Alvorecer - TESTE

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O alvorecer Lenildo Melo GENÉRICA editora

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Livro para aprovação

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O alvorecer

Lenildo Melo

GENÉRICAeditora

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1ª ediçãoCaruaru, 2012

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Esta é uma história, onde a ficção leva à realidadeRealidade vivida no Brasil e, quem sabe, em quase todas as

partes do mundo, por inúmeras crianças que travam uma verdadeira batalha entre um mal encorajado e incentivado e um bem pouco adestrado.

O caso de Carlos, o Menor Abandonado, é relatado neste peque-no livro, de maneira viva, cruel, mas antes de tudo realista.

O autor.

Apresentação

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Dedico o presente livro a todas as crianças, que não pediram para nascer e que sofrem por terem nascido.

O autor.

Dedicatória

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13Eu sou um menor abandonado.Sei também, que se não houver uma mudança em minha vida,

serei um marginal no futuro.Fui gerado como uma coisa. Não houve amor. Acredito até, que

houve ódio, pois não conheci meu pai biológico. Minha mãe, ainda me suportou durante dois anos e meio, depois desapareceu. A casa, se é que pode ser chamada de casa cortiço, logo foi alugada a outra pessoa, uma velha senhora que me deu dormida e comida por al-guns dias. Depois, delicadamente me disse que não era minha mãe e que era muito pobre e que não podia criar-me.

A partir desse momento, com dois anos e meio aproximada-mente ganhei minha emancipação.

Passei a pedir de porta em porta. A dormida era no local onde anoitecia e sentia-me cansado.

Essa liberdade durou quase seis meses, quando numa noite es-tava num profundo e gostoso sono. Sonhava com uma mesa farta! Havia comida de todas as qualidades, quando fui violentamente despertado por uns homens, que violentando meu sonho, levaram-me para uma casa bem grande, que depois vim saber que era a FEBEM. Disse-Me, você terá casa, comida, escola. Mas esquecer-

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am de dizer, que eu teria também alguns pais, pois, por qualquer coisa que fazíamos, éramos barbaramente espancados...

Com isso fui adquirindo um ódio enorme contra tudo e contra todos.

Vejam bem, não pedi para vir ao mundo, meus geradores usar-am-me e abandonaram-me com poucos dias de vida.

Mas como eu ia dizendo, éramos espancados quase que diaria-mente e por qualquer coisa que fazíamos.

Um dia, uns colegas me convidaram para fugir. Dois dias de-pois, efetuou-se a fuga. Foram de uma vez quase sessenta crianças que logo, em sua maioria, foi capturada. Eu e mais outro garoto não ficamos perambulando pela cidade, como os outros. Fomos para o morro onde nasci e lá ficamos quase um mês. Separamo-nos quando Pedro, o meu colega de fuga, convidou-me para praticar as-saltos. E, eu não havia ainda, adquirido a índole de roubar.

Perambulei, não sei quantos dias mais, dormindo nas calçadas e bancos de praça e pedindo para comer. A esta altura, contava com quase quatro anos e me considerava um jovem ancião. Já tinha quatro anos...

Passados mais uns dias foram novamente presos e recambia-dos a FEBEM. Como vocês podem imaginar à recepção foi a mais calorosa: tapas, pontapés e muitos adjetivos pejorativos. Foi o iní-cio. Depois um banho gelado e colocaram-me para dormir num quarto escuro chamado “solitário” onde passei três dias; comendo um pedaço de pão de manhã, tarde e noite acompanhado de três copos d’água.

A partir desse momento, houve uma metamorfose em minha vida. Se antes odiava sem saber o porquê, passei a odiar sa-bendo, cada pessoa, principalmente o adulto, era um inimigo em potencial e comecei a me construir para o mal.

Estou com seis anos. Nos últimos dois anos, fugi duas vezes. Durante o período que passei fora, do que considero uma prisão, pratiquei dois roubos, coisas pequenas, mas me realizei. Senti que estava prejudicando meus inimigos; uma velha de 60 anos e uma senhora grávida. Tomei a bolsa, fiquei com o dinheiro e rasguei os documentos.

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Mais uma vez fui preso e passei para a ala dos maiores de sete anos. Lá foi que aprendi. Comecei com o cigarro. Confesso que não gostei. Tossi e senti náuseas. Mas meus novos colegas disseram que era natural. Com o passar dos dias em sentiria certo prazer. Foi o que realmente aconteceu.

Quem nos fornecia os cigarros era um guarda, que distribuía 3 a 5 cigarros para cada um. Até que um dia ele chegou e nos disse que não havia conseguido dinheiro para comprar o cigarro. Mas apresentou uma solução.

- Se vocês quiserem a gente pode resolver esse impasse. Eu liberto alguns de vocês. Na rua vocês cometem alguns assaltos e trazem o dinheiro. Aqui, nós dividimos. Eu fico com 50% e vocês com o resto.

- Que acham da ideia?Houve uma aceitação geral.- Quem vai hoje? - Eu, respondi. Assim eu e mais seis colegas saímos. Era quase

seis horas e voltamos às três da manhã. Cada um havia cometido um assalto.

Quando chegamos o guarda estava nos esperando. No mesmo dia, ele fez a distribuição. O total arrecadado deu para comprar cigarros para durante uma semana, ainda sobrou um pouco para cada um.

A partir desse momento, fugir, roubar e voltar virou uma rotina e como também melhorou muito o nosso relacionamento entre nós e os guardas, já que a essa altura havia duas quadrilhas formadas, uma por nós que roubávamos quase que diariamente e a outra pelos guardas que nos soltavam para praticar os assaltos.

E suas exigências eram cada vez maiores. Cada vez eles queriam mais e mais crianças eram convocadas, treinadas e aprimoradas para participar de nossa quadrilha.

A única coisa que nos era exigida era a fidelidade. Se fosse preso, não era para dizer que pertencia à FEBEM, pois de qualquer ma-neira eles voltariam para lá.

A coisa estava caminhando muito bem. Eu já era chefe de uma quadrilha composta de oito crianças e me sentia todo empolgado, principalmente no dia em que a nossa “equipe” ia agir. Para maior

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garantia de nossas ações, o guarda fornecia um revólver a cada um dos chefes. Eu me sentia grande e poderoso. O meu revólver era um Taurus, calibre 22.

Quando completei oito anos era o chefe dos chefes. Todos na FEBEM me respeitavam, pois além de tudo eu tinha o meu próprio revólver. Eu havia roubado de uma casa que assaltamos na zona Sul da cidade e como chefe passei a ganhar mais 10% de tudo que era roubado pela minha e pelas demais “equipes” eram mim 50% ficava com os guardas e o restante era dividido entre os componentes das quadrilhas.

Um dia, um guarda me confidenciou:- Você pensa que este dinheiro é só para nós? Está enganado. A

gente em que dar uma parte ao Diretor. Por isso você como líder dos grupos deve incentivar para que haja maior quantidade de rou-bos. Se você quiser eu posso arrumar mais dois ou três revólveres para uma maior garantia.

Não aceitei os revólveres, pois como chefe eu não queria dividir as minhas “forças” com ninguém.

Uma noite, estava conversando com alguns colegas e dentre as indagações que fazíamos sobre o nosso futuro, nossa vida, o pre-sente e os próximos assaltos, surgiu uma que eu não estava pronto para responder.

Quem tem pai e mãe?Por incrível que possa parecer só quem não tinha pai e mãe era

eu. Todos tinham pai e mãe e descobri uma coisa interessante, que me deixou momentaneamente feliz, muitos roubavam para dar o dinheiro para os pais, que semanalmente vinham visitá-los.

Confesso que perdi a noite. Não consegui dormir. Estava como um louco e com uma ideia fixa em mente: encontrar meus pais e se possível matá-los. Eles tinham que pagar pelo crime de me terem colocado no mundo. Eu vou encontrá-los e acredito que irão arrepender-se amargamente por terem gerado uma pessoa que vive única e exclusivamente para odiar.

Passei a ficar pensando seriamente nessa ideia. Já se passaram mais de oito anos. Nunca tive quaisquer notícias deles.

Resolvi então, pedir aos meus superiores uma folga, queria ir ao morro onde nasci tentar encontrar uma pista que me levasse à

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minha mãe. Conseguida a licença peguei o ônibus cedo e fui para o morro onde nasci. A casa foi fácil, logo encontrei, porém a atual inquilina de nada sabia, pois estava morando nela há apenas alguns meses. Então, passei a indagar da vizinhança. Já estava perdendo a esperança, quando a sorte me sorriu. Localizei uma senhora que conhecia minha mãe e conheceu-me quando eu era muito criança: mas não sabia do destino dela. Perguntei como ela era e ela me disse.

Jovem, sua mãe era muito bonita. Segundo se comentam ela era de boa família e teve o infortúnio de ter sido iludida por um canalha que a infelicitou e depois a deixou. E o pior foi à falta de recursos. Muitas vezes e com pena do seu estado, levei alguma comida para ela. Dava pena, pois mesmo que quisesse não podia trabalhar, di-ante do seu estado.

- A senhora sabe o nome dela?- Sim, eu sei. Um dia simplesmente desapareceu, deixando tudo

inclusive você. Muitas coisas jogaram fora, outras os vizinhos se apossaram. Eu fiquei com uma carteira que tinha seus documentos. Comigo resta apenas à Carteira de Identidade.

Eu poderia ver? Perguntei?!- Sim. Está comigo. Espere um pouco, eu vou buscá-la.Quando recebi a Carteira, o ódio que sentia, cessou. As lágrimas

vieram sem sentir e beijei aquela Carteira que depositava um retrato de uma jovem que a primeira vista era muito bonita.

Agarrado a ela como se fosse uma coisa muito preciosa, fiquei durante mais de 10 minutos. Depois, como de despertando de um sonho bom e agradável, soltando um longo suspiro, perguntei?

- Eu poderia ficar com esta carteira?- Sim meu rapaz. Eu esperei mais de oito anos que sua mãe

viesse procurá-la. Como até o presente momento ela não apareceu é de se imaginar que ela não mais virá. Pode ficar com ela. Ela é sua mãe.

A partir desse momento, a vida de Carlos passou por mais uma fase. A fase da confusão, do amor e do ódio. Do amor a sua mãe en-contrada numa simples fotografia: do ódio por se ver abandonado por aquela que começava a amar.

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Nessa metamorfose veio o desejo de estudar.Como chefe de uma quadrilha eu tenho de ser o melhor. Tenho

que estudar. Não se deve dirigir nada sem conhecimentos, principal-mente uma quadrilha, onde os planos devem ser minuciosamente elaborados para que não haja falhas, e só se concebe as coisas bem feitas através de estudos.

E, assim, de hoje em diante, passei a frequentar a escola da in-stituição.

Como já vimos pelo que ele praticou, Carlos é um garoto inteli-gente. Logo aprendeu as primeiras letras, depois os números são, em menos de um ano, de estudo intensivo, Carlos já sabia ler e escrever corretamente além das quatro operações matemáticas. E, como a instituição só ensinava até a quarta série, ele pediu ao Dire-tor para frequentar a escola do bairro. Dias depois teve seu pedido aceito e depois de muitas recomendações diante de sua curta mais progressiva vida, ele passou a estudar fora. Fez um teste e foi aceito na quinta série. Os colegas vendo o chefe estudar passou também a fazê-lo. Só que pelo seu adiantamento, era o único a estudar fora da instituição.

