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DIDACTICA PARVA ÁLVARO MANUEL RIBEIRO DE CASTRO NORTON DE ALMEIDA RELATÓRIO DE ESTÁGIO EM ENSINO DA FILOSOFIA NO ENSINO SECUNDÁRIO SETEMBRO DE 2011

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DIDACTICA PARVA

LVARO MANUEL RIBEIRO DE CASTRO NORTON DE ALMEIDA

RELATRIO DE ESTGIO EM ENSINO DA FILOSOFIA NO ENSINO SECUNDRIO

SETEMBRO DE 2011

Relatrio de Estgio apresentado para cumprimento dos requisitos

necessrios obteno do grau de Mestre em Ensino da Filosofia no

Ensino Secundrio, realizado sob a orientao cientfica do Professor

Doutor Lus Crespo de Andrade

Em memria de meu querido pai (1922-2010), que, no obstante a sua resistncia

inicial minha deciso de seguir a filosofia, sempre me proveu com tudo o que

necessitei para caminhar esse trilho. Pudesse ele agora estar presente para ver mais

este passo

AGRADECIMETOS

Agradeo, em primeiro lugar, minha famlia (em especial, minha me), pelo

seu constante apoio navegao desta coisa a que chamamos vida. Recordo

igualmente a importncia dos bons amigos Fbio Serranito e Hlder Telo, companheiros

inseparveis da divina filosofia, desde o primeiro ano de faculdade; a Margarida

Abenta Roque, sempre to amiga e disposta a discutir o sentido das surtidas filosficas

mesa de caf; o Miguel Arajo, que leva a filosofia a srio; e a minha madrinha de

curso, Ana Rita Pinheiro, que me acolheu no primeiro ano de licenciatura.

Sublinho o feliz destino de ter passado pelas excepcionais aulas dos Professores

Doutores Nuno Ferro (a quem ainda devo uma tese) e Mrio Jorge de Carvalho, que

desde cedo provocaram uma inflexo de sentido existencial muito para l do que me

era, ento, conhecido, e deixaram a marca prpria de modelos de Professor. Deixo

tambm uma palavra de agradecimento aos vrios bons Professores do departamento de

Filosofia da F.C.S.H. da U.N.L. sob cuja tutela tive o prazer e a vantagem de aprender

todos estes anos, nas mais diversas reas.

No poderia deixar de mencionar aquela que para mim uma amiga com quem

pude sempre contar, desde a minha adolescncia, no liceu, e que foi, sem dvida, a

primeira dos nicos trs Professores geniais com quem estudei at data a Professora

Dr. Margarida Srvulo Correia. Jamais esquecerei que foi ela quem me ensinou

verdadeiramente a ler e escrever com gosto, em geral, e a apreciar os clssicos

portugueses, em particular os poetas. Mas no esquecerei, sobretudo, o facto de

continuar a ser para mim, hoje e sempre, o grande modelo de Professor que orienta a

minha relao com os alunos no sentido de uma preocupao e amizade pessoais

constantes para com aqueles. Deixo-lhe por isso a minha amizade e a minha gratido.

Menciono ainda o Ricardo Franco, companheiro fiel deste Mestrado, com quem

teria adorado fazer o estgio, e a Joanna Melo, companheira de estgio com quem o

trabalho foi sempre harmonioso e cooperante, o que facilitou imenso a tarefa.

Por ltimo, uma nota de gratido pela orientao da Prof. Dr. Alice Purificao

dos Santos, que soube fazer bem o que era preciso.

Um agradecimento muito amigo aos alunos do 10. H1 e do 11. C3, que se

revelaram pessoas extraordinrias, dentro e fora das aulas, com quem criei laos de

amizade sincera e que foram (e so) merecedores de tantos cuidados.

DIDACTICA PARVA

Relatrio de Estgio em Ensino da Filosofia no Ensino Secundrio

lvaro Manuel Ribeiro de Castro orton de Almeida

RESUMO/ABSTRACT

O relatrio apresentado rene algumas das consideraes possveis sobre o

significado do ensino da filosofia nos dias de hoje. Para isso, trabalha-se com a figura

de Scrates como o gatilho fundamental do empreendimento filosfico e estuda-se

aquilo que foi a prtica de ensino durante um ano de estgio numa Escola Secundria

portuguesa. O que se pretende levar a cabo uma anlise das metodologias utilizadas,

atravs de exemplos localizados, e da viso da filosofia que nelas se encontra

pressuposta, mediante a sua exposio terica e prtica.

The report gathers some of the possible considerations about the meaning of the

philosophical teaching nowadays. In order to do that, we take into account the figure of

Socrates as the fundamental trigger of the philosophical enterprise, and we study or

analyze that which was the teachings experience during a year of internship at a

Portuguese High School. What we intend to do is an analysis of the used

methodologies, through specific examples, and the concept of philosophy that they

presuppose, by exposing them theoretically and practically.

PALAVRAS-CHAVE: anamnese/reminiscncia; aprendizagem; crtica; dialctica;

didctica; ensino; existncia; filosofia; indivduo; ironia socrtica; pedagogia;

subjectividade.

KEYWORDS: critique; dialectics; didactics; existence; individual; learning; pedagogy;

philosophy; Socratic irony; subjectivity; teaching.

DICE

Ante-Scriptum: 1 Factualidades....................................................................... 1

2 Didaktiske Smuler .......................................................... 2

3 Post-Scriptum ........................................................................................ 25

Bibliografia ...................................................................................................... 51

Anexos Nota prvia .......................................................................................... i

Anexo 10. H1 A................................................................................................. v

Anexo 10. H1 B................................................................................................vii

Anexo 11. C3 A................................................................................................. ix

Anexo 11. C3 B ................................................................................................xi

Anexo 11. C3 C ...............................................................................................xiii

Anexo 11. C3 D...............................................................................................xiv

Anexo 11. C3 E ................................................................................................ xv

Anexo 11. C3 F...............................................................................................xvii

Anexo 11. C3 G.............................................................................................xviii

Anexo 11. C3 H................................................................................................ xx

Anexo 11. C3 I................................................................................................xxii

Anexo 11. C3 J ..............................................................................................xxiii

Anexo 11. C3 K.............................................................................................xxiv

Anexo 11. C3 L .............................................................................................. xxv

Anexo - Inqurito 10. Ano ............................................................................xxvi

Anexo - Grficos 10. Ano ............................................................................xxvii

Anexo - Inqurito 11. Ano ..........................................................................xxxvi

Anexo - Grficos 11. Ano ..........................................................................xxxvii

1

Ante-Scriptum

1 Factualidades

A prtica de ensino supervisionada qual este relatrio referente teve lugar na

Escola Secundria de Miraflores, de classe mdia-alta, durante o ano lectivo 2010/2011,

sob orientao local da Professora Dr. Alice Purificao dos Santos, no contexto da

disciplina de Filosofia, leccionada nos cursos cientfico-humansticos e tecnolgicos, na

rea de formao geral (10 e 11 anos). A orientao na faculdade (FCSH da UNL)

esteve a cargo do responsvel pela coordenao do Mestrado de Ensino da Filosofia no

Ensino Secundrio e do seminrio de Didctica da Filosofia, o Professor Doutor Lus

Crespo de Andrade.

O ncleo de estgio era constitudo por dois membros: o proponente e uma

colega. A cargo de cada um deles, respectivamente, ficaram uma turma de 10 ano, e

uma turma de 11 ano, num total de quatro turmas (duas eram de Cincias e

Tecnologias, ao nvel do 11, e outras duas de Lnguas e Humanidades, e Economia,

respectivamente, ao nvel do 10). Em conformidade com os protocolos e regulamentos

devidos, assim como por vontade expressa, solicitao e acordo mtuo, era da

responsabilidade do mesmo, juntamente com o orientador, cumprir com as seguintes

funes e tarefas docentes: assistncia de aulas leccionadas pelo orientador, num

mnimo total de 60% de aulas, desde o incio ao fim do ano lectivo, o qual acabou por

ser excedido em cerca de 30%, num total de cerca de 90% de aulas assistidas;

leccionao de unidades temticas do programa, num total de aulas entre as dez e as

quinze (rondaria os 16,6%, atendendo s aulas do ano inteiro, feitas as contas), para

cada turma, o que perfaz vinte a trinta aulas no conjunto das duas turmas (entre 16,6% a

25% do total), sendo que esse mnimo foi ultrapassado at ao limite dos 50%;

elaborao de planificaes gerais, de unidade e sub-unidade; produo, co-produo,

seleco e sugesto de materiais didcticos para as vrias aulas, incluindo testes, fichas

de avaliao (diagnstica, formativa e sumativa), exerccios de trabalhos para casa,

textos, filmes, vdeos, etc.; correco dos elementos de avaliao; discusso e registo de

notas em formatos informticos; registo de sumrios no quadro e registo de faltas

presenciais; elaborao conjunta de um plano de actividades anual, nalguns casos

extensivo comunidade escolar, e subsequente participao e organizao individual

dos respectivos eventos, tais como visitas de estudo, ciclos de cinema, palestras,

oficinas de trabalho, aces de formao, etc.; acompanhamento de alunos em visitas de

estudo alheias ao programa do ncleo, em colaborao com os colegas docentes e por

2

solicitao destes; cooperao com os auxiliares de aco educativa, numa aco

integrada; participao nos conselhos de turma; observao de uma experincia pontual

de direco de turma, com utilizao do programa Prodesis; orientao de alunos na

hora semanal de acompanhamento e nos trabalhos individuais e de grupo; integrao

global na escola.

2 Didaktiske Smuler [Migalhas Didcticas] [Problemas]

Socrates Existents er Ironi1 Kierkegaard.

Este exerccio, simultaneamente descritivo e reflexivo, no s trata da ironia e da

maiutica socrticas, como pretende, tambm ele, em si mesmo, ser irnico e maiutico.

