46 e 49. Para Bobbio, o problema da

validade de uma norma é o problema da existência da regra enquanto tal e se resolve com um juízo de fato, “[...] isto é, trata-se de constatar se uma regra jurídica existe ou não, ou melhor, se tal regra assim determinada é uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma equivale à existência desta norma como regra jurídica [...].”BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Traduzido por Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003, p. 46. Para Arnaldo Vasconcelos, “na categoria da validade, examinam-se as condições existenciais da norma jurídica, o que requer apenas o emprego de critérios técnicos, sendo tal abordagem, portanto, eminentemente formal. Pretende-se apurar se a norma, de que se trata, é formalmente boa, a saber, se admite as provas de aferição relativas à juridicidade, à positividade, à vigência e à eficácia. Da norma que resistir a tal análise, só se pode afirmar, ainda, que existe validamente como norma.” VACONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.225. Marcelo Neves, por sua vez, cita o critério da pertinência da norma jurídica, ensinando que “[...] os sistemas jurídicos, construídos e desenvolvidos através dos processos políticos e técnicos de produção-aplicação normativa, caracterizam-se por uma nítida distinção entre pertinência e validade das normas.” Para ele, a pertinência da norma jurídica nada mais é que sua existência jurídica. Tanto que faz aludido autor o seguinte comentário: “[...] preferimos, em substituição ao vocábulo ‘existência’, empregar o termo ‘pertinência’, significando que uma determinada norma integrou-se (regular ou irregularmente) a um determinado ordenamento jurídico e ainda não foi expulsa por invalidade ou revogada [...]”. NEVES, Marcelo, op. cit., 1988, p. 41.

29

jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro, de forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Mas também pode ser anulada com efeito retroativo, de forma tal que os efeitos jurídicos que ela deixou atrás de si sejam destruídos: como, por exemplo, a anulação de uma lei penal, acompanhada da anulação de todas as decisões judiciais proferidas com base nela; ou de uma lei civil, acompanhada da anulação de todos os negócios jurídicos celebrados e decisões jurisdicionais proferidas com fundamento nessa lei. Porém, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início. Não é, portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como ‘declaração de nulidade’, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como ‘nula desde o início’ (ex tunc). A sua decisão não tem caráter simplesmente declarativo, mas constitutivo.35 (Itálico no original).

A incompatibilidade existente entre uma nova Constituição e as normas

infraconstitucionais anteriores, escreve Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, é conflito

existente que deve ser resolvido, conforme opinião majoritária, “[...] pelas regras de Direito

Intertemporal [...].” É que “[...] pelo prisma do Direito Intertemporal – a incompatibilidade

se resolve pela revogação – ou através do juízo de inconstitucionalidade.” Ainda para ele,

“a só entrada em vigor da nova Constituição revoga, automaticamente, todas as normas

anteriores que com ela não se harmonizam.”36

Trata-se, em verdade, de revogação por ausência de recepção. Aliás, a norma

infraconstitucional anterior à nova Constituição que foi por esta revogada por ausência de

recepção, não pode ser objeto de exame de constitucionalidade, ou melhor, não pode ter

sua (in)constitucionalidade diretamente apreciada por meio de Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADIn) ou de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), eis que o

sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente.

Esse, diga-se, é o posicionamento, e acertado, que vem tomando o Supremo Tribunal

Federal em reiteradas decisões.37

35 KELSEN, Hans, op. cit., 1987, p. 292-293. 36 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.56-57. Para esse autor, “o fenômeno da recepção,

processo legislativo abreviado (Kelsen), implica a absorção, pela nova ordem, das normas inferiores vigentes sob o manto do antigo sistema constitucional, dando-lhe novo fundamento de validade. Procura-se dar continuidade à dinâmica das relações sociais, sem que seja necessária nova atividade legislativa integradora. Afirma-se, por isso, que ocorre uma novação do sistema anterior pela nova Constituição; as normas anteriores passam a existir como se editadas fossem a partir da entrada em vigor da nova ordem constitucional.” Ainda para Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz, “em síntese: sob o parâmetro do novo sistema constitucional, ou as normas anteriores são recepcionadas, porque com ela se harmonizam, ou são rejeitadas por serem incompatíveis. A incompatibilidade, aqui, dá origem, em princípio, à cessação de sua vigência.” Demais, “até esse ponto, jurisprudência e doutrina convivem harmoniosamente. A dissonância passa a ocorrer quanto ao modo pelo qual é visualizada a colisão acima posta em destaque: pelo prisma do Direito Intertemporal – a incompatibilidade se resolve pela revogação – ou através do juízo de inconstitucionalidade.” Ibid., 1995, p.55-56.

37 Sobre essas questões, veja-se: BRASIL. Recurso Extraordinário nº 346084/PR – Paraná. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Ilmar Galvão. Julgado em 09 nov. 2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Recurso Extraordinário nº 396386/SP – São Paulo. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Carlos Velloso. Julgado em 26 jun. 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Agravo de Instrumento em

30

Como, então, atacar, em tese, a norma infraconstitucional anterior à nova

Constituição que não foi por ela recepcionada, já que é impossível atacar por meio de ADIn

ou ADC norma revogada? Neste caso, é possível recorrer à Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental em razão do disposto no parágrafo 1º do artigo 102 da Lei

Suprema e no parágrafo único, inciso I, do artigo 1º da Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de

1999, que assim reza:

Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.38

Para o ajuizamento de Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal para atacar, em tese, norma

infraconstitucional não recepcionada pela Carta Magna, contudo, é necessária a

comprovação de divergência jurisdicional relevante.39

O vácuo normativo resultante do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da

não recepção, pela Constituição da República, de determinada norma jurídica que possuía

aplicação antes de seu advento pode perfeitamente ser suprido pelo legislador ordinário

que, por sua vez, deve observar todos os parâmetros exigidos pela Constituição Federal de

1998. É, aliás, isto que deve ocorrer caso entenda o Supremo Tribunal Federal não ter sido

o Decreto-lei n° 911/69 recepcionado pela Carta Constitucional de 1988, se a referida

Agravo Regimental nº 232386/GO – Goiás. Primeira Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Moreira Alves, Julgado em 17 ago. 1999. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1360MC/DF – Distrito Federal. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Moreira Alves. Julgado em 26 out. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009; BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 175/PR – Paraná. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Célio Borja. Julgado em 01 abr. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009 e BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 129/SP – São Paulo. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 07 fev. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.

38 BRASIL. Presidência da República. Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2009.

39 Registre-se ser pertinente a divergência judicial constitucional relevante exigida pela Lei n° 9.882/99, uma vez que uma lei revogada não se submete ao controle abstrato de constitucionalidade, mas pode “[...] ter sua aplicação recusada pelas autoridades, já que não mais tem potencialidade para incidir [...]”, como observa Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz, muito embora referido autor defenda a possibilidade de a lei tornada inconstitucional pela superveniência de nova Constituição possa ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade. DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos, op. cit., 1995, p.63. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de admitir a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de norma não recepcionada pela Carta Política de 1988. Consulte-se, para tanto: BRASIL. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 33/PA – Pará. Tribunal Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em 29 out. 2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2009.

31

norma chegar a ser objeto de Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental. Até a ação integradora do legislador ordinário, contudo, é perfeitamente

possível a aplicação do Código de Processo Civil, para suprir o vácuo normativo processual

nos contratos de alienação fiduciária em garantia e do Código de Defesa do Consumidor,

enquanto lei principiológica que é, aos casos que envolvam relação de consumo.

2 A PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Tamanha é a importância do consumidor, este indispensável protagonista da atividade

econômica, mola propulsora do desenvolvimento nacional, que a Constituição de 1988 o

fez titular de direitos fundamentais, direitos estes que não podem ser olvidados nem pelo

legislador ordinário, repita-se, nem pelo outro integrante da relação de consumo: o

fornecedor. Não se pode negar que incontáveis contratos de consumo, incluindo os de

alienação fiduciária em garantia, são celebrados diariamente no mercado, contratos que em

regra impõem a vontade exclusiva do fornecedor, posto que de adesão, deixando o

consumidor exposto ao arbítrio daquele.

Atenta a tudo isto e inovando no constitucionalismo brasileiro, a Constituição Federal

de 1988 consagrou o consumidor como titular de direitos fundamentais, pois é através das

relações de consumo que o homem-consumidor provê suas mais fundamentais

necessidades. Nesse sentido, determinou que o Estado promovesse, na forma da lei, a

defesa desse novo sujeito de direitos fundamentais, erguida à categoria de princípio da

ordem econômica, incumbindo ao Congresso Nacional a elaboração do Código de Defesa

do Consumidor no prazo de cento e vinte dias contados a partir da promulgação da Carta

Política, nos termos dos artigos 5º, XXXII, 170, V, e 48 do ADCT. 1

2.1 O consumidor na Constituição Federal de 1988

A massificação da sociedade de consumo exigiu o desenvolvimento de técnicas de

contratação também em massa que permitissem que os produtos, agora produzidos em

larga escala, chegassem rapidamente às mãos dos consumidores, fazendo surgir um tipo de

formulário com cláusulas preestabelecidas que imprimissem a necessária velocidade às

contratações, instrumento hoje denominado contrato de adesão.

1 BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008.

33

A desigualdade entre os adquirentes dos produtos e os seus fornecedores se acentuou

de tal forma que o Estado teve que intervir nessas relações econômicas privadas, buscando

equilibrá-las. Foi preciso, portanto, amparar a parte mais frágil da relação: o consumidor.

Atendendo às necessidades da sociedade, onde os consumidores precisavam de um Estado

mais presente, fiscalizador e intervencionista, a Constituição Federal de 1988 ergueu à

categoria de princípio da ordem econômica a defesa do consumidor e determinou que o

Estado promovesse, na forma da lei, a defesa do consumidor, nos termos de seu artigo 5º,

XXXII. Nesse tocante, oportuna a lição de Marinoni, que ensina que “[...] Defender o

consumidor na forma da lei não quer dizer, evidentemente, que basta ao estado editar

normas voltadas à sua proteção, uma vez que o dever de proteção é do Estado e não do

legislativo.[...]”.2

Importante ter em mente que a localização da “defesa do consumidor” na

Constituição Republicana, logo no seu artigo 5°, XXXII, faz desse consumidor titular de

direitos fundamentais, direitos esses imunes a qualquer reforma por parte do legislador

constitucional derivado, em razão de se tratar de cláusula pétrea, nos moldes do artigo 60,

§4º, IV, da “Constituição Cidadã.”3 Discorrendo sobre o assunto, Cláudia Lima Marques

aponta duas consequências da identificação do consumidor como novo sujeito de direitos

fundamentais, quais sejam: “[...] não só o contrato deve ser interpretado de forma diferente,

a proteger o sujeito de direitos especiais, mas também o direito daí resultante merece

interpretação teleológica (de proteção dos mais fracos na sociedade) e ‘conforme a

Constituição’.”4 Rizzatto Nunes vai mais além, pois entende que “[...] os princípios

fundamentais instituídos no art. 5° da Constituição Federal são, no que forem compatíveis

com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo

constitucional”.5

2 MARINONI, Luiz Guilherme. A conformação do processo e o controle jurisdicional a partir do dever estatal de

proteção do consumidor. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.). Estudos de direito do consumidor: tutela coletiva (homenagem aos 20 anos da lei da ação civil pública). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p.361-393, p.362. Ronaldo Porto Macedo Júnior, por sua vez, entende que “O direito do consumidor seria uma parte importante das políticas do Welfare State tendo em vista o estabelecimento de parâmetros éticos para o mercado, proporcionando igual acesso a direitos e oportunidades de consumo e garantia da dignidade, cidadania e justiça social.” MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p.293.

3 O termo Constituição Cidadã foi proferido pelo deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, na sessão de 27 de julho de 1988. GUIMARÃES, Ulysses. A constituição cidadã. Disponível em: <http://www.fugpmdb.org.br>. Acesso em: 26 mar. 2009.

4 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.214.

5 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.12.

34

Ademais, a ordem econômica, nos moldes estabelecidos pelo legislador constituinte,

embora baseada no sistema de livre iniciativa e concorrência, encontra limites na defesa do

consumidor, tal é a importância desse novo sujeito de direitos, além de ter por fim

assegurar a todos existência digna, como se pode observar pelo disposto no artigo 170, V,

da Carta Política de 1988. Aliás, pauta-se a Constituição da República pelo princípio da

dignidade da pessoa humana, cujos reflexos, como não poderia deixar de ser, também são

sentidos na proteção e defesa do consumidor por ela dispensados.6

Mas não é só, Rizzatto Nunes chega a afirmar que “[...] a livre concorrência implica

proteção ao consumidor.”7, pensamento com o qual a pesquisadora concorda sem qualquer

restrição. Nesse sentido, importantes são os ensinamentos de Roberto Gomes:

[...] Hoje, após inúmeras modificações, a Carta de 1988 ainda representa a opção constitucional brasileira, que adotou o modelo capitalista, todavia criou um sistema de limites para que este modelo econômico encontrasse freios, para não perder de vista a condição de cumprimento dos comandos constitucionais, que apontam de forma clara para a proteção da dignidade humana como uma condição essencial para se fazer garantir a vontade da constituição.8

A defesa do consumidor, em suma, pode-se constituir em legítima limitação da

autonomia privada e, em caso de choque entre a autonomia da vontade e a defesa do

consumidor, mostra-se ideal o “recurso à proporcionalidade”, como ensina Bruno

Miragem.9 Mas há ainda outros dispositivos esparsos pela Constituição da República que

6 Bruno Miragem ensina que a tutela do direito do consumidor deve ter preferência em relação à livre iniciativa:

“[...] Assim que a tutela dos direitos do consumidor deve ter preferência em relação a outras, como a livre iniciativa - sob o critério do amplo espaço de autonomia negocial - ou liberdade de expressão - quando esta for exercida de modo a atingir, de qualquer modo, o discernimento ou mesmo a integridade do consumidor.” MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. O direito do consumidor como direito fundamental – conseqüências jurídicas de um conceito. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 43, p.111-132, jul./set. 2002, p.131. [...].” já Roberta Densa é clara ao afirmar que “[...] a defesa do consumidor busca a proteção da pessoa humana, que deve sempre sobrepor-se aos interesses produtivos e patrimoniais [...]”, o que ocorre também por força do princípio da dignidade da pessoa humana. DENSA, Roberta. Direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.4. Acresça-se que não poderia haver efetiva concretização do princípio da pessoa humana se a Carta Política não tivesse igualmente traçado como um dos objetivos de nossa República a construção de uma sociedade solidária, ou melhor, se não houvesse abraçado a solidariedade social, sendo este outro valor que, conforme Fábio Soares, informa a proteção jurídica do consumidor: “A solidariedade social aparece como outro valor que informa a proteção jurídica do consumidor, consagrada pela Lei Maior entre os objetivos da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 3º, inciso I), quando o constituinte originário indica o objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” SOARES, Fábio Costa. Acesso do consumidor à justiça: Os fundamentos constitucionais do direito à prova e da inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.55.

7 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto, op. cit., 2005, p.59. 8 GOMES, Roberto de Almeida Borges. Princípios da demanda e dispositivo: uma leitura à luz do processo

coletivo. In: CHAVES, Cristiano; SAMPAIO, Aurisvaldo (Org.), op. cit., 2005, p.453-490, p.463. 9 Miragem assim se manifesta: “Por outro lado, ao tempo em que tais princípios assumem o caráter de

conformadores da ordem econômica, sujeitam-se em maior ou menor grau a situações práticas de colisão. Neste particular, então, embora não se esteja tratando de hierarquia ou status diferenciados entre princípios,

35

rendem homenagens ao consumidor. Assim é que o artigo 24, VIII, incumbe à União,

Estados e Distrito Federal legislação concorrente sobre matérias afetas ao consumidor.

Dispõe o artigo 129, III, da CF/88 ser função institucional do Ministério Público promover

o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos,

categoria em que pode perfeitamente ser inserido o consumidor.10 O artigo 150, §5º, da Lei

Maior, por sua vez, impõe ao legislador infraconstitucional a adoção de medidas, através da

lei, que esclareçam os consumidores sobre os impostos incidentes sobre as mercadorias e

serviços em aquisição.11

Embora não imune a falhas nem críticas, andou muito bem o legislador constitucional

nacional ao inserir a defesa do consumidor como direito fundamental e princípio da ordem

econômica, dadas as consequências jurídicas daí advindas para as relações de consumo,

uma das quais o direito do consumidor de exigir do Estado que o proteja nas suas relações

com os fornecedores, consectário lógico do princípio da igualdade. Neste sentido, o

constituinte brasileiro determinou, no artigo 48 do ADCT – Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias, que fosse elaborado no prazo de cento e vinte dias contados a

partir da promulgação da Constituição Federal o Código de Defesa do Consumidor, missão

que fora conferida ao Congresso Nacional, e que culminou com a promulgação do Código

de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.12

2.2 O Código de Defesa do Consumidor (CDC)

Promulgada no dia 11 de setembro de 1990, a Lei nº 8.078, Código de Defesa do

Consumidor, é instrumento de exercício da cidadania, vez que dispensa efetiva proteção e

defesa do consumidor, incluindo amplo acesso deste à justiça, constitui-se num verdadeiro

formas de solucionar o eventual choque devem estar dispostas pelo ordenamento. Nesse aspecto que o recurso à proporcionalidade é a fórmula usual [...]”. MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa, op. cit., 2002, p.130.

10 BRASIL. Constituição (1988), op. cit., 2008. 11 Id. Constituição (1988), op. cit., 2008. Assim manifestou-se José Afonso da Silva, ao discorrer sobre abuso do

poder econômico: “É bem verdade que as constituições brasileiras, desde 1946, inscreveram um dispositivo que poderia servir de base à proteção do consumidor, se fosse eficaz. Referimo-nos à repressão ao abuso do poder econômico, que, na Constituição de 1988, aparece com enunciado menos eficaz ainda, porque o fez depender da lei. Esta é que ‘reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros’ (art. 173, § 4º). Ajudará, por certo, a caracterização do mercado interno como patrimônio nacional.” SILVA, José Afonso da, op. cit., 2000, p.226.

12 Id. Constituição (1988), op. cit., 2008.

36

microssistema jurídico, eis que contém normas de diversos ramos do direito: civil,

administrativo e penal.13

Na visão de Nery Júnior, trata-se igualmente de uma lei principiológica, ou seja, de

um diploma legal que contém “[...] preceitos gerais [...]” e que fixa “[...] os princípios

fundamentais das relações de consumo. [...]”. Para ele: “[...] É isto que significa ser uma lei

principiológica. Todas as demais leis que se destinarem, de forma específica, a regular

determinado setor das relações de consumo deverão submeter-se aos preceitos gerais da lei

principiológica, que é o Código de Defesa do Consumidor.”14

Em verdade, aplica-se a Lei Protetora a todas as relações de consumo, mesmo que

existente lei específica sobre determinada questão que envolva relação de consumo, vez

que se trata de lei geral e também principiológica, conforme mencionado há pouco. Sobre a

importância desse instrumento, assim se manifesta Guilherme Fernandes Neto:

Todavia, em que pese a influência malévola que alguns grupos de pressão efetuaram no decorrer da aprovação do CDC, forçoso é convir que o Código é um marco importantíssimo não somente para o direito pátrio, mas, também, para o mundo atual, com grande significação histórica. Denota o enfraquecimento da autonomia privada pátria provinda do liberalismo, que, por si só, durante décadas, mostrou-se insuficiente e incapaz para limitar as deturpações do exercício do direito subjetivo - causadas por empresários - que permeavam as obrigações advindas dos contratos; consubstancia-se o novo diploma em um avanço da justiça social, dos interesses coletivos, difusos e do dirigismo contratual, necessário para a redução das dissimetrias sociais, após a percepção de que a igualdade dos contratantes nunca passou de uma ficção jurídica criada pela classe dominante. 15

13 A expressão microssistema jurídico consta da obra de José Geraldo Filomeno, que assim se manifesta: “E é

disso que se cuida, quando se fala no Código de Defesa do Consumidor. Ou seja, um verdadeiro microssistema jurídico, por conter: (a) princípios que lhe são peculiares (isto é, a vulnerabilidade do consumidor, de um lado, e a destinação final de produtos e serviços, de outro); (b) por ser interdisciplinar (isto é, por relacionar-se com inúmeros ramos de direito, como constitucional, civil, processual civil, penal, processual penal, administrativo etc.); (c) por ser também multidisciplinar (isto é, por conter em seu bojo normas de caráter também variado, de cunho civil, processual civil, processual penal, administrativo etc.)” (Destaques no original). FILOMENO, José Geraldo de Brito. Manual de direitos do consumidor. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2007a, p.10. Sobre o mencionado instrumento de exercício da cidadania ver MAIA, Daniela. Princípios constitucionais do direito do consumidor. In: GUERRA, Isabela Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly; PEIXINHO, Manoel Messias (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. p.409-415, p.409.

14 NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.441-570, p.144. Para José Geraldo Filomeno, “[...] o Código de Defesa do Consumidor, muito mais do que um conjunto de normas inovadoras, em diversos aspectos do direito, é muito mais uma filosofia de ação, eis que traça uma política ou um conjunto de diretrizes que devem ser seguidas para que o consumidor seja efetivamente protegido e defendido.” FILOMENO, José Geraldo Brito. Curso fundamental de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2007b, p.15.

15 FERNANDES NETO, Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumidor: cláusulas, práticas e publicidade abusivas. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p.57.

37

No que tange ao Código Civil, é o mesmo aplicado subsidiariamente ao CDC desde

que, por óbvio, não haja conflito entre as normas deste e daquele.16 No intuito de dispensar

a necessária e eficaz proteção ao consumidor, conforme imposto pela Carta Maior, o CDC

inaugura seus dispositivos estabelecendo normas de proteção e defesa do consumidor, de

ordem pública e interesse social.17

Uma lei tão protetora dos direitos e interesses do consumidor, como é a Lei n°

8.098/90, permeada de tantos princípios e direitos básicos, não poderia, contudo, correr o

risco de ser aplicada a outras relações que não às de consumo. Por esta razão, o legislador

achou por bem trazer determinados e necessários conceitos, delineadores inclusive da

própria relação de consumo. Nesse sentido, faz-se necessário identificar quando um

contrato de alienação fiduciária em garantia se caracteriza como relação de consumo, já

que o novel Código Civil permitiu a celebração desta espécie de contrato entre iguais. Uma

vez classificado o contrato de alienação fiduciária em garantia como contrato de consumo,

cabe verificar se a ele aplicar-se-ão todos os princípios consagrados na Lei Protetora, que

igualmente determina a observância, pelo fornecedor, dos direitos básicos do consumidor.

2.2.1 Conceitos aplicáveis ao Código do Consumidor (CDC)

Para restringir sua aplicação às relações de consumo, evitando assim a aplicação de

seus princípios e direitos básicos a outras relações que de consumo não se caracterizam,

achou por bem o legislador do Código de Defesa do Consumidor definir as figuras do

consumidor e do fornecedor, delimitando-as, bem como conceituar produto e serviço. A

bem da verdade, o CDC trouxe quatro conceitos de consumidor, sendo um conceito padrão,

16 Nesse tocante, o próprio Código Civil dispõe em seu artigo 593 que: “A prestação de serviço, que não estiver

sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.” BRASIL. Código Civil Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

17 Dizer o CDC que suas normas são de ordem pública e interesse social “[...] equivale a dizer que são inderrogáveis por vontade dos interessados em determinada relação de consumo, embora se admita a livre disposição de alguns interesses de caráter patrimonial [...]”, conforme anota José Geraldo Filomeno. FILOMENO, José Geraldo Brito. Art. 1-7. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.21-142, p.24, manifestando-se no mesmo sentido se Bruno Miragem, que escreve: “A nosso ver, nessa acepção é que devem ser vislumbradas as características indicadas pelo Código de Defesa do Consumidor em seu art. l°. A determinação da lei como de ordem pública revela um status diferenciado à norma que, embora não a torne hierarquicamente superior às demais, lhe outorga um caráter preferencial. De outra parte, na medida em que realiza o conteúdo de um direito fundamental de matriz constitucional, retira da esfera de autonomia privada das partes a possibilidade de derrogá-las. MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa, op. cit., 2002, p.126-127. Ainda sobre o tema Maldonado escreve: “Elencado entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, como já assinalado, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC, cujas normas são de ordem pública e interesse social (art. 1º), permite ao julgador conhecer de ofício qualquer questão relativa às relações de consumo, não se operando entre elas a preclusão. CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Direitos do consumidor: fundamentos doutrinários e visão jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p.4.

38

nos termos do caput de seu Artigo 2º, e os demais conceitos de consumidor por

equiparação, como se pode observar pelo disposto no parágrafo único do Artigo 2º, que

traz o conceito coletivo de consumidor, bem como pelas disposições dos artigos 17 e 29 da

Lei Protetora.

Consumidor padrão é, portanto, nos termos do artigo segundo do Código de

Consumo, “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como

destinatário final.” O consumidor destinatário final, segundo majoritária doutrina pátria, é

aquele destinatário final fático e econômico do bem, o que utiliza o serviço ou adquire o

produto para uso próprio ou familiar, não havendo utilização profissional.18

Contudo, numa sociedade massificada, onde o sistema de produção e distribuição de

produtos se faz em série, não se pode valorizar exclusivamente o indivíduo per se, na

medida em que, ao lado dos conflitos individuais, despontam os conflitos coletivos,

fazendo-se necessária a proteção, por parte do legislador, da coletividade de consumidores.

Assim é que o Código de Defesa do Consumidor, para proteger o consumidor

universalmente considerado, traz o conceito de consumidor coletivo, primeiro conceito por

equiparação, que vem estampado no parágrafo único do Artigo 2º de CDC, nos seguintes

moldes: “Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis,

que haja intervindo nas relações de consumo.”19

O terceiro conceito de consumidor, segundo por equiparação, consta do artigo 17 do

Diploma Legal em análise. Trata-se do terceiro vítima do acidente de consumo, este

decorrente do defeito do produto ou do serviço.20 Já o Artigo 29 dispõe que “Para os fins

deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas

determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”. Os capítulos mencionados são o

18 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Para maiores detalhes acerca

dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço, incluindo as teorias maximalista e finalista, que pregam, em suma e respectivamente, uma maior ampliação e restrição do conceito de destinatário final presente na norma ora analisada, ver MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002 e DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

19 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. A proteção desse ente coletivo se dá através do recurso à legitimação extraordinária, conforme exigido pelo 6º artigo do Estatuto processual Civil, que reza que: “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”.

20 Importante observar, entretanto, que para haver terceiro, vítima do acidente de consumo, necessário se faz uma relação anterior que seja caracterizada como relação de consumo, apta, portanto, a ser albergada pelo microssistema protetor do consumidor. Assim é que um terceiro que padece danos em decorrência de um defeito do produto lançado no mercado, por exemplo, poderá invocar o CDC se a relação existente entre o adquirente deste produto e o seu fabricante se qualificar como relação de consumo. Se, ao revés, de relação empresarial se tratar, o diploma legal a ser invocado pelo terceiro vítima será diverso do CDC.

39

V, que versa sobre as práticas contratuais e se subdivide na oferta, publicidade, práticas

abusivas, cobrança de dívidas e bancos de dados e cadastros de consumidores, e o VI, que

trata da proteção contratual, cujas seções são as das cláusulas abusivas e contratos de

adesão.21

A figura do fornecedor, por sua vez, vem conceituada no artigo 3º do CDC, que

considera fornecedor:

[...] toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.22

Para ser considerado fornecedor de produtos ou serviços no mercado de consumo, o

CDC exige seja o mesmo profissional, que “desenvolva atividades” ou preste serviços.

Produto, de acordo com seu §1º, é “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”.

Trata-se de elástico conceito, que não reclama maiores esclarecimentos.23 Já o serviço vem

definido no §2º do mesmo artigo como “qualquer atividade fornecida no mercado de

consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e

securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. 24

21 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. Abra-se aqui um parêntese para esclarecer que

apenas pode ser considerada consumidor por equiparação, nos termos do artigo 29 do CDC, a pessoa que for vulnerável. Trata-se de uma interpretação finalista aprofundada do conceito de consumidor, apta a trazer para o campo das relações de consumo uma relação que, de início, era considerada meramente empresarial, como se pode conferir através do seguinte julgado: RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70023522337. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Odone Sanguiné. Julgado em 04 jun. 2008.

22 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 23 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 24 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. Diga-se, por oportuno, que a doutrina sabiamente

exclui da relação de consumo os serviços públicos próprios, igualmente denominados uti universi, eis que prestados pelo Estado a todos os cidadãos, indistintamente, numa relação de visível subordinação destes para com aquele. Exemplo típico de serviço público próprio é o de segurança pública, que não pode ser delegado a terceiros, sendo, normalmente, remunerado por imposto, espécie do gênero tributo. Trata-se, portanto, de relação submetida ao Código Tributário Nacional e não ao Código de Defesa do Consumidor. Já a prestação dos serviços públicos próprios ou uti singuli pode ou não ser classificada como relação de consumo, sendo qualificada como tal se não remunerada por taxa, a exemplo dos serviços públicos essenciais de telefonia, energia elétrica, água encanada e tratada. Tratar-se-á, todavia, de relação tributária e não de consumo, submetida, portanto, ao Código Tributário Nacional, se a remuneração desse tipo de serviço público for compulsória, através de outra espécie do gênero tributo, como a taxa. Para maiores detalhes sobre o assunto consultar DONATO, Maria Antonieta Zanardo, op. cit., 1993, p.116-132. Igualmente oportuno esclarecer que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.591, de 2001, que tramitou no Supremo Tribunal Federal, mais conhecida como ADIn dos Bancos, que pretendia excluir do artigo 3º do CDC a expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária” e, assim “livrar” as instituições bancárias, financeiras, de crédito e securitárias de serem consideradas como fornecedoras de serviços, felizmente não logrou êxito. Para maiores esclarecimentos ver NUNES, Rizzatto. A ADIn dos bancos terminou: a vitória da cidadania. Disponível em: <http://www.saraivajur.com.br>. Acesso em: 25 maio 2008.

40

2.2.2 Princípios e direitos básicos no Código de Defesa do Consumidor (CDC)

O Código do Consumidor destinou seu Capítulo II à Política Nacional das Relações

de Consumo, cujo objetivo é o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito

à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria

de sua qualidade de vida, primando, de igual forma, pela transparência e harmonia das

relações de consumo, reconhecendo, acima de tudo, a vulnerabilidade do consumidor não

profissional no mercado de consumo, por entender ser o mesmo a parte mais frágil da

relação, nos termos do artigo 4º, III.25

O Código do Consumidor consagrou alguns princípios informadores das relações de

consumo, que devem ser observados inclusive pelas leis específicas posteriores ao CDC,

dentre os quais sobressaem os princípios da transparência, da boa-fé e do equilíbrio (ou

equivalência). Constantes do caput do artigo 4º, e no seu inciso III, respectivamente, os

princípios da transparência, do equilíbrio e da boa-fé, além de estarem intimamente ligados

entre si, uma vez que não existe transparência sem boa-fé e, sem esta, não há equilíbrio

entre as partes, são o alicerce da Lei do Consumidor e, por conseguinte, da proteção do

vulnerável, deles decorrendo outros princípios, além de alguns dos direitos básicos do

consumidor, cujo rol repousa no artigo 6º desse Diploma Legal.26

A boa-fé nos termos do CDC não é a clássica boa-fé subjetiva, que exige ausência de

conhecimento da violação do direito por parte do sujeito, mas boa-fé objetiva, que exige a

observância de regras de conduta por parte do sujeito da relação de consumo, quer dizer,

exige “[...] o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e

lealdade, a fim de estabelecer o equilíbrio das relações de consumo. Não o equilíbrio

25 Discorrendo sobre o tema, Cláudia Lima Marques reconhece três tipos de vulnerabilidade: a técnica, que

ocorre quando o “[...] comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto à sua utilidade, o mesmo ocorrendo em matérias de serviços. [...]”, de forma que o consumidor não detém domínio algum sobre a produção dos produtos ou sobre a prestação do serviço em aquisição; a vulnerabilidade jurídica ou científica, onde predomina a “[...] falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia [...]” e a vulnerabilidade fática ou sócio-econômica, “[...] onde o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor que por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe sua superioridade a todos que com ele contratam [...]”. MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.270-273.

26 Cláudia Lima Marques entende que o princípio da transparência é o novo princípio básico norteador das relações de consumo, cuja “[...] idéia central é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor. [...]”. Para ela, “[...] Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo.” MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.594-595.

41

econômico, [...], mas o equilíbrio das posições contratuais. [...]”, conforme anota Rizzatto

Nunes.27

Aliás, para Paulo Valério Moraes, “[...] a expressão ‘boa-fé’ possui importância

muito maior do que a de um mero conceito jurídico, sendo, verdadeiramente, um princípio,

uma diretriz a ser seguida quando da interpretação das normas e também da sua

concretização.” Mas não é só, para ele:

A boa-fé objetiva traduz a necessidade de que as condutas sociais estejam adequadas a padrões aceitáveis de procedimento que não induzam a qualquer resultado danoso para o indivíduo, não sendo perquirido da existência de culpa ou de dolo, pois o relevante na abordagem do tema é a absoluta ausência de artifícios, atitudes comissivas ou omissivas, que possam alterar a justa e perfeita manifestação de vontade dos envolvidos em um negócio jurídico ou dos que sofram reflexos advindos de uma relação de consumo.28

Por tudo isso, Cláudia Lima Marques entende que o princípio da boa-fé objetiva traz

em si alguns deveres anexos, que devem ser observados pelos protagonistas das relações de

consumo, quais sejam: o dever anexo de informar, que “[...] é ‘anexo’ a toda a relação

contratual, acompanhando-a do nascimento à morte total, não se esgotando na fase pré-

contratual.”, haja vista serem as informações “[...] fundamentais para a decisão do

consumidor [...]”, interferindo inclusive na sua liberdade de escolha; o dever anexo de

cooperação, “[...] dever (leia-se, obrigação contratual) de colaborar durante a execução do

contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva. [...], vez que “cooperar é agir com

lealdade e não obstruir ou impedir.” e o dever de anexo de cuidado, que “[...] tem por fim

preservar o co-contratante de danos à sua integridade [...]”, seja pessoal, moral ou

patrimonial. Ausente a boa-fé, base das relações de consumo, certamente, registre-se, não

existirá equilíbrio entre as partes contratantes, tampouco equivalência entre obrigações e

prestações decorrentes da avença.29

Já Guilherme Fernandes Neto aponta outros princípios norteadores, dentre eles o da

proporcionalidade e o da equidade das relações de consumo. Para este autor, o princípio da

proporcionalidade surgiu no direito administrativo, enveredou pelo direito constitucional e

atingiu o direito do consumidor, que o consagrou. Isto porque, ainda segundo o mesmo

autor, a “Lei Magna adotou a justiça social como base para a ordem econômica, [...].” e, de

27 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto, op. cit., 2000, p.533. O novel Código Civil, de igual forma, adotou

expressamente o princípio da boa-fé objetiva como informador dos contratos, dispondo em seu art. 422 que “os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé. BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.

28 MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.200. 29 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.187-198.