Um dia Carlos saiu com os demais membros de sua quadrilha para as práticas de novos assaltos.

Algo dizia que a noite seria bem lucrativa.Separei três equipes: uma iria para os pontos de ônibus, outro

iria para o estádio de futebol, esta equipe era especializada em as-saltar veículos. Eu e mais cinco colegas iríamos tentar fazer um dos mais audaciosos assaltos já praticados: iríamos assaltar uma riquís-sima casa situada no bairro mais rico da cidade e era também uma das mais seguras.

Esse assalto vinha planejado há bastante tempo e hoje seria sua realização: Carlos e os demais sabiam da dificuldade: havia dois guardas, um na parte da frente e outra na parte traseira da casa.

Durante o estudo e planejamento, Carlos descobriu que às 12 horas, os guardas se reuniam na parte traseira da casa para fazer um lanche e que sempre levavam trinta minutos.

Era exatamente nestes trinta minutos que eles procurariam en-trar na casa e praticar os assaltos. Com ele iriam dois colegas, dois outros ficariam nos pontos estratégicos para qualquer eventuali-

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dade, principalmente a do lanche terminar mais cedo. Eles tinham um apito que dava para ser ouvido a uma distância de até 500 met-ros.

Na primeira investida tudo deu certo. Exatamente às 12 horas, os guardas se recolheram para o lanche, aproveitando-se os garotos para entrar na casa.

Lá dentro com muita habilidade, foram separando tudo e guar-dando, principalmente valores, sempre com os olhos voltados para o relógio foram saqueando tudo o que podiam levar. E, quando faltavam 10 minutos para a meia hora, acharam que estava no mo-mento de sair. De passagem, Carlos viu uma bolsa em cima de um móvel, como era pequena e não havia tempo para procurar o que havia dentro, ele resolveu levá-la.

Muito alegre pelo bom “negócio” realizado, ficou a espera do sinal dos companheiros e, calmamente, encaminhou-se para o lado oposto onde deveriam ficar os guardas e saiu.

Chegando à FEBEM, procurou esconder o roubo, pois quando o negócio era “alto” era aconselhável se esperar dois ou três dias para a partilha.

Três dias depois, ele com os outros companheiros foram fazer a avaliação e divisão. Começaram separando dinheiro e jóias e na medida em que iam fazendo a separação, assistiram pelo produto arrecadado, um dos assaltos mais proveitoso do grupo.

Havia ainda a carteira. Este Carlos fez questão de abrir e o fez com muita calma, como se estivesse esperando acontecer algo mui-to importante. E, para sua supressa, notou que não havia dinheiro, somente uns trocados e alguns documentos. Já ia jogar a bolsa fora, quando algo lhe chamou sua atenção voltou a abrir a bolsa e viu... Não acreditava no que estava vendo. Era ela. Sua mãe...Com uma grande emoção retirou os documentos. E lá estava ela, de novo, rindo, linda, era sua mãe.

Passado aquele momento, começou a chorar: a princípio lenta-mente, as lágrimas caiam livremente, depois sufocados por uma dor aguda em seu subconsciente, chorou forte e copiosamente.

Os colegas que estavam perto ficaram assombrados:- O que está acontecendo?- Você está doente?

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Não. Respondeu ele, agora rindo é que encontrei a minha mãe, tenho certeza, vou buscar o retrato dela que tenho num documento e vocês verão que tenho razão.

Correndo foi em seu quarto, retornando logo em seguida e con-statando juntamente com os colegas que era realmente sua mãe o rosto dela e o nome eram os mesmos; Carmem Simone de Brito Medeiros.

Que alegria!E agora, o que fazer?Como chefe tomou imediatamente uma atitude:- Este roubo não será dividido.- Eu vou devolver ao legítimo dono. Minha mãe- O quê? Devolver o quê?Perguntaram os colegas.- O roubo, eu disse- Não poderei roubar a minha própria mãeSua mãe...Ela apenas te colocou no mundo. (Tua mãe e nossas

mães foram são e continuam sendo à rua. Não vem com este não, nada feito o roubo tem que ser dividido como foram os outros.)

- Pois então vocês vão ter que brigar comigo. Se eu os vencer devolverei o que foi roubado. Caso contrário entregarei o roubo a vocês e me afastarei. Irei para outra quadrilha onde pelo menos se obedeça ao chefe.

- Para brigar não. Mas não é justo que a gente cometa um grande assalto, talvez o mais perfeito de todos já cometido e, na hora da divisão, você vinha com sentimentalismo e o pior ter de devolver o que nos deu tanto trabalho. Agora eu pergunto “devolver como”? Você viu que a casa é bem vigiada e agora a polícia deve estar em todos os lugares, pois acredito que o roubo já foi descoberto.

- Quanto a isto. Não se preocupe, fica por minha conta.- Certo. E como você vai fazer?- Não sei. Deixe-me pensar...Assim, Carlos encontrou a seguinte forma para devolver o

roubo. Escreveu uma carta que tinha o seguinte teor:

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Rio de Janeiro

Prezada Senhora,Há cerca de nove anos, nasceu uma criança na Favela do

Macaco, não conheceu o pai e a mãe o abandonou quando ele tinha apenas meses de vida.

Como era de se esperar, esta criança não poderia ser outra coisa a não ser um marginal.

Ontem ao realizar o seu mais audacioso assalto, aconteceu. Assaltou a sua casa. Lamento que isto tenha acontecido, pois, por mais má que a senhora tenha sido não merecia ser assaltada pelo próprio filho.

Amanhã pela manhã, logo cedo procurei junto a uma árvore no lado esquerdo perto do poste, que lá estará tudo que foi rou-bado.

A senhora não me conhece, porém eu ao contrário sei quem a senhora é, porém fique certa mesmo lhe odiando por tudo que a senhora me fez adorei tê-la encontrado. Mas só me apresentarei quando mudar de vida.

A partir de hoje deixarei de roubar, de fumar e me dedicarei única e exclusivamente ao estudo.

Se a senhora quiser se comunicar comigo coloque uma carta no mesmo local onde deixarei o roubo. Passarei por lá semanal-mente. Quando estiver com saudades se é que um dia a terei voltarei a escrever.

Abraços do seu filho, Carlos

Obs. Carlos não assinou a carta.

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A carta foi entregue à noite, por um dos seus companheiros, e, nesta mesma noite, além de colocar tudo o que foi roubado no lo-cal combinado, ele juntou-se com o seu grupo e realizou, segundo a avaliação, o maior roubo do quanto já havia cometido. Rendeu quase o dobro do anterior.

Como de sempre, passados dois dias, ele junta os companheiros para fazer a partilha.

50% para o guarda, o restante ele reuniu seus companheiros e num tom quase solene anunciou:

- Bem, a partir de hoje, não irei mais praticar nenhum assalto ou qualquer tipo de roubo. Prometi a minha “mãe” que deixaria de cometer crimes. Portanto, eu não quero desse assalto nenhum centavo.

Começarei hoje, uma nova vida. Irei me dedicar unicamente ao estudo. Espero que vocês façam o mesmo. Hoje, nós temos a pro-teção do Diretor e de alguns guardas. Quando atingimos a maiori-dade, esta proteção desaparecerá. E já estaremos acostumados a roubar e não conseguiremos fazer outra coisa.

Sabemos que da mesma maneira que o nosso Diretor é cor-rupto, outros diretores de prisão por este país afora, fazem a mesma coisa. Acontece que talvez não tenhamos a sorte de encontrar al-guém que nos “proteja” como faz o nosso.

Hoje mesmo vou falar com o guarda. Prometerei todo o meu silêncio no que se passa aqui.

Portanto, façam o que quiserem. Sempre serão meus amigos, e o serão muito mais se me seguirem.

Os amigos ficaram sem acreditar no que ouviram, mas tiveram que aceitar.

Três dias depois do ocorrido, ele voltou a passar em frente da casa de sua mãe e viu um envelope. Foi à escola e pediu a um colega que apanhasse o envelope. Ele não queria ser reconhecido.

De posse do mesmo, voltou para a Instituição e abriu. Lá estava uma linda carta.

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Querido FilhoOntem, eu tive a maior alegria de minha vida.Jamais poderia imaginar que um dia eu te encontraria. Tua

carta já li diversas vezes, a cada nova leitura é como um lenitivo é um lindo renascer.

Sei que não me perdoas. Sei também que fui má, contigo, principalmente quando te abandonei e tu não tinhas a menor noção de vida e eu te deixei a própria sorte quando mais pre-cisavas. Espero que um dia, conhecendo toda a minha história possas me perdoar.

Achei lindo quando disseste que só me procuraria no dia em que tivesse mudado de “comportamento e de vida”.

O que eu poderia fazer para te ajudar? Se necessitares de dinheiro não te acanha, pode me procurar que eu terei a grande felicidade de te ajudar.

Espero que não fiques somente na primeira carta. Vem me visitar, vem morar comigo. A casa é tão grande e eu vivo tão só, que a tua companhia seria a melhor coisa de minha vida, aqui terás tudo, além do meu carinho, o carinho de uma mãe que só foi má, porque não havia a menor possibilidade de ser de outra maneira.

Até um dia, beijo,Carmem.

Obs. Se não quiseres me procurar, por favor, não percas o con-tato comigo. Pelo menos escreve contando como está a tua vida enquanto, ansiosamente espero pelo grande dia. O dia em que virás ao meu encontro.

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Carlos leu a carta chorou, chorou, mas não mudou de opinião.Passou a estudar cada vez mais e com mais entusiasmo. Houve

uma divisão entre seus colegas, uns passaram a estudar, outros con-tinuaram na senda do crime.

Passados uns dois meses, ele resolveu que já era tempo de es-crever outra carta.

Rio de Janeiro Prezada CarmemHoje estou escrevendo para falar sobre o meu estudo e a min-

ha vida escolar.Tenho como à senhora sabe, dez anos. Não sei o dia em que

nasci, mas pelas minhas contas é esta minha idade.Estou fazendo a quinta série do primeiro grau. Quando entrei

para a instituição onde me encontrou e fui registrado. Disseram-me que era obrigado todo mundo ser registrado e eu havia dito que não tinha pai nem mãe. Assim meu nome atual é Carlos Alves da Silva. Não sei se vai lhe agradar, porém foi graças a esse registro que consegui me matricular na escola onde estudo.

Faço como disse a quinta série. Gosto muito de português e a matemática aprendo com muita facilidade. Espero se Deus quiser fazer um curso superior de preferência engenharia ou advocacia.

Os professores mesmo sabendo de minha origem, já que tive oportunidade de conversar francamente com todos, eles têm me ajudado muito, dando-me inclusive alguns livros que eu leio no sábado e domingo depois de cumprir com as minhas obrigações na instituição. Adoro o convívio com os meus outros colegas eles

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me contam suas vidas e há alguns alunos, cujos pais são bem de vida que mesmo assim conversam com os mais pobres di-vidindo às vezes seus lanches. Acho muito bonito e estes gestos só me fazem ver um mundo diferente daquele em que vivi até encontrá-la.