A necessidade de uma tal caracterizao inicial decorre, internamente, da prpria

estrutura da ironia, quando associada a um processo didctico que tem como terminus

ad quem a transio do sujeito de um estado de ignorncia ou uso passivo da razo para

um estado de conscincia ou uso autnomo da razo. Isto significa que a prpria

construo do texto, nas suas duas partes fundamentais, se coloca sob a gide da

categoria existencial de base que Kierkegaard designa por reduplicao2. Em termos

simples e introdutrios, esta uma categoria antropolgica e existencial (ainda que

tambm, fundamentalmente, religiosa e tica) que diz somente respeito ao mbito da

idealidade, e exprime a noo de que toda e qualquer determinao ideal s pode ser

apropriada ao modo da sua idealidade, isto , determinaes ticas cardeais como a

prudncia, a temperana, a coragem e a justia, s podem ser reduplicadas

introduzidas na existncia subjectiva do indivduo concreto ao modo da sua natureza:

prudentemente, temperadamente, corajosamente e justamente. O mesmo acontece com

determinaes ideais que se assumem como determinaes da subjectividade que

requerem um modelo operatrio, como o caso da ironia e da maiutica, as quais, no

caso especfico da aplicao educao, no se permitem uma utilizao directa, mas

somente indirecta, na medida em que s podem ser verdadeiramente apresentadas

quando exercidas num contexto prtico3. A reduplicao no pode ser de objectos ou

1 A existncia de Scrates ironia Conceito de Ironia, XIII, 203. Salvo indicao em contrrio, as

referncias bibliogrficas de todas as edies reportam s que se encontram na bibliografia. 2 O termo tcnico, no original dinamarqus, assume duas formas: Reduplication e Fordoblelse, que so

sinnimos; ambos exprimem a ideia de uma dupla relao, duplo significado ou redobra. 3 Sobre a reduplicao em Kierkegaard, veja-se: Papirer [Papis] X2 A 65, X2 A 116, X3 A 28, X3 A

740, XI1 A 33, X1 A 65 Fordoblelse; VIII1 A 91, VIII1 A 201, IX A 121, IX A 163, IX A 344, IX A 415, IX A 456, IX A 474, X2 A 541, X2 A 545, X2 A 560, X2 A 573, X3 A 124, X3 A 125, X3 A 220, X3 A 225, X3 A 232, X3 A 278, X3 A 299, X3 A 377, X3 A 431, X3 A 545, X3 A 696, X4 A 75, X4 A 128, X4 A 190, X4 A 214, X4 A 215, X4 A 216, X4 A 289, X4 A 295, X4 A 336, XI2 A 332

3

determinaes empricas porque concerne sempre a um como (hvorledes), e no

primariamente a um qu (hvad), o que significa, muito simplesmente, que impossvel

comer um gelado geladamente ou ser altamente alto. Num modelo de relatrio como

este, e atendendo ao facto de ser exigido o tratamento terico da planificao e

conduo de aulas, bem como das aprendizagens experimentadas e da participao do

mestrando na escola, a possibilidade de uma reduplicao v-se obstada, partida, por

uma dificuldade processual, que consiste precisamente na necessidade de expor irnica

e maieuticamente aquilo que foi a tentativa de uma prtica educativa vinculada ao

modelo socrtico, logo, pela assuno, por parte do proponente, do ponto de partida

ignorante prprio da dialctica. Desse modo, a relao do texto com a ironia e com o

possvel leitor tem de assumir e dimensionar o seu prprio desenrolar, sendo que as

estratgias utilizadas no se podem assemelhar quilo que seria um procedimento de

natureza oral, sob pena de ser ineficaz. por esse motivo, tambm, que os textos

platnicos, na sua construo, obedecem aos critrios de um rigorismo dialctico que,

diria, comeou e acabou com o seu autor4. A prtica de uma comunicao directa,

para utilizar outro termo tcnico operatrio de Kierkegaard, torna-se, nesse sentido,

absolutamente contraproducente, porquanto impede o processo de destruio do

preconceito ou prejuzo, que s depois de reconhecido e eliminado pelo sujeito pode dar

Reduplication. Estes so os textos que, tratando directamente da reduplicao quanto sua forma e aplicao, mais directamente dizem respeito ao problema enunciado. A distino tcnica mais subtil entre Fordoblelse e Reduplication poderia ser enunciada nos seguintes termos: a primeira diria respeito, em geral, a aplicar a si prprio o que se diz, colocar sobre si prprio o ideal, tal como o movimento do arado na terra, que tem de estar em baixo para fazer sulcos; a segunda aplicar-se-ia, em particular, constituio do eu, em que h um rebatimento de determinaes subjectivas ideais no imediato, na relao relao (sntese). Contudo, no seria de ignorar, tambm, o desenvolvimento que o termo Fordoblelse sofre no texto Obras do Amor, IX 267-269: o amor (o eterno), reduplicado, move-se para o exterior e para o interior num nico movimento, ao relacionar-se com o seu sujeito, com o seu objecto e com a relao (consigo mesmo). Tambm na obra Tirocnio no Cristianismo a categoria merece especial relevo: ser um eu ser uma reduplicao [Fordoblelse], liberdade (relao relao) XII 149; o ser da verdade a reduplicao [Fordoblelse] da verdade em si mesmo, a sua expresso na vida ao modo da aquisio contnua XII 189. Para uma acepo ontolgica, veja-se Migalhas Filosficas, IV 240. Cf., a propsito desta categoria nas suas vrias acepes e desenvolvimento histrico, a nota 65 de KIERKEGAARD, S., Adquirir a Sua Alma na Pacincia, traduo do dinamarqus, notas e posfcio de N. Ferro e M. Jorge de Carvalho, Assrio e Alvim, Lisboa, Maro 2007. 4 Tentativas de escrever em dilogo, como as de S. Agostinho (nos seus primeiros escritos), Leibniz ou

Malebranche, redundam, por isso mesmo, numa esterilidade dialctica perfeitamente dispensvel aos temas abordados, os quais poderiam perfeitamente ser discutidos num plano cientfico puramente narrativo, precisamente porque no dependem, necessariamente, no modo da sua abordagem (e sublinho esta expresso), da dialctica maiutica para o seu desenvolvimento e compreenso terica. O mesmo no acontece com Kierkegaard, o qual, apesar de no escrever em dilogo, obedece criteriosamente a uma estratgia dialgica marcada pelo engano, que uma das caractersticas essenciais da ironia, tanto mais quanto assume a quebra de uma relao directa com o mestre; a sua escrita pseudnima, consistente com a reduplicao e com os processos internos do desenvolvimento da razo, consegue enredar o leitor de maneira a que seja ele o protagonista e o responsvel pela sua prpria aprendizagem e tomada de posio existencial.

4

lugar a um preenchimento pelo saber. S a comunicao indirecta, na qual o mestre

no parece ser tal coisa, mas algum que no possui qualquer argumento de autoridade e

no se encontra na sala de aula para ser imitado (decorado), possibilita a relao do

aluno, em primeiro lugar, com os contedos, e, em segundo lugar, com essa mesma

relao (dupla reflexo), sem permanecer dependente dos argumentos docentes5.

A prtica de ensino supervisionada foi premeditadamente levada a cabo com base

numa concepo do ensino da filosofia segundo o modelo socrtico; obedeceu, por isso,

simultaneamente, a uma viso do que a filosofia, enquanto cincia terico-prtica com

uma dimenso existencial de fundo6, e so esses dois aspectos que se pretende sejam

postos em evidncia no relatrio. Porm, isso requer uma delimitao dos tpicos a

serem abordados, de acordo com a sua maior ou menor relevncia, uma vez que a

conduo de aulas aquele que mais se presta a conseguir ilustrar o exerccio didctico

proposto, ao mesmo tempo que pressupe a planificao e a progresso das

aprendizagens ao longo da aplicao da dialctica no encontro com os alunos; a

descrio da participao do mestrando na escola cooperante, alm de sair fora deste

propsito fundamental, seria completamente desinteressante, no s pelo seu carcter

eminentemente descritivo, como tambm pela sua redundncia, atendendo avaliao

local que foi feita em tempo devido e que tem a sua maior expresso nos relatrios

intercalar e final da orientadora do ncleo, para no falar do plano de actividades

arquivado no dossier.

De uma didactica magna, era-nos lcito, certamente, esperar o cumprimento

daquela nobre promessa que pretendia trazer pedagogia e ao mundo uma chama

inextinguvel, sistemtica, bem torneada e polida falo da promessa de um mtodo

universal de ensinar tudo a todos () com tal certeza, que seja impossvel no

conseguir bons resultados, e de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado e 5 Sobre a comunicao directa e indirecta veja-se, por exemplo, Pap. VIII2 B 81, 18-20.

6 Cf. ARISTTELES, Metafsica, 993b20: a filosofia correctamente chamada de cincia [] da

verdade; Fsica, 184a10: o conhecimento dos princpios, causas e elementos das coisas que constitui a cincia; KANT, Crtica da Razo Pura, A VIII, B XIV, B XIX, B 6, B 18, B 22-23, B 24-30 metafsica como cincia [Wissenschaft]; Prolegmenos, A 3-5, A 16, A 23, A 33, A 189 e seguintes; HEGEL, Introduo s Lies sobre Histria da Filosofia, {30} 10: a filosofia cincia objectiva da verdade. Quanto sua dimenso existencial, veja-se, a ttulo de exemplo: PLATO, Fdon, 64a a filosofia executada como tirocnio (do verbo , que pode significar tanto uma busca ou procura, como uma prtica ou um exerccio) de morrer e de estar morto, com tudo o que isso comporta enquanto movimentao no sentido de apreender o que prprio da alma humana; Banquete, 204a, 206a-b, 210d, 212a filosofia como concretizao do amor (desejo de possuir o bem para sempre), que intermedirio entre a ignorncia e a sabedoria, com o objectivo de contemplar o belo em si mesmo. Alm disso, seria tambm interessante analisar a Questo 1 da Suma Teolgica, de Toms de Aquino, quanto elaborao de um argumento possvel que fundamenta o estatuto da filosofia, em relao s outras cincias, como uma cincia superior (fundamenta os princpios das outras) veja-se, em particular, os artigos 1, 2 e 5.

5

sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com sumo

prazer para uns e para outros, e de ensinar solidamente, no superficialmente e apenas

com palavras, mas encaminhando os alunos para uma verdadeira instruo, para os bons

costumes e para a piedade sincera. ! Summa Summarum da arte de ensinar! Trata-se,

realmente, de uma proposta de indita importncia, envolta em sublime ousadia, tanto

maior quanto se entrega a esse projecto com a certeza de que demonstraremos todas

estas coisas a priori, isto , derivando-as da prpria natureza imutvel das coisas, como

de uma fonte viva que produz eternos arroios7. Nunca antes tnhamos visto uma e no

mais tornaremos a ver outra.

O que poderemos esperar, ento, de uma didactica parva, face a esta

arquitectnica? Um mtodo particular de no ensinar nada a ningum, com tal dvida

(aporia8) que seja impossvel conseguir bons resultados, e de ensinar lentamente, ou

seja, com total enfado e absoluto aborrecimento para os alunos e para os professores,

com sumo tdio para uns e para outros, e de ensinar infundadamente, superficialmente e

apenas com palavras, corrompendo os jovens para longe de uma verdadeira instruo.