42

acordo com as regras hermenêuticas, “[...] forçoso é convir que a defesa do consumidor

recebeu a carga constitucional da justiça social, na qual se subsume o princípio da

proporcionalidade.”, eis que, nos termos do artigo 4º, III, do Código de Consumo, as

relações de consumo “[...] devem ser harmônicas, o que se dá em razão do equilíbrio, que é

a consubstanciação do princípio da proporcionalidade.” E é “[...] justamente a

proporcionalidade nas relações de consumo que possibilitará alcançar a justiça social e,

ipso facto, como antecedente lógico, a justiça contratual.” Ademais, ainda na ótica de

Guilherme Fernandes Neto, há diversos dispositivos na Lei Protetora que retratam o

princípio da proporcionalidade, a exemplo, dentre outros, dos artigos 6º, V, 39, I e IV, 42,

51, IV, § 1º, II e III, e § 2º, 52, § 2º e 53, caput e § 2º.30

No que diz respeito à equidade, importante de logo esclarecer que o Código de

Defesa do Consumidor a utiliza em duas acepções distintas, com consequências diversas,

como explica Guilherme Fernandes Neto, que assim se pronuncia:

Existem duas acepções distintas de eqüidade, das quais o legislador usou mão no diploma normatizador das relações de consumo: a primeira, constante do art. 7º, caput, e a segunda, no art. 51, IV, ambos do CDC. O primeiro dispositivo (art. 7º, caput) é princípio básico de todas as relações de consumo; o segundo é a positivação do princípio dentro das relações incoadas pelos contratos de consumo, com força normativa e sancionadora. [...] Em surgindo conflito em qualquer das espécies da relação de consumo, deverá o magistrado utilizar-se de juízo equitativo, moldando a norma ao caso concreto e evitando que, com a aplicação do CDC, venha a cometer injustiça. Na segunda hipótese, o legislador conferiu à equidade força diversa da prevista para o gênero da relação de consumo, ou seja, difere da previsão do art. 7º, pois enquanto neste se visualiza a simples previsão legal da eqüidade, para possibilitar ao magistrado a sua utilização, no art. 51, IV, o desrespeito a ela macula a cláusula do contrato de consumo – seja ou não de adesão – nulificando o dispositivo contratual, conceituando-o como abusivo.31

Dos princípios albergados pela Lei Protetora decorrem direitos básicos do

consumidor, constantes dos incisos de seu 6° artigo, dos quais merecem destaque: dever de

informação; liberdade de escolha; igualdade nas contratações; proteção contra práticas e

cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; efetiva prevenção e

reparação de danos; e a facilitação da defesa dos direitos do consumidor, inclusive com a

inversão do ônus da prova em seu benefício.

30 FERNANDES NETO, Guilherme, op. cit., 1999, p.68-73 e 77-81. 31 Ibid., 1999, p.77 e 80-81. Importante esclarecer que, por guardar importante enunciado, merece o 7° do CDC ser

transcrito na íntegra: “Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.” BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.

43

O dever de informação do fornecedor ao consumidor é amplo e deve ocorrer

previamente à contratação, através de informações adequadas, verdadeiras, claras e

precisas, vez que decorre do princípio da transparência. Ademais, constitui-se o princípio

da informação uma das pilastras do Código de Consumo, que também assegura liberdade

de escolha e igualdade nas contratações, estas entendidas da maneira mais ampla possível,

pois devem encampar não apenas a liberdade de escolha dos produtos e serviços dispostos

no mercado, mas igualmente liberdade de escolha, por todas as partes contratantes, do

conteúdo da avença, além de englobar tanto a igualdade de tratamento para todos os

consumidores como a igualdade das partes envolvidas no contrato: fornecedor e

consumidor. Tudo para que se possa alcançar a exigida harmonia das relações de consumo

(artigo 4º, caput).

As práticas contratuais, nas quais se situa a proteção contra as práticas no fornecimento

de produtos e serviços e a proteção contratual, onde são tratadas as cláusulas abusivas e os

contratos de adesão, serão objeto do capítulo seguinte, no qual também se discorrerá sobre o

contrato, este importante instrumento de circulação de riquezas. Destaque-se que o direito de

propriedade está indissociavelmente ligado ao contrato, instrumento cuja finalidade mor é

permitir a distribuição de riquezas, especialmente a aquisição de produtos de consumo, como

é o caso do veículo automotor, muitas vezes adquirido através do contrato de alienação

fiduciária em garantia, tema específico desta dissertação.

3 LIMITES CONSTITUICIONAIS INCIDENTES NA CONTRATAÇÃO

No presente capítulo abordar-se-ão o direito de propriedade e o contrato, como

direitos fundamentais do cidadão estabelecidos pelo artigo 5º da Carta Republicana de

1988, cabendo-lhes cumprir a função social que lhes é inerente. No caso da alienação

fiduciária em garantia, espécie de contrato largamente utilizado, envolve ela a transferência

de um bem de propriedade do alienante (devedor fiduciante) para o credor (credor

fiduciário) como garantia do pagamento da dívida contraída, gerando para este a chamada

propriedade fiduciária.

3.1 Propriedade

Antes de se adentrar no tema específico deste trabalho – alienação fiduciária de

veículo automotor, relativamente ao consumidor inadimplente – entende-se necessário

tecer considerações acerca da propriedade e do contrato, temas que se encontram

umbilicalmente ligados, sendo o contrato o instrumento por excelência que permite a

difusão da propriedade privada, fazendo circular as riquezas na sociedade. Ademais, o

contrato, por caminhar lado a lado com o direito de propriedade, acaba desfrutando de sua

história e evoluindo juntamente com este.1

1 No mesmo sentido Paulo Valério Moraes afirma que “[...] não poderia haver propriedade sem a liberdade de

gozá-la, de dispor e, principalmente, de transferi-la por intermédio do contrato, ficando evidenciado, desta forma, a íntima vinculação entre o contrato e a propriedade.” MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.194. Sobre propriedade, a história do direito de propriedade e propriedade na Idade Média, na Idade Contemporânea e pós-Revolução Francesa consultar VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v.5, p.152; ; GUIDIO, Jorgina de Fátima Marcondes. A evolução do conceito de propriedade. Revista Argumentum Jure, Mato Grosso do Sul: FACSUL, v.2, n.2, p.105-120, jul./dez. 2003, p.112-118 e BARONI JÚNIOR, Eraldo. O direito de propriedade e suas limitações. Unesc em Revista, Espírito Santo: Centro Universitário do Espírito Santo, v.8, n.17, p.49-59, jan./jun. 2005; LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2004; ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003 e VENOSA, Sílvio de Salvo. Artigos 1196-1368. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). Código Civil comentado: direito das coisas, posse, direitos reais, propriedade. São Paulo: Atlas: 2003, p.19-533.

45

A princípio entendido como direito absoluto e imprescritível, o direito à propriedade

particular foi alçado à categoria de cláusula pétrea, como direito fundamental à propriedade

privada assegurado pela Constituição de 1988, desde que cumpra sua função social. Razão

de ser da sociedade e centro das relações em torno das quais giram os interesses dos

homens, a propriedade2 desperta ambições e gera conflitos das mais variadas espécies e,

por isto, sempre necessitou de regramento jurídico.

3.1.1 Conceito de propriedade

O direito de propriedade foi inicialmente compreendido como uma relação entre uma

pessoa e uma coisa, relação esta de caráter absoluto, natural e imprescritível. Só depois é

que se entendeu que não poderia haver relação jurídica entre uma pessoa e um objeto, posto

que relação jurídica apenas ocorre entre pessoas. Assim, o direito de propriedade passou a

ser entendido como uma relação entre um indivíduo, que era o sujeito ativo, e um sujeito

passivo universal, composto de todas as outras pessoas que não eram donas do objeto em

pauta, que tinham que respeitá-lo, passando a ser o direito de propriedade, como assinala

André Tavares: “[...] em síntese, o direito subjetivo de exploração de um bem que todos os

demais integrantes da sociedade devem respeitar [...].” Isto porque numa sociedade com

fundamento na propriedade, impõe-se o reconhecimento e o respeito da propriedade pelo

não proprietário.3

Percebe-se ainda nos dias atuais o caráter demasiado civilista que alguns autores

emprestam ao conceito de propriedade, considerando-a direito real fundamental absoluto,

não alcançando “[...] a complexidade do tema, que é resultante de um complexo de normas

jurídicas de Direito Público e de Direito Privado, e que pode interessar como relação

2 O termo “propriedade” vem do latim “proprietas”, de “proprius”, a significar a qualidade do que é próprio, o

que pertence a alguma pessoa, indicando a relação jurídica de apropriação de um determinado bem que pode ser corpóreo ou incorpóreo. GONÇALVES, Carlos Roberto, op. cit., 2006. v.5, p.206. Este autor, aliás, seguindo o Código Civil, define propriedade como sendo “[...] o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha.” O Código Civil pátrio, contudo, limita-se a disciplinar as relações civis respeitantes à propriedade. Uso, gozo e disposição são unicamente os atributos ou faculdades inerentes à propriedade. Ibid., 2006, v.5, p.206-207. Interessante e digna de nota é a lição de Caio Mário, que assim se manifesta sobre o conceito de propriedade: “[...] a propriedade mais se sente do que se define, à luz dos critérios informativos da civilização romano-cristã. A idéia de ‘meu e teu’, a noção do assenhoramento de bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de cumprimento ou do desenvolvimento intelectual. Não é apenas o homem ou o business man que a percebe. Os menos cultivados, os espíritos mais rudes, e até crianças têm dela a noção inata, defendem a relação jurídica dominial, resistem ao desapossamento, combatem o ladrão. Todos ‘sentem’ o fenômeno propriedade.” PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.89.

3 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.475.

46

jurídica e como instituição jurídica”, conforme ensina José Afonso da Silva (grifos no

original). É que o regime jurídico da propriedade tem fundamento na Constituição, não se

podendo subordiná-lo exclusivamente ao direito civil, em detrimento das regras de direito

público, especialmente as de direito constitucional, que, em primeiro lugar, disciplinam a

propriedade:

Esse conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade denota que ela não pode mais ser considerada como um direito individual nem como instituição do Direito Privado. Por isso deveria ser prevista apenas como uma instituição da ordem econômica, como instituição de relações econômicas, como nas Constituições da Itália (art. 42) e de Portugal (art. 62). É verdade que o art. 170 inscreve a propriedade privada e a sua função social como princípios da ordem econômica (incs. II e III). Isso tem importância, porque, então, embora prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. (Destaques no original).4

3.1.2 Função social da propriedade na Constituição de 1988

Por ser imprescindível ao desenvolvimento das sociedades capitalistas de produção,

as Constituições sempre conservaram o direito à propriedade particular, alterando apenas

seu conteúdo, hoje com função social definida. A propriedade é um direito primário ou

fundamental que não se encontra nem acima nem abaixo de nenhum outro direito

fundamental, não sendo sagrada como afirmava a declaração de 1789.5 A limitação do

direito de propriedade para que a mesma cumpra uma função social se justifica porque a

propriedade individual precisa coexistir harmoniosamente com direitos alheios, de igual

natureza, bem como porque o interesse público é maior e mais importante que o individual,

devendo ser igualmente protegido pelo poder público.

No período contemporâneo, o direito de propriedade, que era essencialmente

individualista, passa a ter uma feição social. Além disto, seu caráter absoluto, como

assevera José Afonso da Silva, apenas limitado à proporção que também fosse garantido 4 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2006, p.270-271. Para Rodrigo Xavier Leonardo, pode-se perceber “[...] que a

alocação da propriedade dentre os direitos e garantias fundamentais – bem como dentre os princípios da ordem econômica –, colore este instituto com um status diverso do individualismo próprio ao direito subjetivo absoluto, preconizado no século XVIII e XIX.” (Itálico no original). LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de uma contextualização entre a Constituição Federal e o novo Código Civil. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo: Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v.1, n.1, p.271-289, 2004, p.278.

5 A íntegra da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 consta da obra de Fábio Konder Comparato, rezando seu artigo 17 que: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente verificada, o exigir de modo evidente, e sob a condição de uma justa e prévia indenização.” COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.159-160.

47

aos demais indivíduos o exercício de seus direitos, foi sendo vencido desde o emprego da

teoria do abuso do direito.6 No Brasil, a função social da propriedade apareceu

primeiramente na Constituição de 1934, reaparecendo na de 1946, sendo mantida pela de

1969. Contudo, foi a Constituição Federal de 1988 que a inseriu no âmbito dos direitos e

garantias fundamentais, conferindo-lhe status de cláusula pétrea, mantendo-a também entre

os princípios da ordem econômica, que pretende “assegurar a todos existência digna,

conforme os ditames da justiça social.”, nos termos do artigo 170, caput.7

Dada a existência de mais de um sujeito proprietário protegido juridicamente, o

Direito aparece nessa relação, impondo-lhes novos deveres e responsabilidades perante a

sociedade, para trazer um resultado vantajoso a esta. Diga-se de início que o conteúdo da

função social da propriedade está ligado ao trabalho que nela é desempenhado e o modo

como esse trabalho é realizado, traduzindo-se enfim na utilização do bem pelo dono8. Os

bens de produção, ou seja, aqueles destinados ao desempenho de uma atividade econômica,

a propriedade urbana, a agrária, os bens culturais e os ambientais, sem dúvida, são bens

capazes de servir tanto aos interesses individuais como aos sociais.

Não se perca de vista, entretanto, que o direito de propriedade ainda tem caráter

individual e que essa função social, que autoriza desapropriações e até expropriações, não

pode chegar ao ponto de trazer insegurança jurídica aos cidadãos. Acentue-se, portanto,

que esse caráter dúplice da propriedade, ao mesmo tempo individual e social, deve ser

interpretado levando em conta a unidade axiológica da Constituição, como um todo

uniforme e coerente, que impõe a harmonização dessas duas características de que desfruta

a propriedade.

Passa-se agora a tecer algumas considerações sobre o contrato, esse importante

instrumento propagador da propriedade.

6 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2006, p.272. 7 Sobre o constitucionalismo brasileiro e o direito de propriedade nas constituições do Brasil ver FERREIRA,

Pinto. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.43-67 e 105-114. Consultar ainda BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006a, p.7-45 e CLARK, Sarah Fernanda Pereira, op. cit., 2003, p.157-168.

8 Para Giselda Hironaka, a função social é inerente ao conceito mesmo de propriedade, quando escreve que: “A função social, como qualidade inerente ao conceito de propriedade, visa a adaptar este direito aos interesses maiores de toda a coletividade, além da figura singular do proprietário.” HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p.103.

48

3.2 Contrato

O contrato, enquanto instrumento de circulação de riquezas, é imprescindível ao

desenvolvimento da sociedade. Sua origem, como a da propriedade, é tão remota que

alcança a antiguidade, tanto que o 7º artigo do Código de Hamurabi faz expressa menção a

esse importante instrumento, nos seguintes termos: “Se alguém, sem testemunhas ou

contrato, compra ou recebe em depósito ouro ou prata ou um escravo ou uma escrava, ou

um boi ou uma ovelha, ou um asno, ou outra coisa de um filho alheio ou de um escravo, é

considerado como um ladrão e morto.”9

Neste sentido Sheila Leal afirma que “O contrato, em diferentes momentos da

história da humanidade, e assumindo diferentes formas e finalidades, sempre esteve

presente no cotidiano da vida das pessoas como instrumento jurídico imprescindível à

satisfação de suas necessidades.”10 Por nascer da realidade social, o contrato, ensina

Theodoro Júnior, “[...] é instituto jurídico que se amolda sempre à ideologia dominante no

Estado a cuja organização econômica instrumentaliza.[...].”11 Desta forma, uma sociedade

mais voltada ao individualismo terá uma visão mais liberal de contrato enquanto uma

sociedade mais voltada ao social terá uma concepção mais social deste instrumento.

3.2.1 Conceito de contrato

A ideia de contrato está intrinsecamente ligada à ideia de vontade das partes

contratantes. Poderosa fonte de obrigações, o contrato é definido por Álvaro Villaça “[...]

como a manifestação de duas ou mais vontades, objetivando criar, regulamentar, alterar e

extinguir uma relação jurídica (direitos e obrigações) de caráter patrimonial.” Certo é que

Villaça não olvida da existência de contratos que não versem sobre direitos patrimoniais,

mas faz alusão este autor a contrato em “[...] seu sentido restrito, nas relações de direito

econômico.”12

9 CÓDIGO DE HAMURABI. Cultura Brasil. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org>. Acesso em: 18 jul. 2008. 10 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via internet. São

Paulo: Atlas, 2007, p.57. 11 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.37; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor:

a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.7.

12 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.23.

49

Sílvio Rodrigues conceitua contrato como “[...] uma fonte de obrigação, visto que

gera, para cada um dos contratantes, o mister de se desincumbir de um dever assumido, sob

pena de responder pelo inadimplemento [...].”13 Cláudia Lima Marques vê o contrato como

o negócio jurídico por excelência, cujos efeitos são não apenas permitidos como, em

princípio, protegidos pelo Direito. São palavras suas:

É o negócio jurídico por excelência, onde o consenso de vontades dirige-se para um determinado fim. É ato jurídico vinculante, que criará ou modificará direitos e obrigações para as partes contraentes, sendo tanto o ato como seus efeitos permitidos e, em princípio, protegidos pelo Direito.14

O contrato é, portanto, espécie de negócio jurídico, e este, por sua vez, enquadra-se

na categoria de ato jurídico, que tem por finalidade adquirir, resguardar, transferir,

modificar ou extinguir direitos.15 A validade do negócio jurídico, entretanto, nos termos do

artigo 104 do Código Civil de 2002, requer agente capaz, objeto lícito, possível,

determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.16

Mas não basta à validade do negócio jurídico o preenchimento dos requisitos

objetivos exigidos pelo novel Código Civil. Exige-se igualmente a conformação do

conteúdo e da execução da avença aos direitos fundamentais consagrados na Lei Suprema.

Nessa senda, manifesta-se Cristiano Schmitt nos seguintes termos: “[...] A validade de

negócios jurídicos, por exemplo, está condicionada aos direitos fundamentais [...].”17

Assim, a capacidade do agente constitui condição necessária à validade do negócio jurídico

porque apenas de pessoa capaz pode emanar uma vontade livre de vícios. Como tal, a

autonomia da vontade é em sua conformação constitucional precípua.

13 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.2, p.3. 14 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.38. 15 Ensina Álvaro Villaça que “Em sentido amplo (lato), o ato jurídico engloba o negócio jurídico. Isso porque, no

negócio jurídico, as partes interessadas, ao manifestarem sua vontade, vinculam-se, estabelecem, por si mesmas, normas regulamentadoras de seus próprios interesses.” AZEVEDO, Álvaro Villaça, op. cit., 2004, p.18.

16 Pedro Arruda França lembra que existe exceção à regra da capacidade civil, eis que “[...] menor incapaz, pela idade, pode celebrá-lo como v.g., na compra e venda a balcão, com pedido verbal do comprador; e o de transporte, bastando que o menor em caso tal faça o pedido e obtenha a pequena mercadoria ou passe na roleta, pagando o preço, nascendo em qualquer caso o vínculo entre as partes [...].” Quer dizer, portanto, que vale o negócio jurídico firmado por agente absolutamente incapaz, em razão de sua idade, apenas quando é o mesmo de pequena monta e de execução instantânea, ou seja, aqueles cuja execução se dá num momento único. FRANÇA, Pedro Arruda. Prática dos contratos: doutrina, jurisprudência (casos concretos). Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.5.

17 SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.101.

50

3.2.2 Princípios contratuais antes e depois da Constituição de 1988

Antes de se abordar os princípios contratuais especificamente, cumpre esclarecer que

quando se fala em princípios contratuais antes e depois da Constituição Federal de 1988

não se quer dizer que antes do advento da Carta Magna tenha havido determinados

princípios que hoje, após sua promulgação, não existam mais. Busca-se apenas chamar a

atenção para o fato de que a interpretação dos princípios contratuais sofreu alteração ao

longo da história, representando a Carta Republicana de 1988 um verdadeiro divisor de

águas nesse tocante, haja vista que, por se tratar de documento de cunho eminentemente

social, acabou por provocar uma diferente interpretação desses princípios, antes entendidos

como princípios de ordem exclusivamente individual. A Carta Constitucional de 1988

termina, portanto, por assim dizer, infiltrando-se e iluminando o caminho a ser percorrido

pelos demais ramos do direito.

Enquanto fonte de obrigações, aplicam-se aos contratos os princípios norteadores das

relações obrigacionais, dentre os quais se destacam os seguintes: autonomia da vontade,

liberdade contratual, força obrigatória do contrato, relatividade subjetiva do contrato,

equivalência material, boa-fé objetiva e função social do contrato.18 A autonomia da

vontade constitui o núcleo da concepção tradicional de contrato, dela decorrendo não

apenas o princípio da força obrigatória do pacto, que faz lei entre as partes,

consubstanciado no brocardo jurídico pacta sunt servanda, bem como o princípio da

relatividade subjetiva, que limita o conteúdo do pacto às partes dele participantes, que, em

pé de igualdade, emitiram sua vontade. Tudo, conforme assinala Rodolfo Pamplona Filho,

no intuito de:

[...] garantir um mínimo de segurança entre os contratantes, pois, ao disporem livremente de sua vontade e, consequentemente, de seu patrimônio, as partes estabelecem obrigações que devem ser cumpridas, sob pena de total subversão e negação do instituto do negócio jurídico.19

Desta forma, salvo raríssimas exceções, o acordo de vontades não poderia ser

alterado pelo Poder Judiciário, posto que intangível. Esta liberdade contratual, conforme 18 O novel Código Civil assim dispõe: “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos

antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.

19 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Esboçando uma teoria geral dos contratos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.682, 18 maio 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 19 jul. 2008.

51

ensina Cláudia Lima Marques, está intimamente ligada à autonomia da vontade, vez que

consiste em pressuposto dessa vontade, fonte por excelência da obrigação:

Como se observa, mesmo nesta exposição alternativa do dogma da liberdade contratual, este aparece intrinsecamente ligado à autonomia da vontade, pois é a vontade, que na visão tradicional, legitima o contrato e é fonte das obrigações, sendo a liberdade um pressuposto desta vontade criadora [...].20

Lembra Rodolfo Pamplona Filho que o princípio da liberdade contratual envolve três

modalidades distintas de liberdade contratual, quais sejam: a liberdade de contratar. Vale

dizer, de decidir celebrar ou não um negócio jurídico; a liberdade de escolher a pessoa com

quem contratar, ressalvada a existência de monopólio; e, finalmente, a liberdade de escolha

do conteúdo da avença. Destarte, ao Estado cabia apenas proteger a vontade do indivíduo,

que tinha autonomia para se obrigar, sem intervir no conteúdo do contrato, o que apenas

poderia ocorrer em casos excepcionais, como vício da vontade ou ocorrência de fatos

imprevisíveis, que impedissem o devedor de cumprir sua parte no acordo.21

Era assim nos Códigos Civis de outrora, influenciados pela Revolução Francesa,

cujos postulados valorizavam o indivíduo, a liberdade e a propriedade privada, marcos do

Código Civil francês de 1804 (o “Código de Napoleão”) que, conjugando as influências

individualistas e voluntaristas da época com as ideias do Direito Natural Moderno,

representou uma:

[...] codificação, que influenciaria grande parte dos ordenamentos jurídicos do mundo, coloca como valor supremo de seu sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu art. 1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para aqueles que as fizeram.22

Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, ocorrida durante o século

XX, o Estado passou a se fazer presente nas relações entre particulares, regulando-as, o que

representa uma relativização do princípio da autonomia da vontade. É o que se denomina

dirigismo contratual, que representa, sem sombra de dúvidas, a passagem de uma

concepção clássica ou tradicional do contrato para o que se vem chamando de uma

concepção moderna ou social desse instrumento, como anota Sheila Leal:

Seguindo a tendência evolutiva da própria ciência jurídica, os contratos passaram por transformações profundas, a ponto de serem apontadas ‘duas diferentes concepções sobre o direito contratual: a clássica ou liberal e a moderna ou social’. A concepção clássica, do período das grandes codificações (século XIX), reflete as exigências do Estado Liberal,

20 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.49. 21 PAMPLONA FILHO, Rodolfo, op. cit., 2008, on line. 22 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2003, p.46.

52

arraigado ao modo de produção predominantemente agrário. A concepção moderna surge como resposta às novas necessidades emergentes dos novos modelos de produção, o industrial e o pós-industrial, marcantes na sociedade de consumo.23

Nesse contexto, o Estado, reconhecendo que os indivíduos nem sempre contratam de

igual para igual, razão pela qual o princípio da autonomia da vontade não pode ser levado

às últimas consequências, passa a editar normas específicas reguladoras dos contratos,

inclusive, no caso brasileiro, através do Código Civil de 2002 e do Código de Defesa do

Consumidor que, iluminados pela “Constituição Cidadã” de 1988, cuja diretriz é o

princípio da dignidade da pessoa humana, consagraram princípios voltados à proteção do

interesse social, como os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da

equivalência material, embora a este último não se faça alusão expressa, como observa

Rodolfo Pamplona Filho:

Embora não explicitado expressamente como os princípios anteriores, tal princípio se encontra consagrado em diversos dispositivos, consistindo na idéia básica de que, nos contratos, deve haver uma correspondência, a saber, equivalência, de obrigações entre as partes contratantes. [...] No CC-2002, tal princípio é claro, por exemplo, na disciplina do contrato de adesão (arts. 423/424), no reconhecimento positivado da resolução por onerosidade excessiva (a cláusula ‘rebus sic stantibus’ implícita em todo contrato, agora consagrada nos arts. 478/480) e, na disciplina genérica do negócio jurídico, na anulabilidade da avença por força do vício da lesão (art. 157), em que, embora exija um elemento subjetivo (primeira necessidade ou inexperiência), não se tem positivada a exigência de um dolo ou aproveitamento.24

Sobre o assunto, pertinente é a lição de Cláudia Lima Marques, que afirma: “[...] O

CDC se propõe a restringir e regular, através de normas imperativas o espaço antes

reservado totalmente para a autonomia da vontade, instituindo como valor máximo a

eqüidade contratual.” Aliás, a própria Lei do Consumidor estabelece no §4º do artigo 51 ser

facultado ao consumidor ajuizar ação para declarar nulidade de cláusula contratual que

contrarie o disposto no código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre

direitos e obrigações entre as partes.25

Ninguém pode duvidar que deve haver uma equivalência de obrigações entre as

partes contratantes até porque o contrato nada mais é que um instrumento que possibilita

uma troca entre duas ou mais pessoas, troca essa que deve ser equilibrada, sob pena de, se

não for, causar um prejuízo a qualquer das partes contratantes. Ou seja, o equilíbrio entre

prestação e contraprestação é da essência do próprio instrumento de contrato. Lembre-se 23 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos, op. cit., 2007, p.45-46. 24 PAMPLONA FILHO, Rodolfo, op. cit., 2008, on line. 25 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.153.

53

que o princípio da equivalência material ou do equilíbrio contratual representa verdadeira

flexibilização do princípio da obrigatoriedade dos pactos, que determina fazer o contrato lei

entre as partes, de forma que este princípio cedeu “[...] lugar ao princípio do equilíbrio das

prestações contratuais, que, em última análise, objetiva a preservação da justiça

contratual”, conforme leciona Sheila Leal.26

Quanto ao princípio da boa-fé, o Código de Defesa do Consumidor o consagra

expressamente como princípio geral informador das relações de consumo no seu artigo 4º,

III, e como princípio informador específico do contrato, nos termos do artigo 51, IV, que

considera nula de pleno direito a cláusula contratual que seja incompatível com a boa-fé,

hoje entendida não mais na forma subjetiva, mas na objetiva, impondo deveres anexos a

serem observados pelos participantes das relações de consumo, conforme mencionado no

capítulo anterior.27

Mas não é só, hodiernamente, tal qual ocorre com a propriedade, reconhece-se que o

contrato cumpre importante função na sociedade, tanto que o artigo 421 do Código Civil de

2002 estabelece que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função

social do contrato.”28 É que, conforme alerta Paulo Valério Moraes, em decorrência do

contexto histórico, econômico, político e social, “passou a existir vinculação direta do conceito

de propriedade aos valores humanos, disso resultando um forte sentido social”, de forma que

“O contrato, como instrumento ligado de forma umbilical ao domínio dos bens e serviços,

inevitavelmente sofreu as mesmas alterações, [...].”29 O contrato, então, deve perseguir os

valores consagrados pela Constituição atual da República, primando pela dignidade da pessoa

humana e pelos valores sociais do trabalho, além de contribuir para o desenvolvimento do país,

com a consequente redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade livre,

justa e solidária, conforme consta dos artigos 1º e 3º da Lei Fundamental. 30

26 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos, op. cit., 2007, p.66-67. 27 Mônica Bierwagen afirma, com acerto, referir-se a boa-fé subjetiva “[...] a aspectos internos dos sujeitos, ao

estado de desconhecimento ou compreensão equivocada acerca de determinado fato.” BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.52.

28 BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008. 29 MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.195. 30 Nesse sentido Márcio Casado assevera que “[...] o contrato, em primeiro lugar, deve respeitar o princípio da

dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º. III, da CF.” Assim, segundo esse autor, “[...] o contrato servirá ao destinatário das normas constitucionais sempre que atender e prezar a dignidade destas pessoas. Logo, não se pode admitir que um contrato seja o motivo da escravidão financeira da pessoa humana, desde que ela, de boa-fé, tenha dirigido sua conduta no desenvolvimento do processo obrigacional.” CASADO, Márcio Mello. Proteção do consumidor de crédito, bancário e financeiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2006, p.19.

54

Mas não é só: de acordo com esses valores, o contrato deve ser interpretado pelo

operador do direito que, no escólio de Márcio Casado, “[...] tem que buscar, como valor

inicial de seu processo interpretativo do relacionamento obrigacional, a pessoa humana”,

que, assim prossegue: “[...] Agindo ela de acordo com a boa-fé, como norma de conduta,

dela são pinçados os fundamentos para a solução do problema, visto que é a ela que o

direito tutela em primeiríssimo lugar.”31 Nesse mesmo caminho, Cláudia Lima Marques

alerta para o fato de o contrato possuir dupla função econômica, encerrando uma troca de

valores e não meramente de objetos (concepção objetiva do contrato), senão veja-se:

[...] uma dupla função econômica do contrato: instrumentalizar a livre circulação das riquezas na sociedade e ao mesmo tempo indicar o valor de mercado de cada objeto cedido (sua nova ‘utilidade’). Evolui-se, assim, para considerar o contrato menos um instrumento de troca de objetos, mas sim uma troca de valores. 32

Assim, conforme Paulo Valério Moraes, “[...] o contrato não pode ser aceito como

uma manifestação isolada do contexto social, em que dois polos executam um negócio

jurídico de que dispõem plenamente”, eis que, ainda segundo este autor:

O massificado mercado de consumo atual obriga a uma nova e atualizada maneira de observar a vida moderna, evidenciado que ficou que o contrato é um mecanismo fundamental para a circulação rápida e eficaz das riquezas, as quais retornam para a sociedade sob a forma de salários ou investimentos na realização das políticas públicas do Estado.33

Sobre a função social do contrato, diga-se que este instrumento deve, antes de tudo,

sobrepor-se aos interesses meramente individuais para atender aos ditames do interesse

coletivo, conforme lição de Giselda Hironaka:

A doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matizes, importando em limitar institutos de conformação nitidamente individualista, de modo a atender aos ditames do interesse coletivo, acima daqueles do interesse particular, e importando, ainda, em igualar os sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada um deles cabe seja igual para todos.34

Desta forma, nem o conteúdo nem o cumprimento da avença podem ficar à mercê do

arbítrio, que se convencionou chamar vontade autônoma das partes contratantes, cabendo

ao Estado, através da lei e em nome do interesse social, limitar a autonomia da vontade das

31 Ibid., 2006, p.20. 32 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.47. 33 MORAES, Paulo Valério Dal Pai, op. cit., 1999, p.201. Nesse tocante, lembra Paulo Khouri que embora o

Código Civil de 2002 albergue expressamente o princípio da função social do contrato, o mesmo já era previsto de forma implícita no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. KHOURI, Paulo Roberto Roque Antônio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.32.

34 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, op. cit., 2000, p.101.

55

partes envolvidas sempre que houver necessidade. Trata-se de uma nova e mais social

concepção do contrato, atribuindo-se à lei o papel de limitadora e verdadeira legitimadora

da vontade, como preleciona Cláudia Lima Marques, que finaliza dizendo que: “A lei

passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no

vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.”35

Não se pode perder de vista, como alerta Paulo Khouri, que o limite do dirigismo

contratual é o interesse social: “O que se observa hoje é que o Estado se tem limitado a

intervir nas relações contratuais de olho tão-somente no interesse social. Este é o limite

entre o dirigismo contratual e a liberdade de contratar, que continua sendo impulsionada e

movimentada pelo mercado.” Pode, portanto, o juiz, quando instado a tal, intervir no

conteúdo da avença, modificando-a para permitir o cumprimento da obrigação por parte do

consumidor quando a ocorrência de fatos supervenientes torne sua prestação

desproporcional, conforme autorizado pelo artigo 6º, V, do Código de Defesa do

Consumidor, ou declarar a nulidade de alguma cláusula contratual, nos termos do artigo 51

desse mesmo Diploma Legal. Afinal de contas, o consumidor contratante é titular de

direitos fundamentais, o que é suficiente para justificar a intervenção do Judiciário no

controle do conteúdo do contrato firmado com o consumidor na forma autorizada pela lei.36

Justifica-se a adoção do princípio da função social do contrato, segundo Rodolfo

Pamplona Filho, porque “O contrato, embora aprioristicamente se refira somente às partes

pactuantes (relatividade subjetiva), também gera repercussões e - por que não dizer? -

deveres jurídicos para terceiros, além da própria sociedade, de forma difusa.”37 Diga-se

ainda que o conteúdo da função social do contrato se relaciona com o fim que é dado ao

instrumento e a utilização que dele se faz.

O que foi dito até aqui, entretanto, não autoriza a conclusão de que o contrato não

obriga os contratantes ou que o Judiciário pode, sem justa razão, modificar o conteúdo da

avença. Ainda vigem os princípios da autonomia da vontade, da liberdade contratual, da

força obrigatória do pacto e da relatividade subjetiva do instrumento, pois é necessário um

mínimo de segurança jurídica a todos. Tais princípios apenas foram relativizados no

decorrer do tempo e o contrato perdeu a qualidade de intocável que lhe foi atribuída pelo

35 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.175. 36 KHOURI, Paulo Roque Antônio, op. cit., 2002, p.34. 37 PAMPLONA FILHO, Rodolfo, op. cit., 2008, on line.

56

liberalismo econômico para sofrer a intervenção do Estado sempre que o interesse social o

exigir.