Gostaria que a senhora quando rezasse pedisse a Deus para me ajudar na luta que estou travando entre o bem e o mal.

Peço por favor, que não se precipite. Não me procure. Eu sa-berei e marcarei o dia da volta.

Abraços Carlos

Lacrou o envelope e pediu novamente ao seu colega para en-tregá-lo com uma recomendação:

- Procure entregar ao guarda e não responda a nenhuma per-gunta.

E, assim, a correspondência ficou como um elo entre Carlos e Carmem.

Interessante é que nenhum dos dois ainda falou sobre o pai de Carlos. Parece que para ambos ele teve a importância exclusiva-mente biológica.

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Rio de Janeiro Caro Carlos,Há muito que deveria escrever para contar alguns fatos que

desconheces. Esperei que mudasses de opinião e viesses ao meu encontro. Porém, cada vez te amo mais, por teres uma person-alidade marcante e isto me faz ficar cada vez mais motivada para viver, para esperar pelo dia em que terei a maior alegria da minha vida. Um dia em que abraçada a ti, pedirei, se necessário, de joelhos que me perdoe por ter te abandonado.

Mas enquanto este dia não vem quero contar a verdadeira história, por favor, compreenda não quero fazer sentimental-ismo tudo o que vou contar espelha somente a verdade.

- Quando nasceste eu tive que me separar de minha família, que queria a todo o custo que eu fizesse um aborto. Não sei sin-ceramente porque não fiz, não sei se foi por amor à criatura que eu sabia viver dentro de mim ou se por covardia. Havia tomado conhecimento de que algumas pessoas haviam tentado o aborto e não resistindo morreram. O certo é que eram duas opções: ou o aborto ou teria que sair de casa. Como estás vendo sempre fui de uma família rica, mas tradicionalistas que não aceita a ideia de ter em casa uma mãe solteira.

Assim, procurei um lugar bem distante onde pudesse tê-lo e, depois pensei quem sabe minha família m teria de volta, juntamente comigo. Puro engano, uma semana depois que você nasceu voltei para casa e fui recebida como a maior frieza per-guntou-me logo que me viram se já havia te dado. Como eu re-spondi que não havia pensado no assunto ainda mandaram que eu voltasse para onde estava e só regressasse quando tomasse a atitude de doá-lo.

Então voltei muito amargurada. Eu tinha que tomar uma decisão e esta decisão custou-me praticamente a ti.

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Encontrei um emprego. Era numa escola da favela para tra-balhar durante a parte da manhã. Estava disposta a lutar para te conservar comigo nem que eu tivesse que lutar contra tudo e contra todos.

Porém, mais uma vez a força do mal atuou contra nós.Minha família ao tomar conhecimento de que eu havia con-

seguido um emprego, fez uso do seu poder econômico e político e trinta dias depois eu era despedida. E assim foram quatro outros empregos. Não conseguia trabalhar nem sessenta dias e logo chamada e sob qualquer pretexto era demitida.

No dia em que perdi meu último emprego, estava com dois anos e meio; tão revoltada estava que resolvi procurar minha família e tomar uma satisfação no mínimo pedir para deixar-nos em paz.

A discussão tomou um rumo diferente das pessoas civili-zadas cada um passou a me condenar como se eu fosse uma criminosa. E no meio da discussão eu tive um acesso de raiva e passei a agredir primeiro com palavras depois revidando a agressão passei também a agredir fisicamente e a agressão que eu sofri foi tão grande que estive a ponto de desmaiar, não sei se de fraqueza ou de raiva, só sei é que quando me acordei estava no hospital para doentes mentais. Minha primeira reação foi perguntar por ti, acredites, porém não sei o que disseram aos médicos, mas todas as vezes que eu perguntava por ti, que gri-tavam por ti, eles me aplicavam uma injeção e eu dormia quase 24 horas. O pior era que o meu quarto era fechado à chave e as janelas com grades de ferro. Nessa prisão, passei segundo me disseram um ano quando saí, já estava um carro a minha espera e, para levar-me a casa de umas tias que eu tenho na Argentina onde fui obrigada a passar por falta de dinheiro e documento quase três anos. Até que um dia me chamaram urgente para casa; meu pai, o nosso carrasco havia morrido. Ainda voltei por

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diversas vezes a favela, mas não tive nenhumas notícias tua, até que graças a Deus assaltaste a minha casa.

Não sei qual será a tua reação. Porém peço que reconsideres a tua atitude que seja qual for o teu pensamento eu te esperarei o tempo que quiseres.

Abraços,Carmem.

Carlos leu e releu a carta, foi a primeira que ele guardou. Não respondeu como era de se esperar, imediatamente, precisava pensar e pensar muito. Qualquer atitude poderia ser precipitada, mesmo assim resolveu escrever um bilhete.

Querida Carmem,Meu Deus porque é que a chamei de querida? Será que já a per-

doei totalmente? Não, não posso esquecer facilmente o que passei. Pelo que ela me contou, ela também sofreu. Mas era adulta tinha poder de decisão. E, eu? Fui marginalizado desde o início. Apesar de não ter pedido para nascer. Ela poderia ter tomado a decisão de ter provocado um aborto, nada disso estaria acontecendo.

Não, não vou ainda tratá-la de querida, não esqueci ainda as pan-cadas que levei as fomes que passei e o ódio que adquiri.

Assim, para mim ela continua ainda a chamar-se simplesmente Carmem.

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Carmem,Recebi sua carta. Espero que tudo o que você escreveu seja

realmente verdade, com isso meu ódio já está diminuindo um pouco. Acho que talvez um dia seja capaz de amá-la.

Abraços.

Hoje amanheci um pouco tenso. Já tinha uma semana que ela

não escreve. Não sei o que se passa comigo a cada dia fico mais an-sioso. Estou terminando as avaliações. Se Deus me ajudar passarei para a 6° série.

Outro problema que estou enfrentando é que meus colegas ain-da não aceitaram a minha regeneração. E me tratam com toda a in-diferença possível. Não tenho com quem conversar e nem a quem reclamar. Os guardas e o diretor são coniventes e eles principal-mente, os guardas, então alegando que depois que deixei o coman-do a renda está caindo cada vez mais e os menores, meus colegas, talvez por falta de comando estejam presos com mais frequência. E passam o tempo me acusando de traidor e coisas piores. Houve um dia em que estava tão acossado que me deu vontade de con-tar a Dona Carmem, mas eu pensei, se ela soubesse onde estou, tenho certeza de que ela me tiraria imediatamente e eu não estou preparado para recebê-la. Vou aguentar a barra. Se possível posso orientar alguns assaltos para melhorar a barra dos meus colegas. Não posso esquecer que eles foram muito importantes para mim. Até o diretor e os guardas foram figuras que contribuíram para a minha formação.

Quando eu odiava, deram-me condições para odiar, quando quis me transforma num pequeno marginal deram-me condições de sê-lo. Só não estão aceitando minha recuperação.

Interessante, a finalidade de nossa instituição é o amparo e a

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recuperação do menor carente e abandonado. É quando está acon-tecendo, principalmente comigo e mais três ou quatro colegas, eles não aceitam e nem querem compreender. Se não fosse o prestígio que adquirir não saberia o que seria de minha vida.

Aconteceu hoje, outro fato que pode modificar a minha vida. Um dos meus colegas que deixou a vida criminosa veio a mim. Havia sido agredido porque não queria participar de um roubo. E como havia sido agredido e não podendo se defender nem revidar, disse-me uma coisa que mudou completamente o meu estado de espírito.

- Se eu tivesse pai, iria pedir a ele para me defender.- Confesso que nunca havia pensado na possibilidade de ter um

pai. O meu pai.E prometi um dia eu cobrarei de minha mãe a identidade do

meu pai, não que o queira, mas muito me alegraria vê-lo e dizer até com certo cinismo estampado no rosto.

- Você abandonou minha mãe quando ela mais precisava. Não deu a segurança tão importante de uma criança, mas apesar de tudo estou aqui.

Passei fome, roubei, apanhei, e regenerei-me, tornei-me uma pessoa de bem sem nunca precisar de você. Biologicamente você é meu pai. Mas meu pai foi o mundo, foi à polícia, foram os guardas e o diretor da FEBEM, onde aprendi tudo inclusive a viver, sobre-vivendo.

Sim. Farei isto. Um dia cobrarei dela. É o mínimo que ela pode fazer por mim.

Semana natalina. Não escrevi para Dona Carmem, mas meu co-lega passou pela árvore e havia uma carta para mim.

Foi talvez a carta mais linda que ela escreveu.

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Meu querido e amado Carlos,Nesta semana comemoramos a vinda ao mundo de uma

criatura que pode ser bem comparada contigo.A criança-Deus teve uma infância feliz, teve mãe e teve um

Pai maior que era Deus. Viveu o suficiente para mostrar e provar a todos a existência de Deus pai. Quando completou trinta e três anos, sofreu por todos nós, foi torturado e morreu. Morreu para que todos nós tivéssemos direito a vida eterna.

Tu foste criado sem pais, tiveste tudo para ser uma criança ruim e má, mas como um bom filho de Deus, transformaste a criatura ruim que existia em ti na mais linda do mundo e por isto eu te amo e compreendo.

Disseste-me que só me procurarias quando estivesses to-talmente mudado. E eu aceitei porque não eras tu que deverias mudar. Eu é que não estava em condições pelo que eu fiz de te receber. É realmente a criatura mais linda e esperada do mundo. Conto os dias, as horas e os minutos, em que, se Deus quiser, ter-te-ei comigo e quando isto acontecer serei a pessoa mais feliz desta terra e cantarei louvores ao Senhor.

Desejo-te ardentemente um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo.

De tua mãeCarmem

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Confesso que mais uma vez eu chorei ao ler a carta. Mas não estava totalmente preparado para ir ao seu encontro; havia ainda resquícios e marcas no meu passado e no presente.

Ontem, véspera do Natal, o diretor mandou-me chamar. Queria ter uma conversa séria comigo. Assim que entrei, ele cordialmente mandou-me sentar e tivemos uma boa conversar.

- Como é Carlos, parece que você mudou totalmente? Já não é aquela criança rebelde que veio para cá bem pequeno.

- Mandei lhe chamar, porque hoje recebi a visita do coordenador da escola. Veio pedir-me para conseguir uma escola melhor para você. Sua menor nota nas provas finais foi 9,5. Acha ele, que você poderá ir muito longe aos estudos.

- Que acha de estudar fora e morar conosco?- Nós confiamos em você, procuraremos uma escola perto da

instituição e você fica num regime de semi-internato.- Bem, se o senhor acha que é o melhor para mim, eu irei.- É Carlos, é melhor. Noutra escola você poderá aprender muito

mais.- Bem, só isso senhor Diretor?- Não Carlos. Eu tenho outra conversa com você.- Tomei conhecimento que você fugia durante a noite para com-

eter pequenos furtos. Mas com muita alegria também fiquei saben-do que você deixou totalmente esse vício.