Felizmente, aplicar-se- somente filosofia, conservando, assim, intacto o restante

sistema de ensino.

A questo reflecte, portanto, sobre como ensinar filosofia. Isto pressupe, desde

logo e antes de passar anlise da conduo de aulas , o esclarecimento prvio da

concepo de filosofia que se encontra aqui presente.

Essa concepo pode ser resumida de maneira clara e curta com recurso noo

de metafsica natural (metaphysica naturalis)9, que exprime o carcter constitutivo do

questionamento filosfico quanto ao uso da razo ou intelecto10; a disposio natural

(Aaturanlage) que a metafsica existe em todos os homens () desde que neles a

razo ascende especulao, porque da faculdade pura da razo sempre nasce uma

metafsica11, quer ela se constitua num registo temtico ou no, ou seja, atravs da

apropriao reflexiva das respostas dadas s perguntas naturais da razo ou da adeso

passiva a solues mais ou menos correntes que permitam lidar com a vida na sua

globalidade. A justificao para isto pode ser encontrada na insatisfao

7 COMNIO, J. A., Didctica Magna, pp. 45-46, para as respectivas citaes.

8 Cf. Mnon 80a.

9 KANT, op. Cit., B 21.

10 Recorde-se o muito discutido passo A VII da primeira Crtica kantiana, no qual se expressa o facto de o

questionamento se impor razo em virtude da sua natureza, que a de interpelar e sentir-se interpelada pelo todo da realidade no confronto com o acontecimento de lucidez humana. 11

Idem, B 21/B 22.

6

transcendental que, de raiz, afecta o desenvolvimento da interrogao especulativa,

decorrente da aplicao da razo a si mesma na conscincia do ser, que envolve,

necessariamente, a totalidade absoluta de toda a experincia possvel, que no em

si mesma nenhuma experincia, mas funda a representao do diverso da

experincia12. Essa insatisfao caracterizada, na tradio grega platnica e

aristotlica, como espanto diante da realidade e das interrogaes que ela

naturalmente suscita nossa compreenso, ao ponto de nos sentirmos perdidos num tal

estado13, acometidos por uma estranheza original quanto ao significado de tudo: as fases

da lua, os movimentos do sol e dos astros, a formao do universo14 A filosofia surge

ento como resposta a esta tenso natural do intelecto para o desvelamento do

significado do ser e a eliminao da ignorncia que a reconhecida, sem que se

pretenda com isso superar qualquer necessidade material conforme ao princpio da

utilidade15; a ignorncia e o tipo de perturbao peculiar que ela estabelece na sua

acepo existencial que funda, de certo modo, a necessidade do questionamento. Assim,

a filosofia no pode ser propriamente considerada uma disciplina artificial, cujo

desenvolvimento mais ou menos irrelevante ou indiferente, porque contingente; trata-

12

Prolegmenos, A 125-126. Sobre a metafsica e a sua natureza transcendental e fundadora da representao, cf. Kant, Lies sobre Metafsica: Metafsica K3, 7 (Kurz, ohne Metaphysic kann kein Mensch seyn Resumindo, nenhum homem pode existir [ser] sem metafsica.); Metafsica L1, 263 (a metafsica uma cincia da razo pura); Metafsica Volckmann, 16 (tem de se procurar a mais antiga filosofia, e tambm a metafsica, junto dos gregos), 18 (Plato e a questo metafsica do fenmeno e da aparncia), 19 (questionamento platnico sobre a origem dos conhecimentos intelectuais), 25 (arte metafsica (): 1) fisiologia da razo; 2) a crtica da razo; 3) o sistema da razo); Metafsica L2, 17 (a metafsica o sistema da filosofia pura () uma cincia que excede os limites da natureza), 18 (sobre a natureza necessria da metafsica e a filosofia transcendental como sistema de todos os conhecimentos a priori); Metafsica Dohna, 9 (relao metafsica entre sensibilia ou , e os intelligibilia ou ); Metafsica K3, Ar 91 (metafsica como sistema da filosofia pura); Reflexes 4146, 4164, 4168, 4284 (elemento correctivo da metafsica quanto ao entendimento e razo), 4360, 4362, 4366 (metafsica filosofia pura). Em complemento, seria interessante ver tambm os Comentrios Metafsica de A. G. Baumgarten, que contm reproduo de textos de Baumgarten relevantes para a noo de metafsica: Prolegomena 1-2; Pars I Ontologia 4-5. As tradues do alemo so da minha responsabilidade. 13

PLATO, Teeteto, 155d. 14

ARISTTELES, Metafsica, 982b. 15

A esse propsito, cf. tambm o texto de Heidegger Was ist Metaphysik? O que a Metafsica?, que reflecte sobre a relao global que o questionamento metafsico (a interrogao pelo ser) estabelece com o todo da realidade e com o prprio sujeito que interroga, de tal modo que ele est, desde sempre, j a nesse acontecimento de estranheza. A nossa existncia determinada pela cincia, pela procura do saber, pelo ponto de interrogao original que somos; a disposio fundamental [Grundstimmung] da angstia [Angst] assalta-nos constitutivamente, revela-nos o nada diante do qual o ser se encontra, e pelo qual podemos abarcar a totalidade do ser: o entendimento humano habita, por natureza, a filosofia (Heidegger comenta o texto platnico de Fedro 279a), o seu domiclio primordial desde que o homem exista, tem sempre lugar algum tipo de interrogao filosfica. Sobre esta problemtica, veja-se, por ex., AGOSTINHO, Confisses, I, I, 1 (o corao inquieto); X, V, 7; X, XVI, 25; AQUINO, Questo Disputada sobre a Verdade, q.1, a.1, Respondeo (relao original do intelecto com o ser e orientao para o seu desvelamento e manifestao (verum est declarativum et manifestativum esse o verdadeiro ser declarativo e manifestativo).

7

se, sim, de uma disciplina natural da razo que se encontra intrinsecamente conectada

com as questes fundamentais que a existncia humana suscita e que no podem

permanecer sem resposta. Bem pelo contrrio, elas exigem do prprio sujeito pensante

que por natureza um mistrio a persecuo de um esforo que seja capaz de resolver

a vertigem do espanto.

com base nesta concepo da filosofia como disciplina natural que pretende

evidenciar e tornar consciente este ncleo de problemas, assim como dar-lhe resposta

que a prtica de ensino supervisionada foi seguida ao longo do ano lectivo. Dado que

seria impossvel analisar, ponto por ponto, a totalidade das estratgias e metodologias

utilizadas ao longo de todas as aulas que foram leccionadas, procurar-se-, ento, tomar

como exemplo aquelas que se referem s unidades temticas da aco humana (mdulo

II do programa de filosofia, com incidncia particular no ponto 3.1.3.), no caso do 10

ano, e do conhecimento e racionalidade cientfica e tecnolgica (mdulo IV, pontos 1.1.

e 1.2.), no caso do 11.

Em primeiro lugar, relevante clarificar o significado e importncia da

planificao de aulas, em conjunto com a fundamentao da sua estrutura esquemtica,

no obstante a margem de manobra que se tem para a apresentar de uma ou outra forma,

desde que se mantenha os alicerces indispensveis. A elaborao e utilizao de uma

planificao traduzem-se num exerccio de esclarecimento dos termini a quibus [a partir

dos quais] e ad quos [para os quais] do percurso a seguir, pelo que se constitui como um

plano, passo a redundncia, que enforma os vrios aspectos a ter em conta no

conjunto de aprendizagens que se pretende por parte do aluno. Nesse sentido, e quanto

forma, a planificao aula a aula ( dessa que se trata) dever ser a mais clara e curta

possvel, sem deixar de atender, por isso, aos contedos previstos para um determinado

tempo; o esquema estabelece, ento, uma relao entre competncias a exercitar e

adquirir, objectivos, contedos programticos, estratgias/actividades,

avaliao e conceitos, sendo possvel incluir elementos como bibliografia e

materiais utilizados. O fundamento para esta organizao, decorre, por um lado, da

implementao de um ensino com base em competncias o que requer a combinao

dos instrumentos necessrios para exercitar certas e determinadas capacidades , e, por

outro, dos elementos a que se dirigem aquelas mesmas competncias, tais como os

objectivos pretendidos na sua aplicao (subordinados aos contedos programticos) e

os modos de avaliao que lhes so adequados.

8

O conceito de competncia, apesar de central, encontra-se ausente, na sua

definio, do decreto-lei n. 6/2001, bem como do programa de filosofia, ainda que este

ltimo apresente uma srie de competncias a desenvolver no contexto dos objectivos

gerais16; comummente, aceita-se que uma competncia integra conhecimentos (saber

conceptual), capacidades (saber-fazer) e atitudes (saber relacional), isto , um saber

em aco ou em uso, que pressupe a transferncia e a mobilizao de capacidades e

conhecimentos. Quase se diria que possvel ilustrar esta concepo de aprendizagem

com a tese exposta por Aristteles de que a aprendizagem das virtudes semelhante

das artes (tcnicas), nas quais aprendemos a fazer determinada coisa ao faz-la (ao

produzi-la): aprender [] fazer/produzir [], e fazer/produzir aprender17.

Nesse sentido, a competncia ser uma (arte) direccionada para a produo de

qualquer coisa; um hbito [] que se apresenta acompanhado de razo ou

justificao verdadeira [ 18]. Mesmo que no se considere a

competncia como uma arte, stricto sensu, ela no deixa de estar imbuda das

determinaes essenciais de uma tcnica, as quais asseguram a possibilidade de aferio

da competncia ou incompetncia de um indivduo numa determinada tarefa; alis, diz-

se de algum que competente ou incompetente de acordo com a capacidade de se

servir de uma determinada tcnica, de executar com perfeio a tarefa que lhe

atribuda ou a que se prope19.