3.2.3 Práticas e cláusulas abusivas na Lei do Consumidor

Afigura-se imprescindível a proteção ao consumidor dispensada pela lei contra

cláusulas e práticas abusivas nas relações de consumo, pois abusos indiscutivelmente há

nessas relações, a prejudicar a parte mais frágil tanto no plano extracontratual como no

plano contratual. Neste sentido, práticas abusivas “[...] são condutas, comissivas ou

omissivas, praticadas por fornecedores, nas quais estes abusam de seu direito, violam os

direitos dos consumidores ou infringem de alguma forma a lei.”38 Já para Herman

Benjamin, “Prática abusiva (lato sensu) é a desconformidade com os padrões

mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor. [...].”Ainda segundo esse autor,

“[...] as práticas abusivas podem ser contratuais (aparecem no interior do contrato), pré-

contratuais (atuam na fase do ajustamento contratual) e pós-contratuais (manifestam-se

sempre após a contratação). [...].” (Itálicos no original).39

Dentre as práticas abusivas exemplificativamente elencadas pelo artigo 39 da Lei

Protetora, chamam a atenção os incisos IV e V, que rezam respectivamente “prevalecer-se da

fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou

condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços” e “exigir do consumidor

vantagem manifestamente excessiva.” Com relação ao inciso IV, diga-se que, apesar de o

Código de Consumo dispensar ao consumidor a qualidade de vulnerável, há dentre os

vulneráveis uns mais que os outros. Trata-se de uma vulnerabilidade especial, grupo em que

se enquadram os consumidores que, em razão de sua situação, tornam-se presas mais fáceis

nas mãos dos fornecedores, a exemplo dos idosos, pessoas doentes, pobres, crianças etc.,

consumidores que, sem dúvida, necessitam de uma maior proteção por parte do Estado.40

Quanto à vantagem manifestamente excessiva, o conceito deve ser preenchido pelo

magistrado à luz do caso concreto. O Código do Consumidor presume exagerada, entre

outras, a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que

pertence, restrinja direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de 38 BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do

Consumidor: principiologia, conceitos, contratos. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.145. 39 BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcelos. Art.29-45. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001,

p.215-440, p.319-320. 40 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.

57

tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual ou se mostrar excessivamente

onerosa para o consumidor, considerados a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse

das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso, como se pode observar no artigo 51, §

1º, I a III, o que pode auxiliar o juiz a delinear, no caso concreto, vantagem manifestamente

excessiva.41 Acresça-se que a presunção de exagero constante do CDC é meramente

relativa, eis que admite prova em contrário por parte do fornecedor, conforme explicações

de Nélson Nery Júnior.42

No que condiz com as cláusulas abusivas43, são as mesmas reprimidas pelo Código de

Consumo, que as sanciona com a nulidade de pleno direito, nos termos do artigo 51 do

CDC, cujo rol é apenas exemplificativo, cabendo ao juiz verificar, à luz do caso concreto, a

abusividade ou não de determinada cláusula contratual.

O sistema de nulidade absoluta adotado pelo CDC garante que a nulidade da cláusula

pode ser arguida por qualquer interessado por meio de ação direta (ou reconvenção), defesa

(contestação) ou ainda de ofício pelo juiz em qualquer tempo ou grau de jurisdição, vez que

sobre a mesma não incide a preclusão. Também é imprescritível a ação de que pode se valer o

interessado para declaração de abusividade de tais cláusulas, que não desfrutam de eficácia

alguma, dada a sua condição de absolutamente nulas. Por esta razão, a sentença que a declara,

que é constitutiva negativa, possui efeitos ex tunc, como ensina Nélson Nery Júnior.44

Sobre a questão, oportuna é a lição de Guilherme Fernandes, que lembra que os atos

nulos existem no mundo fático, razão pela qual não se pode confundir o plano da validade

com o da existência ou eficácia. Veja-se:

[...] Não se pode confundir o plano da validade com o plano da inexistência ou da ineficácia, porque os atos nulos existem no mundo fático e devem assim ser declarados, mesmo porque a lei lhes nega efeitos; os atos anuláveis existiram e produziram efeitos até o momento de sua desconstituição, assim, precisa sua juridicidade ser desconstituída [...].45

Mesmo que a clausula abusiva seja considerada pelo Código de Consumo como nula

de pleno direito, não se pode olvidar que a mesma, como aduz Guilherme Fernandes Neto,

“[...] é curável, não pela convalidação – porque não pode ser convalidada – mas pode ser

41 Ibid., 2008. 42 NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.441-570, p.533. 43 Nelson Nery Júnior conceitua cláusula abusiva como “[...] aquela que é notoriamente desfavorável à parte mais

fraca na relação contratual [...]”, ou seja, ao consumidor. Referidas cláusulas, diga-se, ferem de morte o princípio da boa-fé objetiva, inviabilizando a necessária transparência nas relações de consumo. Ibid, 2001, p.441-570, p.501.

44Id. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.441-570, p.504-505. 45 FERNANDES NETO, Guilherme, op. cit., 1999, p.167.

58

modificada, quando cessarão os efeitos da sanção, porque simplesmente o vício foi

extirpado. [...].” Nesse momento, ainda segundo este autor, o sistema de nulidade adotado

pelo CDC difere do sistema de nulidade absoluta consagrado pelo Código Civil porque

“[...] a nulidade de uma cláusula (ilícita) do diploma civil é insanável [...].”46 Isto porque o

§2º do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que “a nulidade de uma

cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar

dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.” Trata-se do

princípio da conservação do contrato; assim, o contrato apenas poderá ser resolvido no caso

de acarretar ônus excessivo ao fornecedor ou ao consumidor.47

Dessa forma, uma vez declarada a nulidade de determinada cláusula, cabe ao juiz

promover a integração do contrato, o que apenas poderá ocorrer por intermédio das normas

que compõem o ordenamento jurídico pátrio, excetuada a hipótese prevista no artigo 6º, V,

do Diploma Legal Protetor do Consumidor, que permite ao juiz a modificação das

cláusulas contratuais excessivamente onerosas ou que estipulem prestações

desproporcionais. Esse o ensinamento de Cláudia Lima Marques, que assim se expressa:

A integração aqui é a dos efeitos do negócio, agora não mais previstos expressamente em virtude da invalidade da cláusula, recorrendo o juiz a normas supletivas ou dispositivas do ordenamento jurídico brasileiro. As nulidades absolutas, como as do art. 51 do CDC, caracterizam-se por não serem sanáveis pelo juiz, passando a relação contratual, naquele aspecto, a ser regida pela lei. [...] O art. 6º, V, do CDC abre uma exceção no sistema da nulidade absoluta das cláusulas, permitindo que o juiz revise ou ‘modifique’, a pedido do consumidor, as ‘cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou que sejam excessivamente onerosas’ para ele em razão de fatos supervenientes.48

Dito isto, convém mencionar as cláusulas contratuais previamente tachadas de nulas

pelo Código de Consumo, que interessam mais de perto ao presente trabalho, as quais estão

dispostas nos incisos II, IV, X, XII e XV do artigo 51 desse diploma legal, cujo caput traz

o seguinte enunciado: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais

relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:”, incisos sobre os quais se tecerão

46 FERNANDES NETO, Guilherme, op. cit., 1999, p.166-167. 47 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. Segundo Cláudio Belmonte, é o princípio da

conservação do contrato, aliado ao princípio da proporcionalidade, que permite a aplicação do instituto da redução do negócio jurídico, ou seja, “[...] a manutenção do mesmo ajuste firmado pelas partes, consagrando a autonomia privada, circunscrevendo a parte inválida de seu conteúdo, independentemente de tratar-se de nulidade ou anulação, pelo fato de a mesma ter ido de encontro a determinadas normas jurídicas ou a princípios gerais consagrados no respectivo ordenamento jurídico. [...].” BELMONTE, Cláudio. Proteção contratual do consumidor: conservação e redução do negócio jurídico no Brasil e em Portugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.21-22 e 29.

48 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.780-781.

59

brevíssimos comentários.49Configura cláusula abusiva, portanto, tirar do consumidor a

opção de reembolso de quantia já paga nos casos previstos no próprio Diploma Legal ora

em estudo (art. 51, II, CDC). É o caso, por exemplo, do disposto no artigo 53 do CDC, que

assim dispõe:

Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.50

Diga-se aqui que a jurisprudência pátria vem entendendo que, nos moldes do artigo

53 do CDC, a devolução das prestações pagas cabe inclusive quando é do próprio

consumidor inadimplente, e não do credor, a iniciativa do ingresso de ação judicial.

Ademais, o direito à resolução do contrato cabe exclusivamente ao consumidor, jamais ao

fornecedor. Igualmente abusiva é a cláusula que estabelece obrigações iníquas, abusivas, a

ponto de colocar o consumidor em desvantagem exagerada ou que seja incompatível com a

boa-fé ou equidade (art. 51, IV, CDC).51 Analisando o dispositivo do Artigo, Nélson Nery

Júnior entende que o Código de Defesa do Consumidor adotou implicitamente uma

cláusula geral de boa-fé. Demais, na verificação da abusividade da cláusula inquinada,

cumpre ao magistrado pesquisar se as partes agiram com boa-fé para a conclusão do

negócio, avaliando ainda se a cláusula está de acordo com a equidade, senão veja-se:

A utilização da equidade, como técnica de julgamento no processo civil, é circunscrita aos casos autorizados por lei, segundo dispõe o art. 127 do CPC. A norma aqui analisada dá ao juiz a possibilidade de valoração da cláusula contratual, a fim de verificar se é ou não contrária à equidade e boa-fé. O juiz não julgará por equidade, mas dirá o que .está de acordo com a equidade no contrato sob seu exame.52

49 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 50 Ibid., 2008. 51 Apenas a título de exemplo, confiram-se os seguintes julgados: BRASIL. REsp Nº 871.421/SC – Santa

Catarina. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Sidnei Beneti. Julgado em 11 mar. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 8 ago. 2008; BRASIL. REsp Nº 437.607/PR – Paraná., Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Hélio Quaglia Barbosa. Julgado em 15 maio 2007. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 8 ago. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70021633748. Décima Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS. Relator: Sejalmo Sebastião de Paula Nery. Julgado em 26 jun. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 8 ago. 2008 e RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70024103046. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Isabel de Borba Lucas. Julgado em 17 jul. 2008. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 8 ago. 2008.

52 NERY JÚNIOR, Nélson, op. cit., 2001, p.441-570, p.513. No entender de Cláudia Lima Marques, os termos utilizados no inciso IV do artigo 51 do Código de Consumo são amplos e subjetivos “[...] por natureza, deixando larga margem de ação ao juiz [...]”, competindo ao “[...] Poder Judiciário brasileiro, concretizar, através desta norma geral, escondida no inciso IV do art. 51 do CDC, a almejada justiça e eqüidade contratual. [...].” (Destaques no original). MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.796.

60

É ainda vedado ao fornecedor, de maneira unilateral, ainda que indiretamente, a

variação do preço (51, X), bem como obrigar o consumidor ao ressarcimento dos custos de

cobrança de sua obrigação, sem que o mesmo direito lhe seja conferido contra o fornecedor

(51, XII). Por fim, é considerada abusiva a cláusula inserta em contrato de consumo que

esteja em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor (51, XV), disposição que,

para Nélson Nery Júnior, configura norma de encerramento, conferindo completude ao

sistema de nulidades de cláusulas abusivas adotado pela Lei de Consumo, a permitir que a

proteção do vulnerável extravase e seja igualmente conferida por outras normas constantes

do ordenamento jurídico pátrio. São suas palavras:

DESACORDO COM O SISTEMA DE PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR - Esta disposição configura norma de encerramento, que possibilita ao juiz ampla margem para integrar o conceito jurídico indeterminado e dizer o que significa ‘estar em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor’. Essa possibilidade e a dicção do caput do art. 51 - que, com a expressão ‘entre outras’, permite a consideração de outras hipóteses de cláusulas proibidas além das enumeradas na lei - fazem com que o sistema de cláusulas abusivas do CDC seja insuscetível de lacuna. O ‘sistema’ de proteção ao consumidor encerra conceito mais amplo do que o de um ‘Código’ de proteção do consumidor. Incluem-se no ‘sistema de proteção ao consumidor’ as disposições legais de proteção do consumidor em sentido estrito, bem como as relativas à proteção indireta do consumidor, como as leis de combate à concorrência desleal e leis antitruste. [...] (Itálicos no original).53

Antes de se encerrar esta parte, convém trazer à baila breve discussão sobre a

cláusula penal que, de acordo com Cláudia Lima Marques:

[...] é aquela cláusula teoricamente estimuladora da prestação, do cumprimento do contrato por impor uma pena em caso de inadimplemento parcial ou total ou em caso de mora, é a cláusula prefixadora da indenização, teoricamente compensatória do inadimplemento, também chamada de pena ou multa convencional, é pacto acessório estipulando multas ou penas para aquele que descumprir suas obrigações contratuais.54

É que a cláusula penal pode ser estipulada pelo fornecedor de forma desproporcional

ou irrazoável, de modo a impor excessiva onerosidade à parte mais frágil da relação, isto é,

ao consumidor, transformando-se assim em cláusula abusiva e, portanto, nula de pleno

direito, de acordo com o disposto no artigo 51, IV, da Lei de Consumo. Diz-se isto também

porque a cláusula penal, conforme leciona Cláudia Lima Marques, possui dupla função: uma

principal, de garantia de execução do contrato, uma secundária, de sanção da inexecução

ilícita da obrigação de garantia, além de uma terceira função apontada pela doutrina e pela

jurisprudência: de pré-fixação da indenização compensatória. Em suas palavras:

53 NERY JÚNIOR, Nélson, op. cit., 2001, p.441-570, p.532. 54 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.870

61

A cláusula penal ‘clássica’, como estamos aqui denominando-a, possui claramente uma dupla função. Em primeiro lugar, a função de garantia da execução do contrato e somente secundariamente, a função de pena, a sancionar a inexecução ilícita da obrigação de garantia. A doutrina e a jurisprudência brasileira sempre destacaram, porém, uma terceira função, qual seja a de prefixar a indenização compensatória. Daí ser impossível a sua cumulação com perdas e danos.55

O sistema de nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas abraçado pelo CDC,

portanto, tem como objetivo mor a busca da proteção da parte contratante vulnerável,

relevante principalmente na era dos contratos massificados, ou contratos de adesão, de que

se tratará a seguir.

3.2.4Limites aos contratos de adesão

Na ótica dada pelo CDC, o contrato de adesão é definido no artigo 54 como “[...] aquele cujas

cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas

unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa

discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”, razão pela qual se entende

desnecessária a clássica e inicial distinção entre contrato de adesão e contrato por adesão,

feita pela maioria dos autores que escrevem sobre direito do consumidor.56

Ressalta Carlos Alberto Bittar que o contrato de adesão nasceu por força do dirigismo

econômico e da concetração de capitais nas grandes empresas. Largamente utilizado pelos

fornecedores de produtos e serviços, especialmente os fornecedores de crédito, este 55 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.876. Ressalte-se, contudo, que o devedor moroso responde pela

atualização da moeda e pelos juros moratórios ainda que estes não tenham sido convencionados ou, quando o forem sem taxa estipulada ou forem provenientes de determinação legal, quando incidirá a taxa que viger para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional, nos termos dos artigos 389 e 406 do novel Código Civil, sendo ainda oportuno mencionar que referidos valores serão devidos cumulativamente com uma multa moratória de até 2% (dois por cento) do valor da prestação, conforme redação dada pela Lei n° 9.298, de 1º de agosto de 1996 ao §1º do artigo 52 do Código de Consumo, dispositivo que versa sobre concessão ou outorga de crédito ao consumidor. Essas as redações dos artigos 398 e 406, respectivamente, do Código Civil: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado” e “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008. Já o Código de Consumo dispõe no artigo 52 que “No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:”, trazendo seu primeiro parágrafo a seguinte redação: “As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação.” BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.

56 Discorrendo sobre contrato de adesão, Cláudia Lima Marques lembra que esse tipo de contrato predomina em quase todas as relações contratuais do despersonalizado e desmaterializado tráfico jurídico. Para ela, “Na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou e se desmaterializou. Os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam em quase todas as relações contratuais entre empresas e consumidores.[...]”. MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.52-53.

62

instrumento reduz a participação do consumidor à sua aceitação global, em bloco, do

conteúdo da avença:

Considera-se de adesão o contrato que, nascido por força dirigismo econômico e da concentração de capitais em grandes empresas, em especial nos campos de seguros, fïnanciamentos bancários, vendas de imóveis, de bens duráveis e outros, tem a participação volitiva do consumidor reduzida à aceitação global de seu contexto, previamente definido e impresso, em modelos estandardizados, com cláusulas dispostas pelos fornecedores ou resultantes de regulamentação administrativa, ou da sua combinação.57

Extrai-se de imediato do texto um dos principais atributos do contrato de adesão,

que é justamente sua padronização. Trata-se de um modelo estandardizado, cujo

conteúdo é previamente elaborado pelo fornecedor, sem qualquer intervenção do

futuro partícipe da relação, ou seja, do consumidor, a denunciar a “[...] ausência de

uma fase pré-negocial decisiva. [...]”, como ensina Cláudia Lima Marques.58

Convém esclarecer, com Nélson Nery Júnior, que o contrato de adesão não é um

novo tipo contratual, nem categoria autônoma de contrato, “[...] mas somente técnica de

formação do contrato, que pode ser aplicada a qualquer categoria ou tipo contratual,

sempre que seja buscada a rapidez na conclusão do negócio, exigência das economias de

escala.”59 Faz-se necessário destacar as características desse contrato que, no escólio de

Cláudia Lima Marques, são: “1) a sua pré-elaboração unilateral; 2) a sua oferta uniforme e de

caráter geral, para um número ainda indeterminado de futuras relações contratuais; 3) seu modo

de aceitação, onde o consentimento se dá por simples adesão à vontade manifestada pelo parceiro

contratual economicamente mais forte.”60

Em razão do contrato de adesão ser ambiente favorável à inserção de cláusulas

abusivas por parte do fornecedor, a Lei Protetora impõe algumas exigências a serem

observadas pelo mesmo, quais sejam: o contrato de adesão escrito será obrigatoriamente

57 BITTAR, Carlos Alberto. Direitos do consumidor: Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de

setembro de 1990). 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.61-62. 58 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.59. 59 NERY JÚNIOR, Nélson, op. cit., 2001, p.441-570, p.566. 60 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.60. As vantagens dos contratos de adesão apontadas por esta autora são

as seguintes: contratação rápida e facilitada, racionalização da transferência de bens de consumo na sociedade, possibilidade de previsão dos riscos por parte dos fornecedores e rapidez de sua adaptação a novas situações. Por outro lado, esse método de contratação é ambiente propício para a inclusão de cláusulas abusivas por parte do fornecedor. Ainda para esta autora, antes da adesão do consumidor não há contrato de adesão, mas simples “[...] oferta geral e potencial. O consentimento do consumidor, a sua adesão, é que provoca o nascimento do contrato, a concretização do vínculo contratual entre as partes.” MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.62, 64 e 65, sendo oportuno ressaltar que o artigo 424 do Código Civil de 2002 dispõe que “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.

63

redigido em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, para facilitar a

compreensão do conteúdo da avença pelo consumidor, a quem cabe, com exclusividade, a

opção de resolução do instrumento que contemple cláusula resolutória expressa, ressalvada

a disposição do §2º do artigo 53 do CDC. Ademais, as cláusulas contratuais que importem

limitação de direito do consumidor devem ser redigidas com destaque, a fim de que o

vulnerável imediata e facilmente as compreenda, conforme estabelecido nos §§2º a 4º do

artigo 54 do CDC, que também informa que a inserção de cláusula contratual no formulário

não altera a natureza de adesão do contrato (54, §1º).61

Mas não é só, o contrato, de adesão ou não, não obrigará o consumidor se não lhe for

dada a oportunidade de tomar prévio conhecimento do conteúdo ou se o contrato for

redigido de forma a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance pelo consumidor, nos

moldes do artigo 46 da Lei Protetora. Ademais, as cláusulas contratuais em qualquer

contrato de consumo serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, nos

termos do artigo seguinte do mesmo Diploma Legal.

Assim, é tarefa do fornecedor esclarecer e informar previamente o conteúdo do

instrumento ao consumidor, incluindo os ônus, encargos e riscos contratuais que o mesmo

apresenta, sob pena da inexistência de vínculo com o consumidor, conforme alerta Sheila

Leal, que reconhece que em muitos contratos – incluindo os bancários – falta um

consentimento esclarecido por parte do consumidor:

Ressalte-se que não é suficiente a leitura, pelo consumidor, do instrumento do contrato, incumbindo ao fornecedor o dever de esclarecê-lo e informá-lo previamente sobre o conteúdo do contrato, dirimindo dúvidas, alertando sobre os ônus e encargos contratuais e riscos, sob pena do contrato não criar vínculo contratual (artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor). É dever do fornecedor propiciar ao consumidor conhecimento detalhado e esclarecido de todos os direitos e deveres que decorrem do contrato, especialmente das cláusulas restritivas dos seus direitos, que devem vir redigidas em destaque (artigo 54, § 4a, do Código de Defesa do Consumidor), sob pena da não-obrigatoriedade em relação ao consumidor. Também, no artigo 52, aparece a exigência de informação prévia e adequada nos contratos de concessão de crédito. No dia-a-dia, quando da formação do vínculo contratual nos contratos de adesão, constata-se a falta de consentimento prévio e esclarecido, a exemplo dos contratos bancários, planos de saúde, seguro e outros, nos quais o consumidor, muitas vezes, sequer tem conhecimento do conteúdo contratual, não discute e não negocia os termos e as condições do contrato, limitando-se a aceitar em bloco as cláusulas uniformemente predispostas pelo fornecedor.62

No que diz respeito aos contratos que envolvam outorga de crédito ou concessão de

financiamento ao consumidor, há regras específicas a serem cumpridas pelos fornecedores, 61 Ibid., 2008. 62 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos, op. cit., 2007, p.72.

64

impostas pelo artigo 52, incisos e parágrafos do Código de Defesa do Consumidor. Desta

forma, é dever do fornecedor informar, dentre outros requisitos, prévia e adequadamente ao

consumidor sobre o preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional, montante

dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros praticada naquela relação, acréscimos

legalmente previstos, como valores a serem pagos pelos consumidores a título de tributo,

número e periodicidade das prestações e valor total a pagar, com e sem financiamento, pelo

consumidor, a quem é assegurado o desconto proporcional dos juros e demais acréscimos

em caso de liquidação antecipada, total ou parcial, do débito.63

Nestes termos, o Código de Defesa do Consumidor, afastando-se das amarras do direito

privado tradicional oriundos do liberalismo econômico, está cumprindo a missão constitucional

que lhe foi conferida, dispensando ao consumidor a mais ampla proteção e defesa.

63 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.

4 APLICABILIDADE DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

No presente capítulo, entrar-se-á no tema alienação fiduciária em garantia, contrato

que dá origem à propriedade fiduciária, que é direito real, eis que espécie do gênero

propriedade. Antes, contudo, de se falar da alienação fiduciária em garantia propriamente

dita, delimitar-se-ão os conceitos de negócio fiduciário e propriedade fiduciária, institutos

que precisam ser entendidos para que se possa responder adequadamente às questões

práticas que se apresentam no dia a dia.

4.1 Negócio fiduciário: conceito e validade

Renascido no direito moderno, o negócio fiduciário pode ser entendido como um tipo

de negócio jurídico inominado ou atípico em que as partes buscam alcançar uma finalidade

que não é a finalidade própria de transferência do negócio utilizado. Pontes de Miranda

assevera que “sempre que a transmissão tem um fim que não é a transmissão mesma, de

modo que ela serve a negócio jurídico que não é o da alienação àquele a quem se transmite,

diz-se que há fidúcia ou negócio fiduciário [...].” (Itálico no original).1

É, portanto, ínsita ao negócio fiduciário, como explica Luciano Penteado2, uma

relação de fidúcia, de confiança, entre as partes contratantes. Isto porque no negócio

fiduciário “[...] existe um aparente descompasso entre o ato realizado e o objetivo

perseguido [...]” e, por isso, valoriza-se a fidúcia, ou confiança, nesse tipo de negócio.3

1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983a, v.III,

p.115-116. Segundo Arnaldo Rizzardo: “[...] existem negócios que, embora tecnicamente visem certos e determinados fins, os quais aparecem externa ou ostensivamente, na verdade objetivam finalidades outras, maiores, mais importantes, que superam os elementos técnicos [...].”RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas: Lei n° 10.406, de 10.01.2002. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.462.

2 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.441. 3 PEREIRA, Hélio do Valle. A nova alienação fiduciária em garantia – Aspectos processuais. 2. ed.

Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p.27.

66

Para melhor entender o assunto, providenciais e dignos de transcrição são os exemplos

trazidos por Hélio Valle, quando discorre sobre negócio fiduciário:

Tal ocorrerá, por exemplo, se for doado um bem a terceiro, tencionando as partes que, podendo administrá-lo por certo tempo, possa o donatário obter o pagamento de dívida até então existente. Firma-se o compromisso segundo o qual, passado determinado período, a propriedade retorne à titularidade primitiva. Identicamente, haverá o negócio fiduciário se ‘A’ ceda crédito a ‘B’, permitindo que ele exija o pagamento do devedor ‘C’. ‘A’ e ‘B’ ajustam, entretanto, que oitenta por cento do resultado seja transferido para o primeiro - o qual fizera a cessão porque reconhecera que ‘B’ era mais astucioso, além de superiores as chances de êxito na cobrança, ainda que houvesse o deságio relativo à comissão em prol do cessionário. Nos dois exemplos, as partes poderiam recorrer a outros negócios. No lugar da doação, poderia ser feito simples arrendamento; em vez de cessão de crédito, bastaria a outorga de procuração. No fundo, não havia propriamente interesse na doação ou na cessão de crédito (ainda que ambos os atos tivessem sido reais e efetivamente praticados): buscava-se, respectivamente, pagar uma dívida e remunerar uma prestação de serviços. Ocorre que podem ser inconvenientes essas medidas: a) o proprietário (donatário) teria mais liberdade para gerir o negócio; b) o cessionário, apresentando-se como titular do direito, contaria com maior poder de persuasão ante o devedor.4

Pelos exemplos transcritos, nota-se que o negócio fiduciário é fruto do

inconformismo do homem, vez que, não se sujeitando o indivíduo exclusivamente a lançar

mão do leque de negócios jurídicos típicos existentes, incapaz de atender a todas as suas

necessidades, pode o mesmo criar negócio(s) jurídico(s) que esteja(m) mais próximo(s) de

atender a seus interesses.

Aqui, uma questão aflora: quais os limites de validade do negócio fiduciário? A

resposta, embora tenha causado e ainda cause tanta discussão nos campos doutrinário e

jurisprudencial, é simples e positiva, desde que o negócio fiduciário obedeça aos requisitos

exigidos pelo artigo 104 do Código Civil. Vale dizer: sejam os contratantes capazes,

persigam objeto lícito, além de possível e determinado ou, pelo menos, determinável e

adotem forma não defesa em lei para o ato.5 Não se confunde o negócio fiduciário com o

negócio jurídico simulado6. Tampouco pode aquele ser confundido com o negócio indireto,

4 Ibid., 2008, p.27. 5 Ao deixar de ser válido porque alvo de abusos capazes de lhe expulsar da esfera da licitude, o negócio jurídico

não pode mais ser chamado de negócio fiduciário. Nesse sentido, os ensinamentos de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, que consideram os negócios fiduciários “[...] válidos e sérios porque, adotados pelas partes no seu interesse próprio, de consecução de algum fim prático lícito, não afrontam a lei, não acrescentam indevidamente o patrimônio do fiduciário e não prejudicam direitos alheios”, razão pela qual “não podem ser confundidos com os negócios simulados [...].”RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Garantia fiduciária. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.28.

6 Sobre simulação, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho assim se manifestam: “Segundo noção amplamente aceita pela doutrina, na simulação celebra-se um negócio jurídico que tem aparência normal, mas que, na verdade, não pretende atingir o efeito que juridicamente devia produzir. É um defeito que não vicia a vontade do declarante, uma vez que este mancomuna-se de livre vontade com o declaratário para atingir fins espúrios, em detrimento da lei ou da própria sociedade [...].” (Destaques no roiginal). GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007b. v.I,

67

que, no entender de Oswaldo e Silvia Opitz, caracteriza-se pela realização do fim

econômico que as partes desejam. Ademais, “o negócio indireto tem por fim a realização

de um negócio real e não se funda na fidúcia.”7

Para Moreira Alves, ocorre negócio jurídico indireto “[...] quando as partes recorrem

a um negócio jurídico típico, sujeitando-se à sua disciplina formal e substancial, para

alcançar um fim prático ulterior [...], o qual não é normalmente atingido por meio desse

negócio [...].”8 De acordo com Ecio Perin Júnior9, existe negócio jurídico indireto “[...]

quando as partes recorrem a um negócio jurídico determinado para alcançar, consciente e

consensualmente, finalidades diferentes das que, em princípio, são típicas à sua disciplina

legal. Assim o negócio jurídico, através desse uso indireto, preenche novas funções.” Desta

forma, para ele, “o negócio jurídico indireto pode ser um negócio único ou resultar da

combinação de mais negócios, juridicamente distintos, embora economicamente conexos

[...].” Segundo Luciano Penteado:

O negócio indireto consiste em declaração negocial efetuada para obter fim oblíquo, diverso do típico e, ainda, diverso daquele que se declarou, sem que haja uma vontade oculta não manifestada socialmente. O fim indireto é declarado, mas obtém-se não através da declaração negocial em si, mas através da substância econômica da operação desempenhada. Assim, por exemplo, nas chamadas ‘renúncias translativas’, com a cláusula ‘em favor de’, nos autos de inventário, declara-se renúncia, mas o efeito é de doação. A doação, no caso, é indireta.10

Do exposto, compreende-se que há negócio jurídico indireto quando, por meio de um

negócio jurídico típico, as partes contratantes buscam alcançar finalidade diversa da

finalidade própria do negócio jurídico típico, mas igualmente lícita. Tudo para atender

melhor aos seus interesses, estes, via de regra, de ordem econômica.

Note-se que, diversamente do que ocorre com o negócio fiduciário, o negócio

indireto contém em si um negócio jurídico típico. Ademais, como observa Orlando Gomes,

p.371. Para Pontes de Miranda, o negócio fiduciário “não se confunde com o negócio jurídico simulado, porque o fim do negócio jurídico simulado foi querido, ao passo que, na fidúcia, se quer outro fim [...].” MIRANDA, Pontes, op. cit., 1983a, p.116.

7 OPITZ, Oswlado; OPITZ, Sílvia Carlinda Barbosa. Alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p.151.

8 ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.5. 9 PERIN JUNIOR, Ecio. O hedging e o contrato de hedge. Mercados futuros. Jus Navigandi, Teresina, ano 4,

n.41, maio 2000. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 26 ago. 2000. 10 PENTEADO, Luciano de Camargo, op. cit., 2008, p.440.

68

“[...] os negócios indiretos não constituem uma categoria jurídica, o que não ocorre com os

negócios fiduciários.”11

Alienação fiduciária em garantia e negócio fiduciário não se confundem. Importa

saber, contudo, se alienação fiduciária em garantia é ou não espécie de negócio fiduciário,

bem como se este instituto se origina ou não do negócio fiduciário de origem romana ou do

negócio fiduciário de origem germânica.

4.2 Conceito de alienação fiduciária em garantia

Orlando Gomes define alienação fiduciária, em sentido lato, como “[...] o negócio

jurídico pelo qual uma das partes adquire, em confiança, a propriedade de um bem,

obrigando-se a devolvê-la quando se verifique o acontecimento a que se tenha subordinado

tal obrigação, ou lhe seja pedida a restituição.”12 Para o autor, “[...] na alienação fiduciária

em garantia, também importa fundamentalmente o fator confiança, porquanto o alienante

permanece na posse do bem e se apresenta, aos olhos de todos, como seu proprietário, que

está a usá-lo. Se falta à confiança do financiador, deteriorando, por exemplo, o bem,

diminui a garantia” (destaque no original).”13

11 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p.26.

Semelhante o entendimento de Oswaldo e Sílvia Opitz quando afirmam “[...] que o negócio indireto não forma uma categoria própria a requerer uma disciplina específica [...].” OPITZ, Oswlado; OPITZ, Sílvia Carlinda Barbosa, op. cit., 1971, p.154.

12 GOMES, Orlando, op. cit., 1972, p.18. Caio Mário da Silva Pereira conceitua alienação fiduciária “[...] como a transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa, independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida.” (Itálico no original). PEREIRA, Caio Mário, op. cit., 2002, p. 273. Já Fábio Ulhoa Coelho entende por alienação fiduciária “[...] aquele negócio em que uma das partes (fiduciante), proprietária de um bem, aliena-o em confiança para a outra (fiduciário), que, por sua vez, se obriga a devolver-lhe a propriedade do mesmo bem nas hipóteses previstas em contrato [...].” Destaca ainda esse autor a natureza instrumental do instituto, vez que “[...] ela é sempre um negócio-meio, vocacionado a criar condição para a realização do negócio-fim pretendido pelas partes. A função econômica do contrato, portanto, pode estar relacionada à viabilização da administração do bem alienado, da subseqüente transferência de domínio a terceiros ou, em sua modalidade mais usual, à garantia do pagamento de dívida do fiduciante em favor do fiduciário. Ainda segundo Fábio Ulhoa Coelho, a alienação fiduciária é gênero do qual é espécie a alienação fiduciária em garantia. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: de acordo com o novo Código Civil e a nova Lei de Falências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v.3, p.148. Para Arnaldo Rizzardo, a alienação fiduciária em garantia é “[...] um negócio fiduciário de garantia pelo qual o devedor transfere a favor do credor a propriedade de uma coisa móvel, permanecendo ele com a posse, e colocando-se na posição de depositário.” RIZZARDO, Arnaldo, op. cit., 2007, p.464. Registre-se, por oportuno, que Moreira Alves, distinguindo alienação fiduciária em garantia do negócio fiduciário de origem romana e germânica e do trust receipt, acaba por concluir que a alienação fiduciária em garantia, negócio jurídico típico que é, “[...] com a estrutura que se lhe deu no direito brasileiro [...]”, embora se aproxime do chattel mortgage, “[...] é instituto próprio do direito brasileiro, em cujo sistema - do qual, à primeira vista, parece aberrar - se ajusta dogmaticamente, já prestando amplo benefício como instrumento jurídico adequado à segurança do crédito.” ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.28 e 32.

13 Ibid., 1972, p.19.

69

Se a confiança a que alude Orlando Gomes se adapta bem à época em que fora

proferida a frase acima transcrita, não consegue a mesma se adaptar, sem qualquer ressalva,

à atualidade. Isto porque a experiência demonstrou que, muito embora o bem seja dado em

garantia da dívida contraída pelo devedor, este, geralmente, contrai a dívida justamente

para poder adquirir o próprio bem ofertado em garantia no contrato de alienação de

fiduciária. Desta forma, em que pese aparecer o devedor, aos olhos de todos, como

proprietário do bem que, fiduciariamente, alienou ao credor, sua intenção, em regra, é usar

e cuidar desse bem com o zelo de quem dele possui a plena propriedade, bem como pagar o

que deve ao credor, pois, uma vez quitada a dívida, a propriedade da coisa volta, total e

plenamente, a compor seu patrimônio (do devedor). Daí, conclui-se, a impropriedade de

falar-se em diminuição de garantia.14

Acresça-se a isso o fato de a Lei n° 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais, ter

introduzido o instituto da alienação fiduciária em garantia no ordenamento pátrio para

incrementar o consumo. Tanto que o legislador ordinário se preocupou em admitir o

contrato de alienação fiduciária mesmo que o devedor ainda não tivesse a propriedade do

bem objeto do contrato (§3º do artigo 66), muito embora tenha, impropriamente, à posse se

referido. Tudo a deixar transparecer que o crédito obtido pelo devedor poderia

perfeitamente ser destinado à aquisição do bem que lhe serviria de posterior garantia da

dívida.15

A primeira questão a ser colocada quando se define alienação fiduciária em garantia

como um negócio fiduciário de garantia é saber se aquele instituto é realmente espécie de

negócio fiduciário. Conforme exposto anteriormente, o negócio fiduciário é negócio

jurídico atípico e lícito utilizado pelas partes para melhor atender aos seus interesses, vez

que nem sempre os negócios jurídicos típicos dispostos pelo ordenamento jurídico são,

nesse sentido, satisfatórios. Desta forma, não se pode, a rigor, considerar a alienação

fiduciária em garantia espécie de negócio fiduciário, mas apenas espécie de negócio

jurídico, mesmo que não tenha a mesma por fim a real transmissão da propriedade, mas

apenas dar o bem alienado em garantia da dívida contraída até o seu pagamento, quando

deverá a propriedade desse bem retornar ao patrimônio do devedor, eis que fora a alienação

14 Registre-se que na obra póstuma de Orlando Gomes é mantida a importância fundamental ao elemento

confiança com elação ao contrato de alienação fiduciária em garantia. GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Coordenado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.388.