- Você sabe, são poucos os guardas e nem sempre se consegue evitar que algumas crianças fujam à noite e voltem sem que se dê falta delas. Você mesmo fez isso algumas vezes, não é verdade?

- Sim, senhor Diretor, tudo é verdade. Eu fugia, eu praticava pequenos furtos e voltava, como é verdade, também, que não pra-tiquei mais nenhum roubo, principalmente, para não prejudicar o senhor que é uma pessoa boa e honesta.

- Muito bem Carlos, vou lhe pedir apenas uma coisa, você vai estudar fora, portanto, vai ter novos conhecimentos e novas ami-zades, peço apenas que não comente nada do que ocorre na institu-ição, pois pode recomendar muito mal para nós.

- Quanto a isto senhor Diretor, pode ficar descansado. Eu posso ter todos os defeitos, mas não sou nenhum delator. Quero aprovei-tar a oportunidade e pedir ao senhor para falar com os guardas;

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alguns colegas, vendo meu comportamento querem ser os meus seguidores e outros colegas, não tenho a visão que nós tivemos, não querem que eles estudem e se regenerem.

- Pode deixar comigo. Hoje mesmo falarei com os guardas para eles darem uma maior proteção aos seus amigos.

Resolvi escrever para D. Carmem contando a novidade.- Não sei o porquê. Tudo agora o que acontece comigo, ime-

diatamente eu procuro escrever para D. Carmem. Será que estou ficando “mole” ou já conseguir esquecer tudo e está na hora de voltar?

- Não. Falta esclarecer ainda muita coisa. Por exemplo, quem é o meu pai biológico?

Mesmo assim, escrevi para D. Carmem.

Rio de Janeiro,

Prezada Carmem,Estou escrevendo para contar uma novidade, no próximo ano

farei a 7a série e estou também mudando de escola. Irei para uma escola onde o ensino é mais completo. Segundo o Diretor da minha escola, o resultado foi muito bom e ao seu conselho estou mudando de escola.

Recebi sua carta no Natal. Não respondi imediatamente, porque faltou coragem. E nestes últimos dias tenho me inda-gado, será que tudo aquilo é verdade? Será que está chegando o tempo de voltar? Não! Ainda não estou pronto. Ainda há um pouco de ressentimento em meu coração. Não esqueci ainda, daquele dia em que a procurei, procurei e não a encontrei, tor-nando-me órfão de pais vivos.

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Vou aguardar um pouco mais. Aproveito a oportunidade para desejar um Próspero Ano Novo.

Estou fazendo uma surpresa, em anexo estou enviando uma foto que tirei ontem para me matricular na nova escola. Agora eu a conheço e a senhora me conhece.

Abraços,Carlos

Dois dias depois eu passei pelo nosso esconderijo. Fiz somente

porque não tinha o que fazer naquela tarde e, lá estava uma carta. Confesso que não gostei. Nossa comunicação está se tornando muito vulgar. Apanhei a carta e não li não li naquele dia nem do outro. Passei cinco dias até que voltando da aula de datilografia resolvi abrir o envelope.

Nada de importante, apenas conselhos, incentivos e reco-mendações. Agora eu pergunto: seria ela a pessoa ideal para me dar conselhos?

Não sei, estou confuso, às vezes me arrependo de ter mudado de vida. Era muito bom se manter a base do ódio, sem estar preo-cupado de ter mãe, ter os meus amigos, sair à noite, praticar peque-nos furtos. Não sei. Uma névoa está passando pela minha mente. Não estou sabendo, hoje, o que eu quero. Tudo me deixa confuso. Veja bem quando cheguei aqui à recepção foi a pior possível fui recebido logo no primeiro dia com muitas pancadas e nomes feios, pelos meus queridos guardas. Quando passei a chefiar uma quad-rilha o tratamento mudou. Todos me tratavam com muito carinho e acima de tudo respeito. Depois, quando eu resolvi abandonar a vida criminal e passei a estudar com mais afinco, confesso que receei pela minha vida. Já ouvira falar em casos como o meu, em outras instituições, em que as pessoas envolvidas passaram a ser odiadas

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pelos companheiros e guardas e, alguns, até vieram a morrer mis-teriosamente.

Mas comigo está acontecendo uma coisa interessante, depois que tomei à atitude de abandonar toda a vida errada as coisas começaram a melhorar, principalmente, depois que falei com o Di-retor.

A refeição mudou para melhor, já se serve dois lanches antes das refeições, só havia tomado refrigerante duas ou três vezes quando fugia para roubar, agora servem refrigerantes todos os domingos, a televisão antes desligadas às 20 horas, hoje se o interno quiser pode assistir até as 22 horas. Mas o que mais me impressionou foi o colégio que eles conseguiram para mim e mais três outros colegas, parece que é um colégio de rico muitos chegam de automóveis. Nós íamos de ônibus. Éramos todos bem tratados e começamos a fazer novas amizades.

Estas amizades muito influenciaram em minha vida futura. Voltando ainda ao colégio; na instituição, éramos obrigados a usar uniformes, porém para a escola nos foram comprados o uniforme escolar completo.

Havia dois colegas que se afirmaram comigo e passamos a tro-car ideias; ideias das mais diversas. Uma delas conversou sobre a juventude. Foi muito proveitoso principalmente para mim que tin-ha um pensamento distorcido da juventude. Também pudera! Que experiência pessoal eu poderia ter com a vida que eu levei até hoje?

Esses encontros ficaram constantes. E o interessante é que eu já fazia parte de um grupo. Tenho que contar a Carmem.

Dias depois recebi carta de Dona Carmem. Ela vibrou com as minhas novas amizades. Não sei o motivo, acho que ela quer para mim uma melhor condição social. Mas a mudança não está alteran-do totalmente o meu modo de vida. Continuo gostando dos meus colegas da FEBEM. Só estou preocupado porque eles não me dão mais atenção que davam antes. Hoje, raramente nos encontramos para conversar, quando muito um alô ou uma boa noite. No íntimo eu sinto que eles têm inveja e isto me faz ficar muito triste.

Não fosse a força estranha que existe dentro de mim, no sen-tido de mudar, acho que já teria desistido, já teria voltado a vida do crime. Mas não posso nem pensar nisso. Sou um obstinado tenho

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de mudar, tenho de vencer, vivendo onde é quase impossível so-breviver com dignidade, onde o desamor substitui a cordialidade, vivendo cada um por si, mesmo sabendo que a nossa instituição é uma das melhores. Tive conhecimento que em algumas FEBEM há coisas piores que a nossa principalmente levando em consideração que a maconha é vendida abertamente entre os menores, que para conseguirem o dinheiro fazem o que nós fazíamos ou pior, usam o sexo como comércio. O índice de homossexual é alarmante nestas instituições chegam a quase 30% dos detentos.

Na ala feminina a prostituição começa muito cedo antes mesma de completar doze anos, já as garotas estão se entregando ou por simples prazer ou simplesmente para conseguir dinheiro para com-prar a maconha. Há também casos deprimentes onde as garotas conseguem um namorado e este o obriga a prostitui-se para con-seguir dinheiro para ele.

Três semanas depois fui surpreendido na escola o professor de Moral e Cívica pediu um trabalho em grupo: A Mendicância e o Menor Abandonado.

Graças a Deus não houve discussão, todos aceitaram o tema por mim escolhido; O Menor abandonado.

Praticamente o trabalho foi feito por mim, pois me limitei a contar a nossa vida e o desenrolar dela na Instituição.

Não escondi nada, pois vocês podem pensar que a instituição mudou simplesmente porque eu e mais dois colegas estamos es-tudando fora. Nada disso. Ela continua a mesma, com quadrilhas saindo às vezes para praticar pequenos e até grandes roubos. A divisão continua também a mesma parte para os guardas e parte para o Diretor, a mudança em relação a mim e aos outros dois, foi em relação ao medo. Medo que nós possamos denunciar, então eu considero este privilégio como um cala-boca, pois, quase semanal-mente somos cobrados em nossas promessas no sentido de não contarmos nada sobre o que se passa dentro e fora dos muros.

Hoje estou completando 14 anos, logo cedo recebi um presente de Dona Carmem, um relógio automático. Foi o primeiro que re-cebi. Gostei tanto que me deu vontade de ir a casa e dar-lhe um beijo e um abraço. Fui ao meu quarto peguei o seu retrato e beijei.

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Beijei não sei quantas vezes o fiz com tanto amor que as lágrimas saltaram dos meus olhos.

Ontem à noite três colegas saíram para fazer seus costumeiros roubos. Por azar foram descobertos e trocaram tiros com a polícia, dois conseguiram safar-se, mas um lamentavelmente foi morto. Era o Roberto, tinha treze anos. O corpo ficou no Instituto de Medicina Legal e um dos guardas me confidenciou que se até amanhã não aparecer ninguém para reclamar o corpo, ele seria doado a Facul-dade de Medicina para estudos. Em outras palavras, ele seria retal-hado para que cada um dos seus pedaços fosse estudado.

Confesso que na medida em que o guarda foi me contando eu fui ficando todo arrepiado. Pensei logo em mim, senão houvesse tomado a resolução de deixar a vida do crime. Por este motivo ape-sar do presente eu não tive a menor alegria pelo meu aniversário. Nem a carta de Dona de Carmem eu li, procurei um local e passei a meditar o tipo de vida que levava Roberto. Não tinha pai, não tinha mãe, nem parente e não ter direito nem a um enterro, seu corpo vai ser estudado. Oh! Meu Deus ajude-me a encontrar uma solução. Eu quero Roberto enterrado, como manda o Deus. O Deus que acredito que conhecendo a nossa vida, conhecendo o desencamin-hamento nela verificada, perdoar-nos-á, e, talvez um dia o acolha junto a Si.

Pensando em Roberto e Deus, tive uma inspiração: Encamin-hei-me para a sala do Diretor e pedi para falar com ele:

- Senhor Diretor primeiro quero agradecer o quanto tem feito por mim e meus dois outros colegas. Graças ao senhor estou cur-sando a 7° série num ótimo colégio, e, segundo tomei conhecimen-to é um colégio pago. Mas não foi para falar sobre isto que estou aqui e sim para pedir uma coisa, parece difícil diante da situação, mas que eu espero que o senhor encontre uma solução.

- O senhor sabe que o Roberto foi morto ontem quando prati-cava um assalto e nós sabemos o porquê dos assaltos. O guarda Cristiano contou-me que caso não apareça ninguém ligado ao Roberto, o mesmo será enviado para Faculdade de Medicina, onde terá seu corpo retalhado e cada peça servirá de estudo. A notícia já tomou conta de todos; há um clima apavorante em todas as alas. O senhor sabe, nunca ocorreu semelhante fato e, os garotos estão

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com medo. Esse medo pode transformar em delação e isto está plenamente certo de que o senhor não quer e, em nome de todos inclusive da segurança da nossa Instituição, é que peço que o senhor encontre uma maneira de enterrar o Roberto. Será muito bom para mim, pois eu me considero responsável pelo que ocorreu, já que ensinei muita coisa ruim para ele e para os outros garotos. Será bom também para a Instituição, pois os garotos continuarão fazendo os pequenos furtos.