Os objectivos, por seu lado, configurados atravs de verbos introdutrios da

actividade pretendida, representam o plano concreto no qual as competncias, gerais ou

16

Segunda Parte Apresentao do Programa, 2 C. 17

Cf. ARISTTELES, tica a Aicmaco, 1103a-1103b. 18

Aqui, como sempre, difcil acertar com a traduo de . A edio bilingue utilizada traduz como qualidade racional. 19

A tematizao completa de um termo tcnico da pedagogia contempornea no pode ser aqui feita, dado que isso exigiria, por si s, uma tese completa. No de negligenciar, no entanto, que o conceito tem sofrido vrios desenvolvimentos desde a sua emergncia no sc. XX, ligado s reas da indstria, da psicologia, da sociologia e, porque no, da filosofia. A esse ttulo, interessante o estudo de J. Jardim, na sua obra Programa de Desenvolvimento de Competncias Pessoais e Sociais Estudo para a promoo do sucesso acadmico, num captulo inteiramente dedicado ao conceito, e que acompanha as vrias formulaes possveis; em jeito de resumo, diz o seguinte: a competncia corresponde a uma capacidade de mobilizao, enquanto aptido para mobilizar um conjunto de recursos cognitivos, tais como saberes, capacidades diversas e informaes; o conjunto de conhecimentos e capacidades de aco, que se expressam em comportamentos estruturados em funo de uma finalidade e num tipo de situao dada; um poder e um querer que resultam na aco com os outros uma construo intersubjectiva; um hbito que se configura como um sistema de princpios e de estruturas internas, usadas para potenciar os desempenhos e das quais s se tem conscincia parcialmente. Como avaliao de situaes dadas, na relao com os outros, constitui-se como interaco dinmica com a realidade circundante. a capacidade que se tem para operacionalizar um conjunto de conhecimentos, atitudes e aptides numa situao concreta, de modo a ser bem sucedido, isto , capacidade pessoal de realizar uma funo ou tarefa segundo critrios de desempenho previamente estabelecidos.

9

especficas, tm a sua expresso prtica e oficinal, no estabelecimento de metas a

cumprir que so definidas pelos contedos a serem trabalhados. Isso significa tambm

que so introduzidos de maneira a dar curso aquisio de certas e determinadas

competncias, para l da sua aplicao momentnea. O que acontece muitas vezes,

porm, a incapacidade dos objectivos estabelecidos em garantir o exerccio de

competncias que transcendam a simples potncia de armazenamento de informao,

confiada memria para um uso de curto prazo, findo o qual aquela pura e

simplesmente eliminada. Este fenmeno particularmente flagrante no caso da

filosofia.

O quadro das estratgias/actividades reflecte a boa ou m gesto dos recursos

disponveis para o desenvolvimento das competncias pretendidas e dos objectivos

preestabelecidos, tanto mais quanto se pode identificar contedos que, pela sua

natureza, so susceptveis de uma reduplicao, como o caso da tica se as

metodologias no forem conformes a uma comunicao capaz de capturar o sujeito no

movimento tico, no se conseguir mais do que o catlogo de teorias diversas e

discordantes entre si, com a identificao da pertena a este ou quele autor, nesta ou

naquela poca da histria da filosofia, e sem qualquer interesse para o sujeito existente,

livre de qualquer interesse na matria. Uma construo deste quadro que no tenha em

conta estes aspectos, bem como as caractersticas psicossociolgicas da turma (que a

tornam mais ou menos comportada, entusiasta, participativa, etc.), estar, porventura,

votada ao fracasso ou a uma completa ineficcia.

Neste contexto, em especial na relao entre competncias e objectivos, a

avaliao tem um papel eminentemente regulador, orientador e certificador das

diversas aquisies realizadas pelo aluno (decreto-lei n. 6/2001, art. 12.); pode

assumir um carcter diagnstico (aferio das competncias adquiridas at um dado

momento do passado, com vista a uma correco optimizada para o futuro), formativo

(aquisio de saberes) e sumativo (mobilizao de saberes e aplicao de competncias

com vista a uma classificao). de sublinhar que, no caso especfico da filosofia,

difcil pr em prtica uma avaliao de natureza sumativa, tendo em conta que a

preponderncia existencial da mesma no pode ser classificada em termos absolutos;

eventualmente, a nica disciplina filosfica susceptvel de uma tal avaliao, inclusive

contnua, ser a tica, precisamente porque, na linha socrtica, se o sujeito no pe em

prtica o que aprendeu relativamente virtude, ento no aprendeu de todo o aluno

que copia ou cabula no teste referente ao mdulo da tica surge como exemplo perfeito

10

de algum que, mesmo desculpado porque se trata da primeira vez, suponhamos,

encontra-se j, eo ipso, chumbado no mdulo.

Os conceitos, implcitos ou explcitos, podem ser gerais ou transversais,

especficos ou regionais, metodolgicos ou instrumentais, e tm a vantagem de poderem

ser organizados em consonncia com a progresso nos contedos abordados. No caso

das planificaes gerais de unidade, os gerais ou transversais tm a preeminncia,

enquanto que os especficos ou regionais a tm nas planificaes de sub-unidade e aula

individual; os metodolgicos ou instrumentais beneficiam de uma presena absoluta,

dadas as caractersticas do exerccio filosfico em si mesmo.

Estabelecida a forma, convm fazer uma breve nota quanto matria das

planificaes, no em relao a todos os quadros a presentes porque variveis

segundo os contedos trabalhados , mas acerca das competncias. Ao longo do ano

lectivo, as competncias privilegiadas foram: a problematizao, indiciadora de uma

relao judicativa entre um sujeito e um predicado definida pela sua possibilidade (ao

contrrio dos juzos assertricos e apodcticos), o que garante o tratamento adequado

dos vrios posicionamentos apresentados, mas em especial daquele que pertence a cada

aluno na sua individualidade existencial; a conceptualizao, que exercita aquilo que

Aristteles identifica com o duplo funcionamento do intelecto na sua discursividade a

composio e a diviso de conceitos, na relao s determinaes especficas que os

constituem e s unidades de tempo que os constituem20, mediante a abstraco

(levantamento temtico das determinaes inteligveis essenciais que perfazem uma

coisa ou unidade colectiva de determinaes, para uma aplicao a vrios objectos

possveis da experincia); a argumentao, no tanto para permitir o dilogo, num

primeiro momento, mas para desenvolver a fundamentao, para si mesmo, das vrias

teses que sejam objectos de adeso, com recurso clareza e coerncia de pensamento; a

comunicao, enquanto expresso slida de pensamentos, os quais se pretende no

fiquem suspensos de uma surtida puramente reflexiva, ao nvel do medium da

imaginao (mera possibilidade reflexiva), antes sejam postos em contacto (comrcio)

com o imediato no medium da actualidade (execuo existencial da possibilidade),

como no caso dos princpios ticos; a competncia do discurso, subsidiria da

comunicao reflexiva, dependente da boa utilizao dos conceitos e dos nomes

correctos21; a anlise e interpretao de teses e textos; a sntese, que rene a diversidade

20

Cf. De Anima 430a25-430b15. 21

Veja-se o Crtilo, de Plato, ou O Mestre, de S. Agostinho.

11

na unidade e a unidade na diversidade, num movimento de recoleco dos

conhecimentos anteriormente adquiridos e conjugao com os novos; e a dialctica, a

qual, como se ver, tanto pode ser considerada uma competncia (mobilizao de um

saber que se traduz numa prtica), como uma estratgia operatria, ainda que, sensu

eminentiori, seja muito mais sobredeterminada do que isso.

Findas as observaes relativas planificao de aulas, procede-se, ento, para a

anlise da conduo de aulas, mais especificamente, para comear, a que diz respeito

rea da tica, trabalhada no 10 ano. Importa referir que, das consideraes que se

seguem, se encontram ausentes, propositadamente, as vrias nuanas concernentes

manuteno da disciplina na sala de aula, regulao dos tempos de compenetrao

para o trabalho, nos primeiros minutos de cada aula, e s interpelaes humorsticas

retricas que assistem a retomada de ateno por parte dos alunos nos momentos de

cansao ou de pausas mais expositivas e reprodutivas (apontamentos, esquemas e

definies apresentadas no quadro da sala de aula). Esta uma opo descritiva que se

justifica pela compleio mais ou menos contingente de algumas dessas intervenes,

bem como pela sua qualidade dinmica, mais dificilmente reproduzvel e perceptvel na

linguagem escrita do que na linguagem oral; acresce tambm que a devida avaliao

desses momentos foi realizada em tempo oportuno pela orientadora local, de maneira

que no se justificaria a rotina autofgica. Justificar-se-ia, talvez, se tivesse havido a

identificao de uma dificuldade por demais evidente na organizao e manuteno da

disciplina no estabelecimento da relao pedaggica, que exigiria, ento, a descrio do

processo estratgico de reparao das situaes de indisciplina ou mau comportamento,

o que no aconteceu. certo que, como seria de esperar, houve episdios de

burburinho, utilizao indevida de meios electrnicos de comunicao e diverso,

desateno em certas alturas e irregularidades na relao dos alunos entre si, mas

nenhuma dessas ocorrncias teve, alguma vez, um carcter continuado e sistemtico que

exigisse, da parte do mestrando ou da orientadora local, a implementao de estratgias

correctivas alargadas que visassem um mau comportamento qualificado. As

dificuldades que mais se fizeram sentir, no contexto de sala de aula, estiveram

relacionadas com a estimulao dos ciclos de ateno dos alunos, nos casos em a anlise

se tornava um pouco mais rida, e com a eficcia das estratgias de leccionao na

deflagrao de uma transio para um outro gnero [ ], ou seja,

12

na transio do registo meramente doxogrfico para o registo existencial22. Ter

contribudo para isso, certamente, a boa relao pedaggica que se estabeleceu entre

mim e os alunos, dentro e fora da sala de aula, pontuada por dilogos mais informais

sobre a vida comum, aconselhamento, esclarecimento de dvidas, sesses de orientao

de trabalhos individuais e de grupo, e pela natural curiosidade dos adolescentes em

conhecerem um professor de idade to jovem, o que permite, ainda, nveis de

aproximao geracional dificilmente alcanvel num outro registo. Isso no impediu,

todavia, que tivesse conscincia da diferenciao entre as duas turmas atribudas, pois

que a de 10 ano era formada, quase na sua totalidade, por alunos do sexo feminino,

com um grau de desenvolvimento psicolgico e afectivo prprio23, entre os quais os de

sexo masculino no possuam a atitude assertiva, expressiva e agressiva dos

adolescentes da sua idade, antes eram tmidos, com perturbaes emocionais visveis, e

com dificuldades de aprendizagem devidamente assinaladas nos conselhos de turma,

por indicao da directora de turma; a de 11 ano era formada, maioritariamente, por

adolescentes de sexo masculino, ainda que com muitos do sexo feminino, cujos

comportamentos, dentro e fora da aula, revelaram j um maior afastamento

relativamente infncia e puberdade, com um planeamento de futuro mais delineado,

e com a assertividade, expressividade e agressividade caractersticas do sexo

predominante e da idade. Estas caractersticas faziam da turma de 10 ano um grupo

emocionalmente mais dependente, com necessidades de acompanhamento, gesto de

conflitos e mecanismos de reforo positivo e negativo muito especficas; a turma de 11

ano, por sua vez, era emocionalmente menos dependente (no obstante haver sempre

um grau de dependncia afectiva na relao com o professor, seja ela vincada pela

confiana e apreciao positiva, ou pela falta de confiana e valorao negativa), mas 22