15 Fala-se aqui da redação primeira do artigo 66, antes, portanto, do advento do Decreto-lei n° 911/69 e, por óbvio, da Lei n° 10.931/2004.

70

fiduciária em garantia expressamente prevista pelo ordenamento jurídico pátrio, dele

extirpando o fator confiança.

Nem por isso o devedor fiduciante está desprotegido pela lei, haja vista ter o domínio

do bem, de que desfruta da posse direta, resolvido em seu favor quando da quitação da

dívida contraída, voltando o mesmo a integrar seu patrimônio, independentemente da

conduta do credor, e poder inclusive reivindicar a coisa de terceiro, desde que, claro, tenha

havido o necessário registro do contrato ou a devida anotação no certificado de registro do

bem pela repartição competente para seu licenciamento, quando se tratar de contrato de

alienação fiduciária em garantia que envolva veículo automotor.16

Ademais, tratando-se de contrato de alienação fiduciária em garantia que envolva

relação de consumo, ou seja, celebrado entre um fornecedor e um consumidor, que constitui

precisamente o objeto deste trabalho, a “confiança” deve ser simplesmente encarada como

risco do negócio. Nada mais, nada menos, haja vista não poder o fornecedor escolher seu

parceiro contratual, que deve ser aquele que atenda, em abstrato, aos requisitos exigidos na

oferta do fornecedor ao público, quais sejam: aptidão à concessão de crédito e capacidade

para pagamento da dívida, sob pena de incorrer em discriminação.

Alienação fiduciária em garantia nada mais é, portanto, que o contrato através do qual

o devedor, também chamado fiduciante, transfere, ao credor, a propriedade de um bem

16 O novel Código Civil não exige, para constituição da propriedade fiduciária, o registro do contrato de

alienação fiduciária em garantia no cartório de registro de títulos e documentos quando o mesmo versar sobre veículo automotor, sendo suficiente a anotação da alienação fiduciária no certificado do registro na repartição competente para o licenciamento, como se depreende de seu artigo 1.361, 1°. Sobre a questão ver MARQUES, Eugênio Cícero. Registro de alienação fiduciária em garantia constituída através de cédulas. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.58, ago. 2002. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009; MACHADO, Renato Chagas. Considerações sobre a nova formalidade para constituição e formalização da alienação fiduciária de veículo automotor. Aplicabilidade do art. 1.361, § 1º, do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.1076, 12 jun. 2006. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009 e ARRUDA, Vanuza de Cássia. Alienação fiduciária de veículos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008. Esta última autora aponta o “[...] infeliz erro de redação [...]” do Código Civil quanto à abolição do registro do contrato de alienação fiduciária de veículo automotor no cartório de registro de títulos e documentos, o que fez em nome da vulnerabilidade do negócio jurídico de alienação fiduciária não registrado e em razão da alegada afronta à Lei n° 101/2000, “[...] que prevê sanção aos Estados e Municípios que abrirem mão de suas fontes de receitas, uma vez que é sabido que os Cartórios pagam diretamente aos cofres do Estado parte do valor cobrado ao usuário [...]”, ARRUDA, Vanuza de Cássia, op. cit., 2008, on line. Da referida posição discorda-se diametralmente, pois não se enxerga nem a vulnerabilidade do contrato de alienação fiduciária de veículo automotor não registrado no Registro de Títulos e Documentos, até porque é suficiente a anotação da alienação fiduciária no certificado do registro na repartição competente para o licenciamento, nem se entende terem os Estados e/ou Municípios aberto mão de receita neste caso especificamente. Sobre o assunto, ver recente decisão do Superior Tribunal de Justiça: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Registro em cartório do contrtato de alienação fiduciária de carro não oferece condição para transferir o bem. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/noticias>. Acesso em: 10 abr. 2008.

71

como garantia do pagamento da dívida perante este contraída, não a propriedade plena,

frise-se, mas a propriedade fiduciária, sendo o credor também denominado fiduciário.17

Assim entendido, o contrato de alienação fiduciária em garantia aqui estudado encerra, de

uma banda, obrigação de direito real, dada a transmissão da propriedade, ainda que

fiduciária, ao credor e, de outra banda, obrigação de cunho pessoal, em função da

obrigação de devolução da propriedade ao fiduciante pelo fiduciário, uma vez liquidada a

dívida por aquele.18

Largamente utilizado nas operações de crédito direto ao consumidor, o contrato de

alienação fiduciária em garantia tem por fim a transmissão da propriedade fiduciária ao

credor, que é imitido na posse indireta do bem, permanecendo o devedor na posse direta do

mesmo até a quitação da dívida contraída, oportunidade em que adquire a propriedade

plena do objeto (propriedade resolúvel).

4.3 Propriedade fiduciária

Propriedade fiduciária é uma espécie de propriedade que decorre do contrato de

alienação fiduciária em garantia, ou melhor, do registro desse instrumento no Registro de

Títulos e Documentos ou, em se tratando de veículo automotor – e esse é o caso do

presente estudo – do registro da propriedade fiduciária na repartição competente para o

licenciamento do bem, a quem incumbe fazer a anotação no certificado de registro do

mesmo, nos termos prescritos pelo § 1º do artigo 1361 do novel Código Civil.

17 Ressalte-se que o contrato de alienação fiduciária em garantia é um contrato solene ou formal, vez que a lei

determina assuma o mesmo forma escrita, por instrumento público ou particular, como se depreende do disposto no §1º do artigo 1361 do CC/2002.

18 Raphael Manhães aponta as seguintes características do contrato de alienação fiduciária em garantia: “(i) natureza real, isto é, existe a transferência da propriedade ou do direito do bem alienado e, junto com isto, todos os direitos e deveres inerentes a um direito real; (ii) natureza obrigacional, ou seja, se configura uma obrigação ao fiduciário (o adquirente) de, após cumprida a obrigação que deu causa à alienação fiduciária, restituir a propriedade do bem ao fiduciante (transmitente ou alienante); (iii) bilateralidade, por gerar obrigações tanto para o adquirente como para o alienante; (iv) onerosidade, porque o fim deste contrato é gerar ganhos para ambos os contratantes; (v) acessoriedade, uma vez que sua existência jurídica sujeita-se à uma obrigação a priori, cuja sorte lhe segue; e (vi) formalidade, porque há de constar sempre de instrumento escrito, seja público ou particular. MARTINS, Raphael Manhães. A alienação fiduciária em garantia de acordo com uma perspectiva civil-constitucional.” Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 425, 5 set. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 14 ago. 2008. No que diz respeito ao caráter acessório do contrato de alienação fiduciária em garantia, Moreira Alves é enfático ao dizer que “[...] é a alienação fiduciária contrato acessório daquele de que decorre o crédito que a propriedade fiduciária visa a garantir.” Já a propriedade fiduciária é “[...] direito acessório por natureza, porquanto se destina a assegurar a satisfação do direito de crédito, que é o principal [...].”ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.65 e 124. Lembre-se que o contrato de alienação fiduciária em garantia não se reduz às coisas móveis, haja vista a Lei nº 9514, de 20 de novembro de 1997, ter instituído a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, tema que não faz parte desta dissertação.

72

Constitui a propriedade fiduciária garantia real, haja vista destinar-se a garantir o

cumprimento de uma obrigação e, por ser “[...] constituída com a precípua finalidade de

assegurar o cumprimento de obrigação, que, em geral, corresponde à satisfação de um

crédito, que é o principal [...]”, trata-se a propriedade fiduciária de direito acessório, como

ensina Melhim Chalhub.19

De acordo com Moreira Alves, não é a propriedade fiduciária decorrente da alienação

fiduciária em garantia propriedade plena, como não é também propriedade limitada pela

aposição de condição resolutiva, eis que se qualifica como direito real típico, criado por lei

“[...] para atender, especificamente, a determinada necessidade de ordem econômica [...]”, e

apenas pode ser utilizado para fins de garantia exatamente como previsto pela lei. Mesmo

que a lei expressamente declare ser a propriedade fiduciária resolúvel, esta, por suas

particularidades, “[...] não se enquadra na categoria dogmática da propriedade resolúvel nos

moldes em que ela se apresenta disciplinada [...]” pelo Código Civil. Isto porque a condição

resolutiva da propriedade resolúvel propriamente dita, disciplinada nos artigos 1359 e 1360

do Código Civil de 2002, deriva exclusivamente da vontade das partes, conforme se pode

observar do artigo 121 desse mesmo Diploma Legal, enquanto a condição resolutiva da

propriedade fiduciária se dá ex vi legis. Diante dessa singularidade, razão assiste a Moreira

Alves quando afirma que a propriedade fiduciária “[...] é uma nova espécie de propriedade

limitada, a par daquelas [...] que o são, ou por terem ônus real, ou por serem resolúveis”,

sendo oportuno aclarar que o autor refere-se aqui à condição resolutiva propriamente dita, ou

seja, aquela decorrente exclusivamente da vontade das partes, quando a limitação à

propriedade fiduciária decorre da vontade do legislador. Para o autor:

[...] enquanto não se vence o débito, pendente condicione juris, o proprietário fiduciário não desfruta de todas as faculdades jurídicas que se contêm na propriedade plena, porque é da essência da propriedade fiduciária o desdobramento da posse, ficando o devedor como possuidor direto, e podendo usar e tirar os furtos da coisa alienada em garantia;

19 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Não se confunde,

portanto, a propriedade fiduciária “[...] com a propriedade que, em virtude do negócio fiduciário, se transmite ao credor com escopo de garantia (e que os autores, em geral, também denominam propriedade fiduciária), nem com qualquer dos direitos reais limitados de garantia (penhor, anticrese ou hipoteca) [...] pois, nestes, seu titular não é proprietário da coisa dada em garantia, ao contrário do que sucede com o titular da propriedade fiduciária, que tem, sobre a coisa que garante o pagamento do débito, direito de propriedade, embora limitado. Nos direitos reais limitados de garantia – o que não se verifica com a propriedade fiduciária – há, em regra, de um lado o proprietário da coisa dada em garantia (o que somente não ocorre se ela se tornar res nullis) e, de outro lado, o credor que é, apenas, titular do penhor, da anticrese ou da hipoteca (conforme o caso) sobre coisa alheia.” (Itálico no original). ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.113 e 116. Já quando se trata de negócio fiduciário, diga-se que ao credor é transmitida a propriedade plena e não limitada. Logo, aqui não se cogita de propriedade fiduciária.

73

ademais [...] o proprietário fiduciário somente pode transferir seu domínio se ceder ao adquirente o crédito cuja satisfação a propriedade fiduciária garante.20

Com efeito, a propriedade fiduciária vem disciplinada no Capítulo IX do novel

Código Civil, artigos 1361 a 1368, logo após o capítulo que trata da propriedade resolúvel,

a revelar a distinção feita pelo legislador ordinário entre a propriedade resolúvel

propriamente dita, típica, e a propriedade resolúvel decorrente do contrato de alienação

fiduciária em garantia.21 Assim, nos termos do Código Civil, é considerada fiduciária a

propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, para fins de garantia,

transfere ao credor e, uma vez constituída essa propriedade, dá-se o desdobramento da

posse, tornando-se o devedor possuidor direto do bem e depositário do mesmo até o

pagamento da dívida. Aqui, duas questões de imediato brotam: 1ª) O fato de ser o devedor

depositário do bem dado em garantia lhe sujeita à prisão como depositário infiel quando

não possui mais o bem e não pagou o valor devido ao credor? 2ª) O fato de haver apenas o

desdobramento da posse – e não da propriedade – impede o devedor de ofertar esse bem

em garantia de outra dívida?

À primeira das questões tentar-se-á responder em outro momento deste trabalho, mais

precisamente quando se abordar a possibilidade ou não da prisão civil do devedor

equiparado, por lei, a depositário. Já para responder ao segundo questionamento, impõe

antes analisar-se a posição que ocupa o devedor no contrato de alienação fiduciária em

garantia em relação à propriedade do bem dado em garantia da dívida contraída. Terá ele

mera expectativa de direito ou será titular de direito expectativo?

Antes de tudo, convém relembrar que, uma vez saldada a dívida pelo fiduciante, a

propriedade fiduciária retorna, plena, ao seu patrimônio. Isto torna o devedor, sem sombra

de dúvidas, titular de direito expectativo. Nessa senda, a opinião de Moreira Alves, para

quem o alienante (fiduciante) é titular de direito expectativo que se consubstancia na

recuperação da propriedade, que é também direito real. São suas palavras: “[...] o

expectante é titular de direito expectativo à aquisição da propriedade, que é o direito

20 Ibid., 1979, p.115, 120 e 121. 21 Esclareça-se, por oportuno, que também não se confunde a propriedade fiduciária oriunda do contrato de

alienação fiduciária em garantia nem com a compra e venda com reserva de domínio, nem com a compra e venda com pacto de retrovenda. Sobre o assunto, consultar DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v.3, p. 199 e 190. Apesar de haver mais de uma diferença entre os três institutos, é suficiente para diferenciá-los o simples fato de que na propriedade fiduciária serve a coisa para garantir o pagamento de uma dívida porque assim determina a lei. Já sobre os demais institutos pende condição resolutiva ou suspensiva porque acordado entre as partes.

74

expectado.” E continua: “seu direito expectativo à recuperação da propriedade é direito real

[...]”, eis que ambos, direito expectativo e direito expectado, possuem a mesma natureza.22

A Pontes de Miranda atribui-se não apenas a expressão direito expectativo, mas o

sentido que este possui e o que o diferencia da expectativa de direito. Para Pontes de

Miranda, o que diferencia o direito expectativo da expectativa de direito é a probabilidade,

a chance de concretização de um e de outro, vez que ambos ainda se situam no mundo dos

fatos. Isto porque “[...] todos os direitos ainda não adquiridos, ainda não formados, não

existem. Porém há diferença de probabilidade de virem a existir e, a juízo do titular futuro,

são bem próximos de existência, de surgimento, aqueles cuja formação só depende de ato

seu [...].”23

Para esse autor, o direito expectativo, malgrado ainda não tenha atravessado a linha

que dá acesso ao mundo jurídico, não é tão dependente do fático. Por isto, “[...] nem seria

possível pensar-se, razoavelmente, em direito expectativo, cabendo, ainda, tanta insegurança,

tanta dependência do fáctico [...].” Uma maior segurança traduzida pela maior proximidade

de ingresso no mundo jurídico diferencia o titular de direito expectativo de quem apenas

possui expectativa de direito, pois aqui, ao revés, espera-se totalmente no mundo fático,

vez que “expectativa é fato fora do mundo jurídico.”, só havendo “[...] expectativa simples

se o suporte fáctico não entrou no mundo jurídico [...].”24

22 ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.131. Com este entendimento, com razão, Moreira Alves rechaça

as teses de ter o alienante apenas expectativa de direito ou ser ele proprietário sob condição suspensiva, conforme afirma Orlando Gomes, nos seguintes termos: “[...] divisa-se, na alienação fiduciária em garantia, uma duplicidade, porquanto, por esse negócio jurídico, o fiduciário adquire uma propriedade limitada, sub conditionis, a denominada propriedade resolúvel. Ele passa a ser proprietário sob condição resolutiva e o fiduciante, que a transmitiu, proprietário sob condição suspensiva. Bem é de se ver que, nesta qualidade, o fiduciante não tem propriedade atual do bem transferido, mas simples expectativa de direito, a ser convertida em direito adquirido tão-logo pague a dívida [...].” (Itálicos no original). GOMES, Orlando, op. cit., 1972, p.38. Ora, a condição resolutiva inerente à propriedade fiduciária ocorre ex vi legis, o que a distancia da condição propriamente dita, que decorre exclusivamente da vontade das partes, não cabendo falar em condição suspensiva se a lei nada dispôs a esse respeito e, neste tipo de contrato, não há, nesse tocante, espaço para o arbítrio das partes. Nesse sentido, Pontes de Miranda esclarece que “condições e condiciones iuris são referentes a acontecimentos futuros. Mas, enquanto as condições, em sentido próprio, são postas pelo manifestante ou pelos manifestantes da vontade, as condiciones iuris são-no pela lei [...].” MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983b. v.V, p.111. E mais, pendente condição suspensiva, há igualmente direito expectativo e não apenas expectativa de direito, como ensina Pontes de Miranda, que assim se manifesta: “[...] o direito expectativo, em caso de condição suspensiva, é direito a adquirir, ipso iure, outro direito, ao se cumprir a condição [...].” Mas não é só, para este autor, “o direito expectativo é direito como outro qualquer. Não cabe dizer-se que é expectativa que se há de tratar como direito [...].” Ibid., 1983b, p.174. Ressalte-se, contudo, que mesmo não aludindo a lei à condição suspensiva que penderia sobre a propriedade do alienante, nada obsta que se lhe dê um tratamento semelhante, atribuindo ao fiduciante o direito expectativo à recuperação da propriedade plena do bem que deu em garantia da dívida contraída.

23 MIRANDA, Pontes de, op. cit., 1983b, p.282. 24 Ibid., 1983b, p.290, 291 e 296.

75

Ademais, ao contrário do que ocorre com o titular do direito expectativo, a quem

possui apenas expectativa de direito não assiste tutela jurídica alguma dessa expectativa,

manifestando-se Pontes de Miranda da seguinte forma:

[...] o titular do direito expectativo já tem ‘direito’, a tutela desse direito, a ação, quiçá exceções: a expectação é atitude que se enche, aí, de certeza, ou, pelo menos, de extrema probabilidade[...]. [...] [...] O suporte fáctico da expectativa é incompleto: no lugar em que haveria de estar certo fato, está, tão-só, a previsão de tal fato. Ao sujeito da expectativa, ao que, de fato, espera não está reconhecida nenhuma atividade, concernente ao que ele espera; nenhuma iniciativa, nenhuma tutela jurídica, se alguém nega ou se opõe ao que é previsão do expectante; nenhum ato de disposição, a respeito da expectativa, entraria no mundo jurídico. Não há credor, nem devedor; nem titular de gozo ou de uso, nem a totalidade dos sujeitos é adstrita a abster-se de negar a previsão, ou pretender que a eles, ou a qualquer deles, caiba a expectativa.[...]. (Itálico no original).25

Tudo isso leva Pontes de Miranda a concluir que: “a expectativa passa-se no foro

psíquico, individual, do promitente-comprador, titular do direito à compra-e-venda, e não

no mundo dos direitos, que é objetivo-subjetivo social,” vez que “as expectativas são,

certamente, expectativas de direitos; não são direitos [...].” Já o direito expectativo é aquele

“[...] que vai nascer, porque já existe direito [...]”. Basta, para tanto, a realização da

condição, quando nasce o direito expectado. O titular do direito expectativo, portanto, “[...]

tem direito a esperar [...].” Aqui existe vínculo. “[...] O titular do direito expectativo é pré-

titular do direito expectado [...].” (Itálicos no original).26

Desta forma, o titular do direito expectativo, no escólio de Pontes de Miranda, pode

dele dispor. O direito expectativo, então, “[...] é transferível, empenhável (caucionável),

arrestável, penhorável e herdável (salvo condição de vida); bem como suscetível de ser

garantido por fiança, hipoteca e penhor [...].”27 Tanto isso é verdade que o direito

expectativo ou direito eventual, veio tratado pelo artigo 121 do Código Civil de 1916 e pelo

artigo 130 da nova Lei Civil, nos seguintes termos: “ao titular do direito eventual, nos

casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a

conservá-lo”, convindo esclarecer que a diferença entre o artigo da lei de antanho e o da

atual consiste no fato desta ter acrescido a condição resolutiva, pois o artigo do Código

revogado fazia alusão apenas à condição suspensiva.28

25 Ibid., 1983b, p.297. 26 Ibid., 1983b, p.284, 285, 137, 135, 287 e 286. 27 Ibid., 1983b, p.175. 28 BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008.

76

Conclua-se esse questionamento, dizendo que o fato de o devedor, no contrato de

alienação de fiduciária em garantia, ter apenas a posse direta – e não a propriedade – do

bem cuja propriedade fiduciária foi transferida ao credor não o impede de oferecer seu

direito à propriedade desse bem em garantia de outra dívida, ofertando-o à penhora em

ação executiva, por exemplo.

Não se chegue, contudo, à apressada e insensata conclusão de que o devedor pode

prejudicar os direitos do credor fiduciário. Na realidade, isto jamais poderá ocorrer porque

o fiduciante não pode dar o próprio bem objeto de alienação fiduciária em garantia de outra

dívida, mas apenas o direito expectativo de que é titular, que é a propriedade. Assim, se o

devedor, em ação de execução fundada em dívida diversa da existente no contrato de

alienação fiduciária em garantia, faz menção de oferecer à penhora o bem sob o qual pende

a garantia fiduciária, está ele apenas ofertando seu direito expectativo à propriedade plena

daquele bem, a ser objeto de alienação posterior somente se e quando adquirida por ele a

propriedade plena do mesmo, restando os direitos do credor fiduciário devidamente

preservados, até porque permanece o fiduciante na posse do bem cujo direito expectativo à

propriedade futura fora à penhora ofertado.

Não é pacífico o entendimento dos Tribunais pátrios sobre a questão, quiçá porque

alguns ainda não se aperceberam da posição de titular de direito expectativo que desfruta o

fiduciante no contrato de alienação fiduciária em garantia, sendo perfeitamente possível a

penhora de direitos, nos termos do artigo 655, XI, do Código de Ritos, inciso acrescido

pela Lei n° 11.382, de 7 de dezembro de 2006.29

4.4 Legislação aplicável à alienação fiduciária

Antes de indicar, em breve síntese, a atual legislação aplicável à alienação fiduciária

em garantia30, pelo menos a que se relaciona mais diretamente ao teor desta dissertação,

convém ressaltar que o instituto da alienação fiduciária em garantia ingressou no

29 Sobre o assunto, veja-se as decisões: BRASIL. Recurso Especial n° 626.999/SC – Santa Catarina. Segunda

Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Julgado em 12 dez. 2006. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008; BRASIL. Recurso Especial n° 910.207/MG – Minas Gerais. Segunda Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Castro Meira. Julgado em 09 out. 2007. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 ago. 2008 e RIO GRANDE DO SUL. Agravo de Instrumento nº 70025738840, Décima Sexta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Paulo Sérgio Scarparo. Julgado em 15 ago. 2008. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 19 ago. 2008.

30 Paulo Resttife Neto e Paulo Sérgio Restiffe relacionam de forma ampla as normas que regem a alienação fiduciária em garantia. Ibid., 2000, p.34-47.

77

ordenamento jurídico nacional com a Lei de Mercado de Capitais, Lei n° 4.728, de 14 de

julho de 1965, tratada que foi pela Seção XIV, artigo 66. Referida lei, no escólio de Maria

Helena Diniz, adotara “[...] esse instituto jurídico para atender aos reclamos da política de

crédito [...] com o escopo precípuo de melhorar vantajosamente as operações de crédito e

de financiar a aquisição de certos bens de consumo [...].”31 Isto porque não adiantaria em

nada estimular o crédito sem criar um instituto jurídico capaz de atender, de forma segura,

aos interesses do credor prejudicado pelo inadimplemento do débito por parte do devedor,

dada a insuficiência das garantias clássicas previstas pelo direito brasileiro.32

Pouco tempo de prática, contudo, foi suficiente para se perceber que apesar de o

instituto da alienação fiduciária em garantia trazer segurança ao credor, este não contava

com instrumentos processuais ágeis para entrar na posse direta do bem rapidamente se o

devedor não lhe entregasse, sponte sua, o bem fiduciariamente alienado quando do

inadimplemento da obrigação pecuniária por ele assumida, dada a polêmica causada pela

imprecisão dos termos do §2º do artigo 66 da Lei de Mercado de Capitais, que dispunha

continuar o devedor a possuir o bem em nome do adquirente, a suscitar discussão a respeito

da ação judicial cabível – se reintegração de posse ou imissão na posse, uma vez que a ação

reivindicatória, indiscutivelmente cabível, por ser ordinária, não permitia, de forma célere,

a recuperação do capital envolvido na transação, imprescindível à movimentação do

negócio do credor.

Já a ação de busca e apreensão, da forma como prevista pelo Código de Processo

Civil, também não se prestava a atender a contento os interesses do credor fiduciário em

razão de demandar o futuro ingresso de ação principal, o que foi suficiente para fazer cair

em desuso o instituto da alienação fiduciária em garantia, razão pela qual os Ministros da

Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar resolveram estabelecer o Decreto-

lei n° 911, datado de 1º de outubro de 1969, alterando o instituto da alienação fiduciária em

garantia na sua forma material e processual, introduzindo, neste campo, uma ação de busca

e apreensão autônoma independente, inclusive de qualquer procedimento ulterior por parte

do credor fiduciário. Tudo, é certo, para atender aos interesses do credor fiduciário.33

31 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.4, p.583. 32 As clássicas garantias a que se refere são: penhor, hipoteca e anticrese. 33 Toda essa polêmica é noticiada com riqueza de detalhes por Moreira Alves. ALVES, José Carlos Moreira, op.

cit., 1979, p.10-14.

78

Hélio Valle traz o seguinte quadro normativo atual do instituto da alienação fiduciária

em garantia:

a) arts. 1.361 a 1.368-A do Código Civil, os quais disciplinam a propriedade fiduciária de bens móveis, aplicando-se genericamente a todos os contratos de alienação fiduciária em garantia, ressalvada norma especial; b) art. 66-B da Lei 4.728/66 (na redação da Lei 10.931/2004), que define os contornos de direito material para a alienação fiduciária celebrada no âmbito do mercado financeiro (de sorte que o Código Civil apenas se aplique subsidiaria-mente); c) arts. 2° a 8°-A do Decreto-lei 911/69 (o art. 1° se limitara a dar nova redação ao art. 66 da Lei 4.728/65, hoje revogado), que se dedicam especialmente aos contornos processuais dos contratos de alienação fiduciária em garantia firmados no âmbito do mercado financeiro; d) arts. 22 e ss. da Lei 9.541 /97, vinculada à alienação fiduciária em garantia de imóveis, tanto na parte material quanto processual. (Destaque no original)34

Convém questionar se não deve também o Código de Defesa do Consumidor ser

citado na legislação aplicável ao instituto da alienação fiduciária em garantia por haver

legislação específica definidora dos contornos materiais da alienação fiduciária em garantia

realizada no âmbito do mercado financeiro. Fala-se mais precisamente do artigo 66-B da

Lei n° 4.728/66, na redação que lhe fora dada pela Lei n° 10.931/2004, lei que é posterior

ao Código de Consumo, e que faz referência apenas ao Código Civil de 2002, cuja

aplicação subsidiária é ressaltada e naquilo, certamente, que não for incompatível com o

estabelecido pela lei especial. Trata-se, enfim, de saber se o Código de Defesa do

Consumidor é aplicável principalmente como regra geral definidora da conduta das partes

antes, durante e após a contratação, incluindo a questão relativa às práticas e cláusulas

contratuais abusivas porventura impostas pelo fornecedor ao consumidor.35

Há quem sustente ainda nos dias de hoje a impossibilidade de aplicação do Código de

Defesa do Consumidor aos contratos de alienação fiduciária em garantia. É o caso de

Márcio Assumpção, que assim se manifesta:

[...] sustentamos que nos contratos de mútuo com alienação fiduciária o objeto do contrato principal (mútuo), que é o dinheiro, não pode ser classificado como consumível pelo

34 PEREIRA, Hélio Valle, op. cit., 2008, p.25. Alerta referido autor ainda para o fato de existirem “[...] outras

normas que esparsamente fazem menção à alienação fiduciária, como os arts. 27 e 28 do Decreto-lei 413/69 (títulos de crédito industrial), 148 a 152 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86), 40, 100 e 113 da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações, 22 e 23 da Lei 4.864/65 (que criou estímulos à construção civil) e 7º a 11 da Lei 8.668/93 (Fundo de Investimento Imobiliário), além de várias passagens existentes na Lei 10.931/2004 [...]” Ibid., 2008, p.25-26.

35 Não se enfrentará a questão sobre antinomias porventura ocorridas entre lei específica sobre determinada relação de consumo e o Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei principiológica, porque tal discussão extrapolaria, em muito, os limites deste trabalho, muito embora se entenda prevalecer, em caso de choque, o Código de Defesa do Consumidor, mesmo em sendo este Diploma legal lei geral frente a uma lei específica sobre a matéria.

79

devedor fiduciante, na medida em que deverá este mesmo dinheiro ser devolvido, pelo devedor fiduciante ao credor fiduciário, com os encargos pactuados no contrato, como forma de resolução da propriedade fiduciária e retomada do domínio do bem pelo devedor fiduciante. E, especificamente quanto à constituição da alienação fiduciária, na qualidade de venda com escopo de garantia, esse instituto não se amolda ao conceito quer de produto, quer de serviço. Daí a não-incidência das regras consumeristas à alienação fiduciária em garantia. (sic).36

E complementa: “as disposições do Código do Consumidor não se aplicam

indiscriminadamente aos contratos de alienação fiduciária (JTA 164/407) [...]”, porque

“[...] as relações entre as partes se perfazem em um contrato de abertura de crédito em

dinheiro, com a garantia da alienação fiduciária de um bem, em geral adquirido por

terceiro.”37 O autor advoga, portanto, a tese de jamais poder o contrato de mútuo ser

qualificado como contrato de consumo porque o dinheiro não pode ser consumido pelo

fiduciante, que deverá devolver “este mesmo dinheiro” ao credor fiduciário. Ora, apesar de

o consumidor não poder ser o destinatário final do produto dinheiro (ou crédito) que é o

“carro-chefe” dos fornecedores qualificados como instituições bancárias, ele o será do

produto (ou serviço) adquirido com o dinheiro obtido no banco, como ensina Nélson Nery

Júnior:

O aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com os bancos. Havendo a outorga do dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário final, há a relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final e, portanto, não há que se falar em relação de consumo [...]. O problema maior parece ocorrer com os contratos de mútuo e de abertura de crédito rotativo em conta de depósitos (tipo ‘cheque especial’), já que se poderia objetar sua caracterização como relação de consumo, porque o dinheiro vai ser gasto pelo devedor, que não seria, assim, consumidor no sentido do Código. Esse entendimento não pode ser aceito por ferir princípio básico de hermenêutica: o de que nenhuma interpretação pode conduzir ao absurdo. Seria despropositado entender-se que o consumidor devesse ficar eternamente com o dinheiro emprestado do banco, colocando-o debaixo do colchão, para que pudesse ser considerado consumidor do crédito bancário. (Itálico no original).38

Não se pode olvidar, ademais, que o contrato de alienação fiduciária em garantia

celebrado no campo das relações de consumo é um contrato complexo, eis que envolve, no

mínimo, três pessoas e dois contratos, que são entre elas celebrados. Envolvendo três

pessoas, ao menos duas delas ostentam a qualidade de fornecedor. Exemplifica-se: uma

pessoa deseja adquirir um veículo, por exemplo, mas por não dispor de numerário

36 Esse comentário encontra-se inserto em nota de rodapé. ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de. Ação de busca e

apreensão: alienação fiduciária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.15. 37 Ibid., 2006, p.16. 38 NERY JÚNIOR, Nelson. Art.46-54. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al., op. cit., 2001, p.441-570, p.472-474.

80

suficiente para fazê-lo à vista, procura uma loja que lhe possibilite o pagamento desse bem

a prestação. Essa loja (vendedor), contudo, não possui sistema de crediário próprio, mas

trabalha juntamente com uma (ou mais) instituição(ões) financeira(s), que financia o bem

para o adquirente, vale dizer, empresta-lhe quantia suficiente à aquisição desse bem e,

como garantia do pagamento do mútuo levantado, aquele adquirente dá o bem adquirido

como garantia do pagamento da dívida contraída. Assim, tem-se um contrato de compra e

venda que se passa entre a loja (vendedor) e o adquirente do veículo e outro contrato, desta

feita havido entre a financeira e o adquirente do bem.

Referidos contratos estão, sem dúvida, ligados entre si, a revelar, como ensina

Cláudia Lima Marques, “[...] um fenômeno econômico de organização do modo de

produção e distribuição [...] envolvendo grande número de atores que unem esforços e

atividades para uma finalidade comum, qual seja a de poder oferecer no mercado produtos

e serviços para os consumidores [...].” E prossegue, afirmando que: “o consumidor muitas

vezes não visualiza a presença de vários fornecedores, diretos e indiretos, na sua relação de

consumo, sequer tem consciência [...] que mantém relação contratual com todos [...].”

Ademais, para essa autora, a nova teoria contratual, além de permitir a visão de conjunto do

esforço do fornecedor econômico de fornecimento, a valoriza, responsabilizando

solidariamente os fornecedores que se dedicam a “[...] organizar e realizar o fornecimento

de produtos e serviços”, arrematando no sentido de não importar o tipo de relação, se direta

ou indireta, contratual ou extracontratual, do fornecedor com o consumidor.39

Nestes termos, Cláudia Lima Marques, com razão, sustenta que quando há relações

contratuais tão conexas, essenciais, interdependentes e complexas, sendo impossível

distingui-las, realizar uma sem a outra, deixar de realizá-las ou separá-las, como ocorre na

alienação fiduciária em garantia, acresça-se, se uma das atividades, ou fins, é de consumo,

a outra, ou outras relações, restam por esta contaminadas, tornando-se relação de consumo.

No caso específico da alienação fiduciária em garantia, há um grupo de contratos, ou seja,

“contratos vários que incidem de forma paralela e cooperativa para a realização do mesmo

fim [...]”, onde “[...] cada contrato [...] tem um objetivo diferente [...] mas concorrem para

um mesmo objetivo [...] e somente unidos podem prestar adequadamente”, como explica

Cláudia Lima Marques.40

39 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., 2002, p.334-335. 40 Ibid., 2002, p.341 e 343.