- Carlos o que você está pedindo é por demais justos e sensa-tos. Mas estou terrivelmente preocupado. Já estudei todas as for-mas e não encontrei até agora, nenhuma solução. Já mandei quatro guardas procurar algum parente. Estou até pensando em pedir a um amigo que trabalha no Instituto de Medicina Legal para ver se consegue enviá-lo para ser enterrado pelo governo (caridade). Mas continuo de mão atadas, porém, pode ficar tranquilo que eu encon-trarei um meio de enterrar o Roberto.

- Muito bem, vou para a escola, qualquer novidade o senhor me dirá quando eu voltar.

- Foi o meu pior dia de aula. Não consegui me concentrar em nenhuma aula e por azar estava marcada uma arguição de História, uma matéria que eu gosto, mas que fui incapaz de responder a qualquer das perguntas.

O professor estranhando o meu comportamento levou em con-sideração a minha negativa de responder às perguntas e marcou para a aula seguinte a minha avaliação oral.

Mesmo assim ele veio até a minha banca e me perguntou se eu estava passando bem ou se estava acontecendo alguma coisa com a minha família.

Eu estava tão tenso que quase respondi:- Eu não tenho família.- Eu não tenho pai, não tenho mãe, não tenho irmão e um dos

poucos amigos que eu tinha provavelmente a está hora deve seu cadáver ter sido encaminhado para uma Faculdade de medicina onde será retalhado para servir de estudo para os futuros médicos. Mas não o fiz. Talvez porque se o fizesse iria precipitar o meu en-contro com Dona Carmem que naquele momento de angústia eu

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também a culpava, pois, se não fosse ela, eu não teria deixado de roubar e estaria com o Roberto não o deixando morrer.

Pedi licença ao professor e corri para o banheiro onde chorei. Chorei por mim e pelas outras crianças da FEBEM. Chorei por Roberto que se despedia do mundo tão jovem e tão tragicamente. Chorei pela minha mãe que não me tem e que eu não a quero agora e, finalmente chorei por todas as crianças abandonadas do mundo que como eu e o Roberto carregamos a mágoa, a dor e o senti-mento de um amor que nunca tiveram.

Tempos depois, reapareci na sala de aula. Pedi desculpas aos meus colegas e ao professor já que a minha aparência denotava que eu havia chorado. Graças a Deus ninguém perguntou o porquê.

Somente quando o encerramento do dia letivo meus amigos Miguel e Fernandes se achegaram e fizeram menção de fazer al-guma pergunta, mas educadamente compreenderam pelo meu sem-blante que eu não estava para dialogar. Desejaram um até logo e foram embora.

Eu ainda, impacientemente, tive que esperar vinte minutos pelo ônibus. Nunca este percurso foi tão demorado. Cada rua que pas-sara refletia em mim uma lembrança trágica: lembrei-me de Toinho que um dia saia para praticar um assalto e nunca mais voltou. Será que ele teve o mesmo destino de Roberto? Será que ele foi retal-hado? Oh! Meu Deus, porque este ônibus não anda? E, enquanto isto meu cérebro fervilhava e recordei do dia em que eu fumei meu primeiro e único cigarro de maconha. Fiquei com tanta coragem que naquela pratiquei três assaltos à mão armada e foi a noite em que houve a maior renda.

Finalmente, chegamos. Lá havia surpresa: o Diretor havia con-seguido encontrar um parente e enviado o corpo de Roberto para onde fora enterrado. Só acreditei porque seis garotos haviam acom-panhado o enterro. Mesmo assim, perguntei ao guarda Cristiano e ele confirmou toda a história, tendo acompanhado o enterro com os garotos.

Mais uma vez veio uma vontade imensa de chorar. Mas desta vez foi de alegria; uma alegria suave foi como se tivesse tirado um peso de muitas toneladas de minha cabeça e, pela primeira vez eu rezei com fé. Não foi aquela reza programada, mas uma reza es-

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pontânea onde praticamente conversei com Deus, agradecendo e pedindo para acolher o Roberto ao seu lado. Ele não teve culpa de ser o que foi. A sociedade o corrompeu como vem corrompendo quase todas as crianças que tem a infidelidade de não terem pais assumidos e são obrigados a pagar, com roubos e assaltos o seu direito de permanecer sob um teto. Em minha oração lembrei-me um dia, que um padre disse, que Jesus dissera:

- Deixai vir a mim as criancinhas, pois para elas será o Reino de Deus. Como esta lembrança me confortou a ponto de ter a certeza quase absoluta de que meu amigo Roberto já estava vivendo ao lado de Deus.

A outra surpresa foi uma carta de uma editora comunicando que havia alguns livros a minha disposição. Então aproveitei a oportu-nidade para falar com o Diretor. Eu tinha necessidade, primeiro para agradecer-lhe o que fez pelo Roberto e depois de pedir uma autorização para ir aos correios buscar meus livros.

Ele atendeu-me e, como que aliviado, com o semblante rindo como os olhos, contou-me que havia um garoto que conhecia a mãe de Roberto. Fui lá e convenci-a que deveria ir ao Instituto de Medicina Legal retirar o corpo. Como ela não queria que o amante soubesse alguma coisa, o corpo foi direto do hospital para o ce-mitério onde foi velado por algumas horas e, em seguida enterrado.

Quanto ao meu pedido, prometeu-me que no dia seguinte iria comigo aos correios para retirar a encomenda.

Aproveitei a oportunidade para perguntar o porquê de ter sido eu o escolhido para receber estes livros.

Meio espantando, disse-me que eu havia sido o escolhido porque era o mais adiantado da instituição. Estes livros são dados todos os anos e a escolha é feita por ele. Este é o motivo pelo qual você foi o escolhido.

Quase não dormi, acordei-me ainda estava escuro. Fiquei na cama esperando o dia clarear para me levantar e ir com o Dr. Cláu-dio aos correios buscar meus livros. E para minha alegria, vi que tratava de um pacote grande.

Levei para o meu quarto e, com a ajuda dos meus colegas do colégio abrimos o pacote: eram livros. Livros de toda a qualidade; História, Geografia, Português, Ciências, Química, Biologia, dois

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dicionários e um grande número de romances. Minha cama ficou cheia.

Mais uma vez fui falar com o Diretor. Quando bati a porta, ele me viu e foi logo rindo e como se adivinhasse os meus pensamen-tos disse-me apontando para um canto de parede: - É isso que você veio atrás? Eu sabia que com a quantidade de livros que você iria receber, precisaria de uma estante. Por isso, pedi aos meninos que estudam marcenaria que fizesse uma estante para você.

Confesso que as lágrimas vieram-me aos olhos. Então resolvi pedir a ele uma coisa que há meses venho sonhando:

- Senhor Cláudio, eu vou lhe pedir uma coisa, o senhor ultima-mente tem sido muito bom para mim e eu queria encontrar uma maneira de ajudá-lo. Assim, eu pensei a escola não funciona à noite. Eu poderia pedir aos professores que indicassem os alunos que não estão aprendendo para eu lhes ensinar durante a noite.

- Bem Carlos é um caso a pensar. Se eles quiserem receber esta ajuda, muito me alegrará, pois já estou começando a ver estas crian-ças por um prisma todo diferente. E o grande responsável por isso é você e depois da morte daquele garoto, acho que está na hora de se mudar muita coisa em nossa instituição.

- Vá cuidar dos seus livros. Leve a estante e depois voltarei a conversar com você sobre as aulas e sobre as mudanças que espero fazer.

- Depois de tanta confusão, lembrei que fazia mais de quinze dias que eu não escrevia para Dona Carmem.

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Rio de Janeiro, Prezada Carmem,Hoje senti muita necessidade de uma pessoa amiga para con-

versar. Foi um dia muito agitado, muitas coisas boas e outras más, isso aumentou o meu desejo de dialogar.

Pela primeira vez ganhei um prêmio, nosso Diretor indicou-me para o sorteio de uma coleção de livros. Já comecei a ler o primeiro: Memórias de Cárcere, de Graciliano Ramos, um clás-sico da Literatura Brasileira. Conta a História, uma espécie de autobiografia da época que foi preso. Não cheguei a ler todo, mas estou gostando imensamente, pois, posso comparar sua vida com a minha, sendo que a dele grades e a minha é uma prisão íntima, onde me propus a me purificar para poder ser aceito pela sociedade, representada por alguns dos bons colegas e pela senhora.

Por falar em colégio, estou fazendo as avaliações da 4a uni-dade e graças a Deus já posso me considerar aprovado, pois fal-tam alguns poucos pontos e estou obtendo excelentes notas.

Esta semana vou falar com o Diretor. Fiz um teste vocacional e ele me orientou para fazer cursos de Ciências exatas, porém não é o que quero fazer, estou pensando em fazer um curso onde me coloque junto às camadas mais pobres para poder ajudá-los. Porém ainda faltam alguns meses, e tudo pode acontecer, até uma mudança de opinião, tão comum a jovens como eu.

Abraços,Carlos.

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Dias depois, recebi uma carta de Dona Carmem, as notícias modificaram o meu pensamento quanto a minha futura profissão.

Rio de Janeiro, Querido Carlos,Recebi sua carta. Que alegria. Você não sabe como eu me sinto

angustiada quando você passa alguns dias sem escrever. Por isso lhe peço, mesmo quando não tiver nada para me contar, escreve mesmo que seja para dizer somente que está bem.

Olha filho, o importante na vida de uma pessoa é fazer o que gosta. Se o seu teste vocacional indicou que deve estudar uma Ciência Exata não deve se preocupar. Há muitas maneiras de se servir ao próximo. Por exemplo, já pensou se você estudar Medicina e procurar clinicar nas favelas e nos bairros mais carentes? Não seria esta a melhor maneira de você ajudar a seus irmãos? Ou se você fizesse Direito e fosse trabalhar no sentido de salvar tantos pobres que apodrecem nas celas de uma prisão por falta de um bom advogado?

Pense bem Carlos. É muito importante principalmente para você fazer o bem. Mas é muito importante fazer o bem, auto-realizando a pessoa só se sente realizado quando faz aquilo para que esteja vocacionado.

Meus parabéns pelo prêmio. Você merece muito mais do que simples livros, pelo que você representa atualmente para mim, você é digno de todas as coisas materiais e imateriais do mundo. Só lamento que ainda não me tenha totalmente perdoado. Espero que este dia chegue logo. Fiquei muito apreensiva quando pro-

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curou comparar a sua vida com a do autor Graciliano Ramos. Será que nestes livros veio um chamado O Pequeno Príncipe? Se você não o tem, diga-me que lhe dou de presente. Esse sim pode ser comparado contigo em relação a mim.

Há no livro uma parte que diz: “Se prometeres vir as quatro, as três eu começarei a ser feliz”. Na ânsia de receber notícias suas vou diariamente ao nosso esconderijo para saber se há al-guma carta.

E estas cartas servem de lenitivo para mim, dando-me uma vontade louca de continuar vivendo para lhe encontrar, e nestas perspectivas fico imaginando você entrando de porta adentro me abraçando. Tenho muita fé em Deus que isto ocorrerá em breve.