KIERKEGAARD, Papirer, X4 A 289: a distncia que vai entre compreender e fazer (reduplicar) infinitamente maior do que aquela que vai entre compreender e no-compreender, precisamente porque se trata de uma qualitativa, i.e., uma alterao substancial do regime categorial em que se habita. No contexto especfico da reduplicao e, em particular, da reduplicao aplicada forma da comunicao em contexto de sala de aula , isso visvel no domnio tico, no qual o salto do compreender a fundamentao da tica ao fazer daquilo que se compreendeu introduz uma modificao radical na existncia: tem de se ser tico, cumprir o dever, adquirir virtude, etc. 23

Tratava-se de uma turma de cerca de vinte e cinco alunos, ainda sob o efeito da passagem do 9 ano de escolaridade para o 10, que assinala sempre ainda que tendo lugar na mesma escola, como era o caso de muitos uma transio qualitativa que desperta novos interesses e novas formas de relao consigo e com os outros. A ttulo de fundamentao, vide BRACONNIER, A., MARCELLI, D., As Mil Faces da Adolescncia, pp. XXI a XXVI da Introduo, e ainda pp. 54-58 (infncia, identidade e adolescncia), 95-125 (vida afectiva o amor e a sexualidade), 128-134 (a escolaridade na vida do adolescente, com as suas diversas representaes), 151-157 (tipologias comportamentais adolescentes difceis), 176-183 (perturbaes de humor), 205-206 (o grupo dos professores como integrante do grupo mais alargado de adultos-de-substituio); Adolescncia e Psicopatologia, pp. 477-505 (a pg. 478 reflecte sobre quais os anos de transio escolar que tendem a produzir inflexes de sentido significativas nos adolescentes).

13

mais exigente em termos anmicos, atendendo aos ritmos de ateno e captao

acelerados da maior parte dos alunos, motivados pela novidade e pelo entusiasmo a

haver algum momento de quebra por parte do professor ou um relaxamento da tenso

cognoscitiva, facilmente se perderiam em conversas paralelas ou numa desateno

generalizada. O ponto comum entre as duas turmas que havia um ncleo significativo

de personalidades potencialmente identificadas como alunos bons, de rendimento mdio

a alto, de acordo com os parmetros de avaliao institucionais.

Desconsiderando, ento, os aspectos mais acessrios, vejamos qual a abordagem

proposta para a didactizao da necessidade de fundamentao da tica, numa anlise

comparativa de duas perspectivas filosficas, que foi uma das unidades leccionadas na

turma de 10 ano.

Logo partida, convm esclarecer um pequeno equvoco inerente ao programa de

filosofia, que diz respeito relao entre os pontos 3.1.1. inteno tica e norma moral

e 3.1.3. fundamentao da moral: quanto ao primeiro, encontramos no quadro do

percurso de aprendizagem24 uma distino conceptual entre moral e tica, inteno e

norma, o que, no contexto da histria da filosofia, faz todo o sentido, no obstante as

divergncias tericas sobre a existncia ou no de uma verdadeira distino entre os

dois conceitos; quanto ao segundo, encontramos a proposta de questionamento da

fundamentao da moral e dos critrios de apreciao da moralidade dos actos

humanos, o que poderia dar a entender que se trataria da moral enquanto conjunto de

normas de aco estabelecidas pelo costume e pela organizao social e poltica da vida

humana. De maneira a que a minha conduo de aulas faa sentido para um observador

externo, convm ter em conta que assumi a referncia moral, naquele ltimo ponto,

como referncia tica, stricto sensu, isto , individualidade do sujeito que se

constitui para si mesmo uma tarefa de fundamentao das suas aces de acordo com o

ethos (o carcter, a interioridade vinculada virtude ou ao dever). Fi-lo por duas razes:

as consideraes relativas norma enquadram-se, convenientemente, no ponto 3.1.4

tica, direito e poltica; a distino conceptual preconizada no ponto 3.1.1. requer e

aconselha o tratamento diferenciado dos dois nveis da aco, os quais, mesmo depois

de Kant e Hegel, so susceptveis de criar conflitos como aqueles que Scrates

identifica na relao com o Estado e as normas.

24

Pg. 29.

14

Com isto em mente, a conduo da primeira aula sobre este tpico (e j depois de

ter sido feita uma fenomenologia da aco25 e de se ter reservado a conceptualizao

aprofundada da tica para este momento) privilegiou, como ponto de partida, a situao

dos alunos enquanto indivduos, numa metodologia que se poder considerar, seguindo

os cnones, preferencialmente indutiva. A nica hesitao em faz-lo reside no facto de

no se procurar exactamente um determinado nmero de ocorrncias ou instanciaes

particularizadas do fenmeno (o tico, neste caso), que nos levasse ou conduzisse das

concepes particulares para as ideias gerais com que operam; o que se pretende

interpelar directamente o aluno na sua individualidade concreta (na actualidade), na sua

situao, de maneira a identificar os princpios operatrios com os quais ele se

apresenta ao chamamento da existncia, para efectuar, num segundo momento, um

distanciamento aos contedos a pressupostos. Basicamente, o que se pretende no

que eles induzam os conceitos a partir de momentos particulares nos quais pensam

conseguir identificar uma determinada ideia, nem tampouco que, posteriormente a isso,

deduzam as consequncias alargadas dos conhecimentos previamente tidos; o objectivo

diagnosticar formas preliminares e inconsequentes de constituio de evidncia ou de

saber, para, movimento contnuo, anular as crenas e opinies instaladas, criando por

esse modo um vazio capaz de suportar a tenso e o desconforto de se ver perdido aquilo

que nem sequer se podia perder, porque nunca tido. Para esse efeito, e uma vez

ultrapassada a simples aproximao lingustica aos conceitos de tica e moral

(incontornvel na perspectiva de uma avaliao por definies), precedida pela

contextualizao do novo tema, o trabalho dialctico exercido com base em pequenos

exerccios de reflexo escrita e oral, regulado pela apresentao de casos prticos pouco

extensos e por um tempo muito reduzido e no limitado para responder.

O primeiro exerccio26 consistia no que foi designado por dilema de

Agammnon, em referncia ao evento trgico grego protagonizado pelo rei com o

mesmo nome, antes da guerra de Tria, no qual eram contrapostas duas vias de aco

possveis: ceder piedade estatal (por imposio de Tirsias, orculo dos deuses) e ao

dever para com os sbditos, aliados soberanos e seu irmo (Menelau), matando a sua

filha Ifignia, para possibilitar a acalmia das foras da natureza que impediam a partida

das naus, ou cumprir o seu dever de pai e salvaguardar a vida da sua filha, em oposio

presso exterior. Foi pedido aos alunos que optassem, forosamente, por uma das duas

25

Ponto 1.1. do mdulo II do programa. 26

Anexo 10 H1 A.

15

posies, ao vestirem o papel do rei grego, e justificassem o porqu da sua tomada de

posio. Apesar da diversidade das respostas, o que interessa no tanto a curiosidade

em saber quais foram, mas a tomada de conscincia da incapacidade de justificar a

posio assumida em termos absolutos e definitivos, sem margens de confinamento

claras entre a bondade e maldade das duas vias de aco possveis; neste ponto, tarefa

do professor orientar a leitura e contraposio das justificaes (de preferncia

garantindo o tempo e a ordem necessrios participao de todos), resguardar-se de

assumir ele mesmo uma posio, e questionar em cada momento, atravs de uma

problematizao e formulaes negativas, por que razo a posio inversa no to

vlida quanto aquela que inicialmente defendida. Este no se trata, porm, de um

exerccio tico puro, j que pretendia sublinhar a diferena terico-prtica entre tica e

moral, realada pela oposio entre a massa (o estabelecido) e o indivduo.

De maneira a tornar a perturbao existencial ainda mais agravante, tornava-se

necessrio introduzir uma maior envolvncia pessoal dos alunos, cada um por si, com a

justificao das aces, com a ressalva de o exerccio ser proposto sem qualquer

atribuio directa ou indirecta de juzos de valor sobre situaes concretas ntimas; nos

casos prticos que se seguiram, teve-se o cuidado de apresentar uma aco

perfeitamente comum (na acepo de senso-comum), dirigida a todos, em geral, mas a

nenhum em particular, com uma dimenso de proximidade s preocupaes mais

influentes na adolescncia e no despertar da intersubjectividade. Props-se um caso em

que fulano se encontra numa relao amorosa com a no-sei-quantas e, num acesso de

desconsiderao, leva a cabo uma traio com no sei quem; o que se pretende saber,

ento, se a aco dele pode ser considerada, em termos absolutos, boa ou m, e, se

sim, porqu. Trata-se, agora, de valorar qualitativamente as aces de acordo com

critrios ou ideias que se assumem como pretensamente dadas, e fundamentar o porqu

de uma tal classificao. Invariavelmente, as respostas partem da perspectiva da no-

sei-quantas, numa considerao que pende fortemente para a maldade da aco, e

terminam num conjunto de asseres morais mais ou menos correntes que no se

encontra suportado por qualquer alicerce caracteristicamente tico e tematizado.

Um outro exerccio, complementar do anterior (porquanto acusa o mesmo

mecanismo de constituio de evidncia), consiste na listagem ordenada ou

desordenada27, no quadro da sala de aula, de vrias pequenas aces ou de verbos que

27

Quando ordenada, acusa muito mais facilmente o processo mental de adeso atemtica s proposies.