81

De fato, ao consumidor apenas importa a aquisição do veículo (o contrato de compra

e venda), mas se esta aquisição (ou contrato de compra e venda) apenas pode se realizar se

atrelada a um contrato de financiamento, celebra ele os dois contratos, que, por sua vez,

concorrem para um mesmo fim, tornando-se de consumo se o adquirente for o destinatário

final do produto veículo, o que enseja a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. No

caso do exemplo dado, que envolve alienação fiduciária em garantia, têm-se dois

fornecedores, partes fortes da relação, que agem profissionalmente, e um consumidor

destinatário final do bem, parte frágil, que ficaria desprotegida se negada lhe fosse a

aplicação, à relação vertente, do Código de Defesa do Consumidor, cuja função precípua é

promover o equilíbrio das partes envolvidas na relação de consumo, dispensando a

necessária proteção ao vulnerável. Demais, dispõe o artigo 29 da Lei Protetora que: “para

os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas

determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”, sendo oportuno relembrar que

este capítulo e os seguintes tratam da oferta, publicidade, práticas abusivas, cobrança de

dívidas, bancos de dados e cadastros de consumidores, proteção contratual, cláusulas

abusivas e contratos de adesão.41

Os Tribunais pátrios, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, aplicam o Código de

Defesa do Consumidor aos contratos de alienação fiduciária em garantia quando presentes

os personagens exigidos para a configuração da relação de consumo.42 O próprio Código de

Defesa do Consumidor traz dispositivo específico acerca dos contratos de alienação

fiduciária em garantia, a indicar sua aplicação quando presente a relação de consumo,

como se depreende de seu artigo 53 e §3º:

Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. [...] § 3° Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional.43

41 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008. 42 Para tanto, examine-se a seguinte decisão: BRASIL. AgRg no REsp nº 992.272/RS – Rio Grande do Sul.

Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2008.

43 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, op. cit., 2008.

82

Ressalte-se ainda que aludidos dispositivos nem de longe se chocam com o disposto

na legislação específica da alienação fiduciária em garantia celebrada no âmbito do

mercado financeiro, seja em razão da lei especial nada prever acerca do contrato de

alienação fiduciária poder utilizar moeda diversa da moeda corrente nacional, seja em

razão da expressa determinação constante no §3º do artigo 66-B da lei especial (Lei de

Mercado de Capitais) de devolução, se houver, do saldo credor ao fiduciante após a venda

de excussão do bem.

Desta forma, o quadro sinóptico da atual legislação aplicável ao instituto da alienação

fiduciária em garantia que tem pertinência com o tema abordado nesta obra é o seguinte:

a) Lei 4.728/66, com a redação determinada pela Lei 10.931/2004: artigo 66-B; b) Código de Defesa do Consumidor, e; c) Código Civil: artigos 1361 a 1368-A, 1421, 1425, 1435 e 1436, conforme expressamente aludido pela Lei n° 10.931/2004 e demais dispositivos gerais aplicáveis ao contrato de alienação fiduciária em garantia que não se choque com a legislação especial, inclusive o Código de Defesa do Consumidor, em razão de sua aplicação exclusivamente subsidiária.

Suprimiram-se as refências à Lei n° 9.541/97, por dizer respeito tão somente à

alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, e ao Decreto-lei n° 911/69 porque ainda

não se examinou sua (in)constitucionalidade ou (não) recepção, assunto que será apreciado

no capítulo quinto. Com relação ao disposto no artigo 53 da Lei de Consumo e ao teor do

§3º do artigo 66-B da Lei de Mercado de Capitais, serão eles objeto de melhor apreciação

no capítulo que se segue, no qual tratar-se-á dos direitos e deveres do devedor fiduciante

inadimplente, incluindo a parte processual aplicável ao instituto e a venda de excussão do

bem por parte do credor fiduciário.

5 ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE VEÍCULOS AUTOMOTORES COMO RELAÇÃO DE CONSUMO

No presente capítulo, abordar-se-á a alienação fiduciária em garantia de automóveis

no âmbito das relações de consumo em situações de atraso no pagamento de prestações do

financiamento garantido por alienação fiduciária, dada a adesão a esse tipo de contrato no

dia a dia por inúmeros consumidores. O tema é de indiscutível relevância devido ao

considerável volume de ações de busca e apreensão de veículos intentadas pelas

instituições financeiras em face do devedor fiduciante moroso, que, não raro, desconhece

as implicações dessa mora. Por esta razão, convém enfrentar a questão da

constitucionalidade do Decreto-Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969, em face da

Constituição de 1969, e de sua recepção ou não pela Constituição Republicana de 1988,

acaso não vislumbrada nenhuma incompatibilidade com a Constituição de 1969.

Conforme visto, a alienação fiduciária em garantia de bens móveis entrou no

ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei de Mercado de Capitais. Referido Diploma

legal, de 14 de julho de 1965, que teve por objetivo precípuo fomentar o crescimento

econômico no Brasil, uma vez que, nessa época de ditadura, os militares pretendiam

alcançar estabilidade política e econômica para atrair investimentos estrangeiros para o

país.1 Nestes termos, a legitimidade passiva para figurar nos contratos de alienação

fiduciária em garantia, que transmitiam inquestionável segurança ao credor, fora conferida

exclusivamente às instituições financeiras. Assim, não havia possibilidade de um cidadão

comum celebrar com seu igual contrato de alienação fiduciária em garantia, restando a

1 Para maiores informações sobre a ditadura militar e sobre o período a que se denominou milagre econômico

brasileiro consultar GIAMBIAGI, Fábio; VELOSO, Fernando Augusto Adeodato; VILLELA, André. Determinantes do “milagre” econômico brasileiro (1968/73): Uma análise empírica. Disponível em: <http://www.eg.fip.mg.gov.br>. Acesso em: 26 set. 2008 e o sítio <http://www.historiadomundo.combr>. Acesso em: 26 set. 2008.

84

estes apenas o socorro ao negócio fiduciário, arcando as partes com os riscos inerentes a

este tipo de negócio.2

A prática, contudo, encarregou-se de demonstrar que se o contrato de alienação

fiduciária em garantia transmitia segurança à satisfação do crédito pelo credor não lhe

garantia a necessária rapidez ao ingresso, por parte deste, na posse direta do bem alienado

fiduciariamente, se não houvesse sua entrega espontânea pelo fiduciante moroso, em razão

da polêmica reinante na década de 60, no cenário jurídico nacional a respeito da ação

judicial cabível, se possessória ou petitória, vez que a imprecisão da linguagem utilizada

pelo legislador no §2º do artigo 66 da Lei de Mercado de Capitais trazia dúvidas acerca de

ser o devedor possuidor direto ou mero detentor do bem alienado fiduciariamente a impedir

solução rápida na recuperação do capital investido no negócio pelo credor fiduciário.

Ademais, questionava-se o cabimento da ação de busca e apreensão tipificada pelo Código

de Processo Civil, mesmo como medida cautelar e preparatória, impasse que inviabilizava

o atendimento, a contento, dos interesses do credor, que passou a desprezar o instituto da

alienação fiduciária em garantia.3

Por isto, os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar,

visando a resolver o impasse e proteger as instituições financeiras, expediram, em 1º de

outubro de 1969, o Decreto-lei n° 911, alterando sobremaneira o instituto da alienação

fiduciária em garantia e introduzindo, neste campo, uma ação de busca e apreensão

autônoma e independente, inclusive, de qualquer procedimento ulterior por parte do credor

fiduciário. Resta saber se a proteção dispensada às instituições financeiras pelo

suprarreferido diploma normativo ultrapassava ou não os limites constitucionais vigentes à

época de sua edição, representando alguma ameaça ao princípio da igualdade, previsto no

§1º do artigo 150 da Constituição da República de 1969, que dispunha que “todos são

2 Nesse tocante, Ana Carolina Freire e Mateus Donato lembram que “tendo em vista as vantagens oferecidas ao

credor na alienação fiduciária, o STF acabou por determinar que esta somente poderia ser utilizada por instituições financeiras sujeitas à fiscalização do Banco Central do Brasil, o que limitava a utilização do instituto, inclusive nos casos de financiamentos concedidos por instituições estrangeiras.” FREIRE, Ana Carolina de Salles; GIANETI, Mateus Donato. A propriedade fiduciária e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n.269, 2 abr. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 ago. 2008. Essa informação pode, aliás, ser conferida pelo RE 111219/1987. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.

3 Maiores detalhes acerca dessa polêmica em ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.10-14.

85

iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções

políticas [...].”4

5.1 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1969

O Decreto-lei n° 911/69 nasceu com a missão de proteger as financeiras. Tanto que

de sua exposição de motivos constam as seguintes passagens:

[...] Pretendendo o governo baixar o custo operacional das instituições financeiras, tornou-se indispensável dar solução rápida e eficaz na hipótese de inadimplemento do devedor, justificando-se, pois, a elaboração de um projeto de Decreto-lei para atender a tais situações. [...] [...] A busca e apreensão é, no caso, processo autônomo e exaustivo cuja decisão termina o litígio, autorizando a venda extrajudicial do bem, sem prejuízo de qualquer ação que o devedor possa intentar contra o credor se se julgar prejudicado. Admite-se, excepcionalmente, a purgação da mora quando o devedor já pagou mais de 40% do preço e requerer o pagamento do seu débito acrescido de juros, custas judiciais e honorários de advogado. [...] A elaboração do projeto, em última análise, visa a dar maiores garantias às operações feitas pelas financeiras, assegurando o andamento rápido dos processos, sem prejuízo da defesa, em ação própria, dos legítimos interesses dos devedores.[...]. (Destacou-se e sublinhou-se).5

Pretender o governo, conforme afirma ele próprio, baixar o custo operacional das

instituições financeiras criando uma ação de busca e apreensão como processo autônomo e

exaustivo em que a decisão põe termo ao litígio, autorizando a venda extrajudicial do bem

sem responsabilidade para essas instituições, e suprimindo sobremodo a defesa do devedor,

a quem compete purgação da mora somente em caráter excepcional, e quando já pago mais

de 40% (quarenta por cento) do financiamento, condicionando a defesa unicamente em

ação própria, parece ir de encontro ao princípio da igualdade, constante do §1º do artigo

150 da Constituição da República de 1969, vigente à época de sua edição.6

Em primeiro lugar, os réus dessa ação de busca e apreensão eram injustificada e

diferentemente tratados, pois apenas os que houvessem ultrapassado o percentual de

pagamento do financiamento é que poderiam requerer a purgação da mora, efetivando o

4BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em

<http//www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008. 5 Essa exposição de motivos do Decreto-lei n° 911, que data de 1969, consta da obra de Márcio Assumpção.

ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.217-218. 6 Referir-se-á sempre ao termo Constituição de 1969 porque é o termo mais advogado, visto ter a Emenda

Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, prevista para entrar em vigor em 30 de outubro de 1969, provocado profundas alterações na Carta de 1967, inclusive a ponto de teórica e tecnicamente, como aduz José Afonso da Silva, não ter se tratado de emenda, “[...] mas de nova constituição.” SILVA, José Afonso da, op. cit., 2000, p.87.

86

pagamento sem qualquer discussão quanto aos valores estipulados pelas instituições

financeiras. Nestes termos, nenhum fiduciante poderia, nos autos da ação de busca e

apreensão ora analisada, questionar e pagar apenas o valor realmente devido, ainda que se

deparasse com a cobrança de valores abusivos por parte da instituição financeira autora,

hipótese que não era (nem é na atualidade) difícil de ocorrer, eis que teria que exercer sua

defesa obrigatoriamente em ação própria. Este procedimento, por não ter o condão de

sustar a venda extrajudicial do mencionado bem porventura efetivado pelo credor

fiduciário, acabava frustrando o direito expectativo à aquisição da propriedade do bem

alienado fiduciariamente pelo devedor fiduciante, que tinha (e tem ainda hoje) o direito,

diga-se, de pagar unicamente o montante real devido, cabendo-lhe, no final das contas,

somente a via da indenização em caso de prejuízo, pois não poderia questionar com o

terceiro que adquirira da financeira o bem que fora a esta fiduciariamente alienado.

Assim, flagrante é o tratamento legal diferenciado, beneficiando as instituições

financeiras, transmutando-se em verdadeira regalia em detrimento do devedor fiduciante,

este sim a parte mais vulnerável da relação e carecedora de proteção legal. Demais, o

decreto-lei, cujo sucedâneo é a Medida Provisória, nos termos do artigo 58, I e II, da

Constituição de 1969, apenas poderia ser expedido pelo Presidente da República em casos

de urgência ou de interesse público relevante e sobre matérias que dissessem respeito à

segurança nacional ou às finanças públicas, desde que não resultasse em aumento de

despesa. O Decreto-lei n° 911/69, facilmente se constata, não versava (ou versa) nem sobre

a segurança nacional nem sobre as finanças públicas, razão pela qual sequer poderia ter

sido expedido. 7

5.2 O Decreto-lei n° 911/69 e a Constituição da República de 1988

A análise acerca da recepção ou não pela Constituição Republicana de 1988 do

Decreto-lei n° 911/69 deve ser feita levando-se em consideração vários aspectos, que vão

desde a possibilidade de existência desta norma em um Estado Democrático de Direito até

se saber se foram violados o princípio da igualdade e as garantias do devido processo legal,

da ampla defesa e do contraditório. Além do mais, importa saber se é juridicamente

possível a alteração do Decreto-lei em estudo pela Lei n° 10.931/2004 e se esta nova lei

7 É certo que nessa época nem se cogitava da existência do Código de Defesa do Consumidor e tampouco se

falava em vulnerabilidade, mas isso está longe de impedir a constatação, e fácil, da desigualdade das partes que permeava a relação, sempre em prejuízo do fiduciante.

87

também pode ser considerada constitucional sob o ponto de vista das garantias acima

mencionadas.

5.2.1 O Decreto-lei n° 911/69 no Estado Democrático de Direito

De 1964 a 1985 vigorou no país a ditadura militar. Nesta época os direitos e garantias

constitucionais foram simplesmente olvidados. Três anos após esse nebuloso período,

contudo, é promulgada a Constituição de 1988, que abre seus dispositivos declarando

constituir a República Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito. Referida

expressão, no dizer de José Afonso da Silva, não significa apenas a união formal dos

conceitos de Estado Democrático e de Estado de Direito. Consiste, na verdade, num

conceito novo, “[...] que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os

supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do

status quo [...].” Desta forma, “a democracia que o Estado Democrático de Direito realiza

há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º,

I), em que o poder emana do povo e deve ser exercido em proveito do povo [...].”8 Para o

supracitado constitucionalista, a tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito, que

é calcado, dentre outros, nos princípios democrático, da justiça social, da igualdade, da

divisão de poderes e da legalidade, “[...] consiste em superar as desigualdades sociais e

regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social.”9

O Decreto-lei editado pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da

Aeronáutica Militar nada tem de democrático, contribuindo inclusive para a promoção de

desigualdades e injustiças, na medida em que se preocupa unicamente em garantir o lucro

das instituições financeiras, eis que lhes autoriza a lançar mão de agilíssima ação judicial,

com concessão obrigatória de liminar de busca e apreensão pelo Judiciário em seu favor,

uma vez comprovada a mora do fiduciante.10

Ademais, é referida norma ilegítima, posto não decorrer da vontade popular, conforme

exigido pela Constituição de 1988, como explicam Henriques Leite e Walter Lemos:

8 SILVA, José Afonso da, op. cit., 2000, p.123. 9 Ibid., 2000, p.126. 10 Registre-se que a mora do fiduciante ocorre pela simples expedição, por meio do Cartório de Registro de

Títulos e Documentos, de carta registrada ou com o mero protesto do título do devedor, a quem cabe o direito à sua purgação exclusivamente quando já integralizado mais de 40% do valor do financiamento do bem, sem possibilidade alguma de discussão acerca dos valores apresentados pela instituição autora.

88

A norma jurídica só é legitima quando tem a sua origem emanada da vontade do povo, em consonância com o Parágrafo único do artigo 1° da Constituição Federal. A lei há que ser elaborada em atendimento aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantida do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3°, I, II, III e IV, da CF/88). O DL n° 911/69 desdenha de todos os critérios de criação de uma lei. Faltam-lhe os critérios de legalidade, de justiça, de amplitude, de finalidade, e tantos outros. Falta-lhe coerência como conceito de lei, pois expressa apenas a vontade dos poucos que assinam e das empresas beneficiadas [...].11

O fato de a norma em estudo não emanar da vontade popular, contudo, apesar de sua

indiscutível relevância, não se afigura como critério único suficiente capaz de impedir sua

recepção pela Constituição Republicana de 1988. Por isto, analisar-se-á sob outros pontos

de vista, passando agora a tratar sobre a violação ou não ao princípio da igualdade.

5.2.2 O Decreto-lei n° 911/69 e o princípio da igualdade

O princípio da igualdade, considerado por Paulo Bonavides como “o centro modular

do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica [...]”, impede o tratamento

privilegiado dispensado às instituições financeiras pelo Decreto-lei n° 911/69, eis que “o

Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática [...]”, e apresenta-se como

critério suficiente para impedir a recepção desta norma pela Carta Política de 1988,

produtora que é de desigualdades sociais. O tratamento privilegiado a que se refere consiste

não apenas no patente desequilíbrio existente entre os interesses do credor e os do devedor

promovido pelo Decreto-lei n° 911/69 e que permeiam a ação de busca e apreensão

independente e autônoma por ele produzida, mas também no tratamento injustamente

desigual dispensado por esta norma aos particulares instituições financeiras e particulares

não integrantes do sistema financeiro nacional.12

É justamente em atenção ao princípio da igualdade, que está consubstanciado na

máxima de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na exata medida de

suas desigualdades, que o Código Civil de 2002 trouxe para suas disposições a propriedade

fiduciária, que, por sua vez, decorre do contrato de alienação fiduciária em garantia,

permitindo que qualquer pessoa, e não unicamente as instituições financeiras, desfrute da

11 LEITE, Antônio Henriques Lemos; LEMOS, Walter Gustavo da Silva. Novos rumos da alienação fiduciária

em garantia. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br>. Acesso em: 2 out. 2008. Relembre-se ainda que o decreto, com força de lei, substituído fora pela Medida Provisória, que conforme reza o artigo 62 da Carta Maior, apenas poderá ser adotada pelo Presidente da República em casos de relevância e urgência, medida que deve ser submetida de imediato ao Congresso Nacional para que delibere sobre sua conversão ou não em lei.

12 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.376.

89

condição de credor fiduciário. Nestes termos, o novel Código Civil alertou para uma

gravíssima e desapercebida situação: o tratamento desigual dispensado pelo legislador ao

credor fiduciário integrante do sistema financeiro nacional e aquele não integrante desse

sistema, consistente no fato de este último não poder manejar a ação de busca e apreensão

independente e autônoma prevista pelo Decreto-lei n° 911/69, e aquele sim.13

O desequilíbrio de tratamento entre credor e devedor permitido pelo decreto-lei em

análise fica patente ao exame de seu primitivo artigo 3º (e incisos), que determinava, após

ser despachada a inicial e executada a liminar, seria a medida necessariamente deferida em

benefício do credor. O réu seria citado para, no reduzidíssimo prazo de três dias, apresentar

contestação (e não resposta) ou, se já tivesse pago 40% do preço financiado, requerer a

purgação da mora, caso em que não poderia dispor de prazo superior a dez dias. Nestes

termos, oferecida ou não contestação ou não efetivado o depósito no prazo assinalado pelo

juiz quando requerida a purgação da mora pelo devedor, a sentença consolidaria a

propriedade e a posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário, sendo

prolatada de plano no prazo de cinco dias, sem que ficasse impedida a venda extrajudicial

do bem alienado fiduciariamente em garantia, dela cabendo apenas agravo de instrumento,

frise-se, sem efeito suspensivo.14

Para usufruir das benesses relativas à ação de busca e apreensão independente e

autônoma introduzida pelo Decreto-lei n° 911/69, basta ao credor fiduciário, desde que

13 Diga-se, por oportuno, que, o Código Civil de 2002 pretendeu, na realidade, corrigir essa enorme

desigualdade, e porque não dizer injustiça, semeada e cultivada pelo Decreto-lei n° 911/69, tanto que seu projeto, que data de agosto de 1972 e que contou com um prazo de quatro meses, corridos já a partir do dia 7 daquele mês, para o recebimento de sugestões, já previa a propriedade fiduciária, garantindo, via de conseqüência, que qualquer pessoa, e não exclusivamente as instituições financeiras, pudesse desfrutar da qualidade de credor fiduciário em contrato de alienação fiduciária em garantia. Prova isso o fato de Moreira Alves, já em 1979, na sua obra, intitulada “Da alienação fiduciária em garantia”, falar sobre o Projeto de Código Civil e o prazo de quatro meses para recebimento de sugestões. ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.193-199. Mas a sua tramitação foi tão demorada no Congresso Nacional que o Código Civil foi promulgado anos depois da Constituição de 1988, apesar de ter sido apreciado pela Câmara dos Deputados no ano de 1975, não admirando o fato de este Projeto de Lei, de nº 634-D, ter sofrido mais de mil emendas na Câmara dos Deputados e mais de quatrocentas no Senado Federal, como afirma, com propriedade, Miguel Reale. REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 26 set. 2008.

14 Utiliza-se aqui a palavra “primitivo” para deixar claro que nesse momento se está abordando o Decreto-lei n° 911/69 anteriormente ao advento da Lei n° 10.931/2004, que, dentre outras normas, pretende alterar “[...] o Decreto-Lei n° 911, de 1° de outubro de 1969 [...].” BRASIL. Presidência da República. Lei n° 10.931, de 2 de agosto de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008. Sobre a impossibilidade de purgação da mora quando não integralizado 40% do valor financiado, veja-se a Súmula 284 do Superior Tribunal de Justiça. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 284. A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado. Segunda Seção. Julgado em 28 abr. 2004. Diário de Justiça, Brasília, DF, 13 maio 2004, p. 201. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.

90

instituição financeira, repita-se, a comprovação, através de carta registrada expedida pelo

Cartório de Títulos e Documentos ou pelo protesto do título, da mora do devedor, o que se

dá com o simples vencimento, in albis, do prazo para pagamento de uma única prestação.

Já o credor fiduciário em contrato de alienação fiduciária em garantia que não goze da

qualidade de instituição financeira não pode propor essa agilíssima ação de busca e

apreensão independente e autônoma quando se deparar com a mora do devedor que não lhe

entregue, voluntariamente, o bem fiduciariamente alienado, mesmo quando a relação

existente entre as partes se configure como relação jurídica de consumo.

Com o advento do novel Código Civil têm-se, portanto, duas situações distintas,

quais sejam: 1º) O contrato de alienação fiduciária em garantia celebrado no âmbito do

mercado financeiro e de capitais, que exige a presença de uma instituição financeira como

contratada, leia-se credora fiduciária, regido pela Lei de Mercado de Capitais e apenas

subsidiariamente pelo Código Civil, incidindo o Código de Defesa do Consumidor se de

relação de consumo se tratar; e 2º) O contrato de alienação fiduciária em garantia celebrado

fora do âmbito do mercado financeiro e de capitais (mercado privado), governado pelo

Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, se envolver relação de consumo.

Nos dois tipos de contrato ter-se-ão proprietários fiduciários, que devem ser igualmente

tratados, mas apenas o credor fiduciário que se qualifique como instituição financeira é que

pode mover a ação de busca e apreensão independente e autônoma gerada pelo Decreto-lei

n° 911/69 quando, ocorrida a mora do devedor fiduciante, este não lhe entregue, por livre e

espontânea vontade, o bem fiduciariamente alienado, o que configura injustificado

tratamento assimétrico e atenta, por conseguinte, contra o princípio da igualdade.

E nem se argumente no sentido de que as instituições financeiras podem gozar de

tratamento diferenciado por servirem de impulsionadoras da economia e contribuírem para

o desenvolvimento, uma vez que contratos de mútuo ou de financiamento garantidos por

alienação fiduciária podem encerrar relação de consumo mesmo quando celebrados no

âmbito do mercado privado, por pessoas físicas ou jurídicas, que também estimulam o

crescimento econômico e contribuem para o engrandecimento da nação. Além disto, não há

crescimento econômico sem a presença, no mercado, do consumidor, que merece toda a

91

consideração por parte do legislador, que é obrigado pela Constituição de 1988 a lhe

dispensar tratamento no mínimo equivalente ao conferido às instituições financeiras.15

Quer-se dizer que o tratamento diferenciado dado às instituições financeiras pelo

Decreto-lei n° 911/69 se alicerça no fato desse financiamento garantido por alienação

fiduciária ser realizado no âmbito das relações de consumo, que antes apenas poderia ser

praticado por instituição financeira.

Nestes termos, a proteção jurídica normativa foi conferida não à parte mais frágil,

vulnerável, da relação, que é o consumidor, mas à parte mais forte dela, quer dizer, ao

fornecedor, desde que este ocupe a posição de instituição financeira, em flagrante violação

ao princípio da igualdade e à determinação consitucional dirigida ao Estado de promoção,

na forma da lei, da defesa do consumidor, nos termos do artigo 5º, XXXII, da CF/88.

Acresça-se a isto o fato de que a justificativa primeira de exclusiva utilização do contrato

de alienação fiduciária em garantia e manejo da ação de busca e apreensão autônoma e

independente pelas financeiras, com exclusão do particular não integrante do sistema

financeiro como credor fiduciário, parte da gratuita acusação feita a este último de praticar

comumente juros usurários (acima da taxa legal). Além disso, a defesa do réu na ação de

busca e apreensão independente e autonoma é restrita a ponto de quebrar o equilíbrio entre

as partes, impondo interpretar a palavra “credor” restritivamente, privilegiando, como

consequência, as instituições financeiras. Elucidativas, neste sentido, as palavras de

Moreira Alves:

Entretanto, o Decreto-lei nº 911 [...] ao disciplinar a ação de busca e apreensão, restringiu de tal forma a defesa do réu que tornou evidente a inaplicabilidade do instituto às relações entre particulares. [...]

15Esclareça-se aqui, com Andréa Andrezo e Iran Lima, que o mercado financeiro é aquele “[...] composto pelo

conjunto de instituições e instrumentos financeiros destinados a possibilitar a transferência de recursos dos ofertadores para os tomadores, criando condições de liquidez no mercado”, encontrando-se, sob um ponto de vista financeiro, tradicional e basicamente , dividido em duas categorias: o Mercado de Crédito e o Mercado de Capitais, este “[...] composto pelo conjunto de instituições e instrumentos financeiros destinados a possibilitar operações de médio ou longo prazo ou de prazo indefinido, como no caso de ações, por exemplo [...]. Existem, ainda, as negociações efetuadas diretamente entre tomadores e poupadores, sem intermediação de instituição financeira, no denominado mercado privado. Um exemplo é um contrato de mútuo entre duas pessoas físicas.” Tudo isso, acresça-se, é mercado e contribui para a circulação de riquezas e, via de consequência, para o crescimento nacional. (Negrito no original). ANDREZO, Andréa Fernandes; LIMA, Iran Siqueira. Mercado financeiro: aspectos históricos e conceituais. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002, p. 3-5. O próprio Decreto-lei nº 911/69, em sua exposição de motivos, porque reconheceu que “a importância crescente do crédito ao consumidor [...]”, exigiu “[...] uma reformulação do Instituto da Alienação Fiduciária, que passou a desempenhar função relevante como garantia nas operações feitas [...] para financiamento ao usuário de bens de consumo ou de produção.” Essa exposição de motivos consta da obra de Márcio Assumpção. ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.217-218.

92

não poderá o réu sequer invocar, em sua defesa, a inexistência da própria relação obrigacional, ou – o que é relativamente comum nas relações entre particulares – a nulidade do empréstimo garantido em decorrência de juros usurários. [...]. Quebrou-se, portanto, dessa forma, o equilíbrio entre os interesses do credor e do devedor, dando-se tal prevalência àquele que, para não se chegar à iniqüidade, facilitando-se a usura, é mister se interprete restritivamente o termo credor utilizado, genericamente, no referido Decreto-lei. Em face da nova disciplina que o Decreto-lei nº 911 deu à alienação fiduciária em garantia, somente poderá o instituto ser utilizado pelas instituições financeiras em sentido amplo e por entidades estatais ou paraestatais, ainda que não se enquadrem entre aquelas (como sucede com o INPS) [...]. [...], pelo interesse público que está em jogo, justifica-se a prevalência que se dá à proteção do credor e diminui-se o risco que sofre o devedor com o cerceamento de sua defesa [...].16

Reconheceu-se assim o completo e patente tratamento desiquilibrado entre credor e

devedor implantado pelo Decreto-lei n° 911/69 em benefício daquele (fiduciário), optando-

se por interpretar restritivamente o conceito de credor fiduciário, fundamentado na frágil

alegativa de redução da prática da usura.17

Isto porque a repulsa a essa prática possui expressa previsão em norma vigente, cuja

aplicação depende unicamente das autoridades competentes. Ademais, à Lei da Usura, que

data de 1933, nunca se submeteram as instituições financeiras que, com o beneplácito do

governo e dos Tribunais superiores, mesmo antes do advento da Lei n° 4.595/64 – que

dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, cria o Conselho

Monetário Nacional e dá outras providências – aplicavam a taxa de juros que melhor lhes

convinha nos contratos celebrados com os consumidores, até conseguirem chegar à

liberação total da taxa de juros remuneratórios, hoje correspondente à taxa média praticada

no mercado pelas próprias instituições financeiras, cujo lobby foi capaz inclusive de obter a

16 ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 1979, p.86-87. Aliás, cabe aqui mencionar que Denival Francisco da

Silva acertadamente enxerga no Decreto-lei n° 911/1969 um instrumento de agiotagem permitida, garantindo a “[...] satisfação dos interesses meramente econômicos da indústria automobilística e das instituições financeiras, as quais, inclusive, estão se transformando numa coisa só, dada, sobretudo a rentabilidade deste segundo setor, como instrumento de agiotagem permitida.” SILVA, Denival Francisco da. É nula a nota promissória nos contratos bancários: ausência de pressuposto para ação de busca e apreensão regida pelo Decreto-Lei n° 911/1969. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.1349, 12 mar. 2007. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 22 jul. 2008.

17Sobre o assunto Melhim Namem Chalhub assevera que “a despeito dessa nova orientação, importa registrar que a legislação especial anterior que autorizava a utilização dessa garantia para casos específicos continua em vigor.” Ao tratar da ação de busca e apreensão independente e autônoma, o autor aponta para a exclusão da legitimidade ativa do particular que não desfrute da condição de instituição financeira, ressalvada a possibilidade de integrar o pólo ativo da lide o avalista, o fiador ou o terceiro interessado que tenha se sub-rogado nos direitos de crédito e garantia decorrente dos contratos de alienação fiduciária em garantia celebrada no âmbito do mercado de capitais, o que conduz à inevitável conclusão da injusta diferenciação feita pelo Decreto-Lei n° 911/69 entre as instituições financeiras e os demais credores particulares. Tanto isso é verdade que, para Melhim Namem Chalhub, essa ação de busca e apreensão: “é a ação mais freqüente, aplicável somente aos casos em que o crédito tiver natureza fiscal, previdenciária ou tiver sido contratado no âmbito do mercado financeiro e de capitais.” CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p. 193 e 221.

93

revogação do disposto no §3º do artigo 192 da Consituição de 1988, por limitar à aplicação

a taxa de juros remuneratórios de 12% (doze por cento) ao ano.18

Com relação à restrita defesa do réu – que até o advento da Lei n° 10.931/2004

limitava-se ou à apresentação, no tríduo legal, de contestação, que poderia versar

exclusivamente sobre o pagamento do débito vencido ou sobre o cumprimento das

obrigações contratuais, ou à purgação da mora, caso tivesse adimplido 40% do valor

financiado – diga-se ser inadmissível sua recepção pela “Constituição Cidadã”, que

assegura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processo judicial ou

administrativo, assunto a que se voltará mais adiante.

Não sem razão o comentário de Waldirio Bulgarelli acerca do vergastado decreto-lei

que muniu as financeiras de vários tipos de ações para evitar qualquer perda, por mínima

que seja, por parte destas:

18 Fala-se aqui da Emenda Constitucional nº 40/2003, que revogou o §3º do artigo 192. Sobre a possibilidade de

aplicação, pelas instituições financeiras, da taxa média de juros remuneratórios existente no mercado, a ser apurada pelo Banco Central do Brasil, veja-se as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça: BRASIl. REsp Nº 682.299/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12/ ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008; BRASIl. AgRg no Resp Nº 992.272/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008 e BRASIL. AgRg no REsp Nº 697.588/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Min. Carlos Fernando Mathias. Julgado em 12 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008; BRASIL. Recurso Especial n° 439.828/RS – Rio Grande do Sul. Quarta Turma. Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 22 abr. 2003. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 4 out. 2008. Consigne-se que as referidas decisões se baseiam no argumento que após o advento da Lei n° 4.595/64 não mais existe, para as instituições financeiras, a restrição prevista na Lei da Usura devendo prevalecer o entendimento constante da Súmula n° 596 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 596. As disposições do Decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional. Plenário. Julgado em 15 dez. 1976. Diário de Justiça, Brasília, DF, 3 jan. 1977, p. 7. Disponível em: <http//www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 ago. 2009). Demais, não enxergam os Tribunais superiores que a cobrança, por parte das instituições financeiras, de taxa de juros acima de 12% ao ano constitua, por si só, vantagem exagerada. Consigne-se também antes da revogação do §3º do artigo 192 da Consituição da República foi preciso criar engenhoso artifício para evitar sua aplicação, que consistiu na simples negativa de auto-aplicabilidade do mencionado parágrafo, a pretexto de exigir edição de lei complementar, que jamais existiria. Tudo com a complacência do Supremo Tribunal Federal, a quem, é de pasmar, compete a guarda da Carta de 1988. Acerca da não auto-aplicabilidade do primitivo §3º do artigo 192 da CF/88 examine-se a seguinte decisão do STF: BRASÍLIA. Recurso Extraordinário nº 231548/RS – Rio Grande do Sul, Segunda Turma, Supremo Tribunal Federal, Relator: Min. Nelson Jobim, Julgado em 29/10/1998. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 4 out. 2008. Toda essa complacência do governo, que até agora contou com a ajuda do Poder Judicário, culminou no império do mercado pelas instituições financeiras, que corriqueiramente cobram taxas de juros remuneratórios das mais elevadas, chegando até a 18,9% a.m. quando se trata de cartões de crédito, juros que, diga-se, ainda são capitalizados mensal, anual ou até diariamente, a representar excessiva onerosidade para os consumidores, que, não raro, tornam-se eternos devedores dessas instituições, cujo exorbitante lucro atinge cifras que boa parte dos brasileiros sequer consegue ler, dada a quantidade de zeros à direita. Nesse cenário, apenas os que não integram o Sistema Financeiro Nacional é que podem ser punidos pela Lei da Usura.

94

que elas, a seu alvedrio e a seu talante, escolhem a que melhor couber na oportunidade, para sempre se ressarcir, jamais perdendo, do que resulta que, neste país, a atividade do crédito — ao contrário do que ocorre no resto do mundo — passa a ser uma atividade em que não há risco para o banqueiro [...].19

Outra violação do princípio da igualdade: o desmoronamento de pelo menos dois dos

princípios sobre os quais se funda a ordem econômica, o da função social da propriedade e

o da defesa do consumidor, em razão de o risco da atividade mercantil exercida pelas

instituições financeiras, que deveria ser, como em qualquer outro, inerente ao negócio, no

que diz respeito ao contrato de alienação fiduciária em garantia, finda reduzido a quase

nenhum, ou melhor, transferido integral e indevidamente pelo Decreto-lei n° 911/69 ao

consumidor, afinal de contas alguém tem que sofrer as consequências de tanta

benevolência do legislador para com as instituições financeiras.