Querido Carlos, vou encerrar pedindo que me escreva com mais frequência.

Que Deus te abençoe,Carmem.

Esta carta foi uma ducha fria nas minhas pretensões profission-ais. Passei a me encontrar:

- Quem sou eu para condenar uma mulher que já pagou todos os seus pecados?

Na missa do domingo, o Pe. Antônio Alves no seu sermão disse que Deus antes de morrer perdoou todos aqueles que maldosa-mente o condenaram a morrer na cruz: “Perdoai-lhe Senhor, eles não sabem o que fazem”.

A carta de Dona Carmem, o sermão do padre me levaram a fazer algumas perguntas.

Deus todo poderoso perdoou. Perdoou quem foram seus inimi-gos. Será que minha mãe cometeu um crime pior, do que aqueles

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que sacrificaram um inocente e mesmo assim foram perdoados? Será que a minha mãe merece o meu perdão?

Sim, no intimo eu já a perdoei há muito tempo. Acho que eu não sou ainda digno de abraçar a tal criatura.

Sim. Ela não só merece ser perdoada, como também ser ado-rada como a coisa mais bela do mundo.

Final de ano. Graças a Deus passei. No próximo ano farei a 8a série. Vou seguir o conselho de Dona Carmem. Farei o científico, terei três anos para decidir o que fazer.

Esta semana eu tive uma ideia. Falei com o Diretor para fazer uma festa natalina.

- Da conversa foi criada uma comissão de festa, formada por ele como presidente orientado pelos professores e eu com a ajuda de mais três colegas: Ronaldo, Francisco e Inaldo.

Está será a primeira festa natalina em nossa Instituição.Houve nesta tarde uma reunião; fomos pedir apoio de todos os

demais. Achei graças quando propusemos o fato da festa e a ne-cessidade de se conseguir dinheiro para a ornamentação, alimento, presentes, etc.

Um dos nossos colegas pediu a palavra e deu sua sugestão:- O dinheiro não é problema. A gente pratica alguns assaltos e

com o dinheiro a gente faz a festa.- Por incrível que pareça, eles já estavam tão acostumados à

prática de atos delitosos que a ideia foi aplaudida fortemente como forma de aprovação.

Mais uma vez eu pedi a palavra para explicar.- Meus colegas! A festa que vamos fazer é de Natal. O Natal sig-

nifica o nascimento de Cristo, o Filho de Deus, que veio ao mundo para nos salvar. Este Deus que veio ao mundo trazendo paz e amor não vai querer uma festa em sua homenagem com produtos de roubos e assaltos. Portanto, vamos tirar esta ideia da cabeça. A festa terá de ser feita com os nossos esforços. Podemos pedir. Nunca, nunca roubar, é contra um dos mandamentos da Lei de Deus.

Outro garoto levantou a mão e eu o atendi.- se roubar é pecado, porque os guardas nos libertam a noite

para praticar assaltos? Quem estará pecando? Nós que não sabía-

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mos que é pecado ou os guardas que sabem, conhecem todos os Mandamentos e nos orientam para a prática.

- Bem colega, não estamos aqui para julgar ou prejulgar. Eu responderei apenas que a culpa é da estrutura. Segundo fui infor-mado em quase todas as FEBEM e outras Instituições de assistên-cia ao Menor no Brasil. Há crianças que praticam pequenos roubos para os guardas e para eles mesmos.

- Mas eu pergunto: Vocês são obrigados a roubar? A resposta eu mesmo dou. Não. Vocês o fazem porque são maus orientados. No dia que quiserem, só é dizer que não vão e pronto, ninguém os obrigará.

- Como eu ia dizendo, nossa festa vai ter ser feita por nós mes-mos, com nossos esforços e muita honestidade. Não devemos querer nada que tenha sido obtido de outra forma.

- Vamos criar algumas comissões encarregadas das diversas tare-fas. Cada comissão será dirigida por um de nós; de três em três dias, nós nos reuniremos para uma avaliação. Assim, ainda hoje, vamos compor as comissões.

- Vamos eleger os membros da 1ª comissão. Esta é muito im-portante, é a comissão da limpeza, vamos limpar todo o prédio. Não devemos nos esquecer de que esta é a nossa casa.

Um dos garotos levantou a mão.- Diga?- E, se a gente conseguisse tinta e pincéis para pintar o prédio.- Acho uma boa ideia. Vou anotar e falar com o Diretor para ver

se ele consegue a tinta.- Como temos mais condições de nos locomover, vou indicar

com a aprovação de vocês, o colega Ronaldo para presidir esta co-missão, Fernando presidirá a comissão dos convites. Pretendemos convidar algumas autoridades e os alunos poderão convidar seus parentes. A ornamentação ficará sob a chefia de Miguel. Seu tra-balho só será realizado quando faltarem alguns dias para o Natal.

Eu fiquei encarregado de escrever para as indústrias de brinque-dos e jogos para conseguir alguns presentes.

Terminada a reunião geral, fizemos uma avaliação para tomar-mos já algumas medidas.

A primeira foi falar com o Diretor sobre as metas propostas.

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O Diretor nos recebeu e nos prometeu como presidente de festa todo apoio. Iria falar com seus superiores para conseguir a tinta; iria nos informar o endereço e o nome de todas as grandes indústrias que fabricam brinquedos, como também o endereço das grandes firmas comerciais e dos principais bancos da cidade.

No mesmo dia, comecei a escrever uma carta.

Rio de Janeiro Prezados Senhores,Somos internos da FEBEM, localizada na Rua Cristo Reden-

tor, 230. Méier - Rio de janeiro - RJ.Somos o que os senhores podem considerar “garotos aban-

donados” só que não perambulamos pelas ruas, vivemos con-finados. Neste confinamento, estamos nos transformando em futuros adultos dignos de conviver com os senhores no mesmo teto.

Entretanto, para sermos crianças iguais as outras é preciso que vivamos como elas.

Neste Natal, resolvemos assumir o nosso papel e vamos com a ajuda dos senhores fazer um Natal digno das crianças que parte do futuro de amanhã. Iremos promover uma festa. Nossa Instituição, neste dia, deixará de ser uma escola para se trans-formar num reino.

Já temos quase tudo, mas como somos crianças abandona-das, não temos de quem receber presentes, por isso está apelando para os corações nobres dos senhores no sentido de nos fornecê-los para transformar nossa comemoração numa verdadeira festa natalina.

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Sem outro assunto para o momento na certeza de que seremos atendidos subscrevemo-nos.

Atenciosamente,__________________________________

P/comissão

Coloquei a carta para ser censurada pelo diretor que nada reti-ficou mandou imprimir pelo mimeografo da escola foram emitidas 150 cópias que passamos a remeter para as indústrias e casas com-erciais.

Para surpresa nossa, no final da segunda semana começaram a chegar a escola os primeiros presentes e não pararam mais de che-gar. E minha surpresa foi ainda maior, quando o Diretor mandou-me chamar em sua sala e me entregou um envelope de uma grande empresa além de uma carta elogiando a nossa ideia, um cheque de um médio valor. Imediatamente me veio a ideia de entregar à comissão de limpeza que estava com dificuldade para cumprir sua missão. Falei com o Diretor e ele concordou, porém que se fizesse da seguinte maneira: convidaria um profissional da pintura e ele faria um orçamento, compraríamos a tinta e pagaríamos a mão-de-obra e com resto, compraríamos refrigerantes para a festa.

Tudo pronto. Convites entregues. Havia presentes para todas as crianças. Passamos quase três dias selecionando e colocando o nome de cada garoto; procuramos também fazer uma surpresa, como por exemplo, todo guarda e todo funcionário receberiam um presente para ele e para os filhos.

Nada foram esquecidos, os garotos que tinham parentes pud-eram convidá-los para a festa. Um convite especial foi dirigido ao Governador do Estado.

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Em plena euforia lembrei-me de que não havia convidado Dona Carmem. Não fiz porque achei que ainda não era tempo. Entre-tanto, comprei um lindo cartão, escrevi uma frase que somente ela iria entender.

“ A minha futura mãe que Deus a abençoe“E a conserve bem linda para mim.”

Feliz NatalAbraçosCarlos

Notei que pela primeira vez eu a reconheci como mãe. Ainda que futura.

Meu Deus será que vou fraquejar? Será que vou fraquejar? Será que vou ter personalidade bastante forte?

Não. Eu ainda não estou preparado para ter uma mãe. Acredito que logo será possível.

Finalmente o grande dia 24 de dezembro. Como se conhecendo o nosso anseio, o dia amanheceu com um sol, liberando raios lumi-nosos para todos os lados.

O dia transcorreu com muita normalidade. O conselho, alguns garotos dormiram um sono para poder aguentar a festa e a dis-tribuição dos presentes que seria realizada após as 22 horas.

Passei pela árvore para colocar meu cartão e um pequeno pre-sente para Dona Carmem. Não foi surpresa para mim, havia um pacote parecendo uma caixa de sapato. Apanhei-o e deixei o meu. Não esperei chegar à Instituição, fui logo abrindo e com grande alegria descobri que Dona Carmem havia adivinhado os meus pen-samentos e os meus desejos, deu-me um gravador com várias fitas e uma separada que ela pediu que a colocasse, pois seria sua men-sagem de Natal.

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Querido CarlosHoje eu poderia ser uma das pessoas mais felizes do mundo

se pudesse tê-lo comigo. Entretanto, você me julgou e condenou a uma pena muito alta. Poucos criminosos estão pagando tão amargamente o seu crime.

Natal é sempre um renascer e, eu esperava tanto que neste fosse o seu renascer para mim, rezei tanto, esperei tanto por este milagre e vi toda a semana passar e vi cada vez mais o dia se aproximar e nenhuma perspectiva do meu tão esperado reencon-tro.

Porém ser mãe é muito mais do que ser pessoa e, eu te perdoo, tu tens razão e eu te amo. Amo como se ama a vida, és tu que existe. És como disse o poeta, “a razão de minha vida”. Talvez se não houvesse a perspectiva da tua volta, eu não teria nenhum desejo de viver.

Mais um ano virá. Eu não espero mais por dia e sim por ano. Rezarei. Pedirei a Deus que neste ano que se aproxima, seja o meu ano. O ano que termina a minha pena e que, no próximo Natal, seja realmente o renascer e terei se Deus quiser o meu filho de volta e se prometeres, direi como disse a flor do Pequeno Príncipe, a partir desse momento começarei a ser feliz.

Feliz Natal e Próspero Ano NovoCarmem

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Não sei o porquê, mas a gravação quase acaba com a minha festa. Tive vontade de correr, pular o muro e abraçá-la, beijá-la e pedir perdão. Ela não cometeu nenhum crime e disso eu sei perfei-tamente. Estava pensando nisso, quando fui despertado pelo Dire-tor para ir receber com ele os convidados.

Graças a Deus 90% das pessoas convidadas compareceram in-clusive o juiz, curador de Menores, ao qual fui apresentado e de quem recebi uma série de elogios e um convite para ir a sua casa no final do ano, convite que foi confirmado pelo nosso Diretor.