16

permitam a sua valorao judicativa com base em critrios de bem e de mal28, a qual se

pretende seja efectuada pelos alunos, individualmente e em pouco tempo. Como

alternativa, tambm se pode pedir que sejam eles a identificar e escrever, no caderno,

um nmero determinado de aces que considerem ser boas ou ms. Mais uma vez, se

verifica que os resultados mesmo quando estes frustram as expectativas mais comuns,

tais como a identificao do acto de roubar como sendo bom ou como no tendo nada

de mal indicam que a forma comum de constituio de saber (ou pretenso saber) a

do autmato, para utilizar a terminologia de Pascal, e no a da inspeco do esprito29,

que a que se procura atingir. Se quisermos, o que est aqui em causa um vcio de

subrepo (vitium subreptionis), que se trata de uma expresso operatria com diversas

aplicaes, de entre as quais a mais facilmente identificvel ser a que Kant utiliza para

as transgresses epistemolgicas originadas pelo comrcio indevido entre o

transcendental e o emprico, de tal modo que se toma fraudulentamente um pelo outro30;

para entender melhor o sentido em que aqui o aplico, tenha-se em conta uma das muitas

ocorrncias que ele tem nos dilogos socrticos: no Teeteto [146b-147c], Scrates

interroga o seu interlocutor, Teeteto, sobre o que seja o saber ou cincia, ao que ele

responde que os assuntos que se aprendem com Teodoro so saberes geometria e as

que tu ainda agora enunciaste ; por outro lado, tambm as artes do sapateiro e dos

outros artesos, todas e cada uma delas no so outra coisa, a no ser saber31 [146c-d].

Ao ser interrogado por Scrates sobre o saber em si mesmo o que , qual a sua

definio, em que medida faz de tudo o resto saberes , Teeteto responde com uma

srie de instanciaes particulares a que chama saberes ou que est acostumado

(automaticamente) a considerar como saberes, designando-os por meio dos objectos

de que so saberes (geometria, sapataria, etc.), ao invs de conseguir exprimir a nota

comum a todos eles. Com um tom dialctico muito prprio, Scrates apresenta uma

analogia: se algum nos interrogasse sobre coisas simples que esto mo, tal como o

28

Os exemplos podem ser variados: roubar um artigo de uma loja; mentir ao melhor amigo; dar esmola ao pobre; dizer a verdade; no copiar nos testes; fazer cpias ilegais de filmes e msicas; etc. 29

Vide Pensamentos, fr. 671 (L.G.), por exemplo. No importa tanto, aqui, o papel positivo que Pascal parece atribuir, nalgumas circunstncias, constituio de evidncia ao modo do autmato, mas a divergncia entre as duas formas, a atemtica e a temtica. At porque Pascal parece s reconhecer a validade do autmato depois de a inspeco do esprito ter sido conseguida previamente. 30

Cf. Crtica da Razo Pura A 36/B53; A 791/B 819 A 792/B 820; A 490/B 518; A 643/B 671; Reflexes 1018 (vitium subreptionis practicum vcio de subrepo prtico); 5059; 5553; Crtica da Razo Prtica A 210; Crtica da Faculdade de Julgar 27. 31

Esta citao, em particular, e as seguintes so referentes edio portuguesa do Teeteto presente na bibliografia (juntamente com a francesa e a edio bilingue da Loeb). Cf. tambm o exemplo de subrepo presente no dilogo Eutifron, 6d-7a.

17

que o barro, e lhe respondssemos o barro dos oleiros, o barro dos ceramistas e o

barro dos fabricantes de tijolos , no estaramos a ser ridculos? [147a] Daqui se

segue, logicamente, que se algum no sabe em que consiste o saber, no poder

tambm saber o que se compreende por saber geomtrico ou saber sapateiro, da

mesma maneira que se algum no souber o que o barro, nada adianta pelo facto de

ser capaz de enumerar o barro dos oleiros, ceramistas e fabricantes de tijolos;

aqui reside o vcio de subrepo apontado, na confuso dolosa (ainda que no

intencional) entre os tipos de objectos e determinaes que nos habitumos a reconhecer

como sendo isto ou aquilo, e a posse efectiva de um saber temtico acerca dos conceitos

e definies que nos permitem justificar uma determinada atribuio epistmica.

Na tica, em especial, a convico de que a aceitao automtica de certas aces

como boas ou ms corresponde, efectivamente, a saber que elas se encaixam nessas

valoraes, impede, logo partida, qualquer comunicao especificamente tica: a

subrepo procedente do uso passivo da razo conduz-nos, por um lado, incapacidade

de nos distanciarmos o bastante para julgar os nossos pretensos conhecimentos, e pode

tambm, por outro, manter-nos constante e inflexivelmente no medium da imaginao,

ou seja, sem qualquer contacto efectivo entre o que se pensa e o que se . Da advm a

equivocidade em considerar a metodologia proposta como univocamente indutiva, dado

que a tentativa de universalizao de certos conceitos a partir de experincias

particulares se encontra, desde logo, viciada pela subrepo, o que significa que a minha

apreciao valorativa desta ou daquela aco pode ser puramente acidental. O esforo

de reduplicao intrnseco preparao dos alunos procura efectivar, por isso mesmo, a

conscincia da inanidade do saber pressuposto, e impedir, em simultneo, que o vazio

deixado por essa conscincia seja imediatamente preenchido, at porque esse mesmo

preenchimento, seguindo os trmites do programa, rpido e ilusrio: ainda o aluno no

teve tempo para se dar conta da possibilidade de formular juzos em sede prpria

[princpio do pensar esclarecido32], j o professor em escrupuloso cumprimento do

nmero de aulas previstas e das datas de avaliao preestabelecidas, com consequncias

futuras na sua prpria avaliao o est a envolver no abrao reconfortante da doutrina.

A introduo mais ou menos doxogrfica logo, inofensiva dos autores, suas pocas e

contextos histricos, textos e acolhimento pblico por parte dos crticos, rapidamente se

32

Sobre os trs princpios kantianos do pensar (esclarecido, alargado e consequente), vide: Crtica da Faculdade de Julgar 40; Reflexes 456, 1486, 2273, 2564, 6204; Was heisst: Sich im Denken orientiren?, vol. 8, p.146 [O que significa orientar-se pelo pensamento?], edio da Academia.

18

encarrega de neutralizar a possibilidade de capturar o aluno num movimento de

reduplicao sobre si mesmo, no qual o contedo deveria ser rebatido na existncia, ao

contrrio de se deixar ficar pela sua idealidade (imaginao). Os contedos trabalhados,

nesta ordem de ideias, no ultrapassam nunca o registo imaginrio ou meramente

possvel, no adquirem forma na actualidade do sujeito existente. tanto mais assim

quanto, no mesmo ano e no mesmo perodo de tempo, se exige que os alunos se vejam

confrontados no com uma, mas com duas perspectivas de fundamentao da tica, o

que obriga inevitavelmente quebra da comunicao indirecta (proposies

reduplicadas) e ao estabelecimento da comunicao directa (proposies meramente

ideais que facilmente se decoram e reproduzem numa avaliao sumativa, por

exemplo).

certo que, na planificao e conduo de aulas, introduzi mais um autor talvez

em contraveno directa quanto ao que eu prprio apontei como contraproducente na

parte de fundamentao, nomeadamente Aristteles, mas porque servia os propsitos de

uma fundamentao autnoma da tica no campo da individualidade dos alunos. A

relevncia, nesse caso, no foi atribuda ao contexto histrico nem origem dos

problemas ticos nos gregos (at porque a teria que comear com Scrates/Plato, que

inaugura a tica como problema terico e, sobretudo, existencial, prtico, na medida em

que o indivduo passa a ser tido como tarefa para si mesmo33), mas natureza

originalmente interpeladora da tica como orientao constitutiva para o desempenho

perfeito da tarefa ou funo que, com toda a propriedade, se pode dizer humana

(virtude); escapar tica, neste contexto, torna-se impossvel, mesmo que

negativamente (no estar a cumprir o que devido). Por isso mesmo que se fez

recurso do mesmo exerccio que Plato e Aristteles utilizam nos seus textos, que o de

identificar, em vrios seres e em diferentes graus, funes ou tarefas que lhes sejam

especficas, at chegar quilo que , essencialmente, humano.

Em suma, as aulas iniciais de cada unidade ou sub-unidade procuram sempre

colocar uma questo existencial e levar os alunos a confrontarem-se consigo mesmos na

33

Cf. Mnon 70a, que esgota, diria, todas as interrogaes limite que se podem fazer sobre a tica; e ainda Kierkegaard, Doena para a Morte, XI 200, onde se considera que Scrates o Ethiker por excelncia o termo de difcil traduo, porque no parece haver um correspondente directo, actualmente, e porque o texto de Kierkegaard facilita uma interpretao na qual Scrates no s o fundador da tica, como o nico Ethiker (poder-se-ia traduzir o termo dinamarqus por tico, numa substantivao do adjectivo, ou por eticista, o que se aproxima demais de uma certa tradio analtica contempornea que faz de um eticista algo muito diferente daquilo que Scrates representa); sobre a pretensa reduo (reconduo, ao estilo husserliano) da filosofia tica, por parte de Scrates, cf. tambm SNECA, Cartas a Luclio, Carta 71, 7.

19

conscincia do ser, para s depois, mais tarde, aplicar os contedos tericos

(imaginrios, possveis) sob a forma de comunicao directa (definio,

esquematizao, reproduo escrita), ainda que se possa execut-la de maneira a no ser

totalmente directa. A ttulo de exemplo, pode verificar-se que, na segunda planificao

para o ponto de fundamentao da tica34, e uma vez introduzido Aristteles, a distino

entre hbitos, potncias e paixes, que, devido calendarizao, no se prestava

ao dispndio de muito tempo, ainda que directamente comunicada, foi pautada pelo

seguinte exerccio: num teste nomeado como teste das paixes, foi pedido aos

alunos que, durante a audio de curtos trechos de msicas de vrios estilos (ainda que

na maioria afectas aos interesses musicais dos adolescentes, que se foram tornando

perceptveis no dilogo com eles), escrevessem, numa palavra, qual a paixo

(afeco, sentimento, emoo) que neles predominava naquele momento, em virtude da

msica. O efeito pretendido, em boa parte dos casos, foi conseguido, porquanto foram

obrigados, pelo exerccio, a tomar conscincia da influncia que um catalisador como a

msica tem nas nossas paixes, e em que medida isso determina, por sua vez, a forma

da aco. Mais uma vez, o impacto existencial consegue ser introduzido.

A mesma repercusso foi procurada na turma de 11 ano, nomeadamente no

tratamento da unidade respeitante ao conhecimento, nos seus pontos 1.1. estrutura do

acto de conhecer e 1.2. anlise comparativa de duas teorias explicativas do

conhecimento [mdulo IV do programa].