5.2.3 O Decreto-lei n° 911/69 sob a ótica das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Para se averiguar uma possível violação às garantias constitucionais do devido

processo legal, da ampla defesa e do contraditório, necessário se faz abordar o Decreto-lei

nº 911/69 em dois momentos distintos: antes e depois do advento da Lei n° 10.931/2004.

Os termos do primitivo artigo 3° do Decreto-lei n° 911/69, ao permitirem ao réu da

ação de busca e apreensão unicamente apresentar contestação e não resposta ou purgar a

mora caso tenha adimplido 40% do preço financiado, privilegiaram o autor da lide em

detrimento do réu, não atenderam às exigências da Constituição de 1988 da ampla defesa e

do contraditório na medida em que restringiram sua defesa ao ponto de quase anulá-la, até

porque na contestação o réu estava preso à alegação do pagamento do débito vencido ou ao

cumprimento das obrigações contratuais.

Supondo-se que numa determinada ação de busca e apreensão o réu fora proibido de

purgar a mora por não haver ainda pago 40% do preço financiado (conforme Súmula 284

do Superior Tribunal de Justiça), e não tenha podido alegar, no caso concreto, a ocorrência

da mora do credor em razão, por exemplo, da cobrança de valores indevidos expressamente

previstos em cláusula contratual, impedido fora ele de exercer seu constitucional e amplo

direito de defesa, que conduziria à imediata extinção da ação de busca e apreensão sem

julgamento de mérito, nos moldes do artigo 267, IV, do Código de Processo Civil. É que a

19 BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 9. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p.308.

95

cobrança de valores indevidos implica a mora do credor e esta esvazia o pressuposto da

ação de busca e apreensão, cujo fundamento reside exatamente na mora do devedor .20

Agravar de instrumento da sentença de nada adiantaria ao fiduciante, já que seria o

mesmo recebido unicamente no efeito devolutivo e não impediria nem a venda

extrajudicial do bem objeto da alienação fiduciária nem a consolidação da propriedade e

posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário. Pior ainda a situação do

fiduciante quando o réu na ação de busca e apreensão fosse o terceiro e não determinasse o

magistrado a citação daquele, devedor fiduciante, a quem a norma não protegeu, pois esta

apenas alude à citação de réu da mencionada ação, outra anomalia.

Tudo isso ocorreu, não se pode negar, em prejuízo da parte frágil da relação, o

fiduciante, que se tivesse tido a oportunidade de exercer sua defesa de forma ampla poderia

ver afastada pelo magistrado a cláusula contratual responsável pela cobrança de valores

indevidos e efetuado o pagamento do valor realmente devido, pagamento que ocorreria em

ação diversa da ação de busca e apreensão, enquanto esta era extinta sem julgamento de

mérito. Quanto ao bem, passaria este automática e plenamente a integrar o patrimônio do

fiduciante quando do pagamento da última parcela do financiamento, situação não ocorrida

porque desrespeitado fora o due process of law que, repita-se com Celso Ribeiro Bastos,

apenas se concretiza para a parte a partir do momento em que ela tenha acesso ao Judiciário

e possa se defender amplamente.21

20 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 284. A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária,

só é permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor financiado. Segunda Seção. Julgado em 28 abr. 2004. Diário de Justiça, 13 maio 2004 p. 201. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 fev. 2009.

21 BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., 2002, p.386. Segundo Celso Ribeiro Bastos, o princípio do devido processo legal “[...] se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito [...]”, sendo justamente por isso que “[...] hoje o princípio se desdobra em uma série de outros direitos, protegidos de maneira específica pela Constituição.” Para ele, “o due process of law se concretiza para a parte a partir do momento em que ela tenha acesso ao Judiciário e possa se defender amplamente.” Tudo porque o processo, no mundo moderno, é manifestação de um direito da pessoa humana. Já por ampla defesa, de acordo com esse constitucionalista, “[...] deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade [...].” Assim, o devido processo legal consiste em um “[...] instrumento assegurador de que o processo não se converterá numa luta desigual, em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas [...].” (Itálico no original). BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p.385-387. O contraditório, por sua vez, ensina Nelson Nery Júnior, garante, através do juiz, igualdade de tratamento entre as partes litigantes. “Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis.” NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 206. Paridade de armas, este é o cerne da questão ora analisada, e exatamente o que reclamam as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, à qual integra o princípio do contraditório.

96

Assim, mais uma vez resta comprovada a não recepção do Decreto-lei n° 911/69 pela

Carta Constitucional de 1988, desta feita por violação frontal aos incisos LIV e LV de seu

artigo 5°. Entretanto, no dia 2 de agosto de 2004, foi promulgada a Lei n° 10.931 que

pretendeu alterar, dentre outras normas, o Decreto-lei n° 911/69.22 Ora, se o Decreto n°

911/69 não foi, como se sustenta, recepcionado pela Constituição de 1988, mas sim

revogado por ausência de recepção, impossível sua alteração por uma norma posterior.

Entretanto, é preciso prosseguir, analisando-se as supostas alterações feitas pela Lei n°

10.931/2004 no Decreto-lei n° 911/69, frente aos ditames constitucionais consubstanciados

nas garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

5.2.3.1 Análise do Decreto-lei n° 911/69 após o advento da Lei n° 10.931/2004

A recente lei, pretendendo atribuir nova redação ao artigo 3° do Decreto-lei n°

911/69, permitiu ao devedor fiduciante apresentar resposta no prazo de quinze dias após

execução da liminar, ainda que tenha ele purgado a mora desde que, nesse caso, entenda ter

efetuado pagamento a maior e deseje se restituir do excedente ao passo que, anteriormente,

torne-se a dizer, era permitido ao réu da referida ação apresentar simples contestação, esta

restrita à alegação do pagamento do débito vencido ou do cumprimento de suas obrigações

contratuais. Quanto à purgação da mora, determina a lei o pagamento da integralidade da

dívida pendente segundo os valores apresentados pelo credor e não unicamente das

parcelas vencidas, tanto que a purgação da mora importa na devolução do bem livre de

ônus ao devedor.

Nesse momento, dois questionamentos vêm imediatamente à tona: 1°) Em que prazo

deve ser efetivada a purgação da mora?; e 2º) É compatível o pagamento da integralidade

da dívida com as garantias constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e

contraditório que dispõe o titular de direitos e garantias fundamentais, o consumidor

devedor? A resposta a esses questionamentos exige detida análise em razão da novel

redação do §1° do artigo 3° do Decreto-lei n° 911/69, que consolida a propriedade e posse

plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário livre do ônus da propriedade

fiduciária, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado 22 Registre-se que há, contudo, quem não enxergue representar cerceamento à defesa do devedor o fato de a ação

de busca e apreensão apenas admitir que o devedor argua em sua contestação ou o pagamento do débito vencido ou o cumprimento de suas obrigações contratuais simplesmente porque “[...] não é permitido ao devedor em nível destas ações estender o conteúdo da contestação [...].” FORGIARINI, Giorgio. Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.58, ago. 2002. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 24 fev. 2009.

97

de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre desse

ônus. É que antes do advento da Lei n° 10.931/2004, essa consolidação ocorria apenas com

a sentença.

Vozes, contudo, já se levantaram em defesa da Lei n° 10.931/2004. Márcio Calil de

Assumpção enaltece a iniciativa do legislador, que pretendeu “[...] agilizar sobremaneira a

venda dos bens retomados sob o manto da ação de Busca e Apreensão [...]” e entende que a

nova redação do §1º do art. 3º do Decreto-lei n° 911/69 não viola o devido processo legal

em razão do caráter provisório da medida antecipatória. Assim, para o autor é:

de todo sustentável afirmar que a nova redação ao § l° do art. 3º do Decreto-lei n° 911/69 não ofende o preceito constitucional do devido processo legal, uma vez que a liminar nele referida, de natureza cognitiva sumária, pode ser denominada de relativamente exauriente na medida em que a tutela definitiva (na sentença) confirmará ou não a antecipação deferida initio litis, mantido assim o caráter de provisoriedade da antecipação de tutela.23 (Itálicos no original).

Com relação à omissão do legislador apontada pelo mencionado autor, identificada

pela ausência de determinação da citação do réu, omissão que traz importantes

consequências de ordem prática, defende ele que deve ser procedida à citação

imediatamente após o cumprimento da medida liminar e apenas a partir do ato citatório, e

não da execução da liminar, é que fluirão os prazos de cinco dias para purgação da mora e

de quinze dias para resposta, sob pena de se afrontar “[...] flagrantemente a garantia

constitucional ao contraditório, que por sua vez, esbarra na também garantia constitucional

do devido processo legal [...].” Isto porque o devedor fiduciário apenas poderá purgar a

mora e ter o bem restituído livre de ônus se souber o montante devido, que é apresentado

pelo credor na inicial de ação de busca e apreensão, fato que apenas se resolve com a sua

citação, principalmente se o réu da ação de busca e apreensão for um terceiro de cujas

mãos tenha sido apreendido o bem.24

23 ASSUMPÇÃO, Márcio Calil, op. cit., 2006, p.191. Já Alberto Bezerra de Souza destaca os efeitos processuais da

Lei n° 10.931/2004. SOUZA, Alberto Bezerra de. Efeitos processuais da Lei nº 10.931/04 aos pactos de alienação fiduciária de bens móveis. Uma análise do direito intertemporal quanto aos processos em curso. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 885, 5 dez. 2005. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008.

24 ASSUMPÇÃO, Márcio Calil, op. cit., 2006, p.194 a 196. Registre-se que este autor sustenta a tese de que a defesa do réu não alcança a reconvenção, seja pela especialidade do procedimento da ação de busca e apreensão, seja em razão de “[...] tratar-se de ação onde a sentença a ser proferida possui eficácia lato sensu (o comando da sentença realiza-se sem a necessidade de instauração de processo de execução).” Ibid., 2006, p.199. Já para Alex Sandro Ribeiro, na resposta do réu à ação de busca e apreensão, inserem-se tanto a contestação, como a exceção e a reconvenção. RIBEIRO, Alex Sandro. Polêmicas da nova alienação fiduciária de bens móveis. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.607, 7 mar. 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008. Da mesma forma entendem Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, para quem a defesa do réu engloba a reconvenção. RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo. Alienação fiduciária e o fim da prisão civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.167.

98

Na mesma linha de raciocínio, Melhim Namem Chalhub conclui que “[...] embora a

nova lei seja omissa quanto à citação, o princípio constitucional do devido processo legal e

a articulação sistemática das normas processuais conduzem naturalmente à conclusão de

que o réu deve ser citado [...]”, fato que deve ocorrer, segundo o autor, imediatamente após

a apreensão do bem, “[...] contando-se os prazos para purgação da mora e para resposta da

juntada do mandado de citação.”25 A respeito, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe

asseveram que a citação do réu continua a ser o fundamental ato processual indispensável

pertinente ao contraditório. Uma vez não citado o réu por ocasião da efetivação do ato de

busca e apreensão:

[...] não terá incidência a regra especial de início de prazo para contestação; isto é, nem ocorrerá preclusão consumativa desse direito fundamental se só tiver havido a apreensão, enquanto não efetivada a citação, que é o convite com ônus processual, passando a contar-se o termo inicial para resposta, nos moldes da disposições do Código de Processo Civil, da juntada do mandado citatório cumprido, e não do antecedente ato constritivo isolado.26

Com relação à consolidação da propriedade nas mãos do credor após o decurso

quinquídio legal – que segundo a doutrina começa a fluir da juntada aos autos do mandado

citatório e não da execução da medida, como consta da Lei n° 10.931/2004 – para autores

como Melhim Namem Chalhub não existe dano ao princípio do devido processo legal

porque inexiste ameaça ao direito de propriedade do devedor, eis que, in casu, a

propriedade é do credor.27 Demócrito Reinaldo Filho igualmente admite a purga da mora

pelo devedor com o pagamento das prestações vencidas, inclusive em razão da aplicação de

outros dispositivos legais, a exemplo do artigo 401, I, do Código Civil. E, para ele, se de

relação de consumo se tratar, com mais firmeza é que se admite a purga da mora em função

25 CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p.222. 26 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.166. 27 Diz-se isto porque o raciocínio utilizado pelo autor ao tecer comentário à lei instituidora da alienação fiduciária

de coisa imóvel, Lei n° 9.514/97, deixa evidente sua posição quanto à alienação fiduciária de bens móveis. Fala-se aqui do seu comentário sobre o disposto no §7º do artigo 26 da Lei n° 9.514/97, que autoriza ao oficial do Registro de Imóveis a promover à averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário quando vencida a dívida, no todo ou em parte e, constituído em mora, o devedor fiduciante não paga no prazo de quinze dias, pois nesse momento Melhim Namem Chalhub destaca que o efeito natural da mora é a consolidação da propriedade no credor, o que, inclusive, independe de intervenção de qualquer autoridade, judicial ou administrativa, eis que no contrato de alienação fiduciária em garantia a condição resolutiva é expressa e sua ocorrência consolida, de pleno direito, a propriedade no credor. É de se ressaltar, contudo, que o autor defende ser facultado ao devedor fiduciário o pagamento das prestações vencidas ou da integralidade da dívida, muito embora a lei disponha sobre o pagamento da integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, quando o bem será restituído ao devedor livre do ônus. Isso em nome da estrutura e da função do contrato de financiamento, que se destina à aquisição de bens duráveis, bem como em razão da prioridade que o direito confere à manutenção do contrato. Deve-se ainda atender à função econômica e social do contrato de crédito e de venda com pagamento parcelado, ainda mais os que envolvam situações de maior densidade social. Ademais, o tratamento dado aos contratos semelhantes, como o de compra e venda com reserva de domínio e o de leasing, admite-se a purgação da mora mediante o pagamento das prestações vencidas. CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p. 206-208 e 356-358.

99

do disposto no §2° do artigo 54 do CDC.28 Neste sentido, Marco Antônio Pissurno afirma

que se deve dar ao §2° do artigo 3° do Decreto-lei n° 911/69, com a redação que lhe deu a

Lei n° 10.931/2004, interpretação conforme a constituição, sem redução do texto

excludente para que o devedor possa “[...] purgar a mora, pagando a integralidade das

parcelas em aberto (e não de todo o valor do contrato), segundo os valores apresentados

pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre de ônus.”29

Claro está, contudo, que na hipótese de não ter o devedor fiduciante optado pelo pagamento

integral da dívida, quer dizer, pelo valor total do contrato, o bem não pode lhe ser restituído

livre de ônus, mas apenas restituído, persistindo o gravame até a quitação do contrato, sob

pena de enriquecimento sem causa por parte do devedor, o que é repudiado pelo

ordenamento jurídico pátrio (artigo 884 do Código Civil de 2002).

Digna de menção é a posição de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, que

entendem que a Lei 10.931/2004, muito embora à primeira vista tenha parecido a alguns

intérpretes trazer “[...] normas mais austeras para penalizar o devedor fiduciante moroso ou

inadimplente [...]”, teve o virtuoso propósito de “[...] adaptar-se com equilíbrio às regras

vigentes de direito material da mora pecuniária e sua purgação irrestrita [...] assegurando a

função social do contrato, a prevenção de danos e a defesa dos direitos do consumidor.”

Demais, referida lei “[...] não extinguiu o direito material da purgação da mora; apenas

suprimiu o rito procedimental de purgação da mora na ação de busca e apreensão [...]”,

dando ensejo, inclusive, “[...] à atuação plena da norma de ordem pública do § 2º do art. 54

[...]” do Código de Defesa do Consumidor, que admite cláusula resolutória nos contratos de

adesão unicamente quando a alternativa da resolução do contrato couber ao consumidor.

(Itálico no original).30

28 REINALDO FILHO, Demócrito. Lei nº 10.931/2004: breves comentários às alterações no procedimento da ação

de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária (Decreto-Lei nº 911/69). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.

29 PISSURNO, Marco Antônio Ribas. A polêmica interpretação do art. 3º, § 1º, do Decreto-Lei nº 911/69, alterado pela Lei nº 10.931/2004. Como fica a purgação da mora na busca e apreensão de veículo em alienação fiduciária?. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009. Já Leonardo Perceu da Silva Costa entende que o melhor posicionamento a ser adotado será o “[...] de considerar como dívida pendente a totalidade do débito oriundo do inadimplemento, pois o bem será entregue ao devedor fiduciante livre de qualquer ônus, não existindo mais a figura da emenda da mora.” COSTA, Leonardo Perseu da Silva. Das alterações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 no instituto da alienação fiduciária em garantia (Decreto-Lei nº 911/1969 e Lei nº 4.728/1965). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009.

30 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.133 e 141.

100

Segundo os citados autores, isto ocorre porque, como a novel redação do artigo 3º do

Decreto-lei n° 911/69 assegura ao credor fiduciário instituição financeira, Fisco ou

Previdência, a ação de busca e apreensão independente e autônoma de qualquer outro

procedimento mediante a comprovação da mora ou inadimplemento do fiduciante, uma vez

fundamentada a ação no comprovado inadimplemento do devedor que, relembre-se, ocorre

em razão da não purgação da mora que lhe fora rigorosa e regularmente ofertada pelo

credor fiduciário, pode ainda o réu, utilizando-se do beneplácito do legislador, liquidar

integralmente a dívida pendente do contrato já resolvido, observada a devida redução

proporcional dos juros e demais acréscimos, e ter o bem restituído, desta feita livre de ônus.

Se, todavia, basear-se a referida ação de busca e apreensão na simples mora do devedor

fiduciante, o que ocorre quando o credor não lhe oferece oportunidade de pagamento das

prestações vencidas, ao devedor fiduciante é perfeitamente possível purgar a mora no valor

das parcelas vencidas, procedidos os devidos acréscimos, claro, por ser a purgação da

mora instituto de direito material e não processual. Trata-se, na ótica de Paulo Restiffe

Neto e Paulo Sérgio Restiffe, de um enigmático mecanismo legal, cuja “[...] força oculta

não é, portanto, um retrocesso jurídico; antes, é um avanço de atualização do direito

fiduciário ao compasso dos novos tempos [...].”31 Propõem, ainda, os referidos autores, por

parte do intérprete, uma releitura do caput do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69,

integrando-o ao §2º do artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor e ao parágrafo único

do artigo 395 e inciso I do artigo 401, ambos do Código Civil, o que leva à seguinte

equânime orientação:

O proprietário fiduciário ou credor poderá requerer contra o fiduciante ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual só será concedida liminarmente, desde que comprovado o inadimplemento do devedor, que é o estado de mora não purgada extrajudicialmente, isto é, quando respeitada e assegurada, antes, a prerrogativa de escolha dessa alternativa de não-resolução pelo credor predisponente ao devedor aderente que não a tenha aproveitado. Só com a observância desse padrão de conduta pré-processual das partes contratantes o novo sistema legal vigente autoriza a instauração e desenvolvimento válido do rito procedimental atualizado, inscrito nos novos parágrafos do art. 3.°, para a modificada ação, de natureza resolutória, de busca e apreensão de bem móvel alienado fiduciariamente em garantia de pagamento de dívida, no âmbito do mercado financeiro expandido.32

31 Ibid., 2007, p.121-132 e 153. Ressalte-se que nos termos do artigo 401, do Código Civil de 2002, purga o

devedor a mora oferecendo a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta. Já o credor purga a mora oferecendo-se a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data. Já o §2º do artigo 52 do Código de Consumo assegura ao consumidor que liquida total ou parcial e antecipadamente seu débito a redução proporcional dos juros e demais acréscimos.

32 Ibid., 2007, p.156-157. Acerca da purgação da mora em ação de busca e apreensão, a jurisprudência, sem tecer maiores detalhes, mostra-se oscilante, ora permitindo que o devedor fiduciante purgue a mora depositando unicamente o valor referente às parcelas vencidas, ora determinando que o fiduciante purgue a mora mediante

101

Opinam igualmente que a Lei n° 10.931/2004 não violou os preceitos constitucionais do

devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório Pablo Berger, que entende que o

deferimento da liminar na ação de busca e apreensão initio litis configura hipótese de

contraditório diferido33, Marcus Vinicius Moura de Oliveira, para quem não existe afronta nem

ao princípio do devido processo legal, já que o bem apenas passa a fazer parte do patrimônio

do devedor quando do pagamento da integralidade da dívida, nem do contraditório, posto que a

nova legislação trouxe um prazo maior para a defesa do réu, e Demócrito Reinaldo Filho, que

conclui pela natureza cognitiva e de execução sumária da ação de busca e apreensão

independente e autônoma do Decreto-lei n° 911/69, não ofendendo o contraditório nem a

ampla defesa “[...] a simples antecipação da consolidação da propriedade e posse plena no

patrimônio do autor [...]”, após os cinco dias da execução da liminar.34

o pagamento das parcelas vencidas e vincendas. Todavia, é de se observar, predominarem as decisões no sentido de determinar a purgação da mora através do pagamento das prestações vencidas e vincendas tomando por base os cálculos apresentados na inicial pelo credor. Nesse sentido, de inclusão das parcelas vincendas no cálculo para a purgação da mora, confiram-se as seguintes decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios: APC 20060710069994/2008, APC 20070110912724/2008, APC 20050310240792/2008, APC 20080210006252/2008, AGI 20070020080877/2008, AGI 20080020031238/2008, AGI 20080020055814/2008, AGI 20080020077515/2008, AGI 20080020118955/2008 e AGI 20080020104470/2008. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009. Em sentido contrário, permitindo a purgação da mora tendo por base unicamente as parcelas vencidas, vide: RIO GRANDE DO SUL. AGI n° 70013642665/2006. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009, e DISTRITO FEDERAL. APC n° 20070110809374. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Disponível em: <http//www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009. Neste último julgado, ressalta-se, o entendimento é no sentido de que a dívida pendente é a dívida vencida e não vincenda, entendimento que deve prevalecer sob pena de se inviabilizar a faculdade da purgação da mora e, desnaturando o contrato de financiamento garantido por alienação fiduciária, obrigar o devedor fiduciante a adquirir o bem à vista e não à prestação, como consta do próprio julgado.

33Ao comentar o §1º do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, Pablo Berger afirma que: “muito se tem discutido na doutrina nacional acerca da suposta inconstitucionalidade do dispositivo legal acima transcrito, por suposta violação do preceito constitucional do devido processo legal. Não é, contudo, nossa posição acerca do tema em voga. Tratando-se de liminar deferida initio litis, ou seja, com natureza cognitiva sumária, nada obsta que o Juízo, quando da prolação da sentença, deixe de confirmar a liminar deferida, o que mantém o caráter de provisoriedade da tutela antecipada, tratando-se, como tem entendido a melhor doutrina, de contraditório diferido, amplamente permitido pelo Código de Processo Civil.” BERGER, Pablo, op. cit., 2009, on line.

34 BERGER, Pablo. Considerações gerais sobre as modificações introduzidas pela Lei nº 10.931/04 na ação de busca e apreensão regida pelo Decreto-Lei nº 911/69. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 753, 27 jul. 2005. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 23 fev. 2009; OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de. Lei nº 10.931/04: as alterações ao Decreto-Lei nº 911/69. Questões relevantes. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 533, 22 dez. 2004. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 11 maio 2008; REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line. Para este último autor, a decisão liminar que consolida a propriedade e posse plena no patrimônio do autor não é irreversível porque o devedor tem a faculdade de impedir os seus efeitos pagando a integralidade da dívida ou purgando a mora. Além disso, o despacho liminar que determina a busca e apreensão é provisório e pode ser atacado por via de agravo de instrumento. De mais a mais, como nem sempre a sentença é prolatada depois da alienação do bem pelo credor, os efeitos da consolidação podem ser desconstituídos antes que provoquem resultados irreversíveis (em termos da impossibilidade de devolução do mesmo bem ao devedor). Portanto, segundo ele, em termos fáticos, se não é impossível é praticamente muito difícil que o provimento liminar produza efeitos irreversíveis, sem que o devedor possa ou tenha meios para evitá-los. Já em termos econômicos, “[...] também não se pode dizer

102

Para reforçar a comprovação da tese por eles esposada: de que a Lei n° 10.931/2004

não ofendeu as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do

contraditório, referidos autores recorrem ao fato de ter a mencionada lei estabelecido a

condenação do credor fiduciário, na sentença de improcedência da ação de busca e

apreensão, de uma multa equivalente a 50% (cinquenta por cento) do valor originalmente

financiado caso o mesmo, credor fiduciário, tenha se desfeito do bem, multa não

excludente da responsabilidade deste por perdas e danos, a qual deve reverter em benefício

do devedor fiduciante. Além disso, a multa acima aludida, conforme estabelece o §7º do

artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, com a redação da Lei n° 10.931/2004, não exclui a

responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos, tendo estes por fundamento os

prejuízos amargados pelo fiduciante em decorrência da venda do bem pelo credor antes do

advento da sentença.35

Nesse tocante, Márcio Calil de Assumpção lembra que essa situação se diferencia

sobremaneira daquela outra tratada pelo §6º do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, “[...] já

que para esta (multa) seu cabimento está condicionado única e exclusivamente à prolação de

uma decisão de improcedência do pedido.” Já no que condiz com a indenização por perdas

e danos estipulada na sentença, esta, indenização, exige uma cognição destinada a

quantificar os prejuízos sofridos pelo devedor, cognição que, a critério do devedor, “[...]

poderá ocorrer (ou não), à escolha do devedor fiduciante, nos mesmos autos em que ficou

definitivamente reconhecida a inexistência do direi to do credor fiduciário, ou seja, na

própria ação de Busca e Apreensão [...]”, podendo ainda ser liquidada e executada nos

próprios autos da ação de busca e apreensão, em razão de uma “[...] interpretação analógica ao

que o despacho de busca e apreensão produza efeitos irreversíveis. A própria Lei que regula o procedimento da ação previu uma multa como substitutivo patrimonial pela perda antecipada da posse do bem, na base de 50% do valor originalmente financiado pelo devedor, que o Juiz condena o credor fiduciário a pagamento em caso de improcedência da ação (par. 6o. do art. 3o. do Dec. Lei 911/69, na nova redação). Ademais, o pagamento da multa não exclui a possibilidade de o credor responder por outros prejuízos que a decisão possa eventualmente causar ao devedor, visto que o parágrafo 7o. do art. 3o. ressalva a responsabilidade daquele por perdas e danos. E a título de perdas e danos, o Juiz poderá sempre condenar o credor a entregar bem idêntico, com as mesmas características (de marca, modelo, ano de fabricação, valor etc), compensando, por essa via, a perda da posse do bem primitivamente transacionado.” Ibid., 2009, on line.

35 BERGER, Pablo, op. cit., 2009, on line; OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de, op. cit., 2008, on line e REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line. Aliás, sobre a aludida multa, destaca Pablo Berger que sua aplicação não exclui a responsabilidade do credor em caso de perdas e danos comprovadamente sofridos pelo devedor, bem como que a mencionada multa apenas pode ser aplicada pelo juiz se o bem tiver sido por aquele alienado e em caso de improcedência total da ação, sendo vedada sua aplicação em caso de improcedência parcial ou extinção do feito sem julgamento de mérito. Isto porque a responsabilidade do credor fiduciário é, in casu, objetiva, ou seja, independe da existência de culpa. BERGER, Paulo, op. cit, 2009, on line.

103

disposto no art. 588 do Código de Processo Civil, que corresponderá ao novo art. 475-O do

diploma processual (por força da recente Lei nº 11.232/05).”36

A citada lei determina ainda que da sentença, seja ela de procedência ou de

improcedência da ação de busca e apreensão, cabe apelação e não mais agravo de

instrumento, recurso que será recebido apenas no efeito devolutivo.37 Mas não é só: dentre

as alegadas maravilhas da nova lei, destaca-se a nova redação do §4° da Lei n°

10.931/2004, que autoriza o devedor a reclamar a devolução das parcelas eventualmente

pagas em desacordo com a lei ou com o próprio contrato, concluindo pelo seu caráter

dúplice,38 ou então:

[...] se o novo procedimento da ação de busca e apreensão não lhe confere a característica de ação de natureza dúplice - pois o réu não pode demandar a posse do bem no mesmo processo que é promovido contra si -, é certo que o Juiz, no comando sentencial, ainda quando não julgue improcedente o pedido do autor, pode condená-lo a devolver diferenças e valores cobrados em desacordo com a lei, como conseqüência de uma verdadeira revisão que faz do contrato e de suas cláusulas [...].39

Não obstante, contudo, a precisão do raciocínio dos doutrinadores que consideram

constitucional a Lei n° 10.931/2004 na parte que tencionou alterar o Decreto-lei n° 911/69

e parecem enxergar naquela lei verdadeira “panacéia” capaz de remediar todos os males

deste decreto-lei, pensa-se que mesmo que essa norma tivesse sido recepcionada pela Carta

de 1988 as alterações pretendidas pela lei de 2004 seriam igualmente inconstitucionais por

ofenderem as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do

contraditório. Paridade, repise-se, é o cerne da questão ora analisada, e exatamente o que

reclamam as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, à qual

36 ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.204-205. Para esse autor, portanto, “não haverá necessidade

de um processo de conhecimento autônomo para reconhecimento do an debeatur. A obrigação de ressarcir os prejuízos do devedor fiduciário decorrerá da própria decisão que permitiu a venda extrajudicial do bem apreendido (execução provisória) antes do trânsito em julgado.” Ibid., 2006, p.205.

37 Registre-se que a sentença que julgar procedente o pedido constante da ação de busca e apreensão “[...] tem caráter declaratório, pois não tem efeito constitutivo relativamente à consolidação da propriedade; esta resulta, de pleno direito, da verificação da condição, que corresponde à não-purgação da mora. A sentença apenas declara a consolidação.” CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p.228. Lembra, contudo, Márcio Calil de Assumpção que “[...] apesar da carga condenatória não ser preponderante na sentença proferida na ação de Busca e Apreensão, na hipótese de aplicação da multa, bem como na condenação nas verbas de sucumbência, constará do corpo do decisum inevitavelmente um capítulo condenatório.” (itálico no original). ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de, op. cit., 2006, p.202.

38 Nestes termos manifesta-se Marcus Vinícius Moura de Oliveira: “Doravante, com a possibilidade de pedido de repetição de indébito pelo requerido, a ação de busca e apreensão prevista nos casos do Decreto-Lei 911/69 tem caráter dúplice, cabendo, inclusive, a realização de perícia contábil para apuração de valores.” OLIVEIRA, Marcus Vinícius Moura de, op. cit., 2008, on line.

39 REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line.

104

integra o princípio do contraditório. Nestes termos, cabe a pergunta: estão instituições

financeiras e consumidores igualmente protegidos?

Começa-se a analisar a questão pelos prazos para purgação da mora e exercício do

direito de defesa, agora ampla (?), por parte do fiduciante, réu na ação de busca e apreensão

independente e autônoma intentada pelo fornecedor instituição financeira. A purgação da

mora que, segundo a doutrina, pode ser feita tendo por base unicamente as prestações

vencidas sem englobar as parcelas vincendas, como determina a Lei n° 10.931/2004, deve

se dar nos termos dos valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial e dentro do

quinquídio seguinte à juntada aos autos do mandado de citação, sob pena de no sexto dia

consolidam-se de pleno direito a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no

patrimônio do credor, enquanto o prazo para resposta é de quinze dias.40

Ora, é justamente na sua resposta que o fiduciante poderá levar ao conhecimento do

juízo toda a matéria de sua defesa, inclusive acerca da cobrança de valores abusivos

porventura constantes da planilha apresentada pelo credor na inicial de busca e apreensão

e/ou componentes das prestações do financiamento. Assim, mesmo que o réu consiga

provar na sua defesa que o valor por ele efetivamente devido é menor que o valor apontado

pelo credor, será ele impedido de pagar esse valor porque o prazo para a purgação da mora,

de cinco dias, já se esgotou inteiramente antes mesmo de exaurido o prazo para

apresentação de sua resposta, que é de quinze dias, já tendo se consolidado a propriedade e

posse plena do bem infungível nas mãos do credor, eis que o prazo destinado à purgação da

mora apenas permite, sem qualquer discussão, o pagamento pelo devedor do valor cobrado

pelo credor.

Ademais o contrato de alienação fiduciária em garantia firmado entre um consumidor

e uma instituição financeira é indiscutivelmente de adesão, que é ambiente propício à

inserção de cláusulas abusivas e, portanto nulas de pleno direito, cláusulas cuja extirpação

do contrato podem responder inclusive pela vitória no réu na demanda. Contudo, sua

análise apenas se dá na defesa do réu, o que pode ocorrer tardiamente, ou seja, após a

consolidação da propriedade e posse plena do bem infungível nas mãos do credor.41

40 Relembre-se que o pagamento de parcelas vincendas em contratos de financiamento obriga o credor a reduzir

proporcionalmente os juros, nos termos do §2° do artigo 52 do Código de Consumo, já que se trata de liquidação antecipada de débito.

41 Além disso, no contrato de adesão, repise-se, não há espaço para o consumidor exercer sua liberdade na contratação, cabendo-lhe aceitar todas as condições impostas pelo fornecedor que, não raro, sequer lhe dá a

105

Nestes termos, pensa-se não se poder falar em asseguramento às garantias

constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, pois mesmo

que o bem não integre ainda o patrimônio do devedor fiduciante, este, consumidor que é

titular de direitos fundamentais, teve frustrado pela norma seu direito expectativo à

aquisição da propriedade plena do bem, já que impedido fora de ter sua defesa apreciada, e

possivelmente provida, porque antes mesmo que isso pudesse acontecer, a propriedade e a

posse plena e exclusiva do bem objeto do contrato de alienação fiduciária em garantia

operaram-se nas mãos do credor. E se este optou por vender o bem, o terceiro que o

adquiriu não pode ter seu direito molestado.

Argumenta-se que se trata apenas de “contraditório diferido”,42 diferido demais, diga-

se de passagem, a ponto inclusive de ser totalmente inútil ao devedor que não apenas

pretende como possui a legítima expectativa de adquirir a propriedade plena do bem

infungível financiado. Pode-se falar assim em defesa em mero sentido formal, pois não se

presta a atingir os objetivos próprios de uma defesa, em total desobediência aos ditames

constitucionais. Nem se argumente no sentido de que o contraditório pode se manifestar de

uma maneira peculiar: por iniciativa do devedor que, reagindo a algum ato praticado pelo

credor que possa culminar na lesão ou ameaça de lesão a direito seu, ajuíza ação cabível,

como se dá na ação de execução ou monitória, onde o contraditório é iniciado pelo devedor

por meio do ingresso de embargos.

A tese, apesar de seu arcabouço lógico, não é convincente. A análise, ainda que

perfunctória, do tema leva à conclusão de que os embargos à execução opostos pelo

devedor mostram-se como instrumento útil à sua defesa, capaz de prevenir danos ao seu

patrimônio. Isto porque podem ser os mesmos opostos pelo devedor independentemente de

penhora, depósito ou caução de sua parte, além de poder ter atribuído pelo juiz, mediante

requerimento do devedor, efeito suspensivo quando, relevantes seus fundamentos, o

prosseguimento da execução possa manifestamente causar dano de difícil ou incerta

oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo do instrumento, conditio sine que non para que o contrato obrigue o consumidor, nos termos do artigo 46 do Código de Consumo. Demais, o consumidor conta com a possibilidade de inversão do ônus da prova a seu favor, nos termos do artigo 6°, VIII, da Lei Protetora, fato que, em ocorrendo, também pode culminar na sua vitória na demanda. Tudo isso, contudo, requer tempo e tempo é justamente o que não dispõe o fiduciante demandado na ação de busca e apreensão independente e autônoma, haja vista consolidar-se automaticamente a propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor fiduciário após o quinquídio legal. Nestes termos, sequer se pode conceber que a Lei n° 10.931/2004 “presenteou” o fiduciante com ampla defesa

42 Consultar nota de rodapé n° 34 deste capítulo.

106

reparação ao executado, nos termos do artigo 736 e do §1º do artigo 739-A do Código de

Processo Civil.