Outro convidado especial foi o representante do governador, ele passou grande parte do tempo a elogiar a instituição, achando inclusive que era a mais bem administrada do estado. Como era de se esperar, esses elogios partindo de uma autoridade do Estado deixou o nosso Diretor muito feliz.

Às 23 horas começamos a distribuição dos presentes.Houve presentes para todos. Ao nosso Diretor foi dado um

relógio que muito o emocionou. Às 24 horas já com muitas crianças querendo dormir, foi ofer-

ecido pela direção da casa um jantar. Depois de servidas, as crian-ças foram dormir, ficando conversando um pouco mais as crianças mais velhas. Eu tive que aguentar um pouco mais, pois teria de me despedir dos convidados, pois aquela altura dos acontecimentos to-dos sabia que fora eu o responsável direto pela festa e pelo sucesso dela, embora eu me considerasse apenas mais um.

Graças a Deus, todos foram saindo e, à medida que se iam; aper-tavam minha mão, parabenizando-me pelo acontecimento. Quando chegou a vez do representante do governador, ele disse que iria relatar todo o acontecimento festivo ao governador e pedir para ele marcar uma visita a nossa instituição. O juiz fez-me prometer que eu iria para sua casa para festa do Ano Novo. Disse-lhe que depend-ia do Diretor, pois não tínhamos “autorização” para sair à noite.

Do dia 25 aos 31 nada de importante aconteceu a não ser o Diretor que me chamando ao seu gabinete, para me agradecer, deu-me um presente. Um cartão para ir a uma determinada casa com-ercial para comprar um terno. O primeiro que irei usar. Disse-me que é costume usar paletó e gravata no último dia do ano. Além disso, você merece, não só pelo o que fez, mas pelo que vem fa-

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zendo nestes últimos quatro anos. Hoje recebi um cartão do Exm° Sr. Governador, elogiando nossa festa e ao mesmo tempo pedindo desculpas pelo não comparecimento, onde manda recomendações para o jovem Carlos. Que acha você disso?

- Acho ótimo. Principalmente porque agradou a todos.- Outra coisa Carlos, eu queria fazer uma pergunta: Você ter-

minou o 1° grau, onde pretende estudar? Existem três ou quatros bons colégios que eu vou providenciar o melhor para você. O rep-resentante do governador prometeu que o Estado garantiria meus estudos até formatura.

- Para mim, eu não quero o melhor. Quero um colégio onde possam estudar comigo meus colegas, Fernando, Miguel e Roberto.

- Está bem vou providenciar para que todos continuem estu-dando juntos.

- Sim. Carlos, amanhã iremos juntos à festa do juiz. Veja se con-segue dormir um pouco, pois a festa desse povo costuma ir até tarde.

Da festa não gostei. Só havia adultos. Da conversa eu não en-tendi nada. Era política e economia: aumento do dólar, inflação e outros assuntos que adultos falam e nada resolvem.

Às 12 horas, apagaram-se as luzes, voltando logo a seguir quando houve trocas de abraços. Depois fomos convidados para uma ceia, ao lado da piscina. Gozado, eu pensei que bacalhau e peixe fossem comida de Semana Santa, não é que o jantar foi todo servido a base de peixes, crustáceos e bacalhau. Houve também muito vinho. Tomei uma taça, muito suave e gostoso. Só tomei uma; lembrei-me da promessa que fiz a Dona Carmem.

Ano Novo começa. Este ano vou estudar mais ainda. Disseram-me que o 2° grau é

muito pesado e talvez me encontre em condições para no final do ano que se inicia ter o meu grande encontro com Dona Carmem. Mais que isso aconteça, tenho uma cobrança.

Quero saber quem é meu pai biológico. Essa questão em con-hecer.

Foi ele, segundo minha mãe, o responsável por tudo. Traindo-o e me traindo. Abandonando-a e me abandonou. Não fosse a Providência Divina, eu hoje seria um doso grandes marginais; e, ele

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é talvez o único responsável. Se ele não tivesse abandonado minha mãe, quando ela mais precisava dele, eu não estaria aqui, nem minha mãe teria tido, até o presente momento uma antivida.

Esta vai ser uma das últimas etapas de minha luta. Conhecendo-o quero encará-lo, olhá-lo de frente e, se possível, repudiá-lo.

Hoje mesmo, escreverei para Dona Carmem.Comecei a escrever, pensando em fazer uma chantagem; eu

iria condicionar minha volta imediata para casa, se ela me dissesse quem era meu pai biológico.

Nunca tive tanta dificuldade em escrever uma carta para ela. Comecei umas quatro ou cinco e quando tocava no assunto, não conseguia. Não encontrava de maneira alguma jeito de entrar no assunto e simplesmente rasgava e começava outra.

Então resolvi deixar para outro dia.Não escrevi para Dona Carmem. Entretanto, não estou esque-

cido, é que as aulas recomeçaram, constatei que o 2° grau é muito difícil e requer muito estudo. Não aceitei nenhuma bolsa de es-tudo, preferi continuar no mesmo colégio onde tenho uma grande quantidade de amigos e colegas. De minha turma, só cinco colegas foram reprovados e na vaga dos cincos, entraram três. Assim o efe-tivo é de quarenta alunos.

Vou escrever para Dona Carmem contando as novidades, inclu-sive que, quando fui entregar a nota dos livros ao Diretor para ver se conseguiria alguns, mesmo de segunda mão, ele nos presenteou com todos os livros, cadernos e outros objetos escolares. Fiquei muito alegre e fui imediatamente chamar os meus três colegas para receberem seus livros.

Quero abrir um parêntese para contar que os meus colegas da Instituição, o Miguel, o Fernando e o Roberto, são pessoas com o mesmo pensamento: estudar, conseguir um bom emprego e alugar uma casa boa e ir morar com sua mãe e seus irmãos. Acho lindo este pensamento, por esse motivo que o incentivo tanto.

Escrevi, contei as novidades e aproveitei a oportunidade para alerta-lhe no que desejava: desencavar o passado. Em uma parte da carta eu escrevi:

- Dona Carmem futuramente desejaria fazer uma pergunta que irá ter uma grande importância para minha vida.

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Três meses passaram. Tenho algumas novidades, e quando pos-so tenho escrito para Dona Carmem.

Não fiz ainda a pergunta chave de minha vida. Não o fiz por dois motivos: um, a preocupação com os estudos, outros é que Dona Carmem me deu a entender que era prematura a minha indagação, pois como se adivinhasse, deixou em entrelinhas que responderia a esta pergunta em tempo devido.

18 de junho. Fim do primeiro semestre. Não fiquei em recu-peração. Quando passei pela Instituição fui surpreendido. Haviam descoberto que neste dia, eu completava quinze anos, fizeram um bolo, havia sucos e até guaranás. Agradeci. No outro dia, passei por curiosidade pela árvore e lá estava uma carta e um presente. Mais uma vez Dona Carmem adivinhou o meu pensamento e os meus desejos. Deu-me uma corrente de ouro e uma medalha com o rosto de Nossa Senhora e um cartão.

Ao filho mais querido, mais desejado, mais esperadoe amado, que esta data se reproduza por muitos anos.

De sua mãeCarmem

No outro dia, escrevi um bilhete agradecendo.Graças a Deus, hoje recomeçaram as aulas, passei todas as min-

has férias lendo. Li todos os livros que havia recebido.Mês de outubro. Convoquei a mesma comissão do ano anterior

para fazer a festa natalina. O Diretor compareceu e pediu-nos para fazer este ano uma festa mais simples, pois era um ano eleitoral e deveríamos fazer a festa mais interna.

Mesmo assim, autorizou-nos a escrever para as mesmas empre-sas que nos mandaram presentes, fazendo outras solicitações.

Foi realmente uma festa menor, mesmo assim houve bolos, re-frigerantes e presentes para todos.

As autoridades compareceram e mais uma vez, o Diretor foi elogiado.

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Como eu tinha algum dinheiro, pedi autorização ao Diretor e comprei um presente para Dona Carmem. Foi o primeiro que ela recebeu, não foi um grande presente, mas lhe dei-lhe de todo coração.

Além do presente escrevi um cartão.

Querida CarmemParece que os dias que se passam encurtam a distância e o

tempo que nos separam. Breve, muito breve, estaremos juntos.Abraços,Carlos

Estou terminando a segunda série do segundo grau. Está quase na hora de voltar. Voltar para minha querida mãe e, por incrível que pareça, ainda não tive coragem de perguntar a Dona Carmem quem é o meu pai.

Mas já é tempo. Hoje mesmo escreverei.

Rio de Janeiro Querida CarmemHá aproximadamente seis anos, eu lhe escrevi a primeira

carta, e nela eu fazia uma promessa: voltaria no dia em que estivesse “pronto” para fazê-lo.

Acredito que este momento chegou. Eu poderia simplesmente não mais escrever e sim, bater a porta, pedir licença e entrar, pois acredito que esse seria nosso desejo.

Porém antes de fazê-lo, antes de reencontrá-la desejaria mais um sacrifício por parte da senhora, seria um pedido que acredi-

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to, conquistou o direito de fazê-lo; quero saber quem é o meu pai biológico. Prometo que jamais irei procurá-lo e a senhora sabe quando eu prometo, eu cumpro.

Não mais o odeio. A senhora me ensinou mesmo a distância a amar, a perdoar, mas acredite é muito importante para eu saber quem me gerou.

Sei que a senhora me atenderá.Abraços Carlos.

Coloquei a carta na árvore e fiquei ansioso esperando a resposta.No primeiro dia nada, nem no segundo, nem no terceiro. Já

estava ficando preocupado quando uma semana depois recebi a tão esperada carta.

Confesso que relutei em abri-la. Levei para o meu quarto e fiquei fitando-a com vontade de abri-la e ao mesmo tempo sentia medo. Medo da resposta não ser a esperada.

Mesmo assim, tomei coragem e li a carta.

Querido Carlos,Há muito que esperava por esta cobrança. Esperava, mas não

me preparei. Sei que tens todo o direito. Sei também que irei sofrer muito se tiver que fazer esta revelação.

Não sabe o quanto é difícil desenterrar o passado. Passei quinze anos tentando esquecer, vivendo para o futuro. Futuro que irá trazer-te para mim. E, quando tudo fazia crer que seria

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feliz, com toda razão, faz-me voltar e reviver as mágoas e os desencantos de um passado que só nos trouxe tristeza e sofri-mentos.

Meu filho, vais ter um pouco de paciência, talvez fosse mel-hor não o conheceres, vem morar comigo e com o passar do tem-po, nós nos preparemos para esta revelação que me constrange tanto, que quase não tive alegria de saber que estamos prontos para convivermos juntos.

Mesmo assim, querido filho nada, nada mesmo nos sepa-rará.

Se não revelo agora o nome do teu pai é porque não estou pre-parada. É preciso mais uns dias, talvez se estivessem perto de mim seria mais fácil.

Já sabe, a casa é tua. Falaste em bater a porta, mas não é necessário, pois ela estará sempre aberta para ti.

AbraçosCarmem

Confesso que esta carta deixou-me nervoso e frustrado. Esperei tanto tempo e nada.