A abordagem inicial leccionao destes dois pontos do programa foi, desde o

incio, orientada no sentido de abrir horizonte ao estudo das trs teorias explicativas do

conhecimento que se encontravam presentes no Manual adoptado [A Arte de Pensar]:

cepticismo pirrnico; racionalismo cartesiano; e empirismo cptico (Hume). Dado que

se exigia uma preparao prvia baseada na anlise da estrutura do acto de conhecer (o

que inclui o sujeito cognoscente, o objecto cognoscvel e a prpria natureza do

conhecimento), procurei a combinao entre uma problematizao dialctica inicial

sobre a situao cognoscitiva humana (quando ao abrigo do pensar por si mesmo ou de

forma esclarecida) e o estado de dvida descrito por Descartes no incio da Meditao

Segunda: o questionamento inicial deveria, assim, encher o esprito de tantas dvidas,

que no estivesse mais em poder dos alunos esquec-las, mergulhados ou cados

numa gua muito profunda, com grande surpresa e sem capacidade de assegurar o

34

Anexo 10 H1 B.

20

contacto dos ps com o fundo ou subir superfcie35. O objectivo consistia na

apresentao existencial do problema do conhecimento, de modo a conseguir mais do

que lidar com a dvida na possibilidade o que seria simplesmente um jogo e uma

neutralizao da mesma e introduzir interesse (ser-entre). O interesse uma das

categorias fundamentais elencadas por Kierkegaard, no s pela sua relao com a

reduplicao, como pelo desenvolvimento autnomo que recebe na obra Johannes

Climacus De omnibus dubitandum est, relevante para a compreenso do significado

da dvida na filosofia moderna e, sobretudo, na existncia, quando levada a srio.

O passo fundamental36 que serviu de base ao empreendimento proposto sublinha

que a reflexo especulativa, enquanto tal, representa somente a possibilidade [medium

da imaginao] da relao do sujeito com o contedo qualquer que ele seja com que

de cada vez se encontra, mesmo quando se trata da dvida (metdica ou no); a

conscincia, pelo contrrio, a relao, em que consiste o interesse este o efectivo

comrcio entre a possibilidade (neste caso, da dvida) e a actualidade, que consegue a

eliminao de qualquer duplicidade categorial por meio de uma sobreposio dos dois

planos (ou pela efectivao de um no outro). As tentativas de manter a dvida no registo

da curiosidade doxogrfica e intelectual, ou de a tornar inofensiva por meio da

precipitao rumo existncia de uma resposta, encontram-se fechadas no crculo

vicioso da possibilidade, logo, do desinteresse; o conhecimento desinteressado pode ser

encontrado em qualquer disciplina ou rea do saber, mas torna-se particularmente

flagrante no caso da dvida cartesiana, precisamente porque l-lo num registo ferial

retirar-lhe todo o seu contedo (independentemente agora de Descartes o ter feito ou

no).

Neste contexto, as duas aulas iniciais37 radicalizaram o argumento do sonho38,

com o questionamento sobre a certeza de os alunos estarem acordados ou no. O

irromper do exerccio dialctico das perguntas e respostas processou-se no sentido de

35

Parfrases de DESCARTES, Meditaes Metafsicas, Meditao Segunda, 18 (23-24 na verso latina). 36

Papirer IV B1 148. 37

Aqui tive a oportunidade de as apresentar s duas turmas de 11 ano, por solicitao da orientadora e concordncia da colega de estgio, o que permitiu uma verificao mais apurada da sua eficcia ou ineficcia. 38

A exposio do problema ou do argumento clssico pode ser encontrada em Plato, no Teeteto (158a-d), onde se discute j se possvel apresentar alguma prova que garanta a diferena qualitativa entre o sonho e a viglia, atendendo a que as percepes parecem no diferir assim tanto em relao aos fenmenos apresentados ao sujeito, da mesma maneira que aos loucos tudo parece real, to real quanto a prpria realidade; em Descartes, o argumento inicial (Meditaes, 13-15) assume uma dimenso ainda mais problemtica com a introduo do gnio maligno (Idem, 18), ainda que a soluo para ambos possa ser a mesma, no limite.

21

haver uma tentativa de fundamentao daquilo que foi a certeza apodctica, por parte

deles, de que se encontravam, realmente, num estado de viglia e no de sonho.

Os argumentos produzidos seguiram a linha de orientao do senso-comum,

mediante a apresentao das razes aparentemente mais evidentes e seguras: a memria

de ter acordado de manh, ao que se seguiu a vinda para a escola; o facto de as

determinaes fenomenolgicas dos objectos serem muito mais ntidas (manifestas) do

que as dos objectos que aparecem durante os estados onricos; a sequenciao

organizada e conexa entre os diversos acontecimentos de um ou vrios dias. O tempo de

apresentao dos argumentos foi curto e obedeceu a uma contnua interpelao e

moderao, em especial quando se tratava de sugestes complementares de uns em

relao aos outros. Simultaneamente, ao invs de produzir uma contra-argumentao

propriamente dita, por meio de uma exposio directa, a dialctica questionou at que

ponto e em que medida aquelas mesmas caractersticas no poderiam ser tambm

encontradas nos sonhos: recorrente termos sonhos nos quais nos recordamos de ter

acordado e executado uma srie de tarefas, para descobrir, afinal, que no se tratava de

mais do que um sonho dentro do sonho; as determinaes perceptivas onricas no

carecem, o mais das vezes, da mesma nitidez pertencente s da viglia aquilo a que

chamei nas aulas sonhos em alta-definio (o que foi de imediato ao encontro da

compreenso dos alunos); as prprias determinaes da experincia, em estado de

viglia, no possuem, em muitos casos, a tal nitidez requerida recorde-se a exposio

leibniziana dos conhecimentos confusos, nos quais no possvel distinguir as

diferenas ou propriedades das coisas39; e acontece tambm, por vezes, os sonhos terem

uma sequncia lgica, quer dentro do prprio sonho, quer entre sonhos (os sonhos em

trilogias e tetralogias), alm de visitas frequentes por parte das mesmas imagens

(pessoas, animais e objectos especficos). A referncia partilhada entre mim e os alunos

de dois filmes, em especial, facilitou o desenvolvimento dialctico da questo: o

Inception A Origem, cuja temtica geral o sonho e seus vrios estados de

conscincia, na explorao dos fenmenos, da percepo, da conscincia e dos vrios

planos ou camadas que um sonho pode ter (sonhos dentro de sonhos); e o Matrix, que

segue um princpio de reflexo semelhante, na demanda por uma fronteira clara entre a

realidade e a imaginao, entre uma dimenso prxima do nmeno e outra do

fenmeno. Ambos partilham o pano de fundo filosfico sugerido por Plato no Teeteto.

39

LEIBNIZ, Discurso de Metafsica, XXIV; Aovos Ensaios sobre o Entendimento Humano, Livro II, Cap. XXIX.

22

A presso existencial foi-se agudizando em virtude de uma interrogao pr-

delineada sobre as sensaes presentes num e noutro estado, com a listagem respectiva

no quadro; a determinada altura, a tenso cognoscitiva chegou ao limiar que tantas

vezes indiciado nos dilogos platnicos, que o da paralisao aportica, por um lado,

e o da irritao/frustrao pela incapacidade de dar resposta ao problema.

Estrategicamente, o modelo da pergunta e resposta onde a pergunta curta e incisiva,

e a resposta curta (muitas vezes sim ou no) parece conseguir desenvolver

adequadamente as bases argumentativas fundamentais compreenso terica e,

sobretudo, existencial das questes.

Em acrscimo, possibilitou-se o visionamento de um segmento do filme Matrix

(que foi o mais explorado, tendo merecido mesmo, posteriormente, o visionamento

completo), mais especificamente aquele em que a personagem Morfeu (o deus do sono)

confronta Aeo com a conscincia do mal-estar da existncia, na qual se d conta da

clivagem entre o que aparece e a tomada disso como real, pelo que instado a

responder, mais tarde, pergunta o que o real?; no momento seguinte, convida-o a

escolher entre dois comprimidos, um azul e outro vermelho, sendo que o primeiro o

levar a esquecer aquele encontro, e o segundo a permanecer no pas das maravilhas e

descobrir quo funda a toca do coelho. Antes dos minutos seguintes, o filme

propositadamente suspenso nesse momento, ficando a imagem das mos estendidas de

Morfeu com os respectivos comprimidos nas palmas; os alunos so ento colocados

diante da mesma escolha e deciso: ou tomam o comprimido vermelho e o professor

permite-lhes continuarem no pas das maravilhas40, para descobrirem (ou tentarem

descobrir, pelo menos) se esto a dormir ou a sonhar, se conseguem identificar o que

seja a realidade e seu conhecimento; ou tomam o comprimido azul e as coisas param

por ali. -lhes concedido um minuto de ponderao. Terminado o tempo, so solicitados

a colocar a mo no ar em conformidade com a sua escolha individual: a maioria f-lo

em relao ao comprimido vermelho; uma pequena minoria em relao ao azul. Quanto

ao desenrolar metodolgico e estratgico da aula, os que escolheram o comprimido azul

poderiam representar um perigo de desvio das atenes, porque estariam a auto-excluir-

se do seguimento da investigao proposta, ainda que as suas motivaes no fossem,

necessariamente, o desinteresse pela questo ou pela aula; de forma a recaptur-los no

40

Cf. CARROLL, L., Alices Adventures in Wonderland, Penguin Books: a referncia comum a do primeiro captulo da histria, intitulado Down the Rabbit-Hole, cujas interpretaes so muitas e variadas, mas assentam num ponto comum trata-se de uma modificao de um estado de conscincia para outro, do acesso normal que nos disponvel para um acesso radicalmente diferente.

23

movimento dialctico, foi necessrio recorrer a um risco calculado, que se apresentou ao

modo da radicalidade da questo e pretendia encaminh-los para o comprimido

vermelho a proposta foi a de abandonarem a sala de aula. Os alunos manifestaram,

ento, a sua surpresa pela proposta lanada, ao mesmo tempo que lhes explicava que a

chave daquelas aulas era uma alternativa ou se decidiam pelo empreendimento

filosfico, ou o abandonavam, uma vez que seria impossvel cumprir os dois percursos.

E se assim era, ento o resultado da toma do comprimido azul teria de ser o mesmo do

qual a personagem Aeo tinha sido advertida esquecer o que tinha acontecido e acordar

na cama, na manh seguinte, e acreditar no que quisesse. Convidei-os a sair, portanto, o

que gerou alguma tenso quanto ao desfecho e seriedade da alternativa escolhida; no

fim de contas, depois do burburinho e das risadas expectantes dos colegas, e ainda que

com alguma renitncia quanto nova tomada de posio, assumiram que queriam o

comprimido vermelho e no o azul. A sublinhar bem o tamanho da empresa e a

radicalidade dessa escolha, interroguei-os uma ltima vez sobre a certeza que tinham

em faz-la, ao que a confirmaram; relembrei turma toda que j no havia volta a dar e

deu-se seguimento. Foi uma estratgia de compromisso que acabou por dar frutos.