Diga-se o mesmo com relação à ação monitória, pois uma vez oferecidos embargos

pelo réu, suspensa resta a eficácia do mandado inicial, ou seja, a formação do título até o

julgamento destes, nos termos do artigo 1.102-C do Código de Processo Civil. Quer dizer

que tanto na ação de execução como na ação monitória, ambas classificadas como lide de

cognição sumária e contraditório diferido, é possível ao réu, no exercício de sua defesa,

expressão que aqui se emprega em sentido amplo, ter apreciada e impedida lesão ou

ameaça de lesão ao seu direito em razão, inclusive, do excesso de cobrança porventura

existente por parte do credor. 43

Assim, se não se pode falar em inconstitucionalidade por afronta às garantias

constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, nem em sede

de ação de execução, nem em sede de ação monitória, o mesmo não se pode dizer da ação

de busca e apreensão independente e autônoma engendrada pelo Decreto-lei n° 911/69, de

alegada cognição sumária e contraditório diferido, eis que nesta é impossível ao devedor

ver frustrada a lesão, ou ameaça de lesão, ao seu direito, por parte do credor fiduciário –

leia-se instituição financeira – mesmo após o advento da Lei n° 10.931/2004.

Olvidadas, portanto, foram as garantias do devido processo legal44, da ampla defesa e

do contraditório pela lei ora estudada na parte que pretendeu alterar o Decreto-lei n°

911/69, vez que nem a multa estipulada no §6° do artigo 3º do referido decreto nem a

indenização por perdas e danos a que pode ser o credor condenado, conforme consta do §7°

43 Idêntico entendimento adota Denival Francisco da Silva: “Tolerar todos estes excessos sob o mísero

argumento de previsão legal é admitir ofensas constitucionais. Comparar com outros procedimentos judiciais – embora não haja paralelo – para querer justificar a possibilidade das extravagâncias aqui praticadas, é usar da velha prática de que, não obstante as evidências de inconstitucionalidades, se noutras procedimentos eventualmente também as têm, que mal haveria? Dizer, simplesmente que os tribunais têm admitido o procedimento estatuído no Dec. Lei 911/1969, porém sem estes questionamentos, é negar a tarefa judicial de controle difuso da constitucionalidade, e neste caso específico de não recepcionamento. Enfim, diversas outras ponderações são possíveis, podendo ser sintetizadas na clara constatação de que o procedimento regido no decreto não assegura os direitos instrumentais prescritos na Constituição Federal.” SILVA, Denival Francisco da, op. cit., 2008, on line. (Negrito no original).

44 A necessidade de uma razoável duração do processo, igualmente assegurada pelo artigo 5°, LXXVIII da Constituição da República, não pode ser utilizada em prejuízo das demais garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, constantes do artigo 5°, LIV e LV, seja em homenagem à interpretação sistemática das normas constitucionais, seja em razão de essa garantia, de duração razoável do processo, ter sido incluída pela Emenda Constitucional n° 45/2004 e o artigo 60, §4° da mesma constituição não tolerar proposta de emenda sequer tendente a abolir os direitos e garantias individuais, onde já se repousavam as garantias do devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.

107

do mesmo artigo, prestam-se a suprir as garantias constitucionais já mencionadas.45 Nesse

sentido, Denival Francisco da Silva faz as seguintes considerações:

Quanto ao Dec. Lei 911/1969, a despeito dos remendos que recebeu com a Lei n. 10.931, de 02 de agosto de 2004, trata-se de legislação que, a nosso ver, não fora recepcionada pela Constituição Federal de 1988, pelo fato de extrair do devedor garantias fundamentais que sequer esta última tratativa legal conseguiu reparar. E não haveria de ser diferente, porque somente sua extirpação completa do ordenamento jurídico, com edição de uma nova legislação para regular o instituto da alienação fiduciária, com total atenção ao consumidor, é que se poderia atender integralmente as disposições constitucionais de agora. E se isso não fosse possível, seria mais uma comprovação sintomática de que o malfadado instrumento legal não pode prevalecer nos dias atuais, sobretudo na sua concepção original.46

Por outro lado, ainda que se admita que o fiduciante possa defender seus direitos por

meio do ajuizamento de ações revisionais e/ou ações de consignação em pagamento, tem-

se que levar em consideração que o consumidor, leigo em sua maioria, não está em pé de

igualdade com o fornecedor instituição financeira, seja porque não está preparado para

litigar como este, que não raro possui um setor jurídico organizado à sua disposição, seja

porque nos próprios contornos da ação de busca e apreensão independente e autônoma é

que deve ser garantido ao devedor o devido processo legal e plenamente assegurado direito

à ampla defesa, aí incluído o contraditório. Além disso, as referidas ações, revisional e

consignatória, não se mostram como meios eficazes para barrar os efeitos da ação de busca

e apreensão independente e autônoma. Isto porque, uma vez comprovada, pelo credor

fiduciário, a mora do devedor fiduciante, ao juiz cabe unicamente a concessão da medida

liminar requestada pelo credor, já que a apreciação da defesa do réu, na qual certamente

constará a alegação do depósito porventura feito em juízo e o consequente pedido de

45 A previsão dessa multa pela lei, como é óbvio, contudo, não tem o condão de elidir o vício da

inconstitucionalidade que habita no novo §1º do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69. Esse, aliás, o entendimento de Alex Sandro Ribeiro: “Essa previsão tenta aplacar a insurgência contra a drástica consolidação liminar da propriedade (art. 3º, § 1º, do Decreto Lei n. 911/69) e a faculdade de alienação extrajudicial do bem. Realmente, ameniza de algum modo o prejuízo e acalma a irresignação. Não tem, contudo, o condão de expungir o vício de inconstitucionalidade daqueloutro dispositivo, que permite a privação do patrimônio sem o devido processo legal.” RIBEIRO, Alex Sandro, op. cit., 2008, on line.

46 SILVA, Denival Francisco da, op. cit., 2008, on line. Mesmo tecendo inúmeras e acirradas críticas ao Decreto-lei n° 911/69 e admitindo as evidentes inconstitucionalidades desta norma, referido autor conclui apenas no sentido de ser conferido ao referido decreto-lei uma interpretação conforme os princípios constitucionais: “Não há como admitir a atualidade e plena vigência do Dec. Lei 911/1969 sem ao menos formular-lhe uma crítica acirrada. Mas, a despeito das evidentes inconformidades com a nova ordem constitucional, esta legislação tem ainda assim recebido os beneplácitos dos juristas de agora, seja nas decisões judiciais, seja na doutrina. [...] Assim é que, em face das argumentações aqui expedidas, mesmo que se tolere a vigência do Dec.-Lei 911/1969, não se pode desprezar, na sua interpretação, os princípios constitucionais do devido processo legal e da defesa do consumidor, devendo por isso dar-se nova sistemática procedimental, pouco (ou quase nada) se podendo aproveitar da referida legislação.” Ibid., 2008, on line. (destaques no original).

108

liberação da dívida, apenas ocorrerá após a consolidação da propriedade e a posse plena

nas mãos do credor fiduciário.47

Sequer se concebe a possibilidade de o particular que celebra com seu par um

contrato de alienação fiduciária em garantia poder manejar a ação de busca e apreensão

independente e autônoma engenhada pelo Decreto-lei n° 911/69, como se infere de seu

novo artigo 8º-A, acrescido pela Lei n° 10.931/2004, que, para pôr fim a toda e qualquer

discussão doutrinária e jurisprudencial, reza que o procedimento judicial ali disposto

aplica-se exclusivamente às hipóteses da Seção XIV da Lei no 4.728, de 14 de julho de

1965, vale dizer, quando o contrato de alienação fiduciária em garantia tiver sido celebrado

no âmbito do mercado de capitais, ou seja, por financeiras, ou ainda nos casos de

constituição da propriedade fiduciária para fins de garantia de débito fiscal ou

previdenciário, deixando mais que claro privilegiar as instituições financeiras,

47 Acompanhemos a seguinte hipótese: A adquire um veículo automotor para uso pessoal na loja B, aderindo a

contrato de financiamento, leia-se contrato de adesão, com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia junto ao banco C, que diluiu valores indevidos na prestação mensal cobrada ao consumidor, fato suficiente para configurar a mora do credor. Diante do não pagamento de três prestações do financiamento pelo devedor fiduciário, o credor intentou ação de busca e apreensão do veículo adquirido após protestar o título firmado pelo fiduciante, tendo o magistrado concedido liminarmente seu pleito apoiado no §1° do artigo 3º do Decreto-lei n° 911/69, com a redação que lhe emprestara a Lei n° 10.931/2004, eis que comprovada fora a mora através do protesto. O devedor, por sua vez, não pagou o montante cobrado pelo credor na inicial de busca e apreensão e acabou por ser impedido de afastar a mora debitoris porque sua defesa fora apreciada e provida somente após a consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor. Uma vez extinto o feito sem julgamento de mérito em razão de constituir a mora do devedor o fundamento da ação de busca e apreensão, restou o devedor como único prejudicado, eis que o credor se desfez do bem antes mesmo da prolação da sentença, frustrando não apenas seu direito expectativo à aquisição da propriedade plena da coisa, mas também seu direito básico à efetiva prevenção dos danos previsto no artigo 6°, VI, do CDC. Sobre a aceitação da mora do credor fiduciário em razão da cobrança de valores indevidos ao devedor fiduciante, inclusive previstos em cláusula contratual abusiva, e a conseqüente extinção da ação de busca e apreensão sem julgamento de mérito, vide as seguintes decisões: RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026762989. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 27 nov. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026964189. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 30 out. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70027214139. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 27 nov. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70027331750. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Julgado em 27 nov. 2008; RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70026987677. Décima Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dorval Bráulio Marques. Julgado em 22 jan. 2009. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 24 fev. 2009. Registre-se ainda que segundo Alex Sandro Ribeiro, ao consagrar a consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor fiduciário a Lei n° 10.931/2004 “Data venia, atinge as raias do absurdo, principalmente se considerado que se está diante de uma decisão interlocutória (que decide incidentes do processo) deferida initio litis e inaudita altera parte que, olvidando sua essência de provisória, termina por produzir efeitos de coisa julgada material, como se de sentença meritória irrecorrida se tratasse.” Para ele, portanto, é inconstitucional a consolidação liminar da propriedade nas mãos do credor fiduciário. RIBEIRO, Alex Sandro, op. cit., 2008, on line.

109

equiparando-as até ao fisco e à previdência social, que sempre gozaram dos beneplácitos do

legislador brasileiro.48

Flagrante, desse modo, a violação ao princípio da igualdade e às garantias do devido

processo legal, da ampla defesa e do contraditório, todos albergados pela Constituição de

1988, a denunciar a inconstitucionalidade da Lei n° 10.931/2004, bem como a não

recepção do Decreto-lei n° 911/69 pela Carta Maior.49

Consigne-se ainda que não se admite possa ser dada uma interpretação conforme a

constituição à Lei n° 10.931/2004, na parte que pretendeu reformular o Decreto-lei n°

911/69, pois mesmo que isso fosse possível com relação à purgação da mora, para permiti-

la no prazo de cinco dias seguintes à juntada aos autos do mandado de citação, com o

depósito pelo devedor das parcelas vencidas, sem englobar, portanto, as prestações

vincendas, como determina a aludida lei, o mesmo não se pode fazer com relação aos

demais dispositivos que ofendem o princípio da igualdade e as garantias do devido

processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Isto porque não se pode, a pretexto de

dispensar uma interpretação conforme a constituição a uma determinada norma, alterá-la a

ponto de fazer do intérprete o próprio legislador, em atentado inclusive ao princípio da

separação dos poderes, como ocorreria caso se tentasse proceder à conformação integral da

Lei n° 10.931/2004, na parte que tencionou alterar o Decreto-lei n° 911/69, aos ditames

constitucionais, para adequá-la ao princípio da igualdade e assegurar ao devedor fiduciante

48 Importante esclarecer aqui que quando se fala em equiparação de instituição financeira à entidade estatal não

se pretende dizer que as entidades estatais devam gozar de privilégios frente ao cidadão, mas apenas que podem tais entidades ser tratadas diferentemente do cidadão quando o interesse público o exigir, e apenas nesse caso. Entretanto, a constitucionalidade ou não do tratamento legal diferenciado dispensado ao fisco e à previdência social diante do devedor nos contratos de alienação fiduciária em garantia não será aqui abordada por extrapolar, em muito, o âmbito da presente dissertação.

49 No mesmo sentido o entendimento de Walter Lemos e Henriques Leite: “Outro princípio constitucional ofendido por esta determinação legal é da igualdade, que está descrito no art. 5°, onde se afirma que todos são iguais perante a lei. Com Decreto-lei n° 911/69, as instituições financeiras são tratadas de forma especial e privilegiadas pela legislação em detrimento dos devedores fiduciário, o que demonstra que a lei trata desigualmente as partes.” LEMOS, Walter Gustavo da Silva; LEITE, Antônio Henriques Lemos, op. cit., 2008, on line. Para Eduardo Prado Kolton e Mateus Lima Silveira, as alterações mais importantes trazidas pela Lei n° 10.931/2004 ao Decreto-lei n° 911/69 “[...] somente facilitam a atuação das instituições credoras, tanto na busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, como na sua venda, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa no contrato, ficando, o devedor fiduciário indefeso. Além disso, ferem os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, da isonomia e do livre convencimento do juiz, levando-o a conceder a busca a apreensão do bem alienado fiduciariamente sem a oitiva da parte contrária.” KOLTON, Eduardo Prado; SILVEIRA, Mateus Lima. Abordagem crítica ao Decreto-Lei nº 911/69 e suas alterações. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em: 15 maio 2009.

110

as garantias legais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, na ação de

busca e apreensão independente e autônoma do Decreto-lei n° 911/69.50

Não bastasse tudo isso, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe chamam a

atenção para a existência de grave vício formal na formulação da Lei n° 10.931/2004, “[...]

argüido e pronunciado de ofício em acórdão do TJSP, 23ª Câmara de Direito Privado, AI

7.011.347-2, rel. Des. J.B. Franco de Godói, j. 29.06.2005.”, vício capaz de responder pela

sua expunção do sistema normativo brasileiro:

Na oportunidade do exame de tema paralelo, que foi o da cédula de crédito bancário, caracterizada como título executivo extrajudicial no capítulo IV, arts. 26 a 45, por aquela nova lei, a Turma Julgadora suscitou preliminar, resolvida com o entendimento de que a inobservância, pelo legislador ordinário, na elaboração da Lei 10.931, de princípios insculpidos na Lei Complementar 95/1998, macula-a de ‘grave vício capaz de rechaçá-la do ordenamento jurídico’, por violação no processo legislativo ao determinado no art. 7.° da lei de hierarquia superior, fincada em cânone constitucional, art. 59, parágrafo único, que determina que ‘o primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação’; e ainda que, excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto, de modo que ‘a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão’ (inciso II). O aresto paulista detecta que o art. 1.° da Lei 10.931 dispõe exclusivamente sobre a instituição do ‘regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias’, enquanto no bojo dessa lei vêm disciplinados vários outros assuntos, o que mereceu a seguinte crítica: ‘O embaralhamento das matérias cuidadas pela Lei 10.931/2004 é de causar espécie a qualquer operador do Direito, eis que dispõe sobre a matéria acima referida, bem como ainda: da letra de crédito imobiliário; da cédula de crédito imobiliário,dos contratos de financiamento de imóveis; de alterações da lei de Incorporações; das alterações da Lei sobre Alienação Fiduciária no mercado financeiro e de capitais; alterações no Código Civil e, pasmem, alterações na Lei de Registros Públicos.’ É certo que o acórdão (que examinava tema sobre cédula de crédito bancário) faz a ressalva, expressa, de que ‘as demais situações jurídicas contidas no indigitado diploma legal refogem ao âmbito de análise do presente recurso’; mas a reestruturação da alienação fiduciária pelos arts. 55, 56, 58 e 67 da Lei 10.931, encontra-se em similar situação de anomalia formal da cédula de crédito bancário, execrada no julgamento que por isso anulou o processo de execução intentado.51

Antes de se partir para a averiguação da possibilidade de prisão civil do devedor

fiduciante nos contratos de alienação fiduciária em garantia, há ainda um aspecto que

precisa ser analisado: a venda extrajudicial do bem pelo credor independentemente de

avaliação prévia de seu valor e de prestação de contas ao devedor após a consolidação da

propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor.

50 Para Antônio Henrique Graciano Suxberger, “[...] interpretar conforme a Constituição não significa alterar o

conteúdo da lei. Até mesmo porque, se assim fosse, tratar-se-ia de uma intervenção extremamente drástica na esfera de competência do legislador – mais drástica do que a própria declaração de nulidade dessa mesma lei. Tal hipótese permitiria ao ente legiferante a possibilidade de uma nova conformação da matéria, traindo, portanto, a eminente natureza de sua tarefa primitiva.” SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Interpretação conforme a Constituição. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n.39, fev. 2000. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2009.

51 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.17-18.

111

5.2.4 Consolidação da propriedade e posse plena do bem nas mãos do credor

A apreciação do momento que se segue à consolidação da propriedade e posse plena

do bem objeto de alienação fiduciária em garantia nas mãos do credor diz respeito à

decisão por ele tomada com relação à coisa recebida. Fala-se aqui mais precisamente da

opção do credor de ficar com o bem ou aliená-lo a um terceiro. Neste tocante, alerta a

doutrina para o fato de que o advento da Lei n° 10.931/2004 pôs fim à proibição do pacto

comissório no âmbito do mercado de capitais em razão da revogação do §7° do artigo 66

da Lei n° 4.728/65, que rezava ser nula a cláusula que autorizasse o proprietário a ficar com

a coisa alienada em garantia se a dívida não fosse paga no seu vencimento. Nestes termos,

decorrido o quinquídio da execução da liminar nos autos da ação de busca e apreensão

independente e autônoma sem a purgação da mora por parte do devedor, o credor passa a

ter a plena propriedade da coisa, “[...] podendo revendê-la para recuperar seu crédito ou

simplesmente ficar com ela para uso próprio [...].”52

Ora, uma vez suprimido o §7º do artigo 66 da Lei n° 4.728/65, a matéria passa a ser

regida subsidiariamente pelo Código Civil, desde que, claro, os dispositivos que regulem

essa matéria específica não sejam incompatíveis com o disposto na Lei de Mercado de

Capitais. O artigo 1.364 da Lei Comum determina que uma vez vencida e não paga a dívida

fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros e a

aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, entregando o

saldo, se houver, ao devedor, proibida expressamente que é pelo caput do artigo seguinte

do mesmo diploma legal a instituição do pacto comissório nos contratos de alienação

fiduciária em garantia. Por via transversa, contudo, o parágrafo único do artigo 1.365 do

Código Civil acaba por permitir o pacto comissório em momento posterior à celebração do

contrato, ao facultar ao devedor, desde que haja a anuência do credor, dar seu direito

eventual à coisa em pagamento da dívida, após vencida esta, muito embora ocorra, nesse

caso, a quitação legal do débito.53

Isto porque, se a dação de seu direito eventual à propriedade do bem pelo devedor

tem por fim o pagamento da dívida, o destinatário dessa dação é ninguém mais ninguém

52 REINALDO FILHO, Demócrito, op. cit., 2009, on line. 53 Paulo Sérgio Restiffe e Paulo Restiffe Neto entendem que “não há incompatibilidade de integrar-se a proibição

codificada do pacto comissório harmonicamente com o espírito da lei especial, por aplicação subsidiária, à alienação fiduciária no âmbito do mercado financeiro e de capitais e, com maioria de razão, aos créditos fiscais e previdenciários [...].”RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.102.

112

menos que o próprio credor fiduciário, que adquirindo a propriedade do bem alienado

fiduciariamente, acaba por dispor da propriedade plena da coisa, podendo dar a esta o

destino que melhor lhe aprouver. Deságua, portanto, o parágrafo único do artigo 1.365 do

Código Civil na permissão da estipulação do pacto comissório nos contratos de alienação

fiduciária em garantia quando da ocorrência de mora pelo devedor, mesmo que de forma

oblíqua e em momento posterior à celebração da avença, conquanto extinga o vínculo

existente entre o credor e o devedor pela quitação do débito.

A dicção legal não dispensa a anuência do credor à dação do direito eventual pelo

devedor exatamente porque a mesma tem por finalidade o pagamento, ou melhor, a

quitação da dívida, liberando o devedor do vínculo com o credor. Além disto, extrai-se dos

termos do artigo 356 do mesmo Código Civil que cabe ao credor a decisão de receber ou

não prestação diversa da que lhe é devida que, no caso da alienação fiduciária em garantia,

é o dinheiro emprestado e não o bem que fora dado em garantia do pagamento do dinheiro.

Ademais, a Lei n° 10.931/204, ao tencionar dar nova redação ao §1° do artigo 3° do

Decreto-lei n° 911/69 (que consolida a propriedade e posse plena e exclusiva do bem no

patrimônio do credor fiduciário uma vez decorrido cinco dias da execução da liminar sem a

purgação da mora por parte do devedor) permitiu às repartições competentes expedir novo

certificado de registro de propriedade do bem em nome do credor, ou do terceiro por ele

indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária, o que leva à conclusão de que sua real

intenção foi eliminar a proibição do pacto comissório nos contratos de alienação fiduciária

em garantia celebrados no âmbito do mercado de capitais.54

Ressalte-se que, uma vez considerada constitucional a integralidade da Lei n°

10.931/2004, a permissão do estabelecimento do pacto comissório por ela trazida seria

válida, eis que altera o disposto na Lei n° 4.728/65, Lei de Mercado de Capitais, que regula

a parte material dos contratos de alienação fiduciária em garantia celebrados no âmbito do

54 Importante consignar que quando houver, pelo credor, venda a terceiro do bem fiduciariamente alienado, pode

o devedor, mediante ação monitória, haver o saldo remanescente por ventura existente, nos termos da Súmula 384, recentemente editada pelo Superior Tribunal de Justiça. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 384. Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo de venda extrajudicial de bem alienado fiduciariamente em garantia. Segunda Seção. Julgado em 27 maio 2009. Diário de Justiça, Brasília, DF, 08 jun. 2009. Disponível em: <http//www.stj.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2009. Registre-se que acaso válido fosse, o Decreto-lei n° 911/69 não constituiria óbice algum à permissão do estabelecimento do pacto comissório entre os contratantes, uma vez que além do disposto no §1º de seu artigo 3º, seu artigo 2º se limita a autorizar a venda da coisa a terceiros, “[...] independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato [...].”BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n° 911, de 1º de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 30 jun. 2008.

113

mercado de capitais, muito embora a referida modificação ocorra em total descompasso

com a natureza mesma do contrato de alienação fiduciária em garantia, cujo fundamento

precípuo é o estabelecimento de uma garantia que permita a rápida recuperação do crédito

pelo fiduciário, que é obtida com a venda do bem a terceiro e não com a integração da

propriedade plena do bem no patrimônio do credor para que este possa dele se utilizar, em

vez de aliená-lo.55 No caso do Decreto-lei n° 911/69, uma vez consolidada a propriedade e

posse plena nas mãos do fiduciário, o que ocorre após o quinquídio da execução da liminar

concedida na ação de busca e apreensão ajuizada pelo credor quando não purgada a mora

pelo devedor, aquele não é legalmente obrigado nem a proceder à avaliação prévia do bem,

nem a prestar contas da venda de excussão do bem ao fiduciante, que também não precisa

ser chamado para acompanhar o procedimento.56

Uma vez procedida à avaliação do bem, é provável que não se possa mais precisar

seu exato valor na época de sua entrega pelo devedor ao credor e esmorecido estará o

direito daquele. Atente-se ainda para o fato de que ausente discussão em ação judicial

acerca do valor da dívida decorrente do contrato de alienação fiduciária em garantia pelo

fiduciante, esta, dívida, importará no montante cobrado pelo credor e, em havendo excesso

na cobrança por parte deste, apenas o devedor sofrerá prejuízo, até porque raros não são os

casos em que o devedor confessa dívidas nos moldes ditados pelo credor, que se beneficia

inclusive com títulos executivos extrajudiciais prontos para execução. É que o devedor

55 Semelhante é o entendimento de Melhim Namem Chalhub: “[…] no caso de inadimplemento do fiduciante, a

propriedade se consolida no credor, sendo este obrigado a promover a venda do bem para, com o produto da venda, obter a satisfação do seu crédito. Não se trata de mera autorização dada ao fiduciário, mas, sim, um direito-dever intrínseco à natureza do contrato de alienação fiduciária, […], pois esse contrato caracteriza-se, mesmo, ‘pelo fato de constituir, em favor do credor, uma propriedade resolúvel e onerada com encargo’.” CHALHUB, Melhim Namem, op. cit., 2006, p.231-214. Entretanto, a Lei Comum deixou a porta aberta para o cometimento de abusos por parte do credor fiduciário, que jamais receberá o bem objeto do contrato de alienação fiduciária como pagamento, liberando, por conseguinte, o devedor da dívida se a coisa não tiver, no mínimo, o mesmo valor desta e, como essa situação é matematicamente bem difícil, embora não impossível, de ocorrer, frequentemente acontecerá de o credor apenas anuir em receber o bem cujo valor seja superior, e quiçá bem superior, ao valor da dívida do fiduciante, que nada mais poderá reclamar em juízo ou fora dele, autorizado que fora o enriquecimento sem causa do credor em razão dessa dação de seu direito eventual em pagamento pelo devedor, situação que assume primordial importância quando se trata do mercado de capitais, onde o contrato de alienação fiduciária em garantia é celebrado em larga escala com o consumidor, este vulnerável por expressa disposição legal.

56 No mesmo sentido manifestam-se Walter Lemos e Henriques Lemos: “o enfoque central deste artigo é sobre a venda extrajudicial do bem a bem prazer do credor, independente de avaliação e em procedimento administrativo próprio, sem nenhum critério de vigilância pré-estabelecido, o que resulta sempre em alcance de preço vil.

E, soando como desmando, o proprietário fiduciário não é obrigado prestar contas sobre a venda no processo judicial que autorizou, cabendo ao devedor pedi-la em ação própria, o que deixa o credor em posição bastante confortável, pois realiza a venda e não é obrigado à prestação de contas. Assim, é visível que o proprietário fiduciário, ao decidir unilateralmente sobre o preço na venda da coisa apreendida a terceiros, pratica ato privativo do Juiz, podendo cometer abusos e, absurdamente, ainda lhe resta o direito de promover a cobrança judicial dos valores remanescentes da dívida em face do devedor fiduciante.” LEMOS, Walter Gustavo da Silva; LEITE, Antônio Henriques Lemos, op. cit., 2008, on line.

114

continua pessoalmente obrigado a pagar o valor restante da dívida quando o montante

apurado na venda do bem a terceiro levada a efeito pelo credor for inferior ao valor do

débito do fiduciante, sob pena de enriquecimento sem causa.57

Contra o que argumentam os defensores da Lei n° 10.931/2004, que pretendeu

reformular o Decreto-lei n° 911/69, é preciso lembrar que a mesma não foi capaz de

obrigar o credor fiduciário a fazer a prévia avaliação do bem logo após a consolidação de

sua propriedade plena em seu patrimônio, nem de deixar a ação de busca e apreensão

independente e autônoma em aberto, ou suspensa, mesmo após a prolação da sentença, até

que o credor apresentasse uma prestação de contas ao devedor caso decidisse pela

alienação da coisa, já que o produto da venda reverte para o pagamento da dívida, a

propiciar inclusive a apuração do saldo remanescente e sua cobrança pelo agora credor, que 57 Sobre o assunto escrevem Paulo Sérgio Restiffe e Paulo Restiffe Neto: “quanto à não reprodução do texto do §

5º do art. 66 da Lei 4.728/1965, que mantinha a obrigação do devedor pelo saldo devedor, quando o preço da venda de excussão fosse insuficiente para cobrir o crédito mutuado, a permanência dessa responsabilidade pelo restante para o devedor na fidúcia paritária decorre do Código Civil (art. 1.366), e deve ser considerada não só compatível com a garantia fiduciária financeira da legislação especial, mas sobretudo da essência da natureza do mútuo, que caracteriza o contrato principal de empréstimo inadimplido, o direito do mutuante de recuperar o seu capital. [...]. A liberação excepcional do mutuário pelo restante dependeria de lei expressa, sob pena de locupletamento sem causa [...]” RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.98. (Itálico no original). Abra-se um parêntese para registrar que as dívidas bancárias, como é cediço, tornam-se impagáveis rapidamente, dado o seu crescimento em progressão geométrica. A avidez das instituições financeiras chega a ser tamanha que Marcos Antonyo Lima, em artigo sobre os devedores dos bancos, dá-nos conta do estado emocional desses devedores, que: “[...] entram em pânico, e não sabem como lidar com o fato, nem qual atitude tomar [...]”, havendo até “[...] caso de infarto fatal, pois muitas, ao se deparar com uma dívida impagável, imaginam que terão seus bens penhorados automaticamente pelo banco para atender o monstruoso débito apresentado [...].” Exemplificando melhor o crescimento da dívida, escreve Marco Antonyo no mesmo artigo que: “e se algum dia, por motivos de força maior, você ficar inadimplente com seu banco, por um período de cinco ou seis meses, ou mais, em um débito com valor principal de 10 mil reais, por exemplo, e esse banco lhe apresentar uma dívida de 30 mil reais, ou mais que isso, não se assuste, pois o uso dessa fórmula matemática, em benefício próprio, é muito comum pelos bancos brasileiros [...].” LIMA, Marcos Antonyo. Escravo$ dos banco$. Disponível em: <http://www.escravosdosbancos.com.br>. Acesso em: 15 maio 2009. Claro que não se faz aqui apologia à inadimplência, absolutamente não. Se há dívida, deve haver seu correspondente pagamento. Entretanto, não se pode aceitar jamais que um consumidor que não conseguiu pagar sua dívida a um banco precise trabalhar quiçá pelo resto de sua vida unicamente para tentar pagá-la transferindo praticamente todo o seu salário para a instituição financeira credora, reduzindo-se à condição análoga a de um escravo. Trata-se de abominável resquício de escravatura, sendo oportuno ressaltar que na atualidade, nem o pagamento de pensão alimentícia, um dever inquestionável de um pai para com os filhos, que busca viabilizar o direito à vida, pode se constituir em espécie de escravidão, como vêm se pronunciando os Tribunais nacionais. Nesse sentido, confiram-se as Apelações Cíveis n°s 70007168461 e 70008859928. RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70007168461. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 12 nov. 2003. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009. RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70008859928. Sétima Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 23 jun. 2004. Disponível em: <http//www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009. Tampouco, registre-se, “[...] se pode olvidar que o direito existe para fomentar a paz social e servir ao homem. O homem não pode ser escravo de norma escorchante, nem dela fazer uso para pôr em movimento a desagregação.” Assim se pronunciou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal na Apelação Cível n° 20000150005270. DISTRITO FEDERAL. Apelação Cível nº 20000150005270. Segunda Turma Cível. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relator: Romão C. Oliveira. Julgado em 13 ago. 2001. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br>. Acesso em: 15 maio 2009.

115

tanto pode ser o fiduciário ou o fiduciante, a depender da análise do caso concreto. E nem

se argumente no sentido de que a ação de busca e apreensão, por sua própria natureza, não

se prestaria a, após a apuração do débito, viabilizar a cobrança do saldo credor pelo

fiduciante, uma vez que ao fiduciário que não receber a coisa nem seu equivalente em

dinheiro, é garantido, nos termos do artigo 906, do Código de Processo Civil, “[...]

prosseguir, nos próprios autos da ação de depósito por conversão, para haver o que lhe for

reconhecido na sentença, observando-se o procedimento cabível.”, o que ocorreria também

em atenção aos princípios da economia processual e do amplo acesso à justiça.58

Nestes termos, ao devedor foi negada a possibilidade de imediata reação, consectário

lógico do contraditório, não se podendo sequer alegar que a possibilidade de reação nesse

caso é possível através do ingresso com ação judicial autônoma. Isto porque esta jamais

será imediata se o devedor fiduciário não souber, porque não lhe foi assegurado o direito de

saber, o valor do bem quando da consolidação da propriedade deste nas mãos do credor,

vez que este não é obrigado a proceder a uma avaliação prévia na coisa. Demais, não é o

credor obrigado a chamar o devedor para acompanhar a venda extrajudicial do veículo, não

obtendo este último, a partir do momento que é desapossado do bem, nenhuma informação

por parte do credor fiduciário, que se limita, não raro, a cobrar o saldo remanescente da

dívida ao fiduciante tempos depois da integração da propriedade no seu patrimônio, quiçá

meses ou até anos após.

Relembre-se que se a não recepção do Decreto-lei n° 911/69 se deu com a

promulgação da Constituição Federal de 1998, não poderia a Lei n° 10.931/2004 alterá-la.

Mesmo que se admitisse a possibilidade de alteração daquele decreto-lei por uma nova lei,

inclusive pelo fato de ser esta posterior à Constituição de 1988, a novel norma teria

primeiro que satisfazer o vital requisito da conformidade com a Carta Maior, sob pena de

nascer morta, que foi exatamente o que aconteceu com a Lei n° 10.931/2004, na parte que

pretendeu alterar o aludido decreto-lei.

Ultrapassados esses pontos, resta ainda responder à questão formulada no capítulo

anterior, que versa sobre a possibilidade ou não de estar sujeito o devedor fiduciante à

prisão quando considerado depositário infiel do bem fiduciariamente alienado.

58 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.174.