E, na ira, resolvi escrever para Dona Carmem.

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Rio de JaneiroHá uma semana quando escrevi para a senhora indagando

sobre a identidade do meu pai, pensei que estava pronto para morar com a senhora; depois da resposta que a senhora me deu, cheguei a conclusão de que ainda não estou totalmente pronto.

Não pense que estou fazendo coação psicológica, mas é como me sinto; uma pessoa imatura e que não estou emocionalmente preparado para receber uma notícia tão importante.

AbraçosCarlos

Dias depois, lá estava um bilhete de Dona Carmem.

Querido Carlos,Você venceu. Desejaria fazer essa comunicação pessoalmente,

venha a nossa casa, se quiser só para ouvir a notícia, depois, você decide seu destino. Não sou sua dona, contudo você sabe que tenho vivido nesses últimos seis anos, somente para você.

Abraços Carmem.

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Confesso que nunca vi Dona Carmem tão amargurada, tão frus-trada.

Como ainda faltavam algumas semanas para o final do ano e, como eu ainda era o responsável pela festa natalina, resolvi esperar mais um pouco, pois quase todos dependiam de mim. Escrevi para Dona Carmem, sobre a minha decisão, com uma promessa de ir passar o Natal com ela.

Ontem recebi um lindo cartão de Natal do Juiz de Menores Dr. Fred.

Faltam somente seis dias para o Natal. Tudo está pronto, como sempre as firmas continuaram sendo bastante generosas, mandan-do-nos uma grande quantidade de presente para a distribuição na-talina.

Falei com o Sr. Diretor sobre a decisão de passar a Festa Natali-na com Dona Carmem. Todavia ainda dei duas opções: a primeira, que a festa fosse realizada um pouco mais cedo ou que ela fosse realizada sema a minha presença.

Como conhecedor profundo de vida, pois nunca lhe fiz segredo, pelo contrário, sempre foi meu conselheiro e confidente apoiando-me em todas as minhas decisões, ele aceitou a primeira ideia. A festa começaria mais cedo e poderia estender-se até as 22 horas.

Dia vinte e quatro véspera de Natal. Comemoramos o Nasci-mento de Cristo e, talvez, o meu renascer.

Ontem escrevi para Dona Carmem comunicando que iria che-gar às 22 horas o Diretor se prontificou em me mandar levar.

O dia foi se arrastando. Eram 12 horas quando recebemos a primeira visita.

Foi o governador em pessoa que com sua esposa, veio nos fazer uma visita.

Chegou na hora do almoço e almoçaram conosco. No final, ele fez um discurso elogiando a nossa Instituição, chamando-a de modelo para as outras instituições. Deu um presente a cada um dos garotos e a mim, não sei por que, deu o presente melhor, foi um conjunto de canetas. Prometeu que se fosse possível, daria um pulo até a nossa festa.

Às 18 horas, começou a nossa festa. Não foi muito alegre como a dos anos anteriores. Havia no ar, um sinal de tristeza. Não sei por

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que, mas pressenti isso desde a semana passada.Às 20 horas, houve a distribuição de presentes. Quando todos

haviam recebido o seu, descobria razão de tanta tristeza: um dos garotos que estuda comigo, o Gilberto, tirando um papel do bolso, pediu silêncio e começou a ler. A princípio compassadamente, de-pois, emocionalmente e, com as lágrimas saltando dos seus olhos e dos outros garotos, inclusive dos meus.

Meus caros colegas,Hoje é o grande dia para o nosso líder, Carlos.Sabemos sua luta para se firmar como homem; sabemos que

há muito ele poderia estar morando numa grande casa com uma grande família cercado de toda a atenção e de todo carinho.

Mas diferentemente de tudo o que possa parecer, preferiu fi-car conosco, dar-se a nós através de seu exemplo de vida, de sua conduta, mostrando o caminho que todos nós deveríamos seguir.

Carlos apesar de todo o seu mutismo, quanto à sua vida privada, nós a conhecemos e, por isso lhe admiramos e, por isso estamos tristes porque há uma perspectiva de hoje você nos deixar. Mas esta tristeza em um dado momento se transforma em alegria, porque você vai para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Ficar ao lado de sua mãe. Mas, quis o destino que você viesse para cá, mudando, transformando, não só o nosso com-portamento, mas também a estrutura da nossa instituição. Se hoje estamos comemorando o Natal, é porque você teve a ideia e o trabalho para a sua realização. Se hoje eu e mais vinte colegas estamos estudando em colégio particular, foi graças ao seu de-sejo de mudar e de se transformar no homem íntegro que é hoje.

Carlos, você pode partir, sabemos que irá trilhar merecida-mente caminho mais amplo, porém espiritualmente, você sem-

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pre estará conosco, seu exemplo será seguido por todos nós, cada um com o pensamento voltado para você, que com toda certeza será no futuro um grande cidadão. O cidadão esperado pelas autoridades, pois apesar de sermos tão pobres que tivemos de vir morar aqui, apesar de todas as amarguras pelo que passamos, seremos com toda a certeza, depois do exemplo de vida dado pelo nosso colega Carlos, o futuro Brasil.

Muito obrigado.

Após o discurso, a festa acabou ninguém conseguia articular uma palavra. Abracei ao colega Gilberto, como se estivesse abraçando a todos e chorei. Chorei como nunca havia feito.

Mesmo assim, ainda consegui levantar o braço e dizer quase gritando.

- Muito obrigado. Vocês serão sempre meus queridos irmãos.Após pronunciar estas poucas palavras, sai correndo, contudo

uma coisa havia firmado comigo: mesmo fora, jamais abandonaria meus irmãos.

Às 22 horas, chegamos a casa Dona Carmem pela primeira vez entrei em casa de minha mãe pelas portas da frente.

Foi indescritível o momento. Ela estava na porta me esperando.Quando o carro parou, corri para os seus braços e choramos e

rimos ao mesmo tempo. Passado aquele momento, verifiquei que não estávamos sós. Havia umas trinta pessoas nos cercando.

Minha mãe fez questão de apresentar um a um.- Este é o meu tão esperado e querido filho.Nunca havia visto tantas pessoas simpáticas. Todos me abraçar-

am, desejaram boas-vindas e muitas felicidades.Após as 24 horas, foi servido o jantar, durante o qual foi feita a

troca de presentes.

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A partir das duas horas, os convidados começaram a se des-pedir, não sei por que eu fui ficando. Estava cansado físico e men-talmente, mas tomei uma decisão.

Dirigi-me para Dona Carmem e fiz o que outros convidados estavam fazendo:

Dei boa noite e ia me dirigindo para a porta quando ela me chamou.

- Carlos, não vá ainda. Eu estou esperando a saída dos convida-dos para conversar com você.

Nunca em minha vida, senti-me tão pequeno, mesquinho e mal agradecido.

Antes de vir para cá, o Diretor teve uma conversa muito seria comigo. Contou-me que minha mãe sabia desde a primeira carta que lhe escrevi, devolvendo o roubo, onde eu me encontrava. Foi ela que pagou todo o meu estudo, juntamente com os três amigos. Ela o fez, pagando dos quatro para evitar suspeita; foi ela quem praticamente enviou-me os livros, além de tudo pagava uma soma, não revelada para que nada me faltasse. Roupas, dinheiro para ôni-bus e uma pequena mesada.

Eu em troca, no dia do Natal, para Deus e para mim, iria com-eter mais uma injustiça contra aquela que dedicou a sua vida a um filho ausente. Por isso fiquei. Fiquei e dormi. Não fiz a cobrança.

Minha mãe mostrou-me o meu quarto. Era um quarto amplo, todo alcatifado, a cama era nova, havia quebra-luz, enfim nunca havia estado num lugar tão confortável.

- Bem filho, este é o seu quarto. Se quiser podemos conversar agora, caso contrário, durma e amanhã conversaremos.

Abraçando-a disse com lágrimas nos olhos:- Mãe, esta conversa teremos, mas Sá quando a senhora quiser

e achar que está disposta. Garanto que não a cobrarei. Boa noite e minha benção.

Ela não articulou nenhuma palavra. Balançou a cabeça, deu-me um beijo e saiu.

Não conseguir dormir. Foi uma noite longa onde pude repassar toda a minha vida e aproveitei para agradecer. Agradecer a Deus, pela minha mãe. Agradecer a Deus, pelos meus estudos. Agradecer a Deus por essa noite.

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Acordei cedo. Minha mãe já acordada. Abraçou-me e beijou-me. Eu retribuí.

- Eu poderia fazer um pedido?- Ora, Carlos o que você quer? Pode pedir.- Olhe ontem a senhora apresentou-me aos seus amigos. Hoje

se a senhora estiver disposta, eu gostaria que conhecesse os meus. Outra coisa gostaria de visitar com muita frequência a minha insti-tuição, onde moram meus colegas e onde eu morei durante tantos anos.

- Olha Carlos, eu pensava em algo diferente para hoje. Jamais poderei negar o seu primeiro pedido. Vamos visitar os seus amigos e quanto a visitá-los, você o fará quando quiser como também pode trazer seus amigos para cá também.

Na Instituição fomos recebidos com muita festa; minha mãe fez questão de falar com todos, um por um, agradecendo aos mais vel-hos, beijando os mais novos. O Diretor fez questão que almoçásse-mos com ele e não podíamos recusar, afinal, com todos os defeitos, ele tem algum mérito na minha formação.

À tarde, voltamos para casa. E foi na hora do jantar que minha mãe aproveitou para fazer a grande revelação.

- Carlos, quero aproveitar que hoje é dia de Natal e vou revelar o que você tanto espera: vou relevar o nome de seu pai.

- Agora você vai prometer que não removerá passado, sobre nenhum pretexto. Ele já o conhece. É, de certa forma um dos maiores torcedores pelo seu sucesso. Revelei a ele com a promessa dele jamais procurá-lo como pai ou sob qualquer forma.

- Mãe, se ele me reconhece como filho, se ele torce por mim, como eu poderia agir, conhecendo-o?

- Deixe que o tempo se encarregue de uni-los. Não tome nen-huma atitude precipitada.

- Está certo. Eu prometo!- Bem o seu pai é o Juiz de Menores, o Fred Correia de Oliveira.

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Epílogo

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Este livro foi projetado pela Dois Pontos Design, designers Othon Vasconcelos e Gustavo Peres.

A impressão offset ficou a cargo da gráfica Nome da Gráfica, que utilizou pólen 90g/m2.

Textos diagramados em Garamond, criada por Claude Garamond em 1530. Títulos do miolo e texto das cartas em Blackjack, criada por Typadelic em 2002. Título da capa em Din Pro, criada por

Albert-Jan Pool em 1995.

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Neste espaço pode-se colocar uma apresentação sobre o autor, escrita por outra pessoa, ou uma breve sinopse do livro, também escrita por outra pessoa. Neste espaço pode-se colocar uma apresentação sobre o autor, escrita por outra pessoa, ou uma breve sinopse do livro, também escrita por outra pessoa. Neste espaço pode-se colocar uma apresentação sobre o autor, escrita por outra pessoa, ou uma breve sinopse do livro, também escrita por outra pessoa.