A continuao do filme confirmou a coincidncia de deciso por parte do

protagonista Aeo, qual se sucedeu o momento de escape da matriz para o mundo real

(a entrada na toca do coelho). Prolongou-se o visionamento por mais uns minutos, at

ao momento em que Morfeu conduz Aeo ao deserto do real e o confronta com a

questo epistemolgica de base: o que o real, como se define o real? O trecho

especialmente significativo, porque levanta a suspeita sobre a concordncia objectiva

das sensaes e percepes com os objectos, remetendo para a possibilidade de uma

representao puramente subjectiva que nada pode afirmar sobre o exterior. Os minutos

que se seguiram foram, ento, dedicados a mais uma exerccio escrito de reflexo, no

qual os alunos foram instados a dar a sua resposta individual quela mesma pergunta,

aparentemente to desconcertante. O conjunto de respostas resultou proporcionalmente

interessante: sensao, sentimento, razo, verificao pela experincia, entre outras.

de relevar o facto de boa parte dos alunos ter dado a resposta que mais era desejvel de

acordo com o plano de aula sensao. Era precisamente com esta hiptese que se

pretendia dar curso s anlises preliminares sobre a estrutura do acto de conhecer e os

vrios recursos cognoscitivos que temos disposio41, com base nas anlises de

41

Cf. Anexos 11 C3 A e 11 C3 B. A ordem pela qual aparecem as estratgias presentes na planificao no foi seguida escrupulosamente, em especial porque houve necessidade de adaptao dos contedos, no

24

Aristteles sobre a escala dos saberes e suas margens de confinamento e

desconfinamento42. Isso possibilitou, entre outras coisas, anlise de textos em contexto

de sala de aula e toda uma srie de experincias sensoriais realizadas sob orientao,

nomeadamente as que diziam respeito identificao das vrias sensaes, sentidos e

sensveis disponveis, com uma dinmica relacional acentuada. Garantiu-se, assim, a

compreenso gradual, esclarecida (pensar por si mesmo) e experiencial das

investigaes, partindo da situao comum dos alunos, sem que tivesse sido necessrio

entregar, logo partida, todos os dados, definies e respostas do autor. As

desvantagens desta abordagem so o tempo disponvel, que insuficiente para que isto

se possa fazer em todas as aulas sem qualquer espcie de comunicao directa, e os

ciclos de maior aridez que se geram quando as unidades temticas do programa no se

prestam to facilmente a esta metodologia.

Para ilustrar um pouco melhor esta conduo de aulas, com recurso oficina

filosfica43, seleccionei a planificao referente aula em que me propus a reproduo

da experincia cartesiana da cera em contexto de sala de aula. Numa rpida

contextualizao44, aquela inseria-se numa srie de sesses sobre o racionalismo

cartesiano, orientado pelo percurso apresentado pelo prprio Descartes nas suas

Meditaes Metafsicas45, que tinha chegado ao ponto em que seria necessria a

explicao sobre as ideias claras e distintas, em particular da ideia de res extensa. A

experincia46, tal como apresentada, pretende dar conta das vrias alteraes

produzidas num pedao de cera quando aproximado do fogo, de maneira a aferir que

tipo de sntese (o termo no cartesiano, mas adequa-se) cognoscitiva tem lugar na

identificao de uma coisa como sendo a mesma, apesar de as suas determinaes se

terem alterado. O nexo do problema, que no importa aqui descodificar nos seus vrios

movimento interno da prpria aula, segundo as respostas oferecidas pelos alunos e os tempos precisos ao seu respectivo tratamento. No obstante, a linha geral de orientao foi mantida, tendo sido apresentadas as trs questes fundamentais da filosofia do conhecimento e o seu significado para esta rea da filosofia. de referir ainda que esta mesma planificao foi utilizada nas duas aulas leccionadas ao 11 C1. 42

Cf. Metafsica 980a22-982a; De Anima 416b30-4418a25, 431b20-432a10. 43

Trata-se de um termo que serve a conceptualizao daquele tipo de exerccios prticos, digamos assim, com determinadas finalidades pedaggicas (aquisio e aplicao de competncias de anlise, interpretao, conceptualizao, problematizao), mas que no pretende, propriamente, ser original. 44

O anexo daquela aula, em particular, o 11 C3 I; por uma questo de congruncia interna, anexei igualmente as planificaes respeitantes srie de aulas sobre Descartes. 45

A utilizao preferencial desta obra, com o acompanhamento paralelo do Discurso do Mtodo, teve como critrios a sequenciao organizada das meditaes e as ilustraes exemplares que a acompanham, com uma densidade filosfica mais acentuada do que a presente na restante obra (com excepo, eventualmente, do volume de objeces s Meditaes e respectivas respostas. 46

Meditaes Metafsicas, 23-26 (francs); 30-34 (latim). Os pargrafos encontram-se na segunda meditao.

25

caudais, reside na atribuio de mesmeidade ontolgica a um objecto que sofre um

movimento de alterao, do qual no se pode afirmar que tenha conservado as mesmas

qualidades sensoriais que antes apresentava e que agora no possui; o enfoque

cartesiano, mais do que atender questo da sntese e da temporalidade, vai para a

identificao de determinaes intrnsecas ao tipo de objecto em causa (que material

ou extenso, neste caso), independentemente das variaes que possa sofrer altura,

comprimento e profundidade, que perfazem os caracteres definitrios da clareza e

distino da ideia de res extensa. O propsito era, portanto, facilitar aos alunos uma

compreenso situacional da teorizao subjacente experincia, o que no s foi um

factor contribuinte para a ateno e expectativa por parte deles, com elevado grau de

surpresa por a experincia ir por diante, como tambm permitiu, efectivamente, que eles

chegassem ao fundo da questo, identificando as determinaes que, tambm a eles, os

levavam a afirmar que era e no era a mesma cera (foi utilizada uma vela). A explicao

global e o sentido especfico da reproduo foram, ento, apresentados e relacionados

com o inatismo cartesiano, no contexto da clareza e da distino, mas s depois de se ter

abandonado a comunicao directa, de incio, para apresentar os problemas em situao.

Filosoficamente, tende a ser uma abordagem mais eficaz do que um registo expositivo

directo, ainda que problemtico.

3 Post-Scriptum Conclusivo no-Acadmico s Migalhas Didcticas: Scrates, o

da Filosofia um contributo irnico-pattico-dialctico para a existncia

subjectiva do indivduo; o pensador subjectivo47.

,

, ,

, .48

Fedro, 248b

A segunda parte do relatrio, de acordo com o regulamento devidamente

estabelecido para a regulao do mesmo, deve concentrar-se, em primeiro lugar, na 47

A formulao do ttulo do relatrio deve-se obra Philosophiske Smuler [Migalhas Filosficas], enquanto a do subttulo se deve obra Afsluttende uvidenskabelig efterskrift [Post-Scriptum Conclusivo no-Acadmico s Migalhas Filosficas]. 48

A traduo inglesa da Loeb diz assim: But the reason of the great eagerness to see where the plain of truth is, lies in the fact that the fitting pasturage for the best part of the soul is in the meadow there, and the wing on which the soul is raised up is nourished by this pg. 479.

26

anlise da prtica de ensino. O dito regulamento no esclarece, ao pormenor, em que

consiste exactamente essa anlise, pelo que a minha opo de preenchimento desse

tpico ser a da fundamentao terica daquilo que foi descrito na primeira parte. Fao-

o, porque isso tanto abrange a anlise da prtica de ensino em geral, como a da prtica

de ensino em particular, nomeadamente a da filosofia.

Se certo que as migalhas didcticas apresentaram o fenmeno, o post-scriptum

apresentar o conceito ou ideia, sendo que, precisamente enquanto post-scriptum, dele

no se poder esperar grande coisa, dado que seria inusitado que as palavras finais do

corpo de texto tivessem mais importncia do que aquele. No seria muito sensato

escrever uma carta de vrias pginas, para elaborar, posteriormente, uma pequena nota

de outras tantas pginas que, em absoluto, no s nada tm a ver com a primeira

resenha, como pretendem ainda num golpe de ironia to despropositado quanto a

prpria ser de maior importncia do que aquela. E, cmulo dos cmulos, o seu autor

tem ainda a desfaatez de lhe atribuir a desconcertante designao de post-scriptum (que

, de resto, o que faz Kierkegaard na sua obra, como estratgia de oposio ao sistema

hegeliano). Caso a tivesse, aproveitaria ele tambm, decerto, a ocasio de separar os

dois textos por meio de dois envelopes, que se seguiriam um ao outro na remessa. Qual

no seria a surpresa quando, convencido de ter sido absolutamente informado de tudo o

que interessasse, o destinatrio se desse conta que tinha recebido um novo texto, sob

forma de apndice, quase, que no s mostrava que no tinha sido, de todo, informado

sobre coisssima nenhuma, como ainda pretendia agora sim inform-lo de tudo.

Seria caso para dizer, com aquele outro autor49, que esse novo texto ou bem que

no serve para nada (a no ser, numa remota hiptese e caso tenha sido aprovado pelas

autoridades competentes para esse efeito, para encher um ou dois espaos numa das

prateleiras da biblioteca, onde acumular uma considervel dose de p, contribuindo

assim para a maior felicidade dos caros, sempre to vidos de cultura), ou bem que

poder sempre servir de muito salutar penitncia, no s para quem o l (porque a isso

obrigado, claro), mas tambm para quem o escreve (que tem a vantagem de no ter

que o ler); alm disso, a bem dizer, no se dever de todo pegar no texto quando as

circunstncias indiquem que o hipottico leitor que assim o pretenda perdeu o bom

humor ou simplesmente no lhe apetece.

49

Trata-se de Gonalo Portocarrero de Almada, no livro de compilao de algumas das suas crnicas, intitulado Histrias e Morais, Altheia Editores, Lisboa, Maio de 2011, pp. 7-10.

27

Este exerccio, simultaneamente descritivo e reflexivo, no s trata da ironia e da

maiutica socrticas, como pretende, tambm ele, em si mesmo, ser irnico e maiutico.

Convir, por isso, no contexto da prtica de ensino, sistematizar, num primeiro

momento, as caractersticas da filosofia que se pretende sejam portas de acesso sua

activid