116

5.2.5 Constitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciário

Nos termos dos artigos 627 e 629 do Código Civil pátrio, existe contrato de depósito

quando o depositário recebe um objeto móvel para guardar até que o depositante o reclame,

constituindo obrigação do depositário dispensar na guarda e conservação da coisa

depositada o cuidado e a diligência que costuma ter com o que é de sua propriedade.59 O

§17 do artigo 150 da Constituição de 1969 dispunha que não haveria prisão civil por

dívida, salvo o caso do depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento de

obrigação alimentar, na forma da lei.60 Já o antigo §2º do artigo 66 da Lei n° 4.728/65, Lei

de Mercado de Capitais, com a redação que lhe emprestara o Decreto-lei n° 911/69,

equiparando o devedor fiduciário a depositário, rezava transferir o instrumento de alienação

fiduciária o domínio da coisa alienada independentemente de sua tradição, continuando o

devedor a possuir o bem em nome do adquirente, segundo as condições estabelecidas no

contrato e com as responsabilidades de depositário.61

Como o artigo 4º do Decreto-lei n° 911/69 previa (e ainda prevê) a possibilidade de

conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, nos mesmos autos, adotando-

se a forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil,

se o bem alienado fiduciariamente não fosse encontrado ou não se achasse na posse do

devedor fiduciante, e o §1º do artigo 902 do mencionado Diploma Legal permitia (e ainda

permite), mediante pedido do interessado, a cominação da pena de prisão pelo prazo de até

1 (um) ano, nos termos do parágrafo único do artigo 904 do Código de Ritos, julgado

procedente o pedido na convertida ação de depósito, o juiz ordenaria a expedição do

59 Informa Odete Novais Carneiro Queiroz haver no direito brasileiro três modalidades de depósito: o depósito

civil, regulado pelos artigos 627 e seguintes do Código Civil Brasileiro; o depósito mercantil, “[...] que é aquele feito por comerciante, ou ainda aquele oriundo de negócio relativo ao comércio (art. 628 do CCB), que tem como uma das modalidades mais usuais o depósito bancário [...]” e o depósito judicial, proveniente de determinação do Poder Judiciário, via mandado. Já com relação ao depósito civil, que é a espécie de depósito que guarda relação com o assunto que ora se estuda, subdivide-se este em duas outras categorias: a do depósito voluntário, que é a espécie de contrato livremente acordado entre as partes, e a do depósito necessário, que é aquele determinado pelas circunstâncias e compreende o depósito legal, ou seja, o depósito determinado pela lei; o depósito miserável, que ocorre em situações de calamidade e o depósito do hoteleiro ou do hospedeiro, equiparado ao depósito necessário e presente no parágrafo único do artigo 629 do Código Civil. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Prisão civil e os direitos humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.26, 30 e 31. Em regra gratuito, o contrato de depósito, nos moldes do artigo 628 do CC/2002, torna-se oneroso se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão.

60 Eis a redação do §17 do artigo 150 da Constituição de 1967: “Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel, ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 4 maio 2008.

61 Fala-se na antiga redação do mencionado dispositivo porque com as alterações introduzidas na Lei de Mercado de Capitais pela Lei n° 10.931/2004 não há mais referência à responsabilidade do fiduciante como depositário.

117

mandado para a entrega da coisa depositada ou seu equivalente em dinheiro no prazo de 24

(vinte e quatro) horas, sob pena de prisão do devedor fiduciante, equiparado este que era a

depositário infiel. Isto porque nos termos do artigo 1.287 do Código Civil de antanho, o

depositário que não restituísse o bem quando este lhe fosse exigido seria compelido a fazê-

lo mediante prisão não excedente a 1 (um) ano e a ressarcir os prejuízos sofridos pelo

depositante, nos casos de depósito voluntário ou necessário, dispositivo que corresponde ao

artigo 652 do Código Civil de 2002.62

Nesse cenário, tornou-se praxe a conversão da ação de busca e apreensão

independente e autônoma em ação de depósito com o pedido de prisão do devedor

fiduciante quando o bem alienado fiduciariamente não fosse encontrado, não se achasse na

sua posse ou não houvesse o pagamento de seu equivalente em dinheiro. E prisões houve,

já que, relembre-se, pelo legislador ordinário, conforme permitiu a Constituição de 1969,

equiparado fora o devedor fiduciante a depositário infiel quando não devolvia o bem nem

entregava seu equivalente em dinheiro ao credor fiduciário. Por muito tempo então, como

informa Odete Novais Carneiro Queiroz, não houve “[...] vacilação em condenar-se à

prisão o fiduciante inadimplente que não restituísse a coisa alienada [...]” nem oferecesse

seu equivalente em dinheiro. Dificuldades, entretanto, enfrentaram doutrina e

jurisprudência:

[...] em virtude da similitude e equiparação de diversos institutos feita pelo legislador, muito embora se façam também presentes características que os distinguem. Por exemplo, a alienação fiduciária em garantia, conforme o próprio nome sugere, não é um depósito e sim um acréscimo de garantia que se criou em benefício do credor, visando, na verdade, questões meramente econômicas. No entanto, por um grande período, aplicou-se a pena da prisão civil ao devedor fiduciante por ter havido remissão ‘do legislador ordinário ao depósito genuíno.63

No autêntico contrato de depósito, governado pelo Código Civil, o bem é confiado ao

depositário para custódia e deve ser restituído quando requerido pelo depositante. Já no

62 Era a seguinte a redação do artigo 1.287 do CC/16: “Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário,

que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos (art. 1.273).” Já o artigo 652 do Código Civil vigente traz a seguinte redação: “Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.” BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008; BRASIL. Código Civil de 1916. São Paulo: Manole, 2003.

63 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.58 e 25. Registre-se aqui que Celso Marcelo de Oliveira noticia que: “[...] já em 1972 se levantam vozes contrárias ao decreto de prisão basicamente porque não teria sido intenção do legislador constitucional impor a aplicação da coerção e nem deixar ao arbítrio do legislador ordinário a sua fixação aleatória, notadamente considerando a equiparação do devedor fiduciante a depositário realizada por técnica de ficção, incorporando à situação fictícia uma medida reprovada pela lei mais alta.” OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 37, dez. 1999. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 10 ago. 2008.

118

contrato de alienação fiduciária em garantia, depósito não existe, mas verdadeira posse da

coisa, que pode ser utilizada pelo fiduciante em razão da própria natureza do contrato de

alienação fiduciária em garantia, onde há, inclusive, direito expectativo à propriedade do

bem por parte do fiduciante. Nestes termos, a custódia do bem é apenas acidental no

contrato de alienação fiduciária em garantia ao passo que é inerente ao contrato de depósito

mesmo quando autorizada, pelo depositante, a utilização do bem por parte do depositário,

autorização que se dá, aliás, em caráter excepcional.64

No contrato de depósito é regra a entrega do bem assim que solicitado pelo

depositante. Já no contrato de alienação fiduciária em garantia, o credor não pode solicitar

o bem ao fiduciante adimplente mesmo nos casos de deterioração, depreciação ou

perecimento da coisa ainda que insolvente ou falido o devedor fiduciante, eis que tais casos

acarretam apenas o vencimento antecipado da dívida, nos termos do artigo 1.425 do

Código Civil Brasileiro. Demais, no contrato de depósito, incide a regra res perit domino,

ou seja, perecendo a coisa sem culpa do depositário, a perda do bem ocorre para o

proprietário, que é o depositante, conforme o disposto no artigo 1.275, IV, do Código Civil,

não se podendo dizer o mesmo com relação ao contrato de alienação fiduciária em garantia,

no qual há inversão dessa regra por força do artigo 1.363 do mesmo Diploma Legal, vez

que o devedor pode utilizar a coisa segundo sua destinação, mas às suas expensas e risco.65

Malgrado constituísse absurdo comparar institutos em essência distintos para cercear

a liberdade do devedor fiduciante que não mais possuísse o bem ou não tivesse seu

equivalente em dinheiro (o que ocorria com a finalidade última, não se pode negar, de

satisfazer interesses meramente econômicos do credor), até bem pouco tempo prisões

houve. É que o artigo 5º, LXVII, da Carta Republicana de 1988, apesar de ter impedido a

prisão civil por dívida, ainda ressalvou duas hipóteses ao permitir a prisão civil do

64 Nos moldes do artigo 1.363 do Código Civil, aliás, antes de vencida a dívida, o devedor fiduciante pode usar a

coisa segundo sua destinação. 65 Consigne-se que assiste o direito de retenção da coisa pelo depositário nos casos expressos no artigo 633 do

Código Civil, bem como que todas essas questões, como as características do contrato de depósito, sua comparação com o contrato de alienação fiduciária em garantia constam das obras de Odete Novais Carneiro Queiroz, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe e de Glauco Polachini Gonçalves e João Agnaldo Donizeti. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.33, 38 e 49. RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.117-118 e de GANDINI, João Agnaldo Donizeti; GONÇALVES, Glauco Polachini. As recentes alterações do Decreto-Lei nº 911/69 e a prisão civil na alienação fiduciária em garantia (Lei nº 10.931/04). Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 532, 21 dez. 2004. Disponível em: <http://jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 4 maio 2009. Sobre a impossibilidade de conversão do contrato de alienação fiduciária em garantia em contrato de depósito consultar RIVAS, Fernanda Bandeira. A prisão civil na alienação fiduciária em garantia. Disponível em: <http://www.facs.br>. Acesso em: 14 maio 2009.

119

responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do

depositário infiel.66

Com o advento da “Constituição Cidadã”, a jurisprudência tornou-se desigual, “[...]

sendo, também, considerável a parte da doutrina que não aceita tal sanção civil, muito

embora sejam díspares a fundamentação e argumentação apresentadas, buscando, todavia,

o mesmo objetivo.”67 Um dos fundamentos a impedir o decreto de prisão do devedor

fiduciante foi a supressão, pela Constituição de 1988, da expressão “na forma da lei”

constante no §17 do artigo 150 da Constituição de 1969, vez que essa expressão:

[...] indicava que a lei ordinária estaria autorizada a criar outras hipóteses equiparadas ao depósito e, sendo assim, estariam alcançadas igualmente pela aplicação da prisão civil, como é o caso da AFG. Todavia, suprimida essa expressão em 1988, não deveria mais ser admitida tal coerção a não ser para o devedor de alimentos e o depósito genuíno, assim apenando tão-somente tais devedores, dada a excepcionalidade da prisão civil. Mas, uma outra parcela de nossos julgadores manifesta-se em sentido contrário por entender que essa expressão ‘na forma da lei’ era, na verdade, alusiva ao procedimento e não tendo nada a ver, pois, com a questão de direito material. 68

Apenas em 2000, “[...] a partir do julgamento do EREsp 149.518/GO, rel. Min. Ruy

Rosado de Aguiar [...]”, conforme afirmam Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, é

que nas Turmas do Superior Tribunal de Justiça se manteve o entendimento de “[...] que ‘a

falta de devolução do bem alienado fiduciariamente não autoriza a prisão civil do devedor’

(3ª T., HC 43.245/SP, rel. Min. Ari Pargendler, j. 23.08.2005, DJU 19.09.2005) [...].”, eis

que distintos são os institutos da alienação fiduciária em garantia e o de depósito típico,

havendo mesmo “[...] ausência de afinidade entre as duas espécies jurídicas.”69

66 Trata-se, contudo, de norma de eficácia restringível ou contida a demandar expressa permissão legal. Nesse

sentido, o então Ministro da Corte Suprema Francisco Rezek, em seu voto no Habeas Corpus n° 744383/MG, relatado pelo Ministro Néri da Silveira, ressaltou que o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição de 1988 apenas permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante omisso e a do depositário infiel, nos seguintes termos: “[...] o inciso LXVII proíbe a prisão por dívida e, ao estabelecer a exceção possível, permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante omisso e do depositário infiel. Permite, não obriga. O constituinte não diz: prenda-se o depositário infiel. Ele diz: é possível legislar nesse sentido [...].” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 744383-8/MG – Minas Gerais. Segunda Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Ministro Néri da Silveira. Julgado em 22 out. 1996, on line, Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 4 maio 2009. A íntegra de seu voto pode também ser consultada na obra de Odete Novais Carneiro de Queiroz: QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.95-98.

67 Ibid., 2004, p.65. Registra ainda a referida autora que: “Enfim, a jurisprudência recalcitrava na aplicação da prisão civil aos casos equiparados, como os da alienação fiduciária em garantia; vacilação que mais se fez sentir a partir da vigência, em nosso direito, dos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais somos signatários, muito embora passando a ter fundamentação diversa e muito mais convincente [...].” QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.67.

68 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.66. 69 RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2004, p.79.

120

Outros fundamentos, contudo, permeavam a discussão jurisprudencial e doutrinária

acerca da possibilidade ou não de prisão civil do fiduciante até porque diverso do Superior

Tribunal de Justiça era o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Fala-se aqui do Pacto de

San José da Costa Rica, que fora ratificado pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, e aprovado

pelo Decreto Legislativo n° 27, de 26 de maio de 1992, passando este a vigorar no dia 6 de

novembro de 1992, por meio do Decreto n° 67870, rezando o §7º do artigo 7º do mencionado

pacto que ninguém será detido por dívidas, princípio que não “[...] limita os mandados de

autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação

alimentar.”71 Ademais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI

Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, no dia 16 de dezembro de 1966, texto que

fora aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto n° 226, de 12 de dezembro de 1991, com

Carta de Adesão depositada em 24 de janeiro de 1992, entrando em vigor no Brasil no dia 24

de abril de 1992, conforme consta no Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992, que traz como

anexo o texto do mencionado pacto, já dispunha em seu artigo 11 que “ninguém poderá ser

preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual.”72

Apesar de serem referidos tratados destinados à proteção dos direitos humanos,

possuindo incorporação automática ao direito positivo brasileiro e status de norma

constitucional, nos termos dos §§1° e 2º do artigo da CF/8873, o Supremo Tribunal Federal

entendia ser possível a prisão do devedor fiduciante inadimplente que não devolvia o bem

nem entregava seu equivalente em dinheiro, porque a Carta Política de 1998 a admitia em

seu artigo 5º, LXVII. É que, para a Suprema Corte, prevalece a supremacia da Constituição

da República frente aos citados Tratados Internacionais, eis que nem o Pacto de San Jose da

Costa Rica nem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foram aprovados por

cada uma das Casas do Congresso Nacional – em dois turnos, por três quintos dos votos dos

seus respectivos membros – o que lhes concederia o status de emenda constitucional, nos

termos do §3º do artigo 5º, da Carta Política de 1988, conforme Emenda Constitucional n°

45/2004. entretanto, o Supremo Tribunal Federal, “[...] em sua nova composição, reviu e

alterou antigo posicionamento [...].”, passando a não mais permitir a prisão civil do devedor

70 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.128. 71 COSTA RICA. Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica). San Jose,

1969. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br>. Acesso em: 29 jun. 2008. 72 BRASIL. Presidência da República. Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11 maio 2009. 73 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.73.

121

fiduciante inadimplente. Caiu igualmente por terra, acresça-se, a possibilidade de prisão civil

do depositário infiel, mesmo que de contrato de depósito típico se trate.74

Somente em 2008 o Recurso Extraordinário n° 466.343 levou ao Plenário da

Suprema Corte a discussão sobre a possibilidade de ainda subsistir no direito brasileiro a

prisão civil do depositário infiel nos casos de contrato genuíno de depósito, sendo oportuno

registrar que, no ano de 2002, o Supremo Tribunal Federal ainda entendia ser possível a

prisão civil do devedor inadimplente nos contratos de alienação fiduciária em garantia, eis

que sua equiparação legal a depositário infiel não afrontava a nova ordem constitucional

inaugurada pela Carta Magna de 1988, não prevalecendo sobre a soberana Constituição da

República nem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos nem o Pacto de San

Jose da Costa Rica.75

74 RESTIFFE, Paulo Sérgio. RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2007, p.82. Ressalte-se que o entendimento do

Supremo Tribunal Federal que os tratados internacionais não podem ir além dos limites impostos pela Constituição da República é a conclusão que se extrai da leitura do voto do então Ministro Sepúlveda Pertence no RHC 79.785-RJ, decisão cuja íntegra repousa no anexo IV da obra de Odete Novais Carneiro Queiroz. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.219-229. Dispõem os §§1º, 2º e 3º, do artigo 5°, da CF/88, que: “§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. §2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

75 Confirmam o que se acaba de dizer o HC n° 72131/RJ; HC nº 80710/RS; HC nº 81319/GO e o RE nº 206482/SP. BRASIL. Habeas Corpus nº 72131/RJ – Rio de Janeiro. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 23 nov. 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009; BRASIL. Habeas Corpus nº 80710/RS – Rio Grande do Sul. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em 21 jun. 2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009; BRASIL. Habeas Corpus nº 81319/GO – Goiás, Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 24 abr. 2002. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009; BRASIL. Recurso Extraordinário nº 206482/SP – São Paulo. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgado em 27 maio 1998. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009. Sobre o Recurso Extraordinário N° 466.343, que levou ao Plenário da Suprema Corte a discussão sobre a possibilidade de ainda subsistir no direito brasileiro a prisão civil do depositário infiel nos casos de contrato genuíno de depósito, registre-se que além de ter sido reconhecida sua repercussão geral pela Suprema Corte brasileira, à medida que a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal proferia seus votos reconhecendo a impossibilidade de prisão do depositário infiel autêntico, habeas corpus foram sendo concedidos pelas Turmas do Tribunal Supremo, a exemplo do HC n° 0094307. BRASIL. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 562051/MT – Mato Grosso. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em 14 abr. 2008. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2008. BRASIL. Habeas Corpus nº QO94307/RS – Rio Grande do Sul. Pleno. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Cezar Peluso. Julgado em 14 abr. 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2009. Além disso, esclarecedor é o voto do Ministro Celso de Mello no mencionado Recurso Extraordinário n° 466.343. Disponível em <http://www2.oabsp.org.br>. Acesso em: 9 maio 2009. Ressalte-se, por oportuno, que a posição da Corte Suprema no sentido de não mais permitir a prisão civil do devedor fiduciante inadimplente como depositário infiel quando o bem não mais se encontrava em seu poder e não havia o pagamento de seu equivalente em dinheiro é anterior ao advento da Lei n° 10.931/2004 que, alterando a Lei n° 4.728/65, Lei de Mercado de Capitais, não mais fez referências à responsabilidade do devedor inadimplente como depositário

122

Há muito tempo, não apenas os doutrinadores, mas os operadores do direito de modo

geral, ansiavam pelo fim da prisão civil do depositário infiel, já que a Carta Republicana de

1988 primou pela prevalência dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, não

havendo justificativa plausível para negar aplicação ao Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos e/ou Pacto de San Jose da Costa Rica. Demais, não se mostra razoável e

ofende os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana a prisão civil

do devedor, ressalvando-se apenas a prisão do responsável pelo inadimplemento voluntário

e inescusável de obrigação alimentícia, eis que aqui outro interesse de ordem pública se

revela, com maior importância.76

Para acabar de vez com a possibilidade da prisão civil do depositário infiel, como se

extrai do voto do ministro Celso de Mello, no Recurso Extraordinário n° 466.343, adotou o

Pretório Excelso a teoria da supralegalidade:

[...] Isso significa, portanto, examinada a matéria sob a perspectiva da “supralegalidade”, tal como preconiza o eminente Ministro GILMAR MENDES, que, cuidando-se de tratados internacionais sobre direitos humanos, estes hão de ser considerados como estatutos situados em posição intermediária que permita qualificá-los como diplomas impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não obstante subordinados à autoridade da Constituição da República. [...] Em suma: o entendimento segundo o qual existe relação de paridade normativa entre convenções internacionais e leis internas brasileiras há de ser considerado, unicamente, quanto aos tratados internacionais cujo conteúdo seja materialmente estranho ao tema dos direitos humanos. (destaques no original).77

infiel nos contratos de alienação fiduciária em garantia, como bem ressaltam Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe. RESTIFFE, Paulo Sérgio; RESTIFFE NETO, Paulo, op. cit., 2004, p.82-83.

76 Odete Novais Carneiro Queiroz já em 2004 defendia a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel mesmo nos casos de contrato típico de depósito: “Ademais, é com supedâneo na doutrina especializada existente, nacional e estrangeira, sobre os tratados internacionais, face ao tema maior dos direitos humanos que firmamos nossa convicção e fortalecemos nossa tese a respeito do absurdo da prisão civil do depositário infiel, pena essa hoje injustificável e insustentável, além de, conforme já ressaltado, inconstitucional.” QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.132. Antes disso, contudo, mais precisamente em 1999, Celso Marcelo de Oliveira já se manifestava sobre a impossibilidade de prisão civil por dívida, ressalvando exclusivamente a prisão civil do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia: “[...]a) há uma norma internacional, posterior a 1988, que, tutelando os direitos humanos, restringe a uma única hipótese a prisão civil; b) essa norma tem a eficácia de norma constitucional, de modo que se pode dizer que, a partir de 1992, o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, encontra-se revogado, não mais sendo lícito falar em prisão civil por depósito.” OLIVEIRA, Celso Marcelo de, op. cit., 2008, on line.

77 Essa passagem consta do voto do ministro Celso de Mello no Recurso Extraordinário n° 466.343, disponível em <http://www2.oabsp.org.br>. Acesso em: 9 maio 2009. Trata-se da adoção do entendimento do antigo integrante da Corte Suprema, Ministro Sepúlveda Pertence, para quem os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos ocupam uma posição intermediária entre a Constituição da República e as leis ordinárias, sendo, portanto, inferior àquela e superior a estas, como explica Odete Novais Carneiro Queiroz ao discorrer sobre a corrente doutrinária que adota tal entendimento. QUEIROZ, Odete Novais Carneiro, op. cit., 2004, p.154. É também esse o entendimento do Ministro da Corte Suprema Carlos Britto em BRASIL. Habeas Corpus nº 94.013-7/SP – São Paulo. Primeira Turma. Supremo Tribunal Federal. Relator: Min. Carlos Britto. Julgado em 10 fev. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 maio 2009.

123

Nestes termos, embora a Constituição Federal ressalve a prisão do depositário infiel

no inciso LXVII, de seu artigo 5º, por ser referido dispositivo de eficácia restringível, a

demandar expressa permissão legal, não existe mais a possibilidade de haver legislação

ordinária permissiva da prisão civil do depositário infiel por flagrante violação aos pactos

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e de San Jose da Costa Rica, agora de

reconhecida hierarquia supralegal, o que esvazia de conteúdo o artigo 652 do novel Código

Civil, pelo menos no tocante à parte que prescreve “seja o depósito voluntário ou

necessário, o depositante que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo

mediante prisão não excedente a um ano [...]”, perdendo sentido a discussão doutrinária

acerca da aplicação subsidiária do artigo 652 do Código Civil pátrio à Lei de Mercado de

Capitais que, com as alterações sofridas pela Lei n° 10.931/2004, não alude mais à

condição de depositário de devedor fiduciário, revogado que fora o artigo 66 da Lei de

Mercado de Capitais pelo artigo 67 da Lei n° 10.931/2004.78

Para encerrar a discussão trazida pelo Recurso Extraordinário n° 466.343, o Supremo

Tribunal Federal achou por bem reconhecer a não recepção pela Magna Carta do Decreto-

lei n° 911/69, pelo menos no ponto em que a citada norma faz remissões ao Código de

Processo Civil, permitindo a prisão civil do depositário infiel, ressalvando, contudo, a

possibilidade da conversão da ação de busca e apreensão independente e autônoma em

ação de depósito, nos termos do artigo 906 do Código de Processo Civil, e sem a

possibilidade de prisão civil do devedor inadimplente:

Essas razões que venho de referir levam-me a reconhecer que o Decreto-lei nº 911/69 - no ponto em que, mediante remissão ao que consta do Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do CPC (art. 904 e respectivo parágrafo único), permite a prisão civil do devedor fiduciante - não foi recebido pelo vigente ordenamento constitucional, considerada a existência de incompatibilidade material superveniente entre referido diploma legislativo e a vigente Constituição da República. Isso significa, portanto, tal como bem assinalado pelo eminente Ministro CEZAR PELUSO, em douto voto proferido no julgamento plenário do RE 466.343/SP, que o credor fiduciário pode valer-se da ação de depósito, ‘mas sem cominação nem decretação da prisão civil do fiduciante vencido, contra o qual tem, como bem notou o acórdão

78 BRASIL. Código Civil Brasileiro, op. cit., 2008. Sobre a revogação do artigo 66 da lei n° 4.728/65, Lei de

Mercado de Capitais, pela Lei n° 10.931/2004, manifesta-se Alex Sandro Ribeiro: “o artigo 66, da Lei n. 4.728/65, conceituava alienação fiduciária como sendo a transferência ao credor do domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbiam de acordo com as leis civil e penal. Esse artigo foi revogado, ex vi do artigo 67, da Lei n. 10.931/04. Em seu lugar, no que diz respeito à condição de depositário do devedor ou alienante, não há na nova lei, S.M.J., disposição igual ou semelhante, de modo que, doravante inexiste a qualidade do depositário inserta no devedor, assim como não existem mais as conseqüências jurídicas que desta condição advinham, como a ação de depósito e a prisão civil.” RIBEIRO, Alex Sandro, op. cit., 2008, on line. (Destaques no original).

124

impugnado, interesse jurídico em prosseguir nos próprios autos,apenas na forma do art. 906 do Código de Processo Civil’ . (Destaques no original).79

Malgrado indiscutível o engenho da tese utilizada pela Corte Suprema para expulsar

de vez a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, inclusive nos casos que

envolvem contrato de depósito legítimo, observando a supremacia da Carta Maior e ao

mesmo tempo fazendo prevalecer os direitos humanos ao prestigiar a dignidade da pessoa

humana, que constitui um dos fundamentos da Constituição da República, tímida foi a

posição do Excelso Pretório ao não mencionar a não recepção pela “Constituição Cidadã”

do Decreto-lei n° 911/69, apenas na parte em que a citada norma permitia a prisão civil do

depositário infiel, perdendo a oportunidade de assumir uma postura mais firme e registrar,

de passagem que fosse, no citado Recurso Extraordinário, a não recepção integral do

mencionado decreto-lei e parcial da Lei n° 10.931/2004, esta na parte que pretendeu alterar

os dispositivos do Decreto-lei n° 911/69.

Tudo em atenção ao Estado Democrático de Direito, que jamais se compatibilizou

com o acima referido decreto-lei, e aos princípios constitucionais da igualdade, do devido

processo legal, da ampla defesa e do contraditório, princípios tão caros a esse Estado

Democrático de Direito e com os quais os aludidos diplomas legais não se coadunam.

Demais, nem o Decreto-lei n° 911/69 nem a Lei n° 10.931/2004, na parte que tencionou

alterá-lo, admitem interpretação conforme a Constituição, pois isto implicaria na alteração

total do conteúdo dessas normas em afronta, inclusive, ao princípio da separação dos

poderes, cuja proteção constitucional chegou ao ponto de impedir a simples deliberação de

proposta de emenda constitucional tendente a aboli-lo (artigo 60, §4º, III, da CF/88).

É preciso ousar, romper os paradigmas, ir de encontro aos grandes interesses

econômicos e exercer com afinco a tão nobilíssima quão árdua função guardiã outorgada

pela Constituição da República, registrando, sempre que houver oportunidade, a não

recepção do anacrônico Decreto-lei n° 911/69, até que seja interposta, por algum

legitimado, Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e possa ser

declarada, de uma vez por todas, a não recepção do referido Decreto-lei pela Constituição

de 1988, sob pena de irremediável afronta aos princípios mais fundamentais insculpidos na

Lei Suprema.

79 Voto do Ministro Celso de Mello no referido RE n° 466.343, 2009, on line.

CONCLUSÃO

Levantou-se a questão da recepção pela Constituição da Republica de 1988 do

Decreto-lei n° 911/69, norma que introduz no ordenamento jurídico pátrio a ação de busca

e apreensão independente e autônoma de qualquer outro procedimento ulterior, actio não

manejável pelo cidadão comum, mas exclusivamente pelas instituições financeiras (Fisco e

Previdência) em face do devedor fiduciário inadimplente ou moroso nos contratos de

alienação fiduciária em garantia quando não há a entrega espontânea ao credor do bem que

lhe fora fiduciariamente alienado.

A análise desta (não) recepção levou em consideração vários aspectos, que foram

desde a (im)possibilidade de existência desta norma em um Estado Democrático de Direito,

editada que fora no auge da ditadura militar pelos Ministros da Marinha de Guerra, do

Exército e da Aeronáutica Militar, sem levar em consideração a vontade popular, portanto,

até se saber se foram ou não violados o princípio da igualdade e as garantias do devido

processo legal, da ampla defesa e do contraditório, uma vez que o mencionado decreto-lei

passou incólume pela Constituição de 1967 e os Tribunais nacionais aplicam-no

constantemente, pelo menos em sua parte processual, aos contratos de alienação fiduciária

em garantia, que ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei de Mercado de

Capitais, Lei n° 4.728, de 14 de julho de 1965. O fato, contudo, de o Decreto-lei n° 911/69

não ter emanado da vontade popular, atentando contra o Estado Democrático de Direito,

apesar de sua indiscutível relevância, não se afigura como critério único suficiente capaz de

impedir sua recepção pela Constituição Republicana de 1988.

O mesmo, entretanto, não se pode dizer com relação aos demais aspectos (princípio da

igualdade e as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório).

Ofende o Decreto-lei n° 911/69 flagrantemente o princípio da igualdade não apenas quando

proíbe o cidadão comum ou fornecedor não integrante do sistema financeiro nacional que

celebra contrato de alienação fiduciária com seu igual ou consumidor de lançar mão da

referida ação de busca e apreensão independente e autônoma, mas igualmente quando

126

beneficia as instituições financeiras em detrimento do devedor fiduciante, não lhe ofertando

mecanismo processual algum capaz de prevenir lesão ao seu direito, como a possibilidade de

sustação da venda extrajudicial do bem fiduciariamente alienado porventura efetivada pelo

credor fiduciário, ao inviabilizar a análise da defesa do fiduciante antes da ocorrência da

consolidação da propriedade nas mãos do credor instituição financeira, cuja única prova

exigida para o manejo desta agilíssima ação e concessão de liminar em seu favor é a da mora

ou do inadimplemento do devedor, que se dá ou com a mera comprovação, através de carta

registrada expedida pelo Cartório de Títulos e Documentos, ou pelo simples protesto do

título, o que, nos termos do §2° do Artigo 2º da norma vergastada, pode ocorrer apenas com

o decurso in albis do vencimento de uma única prestação, mesmo nos casos de ocorrência de

mora do credor, cuja posição vantajosa frente ao consumidor é inquestionável, além de

incompatível com o direito à propriedade, como delineado na Carta Maior.

Igualmente evidente por parte do decreto-lei retrocitado a violação à garantia

constitucional do devido processo legal, que tem como corolários a ampla defesa e o

contraditório, eis que a nulifica em sua dupla faceta: de proteção aos direitos de liberdade e

de propriedade (âmbito material) e de plenitude de defesa (âmbito formal), ao frustrar

qualquer possibilidade de reação eficaz pelo devedor fiduciante. E assim o é mesmo após

as supostas modificações pela Lei n° 10.931/2004 no Decreto-lei nº 911/69. Tudo isto, não

se pode olvidar, beneficia o fornecedor, parte forte da relação, em detrimento do

consumidor, parte frágil, cuja reconhecida vulnerabilidade reclama proteção legal e

compromete, senão destrói, pelos menos dois dos princípios sobre os quais se funda a

ordem econômica: o da função social da propriedade e o da defesa do consumidor, que

passa praticamente a responder pelo risco da atividade mercantil exercida pelas instituições

financeiras quando esse risco deveria ser inerente ao próprio negócio.

Fica comprometida ainda a determinação da constituição vigente de proteção legal a

ser conferida ao consumidor pelo Estado (artigo 5°, XXXII, CF/88), muito embora este, em

atenção ao disposto no artigo 48 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, tenha promulgado a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, Código de

Defesa do Consumidor, que, enquanto lei principiológica e dispensando efetiva proteção e

defesa do consumidor, traz normas de ordem pública e interesse social. Gravemente feridos

estão, portanto, os artigos 5º, caput, XXII, XXXII, LIV e LV, e 170, III e V, da

Constituição Republicana de 1988, a impedir a recepção do Decreto-lei n° 911/69.

127

Uma vez revogada esta norma por ausência de recepção, impossível sua alteração por

uma norma posterior, in casu, a Lei n° 10.931/2004, que sequer pode ser objeto de

interpretação conforme a constituição, pelo menos na parte que pretendeu reformular o

Decreto-lei n° 911/69. Isto porque não se pode, a pretexto de dispensar uma interpretação

conforme a constituição a uma determinada norma, alterá-la a ponto de fazer do intérprete

o próprio legislador, atentando inclusive contra o princípio da separação dos poderes.

Importante ressaltar, ainda, que a questão da recepção de uma norma pela nova

Constituição é objeto de profundas discussões doutrinárias por ser extremamente difícil

conferir quais as normas componentes de um vasto ordenamento jurídico foram ou não

recebidas pela nova ordem constitucional instaurada. É que nenhuma norma anterior à

Carta Republicana de 1998 pode ser objeto de exame de constitucionalidade via Ação

Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) ou de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC)

por falta de contemplação da figura da constitucionalidade superveniente pelo sistema

jurídico brasileiro.

Resta, contudo, a via da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental para atacar, em tese, norma infraconstitucional não recepcionada pela Carta

Magna, ação cujo ajuizamento junto ao Supremo Tribunal Federal exige a comprovação de

divergência jurisdicional relevante.

O vácuo normativo decorrente do eventual reconhecimento, pela Corte Suprema, da

não recepção do Decreto-lei n° 911/69 pela Constituição da República de 1988, pode

perfeitamente ser suprido pelo legislador ordinário que, por sua vez, deve observar todos os

parâmetros exigidos pela Constituição Federal de 1998.

Até a edição de nova norma regulamentar, relativamente aos casos que encerrem

relação de consumo, recomenda-se a aplicação do Código de Defesa do Consumidor,

enquanto lei principiológica que é, e do Código de Processo Civil, para suprir o vácuo

normativo processual nos contratos de alienação fiduciária em garantia. Mesmo assim, o

Decreto-lei n° 911/69, supostamente alterado pela Lei n° 10.931/2004, que é também

inconstitucional, sobretudo na parte que tencionou reformular o citado decreto-lei, continua

sendo aplicado pelo Poder Judiciário que, relativamente ao devedor fiduciante consumidor,

vem negando a aplicação direta dos direitos fundamentais e privilegiando excessivamente

até o princípio da autonomia da vontade, grande cânon do direito privado, quando constitui

128

objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a redução das desigualdades

sociais, o que deve ocorrer por meio de ações práticas.

Esse excesso de viés privado presente nas decisões do Poder Judiciário olvida não

unicamente a posição ocupada pelo consumidor na Carta Política de 1988, de titular de

direitos fundamentais, mas também o fato de os fornecedores, leia-se instituições

financeiras, constituírem verdadeiro poder social e, não raro, não observarem esses direitos

fundamentais nas suas relações particulares, marcando-as pela subordinação do vulnerável

à sua vontade, quando relação de coordenação deveria existir.

Pode-se dizer assim que a Constituição brasileira, embora não determine

expressamente a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações entre

particulares, a recomenda. Tanto que direitos fundamentais especificados na Carta Política

de 1998 há que, por sua própria natureza, se aplicam às relações entre particulares. É o

caso, por exemplo, do direito de resposta, previsto no seu artigo 5°, V. Tudo vai depender,

contudo, da análise do caso concreto, vez que direitos fundamentais também há cuja

essência não permite sua aplicação às relações entre particulares. Importa, de igual forma,

observar a nova ordem de valores implantada pela Constituição de 1988.

Relativamente à nova ordem de valores instaurada pela Constituição de 1988, vitórias

foram conquistadas pelo consumidor. É que o Poder Judiciário extirpou de vez do

ordenamento jurídico pátrio a prisão civil do depositário infiel, a quem era equiparado o

devedor fiduciante moroso ou inadimplente que não devolvia o bem objeto de garantia ao

credor nem pagava seu equivalente em dinheiro. Fala-se aqui mais precisamente do

Supremo Tribunal Federal, que em homenagem aos Pactos de San José da Costa Rica e

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que por sua vez prestigiam o princípio da

dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil,

seguiu a linha já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça desde 2000.

129

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